Suicídio Artigo
Suicídio Artigo
Suicídio Artigo
Dissertao de Mestrado
Rio de Janeiro
Maro de 2006
Livros Grtis
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Milhares de livros grtis para download.
Arthur Henrique Motta Dapieve
Ficha Catalogrfica
172 f. ; 30 cm
CDD: 302.23
Agradecimentos
Palavras-chave
Jornalismo; suicdio; discurso; egosmo; altrusmo; anomia.
Abstract
Suicide by contagion: the way in which the press talks about voluntary
death. Coming from the professional experience as journalist, the work relates
Durkheims theory with the kind of treatment given by the contemporary press to
the people who kill themselves. The features about the subject published in O
Globo newspaper in 2004 has been re-read, bearing in mind the concepts of
egoism, altruism and anomy. It has been tried to establish as well how the
language used relates itself with the social behaviours that are previous and
external to the creation of the own texts.
Keywords
Journalism; suicide; discourse; egoism; altruism; anomy.
Sumrio
Apresentao 9
Dois episdios 9
1 . Introduo 12
1.1. O no-lugar do suicdio 15
1.2. Observao participante 17
1.3. O que diz o jornal? 18
2 . Suicdio e sociedade 21
2.1. O suicdio do tipo egosta 23
2.2. O suicdio do tipo altrusta 26
2.3. O suicdio do tipo anmico 30
2.4. Anomia e ps-modernidade 33
2.5. A reabilitao da comunidade 36
2.6. Dois casos clssicos: Pavese e Levi 41
2.7. O nico problema filosfico srio 45
3 . Suicdio e imprensa 50
3.1. A Golden Gate 53
3.2. Gutenberg quebra o monoplio dos monges copistas 56
3.3. As vises gregas e romanas sobre o suicdio 60
3.4. Repetio, doena, contgio, ideologia 65
3.5. Hamlet, o inventor do sujeito e da psicanlise 69
3.6. Bills of mortality: a listagem de mortos na imprensa 75
3.7. Os casos de Fanny Braddock e do casal Smith 83
3.8. O papel didtico das cartas dos suicidas 88
3.9. As cartas brasileiras e as dos resistentes franceses 92
5 . Concluso 157
Chico Buarque
(Construo, 1971)
Apresentao
Dois episdios
1
Em Literatura i periodisme (1993), o professor catalo Llus-Albert Chilln assim descreve a
ttica gonzo: Em vez de obter a informao desde uma prudente distncia profissional, Thompson
se inseria nas situaes que tratava, at o ponto de se fazer co-participante. O fato de viv-las dire-
tamente lhe permitia compreend-las como no poderia fazer um reprter convencional (p. 129).
10
2
No More Games. No More Bombs. No More Walking. No More Fun. No More Swimming. 67.
That is 17 years past 50. 17 more than I needed or wanted. Boring. I am always bitchy. No Fun
for anybody. 67. You are getting Greedy. Act your old age. Relax This wont hurt.
1
Introduo
3
Posteriormente, a expresso efeito Werther passou a ser usada sempre que um suicdio sobre-
tudo o de artistas serve de inspirao para que outras pessoas se matem.
14
4
Tal suspeita enfraquecida pela inpcia da suposta execuo (Barthes morreu apenas a 26 de
maro, depois de um ms de agonia no Hospital Piti-Salptrire) e pelo estado de nimo daquele
que considerado seu ltimo texto, por ter sido encontrado em processo de reviso datilogrfica,
na sua mquina de escrever, na data do atropelamento: Malogramos sempre ao falar do que ama-
mos (nele, Barthes trata da transcendncia da arte e da esperana a partir de Stendhal).
5
Cf. p. 16.
15
1.1
O no-lugar do suicdio
6
Je ne suis pas mdecin, ni psychiatre, ni psychanalyste; je ne suis pais moraliste, no philosophe,
ni thologien; je ne suis pas ethnologue, ni psychologue et si peu sociologue. Je remplis donc les
conditions ncessaires, sinon suffisantes, pour tudier les suicides.
16
mort volontaire, lembra que parte dela se deve a falhas documentais. As fontes
que concernem s mortes voluntrias so diferentes daquelas que relatam as
mortes naturais. Os famosos registros paroquianos de falecimentos no so aqui
de nenhuma ajuda, porque os suicidas no tinham direito inumao religiosa
(MINOIS, 1995, p. 9). Minois assinala, portanto, que os historiadores devem se
dirigir a fontes heterclitas (memrias, crnicas, jornais, literaturas) e a arquivos
judiciais, pois a morte voluntria quase sempre foi considerada crime. Logo,
tambm o Direito, cannico ou laico, produziu discursos condenatrios do
suicdio.
Dentro deste esprito e tambm como jornalista irei trabalhar a
primeira das trs partes desta dissertao. Lanarei mo de textos produzidos no
mbito da Sociologia, da Histria, da Filosofia, da Psicologia, da Antropologia e
at da Literatura, na tentativa de estabelecer elos entre o fato concreto do suicdio
e a idia generalizada de que ele , num sentido bem especfico, no biolgico,
contagioso dentro das sociedades.
No processo, um pouco como Barthes empregou o Werther, utilizarei O
suicdio Estudo de sociologia [1897] de mile Durkheim, como leitura
regular, em relao s quais se posicionam por alinhamento, divergncia ou
oposio as outras. Seu livro uma referncia constante quando se estuda o
suicdio, naturalmente no por ser o primeiro. Sua prpria bibliografia o
comprova: est coalhada de livros de mdicos e psiclogos sobre a morte
voluntria. Durkheim, porm, prope uma mudana drstica na abordagem do
fenmeno: no mais v-lo como a expresso individual de uma doena ou de uma
loucura, e sim como a expresso individual de um fenmeno coletivo. Pensando
desta forma, em seu trabalho, Durkheim isolou para anlise uma tipologia do
suicdio ainda vlida. Alm disso, ele aceitava a idia de contgio dentro das
sociedades e admitia que, mais do que o mero boca-a-boca, a imprensa poderia
desempenhar um papel potencializador na transmisso se no do suicdio, da sua
sugesto.
17
1.2
Observao participante
1.3
O que diz o jornal?
7
First, their unit of of analysis was not the individual reporter or editor (...), rather, they examined
news organizations as complex institutions. Second, although framed in neutral academic lan-
guage, the studies were implicity political. Their authors sought to understand how news came to
support official interpretations of controversial events. Third, sometimes implicity but often ex-
plicity, these studies raised a key epistemological issue: how do news organizations come to
know what they know.
19
8
Media contents The interdisciplinary study of news as discourse. In: JENSEN, JANKOWS-
KI. A handbook of qualitative methodology for mass communication research. Londres e Nova
York: Routledge, 1991.
20
9
One of the most powerful semantic notions in a critical news analysis is that of implication. (...)
Much of the information of a text is not explicity expressed, but left implicit. Words, clauses, and
other textual expressions may imply concepts or propositions which may be inferred on the basis
of background knowledge. This feature of discourse and communication has important ideological
dimensions. The analysis of the unsaid is sometimes more revealing than the study of what is
actually expressed in the text.
2
Suicdio e sociedade
o afirma: (...) Mostraremos que essa maneira de ver, longe de excluir toda a
liberdade, aparece como o nico meio de concili-la com o determinismo revelado
pelos dados da estatstica. (ibidem, p. 6, nota de rodap).
Auxiliado por, entre outros, seu sobrinho Marcel Mauss (ele prprio
socilogo e antroplogo importante) e por Maurice Halbwachs (que, em 1930,
escreveria Les causes du suicide, respeitosamente discordando de algumas
concluses do mestre), Durkheim cruzou as estatsticas disponveis sobre suicdio
na Frana e em outros pases europeus de modo a refutar ou explicar em bases
cientficas, despidas de crendices por que certas doenas mentais ou religies,
certas raas ou tipos humanos, certas classes sociais ou sexos, certos climas ou
horrios do dia tenderiam a aparecer como mais propensos ao suicdio. Encontrou
um aparente enigma: embora, obviamente, pessoas diferentes se matem por
motivos diferentes, a cota de suicidas de cada sociedade permanece estvel por
perodos contguos de tempo isso, especificamente, o que Durkheim chama de
taxa social. Como observa Jos Carlos Rodrigues, num texto indito, Os corpos
na antropologia:
do mtodo sociolgico [1895], foi seu livro de 1897 que uniu forma e contedo de
maneira magistral, transformando-se numa aula magna.
No prefcio edio brasileira de 2000, Carlos Henrique Cardim,
professor do Instituto de Cincia Poltica e Relaes Internacionais da UnB,
lembra que Seymour Martin Lipset, autor de Political man, usava o livro de
Durkheim na primeira aula de seus cursos de Sociologia na Universidade da
Califrnia por consider-lo um modelo particularmente atraente para os alunos
de estudo de cincias sociais. Alm de demonstrar cabalmente a possibilidade e a
necessidade da sociologia que at ento estava muito contaminada pela metafsica,
pela psicologia e pelo messianismo redentorista, acrescenta Cardim (ibidem, p.
XIX).
Durkheim notou que a nica constante na Europa era que o suicdio se
relacionava diretamente com o grau de envolvimento do suicida com a sua
sociedade e que isso s vezes apenas coincidia com o senso comum. Por
exemplo, os homens se matavam quatro vez mais que as mulheres, certo, mas no
porque fossem mais predispostos a isso e sim porque, no sculo XIX, eles tinham
uma vida social mais ativa que elas. Protestantes se matavam mais que catlicos,
certo, mas no porque fossem mais mrbidos e sim porque sua religio se
caracteriza por valorizar mais o indivduo e o livre-pensar, menos o grupo e a
ortodoxia. Tudo o que variao horroriza o pensamento catlico, escreve o
socilogo (p. 185).
Em sentido inverso, ou seja, desmentindo a impresso popular e
aparentemente lgica de que a hora das trevas ou as longas noites de inverno
influenciavam o esprito das pessoas que, deprimidas e solitrias, se matavam,
Durkheim mostrou que elas o faziam mais freqentemente de dia, em particular
nas horas ditas comerciais, e nos meses quentes do Hemisfrio Norte, justamente
porque eram estes os momentos de maior intensidade da vida social.
2.1
O suicdio do tipo egosta
10
I havent felt the excitement of listening to as well as creating music, along with reading and
writing for too many years now... Ive tried everything thats in my power to appreciate it, and I
do. God, believe me, I do... I must be one of those narcissists who only appreciate things when
theyre alone. Im too sensitive. I need to be slightly numb in order to regain the enthusiasm I had
as a child... (...) Since the age of seven, Ive become hateful toward all human in general... Im too
much of na erratic, moody baby! I dont have passion anymore, and so remember, its better to
burn out than to fade away.
