Suicídio Artigo

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Arthur Henrique Motta Dapieve

Suicdio por contgio A maneira pela


qual a imprensa trata a morte voluntria

Dissertao de Mestrado

Dissertao apresentada como requisito parcial para


obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-
graduao em Comunicao Social do Departamento de
Comunicao da PUC-Rio.

Orientadora: Profa. Angeluccia Bernardes Habert

Rio de Janeiro
Maro de 2006
Livros Grtis
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Arthur Henrique Motta Dapieve

Suicdio por contgio A maneira pela


qual a imprensa trata a morte voluntria

Dissertao apresentada como requisito parcial para


obteno do grau de Mestre pelo Programa de Ps-
Graduao em Comunicao Social do Departamento de
Comunicao Social do Centro de Cincias Sociais da
PUC-Rio. Aprovada pela Comisso Examinadora abaixo
assinada.

Profa. Dra. Angeluccia Bernardes Habert


Departamento de Comunicao Social PUC-Rio

Prof. Dr. Miguel Serpa Pereira


Departamento de Comunicao Social PUC-Rio

Prof. Dr. Renato Jos Pinto Ortiz


Unicamp

Prof. Joo Pontes Nogueira


Vice-Decano de Ps-Graduao do CCS

Rio de Janeiro, 6 de maro de 2006


Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial
do trabalho sem autorizao da universidade, do autor e da
orientadora.

Arthur Henrique Motta Dapieve

Graduou-se em Comunicao Social, habilitao Jornalismo, na PUC-


Rio, em 1985. professor do Departamento de Comunicao Social
da mesma universidade, na disciplina Tcnicas de Redao em
Jornalismo Grfico. Como jornalista, trabalhou nas funes de
reprter e subeditor nos cadernos Idias e B, do Jornal do Brasil
(1986-1991). Na de subeditor, na revista Veja Rio (1991-1992). Como
subeditor e editor, nas editorias RioShow, Segundo Caderno, Opinio,
O Pas e O Globo 2000, no jornal O Globo (1992-2000). Desde 1993
mantm uma coluna semanal no Segundo Caderno. Desde 2000
mantm outra coluna semanal, no site NoMnimo. Tem seis livros
publicados: BRock - O rock brasileiro dos anos 80 (Editora 34, 1995),
Midos metafsicos (crnicas de jornal, Topbooks, 1999), Guia de
rock em CD (com Luiz Henrique Romaholli, Jorge Zahar Editor,
2000), Renato Russo - O trovador solitrio (Relume Dumar, 2000),
Manual do man - Guia de auto-ajuda para o homem que vacila
(humor, com Gustavo Poli e Srgio Rodrigues, Planeta, 2003) e De
cada amor tu herdars s o cinismo (romance, Objetiva, 2004). Desde
2003 apresentador do canal de TV por assinatura GNT.

Ficha Catalogrfica

Dapieve, Arthur Henrique Motta

Suicdio por contgio : a maneira pela qual a imprensa


trata a morte voluntria / Arthur Henrique Motta Dapieve ; orien-
tadora: Angeluccia Bernardes Habert . Rio de Janeiro : PUC,
Departamento de Comunicao Social, 2006.

172 f. ; 30 cm

Dissertao (mestrado) Pontifcia Universidade Cat-


lica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicao Social

Inclui referncias bibliogrficas.

1. Comunicao social Teses. 2. Jornalismo. 3. Sui-


cdio. 4. Discurso. 5. Egoismo. 6. Altruismo. 7. Anomia. I. Habert,
Angeluccia Bernardes. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio
de Janeiro. Departamento de Comunicao Social. III. Ttulo.

CDD: 302.23
Agradecimentos

A Angeluccia Bernardes Habert, pelo incentivo e pelas luzes.

A Jos Carlos Rodrigues, pelas sugestes e pelos livros.

A Jos Thomaz Brum, pelo texto esclarecedor.

A Mnya Dias Millen e a Cristina Zarur, pela ajuda na pesquisa.

Vice-Reitoria para Assuntos Acadmicos e ao Departamento de Comunicao


Social da PUC-Rio, pela bolsa.
Resumo

Dapieve, Arthur Henrique Motta; Habert, Angeluccia Bernardes


(Orientadora). Suicdio por contgio A maneira pela qual a imprensa
trata a morte voluntria. Rio de Janeiro, 2006. 172p. Dissertao de
Mestrado - Departamento de Comunicao Social, Pontifcia Universidade
Catlica do Rio de Janeiro.

Suicdio por contgio: a maneira pela qual a imprensa fala da morte


voluntria. Partindo da experincia profissional do jornalista, o trabalho relaciona
as formulaes tericas de Durkheim com o tipo de tratamento dado pela
imprensa contempornea s pessoas que tiram a prpria vida. Fez-se uma leitura
das reportagens sobre suicdio publicadas pelo jornal O Globo luz dos conceitos
de egosmo, altrusmo e anomia. Buscou-se, ainda, estabelecer como a linguagem
utilizada se relaciona com comportamentos sociais anteriores e externos criao
dos prprios textos.

Palavras-chave
Jornalismo; suicdio; discurso; egosmo; altrusmo; anomia.
Abstract

Dapieve, Arthur Henrique Motta; Habert, Angeluccia Bernardes


(Advisor). Suicide by contagion: the way in which the press talks about
voluntary. Rio de Janeiro, 2006. 172p. Dissertao de Mestrado -
Departamento de Comunicao Social, Pontifcia Universidade Catlica
do Rio de Janeiro.

Suicide by contagion: the way in which the press talks about voluntary
death. Coming from the professional experience as journalist, the work relates
Durkheims theory with the kind of treatment given by the contemporary press to
the people who kill themselves. The features about the subject published in O
Globo newspaper in 2004 has been re-read, bearing in mind the concepts of
egoism, altruism and anomy. It has been tried to establish as well how the
language used relates itself with the social behaviours that are previous and
external to the creation of the own texts.

Keywords
Journalism; suicide; discourse; egoism; altruism; anomy.
Sumrio

Apresentao 9

Dois episdios 9

1 . Introduo 12
1.1. O no-lugar do suicdio 15
1.2. Observao participante 17
1.3. O que diz o jornal? 18

2 . Suicdio e sociedade 21
2.1. O suicdio do tipo egosta 23
2.2. O suicdio do tipo altrusta 26
2.3. O suicdio do tipo anmico 30
2.4. Anomia e ps-modernidade 33
2.5. A reabilitao da comunidade 36
2.6. Dois casos clssicos: Pavese e Levi 41
2.7. O nico problema filosfico srio 45

3 . Suicdio e imprensa 50
3.1. A Golden Gate 53
3.2. Gutenberg quebra o monoplio dos monges copistas 56
3.3. As vises gregas e romanas sobre o suicdio 60
3.4. Repetio, doena, contgio, ideologia 65
3.5. Hamlet, o inventor do sujeito e da psicanlise 69
3.6. Bills of mortality: a listagem de mortos na imprensa 75
3.7. Os casos de Fanny Braddock e do casal Smith 83
3.8. O papel didtico das cartas dos suicidas 88
3.9. As cartas brasileiras e as dos resistentes franceses 92

4 . Como a imprensa brasileira trata o suicdio 99


4.1. O que diz O Globo sobre tica 105
4.2. A cobertura do Globo em 2004 115
4.2.1. Uma jovem palestina em Jerusalm 122
4.2.2. O dia mais violento no Iraque 123
4.2.3. O pacto suicida dos jovens japoneses 126
4.2.4. Um executivo italiano da Parmalat 128
4.2.5. O fim da carreira do Dr. Morte 130
4.2.6. A danarina brasileira na Espanha 132
4.2.7. O assassino da jornalista goiana em Atlanta 134
4.2.8. O desempregado na Praa dos Trs Poderes 136
4.2.9. O adolescente na roleta russa em Meriti 141
4.2.10. O assassino dos prprios filhos 142
4.2.11. O famoso estilista no Arpoador 148
4.3. Convices pessoais e snteses totalizantes 153

5 . Concluso 157

Referncias bibliogrficas 166


E tropeou no cu como se fosse um bbado
E flutuou no ar como se fosse um pssaro
E se acabou no cho feito um pacote flcido
Agonizou no meio do passeio pblico

Morreu na contramo atrapalhando o trfego

Chico Buarque
(Construo, 1971)
Apresentao

Dois episdios

Hunter S. Thompson foi o inventor do chamado jornalismo gonzo, uma


radicalizao do novo jornalismo de um Gay Talese ou de um Tom Wolfe. Em
Thompson, diferentemente do que ocorria em seus colegas de profisso, a
literatura no era apenas mais um recurso para se contar uma histria real: era o
prprio reprter que se transformava em principal personagem1 de seus textos,
fossem suas aventuras vividas, imaginadas ou, no caso de Thompson e sua
proclamada voracidade qumica, alucinadas.
Na introduo a uma coletnea de textos, A grande caada aos tubares
Histrias estranhas de um tempo estranho (1977, editado no Brasil, pas onde
viveu no comeo dos anos 60, apenas no final de 2004), Thompson escreveu:

Sinto-me como se pudesse muito bem estar aqui talhando as


palavras da minha prpria lpide... e, quando eu acabar, a nica
sada apropriada ser de cima desse maldito terrao direto para
dentro da fonte, 28 andares abaixo e pelo menos 180 metros de
queda livre sobre a Quinta Avenida. Ningum entenderia tal
atitude. Nem mesmo eu... (...) Eu sinceramente adoraria dar este
salto. Se no o der, sempre vou considerar isso um erro e uma
oportunidade perdida. (THOMPSON, 2004, p. 9).

Cumprindo parcialmente a prpria profecia, Thompson suicidou-se com


um tiro na boca, aos 67 anos, no domingo 20 de fevereiro de 2005, em sua
fazenda, a Owl Farm, em Woody Creek, no estado americano do Colorado. Sua
morte foi pranteada em todo o mundo, em especial pelos redatores de blogs, seus
filhos espirituais na busca da fuso de dirio ntimo com material
jornalisticamente relevante. Mesmo rgos de imprensa consagrados, porm,

1
Em Literatura i periodisme (1993), o professor catalo Llus-Albert Chilln assim descreve a
ttica gonzo: Em vez de obter a informao desde uma prudente distncia profissional, Thompson
se inseria nas situaes que tratava, at o ponto de se fazer co-participante. O fato de viv-las dire-
tamente lhe permitia compreend-las como no poderia fazer um reprter convencional (p. 129).
10

deram-lhe espao proporcional importncia e influncia. A revista Rolling


Stone, da qual foi ativo colaborador, por exemplo, dedicou-lhe a capa e a maior
parte da edio de 24 de maro. Entre os articulistas convidados estava, por
exemplo, o ator Jack Nicholson.
No Brasil, por questes de fuso horrio, a notcia chegou somente no dia
seguinte, 21 de fevereiro. A editora Mnya Millen, do Prosa & Verso, caderno
de literatura do jornal O Globo, avisou redatora responsvel pelos obiturios
daquele dia, Liane Gonalves, sobre a morte de Thompson nos EUA. Foi
suicdio, ?, disse esta, em sua primeira reao, Preciso ver como publicamos,
ento... Afinal a informao foi publicada na edio de 22 de fevereiro.
No primeiro clich, em trs colunas e uma pequena foto de uma coluna no
meio da pgina 19, quase toda tomada por anncios fnebres. O destaque do
obiturio era a morte da atriz americana Sandra Dee, aos 62 anos, por falncia
renal, num texto em trs colunas, com uma foto de duas. No segundo clich da
mesma pgina, com a notcia de que o escritor cubano Cabrera Infante morrera em
Londres, aos 75 anos, de causa no divulgada, Sandra foi diminuda para duas
colunas (foto em uma) no meio da pgina e Thompson, para apenas uma (sem
foto).
Sobre o jornalista, no primeiro clich, o ltimo pargrafo do texto do
Globo dizia: Seu corpo foi encontrado por seu filho, Juan, domingo noite, em
sua casa no Colorado. Thompson tinha 67 anos e, segundo comunicado divulgado
por Juan, se matou com um tiro na cabea. No segundo clich, o texto mudou
para: O corpo de Thompson foi encontrado no domingo, em sua casa no
Colorado. Ele tinha 67 anos e se matou com um tiro na cabea.
Na edio de 22 de setembro de 2005, a Rolling Stone publicou
reportagem de Douglas Brinkley sobre a realizao, um ano depois do suicdio, da
bizarra cerimnia de despedida de Thompson, planejada trinta anos antes de ele
apertar o gatilho e na qual suas cinzas foram lanadas por um canho do alto de
uma torre de 45 metros. Fazia parte do material publicado pela revista o bilhete de
despedida escrito por Thompson quatro dias antes de se matar:

Nada Mais de Jogos. Nada Mais de Bombas. Nada Mais de


Caminhar. Nada Mais de Diverso. Nada Mais de Nadar. 67.
Isso 17 anos depois dos 50. 17 mais do que eu precisava ou
queria. Tedioso. Eu sou sempre malicioso. Nada de Diverso
11

para ningum. 67. Voc est se tornando Ambicioso. Aja


conforme sua velhice. Relaxe Isso no vai doer. (apud
BRINKLEY, 22/9/ 2005, p. 68).2

Outro breve episdio contemporneo. O canal de TV por assinatura


brasileiro BandNews costuma preencher sua programao, aproximadamente a
cada uma hora, com uma pequena matria de arquivo, ou seja, sem vnculo com
qualquer acontecimento do dia. Ela pode tratar da vida de uma pessoa, de um
acontecimento distante, de um pas, de um esporte. Numa delas, exibida em 2003,
o tema foi a carreira da banda de rock australiana INXS.
Seu primeiro vocalista, Michael Hutchence, co-autor do sucesso Suicide
blonde, dos versos tenha alguma surpresa nas suas mos/ salve-se da tristeza/
como a chuva pela terra, matou-se por enforcamento, aos 37 anos, em 22 de
novembro de 1997, num quarto de hotel de Sydney, sua cidade natal. Estava
deprimido pela separao da jornalista inglesa Paula Yates, que se casara com
outro roqueiro, o irlands Bob Geldolf, dos Boomtown Rats, organizador dos
concertos beneficentes Live Aid e ator do filme Pink Floyd The wall, de Alan
Parker.
Por conta da fama individual dos envolvidos e do rumoroso tringulo
amoroso em pblico, o episdio foi fartamente noticiado na ocasio. Pois seis
anos depois, a BandNews, chegado o ponto da carreira do INXS em que
Hutchence se mata, abrevia o episdio para o eufemismo desaparecimento sbito
de seu lder e passa adiante. Desconhece-se qualquer caso de suicdio que no
implique desaparecimento sbito do morto.