11
Segundo ele contou ao bigrafo de sua banda, o jornalista Michael Azerrad, em Come as you
are The story of Nirvana, sobre o Natal de 1974: A nica coisa que eu realmente queria naque-
le ano era um revlver Starsky e Hutch de US$ 5. Em vez disso, ganhei massinha de carvo.
26
2.2
O suicdio do tipo altrusta
p. 35) aponta para o discreto elogio bblico morte voluntria inclusive nas
palavras de Cristo:
Seja como for, o martrio voluntrio dos seus santos foi louvado pela
Igreja at o momento em que interesses terrenos o desqualificaram como nobre o
bastante para elidir seu carter suicidrio: o Imprio Romano converteu-se ao
cristianismo sob Constantino, no comeo do sculo IV. A partir desta poca, a
condenao tanto religiosa quanto civil ao suicida vai se tornando mais severa, at
atingir as sdicas penas impostas aos corpos dos suicidas durante a Idade Mdia:
para a Igreja, matar-se por desespero era desprezar o poder da penitncia, isto , o
seu poder; para o Estado, matar-se era privar o imprio de novos sditos e
soldados numa poca em que a baixa natalidade romana favorecia os brbaros.
Em Tabu da morte, Rodrigues explicita:
12
Le christianisme nat et se dveloppe dans une atmosphre ambigu, affirmant que cette vie ter-
restre, dans le monde est hassable et quil faut aspirer la mort por rejoindre Dieu et la vie ter-
nelle. Cette tendance lemporte nettement dans les dbuts de lglise. Daprs saint Jean,
lambigut est telle dans leiseignement du Christ qu certains moments les Juifs croient que J-
sus va se suicider: Jsus leur redit encore: Je mem vais: vous me chercherez et nanmois vous
mourrez dans votre pch. L o je vais, vous ne pouvez aller. Les Juifs se dirent alors: Aurait-il
lintention de se tuer? Il vient em effet de dire: L o je vais, vous ne pouvez aller.
28
13
Recentemente, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, instituiu uma mesada
para as famlias dos terroristas suicidas, tratados como shahids (mrtires), a maior honraria da f
islmica, reservada queles que morrem por Deus.
29
2.3
O suicdio do tipo anmico
Durkheim era um pessimista. Olhava em volta e tudo o que via era a eroso,
pelos sucessivos impactos da revoluo, da industrializao e da secularizao,
daquilo que o homem europeu ocidental do sculo XIX entendia como o seu
papel. Tornado ignorante dele, sua sada ento j era a excessiva invidualizao:
nela, o socilogo enxergava as causas tanto das correntes suicidrias quanto de
outras manifestaes de desorganizao e alienao. Ou, como Robert A. Nisbet
escreve em The sociological tradition [1966]: O que de fato caracterstico do
nosso desenvolvimento, Durkheim sugeriu, que ele sucessivamente destruiu
todos os contextos sociais estabelecidos (p. 300). Em troca, nada teria sido criado
para substitui-los. Pode-se argumentar, com Ortiz, que houve, sim, uma rpida
substituio, das referncias locais pelas nacionais e logo destas pelas
transnacionais (como o caso, por exemplo, da Unio Europia). Entretanto, isso
no muda o fundamental: a anomia paradoxalmente tornou-se a regra.
33
2.4
Anomia e ps-modernidade
14
Cf. p. 44 .
34
Neste mundo onde, para recitar Marx via Marshall Berman, tudo o que
slido desmancha no ar, o homem enfrenta contnuas experincias de ruptura de
equilbrio pessoais, familiares, financeiras, sociais, geogrficas. Sua sensao de
desarraigamento se d no apenas entre pas e pas, mas dentro do espao mesmo
daquilo que outrora ele entendia como sua cidade. Perdido em megalpoles
cada vez maiores, o indivduo olha em volta e tudo o que enxerga anomia; literal
e metaforicamente, ele perdeu os pontos de referncia. Est mais exposto que
nunca tentao da morte voluntria do terceiro tipo, tal como isolado por
Durkheim. No deixa de ser ironia perversa da Histria que contribua para a
percepo de anomia geral a espetacular visibilidade do suicdio do segundo tipo,
o altrusta, praticado em nome de uma causa alm da vida, o Isl, no 11 de
setembro de 2001.
O gigantismo das cidades e das malhas fsicas de comunicao gera outra
idia interessante na tentativa de conceituao de uma ps-modernidade, a de no-
lugares. Para Marc Aug, eles so (mais uma) fonte geradora de perdio porque,
como escreve em No-lugares Introduo a uma antropologia da
supermodernidade, so tanto as instalaes necessrias circulao acelerada
das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodovirios, aeroportos) quanto os
prprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os
campos de trnsito prolongado onde so estacionados os refugiados do planeta
(2004, p. 36). Nesses lugares, ou melhor, nesses no-lugares, o homem no mais
se reconhece. Jogado no mundo sem regras ou norte, a tentao de partir para
outro no-lugar aumenta.
Volta e meia, ainda que discretamente, alguma notcia menciona algum
que decidiu pular de um viaduto ou abraar um trilho eletrificado. Em 2004, uma
pequena nota publicada no jornal Folha de S. Paulo anunciava o propsito da
empresa mantenedora do metr da capital paulista de instalar portas de material
35
EUA quanto na Indonsia. Ela soldaria seus membros como conscincia coletiva
de tipo durkheimiana, moral condizente com a eficcia global e, claro salvadora
dos homens, escreve Ortiz (p. 154). Estaramos, hoje, sendo ressocializados
segundo esta nova concepo.
2.5
A reabilitao da comunidade
Tendo-se isso em mente, torna-se menos estranho que nunca se tenha falado
tanto em comunidade, espcie de unidade-padro da vida social na Idade Mdia.
A reabilitao desta idia, no entanto, nada tem de ps-moderna. Ela remonta ao
incio do sculo XIX quando comeou a haver, por parte dos estudiosos da vida
em sociedade (talvez no seja acurado cham-los, naquele momento, de
socilogos), uma reao exaltao dos iluministas ao contrato social. Na viso
destes, a nova sociedade racional deveria ser, por definio, o oposto da sociedade
tradicional. Assim, ela seria baseada no homem no como arteso, fiel ou
campons e sim como homem natural. Segundo Nisbet, ela deveria ser
concebida como um tecido de relacionamentos especficos e voluntrios em que
os homens livre e racionalmente entram uns com os outros (p. 49). Para os
crticos dos iluministas, porm, o contrato no fazia sentido como mera comunho
de interesses porque tambm eles se relacionavam a algo externo, que lhes dava
valor a comunidade.
Tomando o partido da segunda no embate societas versus communitas,
Auguste Comte, por exemplo, via a restaurao da comunidade como um
problema de urgncia moral. No to conservador, embora compartilhando com o
pai do Positivismo alguns pontos de vista, Durkheim lembrava a origem comunal
da prpria concepo humana de universo e ressaltava que tudo aquilo que se
eleva acima do nvel do fisiolgico social, ou seja, humano.
15
In Durkheim we find the idea of community used not merely substantively, as in Le Play, not
merely typologically, as in Tnnies, but also methodologically. That is, in Durkheims hands
community becomes a framework of analysis within such matters as morality, law, contract, relig-
ion, and even the nature of the human mind are given new dimensions of understanding.
38
16
This particular emotional frame of mind can perhaps, generally speaking, de defined as piety.
Piety is a an emotion of the soul which turns into religion whenever it projects itself into specific
forms. Here it should be noted that pietas means the pious attitude towards both man and God.
Piety, which is religiosity in a quase-fluid state, will not necessarily have to coalesce into a stable
form o behavior vis--vis the gods; i.e., into religion.
39
julho de 1961, seu av, o escritor Ernest Hemingway matou-se, a dias do seu 62
aniversrio, disparando sua espingarda de dois canos contra a cabea.
Sobre Hemingway, Hunter S. Thompson escreveu, para a revista National
Observer de 25 de maio de 1964, um texto que terminava com a seguinte frase:
Ento, finalmente, e pelo que ele deve ter achado ser a melhor das razes, ele
terminou tudo com uma espingarda de caa (2004, p. 151). Outras trs pessoas
da famlia do escritor cometeram suicdio: a irm, o irmo e o pai de Ernest.
2.6
Dois casos clssicos: Pavese e Levi
17
Embora possa soar incongruente sobreviver a Auschwitz ou a outro campo de concentrao para
se matar mais tarde, no so incomuns suicdios nestas circunstncias. Sobreviventes do Holocaus-
to, o psiclogo austraco Bruno Bettelheim (1903-1990) e o poeta romeno Paul Celan (1920-1970)
tambm se mataram.
44
Vagienna, onde morava, depois que o seu banco faliu e enfureceu a populao
local.
No eplogo de sua minuciosa biografia de Primo Levi, publicada em 2002,
o jornalista ingls Ian Thomson buscou repercutir o que a Itlia de 1987 disse
aps o suicdio de um de seus maiores escritores. Ele menciona todas as hipteses
razoveis para a deciso (a doena da me, o prprio sofrimento fsico, a crescente
perda de memria e a explicao romntica, Auschwitz) e tambm algumas das
hipteses desarrazoadas (mania de perseguio, neo-fascistas ameaando-lhe com
armas etc.). Thomson registra como a mais bizarra a do escritor siciliano
Gesualdo Bufalino. Dias antes do suicdio de Levi, a rede estatal RAI exibira tarde
da noite O inquilino [1976], de Roman Polanski, no qual um judeu franco-polons
(o prprio diretor interpreta Trelkovsky) pula para a morte de um terceiro andar
em Paris. Para Bufalino, autor de O disseminador da peste, Levi fora
emocionalmente contagiado pelo filme (citado por Thomson).18
O jornalista recolhe depoimentos que falam de uma depresso ao mesmo
tempo mais arraigada e mais difusa, como os do livreiro Angelo Pezzana (Primo
no se matou por causa da sua me ou de Auschwitz: foi algo profundamente
dentro dele); de Luciana Nissim, amiga de Levi que, como ele, sobreviveu a
Auschwitz (Primo estava fora de si com a desgraa, nenhuma quantidade de
amor de outras pessoas poderiam t-lo salvo); e de Anna Maria, irm caula de
Levi (No foi nada, absolutamente nada). A partir deles, Thomson escreve:
18
O protagonista do thriller psicolgico de Polanski, por seu turno, aluga o apartamento onde a
antiga inquilina cometeu suicdio e passa a acreditar que o senhorio e os vizinhos numa conspi-
rao aparentada de um filme anterior do cineasta, O beb de Rosemary (1968) querem trans-
form-lo na ocupante anterior. Quando pula, ento, alis, quando pula duas vezes, pois na primeira
quebra apenas a perna, Trelkovsky est vestido de mulher, num toque de humor negro.
19
There are always two suicides the real one, and the one people think they know about. Over
the years strident public claims have been made that Levi did not in fact kill himself. Underlying
these attempts to exonerate him from self-murder is the belief that a great and courageous man
could not have done such a thing. But such men do, often enough.
45
2.7
O nico problema filosfico srio
20
In 1967 Levi had written of the Piedmontese poet Cesare Pavese: Nobody has yet been able to
penetrate the reason and the roots of his suicide. And the same must be said of Levi. His suicide
was provoked by his clinical depression, which was compounded by a complex web of factors.
46
indiscrio, condenado pelos deuses a rolar uma enorme pedra montanha acima
para todo o sempre: cada vez que chega ao topo, ela rola encosta abaixo e ele
recomea o seu trabalho. Tarefa que Ssifo executa conformadamente.
Porque, para Camus, o Absurdo s se completa se o homem no fugir dele,
se matando. Ter conscincia da prpria mortalidade, do Outro, da ausncia de
normas sociais dadas a priori, de significados redentores e da inexistncia de
Deus joga o homem num mundo inteiramente anmico, sem regras ou sentido.
Sua liberdade, porm, se no se reafirma nem pela dissipao hedonista nem pela
recusa a viv-lo e sim pela aceitao responsvel do Absurdo. Talvez no haja
melhor sntese deste paradoxo do que o ttulo de um de seus romances, A morte
feliz, espcie de rascunho para O estrangeiro publicado postumamente, em 1970.
Para fisgar o leitor sem desmerecer a complexidade do tema, Camus abre O mito
de Ssifo com aquele que o mais famoso conjunto de frases sobre o suicdio:
Com estas palavras, Camus de certa forma concorda com Durkheim, que
dedicou ao suicdio o melhor de seus esforos para estabelecer a sociologia como
uma rea autnoma do conhecimento21: no existe, para ambos, assunto mais
urgente. Quase meio sculo depois da publicao de O suicdio, ento, Camus
empreende a sua prpria investigao sobre a morte voluntria, sempre tendo
como referncia seus vnculos ao Absurdo. Aborda o suicdio filosfico; v em
Don Juan o exemplo do homem absurdo; evoca Kirilov, de Os possessos, de
21
Nem todos concordam com isso. Para Nisbet, por exemplo, o primeiro trabalho genuinamente
de sociologia do sculo (XIX) As classes trabalhadoras europias, de Frdric Le Play, publi-
cado em 1869: O suicdio, de Durkheim, comumente encarado como o primeiro trabalho cien-
tfico na sociologia, mas em nada diminui o seu feito observar que foi nos estudos de Le Play
sobre tipos de famlia e comunidade na Europa que se encontrou bem mais cedo (...) um trabalho
que combina observao emprica e inferncia crucial e faz-lo reconhecidamente dentro dos
critrios da cincia. (op. cit; p. 61)
47
22
O pano de fundo da polmica entre um Camus j consagrado e um Barthes ainda em busca de
afirmao no muito lisonjeiro para com o segundo: o autor de A peste acabara de sair do Partido
Comunista Francs e o que viria a escrever Fragmentos de um discurso amoroso fazia, ainda ine-
briado pelas certezas do centralismo democrtico, o papel de patrulheiro ideolgico. A brasileira
Leila Perrone-Moiss, aluna e amiga de Barthes, diz, na apresentao de Inditos vol. 4 Poltica
(2005, XII), que, em sua maturidade, ele se envergonhava do episdio.
48
23
Segundo Allen, no mesmo livro (p. 209), o personagem do filme chamado Louis Levy, um fil-
sofo que se suicida, no foi inspirado em Primo Levi.
24
Quando o livro foi publicado no Brasil, dois anos depois, reportagem na primeira pgina do
Segundo Caderno, do jornal O Globo, assinada por Sheila Kaplan, citava, sem maiores detalhes,
a estatstica brasileira de suicdios como a oitava mais alta do mundo, segundo a Organizao
Mundial da Sade: 17 casos em 100 mil pessoas.
49
Esta sua afirmao se afina com a de Van Dijk sobre a veiculao, nos
textos jornalsticos, de conceitos ou proposies inferidos do senso comum25: ou
seja, no s os temas abordados ou descartados mas tambm a linguagem utilizada
pela imprensa reflete, pelo fortalecimento das normas, a compreenso que a
25
Cf. p. 22-23.
53
sociedade na qual ela se insere ou a fatia de pblico ao qual ela se dirige tem do
assunto. H momentos excepcionais, porm, em que a imprensa pode elevar, ou
ao menos acelerar, a taxa social de suicdios numa determinada comunidade,
contribuindo para o clima geral de anomia. Mesmo neles, porm, ela no criaria
suicidas: excitaria indivduos por suas prprias razes j propensos a se matar.
3.1
A Golden Gate
Antes, Jones havia andado por Minas Gerais atrs de um refgio contra a
hecatombe nuclear que o obsedava. Ele se dizia a reencarnao de Jesus Cristo e
de vez em quando testava a obedincia dos seguidores com ensaios de suicdios
coletivos. Em novembro de 1978, na pista de pouso da colnia, seus capangas
assassinaram a tiros um deputado americano que havia ido a Jonestown verificar
denncias de abusos sexuais e escravido. Antevendo a reao do governo
americano e o desbaratamento da seita Templo do Povo, Jones decidiu antecip-lo
de forma radical pela auto-imolao coletiva. Seus aclitos tomaram um coquetel
de refresco e cianureto. Ele prprio matou-se com um tiro no rosto.
Friend, em sua reportagem, fala de Marissa Imrie26, uma estudiosa
adolescente de 14 anos que, no dia 17 de dezembro de 2001, saiu de Santa Rosa
(quase 100 quilmetros ao norte) de txi (numa corrida de US$ 150) para, da
ponte, pular nas guas geladas e cheias de correntes da Baa de So Francisco, 67
metros e quatro segundos abaixo. Quando, depois do salto de Marissa, Rene
Milligan examinou o computador de sua filha, descobriu que ela andara visitando
um site com dicas para aqueles que desejavam se matar, baseado no best-seller
Suicide and attempted suicide: methods and consequences [1999], de Geo
Stone27.
O site desaconselhava tomar veneno (fatal em apenas 15% dos casos) e
cortar os pulsos (meros 5% de eficcia) e recomendava pular de pontes (saltar de
mais de 80 metros sobre a gua quase sempre fatal). Nele, Renne encontrou a
seguinte frase: A ponte Golden Gate para os suicidas o que as Cataratas do
Niagara so para as pessoas em lua-de-mel. Em nome de Marissa, ela entrou com
uma ao contra a repartio pblica que cuida da Golden Gate e os
administradores da ponte, pedindo a construo de uma barreira. pouco
provvel que tenha sucesso: anteriormente, trs aes similares foram rejeitadas.
Neste contexto, segundo Friend, conforme a contagem de puladores se
aproximava do nmero 500, em 1973, os jornais locais San Francisco Chronicle e
San Francisco Examiner iniciaram uma contagem regressiva. Quatorze aspirantes
ao ttulo foram impedidos de saltar para a morte no Oceano Pacfico pela polcia.
26
Em seu bilhete de despedida, ela escreveu: Por favor, perdoem-me. No se fechem ao mundo.
Todo mundo est melhor sem esta garota gorda, desagradvel e chata. Sigam em frente.
27
O livro hoje encontra-se esgotado na Amazon.com. A loja virtual, no entanto, indica que h qua-
tro exemplares usados venda, por preos que variam de US$ 999 a US$ 2.475.
55
28
No existe sinnimo para esta palavra em portugus: o coroner uma espcie de promotor p-
blico encarregado de investigar as mortes violentas, bruscas ou incomuns antinaturais.
29
Em 1995, um dos que se matou na ponte e teve seu salto noticiado foi Duane Garrett, arrecada-
dor de fundos para o Partido Democrata e amigo do ex-vice-presidente Al Gore. Dois anos antes,
outro suicida ilustre da Golden Gate foi Roy Raymond, fundador da cadeia de lojas de lingerie
Victorias Secret.
30
Ken Holmes, the Marin County coroner, told me, When the number got to around eight hun-
dred and fifty, we went to the local papers and said, Youve got to stop reporting numbers. Wi-
thin the last decade, the Centers for Disease Control and Prevention and the American Association
of Suicidology have also issued guidelines urging the media to downplay the suidices. The Bay
Area media now usually report bridge jumps only if they involve a celebrity or tie up traffic. We
weaned them, Holmes said. But, he added, the lack of publicity hasnt reduced the numbers of
suicides at all.
56
3.2
Gutenberg quebra o monoplio dos monges copistas
31
Hoje, em mdia, uma pessoa pula a cada duas semanas.
32
O tipo mvel j havia aparecido em madeira e argila na China, no sculo XI, e em cobre na Co-
ria, no sculo XIV. No existe conexo comprovada entre Gutenberg e seus colegas orientais.
57
33
Minois lembra, entre outros, o suicdio de Saul, que se trespassa com uma espada ao fim de uma
batalha perdida contra os filisteus. O livro de Samuel diz simplesmente: Saul pegou a espada e se
atirou sobre ela.
34
Citados por Minois em Histoire du suicide, pginas 38 e 44-45.
58
35
Il est frappant de constater que les suicides par simple dgot de la vie son rangs dans le cas de
folie, comme le dclare explicitement Bracton dans son trait. Lhomme mdival nimagine pas
que lon puisse remettre en cause la bont de lexistence mme. Le Moyen Age exclut la possibili-
t de ce quon appellera au XVIIIe sicle le suicide philosophique. Il est alors inconcevable
quun tre sain desprit puisse considrer de sang-froid que la vie ne vaut pas la peine dtre vcue.
Le simple fait de lenvisager sans raison particulire est en soi un symptme de folie, de dsquili-
bre mental que lon commence appeler mlancolie. Le terme, issu du grec et signifiant hu-
meur noire, dsigne une affection physique, un excs de bile noire obscurcissant le cerveau et
suscitant de sombres penses. Brunetto Latini est um des premiers lemployer ao Moyen Age,
vers 1265.