2
No More Games. No More Bombs. No More Walking. No More Fun. No More Swimming. 67.
That is 17 years past 50. 17 more than I needed or wanted. Boring. I am always bitchy. No Fun
for anybody. 67. You are getting Greedy. Act your old age. Relax This wont hurt.
1
Introduo

Esconder o suicdio ao p de pginas, mascar-lo por eufemismos, como


ocorreu nos casos narrados no prlogo, ou at mesmo ignor-lo completamente,
como ocorre com a imensa maioria dos casos, so procedimentos comuns na
imprensa internacional, no apenas a brasileira. H razes bem prticas e
compreensveis para isso: amenizar o inevitvel sentimento de culpa dos
familiares e amigos prximos do morto, respeitar a privacidade de sua dor,
implicaes securitrias etc. Em torno da notcia de uma morte voluntria, porm,
tende a se formar um crculo de silncio que expressa algo mais difuso, mas no
menos importante nas sociedades ocidentais: as crenas conjugadas de que o
suicdio pode ser, de certa forma, contagioso, e de que os modernos meios de
comunicao de massa podem ser, pela prpria natureza de sua funo social, os
vetores deste contgio.
Verbalizado ou no, portanto, existe nas redaes o temor de que a
publicao de uma notcia sobre um suicdio especfico, ou at uma simples
meno genrica possibilidade de um ser humano chegar concluso de que sua
vida no vale mais a pena ser vivida, possa transmitir ou estimular a mesma idia
num suicida em potencial tratado de forma anloga ao portador sadio de uma
doena latente. Tenta-se evitar, pelo rigor na edio e pelo tratamento retrico do
fato, que se repita o que aconteceu com a publicao da novela Werther, de
Johann Wolfgang von Goethe. A partir de 1774, a Europa romntica foi sacudida
por uma onda de suicdios de jovens que se identificaram com o amor no-
correspondido do protagonista pela adorvel embora refratria Charlotte a ponto
de adotarem a mesma sada para seus prprios dramas: matar-se com um tiro de
pistola. Exemplares do livro de Goethe eram achados ao lado dos moribundos ou
dos cadveres.
Em sua carta de despedida, escrita numa linguagem transbordante de
emoo que nunca ou quase nunca encontrada nos bilhetes de suicidas reais,
13

normalmente frios e prticos, Werther se dirige a Deus e ao objeto de seu amor


no-correspondido, Charlotte: Em torno de mim reina a tranqilidade, e minha
alma est to calma! Agradeo-vos, Deus, por me concederes em meus ltimos
momentos, este calor e esta fora! (GOETHE, 1971, p. 159) E, um pouco
adiante, sinaliza a proximidade da morte com uma metfora, no com a
concretude da arma de fogo: Veja, Charlotte, que no tremo ao pegar a fria e
terrvel taa por onde quero beber a embriaguez da morte! voc quem ma
apresenta e eu no hesito um s momento. assim que se consumam todos os
votos, todas as esperanas da minha vida! (ibidem, p. 159)
No existe, previsivelmente, uma estatstica do efeito Werther3 sobre a
populao masculina jovem europia do sculo XVIII. Se existisse, ela talvez nem
sequer fosse relevante do ponto de vista numrico, embora o crtico e romancista
ingls A. Alvarez tenha escrito em O deus selvagem Um estudo do suicdio
[1971]: O percurso de Werther foi como o percurso de um carro de Jagren
indiano; media-se o seu xito pelo nmero de suicidas que deixava atrs de si
(ALVAREZ, 1999, p. 209). No sem sarcasmo, Alvarez observa que, no apogeu
do romantismo, a vida era vivida como se fosse, ela tambm, uma obra de fico,
e o suicdio se tornou um ato literrio, um gesto histrico de solidariedade para
com qualquer heri ficcional que fosse a coqueluche do momento (ibidem, p.
209).
Seja como for, o efeito causado na opinio pblica pelos casos de suicdio
de leitores solidrios a Werther que vieram tona na ocasio, quo poucos
possam ter sido, foi duradouro e exemplar. Quando, duzentos e trs anos depois,
Roland Barthes elegeu articular seu Fragmentos de um discurso amoroso em
torno sobretudo da leitura regular do Werther estava, sem sombra de dvida,
no apenas ratificando a importncia de Goethe na formao do sujeito
apaixonado ocidental como reconhecendo a sada suicidria como recurso retrico
amoroso.

s vezes, vivamente atingido por alguma circunstncia ftil e


envolvido pela repercusso que ela provoca, me vejo de repente
numa armadilha, imobilizado numa situao (num stio)
impossvel: s h duas sadas (ou... ou ento...) e as duas esto

3
Posteriormente, a expresso efeito Werther passou a ser usada sempre que um suicdio sobre-
tudo o de artistas serve de inspirao para que outras pessoas se matem.
14

igualmente trancadas: dos dois lados s tenho que me calar.


Ento a idia de suicdio me salva, pois pode ser falada (e no
me privo disso): renaso e pinto essa idia com as cores da
vida, seja para dirigi-la agressivamente contra o objeto amado
(chantagem bem conhecida), seja para me unir a ele
fantasiosamente na morte (descerei ao tmulo para me abraar
com voc). (BARTHES, 1981, p. 185).

Barthes, ele mesmo saudado pelos romnticos mais-que-tardios como um


suicida, por ter-se supostamente deixado atropelar por uma caminhonete, a 25 de
fevereiro de 19804, prximo ao College de France, onde ministrava um curso
sobre Marcel Proust e a fotografia, fornece, por contraste, uma sugesto de
abordagem mais geral do fenmeno do suicdio esta que, num primeiro
momento, me interessa, por no pretender esgotar seus inmeros aspectos e sim
relacion-los ao modo como as notcias so ou no divulgadas pela imprensa ao
escrever numa espcie de epgrafe aos seus prprios Fragmentos:

A necessidade deste livro funda-se na considerao seguinte: o


discurso amoroso hoje de uma extrema solido. Tal discurso
talvez seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?),
mas no sustentado por ningum; completamente relegado
pelas linguagens existentes, ou ignorado, ou depreciado ou
zombado por elas, cortado no apenas do poder; mas tambm
de seus mecanismos (cincia, saberes, artes). (BARTHES,
1981, XV).

Diferentemente do discurso amoroso, ento, o discurso suicidrio e meta-


suicidrio incorporado tanto por uma multido de sujeitos o prprio Barthes o
diz naquele seu verbete dedicado ao suicdio5 quanto por uma multiplicidade
de discursos como atesta a profuso de ttulos dedicados ao assunto nas cincias
humanas e sociais (Psicologia, Antropologia, Sociologia, Filosofia, Histria). S
mesmo o abrangente conceito de interdisciplinaridade, que tenta no
circunscrever o estudo do homem a apenas uma de suas dimenses ou a apenas

4
Tal suspeita enfraquecida pela inpcia da suposta execuo (Barthes morreu apenas a 26 de
maro, depois de um ms de agonia no Hospital Piti-Salptrire) e pelo estado de nimo daquele
que considerado seu ltimo texto, por ter sido encontrado em processo de reviso datilogrfica,
na sua mquina de escrever, na data do atropelamento: Malogramos sempre ao falar do que ama-
mos (nele, Barthes trata da transcendncia da arte e da esperana a partir de Stendhal).
5
Cf. p. 16.
15

uma de suas disciplinas, capaz de abarcar o fenmeno; num conceito


exemplificado pelas obras do prprio Barthes e de seus compatriotas Foucault,
Derrida, Morin, Lyotard, Deleuze.

1.1
O no-lugar do suicdio

Sendo o suicdio tema passvel de abordagem filosfica, sociolgica,


antropolgica, psicolgica, mdica, jurdica, histrica, poltica, religiosa, tica
etc., ele se constitui num ponto nevrlgico no somente das fronteiras
disciplinares como tambm do prprio homem. H estudos nesta direo. Em Les
suicides, por exemplo, Jean Baechler busca dar conta de todos os aspectos e
variveis, imbudo da idia de que somente o dilogo entre as variadas disciplinas
pode aclarar o assunto. Assim, Baechler investiga as teorias sociolgicas,
psicanalticas, psiquitricas; as leituras filosfico-morais, de casos, estatsticas; os
contextos familiares, etrios, sexuais; as mentalidades; os tipos de morte
voluntria. Longe de pretender abarcar toda a literatura sobre o assunto, que
reputa monstruosa, o autor, no sem ironia, reclama um no-lugar logo na sua
apresentao:

Eu no sou mdico, nem psiquiatra, nem psicanalista; eu no


sou moralista, nem filsofo, nem telogo; eu no sou etnlogo,
nem psiclogo e tampouco socilogo. Assim, eu preencho as
condies necessrias, seno suficientes, para estudar os
suicdios. (BAECHLER, 1975, p. 9).6

Queixando-se da ausncia de menes morte voluntria em clssicos dos


estudos sobre a morte, como, por exemplo, La mort et lOccident de 1300 nos
jours, de Michel Vovelle, ou Lhomme devant la mort, de Philippe Aris, George
Minois, j na introduo de Histoire du suicide La socit occidentale face la

6
Je ne suis pas mdecin, ni psychiatre, ni psychanalyste; je ne suis pais moraliste, no philosophe,
ni thologien; je ne suis pas ethnologue, ni psychologue et si peu sociologue. Je remplis donc les
conditions ncessaires, sinon suffisantes, pour tudier les suicides.
16

mort volontaire, lembra que parte dela se deve a falhas documentais. As fontes
que concernem s mortes voluntrias so diferentes daquelas que relatam as
mortes naturais. Os famosos registros paroquianos de falecimentos no so aqui
de nenhuma ajuda, porque os suicidas no tinham direito inumao religiosa
(MINOIS, 1995, p. 9). Minois assinala, portanto, que os historiadores devem se
dirigir a fontes heterclitas (memrias, crnicas, jornais, literaturas) e a arquivos
judiciais, pois a morte voluntria quase sempre foi considerada crime. Logo,
tambm o Direito, cannico ou laico, produziu discursos condenatrios do
suicdio.
Dentro deste esprito e tambm como jornalista irei trabalhar a
primeira das trs partes desta dissertao. Lanarei mo de textos produzidos no
mbito da Sociologia, da Histria, da Filosofia, da Psicologia, da Antropologia e
at da Literatura, na tentativa de estabelecer elos entre o fato concreto do suicdio
e a idia generalizada de que ele , num sentido bem especfico, no biolgico,
contagioso dentro das sociedades.
No processo, um pouco como Barthes empregou o Werther, utilizarei O
suicdio Estudo de sociologia [1897] de mile Durkheim, como leitura
regular, em relao s quais se posicionam por alinhamento, divergncia ou
oposio as outras. Seu livro uma referncia constante quando se estuda o
suicdio, naturalmente no por ser o primeiro. Sua prpria bibliografia o
comprova: est coalhada de livros de mdicos e psiclogos sobre a morte
voluntria. Durkheim, porm, prope uma mudana drstica na abordagem do
fenmeno: no mais v-lo como a expresso individual de uma doena ou de uma
loucura, e sim como a expresso individual de um fenmeno coletivo. Pensando
desta forma, em seu trabalho, Durkheim isolou para anlise uma tipologia do
suicdio ainda vlida. Alm disso, ele aceitava a idia de contgio dentro das
sociedades e admitia que, mais do que o mero boca-a-boca, a imprensa poderia
desempenhar um papel potencializador na transmisso se no do suicdio, da sua
sugesto.
17

1.2
Observao participante

Na segunda parte desta dissertao, buscar-se- mais especificamente o


papel da imprensa no fenmeno do suicdio assim como, na primeira, buscou-se
mapear a idia de contgio, no qual a imprensa poderia desempenhar uma parte
importante, dentro da bibliografia sobre o suicdio. A partir daqui, alm do recurso
s fontes heterodoxas, comearei paulatinamente a aplicar o conceito de
observao participante, utilizado na pesquisa qualitativa dos fenmenos de
comunicao de massa. Nascido do trabalho da Escola de Chicago, este mtodo
scio-antropolgico prescreve a virtual imerso do pesquisador no objeto
pesquisado no caso, empresas de comunicao e redaes de modo a captar-
lhe as sutilezas de conduta, seja por entrevistas com personagens-chave ou
consulta a seus documentos (reportagens), seja por observao direta ou
experincia de vida.
Sou jornalista profissional h vinte anos, a maior parte deste perodo
passado entre as redaes do Jornal do Brasil (1986-1991) e do Globo (1992-
2000), ambos importantes dirios cariocas. Tendo neles exercido funes em
variadas reas, de reprter de Artes e Espetculos a editor de Poltica, em algumas
ocasies, coerente com as culturas organizacionais em que me inseria, deparei-me
com as mesmas dvidas externadas pela colega mencionada no prlogo desta
dissertao (Preciso ver como publicamos, ento...). No haver, todavia, apelo
a reminiscncias isoladas. O que importa a percepo de que, muito mais do que
ser determinante do modo como os seus leitores encaram o suicdio, a imprensa
sim determinada pela viso que seus consumidores vale dizer a sociedade
como um todo, no caso de jornais de grande circulao ou redes de rdio e TV
tm da morte voluntria. Nessa perspectiva, a imprensa se colocaria, ento, no
como vetor do contgio, mas como instncia social solidria ao tabu que a
suplanta.
No seu artigo includo no livro A handbook of qualitative methodologies
for mass communication research, Qualitative methods in the study of the
news, a pesquisadora americana Gaye Tuchman, especialista no estudo de
notcias do Departamento de Sociologia da Universidade de Connecticut, aponta
18

trs mudanas importantes que a linha da observao participante introduziu em


relao a trabalhos anteriores neste campo:

Primeiro, a unidade de sua anlise no era o reprter ou o editor


individual. (...) Em vez disso, eles examinaram as empresas de
notcias como instituies complexas. Segundo, embora
enquadrados em linguagem acadmica neutra, seus estudos
eram implicitamente polticos. Os autores buscaram entender
como as notcias vieram a sustentar a interpretao oficial de
eventos controvertidos. Terceiro, s vezes implcita mas
freqentemente explicitamente, estes estudos levantaram um
tema epistemolgico chave: como empresas de notcias vm a
saber o que sabem. (TUCHMAN, 1991, p. 84).7

Para mim, de particular importncia a segunda das mudanas


mencionadas por Tuchman: meu interesse tentar entender como o noticirio
apia as interpretaes oficiais de um fato controverso o suicdio. Ou seja, o
modo como ele reflete e refora o senso comum sobre o assunto: a condenao
quase unnime quando se trata de um suicdio motivado por problemas ou
decises particulares (dissabores amorosos, como Werther); a absolvio quase
unnime ou, ao menos, a relativizao quando se trata de um suicdio motivado
por causas externas ao sujeito que se mata (como o homem-bomba).

1.3
O que diz o jornal?

Da a terceira parte desta dissertao, que se debruar sobre como


efetivamente o suicdio falado. Aqui, o campo escolhido para a pesquisa um
rgo representativo da imprensa brasileira, tomado num determinado perodo: o
supracitado jornal O Globo, um dos quatro maiores dirios do pas, sediado no
Rio de Janeiro e cuja tiragem mdia diria de 300 mil exemplares, no ano de
2004.

7
First, their unit of of analysis was not the individual reporter or editor (...), rather, they examined
news organizations as complex institutions. Second, although framed in neutral academic lan-
guage, the studies were implicity political. Their authors sought to understand how news came to
support official interpretations of controversial events. Third, sometimes implicity but often ex-
plicity, these studies raised a key epistemological issue: how do news organizations come to
know what they know.
19

Alm da possibilidade, por conta de experincia profissional, de us-lo de


campo para minha observao participante, sua escolha apresenta outra
vantagem, nada desprezvel em termos de abrangncia. Nele, a linha editorial
coerente com a de todos os veculos de comunicao das Organizaes Globo
(outros jornais, emissoras de televiso, rdios, revistas, sites de internet) e
estabelecida em reunies semanais entre seus principais executivos. Portanto,
razovel supor que as mais ou menos as mesmas deliberaes fundamentais
quanto ao suicdio ou a qualquer outro tema polmico sejam apresentadas diante
de um pblico de dezenas de milhes de brasileiros, refletindo e alimentando suas
convices, num processo contnuo que impossibilita definir onde acaba uma
etapa e comea outra.
Sendo verdade que a notcia um pedao do social que volta ao social,
como disse Bernard Voyenne, redator do jornal Combat junto ao filsofo Albert
Camus durante a Segunda Guerra Mundial, os vnculos entre uma sociedade e a
sua imprensa so indissolveis. No caso do alcance e do poder dos produtos de
comunicao das Organizaes Globo, no seria temerrio afirmar que eles
pensam o que o pas pensa e vice-versa. Entender-lhes entender um pouco a
cabea do brasileiro.
Por extenso, pode-se dizer tambm que eles no pensam o que o pas no
pensa e vice-versa quando se trata, por exemplo, de um tema tabu como o
suicdio. Porque, como destaca Teun A. Van Dijk8, professor de Estudos do
Discurso na Universidade de Amsterd, a notcia uma importante formadora de
opinio no s pelo que ela diz, mas tambm pelo como diz e pelo que no diz.