59
deles escreveu a prudente dedicatria: Escrito por Jack Donne e no pelo doutor
Donne. O livro foi impresso apenas em 1647, dezesseis anos aps sua morte.
3.3
As vises gregas e romanas sobre o suicdio
36
(...) Est la littrature, qui exprime les rves, les aspirations, les craintes, les valeus les plus res-
pectes dans llite intellectuelle. Or cette lite slargit la Renaissance avec la rvolution de
limprimerie. Les oeuvres ne sont plus confines un public de clercs pour les traits em latin, ou
un auditoire de chevaliers pour les chansons de geste et les romans courtois. La culture crite
souvre une nouvelle frange bourgeoise et la petite noblesse, qui fournissent la fois auteurs et
lecteurs. Les livres, beaucoup plus nombreux, refltent les sentiments dune couche plus important
de la population. Surtout, lessor du thtre permet de toucher un public trs large, et de diffuser
auprs des illettrs les idaux de llite.
61
37
Tal gnero ainda persiste em livros recentes como Dicionrio de suicidas ilustres (1999), do
brasileiro J. Toledo, e Adis mundo cruel Los suicidios ms clebres de la Historia (2003), da
espanhola Alicia Misrahi.
62
lettre, alis, seu sobrinho-genro Brutus e sua filha Prcia tambm se mataram38,
quatro anos depois de sua morte.
Cato era um estico, isto , um seguidor do estoicismo do filsofo grego
Zeno de Ccio, que se matou aos 98 anos, depois de um episdio emblemtico:
saindo da sua escola, o ancio caiu e quebrou um dedo; sacudindo a terra de sua
mo, ele recitou um verso de Nobe (Eu vou. Por que me chamas?); e
imediatamente se enforcou. Episdio emblemtico porque o estoicismo propunha
basicamente uma tica da indiferena, diante das prprias paixes ou diante do
destino. A deciso entre viver ou morrer, assim, era posta na conta da liberdade do
homem racional, que bem poderia concluir ser o suicdio a melhor soluo para a
impossibilidade de manter uma linha de conduta pr-estabelecida ou
simplesmente para a necessidade de se conformar ordem das coisas.
A histria de Cato se manteve, ao menos at o sculo XVIII, como um
verdadeiro campo de batalha entre os crticos e os simpatizantes se que esta
palavra se aplica da morte voluntria. Entre estes, freqentemente apenas os
suicdios clssicos eram tolerados com a argumentao de que, sendo pagos, os
antigos no poderiam ser condenados por desobedecerem quinta lei mosaica,
que desconheciam. Os catecismos dos sculos XVII e XVIII, alis, passaram a
especificar que o no matars se aplicava tambm a si mesmo39. Em 1597, por
exemplo, o moralista catlico Franois Le Poulchre reprovou a atitude de Cato
afirmando que a verdadeira fora a de conter em si mesmo, pelo julgamento da
razo, a cupidez, purgando sua alma de paixes reprovveis, enquanto o poeta
Chassignet viu no romano o smbolo do suicdio honroso. Em 1709, Jonathan
Swift, autor de As viagens de Gulliver, escreveu um poema no qual via uma
reunio de notveis da Antiguidade, na qual Cato era louvado veementemente
por Ccero. Quatro anos depois, Joseph Addison escreveu uma pea de grande
sucesso de pblico e de crtica, Cato, na qual o suicdio do estico era descrito
38
Um dos assassinos de Csar, Brutus matou-se ao atirar-se sobre a espada, depois de perder a
Batalha de Filipos, na Macednia. Teria exclamado na ocasio: Virtude, no passas de um no-
me!. Estica como o pai Cato, o Jovem, Prcia matou-se engolindo carvo em brasa quando
soube da morte do marido.
39
O que os obrigava a enquadrar o caso de Sanso, por exemplo, numa categoria excepcional, de-
rivada de Santo Agostinho: a daqueles que haviam recebido um chamado especial e secreto de
Deus. Sanso, como se sabe, matou trs mil pessoas mas tambm morreu ao sacudir as colunas do
Templo de Dagon.
63
como sendo de uma nobreza insupervel. Consta que Alexander Pope chorou ao
assisti-la.
Em Sleepless souls Suicide in early modern England, estudo sobre as
mudanas de mentalidade, da hostilidade tolerncia, em relao morte
voluntria entre 1500 e 1800, os historiadores americanos Michael MacDonald e
Terence R. Murphy, registram detalhadamente a disposio inglesa para com
Cato.
40
David Hume (1711-1776) escreveu dois ensaios simpticos ao suicdio, On suicide (de onde
essa citao foi retirada) e On the natural history of religion. Arrependido diante das paixes le-
vantadas, ele caou como pde as cpias do livro onde eles se encontravam, Five dissertations
(1756). Os ensaios s reapareceram aps a sua morte. Neles, Hume encara o suicdio como um mal
menor, posto que o homem que o pratica no faz mal sociedade, apenas deixa de fazer o bem. Ao
mesmo tempo, ele advoga uma certa reciprocidade: se a sociedade no faz bem ao homem, por que
ele seria culpado de deix-la para trs?
41
Catos example was used to justify modern suicides from time to time. Most sweeping and ex-
treme was Hume, who declared that: In all cases Christians and Heathens are precisely upon the
same footing: Cato e Brutus, Arrea and Portia acted heroically; those who now imitate their exam-
ple ought to receive the same praises from posterity. When the poetaster Eustace Budgell cast
himself into the Thames in 1737, he left behind onde unfinished couplet to justify his deed: What
Cato did and Addison approved,/ Cannot be wrong.
64
3.4
Repetio, doena, contgio, ideologia
42
Interessante lembrar que, em pleno sculo XXI, as Foras Armadas de Israel ainda destroem as
casas dos terroristas suicidas palestinos, desalojando suas famlias. A punio ps-morte renova a
velha prtica medieval.
66
43
Les autorits civiles et religieuses mnent le mme combat contre le suicide, et leurs mesures
dissuassives se compltent: confiscation des biens et damnation ternelle. Dans le deux domaines,
la proibition du suicide accompagne le recul de la libert humaine; lhomme perd le droit essentiel
de disposer de sa propre personnne ao profit de lglise, qui dirige toute son existence et tire sa
force du nombre des fidles, et au profit des seigneurs, dont certains ecclsiastiques, qui ont besoin
de conserver et daccrotre leur main-doeuvre dans un monde sous-peupl o les famines et les
pidmies viennent rgulirement compromettre la mise em valeur des domaines.
67
44
No Evangelho de Lucas, perguntado por um doutor da lei quem o meu prximo? (para poder
am-lo), Jesus responde com a histria do homem assaltado e espancado no caminho de Jerusalm
para Jeric: um sacerdote v o sujeito cado sem deter o passo; um judeu da tribo dos levitas tam-
bm no pra para ajud-lo; um samaritano, membro de outro povo da Judia, isto , um estranho,
um distante quem se detm para cuidar do infortunado. Ata-lhe as feridas, leva-lhe a uma esta-
lagem e paga os servios do hospedeiro.
69
3.5
Hamlet, o inventor do sujeito e da psicanlise
entre 1580 e 1600 e, aumento notvel, 128 de 1600 a 1625. Alguma obras,
sozinhas, somaram cinco casos. As cinco principais causas para o cometimento do
ato eram, pela ordem, amor, remorso, honra, desespero e num dado novo, ligado
ao avano do capitalismo runa econmica. A explicao sociolgica,
aparecida em Robert Burton, comea timidamente a concorrer com a psicolgica,
enquanto a explicao sobrenatural recua, explica Minois (p. 127). O suicida,
portanto, assume uma feio humana, mesmo que o tom dos autores no seja
preponderantemente admirado ou compreensivo com suas motivaes. E sim
porque, de qualquer forma, o assunto se banaliza no jogo social e perde o apelo
moral.
Os nmeros levantados por Paulin so ainda mais assombrosos porque
deles esto excludas as 52 mortes voluntrias ocorridas nas peas do maior de
todos os dramaturgos ingleses do perodo. Em Shakespeare A inveno do
humano, Harold Bloom v em Hamlet, por exemplo, a encarnao da nossa busca
pela identidade e pela autoconscincia. Em Hamlet, a autoconscincia faz
exacerbar a melancolia, custa de todos os demais sentimentos, escreve (2000,
p. 505). Noutra obra, O cnone ocidental, o crtico literrio americano chega a
dizer que Freud (...) entendia que Shakespeare inventara a psicanlise, ao
inventar a psiqu, at onde Freud podia reconhec-la e descrev-la (1995, p. 65).
Freud, por sua vez, foi co-responsvel pelo descentramento do sujeito, tal
como encampado por Stuart Hall em A identidade cultural na ps-modernidade
[1992]. Segundo ele, o sujeito surgido com Hamlet, podemos dizer foi
deslocado por uma srie de rupturas dos discursos do conhecimento moderno: o
marxismo, a lingstica (de Saussure), a microfsica do poder (de Foucault), o
feminismo e a psicanlise (de Freud). Todas contribuem para o quadro anmico
verificado por Durkheim e Lipovetsky (e talvez entre essas rupturas pudssemos
acrescentar o absurdismo proposto por Camus). Para Hall:
45
Em 1659, o jesuta espanhol Antonio Escobar analisa um caso hipottico extremo. Nele, uma
jovem solteira grvida est determinada a se matar para evitar a vergonha da famlia. Poderia ela
provocar o aborto por ser este o nico meio de a desviar do suicdio?, pergunta-se o casusta. Sim,
responde, porque trata-se de escolher o mal menor. Se nos lembrarmos da luta encarniada trava-
da pela Igreja desde as suas origens contra o aborto, mediremos melhor o horror ao suicdio que
pode representar tal soluo (MINOIS, 1995, p. 147). Se, no entanto, a pobre grvida decidisse
mesmo tirar a prpria vida, ai dela. Em 1718, em Chteau-Gontier, na Frana, Marie Jaguelin, gr-
vida de seis meses e desesperada com a desonra, se suicidou por envenenamento. Seu cadver foi
desenterrado, julgado, arrastado. Em praa pblica, seu ventre foi aberto, de modo a que o feto
fosse retirado e enterrado na parte do cemitrio reservada aos no-batizados. Maria foi pendurada
pelos ps e exposta ao pblico. Depois, foi queimada. Por fim, suas cinzas foram jogadas ao vento.
72
46
Esta a data aceita para a verso consagrada de Hamlet, embora existam evidncias de que Sha-
kespeare vinha trabalhando na pea havia muito tempo antes, uma ou duas dcadas talvez.
73
47
Pouco provvel, embora haja uma ligao familiar entre o autor e o personagem. Seu nico filho
chamou-se Hamnet e morreu aos 11 anos, em 1596, pouco antes, portanto, do surgimento da ver-
so final da tragdia protagonizada pelo lendrio prncipe dinamarqus. Sintomaticamente, ou no,
o fantasma do pai de Hamlet foi um dos dois nicos personagens interpretados pelo prprio Sha-
kespeare o outro foi Ado, na comdia Como gostais. James Joyce defendeu, pela voz de seu
alter ego Stephen Dedalus, no captulo nono de Ulisses [1922], passado na biblioteca, que Hamlet
era inspirado em Hamnet Shakespeare: tivesse Hamnet Shakespeare vivido ele teria sido gmeo
do prncipe Hamlet (2005; p. 213). Bloom, em Shakespeare A inveno do humano, no acredi-
ta nisso: Se a dor maior de Shakespeare adveio da morte do filho Hamnet, o luto aparece de tal
modo trasmutado na tristeza de Hamlet que chega a ser irreconhecvel (2000; p. 514). Bloom re-
conhece uma identidade apenas exegtica, no pessoal, na posio que Hamlet ocupa na obra de
Shakespeare: to central quanto Shakespeare na histria da literatura ocidental.
74
48
Bloom concorda com Alvarez: Dificilmente, conseguiremos estabelecer as tendncias religio-
sas de Shakespeare, seja no incio ou no fim da vida. Ao contrrio do pai, que era catlico, Sha-
kespeare manteve-se sempre ambguo nessa questo perigosa, e Hamlet no obra catlica nem
protestante. Com efeito, a pea, a meu ver, no nem crist nem anticrist, pois o ceticismo de
Hamlet no apenas excede uma possvel origem em Montaigne como se torna, no quinto ato, algo
estranho e fascinante, algo que no conseguimos rotular (2000, p. 488-489).
75
lhe roubara o trono)49. Por outro lado, Minois destaca, recorrendo uma vez mais
ao estudo de Paulin50 sobre o suicdio nos palcos ingleses entre 1580 e 1625, que
talvez a grande questo posta em cena por Shakespeare no clebre solilquio de
Hamlet tenha sido no ser ou no ser? e sim o suicdio tem um sentido?
3.6
Bills of mortality: a listagem de mortos na imprensa
49
Goethe, pai do Werther, apreciava particularmente esta fala de Hamlet: Os tempos de hoje es-
to pervertidos. Oh, maldio que eu tenha nascido um dia para restaurar a ordem!
50
Escreve Paulin, apud Minois: Em vez de demonstrar, Shakespare mostra: o suicdio (de Romeu
e Julieta, cuja fatalidade exclui todo julgamento) tem o sentido que lhe d o conjunto de um mo-
vimento dramtico e potico. por isso que Shakespeare no nos prope uma apologia do suic-
dio, mas uma apologia do amor ou, mais precisamente, do amor tal como o viveram Romeu e Juli-
eta. Nesta tica existencial, o suicdio no apenas coroa a vida; ele a prolonga.
76
51
Cruzando suas estatsticas, o socilogo mostrou que no havia nenhuma ligao direta entre o
mau tempo e o nmero de suicdios. Pelo contrrio, a maior parte das pessoas se matava em dias
de bom tempo segundo sua tese, justamente porque eles representam maior necessidade ou pos-
sibilidade de interao social.
77
52
Compare-se aos nmeros divulgados pelos jornais de 1953 e lidos por Chad Varah (cf. p. 72):
trs suicdios por dia para uma populao recenseada em 8.196.807 habitantes em 1951.
78
53
The phenomenal growth of the periodical press and the continuing spread of literacy after 1700
transformed the hermeneutics of suicide, just as they affected almost every other aspect of social
and cultural life. The proliferation of daily and weekly newspapers and monthly reviews created a
new form of communication. Oral tradition and communal rituals played a diminishing role in
popular culture and reading became increasingly important. Pat Rogers rightly remarks that the
rise of the periodical press affected the way in which people constructed the world around them.
It greatly broadened the spatial and social horizons of its readers. It brought them news of events
that occurred all over the country, particularly in London, and it publicized new attitudes and ideas
far more effectively than pamphlets or the pulpits. It helped form political consciousness and ex-
posed provincial readers of every social rank to the values and opinions current in London society.
It also carried news of suicides to a vast audience of readers and enabled them to form their own
judgements about them. The rituals of judgement and burial were eclipsed as the chief means by
which people learned of suicides and assessed their significance.
54
The papers would hardly have gained credibility as vehicles of factual data had they treated the
deaths in the bills as evidence of Gods judgements or satanic influence, as the old broadsides had.
80
55
Cf. p 23 e 56.
56
In a sense, then, the newspapers were a kind of collective popular literature. Their style and con-
tent were the product of many peoples tastes and interests, not just those of their printers. Literary
scholars have recently taught us to interpret works of art in terms of the cultural codes they express
and reflect upon. They have called for a cultural poetics that regards literary texts as collective
productions manifestations of cultural practices and collective beliefs rather than as the unique
expression of their authors individual imaginations. No form of literature lends itself to this
approach more readily than the popular press.
82
57
Realism is as artificial a convention as allegory. To be convincing a narrative must satisfy our
expectations of what a truthful account of an event includes. It must be able to be visualized, accu-
rate in its circunstantial details, and psychologically plausible. The newspaper is a poor medium
for mimetic art. It affords little scope for creating narrative depth, for most newspaper stories are
short, and serial publication makes it difficult to develop character.
83
3.7
Os casos de Fanny Braddock e do casal Smith
58
Some years after Fannys death, John Wood included an account of her death in his Description
of Bath. Wood had been, according to his own testimony, Fannys landlord during her last thirteen
months of her life and knew her well. He supplied information about her background, the inheri-
tance of her fortune, her habits, and her connections that had not been previously published. He
also depicted her as the victim of slanderous rumours charging her with being sexually loose, but
he added that she seemed to exercise a power over the desires of women stronger than her consid-
erable attractviness to men. (...) Oliver Goldsmith, in his biography of Beau Nash, developed an
even more poignant version of Fannys story. He made her into the victim of na unscrupulous gen-
tleman, whose dissipation causes her to waste her fortune.
85
59
Como vimos, ainda hoje, a Folha de S. Paulo recomenda que o suicdio no seja omitido quan-
do for a causa ou a conseqncia da morte de (mais) algum. Como veremos na terceira parte des-
te trabalho, homicdio seguido por suicdio tambm rotineiramente noticiado pelo Globo.
60
Il est certain que le dveloppement du capitalisme est un facteur important de la hausse du taux
de suicides au cours de cette priode. Fond sur le individualisme, le risque, la concurrence, les
paris hasardeux, cest un facteur dinstabilit et dinscurit. Les systmes de solidarit des guildes
et corporations disparaissent et laissent lindividu seul face sa ruine. (...) La presse se fait aussi
lcho des suicides ordinaires pour chagrin damour, problmes conjugaux, drames familiaux,
deuils insupportables, voil, honte, remords, litanie habituelle des misres humaines. Mais il nest
pas impossible que ces cas aient t multiplis par um dbut de relchement des liens familiaux,
les premier signes de la dsintgration moderne de la familie large. (...) Lisolement de lindividu
saccrot au sein mme de la grgarit et de la promiscuit urbaines.
86
61
The notes were irresistable to the pressmen because of the vivid impressions that they conveyed
of the Smiths personalities as well as the heterodox views that they propounded. They made the
simple caricatures of criminal story inadequate, and writers shaped their accounts to enhance their
impact. Richard and Bridget come alive as complex and contraditory human beings in their letters.
They were industrious and honest but embittered against the system and people that had punished
their industry with poverty and degradation. Capable of blowing their childs brains out, they sho-
wed a tender concern for their dog and cat.
87
3.8
O papel didtico das cartas dos suicidas
62
The majority of both the printed and the manuscript notes were written by Londoners, mostly
men and women of the middling classes. The style and content of the dozen manuscript notes clo-
sely resemble those that were printed in the papers. Like the newspaper notes, they employed the
rhetoric of wills, of dying speeches, and of personal letters. Most are in prose, but several were
written in verse. Many notes had an instrumental purpose. They perpetuated the suicides influence
at least a brief space after his death. Like the last wills and testaments that they often imitated, they
settled the disposition of the property, bestowed blessings on their surviors, and even issued in-
structions for the burial of their bodies. (...) Some suicides, knowing that their words would be
read publicly at the coroners inquest, sought to influence the coroner or the jurors.
90
alto nvel literrio. Foi o caso da de uma nobre que se afogou voluntariamente no
mar, em Deal, em 1726. Em sua carta, publicada no London Journal, ela comea
oferecendo perdo a todos aqueles que a enganaram, inclusive um certo Mr. L,
causador de sua desgraa. Ao mesmo tempo, faz questo de esclarecer que, ao
contrrio do que o seu sedutor espalhara pela comunidade, ela no era uma
vagabunda. Apenas fora fraca diante dos repetidos apelos de Mr. L (ele
continuou de joelhos, implorando para perdo-lo; prometendo tudo o que um
homem pode dizer, diz um trecho) enquanto o marido dela estava fora, no mar. E
por a vai, dando a prpria verso dos fatos que resultaram na sua morte.
63
This letter is an extraordinary achievement. The writers oscillation between anger and grief,
righteousness and shame, hate and love, creates an utterly realistic picture of a mind rent by pow-
erful and conflicting emotions. Like a tragic heroines last monologue, this letter captures the ten-
sion between the writers recognition of the part that she played in her own downfall and her per-
sistence in the delusion that ruined her. Contemporary tragedy is only one of the genres that pro-
vided the literary materials for this desperate work of art.
64
Cassorla, em O que suicdio, coleta exemplos de suicdios explicitamente vingativos. Na China
antiga, por exemplo, grupos de homens se suicidavam antes das batalhas, buscando fazer com que
suas almas atacassem furiosamente os inimigos, responsveis ltimos por suas mortes. Em certas
tribos de Gana, se o indivduo se mata culpando outro habitante da aldeia, este tambm obrigado
a se matar. O povo chuvache, da Rssia, costumava se enforcar porta dos seus desafetos. Em
muitos grupos, acreditava-se que a alma do suicida perseguia o ofensor; isso persistiu pelos tempos
e continua no psiquismo profundo das pessoas at hoje (CASSORLA, 2005, P. 38).