Uma das mais poderosas noes na anlise crtica das notcias


a de implicao. (...) Muito da informao de um texto no
expressada explicitamente, mas deixada implcita. Palavras,
oraes e outras expresses textuais podem implicar conceitos
ou proposies que podem ser inferidas com base em
conhecimento prvio. Este aspecto do discurso e da
comunicao tem importantes dimenses ideolgicas. A anlise
do no-dito s vezes mais reveladora do que o estudo do

8
Media contents The interdisciplinary study of news as discourse. In: JENSEN, JANKOWS-
KI. A handbook of qualitative methodology for mass communication research. Londres e Nova
York: Routledge, 1991.
20

que de fato foi expressado no texto. (VAN DIJK, 1991, p.


113/114).9

Em busca do que o noticirio diz, insinua ou cala sobre as mortes


voluntrias, examinarei todo o material pertinente publicado pelo jornal Globo em
2004 suicdios de personalidades, homicdios seguidos de suicdio, atentados
perpetrados por terroristas suicidas etc. atrs dos itens mais significativos sob a
lupa da anlise de discurso. Em si mesmo, como acentua Van Dijk, este mtodo
contm os elementos da interdisciplinaridade, conforme agrega o conhecimento
de Antropologia, Etnografia, Microssociologia, Psicologia Social e Cognitiva,
Potica, Retrica, Estilo, Lingstica, Semitica e outras disciplinas nas cincias
humanas e sociais interessadas no estudo sistemtico de estruturas, funes e
processamento de texto e fala (ibidem, p. 108). Em suma, procura-se aqui revelar
uma ideologia em torno do suicdio nas linhas e nas entrelinhas do noticirio.

9
One of the most powerful semantic notions in a critical news analysis is that of implication. (...)
Much of the information of a text is not explicity expressed, but left implicit. Words, clauses, and
other textual expressions may imply concepts or propositions which may be inferred on the basis
of background knowledge. This feature of discourse and communication has important ideological
dimensions. The analysis of the unsaid is sometimes more revealing than the study of what is
actually expressed in the text.
2
Suicdio e sociedade

mile Durkheim (1858-1917) louvado como tendo sido, no o primeiro,


mas o mais importante pioneiro na abordagem metodolgica do fenmeno em O
suicdio Estudo de sociologia. Antes dele, mesmo em trabalhos pretensamente
cientficos, muitos assinados por mdicos e psiquiatras importantes, lendas e fatos
sobre a morte voluntria se fundiam de tal maneira, pressionados por sculos de
condenao religiosa e judicial, que quase inevitavelmente reforavam o senso
comum que remontava Idade Mdia: o suicida ou estava sob a influncia do
Demnio ou estava louco, sem meio termo. Na obra e na existncia do primeiro, o
judeu e agnstico Durkheim no acreditava. Quanto loucura, apoiado na anlise
de dados estatsticos procedentes da contabilidade social, ele haveria de provar
que o suicdio era um fenmeno da razo.
Durkheim mostrou que os pases em que h menos loucos so aqueles em
que h mais suicdios; o caso da Saxnia chama particularmente a ateno
(DURKHEIM, 2000, p. 56) Naquela regio integrante do Imprio Alemo,
proclamado em 1871, os dados de quatro anos depois davam conta de que havia
84 loucos por 100 mil habitantes e 272 suicdios por um milho de habitantes. Por
contraste, podemos extrair de um dos quadros estatsticos montados por outros
estudiosos do assunto e utilizados por Durkheim segundo seus prprios propsitos
a informao de que na Esccia, parte integrante da Gr-Bretanha, em 1871, havia
202 loucos por 100 mil habitantes e apenas 35 suicdios por um milho de
habitantes. Atravs dessas comparaes e das concluses delas inferidas, o
socilogo separou alienao e morte voluntria: A taxa social de suicdios no
mantm, portanto, nenhuma relao definida com a tendncia loucura, nem, por
induo, com a tendncia s diferentes formas de neurastenia (ibidem, p. 59).
Sendo um fenmeno da razo, mesmo se tomado coletivamente, como era
a sua preocupao de socilogo, o suicdio no afasta a noo de livre arbtrio
para Durkheim. Embora de maneira algo reticente e inconclusiva, ele volta e meia
22

o afirma: (...) Mostraremos que essa maneira de ver, longe de excluir toda a
liberdade, aparece como o nico meio de concili-la com o determinismo revelado
pelos dados da estatstica. (ibidem, p. 6, nota de rodap).
Auxiliado por, entre outros, seu sobrinho Marcel Mauss (ele prprio
socilogo e antroplogo importante) e por Maurice Halbwachs (que, em 1930,
escreveria Les causes du suicide, respeitosamente discordando de algumas
concluses do mestre), Durkheim cruzou as estatsticas disponveis sobre suicdio
na Frana e em outros pases europeus de modo a refutar ou explicar em bases
cientficas, despidas de crendices por que certas doenas mentais ou religies,
certas raas ou tipos humanos, certas classes sociais ou sexos, certos climas ou
horrios do dia tenderiam a aparecer como mais propensos ao suicdio. Encontrou
um aparente enigma: embora, obviamente, pessoas diferentes se matem por
motivos diferentes, a cota de suicidas de cada sociedade permanece estvel por
perodos contguos de tempo isso, especificamente, o que Durkheim chama de
taxa social. Como observa Jos Carlos Rodrigues, num texto indito, Os corpos
na antropologia:

Durkheim procurou demonstrar que, em vez de resultar das


profundezas misteriosas do psiquismo, um fenmeno to
individual e to psicolgico, como a extino voluntria da
prpria vida, exibia em cada sociedade europia uma admirvel
constncia estatstica dentro de um intervalo determinado de
tempo. (...) De acordo com os dados que Durkheim apresentou,
em cada sociedade europia o suicdio se relacionava tambm
de modo coerente, consistente e razoavelmente persistente com
as variveis scio-econmicas de idade, gnero, profisso,
renda, estado civil, situao familiar, religio, instruo,
moradia rural ou urbana... At mesmo os ritmos do calendrio
social, com as estaes do ano, os dias da semana, os meses, as
horas diurnas ou noturnas e as datas festivas mostravam-se
atuantes nas prticas de auto-extino. (RODRIGUES, p. 6).

Ao explicar por que isso ocorre, na tentativa de desmistificar um tabu,


livrando-o de pseudo-explicaes sobrenaturais ou raciais, Durkheim no apenas
deu ao tema da morte voluntria uma obra cannica, como, de certa forma, fundou
a prpria sociologia moderna. Embora j tivesse publicado dois trabalhos
importantes antes de O suicdio, A diviso do trabalho social [1893] e As regras
23

do mtodo sociolgico [1895], foi seu livro de 1897 que uniu forma e contedo de
maneira magistral, transformando-se numa aula magna.
No prefcio edio brasileira de 2000, Carlos Henrique Cardim,
professor do Instituto de Cincia Poltica e Relaes Internacionais da UnB,
lembra que Seymour Martin Lipset, autor de Political man, usava o livro de
Durkheim na primeira aula de seus cursos de Sociologia na Universidade da
Califrnia por consider-lo um modelo particularmente atraente para os alunos
de estudo de cincias sociais. Alm de demonstrar cabalmente a possibilidade e a
necessidade da sociologia que at ento estava muito contaminada pela metafsica,
pela psicologia e pelo messianismo redentorista, acrescenta Cardim (ibidem, p.
XIX).
Durkheim notou que a nica constante na Europa era que o suicdio se
relacionava diretamente com o grau de envolvimento do suicida com a sua
sociedade e que isso s vezes apenas coincidia com o senso comum. Por
exemplo, os homens se matavam quatro vez mais que as mulheres, certo, mas no
porque fossem mais predispostos a isso e sim porque, no sculo XIX, eles tinham
uma vida social mais ativa que elas. Protestantes se matavam mais que catlicos,
certo, mas no porque fossem mais mrbidos e sim porque sua religio se
caracteriza por valorizar mais o indivduo e o livre-pensar, menos o grupo e a
ortodoxia. Tudo o que variao horroriza o pensamento catlico, escreve o
socilogo (p. 185).
Em sentido inverso, ou seja, desmentindo a impresso popular e
aparentemente lgica de que a hora das trevas ou as longas noites de inverno
influenciavam o esprito das pessoas que, deprimidas e solitrias, se matavam,
Durkheim mostrou que elas o faziam mais freqentemente de dia, em particular
nas horas ditas comerciais, e nos meses quentes do Hemisfrio Norte, justamente
porque eram estes os momentos de maior intensidade da vida social.

2.1
O suicdio do tipo egosta

Destas observaes, e de observaes anlogas, Durkheim extraiu sua


clebre tipologia dos suicdios, includa no livro II, o mais importante de O
suicdio, intitulado Causas sociais e tipos sociais. Nelas, as mortes voluntrias
24

so classificadas no morfologicamente e sim etiologicamente, ou seja, no a


partir das aparncias e sim das causas. Para ele, todas as mortes voluntrias se
enquadravam em uma de trs categorias: eram suicdios egostas, altrustas ou
anmicos havendo tipos hbridos entre elas. Eram, como os prprios nomes
indicam, categorias que relacionavam o fenmeno no mais a predisposies
individuais ou psicolgicas, nem muito menos ao do Demnio a menos,
claro, que se demonizasse a vida em sociedade, porque era nela em que todas as
razes dos mortos, por mais pessoais que fossem, se reencontravam.
Durkheim chama de suicdio egosta o praticado por quem j no v razo
de ser na vida, porque, no seu entender, o homem no pode viver a no ser que se
ligue a um objeto que o ultrapasse e que lhe sobreviva (p. 260). Ele estabelece
trs proposies complementares para tal tipo, coerentes com sua perspectiva
sociolgica: o suicdio varia em razo inversa ao grau de integrao da sociedade
religiosa; o suicdio varia em razo inversa ao grau de integrao da sociedade
domstica; e o suicdio varia em razo inversa ao grau de integrao da sociedade
poltica. Os indivduos so, por assim dizer, protegidos da morte voluntria por
estarem bem integrados na vida social, por serem membros de uma comunidade
religiosa unida, por serem casados, por serem cidados ativos. Inversamente, so
mais propensos ao suicdio os ateus, os solteiros, os marginalizados. Os artistas,
ao menos na viso romntica, se enquadram nesta ltima categoria.
Porque no , afinal, de outro tipo de alienao do contato social que
tratam muitos dos bilhetes de despedida deixados, por exemplo, por atores,
escritores ou msicos, como o americano Kurt Cobain, cantor, compositor e
guitarrista do imensamente popular grupo de rock Nirvana, que deu um tiro na
cabea, em sua casa de Seattle, aos 27 anos, a 5 de abril de 1994. Seu corpo foi
encontrado por um eletricista contratado para instalar um sistema de alarme
apenas trs dias depois. O estrago no rosto foi tamanho que a polcia teve de
confirmar a identidade de Cobain pelas impresses digitais. Em 10 de abril, sua
viva, a tambm roqueira Courtney Love, do grupo Hole, gravou uma mensagem
para os fs. Nela, no sem sarcasmo, no sem raiva, ela lia o bilhete de despedida
de Cobain, bilhete que chamou de carta ao editor.
25

No tenho sentido a excitao de escutar e tambm de criar


msica, bem como de ler e escrever, faz anos... Eu tentei de
tudo que est ao meu alcance para apreciar isso, e eu aprecio.
Deus, acredite, eu aprecio... Eu devo ser um daqueles
narcisistas que s apreciam as coisas quando esto ss. Sou
sensvel demais. Tenho de estar ligeiramente entorpecido para
reconquistar o entusiasmo que eu tinha quando criana... (...)
Desde a idade de sete anos tornei-me odioso diante de todos os
humanos em geral... Eu sou errtico, instvel demais, baby!
No tenho mais a paixo, ento lembre-se, melhor queimar do
que se apagar. (apud ETKIND, 1997, p. 38-39).10

Suas palavras de despedida evocam o que Trotsky escreveu sobre outro


jovem poeta suicida, Serguei Essenin (1895-1925), nas pginas do Pravda. No seu
elogio fnebre, o lder sovitico afirmou que, a despeito de ter cantado os
camponeses e de ter se declarado bolchevique, Essenin no era de fato um
revolucionrio: O poeta est morto porque ele no era da mesma natureza da
Revoluo (En mmoire de Serge Essnine, 2005). Para Trostky, enquanto um
era um ser interior, meigo, lrico, a outra era pblica, pica, cheia de
catstrofes.
Cobain h tempos enfrentava problemas com drogas pesadas, como a
herona. Courtney tambm, de tal forma que, em 1992, a filha do casal batizada
Francis em homenagem atriz Frances Farmer, de Seattle, que morreu louca
nasceu viciada, uma drug baby na linguagem escandalosa dos tablides
sensacionalistas. Sete anos corresponde idade em que o msico acreditava ter se
tornado, aos olhos da prpria me, uma criana-problema11. Seus pais se
separariam no ano seguinte. Por fim, a ltima frase do bilhete de despedida usa
versos do roqueiro canadense Neil Young em homenagem a Johnny Rotten, dos
fugazes Sex Pistols ingleses. O conjunto da obra deixada para a posteridade, o
background das drogas, a infncia infeliz e as referncias cruzadas, bem como a

10
I havent felt the excitement of listening to as well as creating music, along with reading and
writing for too many years now... Ive tried everything thats in my power to appreciate it, and I
do. God, believe me, I do... I must be one of those narcissists who only appreciate things when
theyre alone. Im too sensitive. I need to be slightly numb in order to regain the enthusiasm I had
as a child... (...) Since the age of seven, Ive become hateful toward all human in general... Im too
much of na erratic, moody baby! I dont have passion anymore, and so remember, its better to
burn out than to fade away.
11
Segundo ele contou ao bigrafo de sua banda, o jornalista Michael Azerrad, em Come as you
are The story of Nirvana, sobre o Natal de 1974: A nica coisa que eu realmente queria naque-
le ano era um revlver Starsky e Hutch de US$ 5. Em vez disso, ganhei massinha de carvo.
26

linguagem quase impessoal caracterstica de parte considervel dos bilhetes de


suicidas, ilustra perfeio um suicdio do tipo egosta tal como entendia
Durkheim porque:

A sociedade no pode desintegrar-se sem que, na mesma


medida, o indivduo se desligue da vida social, sem que seus
fins prprios se tornem preponderantes sobre os fins comuns,
sem que sua personalidade, em suma, tenda a se colocar acima
da personalidade coletiva. Quanto mais os grupos a que
pertence se enfraquecem, menos o indivduo depende deles e,
por conseguinte, mais depende apenas de si mesmo para no
reconhecer outras regras de conduta que no as que se baseiam
em seus interesses privados. Se, portanto, conviermos chamar
de egosmo esse estado em que o eu individual se afirma
excessivamente diante do eu social e s expensas deste ltimo,
poderemos dar o nome de egosta ao tipo particular de suicdio
que resulta de uma individuao desmedida. (DURKHEIM,
2000, p. 358-9).