91
original que o prprio suicida talvez busque expiar com seu gesto) seja na crena
mstica de exercer um devastador poder prtico sobre os supostos desafetos.
Se partirmos das cartas de despedida examinadas por MacDonald e
Murphy para as cartas de despedida coletadas por Marc Etkind em ...Or not to be,
iremos encontrar a mesma retrica derivada dos testamentos escritos65, a mesma
pretenso de influenciar o julgamento dos sobreviventes e a mesma tentativa de
atrair-lhes a simpatia e a piedade, alm, claro, do mesmo subtexto de vingana.
Eis, por exemplo, um trecho da ltima carta de Adolf Hitler, que, junto
com a mulher Eva Braun, se suicidou a 30 de abril de 1945 , no bunker sob o solo
da Chancelaria, em Berlim, quando as tropas soviticas j se encontravam a
poucas centenas de metros (a Segunda Guerra acabaria na Europa oito dias
depois):
65
Cabe lembrar que, com Rodrigues em Tabu da morte, o testamento era oral e parte naturalmen-
te integrante do rito de morrer. A partir do sculo XII que ele se torna quase um sacramento,
sendo apropriado (e escrito) primeiro por um religioso, depois por um funcionrio pblico.
66
My wife and I choose to die in order to escape the shame of overthrow or capitulation. It is our
wish for our bodies to be cremated immediately on the place where I have performed the greater
part of my daily work during twelve years of service to my people.
67
Pela incinerao dos corpos, Hitler quis evitar que acontecesse com ele e com Eva Braun o
mesmo que acontecera com o ditador Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci: aps serem
executados por partigiani, seus corpos foram exibidos e vilipendiados por uma multido furiosa na
Piazzale Loreto, em Milo.
92
3.9
As cartas brasileiras e as dos resistentes franceses
68
Ces lettres figurent parmi les plus forts tmoignages que lcriture humaine nous at lgus. La
lecture et la relecture des dernires lettres nous font pleurer. De quel droit pouvons-nous lire, pu-
blier et commenter ces ultimes messages de condamns, quand ils sont destins aux parents, aux
poux, aux proches quils aimaient? Du droit et du devoir de fraternit humaine: ces dernires let-
tres sadressent nous parce quelles dissent la vie de ces hommes et de ces femmes, ce qui comp-
te alors face la mort, paroles dhommes sur la vie de lhomme. Ces lettres sadressent nous,
aussi, parce que les condamns ont explicitement voulu que le sens de leur engagement, de leur
vie, de leur mort nous soit connu.
97
69
Mon cher fils, Avant de mourir, je tenvoie mes dernires penses, qui seront pour toi. Rappelle-
toi de ton pre qui ta tant aim et qui va dans quelques instants aller rejoindre celle qui fut ta
mre. Ne fais pas de misre Yvonne qui a tous seus meubles la maison. Encore une fois, mon
cher fils, je tembrasse. Ton pre qui taime jusqu son dernier souffle. Adieu, mon fils, adieu.
Barthlemy.
Ma chre Yvonne, Cette lettre est la dernire. Je vais mourir avec 29 camarades. Je nai plus que
quelques instants vivre. Je garde jusquau bout un bon souvenir de toi. Aie du courage. Jen ai.
Nous avons combattu pour le bonne cause. Elle triomphera. Je tembrasse. Mes meilleurs penses
pour tous les amis. Adieu Yvonne. Adieu. Barthlemy.
98
70
Entretanto, Fortunato foi condenado pela Justia apenas em 1957.
101
71
Segundo a verso on-line do Dicionrio Histrico-Biogrfico Brasileiro, do CPDOC da Funda-
o Getlio Vargas, apesar de toda a controvrsia sobre a autoria da Carta-Testamento, h razes
suficientes para se acreditar na sua autenticidade. Vrias pessoas, entre as quais Osvaldo Aranha,
Amaral Peixoto, Tancredo Neves, o brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos, declararam ter
visto o presidente ler, assinar e guardar cuidadosamente um papel que devia ser a carta. Outro da-
do fora de discusso a participao maior ou menor na elaborao do documento do jornalis-
ta Jos Soares Maciel Filho, o redator favorito dos discursos de Getlio
(http://www2.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5458_54.asp)
72
Vargas refere-se Revoluo de 30, que o conduziu pela primeira vez presidncia da Repbli-
ca, exercida com mo de ferro durante os anos do chamado Estado Novo, de inspirao nazi-
fascista. Mesmo assim, pressionado pelos EUA e pela populao, ele mandou tropas para comba-
ter do lado dos Aliados durante a Segunda Guerra. Quando a vitoriosa Fora Expedicionria Brasi-
leira retornou da Itlia em 1945, porm, instalou-se o paradoxo: como lutar pela democracia l fora
se ela no existia aqui dentro? Embora Vargas tenha comeado a liberalizar o regime, foi deposto
em outubro pelas Foras Armadas. Nas eleies presidenciais, no entanto, ganhou o marechal Eu-
rico Gaspar Dutra, candidato lanado e apoiado por Vargas. No pleito seguinte, em 1950, seria o
prprio Vargas o candidato vencedor, agora legitimado pelas urnas.
102
73
Cf. p. 94 e 96.
103
74
Cf. p. 85.
104
4.1
O que diz O Globo sobre tica
Esta ltima frase no deve ser entendida como um sinnimo para suicdio
de celebridades. A morte voluntria de uma pessoa desconhecida tambm pode ter
uma relevncia histrica que a ultrapasse. Garcia exemplifica com os suicdios em
prises. Segundo ele, necessrio notici-los. Primeiro, porque comum o
homicdio disfarado de suicdio, o que exige investigao das autoridades.
Depois, porque, se confirmado o suicdio, a morte paradoxalmente pode ser uma
informao relevante sobre as condies de vida no sistema prisional brasileiro.
As diferenas de interpretao das prprias normas de redao esto
presentes dentro de cada jornal. Contudo, geralmente elas so aplainadas antes de
o produto chegar s bancas. A despeito do que diz o Manual de redao e estilo
sobre o assunto, a percepo da maioria dos jornalistas do Globo, bem como de
boa parte dos seus leitores, a de que notcias de suicdio simplesmente no so
publicadas. Como este trabalho mostrar, elas so publicadas. Antes, entretanto,
elas passam por tantos filtros, por tantas avaliaes baseadas em critrios
jornalsticos de importncia, que apenas uma amostra delas chegar s pginas.
Esses filtros so criados ou destrudos informalmente, no dia-a-dia dos
fechamentos.
A viso que o diretor de redao Rodolfo Fernandes, 43 anos de idade, 25
de profisso e 16 de O Globo, tem da suposta periculosidade das notcias sobre
suicdio, por exemplo, substancialmente distinta da de Garcia. Em meados de
2005, na inexistncia de qualquer imposio oficial de silncio, ele reafirmou aos
seus subordinados que o jornal noticia suicdios, desde que, naturalmente, eles
preencham os pr-requisitos da relevncia jornalstica, no pelo medo difuso de
um contgio. Em entrevista, sua hiptese para o tabu que molda e era moldado
pelos procedimentos da redao remete religio:
75
Cf. p. 72.
108
76
Cf. p. 102.
77
Cf. p. 31.
109
Para Zuenir:
78
S dois anos depois do suicdio, comearam a aparecer menes homossexualidade de Nava.
112
79
Alm de Rio e So Paulo, hoje tambm h telefones do Disque-Denncia funcionando em Cam-
pinas, Caruaru, Itaperuna e Recife, alm dos estados do Esprito Santo e de Gois.
114
80
Ranking feito pelo Ministrio da Sade entre 2000 e 2004, com base nas estatsticas de mortes
no-naturais (homicdios, mortes por arma de fogo sem causa determinada, suicdios e acidentes
de trnsito), mostra que a violncia paulistana a maior do pas e quase o dobro da carioca, segun-
da colocada: alcana um ndice de 11,53, contra 6,75. Entretanto, o primeiro lugar no ranking iso-
lado dos assassinatos de Maca (RJ), com 108,15 homicdios por 100 mil habitantes.
115
bem mais complexa do que a mera emissor-receptor. Ou, como diz Miquel
Rodrigo Alsina:
4.2
A cobertura do Globo em 2004
81
La teora de la construccin del temario (agenda-setting) apunta claramente que es muy posible
que los mass media no tengan el poder de transmitirle a la gente cmo deben pensar o actuar, pelo
lo que s consiguen es imponer al pblico lo que han de pensar. Por ello, en principio, se puede
afirmar que la efectividad del discurso periodstico informativo no est en la persuasin (hacer
creer) o en la manipulacin (hacer hacer), sino sencillamente en el hacer saber, en su propio hacer
comunicativo.
116
maior do que a sua prpria vida, o Brasil, o povo, Getlio Vargas de certa forma
se inocentou do pecado de ter infringido um tabu. Exatamente como os mrtires
da f ou da coletividade estudados pelo socilogo francs.
A linguagem utilizada pelo editorial de O Globo do dia 24 de agosto de
2004, 50 aniversrio da morte do presidente, admite isso quando diz:
82
O editorial se refere ao golpe militar de 31 de maro de 1964.
117
83
Tipicamente, o governo boliviano rapidamente negou que a ao que matou dois policiais a-
lm do mineiro, identificado como Eustquio Picachuri, de 47 anos e feriu outros dez configu-
rasse um ataque terrorista. Durante uma coletiva de imprensa especialmente convocada para tran-
qilizar a populao, o ento presidente Carlos Mesa chegou a qualificar Picachuri como uma
pessoa desesperado com um conjunto de peties de carter estritamente pessoal.
84
Cf. declarao p. 115.
85
Cf. nota p. 120.
120
86
Em tempo: duas semanas depois de Kurt Cobain cometer suicdio, em 1994, O Globo enviou a
Seattle o seu correspondente em Washington, Jos Meirelles Passos, com a misso de estabelecer
uma geografia sentimental do lder da banda Nirvana. O resultado foi publicado em duas pginas
inteiras do Segundo Caderno de 22 de abril daquele ano.
121
4.2.1
Uma jovem palestina em Jerusalm
4.2.2
O dia mais violento no Iraque
(...)
Mais de dois milhes de fiis se reuniram em Bagd e Karbala
para os festejos, os primeiros em dcadas, pois eram proibidos
por Saddam. Na capital, trs terroristas suicidas mataram 70
pessoas perto da Mesquita de Kadhimiya. Um quarto terrorista
foi preso antes de detonar os explosivos que levava consigo.
ousadamente nova tanto nos termos do artigo da New Scientist quanto nos da
notcia do Globo, a proposio inteiramente compatvel com o que Durkheim
escreveu em O suicdio, mais de um sculo antes.
4.2.3
O pacto suicida dos jovens japoneses
(...)
Alm de a polcia no encontrar indcios de violncia, os jovens
deixaram mensagens relatando a inteno de se matar. Na
camionete estava o testamento de uma das vtimas pedindo
desculpas pelo suicdio. Uma outra havia enviado na segunda-
feira um e-mail a um amigo avisando que ia se matar.
4.2.4
Um executivo italiano da Parmalat
4.2.5
O fim da carreira do Dr. Morte
sobretudo mulheres idosas que viviam sozinhas, com doses letais de herona,
desde 1977.
Casado e pai de quatro filhos, ele nunca admitiu os crimes, para os quais,
como si acontecer, havia tentativas divergentes de explicao: para uns, o
mdico queria brincar de Deus; para outros, ele ficara traumatizado com a morte
da me, que tinha cncer e tomava herona para aliviar a dor. Com este currculo,
no causa espanto que o provvel suicdio de Shipman ficasse em segundo plano.
(...)
(...)
4.2.6
A danarina brasileira na Espanha
87
Num toque sinistro adicional, o doutor clinicava em Hyde, subrbio de Manchester.
133
4.2.7
O assassino da jornalista goiana em Atlanta
88
When I am laid in earth/ May my wrongs create/ No trouble in thy breast./ Remember me, re-
member me/ But, ah!, forget my fate.
135
(...)
89
Cf. p. 100.
136
4.2.8
O desempregado na Praa dos Trs Poderes
Antes disso surgem outras peas da histria: Souza era mineiro, mas
morava no Esprito Santo; carregava um cartaz no qual se dirigia a Lula (Senhor
presidente, vendi meu barraco por R$ 800 para falar com voc. Roubaram meus
documentos, tiraram meu direito de cidadania e esto armando um monte de
problemas para mim. Estou perdendo minha famlia e pedindo meus direitos de
cidado.); sua internao era estimada em 30 dias e iria requerer tambm
acompanhamento psiquitrico.
O segundo captulo no Globo do drama marcaria uma dramtica reverso
de expectativas: a morte de Souza reforando a posteriori a deciso de se ter
noticiado a ao. O desempregado que se imolou na frente do Palcio do Planalto
est interferindo na vida do pas, diz Agostinho Vieira, citando-o como exemplo
de ao que diz respeito a outras pessoas alm do suicida e de seus familiares90.
No dia 19 de abril, numa primeira pgina quase totalmente tomada pela
alegria do campeonato estadual do Flamengo (conseguido numa vitria de 3 a 1
sobre o Vasco) e pela manchete PT cobra do governo ofensiva na segurana, o
ttulo de uma chamada em duas medidas informava: Morre o desempregado que
ateou fogo ao corpo. O pequeno texto rememorava as circunstncias da ao de
Souza e noticiava a morte por falncia mltipla, na vspera, alm de apresentar
um dado at ento indito: ele deixava uma filha de 8 anos.
O resto da notcia estava na pgina quatro da editoria O Pas, em quatro
medidas, ao lado da coluna poltica de Helena Chagas e dos resultados das loterias
federais, embaixo das matrias Time inclui Lula na lista das cem pessoas mais
influentes do mundo (subttulo Presidente o nico latino-americano citado
entre lderes mundiais) e PT decide jogar pesado nas alianas (subttulo Em
Fortaleza, partido decide apoiar PCdoB contra vontade do diretrio nacional).
O ttulo desta reportagem praticamente repetia o da chamada na primeira
pgina: Morre homem que ateou fogo ao corpo. O subttulo rememorava o seu
gesto: Jos Antnio de Souza queria ver Lula para protestar contra o
desemprego. O texto, de de la Pea e Rodrigo Rangel, trazia os seguintes lead e
sublead:
90
Cf. p. 113.
139
vendera o barraco por R$ 1.000, mas deixara R$ 200 com a mulher. Conta, ainda,
como ela conseguiu viajar a Braslia, para acompanhar os ltimos dias de vida do
marido com uma passagem de avio oferecida pela Prefeitura de Cariacica.
E, por fim, Orletti descreve uma tentativa anterior de suicdio: Camila
(sua filha de 8 anos) ficou com o av. Duas semanas antes da viagem, ela evitara
uma tragdia. Jos Antnio subiu numa rvore para se enforcar. Desistiu ao ouvir
os apelos desesperados da menina. Emerge das informaes a figura de um
homem desesperado e humilhado (Antnio falava que era muita humilhao
vender caranguejo, conta Maria das Dores), o que, subliminarmente, alm do
dado anmico, remete o suicdio a uma perda temporria ou definitiva da razo.
4.2.9
O adolescente na roleta russa em Meriti
4.2.10
O assassino dos prprios filhos
91
Em agosto de 2003, um segundo caso assemelhado resultaria no suicdio do empresrio Antnio
Schempri. A diferena que ele no matou a prpria famlia e sim o scio, a esposa deste e o filho
do casal. O assassino suicidou-se duas horas depois, na sua casa do Recreio.
144
baleado ao tentar invadir a Rocinha com seu bando, a de que o corpo de uma
vtima de seqestro havia sido encontrado e a de que o Conselho Nacional de
Peritos Judiciais do Brasil pretendia tomar medidas contra o membro responsvel
pela filiao de outro traficante, alm de dois comunicados pagos. Desta vez, sob
o ttulo Comerciante que teria matado filhos havia perdido a guarda das
crianas, o texto de Dimmi Amora concentrava-se, depois da obrigatria
rememorao do fato original, na perfil psicolgico de Morimoto, um pouco
mais fechado, desde que perdera a guarda dos filhos para a ex-mulher. A
delegada Cludia Faissal foi ouvida mais uma vez, atrs de novos detalhes das
investigaes, entre eles os de que as crianas provavelmente foram dopadas antes
do fuzilamento, para no sofrer.
So ouvidos, ainda, dois psiquiatras, Vera Lengruber, presidente da
Associao Psiquitrica do Estado do Rio de Janeiro, e Fbio Barbirato. Ela
afirma que o ato de Rui costuma ser classificado como suicdio coletivo. No h
maiores detalhes sobre o que seria isso. Ele, a partir de casos semelhantes nos
EUA, opina: um quadro to grave que a pessoa acha que est fazendo um bem
para os parentes para evitar que eles tenham um sofrimento to grande quanto o
que ela est sentido. A pessoa deprimida perde a noo.
No dia 20 de agosto, a terceira reportagem sobre o caso Morimoto opera
um malabarismo editorial. Tendo uma chamada na primeira pgina e sendo
publicada na pgina 13, a de abertura da editoria Rio, com direito ao destaque de
um infogrfico e encimando uma notcia sobre as idas e vindas do desabamento
do edifcio Palace II, ela desvia completamente o assunto. Deixa-se de tratar de
um duplo homicdio seguido de suicdio e passa-se a abordar os riscos de se
manter uma arma em casa e as benesses da Campanha do Desarmamento, que O
Globo apoiou. A campanha pagava entre R$ 100 e R$ 300 por arma entregue.
Tudo porque os reprteres Amora e Maria Elisa Alves conseguiram apurar
que, dias antes do crime, Morimoto entregou dez armas na sede do movimento
Viva Rio. Estas, porm, no eram todas as suas armas, da o ttulo de gosto
duvidoso: S faltou uma arma. O subttulo esclarecia: Pai que matou os dois
filhos e se suicidou havia entregado dez revlveres e pistolas, mas manteve um
38.
146
92
Dois outros revlveres calibre 38, um revlver calibre 22, uma pistola calibre 380, uma carabina
calibre 44 e cinco garruchas de calibres variveis.
147
93
sintomtico que o suicdio seja associado doena, ou seja, a algo fora da ordem, da normali-
dade, alheio a uma natureza humana. Por vias transversas, essa separao remete antiga culpabi-
lizao do Diabo. Alm disso, introduz a idia do Absurdo, na acepo camusiana.
148
4.2.11
O famoso estilista no Arpoador
Todo o episdio leva a uma reflexo curiosa. Se, num primeiro momento,
por alguma razo, tivesse-se optado por ocultar do leitor o suicdio de Amaury
Veras, o que haveria para noticiar a partir do momento em que a polcia
contemplasse cada vez mais fortemente a hiptese do homicdio? Olha, aquilo
que a gente no disse que era no aquilo mesmo no?!, ironiza Rodolfo
Fernandes, diretor de redao do Globo. A desgraa da mentira que, ao contar a
primeira, voc passa a vida inteira contando mentira para justificar a primeira que
contou, declarou o presidente Luiz Incio Lula Silva em entrevista, a propsito
do escndalo poltico envolvendo o PT e o repasse de dinheiro de caixa dois a
partidos aliados. O mesmo verdade se se trocar mentira por omisso.
4.3
Convices pessoais e snteses totalizantes
sociais. Arlindo Machado critica este tipo de abordagem, que chama de snteses
totalizantes:
O suicdio pode, sim, ser uma notcia espetacular, naquilo que uma notcia
tem de igualmente essencial: o inesperado, a ruptura de uma ordem natural das
coisas. Neste sentido, enquadra-se na leitura que Roland Barthes fez dos fait
divers (fato diverso, isto , desastres, acidentes, mortes etc.). Para o semilogo
francs, eles seriam a parcela do noticirio que escapa politizao94: so eventos
que, ao menos na aparncia, se fecham em si e para si, se esgotam em seus
prprios enunciados, no tm contexto exterior so uma informao calada. O
interesse por eles surge da lgica relacional de seus termos: Estilista
encontrado morto em seu apartamento atrai a ateno do leitor pelos termos
inesperados. No processo, o fait divers se reaproxima do romance, qual os relatos
sobre suicdios publicados nos jornais ingleses do sculo XVIII. Carlos Henrique
de Escobar ao analisar as relaes entre comunicao e fait divers a partir de
Barthes prope, no caso das notcias policiais, uma reflexo vlida tambm para o
suicdio:
94
Tal definio remete que Barthes faz dos mitos: O mito uma fbula despolitizada (Mitolo-
gias; p. 163). No entanto, uma fala despolitizada que pode ser falada politicamente.