Como vimos, para o autor, os suicdios relacionados a uma determinada


sociedade ou a um determinado perodo refletem as caractersticas estruturais e as
mudanas neles verificados. Entretanto, ele logo anota que ao mesmo tempo em
que se mata facilmente quando desligado da sociedade, por moto prprio ou no,
o homem tambm se mata facilmente quando por demais integrado a ela.

2.2
O suicdio do tipo altrusta

Praticado pelo indivduo perfeitamente integrado prpria sociedade, o


suicdio de tipo altrusta aquele no qual a razo parece estar fora da prpria
vida. Nele, o motivo da morte voluntria por vezes considerado louvvel o
bastante para ela no ser qualificada como suicdio. Exemplo extremo, mas que,
por isso, mesmo, tomou bastante tempo dos telogos dos primeiros trs sculos da
Igreja: ao caminhar para a morte certa, consciente de ser ela sua misso na Terra,
seria Cristo um suicida? Segundo as idias de Durkheim, que no o menciona,
mas menciona soldados de todo o mundo, to destemidos e esquecidos de si
mesmos diante da mortal metralha, criados que perdem chefes no Extremo
Oriente e mulheres que ficam vivas na ndia, a resposta seria sim. Minois (1995,
27

p. 35) aponta para o discreto elogio bblico morte voluntria inclusive nas
palavras de Cristo:

O cristianismo nasce e se desenvolve numa atmosfera ambgua,


afirmando que esta vida terrestre, no mundo, odiosa e que
se deve aspirar morte para reencontrar Deus e a vida eterna.
Esta tendncia vem claramente dos primrdios da Igreja. Em
So Joo, a ambigidade tal nos ensinamentos do Cristo que
em certos momentos os judeus crem que Jesus vai se suicidar:
Jesus lhes repete ainda: Eu me vou: vocs me procuraro e,
entretanto, vocs morrero em seus pecados. L onde vou,
vocs no podem ir. Os judeus se perguntaram ento: Ter ele
a inteno de se matar? Ele de fato acaba de dizer: L onde vou,
vocs no podem ir.12

Seja como for, o martrio voluntrio dos seus santos foi louvado pela
Igreja at o momento em que interesses terrenos o desqualificaram como nobre o
bastante para elidir seu carter suicidrio: o Imprio Romano converteu-se ao
cristianismo sob Constantino, no comeo do sculo IV. A partir desta poca, a
condenao tanto religiosa quanto civil ao suicida vai se tornando mais severa, at
atingir as sdicas penas impostas aos corpos dos suicidas durante a Idade Mdia:
para a Igreja, matar-se por desespero era desprezar o poder da penitncia, isto , o
seu poder; para o Estado, matar-se era privar o imprio de novos sditos e
soldados numa poca em que a baixa natalidade romana favorecia os brbaros.
Em Tabu da morte, Rodrigues explicita:

O interesse do poder pela vida dos homens tambm


apropriao da morte deles. Poder algum admite a liberdade de
suicdio. V nela uma afronta perigosa e intolervel: a vida e a
morte do escravo pertencem ao senhor. (1983, p. 107).

12
Le christianisme nat et se dveloppe dans une atmosphre ambigu, affirmant que cette vie ter-
restre, dans le monde est hassable et quil faut aspirer la mort por rejoindre Dieu et la vie ter-
nelle. Cette tendance lemporte nettement dans les dbuts de lglise. Daprs saint Jean,
lambigut est telle dans leiseignement du Christ qu certains moments les Juifs croient que J-
sus va se suicider: Jsus leur redit encore: Je mem vais: vous me chercherez et nanmois vous
mourrez dans votre pch. L o je vais, vous ne pouvez aller. Les Juifs se dirent alors: Aurait-il
lintention de se tuer? Il vient em effet de dire: L o je vais, vous ne pouvez aller.
28

O carter libertrio do suicdio em termos eloqentes, vlidos tanto para a


sociedade romana quanto para a nossa, no impede que, noutras circunstncias,
ele tambm seja apropriado pelo poder, que incita sua prtica.

Se o poder incute nos parentes de um suicida um certo


sentimento de vergonha, e se, de acordo com as culturas,
decreta a impureza ritual deles, aqueles que se deram morte em
nome dos valores cultuados pela coletividade, os suicidas
altrustas, so dignos, no obstante, de respeito comunitrio e
credores de solenes homenagens e recompensas. O poder, s
vezes, institucionaliza o suicdio, retirando de circulao social
os indivduos que cessaram de rentabilizar em seu favor e em
favor de sua reproduo. o caso dos esquims, que j
evocamos, que acreditam que um homem, oferecendo sua vida,
poderia salvar a de seu filho ou de seu neto. (RODRIGUES,
1983, p. 109).

Como se v, o suicdio altrusta nem exclusividade crist e nem


puramente religioso: a religio o pretexto para aes drsticas neste mundo. Isso
visvel no judasmo (os 960 mrtires da cidadela rochosa de Massada, que se
mataram para no cair nas mos dos romanos, em 73 d.C., so considerados heris
mesmo pelo historiador Flavius Josefus, pessoalmente hostil morte voluntria) e
no islamismo (em pleno sculo XXI, queles que morrem pela jihad, a guerra
santa, ainda so prometidas benesses no alm-tmulo, alm de assegurarem a
sobrevivncia de suas famlias no aqum-tmulo13). Ambas so religies que, tal
como o cristianismo, em outras circunstncias condenam enfaticamente o suicdio,
reservando para o enterro do morto um canto retirado dos seus cemitrios,
prximo a um muro, por exemplo um no-lugar. Roosevelt M.S. Cassorla,
mdico e psiquiatria chileno radicado no Brasil, expe a contradio em O que
suicdio:

Ora, se as religies oferecem tanto aps a morte, e se algumas


vem at a passagem na terra como um ritual de sacrifcios, por
que, ento, no acelerar a chegada aos cus, suicidando-se?
Creio que por trs desse problema repousa o horror que as
religies em geral tm ao suicdio individual. Ainda que elas
prprias possam estimul-lo em situaes especiais como

13
Recentemente, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, instituiu uma mesada
para as famlias dos terroristas suicidas, tratados como shahids (mrtires), a maior honraria da f
islmica, reservada queles que morrem por Deus.
29

aconteceu nas cruzadas catlicas e acontece nas guerras santas e


nos suicdios de islmicos, com as bnos dos sacerdotes.
(CASSORLA, 2005, p. 51-52).

Num livro sobre juros, O valor do amanh, Eduardo Giannetti busca


mostrar como a idia de poupar agora para usufruir depois no se esgota nos
limites do mercado financeiro: os juros aparecem onde e quando quer que algum
troque o benefcio futuro pelo prazer imediato. Neste particular, as cinco
principais religies mundiais, so variaes sobre o mesmo tema duplo. Para
cristianismo, judasmo, islamismo, budismo e hindusmo, a morte biolgica no
o nosso fim definitivo/o nosso ps-morte ser determinado por nossas aes em
vida.

A natureza essencialmente econmica do contrato renncia


agora, paraso depois no passou despercebida dos primeiros
telogos cristos. (...) Se a peregrinao terrena um vale de
lgrimas e a bem-aventurana infinita o prmio dos que se
entregam de corpo e alma ao chamado da f, ento por que
adiar o momento da eterna e merecida recompensa? A
proliferao do martrio e a prtica do suicdio coletivo se
tornaram uma ameaa de tal ordem ao rebanho que as
autoridades religiosas se viram compelidas a intervir. Somente
a partir da, no sculo IV d.C., que se declarou o suicdio um
pecado mortal, capaz de condenar danao eterna quem o
pratica. (Por um caminho semelhante, ao que parece, o
islamismo foi levado a proscrever o suicdio, no obstante os
episdios isolados de martrio que, aos olhos atnitos da
humanidade incrdula, no so mais que terrorismo travestido
do halo de uma guerra santa.) (GIANNETTI, 2005, p.
118/120).

E, de seu final de sculo XIX, Durkheim no poderia mesmo vislumbrar


um exemplo extremado do tipo de suicdio que associava aos soldados, homens
altamente integrados socialmente: o camicase que se matava pelo Japo e pelo
imperador Hiroto durante a Segunda Guerra Mundial. Considerado um deus vivo,
o monarca era a entidade que formalmente requisitava o sacrifcio da vida dos
seus sditos milhares de jovens arremessaram seus avies, especialmente
preparados ou no, contra os navios dos EUA; mini-submarinos tambm foram
usados para manter-se puro e intocado pelos infiis americanos. No processo,
suas vidas tambm realimentavam a fornalha da oligarquia militar que dominava o
30

Japo na poca. Suicdios cvicos, no entanto, no so apangio oriental. Um dos


heris nacionais holandeses um oficial de Marinha do sculo XIX que, vendo
seu navio tomado pelos rebeldes belgas que buscavam a independncia, no
hesitou em atirar no paiol e matar a todos: ele prprio, seus companheiros, os
invasores. A eles, nipnicos ou batavos, se aplica o que o socilogo escreve:

Para que a sociedade possa assim coagir alguns de seus


membros a se matar, preciso que a personalidade individual,
ento, tenha muito pouca importncia. Pois, assim que ela
comea a se constituir, o direito de viver o primeiro que
reconhece; pelo menos, ele s suspenso em circunstncias
muito excepcionais, como a guerra. Mas essa fraca
individuao, por sua vez, s pode ter uma causa. Para que o
indivduo tenha to pouco espao na vida coletiva, preciso
que ele seja quase totalmente absorvido no grupo e, por
conseguinte, que este seja muito fortemente integrado. Para que
as partes tenham to pouca existncia prpria, preciso que o
todo forme uma massa compacta e contnua. (DURKHEIM,
2000, p. 274).

Nota-se, j aqui, o contraste entre a figura do soldado de fraca


individuao, que morre pela ptria, inocente de seu suicdio altrusta, e o artista
apartado dos outros homens pela necessariamente exuberante personalidade
individual, que sucumbe diante da prpria sensibilidade, culpado de seu suicdio
egosta. A morte uma s, mas a sociedade a trata distintamente, conforme a
causa.

2.3
O suicdio do tipo anmico

O terceiro tipo de suicdio isolado por Durkheim, o anmico, conquanto


guarde semelhanas com o egosta (pelo desacerto do indivduo que o pratica com
a sociedade) e com o altrusta (porque, ainda assim, a sociedade que o impele a
se matar) configura algo distinto. Porque, nas palavras do socilogo, depende,
no da maneira pela qual os indivduos esto ligados sociedade, mas da maneira
pela qual ela os regulamenta (p. 328). Na verdade, a anomia a ausncia de lei
ou de regra, uma desregulamentao da rotina que rege a vida do cidado mais
comumente para pior, mas s vezes tambm para melhor (por exemplo, pela falta
31

de dinheiro ou pela incapacidade de saber como usar seu excesso), em ambos os


casos, contudo, instabiliza seu lugar na sociedade. Nas palavras de Durkheim:

Se, portanto, as crises industriais e financeiras aumentam os


suicdios, no por empobrecerem, uma vez que crises de
prosperidade tm o mesmo resultado; por serem crises, ou
seja, perturbaes da ordem coletiva. Toda ruptura de
equilbrio, mesmo que resulte em maior abastana e aumento da
vitalidade geral, impele morte voluntria. Todas as vezes que
se produzem graves rearranjos no corpo social, sejam eles
devidos a um sbito movimento de crescimento ou a um
cataclismo inesperado, o homem se mata mais facilmente.
(ibidem, p. 311)

Lembremo-nos: Durkheim escreve nos estertores do sculo XIX, uma fase,


ao menos do nosso ponto de vista, bem pouco avanada do capitalismo, uma fase
ainda associada sua forma colonialista. Ele antev os fenmenos econmicos (e,
por isso, condicionantes de fenmenos culturais) que, um sculo depois, comeou-
se a experimentar em larga escala sob os nomes de neoliberalismo ou
globalizao, ao escrever, na anlise das vises de economistas ortodoxos e
socialistas extremados, igualmente, do papel regulador do Estado. Para
Durkheim, declara-se que as naes devem ter como nico ou principal objetivo
prosperar industrialmente; isso que implica o dogma do materialismo
econmico, que serve igualmente de base a esses sistemas, aparentemente
opostos (p. 324).
Em Mundializao e cultura, Renato Ortiz, ao meditar sobre o legado do
historiador e economista Karl Polanyi, autor de A grande transformao [1944],
concorda que justamente no sculo XIX, do qual o livro de Durkheim
testemunha o final, que surge a idia de um mercado auto-regulvel, hoje vaca
sagrada de nove entre dez economistas. At ento as partes de um mesmo pas
encontravam-se desarticuladas, e no se vinculavam de maneira orgnica com o
sistema mundial, escreve Ortiz. A grande transformao que elas passam
agora a participar de uma entidade especfica; o que era diverso e dspar pode
integrar uma realidade auto-regulada (p. 42). Como, porm, a auto-
regulamentao deste mercado global nascente tem muito pouco a ver com a dos
mercados locais tradicionais, ainda que o indivduo ganhe montanhas de dinheiro
est sujeito sensao de desamparo, de perda de referenciais e de identidade
anomia.
32

Durkheim proclama ser a anomia um fator regular e especfico de suicdios


nas sociedades modernas, uma das fontes em que se alimenta o contingente
atual (p. 328). lcito supor que desde ento, com a vitria ao menos
circunstancial da economia de mercado, o tipo anmico de suicdio tenha
encorpado e passado a prevalecer nas estatsticas, tornando-se, por conseguinte,
tambm o principal fornecedor de casos para o presente estudo. Porque, como
nota Ortiz, a constituio da nao como totalidade integrada (seja enquanto
mercado como queria Polanyi, seja como conscincia coletiva) implica a
reformulao do prprio conceito de espao (p. 44). Portanto, no outro seno
um cenrio anmico o descrito como o do surgimento da nao, entidade
percebida como atemporal mas cujo sentido a Histria segue alterando:

O espao sempre representado como um circuito fechado


sobre si mesmo, um pas sendo composto de vasos no
comunicantes. A nao rompe com o isolamento local. Os
homens que viviam marcados pela realidade de seus paeses, de
suas provncias, so integrados a uma entidade que os
transcende. O campons, o operrio, o citadino deixam de se
definir pela sua territorialidade imediata para se transformarem
em francs, ingls ou alemo. Nesse sentido, a formao da
nao pode ser lida como um processo de desenraizamento. A
cultura nacional pressupe um grau de desterritorializao,
liberando os indivduos do peso das tradies geograficamente
enraizadas. (ORTIZ, 1994, p. 44-45).

Durkheim era um pessimista. Olhava em volta e tudo o que via era a eroso,
pelos sucessivos impactos da revoluo, da industrializao e da secularizao,
daquilo que o homem europeu ocidental do sculo XIX entendia como o seu
papel. Tornado ignorante dele, sua sada ento j era a excessiva invidualizao:
nela, o socilogo enxergava as causas tanto das correntes suicidrias quanto de
outras manifestaes de desorganizao e alienao. Ou, como Robert A. Nisbet
escreve em The sociological tradition [1966]: O que de fato caracterstico do
nosso desenvolvimento, Durkheim sugeriu, que ele sucessivamente destruiu
todos os contextos sociais estabelecidos (p. 300). Em troca, nada teria sido criado
para substitui-los. Pode-se argumentar, com Ortiz, que houve, sim, uma rpida
substituio, das referncias locais pelas nacionais e logo destas pelas
transnacionais (como o caso, por exemplo, da Unio Europia). Entretanto, isso
no muda o fundamental: a anomia paradoxalmente tornou-se a regra.
33

2.4
Anomia e ps-modernidade

Se a cultura nacional marcava um rompimento com aquela que Marx dizia14


oprimir como um pesadelo o crebro dos vivos, uma nova cultura mundializada
marca tambm o surgimento de novos tipos de pesadelo, no qual o
desenraizamento e a desterritorializao, bem como a crescente competitividade
ritualizada como um culto vaca sagrada do mercado auto-regulvel,
desempenham papel muito importante. No mbito da cultura, mais
especificamente, o perodo marca o surgimento da modernidade, logo superada
por uma ps-modernidade. No captulo intitulado Modernismo e ps-
modernismo de Era do Vazio, Gilles Lipovetsky busca, precisamente, estabelecer
um marco visvel neste terreno pantanoso: quando ou onde, afinal, terminou um e
comeou o outro?
O modernismo, Lipovetsky qualifica como uma cultura radicalmente
individualista e extremista, no fundo suicidria, que afirma a inovao como nico
valor (p. 78), uma cultura na qual, pela primeira vez na histria, o ser
individual, igual a qualquer outro, percebido e se percebe como fim ltimo, se
concebe isoladamente e conquista o direito livre disposio de si prprio, que
constitui o fermento do modernismo (p. 87). E do suicdio, no posso me furtar a
acrescentar. O ps-modernismo, por sua vez, visto por Lipovetsky como
prolongamento e generalizao de uma das suas tendncias constitutivas (do
modernismo), o processo de personalizao, e correlativamente pela reduo
progressiva de sua outra tendncia, o processo disciplinar (p. 106). O que apenas
torna a opo da morte voluntria ainda mais presente: sem conseguir estabelecer
vnculos com uma sociedade em constante mudana, isolado, o indivduo
contempla tanto uma vida quanto uma morte em aberto, ambos esvaziados de
sentido.

Do mesmo modo que a arte moderna prolonga a revoluo


democrtica, prolonga tambm, a despeito de seu carter
subversivo, uma cultura individualista j presente aqui e alm
em numerosos comportamentos da segunda metade do sculo

14
Cf. p. 44 .
34

XIX e comeos do sculo XX: citemos, sem ordem, a busca do


bem-estar e dos gozos materiais j assinalada por Tocqueville, a
multiplicao dos casamentos de inclinao decididos por
amor, o gosto nascente pelo desporto, a esbelteza e as danas
novas, a emergncia de uma moda vestimentar acelerada, mas
tambm o aumento do suicdio e a diminuio das violncias
interindividuais. O modernismo artstico no introduz uma
ruptura absoluta na cultura; completa, na febre revolucionria, a
lgica do mundo individualista. (LIPOVETSKY, 1983, p. 83).

Neste mundo onde, para recitar Marx via Marshall Berman, tudo o que
slido desmancha no ar, o homem enfrenta contnuas experincias de ruptura de
equilbrio pessoais, familiares, financeiras, sociais, geogrficas. Sua sensao de
desarraigamento se d no apenas entre pas e pas, mas dentro do espao mesmo
daquilo que outrora ele entendia como sua cidade. Perdido em megalpoles
cada vez maiores, o indivduo olha em volta e tudo o que enxerga anomia; literal
e metaforicamente, ele perdeu os pontos de referncia. Est mais exposto que
nunca tentao da morte voluntria do terceiro tipo, tal como isolado por
Durkheim. No deixa de ser ironia perversa da Histria que contribua para a
percepo de anomia geral a espetacular visibilidade do suicdio do segundo tipo,
o altrusta, praticado em nome de uma causa alm da vida, o Isl, no 11 de
setembro de 2001.
O gigantismo das cidades e das malhas fsicas de comunicao gera outra
idia interessante na tentativa de conceituao de uma ps-modernidade, a de no-
lugares. Para Marc Aug, eles so (mais uma) fonte geradora de perdio porque,
como escreve em No-lugares Introduo a uma antropologia da
supermodernidade, so tanto as instalaes necessrias circulao acelerada
das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodovirios, aeroportos) quanto os
prprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os
campos de trnsito prolongado onde so estacionados os refugiados do planeta
(2004, p. 36). Nesses lugares, ou melhor, nesses no-lugares, o homem no mais
se reconhece. Jogado no mundo sem regras ou norte, a tentao de partir para
outro no-lugar aumenta.
Volta e meia, ainda que discretamente, alguma notcia menciona algum
que decidiu pular de um viaduto ou abraar um trilho eletrificado. Em 2004, uma
pequena nota publicada no jornal Folha de S. Paulo anunciava o propsito da
empresa mantenedora do metr da capital paulista de instalar portas de material
35

transparente nas plataformas das estaes a fim de prevenir suicdios. Como


ocorre na mais moderna linha do metr de Paris, a 14, que liga a Madeleine
Bibliotque Franois Miterrand, as portas nas plataformas s se abrem quando os
trens esto parados com suas prprias portas abertas nas estaes. Naturalmente,
tal tipo de cuidado no seria necessrio se a idia de se matar sob a terra no
passasse pela cabea de nenhum habitante das megalpoles.
A anlise que Fredric Jameson faz da arquitetura de um hotel em Los
Angeles, o Westin Bonaventure, projetado pelo arquiteto John Portman, , no
captulo primeiro, A lgica cultural do capitalismo tardio, de Ps-modernismo,
fornece mais um tijolinho terico para a construo de um panorama anmico e,
logo, suicidrio. O prdio se prope, qual outras obras ps-modernas, um espao
total: quatro torres rigorosamente simtricas, entradas da rua discretas,
elevadores panormicos voltados para dentro, integrao interna com um
shopping center e sugere ao crtico cultural americano uma experincia brutal
de desorientao, algo como a vingana desse espao contra os que ainda tentam
andar nele (p. 70).

(...) Essa ltima mutao do espao o hiperespao ps-


modernista finalmente conseguiu ultrapassar a capacidade do
corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o
espao circundante e mapear cognitivamente sua posio em
um mundo exterior mapevel. Pode-se sugerir agora que esse
ponto de disjuno alarmante entre o corpo e o ambiente
construdo que est para o choque inicial do modernismo
assim como a velocidade da nave espacial est para a do
automvel seja visto como um smbolo e um anlogo daquele
dilema ainda mais agudo que o da incapacidade de nossas
mentes, pelo menos no presente, de mapear a enorme rede
global e multinacional de comunicao descentrada em que nos
encontramos presos como sujeitos individuais. (JAMESON,
2002, p. 70-71).

Talvez no seja, uma vez mais, o caso de vivermos a simples destruio


dos contextos (sociais, arquitetnicos, espaciais, mentais etc.) estabelecidos e sim
da sua acelerada substituio por novos padres criados a gosto do capitalismo
mundializado. Ortiz exemplifica com o espelhamento, na miscelnea internacional
de seus empregados, da irrelevncia nacional das corporaes e do
desenraizamento de seus produtos. Isto criaria em seu ventre a noo de sistema
de valores universais, capaz de dar conta de unidades de produo tanto nos
36

EUA quanto na Indonsia. Ela soldaria seus membros como conscincia coletiva
de tipo durkheimiana, moral condizente com a eficcia global e, claro salvadora
dos homens, escreve Ortiz (p. 154). Estaramos, hoje, sendo ressocializados
segundo esta nova concepo.

2.5
A reabilitao da comunidade

Tendo-se isso em mente, torna-se menos estranho que nunca se tenha falado
tanto em comunidade, espcie de unidade-padro da vida social na Idade Mdia.
A reabilitao desta idia, no entanto, nada tem de ps-moderna. Ela remonta ao
incio do sculo XIX quando comeou a haver, por parte dos estudiosos da vida
em sociedade (talvez no seja acurado cham-los, naquele momento, de
socilogos), uma reao exaltao dos iluministas ao contrato social. Na viso
destes, a nova sociedade racional deveria ser, por definio, o oposto da sociedade
tradicional. Assim, ela seria baseada no homem no como arteso, fiel ou
campons e sim como homem natural. Segundo Nisbet, ela deveria ser
concebida como um tecido de relacionamentos especficos e voluntrios em que
os homens livre e racionalmente entram uns com os outros (p. 49). Para os
crticos dos iluministas, porm, o contrato no fazia sentido como mera comunho
de interesses porque tambm eles se relacionavam a algo externo, que lhes dava
valor a comunidade.
Tomando o partido da segunda no embate societas versus communitas,
Auguste Comte, por exemplo, via a restaurao da comunidade como um
problema de urgncia moral. No to conservador, embora compartilhando com o
pai do Positivismo alguns pontos de vista, Durkheim lembrava a origem comunal
da prpria concepo humana de universo e ressaltava que tudo aquilo que se
eleva acima do nvel do fisiolgico social, ou seja, humano.

Em Durkheim, ns achamos a idia de comunidade usada no


somente substantivamente, como em Le Play, no somente
tipologicamente, como em Tnnies, mas tambm
metodologicamente. Isto , nas mos de Durkheim a
comunidade se torna uma moldura de anlise dentro da qual
questes como moralidade, lei, contrato, religio e mesmo a
37

natureza da mente humana ganham novas dimenses de


entendimento. (NISBET, 2004, p. 82).15

O primado da comunidade tem conseqncias interessantes em todo o


trabalho de Durkheim, inclusive na relao estabelecida entre os tipos de suicdio
e a vida social, em particular o anmico. Antes mesmo de escrever O suicdio, ele
j mencionara o tema da morte voluntria em Da diviso do trabalho social
[1893] por sua relao com perodos de desintegrao social. Isto se d porque,
segundo Nisbet, a anomia durkheimiana , em sntese, uma quebra na comunidade
moral exatamente como o egosmo uma quebra na comunidade social.
Logo, o seu apreo pelo sentido tradicional de comunidade permite-lhe ter
uma compreenso mais profunda do fenmeno religioso, encarado pelos
iluministas e por seus sucessores utilitaristas como mera crendice. Durkheim
percebia que havia algo de eterno na religio, ou melhor, que o religioso-sagrado
era uma ferramenta importante para o entendimento de manifestaes sociais
claramente no-religiosas. Em As formas elementares da vida religiosa [1921],
escreveu que o sentimento unnime de crentes de todos os tempos no pode ser
ilusrio.
O respeito agnstico devotado por Durkheim questo fez, inclusive, que
ele entendesse a prpria presso social, justamente aquela que recrimina ou incita
ao suicdio, como sagrada. Neste ponto, ele se aproximava de Alexis de
Tocqueville, que, no segundo volume de Da democracia na Amrica [1840],
escreveu:

Nos Estados Unidos, a maioria encarrega-se de fornecer aos


indivduos um completo elenco de opinies j prontas,
dispensando-os da obrigao de as formularem por conta
prpria. Grande o nmero que existe de teorias em matria de
filosofia, moral e poltica, que cada um adota sem exame e s
pela f do pblico. E se olharmos bem, de perto, veremos que a
prpria religio ali reina menos como doutrina revelada do que
como opinio comum. Sei que as leis polticas dos americanos
so feitas para que a maioria governe soberanamente a
sociedade, o que aumenta bastante o domnio que ela
naturalmente exerce sobre a inteligncia. Pois, nada mais

15
In Durkheim we find the idea of community used not merely substantively, as in Le Play, not
merely typologically, as in Tnnies, but also methodologically. That is, in Durkheims hands
community becomes a framework of analysis within such matters as morality, law, contract, relig-
ion, and even the nature of the human mind are given new dimensions of understanding.
38

familiar ao homem do que reconhecer uma sabedoria superior


naquele que o oprime. (TOCQUEVILLE, 1998, p. 183-184).

A confluncia de religio e opinio comum, de sagrado e de profano,


compartilhada pelos membros da reao ao utilitarismo do Iluminismo, de Comte
e Tocqueville em diante, encontra outro pensador importante em Georg Simmel.
Ele comunga da idia de Durkheim de que o comportamento religioso no est
presente apenas em assuntos religiosos, mas tambm, por exemplo, no amor de
um filho por seus pais, no de um patriota por seu pas (o que, podemos concluir,
abarca a devoo dos camicases por Hiroto, por exemplo) ou no de um
cosmopolita pelo Humanidade inteira naturezas religiosas sem uma religio.
Simmel acredita que sem esse sentimento a sociedade tal como a conhecemos
nem mesmo conseguiria existir, pois a f num indivduo ou na coletividade um
dos mais poderosos fatores de coeso social. Simmel sintetiza este sentimento na
palavra piedade, cujo sentido parece abarcar, qual o rahamin hebraico, justia e
bondade.

Esta moldura mental emocional em particular pode talvez,


falando de maneira geral, ser definida como piedade. Piedade
uma emoo da alma que se torna religio quando quer que se
projete em formas especficas. Aqui, deve ser notado que pietas
significa a atitude pia diante tanto do homem quanto de Deus.
Piedade, que religiosidade em um estado quase fluido, no vai
necessariamente coalecer numa forma estvel de
comportamento em face dos deuses; i.e, numa religio. (apud
NISBET, ibidem, p. 262-263).16

Recapitulando: de acordo com Durkheim, todo suicida mantm uma


relao com sua sociedade simplesmente comunidade escrita por extenso, nas
suas palavras mesmo quando seu gesto primeira vista parece afastar-se dela ou
at mesmo reneg-la. Segundo o socilogo, o suicida de tipo egosta no est
integrado suficientemente sociedade. O altrusta, ao contrrio, est integrado
demais a ela (seja religiosa, domstica ou politicamente). E o anmico j no a
reconhece como sua. razovel, portanto, supor que sendo os meios de

16
This particular emotional frame of mind can perhaps, generally speaking, de defined as piety.
Piety is a an emotion of the soul which turns into religion whenever it projects itself into specific
forms. Here it should be noted that pietas means the pious attitude towards both man and God.
Piety, which is religiosity in a quase-fluid state, will not necessarily have to coalesce into a stable
form o behavior vis--vis the gods; i.e., into religion.
39

comunicao importantes fatores de integrao social, a sua anlise no presente


nos revele algo semelhante ao que observou Durkheim ao fim do sculo XIX.
Afinal, em que pesem terem se passado 109 anos desde a publicao de O
suicdio, uma das caractersticas apontadas para a taxa social de mortes
voluntrias justamente a sua regularidade com vis de alta, para usarmos o
jargo econmico. Alm da nfase dada por Durkheim ao papel que a urbanizao
desempenha sobre o nmero de suicdios, seja diretamente, pela correspondncia
entre grandes cidades abastadas e grandes taxas, seja indiretamente, pelo aumento,
nelas, da interao social que induz deciso de se matar, h um ponto do seu
trabalho que me parece particularmente relevante para o estabelecimento de uma
relao entre a imprensa e o suicdio: o seu prprio uso da palavra contgio.
Durkheim chega a afirmar que o suicdio eminentemente contagioso (p.
90) ou no h dvida que a idia de suicdio se transmite por contgio (p. 140),
alm de batizar um captulo de O suicdio como A imitao. Como sempre,
antes de dar nome s coisas, ele gosta de precis-las o mximo possvel, fixar o
uso das palavras, como diz, pois sabe que no raro ter de separ-las de seu
significado corriqueiro ou isolar uma de suas acepes e no pretende ser mal-
interpretado pelos leitores. Portanto, quando se refere a contgio ou imitao,
Durkheim no est, bvio, sugerindo a existncia de um vrus do suicdio ou que
as pessoas se matem apenas para imitar as outras, mas que a psicologia individual
suscetvel a influncias exatamente por estar inserida num contexto social. O
contgio metafrico. Em outras palavras: os indivduos preenchem tendncias.
Entre os exemplos franceses por ele arrolados deste tipo de manifestao
est o caso de 15 invlidos que, em 1772, se enforcaram em pouco tempo num
mesmo gancho colocado num corredor escuro de hospital (retirado o gancho, a
mortandade cessou) e o dos sentinelas que sucessivamente estouraram os miolos
com suas armas numa mesma guarita do acampamento militar de Boulogne
(queimada a guarita, a mortandade cessou). Se o contgio ou a imitao se d
entre indivduos sem parentesco, embora circunstancialmente prximos, haver de
se dar tambm entre indivduos ligados pela hereditariedade. Aqui, mais uma vez,
cabe frisar que Durkheim no est a sugerir que exista um gene do suicdio. Ao
contrrio, o nexo sangneo visto como acidental, secundrio, at porque o
modus operandi tambm tende a se repetir dentro das famlias, o que ridiculariza
40

qualquer tentao de se achar que o suposto gene suicida sugere at um mtodo. O


principal fator, portanto, continua sendo a imitao, na acepo durkheimiana.

Muitas vezes, nas famlias em que se observam fatos reiterados


de suicdio, estes se reproduzem de maneira quase idntica.
Alm de ocorrerem na mesma idade, so executados da mesma
maneira. Aqui o enforcamento privilegiado, ali a asfixia ou a
queda de lugar alto. Em um caso citado com freqncia, a
semelhana vai ainda mais longe: uma mesma arma serviu a
uma famlia inteira, e com muitos anos de intervalo. Pretendeu-
se ver nessas semelhanas uma prova em favor da
hereditariedade. (ibidem, p. 91).

Durkheim ento insiste na desqualificao (cf. p. 24) do suicdio vesnico,


isto , do suicdio como decorrncia natural da loucura, da alienao mental:

No entanto, se h boas razes para no considerar o suicdio


uma entidade psicolgica distinta, muito mais difcil admitir
que haja uma tendncia ao suicdio por enforcamento ou por
pistola! Esses fatos no demonstrariam antes o quanto grande
a influncia contagiosa exercida sobre o esprito dos
sobreviventes pelos suicdios que j ensangentaram a histria
de sua famlia? Pois preciso que essas lembranas os obsedem
e os persigam para determin-los a reproduzir, com fidelidade
to exata, o ato de seus antecessores. (ibidem, p. 91).

Impossvel no lembrar das palavras de Marx no comeo de O 18


Brumrio de Lus Bonaparte [1852], quando explica que os homens, conquanto
faam sua prpria histria, fazem-na no a seu bel prazer e sim sob as
circunstncias que lhes foram legadas pelo passado. A tradio de todas as
geraes mortas oprime como um pesadelo o crebro dos vivos, escreve. Para
Marx, justamente quando esto ou parecem estar empenhados numa crise
revolucionria, na revoluo de si mesmos e das coisas, os homens conjuram
ansiosamente em seu auxlio os espritos do passado, tomando-lhes emprestado os
nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nesta linguagem
emprestada (p. 327).
A fidelidade familiar s vezes no est nem no modus operandi, mas em
algum outro detalhe do suicdio, numa linguagem emprestada. A atriz Margaux
Hemingway, por exemplo, matou-se com uma superdose do barbitrico Klonopin
aos 41 anos, em 2 de julho de 1996. Trinta e cinco anos antes, exatamente, a 2 de
41

julho de 1961, seu av, o escritor Ernest Hemingway matou-se, a dias do seu 62
aniversrio, disparando sua espingarda de dois canos contra a cabea.
Sobre Hemingway, Hunter S. Thompson escreveu, para a revista National
Observer de 25 de maio de 1964, um texto que terminava com a seguinte frase:
Ento, finalmente, e pelo que ele deve ter achado ser a melhor das razes, ele
terminou tudo com uma espingarda de caa (2004, p. 151). Outras trs pessoas
da famlia do escritor cometeram suicdio: a irm, o irmo e o pai de Ernest.

2.6
Dois casos clssicos: Pavese e Levi

Recorro, neste ponto, a dois casos clssicos de contgio sempre tendo em


mente a acepo durkheimiana do termo posteriores a O suicdio. Ambos dizem
respeito a dois dos maiores escritores italianos do sculo passado ou, mais
especificamente, dois dos maiores escritores piemonteses do sculo passado:
Cesare Pavese e Primo Levi. primeira vista, suas mortes voluntrias, ambas
consumadas em Turim, respectivamente, em 1950 e 1987, se nos afiguram como
expresses isoladas da vida atormentada de homens que ou desde sempre
contemplaram o suicdio (No falta a ningum uma boa razo para o suicdio,
uma das frases de juventude de Pavese) ou perderam a f mesmo sobrevivendo a
uma situao-limite (Levi passou um ano prisioneiro no campo de extermnio de
Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial). Suas mortes, no entanto, tm
antecedentes histricos e pessoais que parecem confirmar as conjecturas de
Durkheim.
Pavese nasceu em Santo Estefano Belbo, a 9 de setembro de 1908. A
impossibilidade de escrever livremente sob o governo de Mussolini (no poder
desde 1922) transformou-o no mais importantes tradutor e divulgador da literatura
americana moderna na Itlia das dcadas de 30 e de 40, sendo o responsvel pela
apresentao a seus compatriotas das obras de, entre outros, Herman Melville,
Ernest Hemingway, William Faulkner, John Steinbeck e Sherwood Anderson.
Passou um ano (1935-1936) desterrado em Brancaleone, na Calbria, por conta de
suas atividades antifascistas. Quando saiu, descobriu que a mulher amada casara-
se com outro. Nos trs anos finais da Segunda Guerra (1942-1945), viveu entre os
partigiani em luta contra os fascistas italianos e os nazistas alemes nas
42

montanhas do Piemonte. Mais tarde, rompeu com o Partido Comunista Italiano e


deprimiu-se com seguidas desiluses amorosas.
A 26 de agosto de 1950, portanto a poucos dias de seus 48 anos e logo
aps haver recebido o prmio Strega, a maior honraria literria da Itlia de seu
tempo, ele ingeriu uma dose fatal de 16 cpsulas de barbitrico no quarto do Hotel
Roma, em Turim. Uma semana antes, na ltima anotao de seus dirios,
publicados postumamente sob o ttulo O ofcio de viver, despediu-se: Sem
palavras. Um ato. No vou escrever mais.
Num artigo sobre Pavese escrito para a Revue des tudes italiennes, em
1966, e posteriormente includa na sua coletnea Por que ler os clssicos, seu
compatriota Italo Calvino relacionou o romance A lua e as fogueiras, publicado
em 1950, com a morte do seu autor. No livro, o narrador sem nome (eu) retorna
dos EUA, aonde foi ganhar a vida, a fim de conhecer e reconhecer sua terra natal
apenas para sentir-se, uma vez mais, excludo. Calvino aponta a excluso como
o tema lrico dominante de Pavese e que, sendo o romance sua obra mais
autobiogrfica, o mais cheio de signos emblemticos:

O pesado fundo fatalista de Pavese ideolgico s como ponto


de chegada. A zona cheia de colinas do Baixo Piemonte onde
ele nasceu (a Langa) famosa no s pelos vinhos e trufas,
mas tambm pelas crises de desespero que golpeiam
endemicamente as famlias camponesas. Pode-se dizer que no
h semana em que os jornais de Turim no noticiem que um
agricultor se enforcou ou se jogou no poo, ou ento (como no
episdio que est no centro desse romance) ps fogo na casa,
dentro da qual estavam ele mesmo, os animais e a famlia.
(CALVINO, 2004, p. 274).

Se Pavese no se matou pelo fogo, mas nasceu numa regio do Piemonte


com alta taxa social de suicdios, seu conterrneo Primo Levi seguiu fielmente a
cartilha familiar. Levi nasceu em Turim mesmo, a 31 de julho de 1919. Apesar de
judeu, conseguiu formar-se em Qumica em 1941, j na quadra final do governo
fascista e anti-semita de Mussolini. Tal qual Pavese, decidiu juntar-se aos
partigiani nas montanhas para combater os alemes que ocuparam o seu pas
quando do colapso do regime do Duce. Foi preso e despachado para Auschwitz,
onde sobreviveu por um ano (1944-1945) graas sua utilidade como qumico.
A experincia despertou-lhe a necessidade de se expressar literariamente
em memrias, romances e poemas. Sua temporada no inferno rendeu, por
43

exemplo, isto um homem? [1947] e o priplo de volta a casa que se seguiu


libertao do campo de extermnio pelo Exrcito Vermelho deu em A trgua
[1963] ambos os livros publicados pela editora Einaudi, na qual trabalhou
Pavese. Toda a famlia de Levi sobreviveu guerra e, por ocasio do suicdio, sua
me, Ester, ainda estava viva, aos 92 anos, embora padecendo de cncer. Ela
estava com uma enfermeira noutra parte do mesmo apartamento quando o escritor
se matou.
Em 11 de abril de 1987, um sbado de Pscoa, aproximadamente s
10h05m, Levi pulou pelo vo da escada do prdio onde residia, no nmero 75 do
Corso Re Umberto, em Turim: trs andares, 15 metros de queda, morte
instantnea ao lado do elevador. Feitos os exames, tomados os depoimentos, s
quase dois meses depois foi declarado oficialmente que Levi se matou. Apesar
disso, e contrariamente ao que aconteceu com Barthes, espalhou-se que o escritor
italiano no cometera suicdio e sim que to-somente cara da escada. Serviam de
argumento a essa corrente a passagem de Levi por Auschwitz17 e a inexistncia de
uma carta de despedida ou algo assim, diferentemente de, por exemplo, Pavese,
que rabiscou suas desculpas na primeira pgina de um exemplar de seu Dilogos
com Leuc.
parte, porm, a depresso relatada em Levi por conta da doena da me;
de sua prpria doena (ele recentemente operara um cncer na prstata); e as
frases de sua mulher, Lucia, ao chegar ao prdio da famlia (Eu temia, todo
mundo temia... Primo estava cansado da vida. Ns fizemos o que podamos para
nunca deix-lo s, nunca. Apenas um momento foi o bastante, citou o jornal
milans Corriere della Sera, que intitulou melodramaticamente sua reportagem
como Esmagado pelo fantasma do campo), h um ponto definitivo a favor da
concluso do laudo da polcia. Em 25 de julho de 1888, seu av paterno, Michele
Levi, se matou pulando de uma janela no terceiro andar de um prdio em Turim.
Tinha 40 anos, contra os 67 de seu neto quando este repetiu seu gesto. Quaisquer
que tenham sido os motivos de Primo, fantasmas do passado ou mazelas do
presente, os de Michele eram bem claros: ele acabara de fugir da cidade de Bene

17
Embora possa soar incongruente sobreviver a Auschwitz ou a outro campo de concentrao para
se matar mais tarde, no so incomuns suicdios nestas circunstncias. Sobreviventes do Holocaus-
to, o psiclogo austraco Bruno Bettelheim (1903-1990) e o poeta romeno Paul Celan (1920-1970)
tambm se mataram.
44

Vagienna, onde morava, depois que o seu banco faliu e enfureceu a populao
local.
No eplogo de sua minuciosa biografia de Primo Levi, publicada em 2002,
o jornalista ingls Ian Thomson buscou repercutir o que a Itlia de 1987 disse
aps o suicdio de um de seus maiores escritores. Ele menciona todas as hipteses
razoveis para a deciso (a doena da me, o prprio sofrimento fsico, a crescente
perda de memria e a explicao romntica, Auschwitz) e tambm algumas das
hipteses desarrazoadas (mania de perseguio, neo-fascistas ameaando-lhe com
armas etc.). Thomson registra como a mais bizarra a do escritor siciliano
Gesualdo Bufalino. Dias antes do suicdio de Levi, a rede estatal RAI exibira tarde
da noite O inquilino [1976], de Roman Polanski, no qual um judeu franco-polons
(o prprio diretor interpreta Trelkovsky) pula para a morte de um terceiro andar
em Paris. Para Bufalino, autor de O disseminador da peste, Levi fora
emocionalmente contagiado pelo filme (citado por Thomson).18
O jornalista recolhe depoimentos que falam de uma depresso ao mesmo
tempo mais arraigada e mais difusa, como os do livreiro Angelo Pezzana (Primo
no se matou por causa da sua me ou de Auschwitz: foi algo profundamente
dentro dele); de Luciana Nissim, amiga de Levi que, como ele, sobreviveu a
Auschwitz (Primo estava fora de si com a desgraa, nenhuma quantidade de
amor de outras pessoas poderiam t-lo salvo); e de Anna Maria, irm caula de
Levi (No foi nada, absolutamente nada). A partir deles, Thomson escreve:

H sempre dois suicdios: o real e o que as pessoas acham que


conhecem. Atravs dos anos, foram feitas estridentes
proclamaes pblicas de que Primo Levi na verdade no se
matou. Subjacentes a essas tentativas de eximi-lo da auto-
assassinato est a crena de que um grande e corajoso homem
no poderia fazer tal coisa. Mas tais homens a fazem, bastante
freqentemente. (THOMSON, 2003, p. 542).19

18
O protagonista do thriller psicolgico de Polanski, por seu turno, aluga o apartamento onde a
antiga inquilina cometeu suicdio e passa a acreditar que o senhorio e os vizinhos numa conspi-
rao aparentada de um filme anterior do cineasta, O beb de Rosemary (1968) querem trans-
form-lo na ocupante anterior. Quando pula, ento, alis, quando pula duas vezes, pois na primeira
quebra apenas a perna, Trelkovsky est vestido de mulher, num toque de humor negro.
19
There are always two suicides the real one, and the one people think they know about. Over
the years strident public claims have been made that Levi did not in fact kill himself. Underlying
these attempts to exonerate him from self-murder is the belief that a great and courageous man
could not have done such a thing. But such men do, often enough.
45

Por fidelidade ao iderio racionalista da imprensa, Thomson no acredita


na existncia de suicdios de caso pensado. O de Levi teria sido, seno a
conseqncia da loucura rasgada, o efeito de uma perturbao psicolgica grave.

Em 1967, Levi escreveu sobre o poeta piemonts Cesare


Pavese: Ningum ainda foi capaz de penetrar na razo e nas
razes do seu suicdio. E o mesmo deve ser dito de Levi. Seu
suicdio foi provocado por sua depresso clnica, que era
composta por uma complexa teia de fatores. (ibidem, p. 543).20

Durkheim imaginava ter descartado a doena mental como explicao


automtica para as mortes voluntrias. Como veremos adiante, esta associao
persiste ainda hoje porque tem razes profundas. Na complexa teia de fatores
mencionada por Thomson, contudo, no haveria espao para uma combinao dos
suicdios tal como tipificados pelo socilogo francs? Porque, ao mesmo tempo
em que se matou devido sua extremada sensibilidade de escritor (egosta), Levi
tambm tirou a prpria vida por experimentar o horror das iminentes perdas de
referncia (anmico), consubstanciadas pela doena fatal da me ou pela sua
prpria. To integrado vida familiar, ele talvez no tolerasse a idia da
separao.

2.7
O nico problema filosfico srio

Se O suicdio, de Durkheim, o livro cannico sobre o tema no mbito da


sociologia, O mito de Ssifo [1942] o seu similar na rea da filosofia. O ponto de
partida de Albert Camus a noo de Absurdo, que permeia todas as suas obras,
ensasticas e ficcionais, como o romance O estrangeiro, publicado no mesmo ano
de O mito de Ssifo e da pea Calgula (os trs absurdos, segundo Camus).
O Absurdo camusiano se manifesta no homem que toma conscincia da
morte e percebe-se livre num universo indiferente. o caso tanto do desptico
imperador romano quando de Meursault, o pied noir que mata um rabe sem saber
por qu. o caso, ainda, do personagem da mitologia greco-romana que, por sua

20
In 1967 Levi had written of the Piedmontese poet Cesare Pavese: Nobody has yet been able to
penetrate the reason and the roots of his suicide. And the same must be said of Levi. His suicide
was provoked by his clinical depression, which was compounded by a complex web of factors.
46

indiscrio, condenado pelos deuses a rolar uma enorme pedra montanha acima
para todo o sempre: cada vez que chega ao topo, ela rola encosta abaixo e ele
recomea o seu trabalho. Tarefa que Ssifo executa conformadamente.
Porque, para Camus, o Absurdo s se completa se o homem no fugir dele,
se matando. Ter conscincia da prpria mortalidade, do Outro, da ausncia de
normas sociais dadas a priori, de significados redentores e da inexistncia de
Deus joga o homem num mundo inteiramente anmico, sem regras ou sentido.
Sua liberdade, porm, se no se reafirma nem pela dissipao hedonista nem pela
recusa a viv-lo e sim pela aceitao responsvel do Absurdo. Talvez no haja
melhor sntese deste paradoxo do que o ttulo de um de seus romances, A morte
feliz, espcie de rascunho para O estrangeiro publicado postumamente, em 1970.
Para fisgar o leitor sem desmerecer a complexidade do tema, Camus abre O mito
de Ssifo com aquele que o mais famoso conjunto de frases sobre o suicdio:

S h um problema filosfico verdadeiramente srio: o


suicdio. Julgar se a vida merece ou no ser vivida, responder
a uma questo fundamental da filosofia. O resto, se o mundo
tem trs dimenses, se o esprito tem nove ou doze categorias,
vem depois. So apenas jogos; primeiro necessrio responder.
E, se verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filsofo,
para ser estimvel, deve dar o exemplo, avalia-se a importncia
desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo. So
evidncias sensveis ao corao, mas preciso aprofund-las
para as tornar clara ao esprito. (CAMUS, s/d, p. 13).

Com estas palavras, Camus de certa forma concorda com Durkheim, que
dedicou ao suicdio o melhor de seus esforos para estabelecer a sociologia como
uma rea autnoma do conhecimento21: no existe, para ambos, assunto mais
urgente. Quase meio sculo depois da publicao de O suicdio, ento, Camus
empreende a sua prpria investigao sobre a morte voluntria, sempre tendo
como referncia seus vnculos ao Absurdo. Aborda o suicdio filosfico; v em
Don Juan o exemplo do homem absurdo; evoca Kirilov, de Os possessos, de

21
Nem todos concordam com isso. Para Nisbet, por exemplo, o primeiro trabalho genuinamente
de sociologia do sculo (XIX) As classes trabalhadoras europias, de Frdric Le Play, publi-
cado em 1869: O suicdio, de Durkheim, comumente encarado como o primeiro trabalho cien-
tfico na sociologia, mas em nada diminui o seu feito observar que foi nos estudos de Le Play
sobre tipos de famlia e comunidade na Europa que se encontrou bem mais cedo (...) um trabalho
que combina observao emprica e inferncia crucial e faz-lo reconhecidamente dentro dos
critrios da cincia. (op. cit; p. 61)
47

Dostoivski, engenheiro que se mata proclamando: Matar-me-ei para afirmar a


minha insubordinao, a minha nova e terrvel liberdade.
Por fim, o filsofo francs retorna ao personagem mitolgico que batiza
seu ensaio para, depois de admitir as razes do suicdio, numa reviravolta abrupta,
sentir a necessidade de uma concluso encorajadora: A prpria luta para atingir
os pncaros basta para encher um corao de homem. preciso imaginar Ssifo
feliz (p. 152). Aqui pode-se, mais uma vez, pensar em Durkheim, prescrevendo
um objetivo externo ao homem para tornar a sua vida suportvel. Barthes, numa
polmica22 travada com Camus em 1955 por ocasio de uma reedio de A peste
[1947], no perdoou-lhe a artificialidade da soluo deus ex machina: Assim
como em O mito de Ssifo, do mesmo Camus, o ponto extremo da lucidez coincide
com o ponto inicial da salvao da alma (terrestre) (BARTHES, 2005, p. 50).
Antes de imaginar Ssifo feliz, porm, num captulo intitulado A
liberdade absurda, Camus poeticamente antagoniza a integrao ao mundo
mais at do que sociedade e a experincia absurda da solido combustvel
para idias e atos suicidas. Ele diz, em outras palavras, que a fuso no coletivo
vacina contra a morte voluntria e, a, novamente, concorda com Durkheim.

Se eu fosse rvore entre rvores, gato entre os animais, esta


vida teria um sentido, ou melhor, este problema no o teria,
porque eu faria parte deste mundo. Seria este mundo ao qual
agora me oponho com toda a minha conscincia e toda minha
exigncia de familiaridade. Esta razo to irrisria que me
ope a toda a criao. No posso neg-la com um risco da
minha pena. (ibidem, p. 67).

A aceitao do Absurdo fez de Camus um desconfiado at mesmo do


termo existencialista, sob o qual sempre foi colocado, junto sobretudo com seu
ex-amigo Jean-Paul Sartre. A filosofia existencialista reteve este nome porque
defendia, diferentemente da tradio metafsica ocidental, que a existncia
precede a essncia, ou seja, que o homem no nasce bom ou mau, mas apenas
seus atos do um sentido sua existncia. Embora tanto Sartre quanto Camus

22
O pano de fundo da polmica entre um Camus j consagrado e um Barthes ainda em busca de
afirmao no muito lisonjeiro para com o segundo: o autor de A peste acabara de sair do Partido
Comunista Francs e o que viria a escrever Fragmentos de um discurso amoroso fazia, ainda ine-
briado pelas certezas do centralismo democrtico, o papel de patrulheiro ideolgico. A brasileira
Leila Perrone-Moiss, aluna e amiga de Barthes, diz, na apresentao de Inditos vol. 4 Poltica
(2005, XII), que, em sua maturidade, ele se envergonhava do episdio.
48

enfatizassem a responsabilidade decorrente dessa liberdade, o primeiro, at por


seu credo comunista, enxergava um sentido na vida enquanto o segundo, at cedo
ter-se desiludido com os regimes autoritrios de esquerda, no fazia f em
nenhuma transcendncia. Da o seu absurdismo ser uma radicalizao do
existencialismo.
Dcadas depois, do outro lado do Atlntico, suas idias podem ser
entreouvidas em algumas declaraes de Woody Allen, cujas comdias agridoces
no ocultam um pesado pessimismo. No livro de entrevistas Woody Allen on
Woody Allen [1993], ele declarou a Stig Bjrkman que os temas existenciais so
os nicos vlidos de se lidar. Soa como s h um problema filosfico
verdadeiramente srio. Mais adiante, ainda falando do filme Crimes e pecados23,
Allen afirma: Eu penso que na melhor das hipteses o universo indiferente. Na
melhor! Hannah Arendt falou da banalidade do mal. O universo banal tambm.
E por ser banal, mau. No diabolicamente mau. mau em sua banalidade (p.
225).
Se Camus defendia a aceitao do Absurdo, dois quase desconhecidos
compatriotas seus pretenderam, num livro polmico, ajudar o leitor da fugir desse
enfrentamento. Em Suicdio Modo de usar [1982], Claude Guillon e Yves Le
Bonniec no se restringiram a discutir e defender o direito morte voluntria:
foram alm, fornecendo uma lista de remdios comuns, disponveis nas farmcias
(inclusive as brasileiras, segundo as orientaes do editor local24), e em quais
dosagens eles garantiriam uma morte em paz. Reclamando um carter
revolucionrio para o ato, os autores chegavam a recomendar esta ou aquela
soluo. O sonfero no-barbitrico Mandrax, por exemplo, no era aconselhado
mesmo se tomadas 20 cpsulas de 250 miligramas. J o barbitrico Nembutal era
considerado confivel por ter um efeito rpido se consumidos 100 comprimidos
de 100 miligramas. Defensores da racionalidade do suicdio e da individualidade
do suicida, eles rechaavam a idia de que ele poderia advir da imitao social.

23
Segundo Allen, no mesmo livro (p. 209), o personagem do filme chamado Louis Levy, um fil-
sofo que se suicida, no foi inspirado em Primo Levi.
24
Quando o livro foi publicado no Brasil, dois anos depois, reportagem na primeira pgina do
Segundo Caderno, do jornal O Globo, assinada por Sheila Kaplan, citava, sem maiores detalhes,
a estatstica brasileira de suicdios como a oitava mais alta do mundo, segundo a Organizao
Mundial da Sade: 17 casos em 100 mil pessoas.
49

O suicdio se espalha como a peste, as doenas da alma matam


de modo to certeiro como as outras. A idia de contgio
simples, tranqilizante, permite visualizar um fenmeno que
seria inexplicvel de outra maneira. Alm disso, cientfica.
Na verdade, a medicina, at hoje, sabe muito pouca coisa dos
mecanismos que ela, por comodismo, rene num mesmo
conceito de contgio. As doenas mais temidas, para no dizer
as mais temveis, como a sfilis, no se transmitem
automaticamente. A noo de portador sadio relativiza
tambm a parte da fatalidade ligada ao conceito. O portador
sadio veicula o vrus, transmite-o eventualmente, sem sofrer
nenhuma perturbao. Cada um de ns portador de uma
doena ou de centenas delas. Na realidade, a noo de portador
sadio contradiz largamente a representao corrente da doena.
Ela vem primeiramente preencher o vazio de um raciocnio
cientfico incapaz de descrever e muito mais ainda de explicar a
doena. (GUILLON e BONNIEC, 1984, p. 22).

Guillon e Le Bonniec escreviam antes da exploso da Aids. Depois dela,


para explicar o comportamento anmalo do vrus HIV, a medicina mais uma vez
recorreu idia do portador sadio: a doena s seria despertada ou se ele no
recebesse tratamento preventivo ou se ele mantivesse comportamentos de risco,
como sexo desprotegido, vida sexual promscua ou seringas compartilhadas. Com
a navalha entre os dentes, o soropositivo Cazuza cantou o meu prazer/ agora
risco de vida/ meu sex and drugs no tem nenhum rocknroll/ vou pagar a conta
do analista/ Pra nunca mais ter que saber quem sou eu em Ideologia [1988].
Protestava ironicamente porque a cincia se comportava quase como se o
problema com o HIV no fosse a sua existncia e a sua letalidade, mas a moral do
portador. Este teria uma cota de risco; se a ultrapassasse, estaria morto.
3
Suicdio e imprensa

Em defesa do tipo muito particular de contgio ou imitao de que nos fala


Durkheim, pode ser dito que no se trata nem de algo inescapvel nem de algo
livre de ambigidade. Isto por mais que seu apreo s palavras o faa sacar
definies de dentro de definies. Em O suicdio, no mesmo pargrafo em que o
socilogo francs admite que talvez no haja nenhum fenmeno mais facilmente
contagioso, ele tenta distinguir entre epidemias morais e contgios morais nos
seguintes termos: A epidemia um fato social, produto de causas sociais; o
contgio sempre consiste de ricochetes, mais ou menos repetidos, de fatos
individuais (p. 142). Ora, se ele o primeiro a afirmar que tudo o que est acima
do fisiolgico social, no seriam sociais mesmo os fatos individuais? Sua
distino, portanto, mesmo etiolgica, uma questo estatstica.
As epidemias seriam observadas quando existisse, no meio social, uma
disposio coletiva para a morte voluntria. Durkheim cita, ento, o caso dos
incas e maias que, diante do avano dos espanhis, teriam cometido tantos
suicdios que apenas a minoria deles morreu pela espada do invasor europeu.
Poderamos acrescentar que o mesmo valeria, por exemplo, para os 960 judeus
que preferiram se matar em Massada do que cair nas mos dos romanos em 73
d.C. ou para os 912 seguidores do reverendo Jim Jones que se suicidaram na
Guiana em 1978. Embora o sentimento de religiosidade ou melhor, a piedade,
no sentido empregado por Simmel paire sobre os casos mencionados, todos eles
se relacionam tambm a questes terrenas, invases e/ou desmantelamentos.
Logo, se enquadrariam tanto no suicdio de tipo altrusta quanto no de tipo
anmico. O prprio Durkheim admitia a ocorrncia de tipos hbridos, compostos
dois a dois.
J os ricochetes, mais ou menos repetidos, de fatos individuais seriam
observados em casos como os de Cesare Pavese e de Primo Levi. Embora
encharcados de motivaes pessoais, a rigor insondveis, ambos se mataram tendo
51

como modelo ou uma predisposio coletiva ou um acontecimento familiar, o que,


mais uma vez, vincula o suicdio a um fenmeno social, tornando-se casos
exemplares. Disso, Durkheim no tem dvidas, posto que escreve,
involuntariamente ressaltando o carter genrico de sua distino entre epidemia e
contgio morais:

Do fato de que o suicdio possa transmitir-se de indivduo a


indivduo no se segue a priori que essa contagiosidade
produza efeitos sociais, ou seja, que ela afete a taxa social de
suicdio, nico fenmeno que estudamos. Por mais
incontestvel que ela seja, bem possvel que tenha apenas
conseqncias individuais e espordicas. As equaes
precedentes, portanto, no resolvem o problema, mas mostram
melhor seu alcance. Se, com efeito, a imitao , como se disse,
uma fonte original e particularmente fecunda de fenmenos
sociais, principalmente quanto ao suicdio que ela deve dar
provas de seu poder, pois no h outro fato social sobre o qual
ela tenha maior domnio. Assim, o suicdio ir nos oferecer um
meio de verificar por meio de uma experincia decisiva a
realidade da virtude maravilhosa que se atribui imitao.
(DURKHEIM, 2000, p. 143).

a partir deste ponto que Durkheim aborda o possvel mas no


provvel, ao menos de seu ponto de vista papel da imprensa. Afinal, sendo ela
tanto um meio de comunicao social como tambm um meio de comunicao
entre os indivduos que a compem, seria lcito vislumbrar-lhe alguma
importncia na transmisso da idia da morte voluntria. Como trabalha em cima
de tabelas de dados da contabilidade social, ele pensa na distribuio espacial
quando escreve no pode haver imitao se no h um modelo a ser imitado; no
h contgio sem um foco do qual emane e no qual, por conseguinte, ele tenha seu
mximo de intensidade (p. 144). No entanto, se a idia de contgio pode ser
tomada de emprstimo da medicina, as suas palavras tambm podem ser tomadas
como metfora, incluindo-se, entre os centros de irradiao, os jornais.
Mesmo Durkheim pensa que o contgio no interior da sociedade
sobretudo aquela sua parcela mais comprimida em grandes aglomeraes
populacionais, justamente aquelas em que seus cruzamentos de dados indicam a
maior incidncia de suicdios poderia se dar ou pelo boca-a-boca ou pelos
jornais. Antes de mencionar esta questo, porm, ele busca, mais uma vez, isentar
a imitao per se da acusao de ser a causa isolada de certo nmero de suicdios.
52

Ele trabalha com a noo de tendncia. Porque, destaca, um indivduo no se


decide pela morte voluntria a menos que j seja predisposto a ela. O mesmo se
pode dizer dos fatos de contgio to freqentemente observados no exrcito ou
nas prises, escreve pgina 159. Para Durkheim, tais fatos so facilmente
explicveis se reconhecermos que a propenso ao suicdio pode ser criada pelo
meio social. , ento, em cima de indivduos j propensos a se matar que a
imprensa agiria. Embora registre a sua freqente responsabilizao, por serem os
jornais, de fato, um poderoso instrumento de difuso e admita que o problema
merea alguma ateno, Durkheim se julga incapaz de constatar na prtica tal
correlao.

Alguns autores, atribuindo imitao um poder que ela no


tem, solicitaram que fosse proibida a reproduo dos suicdios e
dos crimes em jornais. possvel que essa proibio consiga
reduzir em algumas unidades o montante anual desses
diferentes atos. Mas muito duvidoso que ela possa modificar
sua taxa social. A intensidade da propenso coletiva
permaneceria a mesma, pois o estado moral dos grupos nem por
isso se modificaria. (ibidem, p. 159).

Pouco adiante, ele levanta uma hiptese que reputo de extrema


importncia para o presente trabalho: o problema no estaria em se falar do
suicdio, mas na modo pelo qual se escolhe falar dele seria isto, a retrica, a
linguagem emprestada, que criaria ou no um ambiente propcio ao contgio
interpessoal.

Na realidade, o que pode contribuir para o desenvolvimento do


suicdio ou do assassnio no o fato de se falar nele, mas a
maneira pela qual se fala. Onde essas prticas so abominadas,
os sentimentos que despertam traduzem-se atravs dos relatos
que se fazem delas e, por conseguinte, neutralizam mais do que
excitam as predisposies individuais. (ibidem, p. 160).

Esta sua afirmao se afina com a de Van Dijk sobre a veiculao, nos
textos jornalsticos, de conceitos ou proposies inferidos do senso comum25: ou
seja, no s os temas abordados ou descartados mas tambm a linguagem utilizada
pela imprensa reflete, pelo fortalecimento das normas, a compreenso que a

25
Cf. p. 22-23.
53

sociedade na qual ela se insere ou a fatia de pblico ao qual ela se dirige tem do
assunto. H momentos excepcionais, porm, em que a imprensa pode elevar, ou
ao menos acelerar, a taxa social de suicdios numa determinada comunidade,
contribuindo para o clima geral de anomia. Mesmo neles, porm, ela no criaria
suicidas: excitaria indivduos por suas prprias razes j propensos a se matar.

3.1
A Golden Gate

A reportagem que Tad Friend publicou na revista New Yorker de 13 de


outubro de 2003, sobre as pessoas que pulam da Golden Gate, entre So Francisco
e o Condado de Marin, na Califrnia, reveladora. A ponte se tornou um dos
principais pontos tursticos dos EUA e um verdadeiro m para suicidas, atrados
pelo simbolismo que marca um final de mundo/comeo de outro. Apesar disso,
relata Friend, h uma estranha recusa das autoridades locais de instalarem telas de
proteo no ponto em que as pessoas se jogam. Outros lugares que funcionavam
como trampolins para a morte do Empire State Building, em Nova York,
Baslica de So Pedro, no Vaticano instalaram barreiras. A Golden Gate, no.
Com a desculpa oficial de que uma tela descaracterizaria a sua arquitetura.
Em ...Or not to be A collection of suicide notes [1997], Mark Etkind
preenche boa parte de um captulo, dedicado aos suicdios cometidos em pblico,
com bilhetes deixados por gente que pulou da Golden Gate. Um deles destaca de
forma dramtica a omisso das autoridades locais diante do problema. Deixado
por um homem de 70 anos que ali se matou, ela pergunta: Por que eles facilitam
tanto para o suicdio? Arame farpado teria salvado um bocado de vidas (p. 60).
A atrao mrbida da Golden Gate parece exercer sua fora mesmo bem
distante da Baa de So Francisco. Em 1977, durante uma manifestao a favor da
instalao de barreiras anti-suicdio, falando a seus fiis, um pastor descreveu a
ponte como um smbolo humano de ingenuidade, gnio tecnolgico e fracasso
social. Apenas por estar ali, ele disse, j se sentia tentado ao suicdio. Seu nome
era Jim Jones. No ano seguinte, ele liderou o suicdio de outras 912 pessoas na
colnia de sua seita, a Templo do Povo, que fundou Jonestown, segundo ele um
paraso cristo-marxista, na Guiana.
54

Antes, Jones havia andado por Minas Gerais atrs de um refgio contra a
hecatombe nuclear que o obsedava. Ele se dizia a reencarnao de Jesus Cristo e
de vez em quando testava a obedincia dos seguidores com ensaios de suicdios
coletivos. Em novembro de 1978, na pista de pouso da colnia, seus capangas
assassinaram a tiros um deputado americano que havia ido a Jonestown verificar
denncias de abusos sexuais e escravido. Antevendo a reao do governo
americano e o desbaratamento da seita Templo do Povo, Jones decidiu antecip-lo
de forma radical pela auto-imolao coletiva. Seus aclitos tomaram um coquetel
de refresco e cianureto. Ele prprio matou-se com um tiro no rosto.
Friend, em sua reportagem, fala de Marissa Imrie26, uma estudiosa
adolescente de 14 anos que, no dia 17 de dezembro de 2001, saiu de Santa Rosa
(quase 100 quilmetros ao norte) de txi (numa corrida de US$ 150) para, da
ponte, pular nas guas geladas e cheias de correntes da Baa de So Francisco, 67
metros e quatro segundos abaixo. Quando, depois do salto de Marissa, Rene
Milligan examinou o computador de sua filha, descobriu que ela andara visitando
um site com dicas para aqueles que desejavam se matar, baseado no best-seller
Suicide and attempted suicide: methods and consequences [1999], de Geo
Stone27.
O site desaconselhava tomar veneno (fatal em apenas 15% dos casos) e
cortar os pulsos (meros 5% de eficcia) e recomendava pular de pontes (saltar de
mais de 80 metros sobre a gua quase sempre fatal). Nele, Renne encontrou a
seguinte frase: A ponte Golden Gate para os suicidas o que as Cataratas do
Niagara so para as pessoas em lua-de-mel. Em nome de Marissa, ela entrou com
uma ao contra a repartio pblica que cuida da Golden Gate e os
administradores da ponte, pedindo a construo de uma barreira. pouco
provvel que tenha sucesso: anteriormente, trs aes similares foram rejeitadas.
Neste contexto, segundo Friend, conforme a contagem de puladores se
aproximava do nmero 500, em 1973, os jornais locais San Francisco Chronicle e
San Francisco Examiner iniciaram uma contagem regressiva. Quatorze aspirantes
ao ttulo foram impedidos de saltar para a morte no Oceano Pacfico pela polcia.

26
Em seu bilhete de despedida, ela escreveu: Por favor, perdoem-me. No se fechem ao mundo.
Todo mundo est melhor sem esta garota gorda, desagradvel e chata. Sigam em frente.
27
O livro hoje encontra-se esgotado na Amazon.com. A loja virtual, no entanto, indica que h qua-
tro exemplares usados venda, por preos que variam de US$ 999 a US$ 2.475.
55

Um deles, bem pouco discreto, trazia pendurado no pescoo um papelo com o


nmero 500 escrito a giz. O vencedor do macabro torneio, que ironicamente
escapou do registro das cmeras e dos braos dos policiais, foi um hippie que
havia tomado LSD. Em seu bilhete de despedida, coletado por Etkind, ele pedia:
No avisem minha me. Ela cardaca.
Em 1995, o placar j se aproximava de 1.000 mortes quando um locutor de
rdio de So Francisco chegou a anunciar que mandaria um carregamento de
refrigerantes para a famlia do milsimo suicida. Em junho daquele ano, a fim de
tentar inibir a corrida ponte, a policia rodoviria da Califrnia parou de
contabilizar os mortos quando eles j somavam 997. No comeo de julho, Eric
Atinkson, de 25 anos, tornou-se no-oficialmente o milsimo suicida: foi visto
pulando, mas seu corpo nunca foi achado. Apenas 1% dos saltadores sobreviveu,
com seqelas fsicas que de fato tornam a morte uma opo mais razovel que a
vida.

Ken Holmes, o coroner28 do Condado de Marin, contou-me:


Quando o nmero se aproximou dos 850, ns fomos aos
jornais locais e dissemos Vocs tm de parar de dar nmeros.
Durante a ltima dcada, os Centros para Controle e Preveno
de Doena e a Associao Americana de Suicidologia
divulgaram recomendaes apelando mdia para ela
minimizar os suicdios. A mdia da rea da Baa de So
Francisco agora noticia saltos da ponte normalmente apenas se
eles envolvem uma celebridade29 ou se congestionam o trnsito.
Ns os desacostumamos, disse Holmes. Mas ele acrescentou,
a falta de publicidade de modo algum reduziu o nmero de
suicdios. (FRIEND, 2003, p. 54).30

28
No existe sinnimo para esta palavra em portugus: o coroner uma espcie de promotor p-
blico encarregado de investigar as mortes violentas, bruscas ou incomuns antinaturais.
29
Em 1995, um dos que se matou na ponte e teve seu salto noticiado foi Duane Garrett, arrecada-
dor de fundos para o Partido Democrata e amigo do ex-vice-presidente Al Gore. Dois anos antes,
outro suicida ilustre da Golden Gate foi Roy Raymond, fundador da cadeia de lojas de lingerie
Victorias Secret.
30
Ken Holmes, the Marin County coroner, told me, When the number got to around eight hun-
dred and fifty, we went to the local papers and said, Youve got to stop reporting numbers. Wi-
thin the last decade, the Centers for Disease Control and Prevention and the American Association
of Suicidology have also issued guidelines urging the media to downplay the suidices. The Bay
Area media now usually report bridge jumps only if they involve a celebrity or tie up traffic. We
weaned them, Holmes said. But, he added, the lack of publicity hasnt reduced the numbers of
suicides at all.
56

Uma constante observada por Durkheim em seu estudo, por sinal, a de


que todas as taxas sociais nacionais de suicdio sobem lenta mas regularmente. A
Golden Gate foi inaugurada em 1937. Passaram-se trs meses at que a primeira
pessoa saltasse31. Passaram-se 36 anos at que o nmero de suicdios chegasse a
500, em 1973. Passaram-se apenas 22 anos, no entanto, at que o nmero de
suicdios chegasse ao nmero 1.000, em 1995. A populao de So Francisco,
ressaltado o fato de que, como foi dito, pessoas de outras partes da Califrnia e
dos EUA foram saltar da ponte, no havendo, portanto, correlao direta,
experimentou um crescimento bem mais suave no mesmo perodo: era de 634 mil
habitantes em 1940, de 715 mil habitantes em 1970 e de 776 mil habitantes em
2000, segundo os dados oficiais do Censo americano.

3.2
Gutenberg quebra o monoplio dos monges copistas

A relao da imprensa com o suicdios, claro, precede em muito a


construo da Golden Gate. De certa forma remonta prpria inveno da
tipografia por Johannes Gutenberg, provavelmente em Estrasburgo, hoje na
Frana, por volta de 1440.32 Embora o alemo logo tenha posto os seus tipos
mveis de metal a servio da f, imprimindo suas famosas 180 Bblias de 42
linhas compostas por pgina, involuntariamente tambm abriu caminho para a
publicao de livros que fizeram circular as vises greco-romanas sobre, entre
outras coisas, a morte voluntria sem falar na publicao de jornais, que um dia
ampliariam o boca-a-boca da comunidade, relatando (ou no) casos de suicdios.
As vises clssicas eram bem distintas daquelas que, aps a converso do
Imprio Romano ao cristianismo, no incio do sculo IV, haviam sido
progressivamente fixadas pela Igreja em obras como, por exemplo, a Cidade de
Deus, de Santo Agostinho (354-430), finalizado em 426, e a Suma teolgica, de
So Toms de Aquino (1225-1274), finalizada em 1273. Os escolsticos
buscavam, ao conciliar f e razo, interpretar a ambigidade do Quinto
Mandamento da Lei Mosaica, que diz no matars, mas no no matars nem a

31
Hoje, em mdia, uma pessoa pula a cada duas semanas.
32
O tipo mvel j havia aparecido em madeira e argila na China, no sculo XI, e em cobre na Co-
ria, no sculo XIV. No existe conexo comprovada entre Gutenberg e seus colegas orientais.
57

si mesmo. De tal forma assim que os suicdios mencionados pela Bblia no


so, nas palavras de George Minois, jamais acompanhados de uma reprovao
explcita como dos assassinatos de outrem (1995, p. 33)33. Quando Gutenberg
imprimiu a Bblia no sculo XV, portanto, valia o interdito que vigora at hoje.
Para Santo Agostinho, formulador da doutrina rigorista que tornar-se-ia a
oficial da Igreja Catlica, os que eram culpados de sua morte no teriam acesso
vida eterna. Para So Toms de Aquino, o suicdio era proibido por trs razes
lgicas e complementares: ele um atentado contra a natureza e a caridade, pois
contradiz a inclinao natural vida e ao amor prprio; ele um atentado contra a
sociedade, porque ns temos um papel a desempenhar dentro de nossa
comunidade; e, por fim, ele um atentado contra Deus, proprietrio de nossa vida.
Para Minois, esta comparao usada por So Toms de Aquino reveladora de
sua concepo: Aquele que se priva da vida peca contra Deus da mesma maneira
que aquele que mata um escravo peca contra o proprietrio do escravo.34 Toda
esta argumentao buscava dar um sentido vida, resgatando-lhe do absurdo.
Paralelamente s formulaes tericas dos santos-filsofos, tomavam-se
medidas prticas, atravs do direito cannico, na tentativa de inibir aquilo que at
os anos 1700 era conhecido no por suicdio e sim por assassinato de si mesmo.
Na Inglaterra, o Conclio de Hertford proibiu funerais cristos aos suicidas no
sculo VII. No final do sculo X, o pio rei Edgar (959-975), principal
patrocinador de importante reforma monstica, confirmou esta disposio. Do
outro lado do Canal da Mancha, na Frana, embora a proibio do enterro de
corpos de suicidas nos campos santos remonte ao sculo anterior, a primeira prova
escrita dela s aparece no Snodo de Nmes, em 1284, que recusava a inumao
religiosa aos excomungados, aos hereges e queles que se matavam, sem nenhuma
exceo, a menos que o morto tenha dado alguma sinal de se arrepender in
extremis.
A penitncia exerce um papel fundamental tambm na preveno do
suicdio na Idade Mdia. Segundo o senso comum, alimentado pela Igreja, havia
apenas duas explicaes para uma pessoa desejar a prpria morte a ponto de ir ao

33
Minois lembra, entre outros, o suicdio de Saul, que se trespassa com uma espada ao fim de uma
batalha perdida contra os filisteus. O livro de Samuel diz simplesmente: Saul pegou a espada e se
atirou sobre ela.
34
Citados por Minois em Histoire du suicide, pginas 38 e 44-45.
58

seu encontro: loucura ou possesso. No primeiro caso, no havia muito a fazer,


exceto, por vezes, absolver o infeliz ou eximir sua famlia de qualquer culpa ou
cobrana. No segundo caso, porm, o suicida desprezava o poder conferido
Igreja de, pela prescrio de uma penitncia, fazer cessar seu desespero. Ao agir
assim, colocava em xeque a prpria autoridade eclesistica. S podia estar tomado
pelo Diabo. Recusava-se a possibilidade de algum se matar por outra causa.

impressionante constatar que os suicdios por simples