159
setores da sociedade. Vem da o mal-estar que cerca o tema. Ele se mostra, por
exemplo, quando Jean-Claude Bernardet vai assistir a um filme de Abbas
Kiarostami e escreve, a propsito das tticas de envolvimento do cineasta
iraniano: Se eu tivesse entrado no cinema sabendo de antemo que o projeto do
senhor Badii era o suicdio, no teria alcanado uma relao to intensa e
perturbadora com O gosto de cereja (BERNARDET, 2004, p. 54). Por qu?
Porque a bem-sucedida humanizao do personagem estabelece entre ele e o
espectador uma slida identificao secundria, para alm de qualquer pr-
conceito em relao ao seu gesto.
O que incomoda em Kiarostami o seu realismo. No o realismo reflexo
de que fala Ortiz em A moderna tradio brasileira, aquele que refora as
demandas subjacentes s exigncias do espectador pois cola realidade j
preexistente. a falta de distncia que lhe retira o carter reflexivo (2001, p.
173). Este o realismo da indstria cultural e do jornal, o que procura consagrar
uma nica verso da realidade, eliminando qualquer tipo de reflexo sobre ela
(idem). J o realismo de Kiarostami e o de Eisenstein, mencionado por Ortiz a
partir de Bazin como o do chamado neo-realismo italiano, cujos filmes:
Dentro de cada um dos textos sobre casos de suicdio que consegue atingir
as pginas esta mesma tenso entre a espetaculosidade (sua atrao para o
jornalista-leitor) e a subverso existencial da notcia (sua repulsa) mantida. Eles
so mantidos longe da reflexo, fechados em si e para si, numa situao
cmoda. So inmeros os recursos para desviar o assunto, dentro da estratgia do
fait divers: aqui, o homem-bomba que mal mencionado; ali, o pai que
colecionava armas; acol, a suspeita persistente que a morte do estilista foi por
homicdio (pouco importa, aqui, se esta hiptese afinal vier a ser comprovada).
Sendo tributria da imprensa americana, inclusive na adoo da tcnica do
lead, virtualmente inexistente na Europa, no surpreendente que nos EUA se
verifique mais ou menos a mesma queda pela ambigidade, conforme foi visto no
161
relato de Tad Friend sobre as pessoas que saltaram da Golden Gate. Parece lgico,
no? Se noticiar suicdios os multiplica, calar sobre eles uma forma de reduzi-
los. Ser? Num artigo publicado no site Poynteronline (cujo slogan tudo o que
voc precisa saber para ser um jornalista melhor), a radialista americana Cindi E.
Deutschman-Ruiz, conquanto recaia em alguns clichs, discorda disso. Ela chama
a ateno para a impressionante estatstica de que 30 mil pessoas se matam
anualmente nos EUA e que outras 500 mil do entrada em salas de emergncia
depois de uma tentativa de suicdio95.
95
Estes dados no devem ser nem menosprezados nem superestimados. Embora em nmeros abso-
lutos os EUA ocupem o quarto lugar no ranking mundial de suicdios (atrs de China, ndia e Rs-
sia), eles caem para 38 lugar quando se considera a taxa por 100 mil habitantes. Segundo esta, os
pases com mais suicidas so, pela ordem, Litunia (com 42 por 100 mil), Estnia, Rssia, Letnia,
Hungria, Sri Lanka, Kazaquisto, Bielo-Rssia, Eslovnia e Finlndia. Os nmeros so da Organi-
zao Mundial de Sade.
96
Does media coverage reflect these realities? Generally not. Instead, coverage tends to focus on a
rash of suicides at a university; a study that finds evidence of family tendencies toward suicide; or
the proeminent, sucessful doctors, actors, writers, ou business people who kill themselves. And in
some cases, we create written or unwritten rules not to cover suicide out of fear of inspiring copy-
cats. Copycat suicides are a real problem, but suicide experts generally agree that its not a ques-
tion of whether media should cover suicide, but how we do so. Gauging from the news, it would
be easy to conclude that suicide is rare, rather than a widespread and ongoing public health prob-
lem. As journalists, were fond of criticizing ourselves for over-covering homicide. Why do we
fail to address our under-coverage of suicide?
162
sade mental falcia que j desmentida por Durkheim mais de um sculo antes.
Seja como for, ela no se furta a criar as prprias regras de como cobrir suicdios.
A primeira regra, o suicdio nunca o resultado de um nico incidente,
busca aprofundar a compreenso do ato, normalmente associado a uma grave
depresso o que condiz com o que escreveu o jornalista Ian Thomson, bigrafo
de Primo Levi. A segunda, detalhes do mtodo ou da locao usada pelo suicida
podem levar a suicdios por imitao, sugere que o reprter seja cautelosamente
genrico o que est em acordo com os procedimentos prescritos no Manual de
redao e estilo do Globo. A terceira, vital usar estatsticas e informao sobre
sade mental muito cuidadosamente , visa a no-associao automtica entre o
suicdio e uma patologia o que objetiva as preocupaes da prpria Cindi. A
quarta, a cobertura de suicdio uma oportunidade de fornecer ao pblico
informaes e recursos que podem salvar vidas, fortalece a mdia prestadora de
servios o que ecoa a experincia de Otavio Frias Filho no CVV.
Como altamente improvvel que Cindi, Thomson, Luiz Garcia e Frias
Filho tenham algum dia se encontrado (e nem mesmo lido uns aos outros) para
deliberar e chegar basicamente s mesmas concluses quanto ao melhor modo de
abordar o tema, razovel supor que suas opinies e aes reflitam, se no o
bom senso mencionado por Rodolfo Fernandes, um senso comum. Ou, para
usar as palavras de Alexis de Tocqueville sobre os americanos, uma religio
menos como doutrina revelada do que como opinio comum.
Todavia, esta opinio no pode ser entendida como comum apenas aos
profissionais das redaes, posto que isto transformaria a comunicao num
circuito fechado e de mo nica. Este senso deve ser comum entre estes jornalistas
(e seus colegas) e os leitores (das sociedades crists ocidentais a quem os
primeiros se dirigem e dos quais saem os prprios jornalistas). Uns no existem,
ou, como quer Alsina, no sabem sem os outros. Conferir imprensa o poder
absoluto sobre o processo de comunicao ignorar as complexas redes de poder
e contrapoder dentro de cada sociedade. Por conta tanto de pesquisas qualitativas
dirias quanto da facilidade de interao imediata com os jornais pelo correio
eletrnico, ou ainda da feroz competio entre empresas que sobrevivem do gosto
do leitor, nunca as redaes ficaram to expostas e sensveis ao mundo fora delas
quanto hoje.
163
97
Refere-se a Hobbes, no Leviat, que usa como epgrafe de seu artigo: Quando imaginamos as
mesmas coisas de maneira diferente, muito dificilmente deixamos de nome-las de modo diverso.
Apesar de ser a mesma a natureza do que imaginamos, a diversidade de nossa percepo do objeto,
devido a diferentes constituies do corpo e devido a preconceitos de opinio, confere a cada coisa
o cunho de nossas diversas paixes. E, por esse motivo, um homem deve ter cautela com as pala-
vras quando raciocina; isto porque, alm da significao do que imaginamos como sua natureza, as
palavras tambm contm a significao da natureza, disposio e interesse daquele que fala.
164
Nisso, ele est de plano acordo com o tio, cuja uso da anlise estatstica
para provar suas teorias foi considerado notvel. Como frisa Matilda White Riley,
o interesse de Durkheim pelos aspectos sociais do suicdio e no pelas razes
individuais pelas quais algum comete e outro algum no comete suicdio
consistente com sua viso de socilogo, no de psiclogo ao mesmo tempo em
que no subestima o indviduo em seu papel na sociedade. Porque o
desequilbrio social que se manifesta de modo estatstico: O suicdio anmico
tende a crescer conforme as normas do grupo e os controles sociais entram em
colapso e o suicdio egosta tende a crescer conforme as normas prescrevam um
excessivo afastamento do indivduo do grupo (RILEY, 1963, p. 413).
A presente tentativa de se tentar entender como jornalistas fazem para lidar
com a idia do suicdio alheio como fato social, em seu dia-a-dia, nasceu da
dvida que, variadas vezes, acometeu-me dentro das redaes do Jornal do Brasil
e do Globo: qual a razo para sermos to lacnicos sobre as mortes voluntrias,
para sepult-las sob eufemismos como as causas da morte no foram divulgadas
ou acidente com arma de fogo? Isso mera inveno nossa ou reflete, como ns
temos a pretenso de que as pginas reflitam, algo que nos suplanta?
Ao cabo da pesquisa, entendi que o silncio era menor do que eu supunha
e, mais at que ele, me incomodava o tom das palavras, a desqualificao do
suicida como fantico religioso, criminoso ou louco. Tudo isso, como escreveu
Jos Carlos Rodrigues, no se explica apenas porque o suicdio seja um desafio
ao poder, mas tambm porque todo verdadeiro desafio ao poder seja de natureza
suicidria (p. 282) Admito que, volta e meia, minhas palavras em relao queles
98
Ce sont des troubles organiques qui relvent de la psychiatrie. Mais, em mme temps, tout ma-
lade mental est un homme qui nest plus adapt son milieu. Une maladie mentale est um lment
de dsquilibre social. (...) Cest um fait social, qui doit sexpliquer par des causes sociales.
165
Livros:
AZERRAD, M. Comes as you are: the story of Nirvana. Londres: Virgin Books,
1993.
AMORA, D. Comerciante que teria matado filhos havia perdido a guarda das
crianas. In: O Globo, Rio de Janeiro, 19/8/2004, p. 15.
DIA mais sangrento no Iraque, O. In: O Globo, Rio de Janeiro, 3/3/2004, p. 33.
EVANS, R. Suicide around the world every 40 seconds. In: Reuters, Londres,
8/9/2004.
FRIEND, T. Jumpers The fatal grandeur of the Golden Gate Bridge. In: The
New Yorker, Nova York, 13 de outubro de 2003, p. 48-59.
GOULART, G. Polcia far nova percia na casa de estilista. In: O Globo, Rio
de Janeiro, 4/9/2004, p. 18.
NOVAES, C.I. Uma grife irreverente. In: O Globo, Rio de Janeiro, 3/9/2004, p.
17.
ORLETTI, C. Ele dizia que se sentia humilhado. In: O Globo, Rio de Janeiro,
20/4/2004, p. 12.
PACTO suicida entre 9 jovens no Japo. In: O Globo, Rio de Janeiro, 13/10/2004,
p. 24.
POLCIA apura se jovem morto fez roleta-russa. In: O Globo, Rio de Janeiro,
1/5/2004, p. 25.
Artigos na internet:
Entrevistas ao autor: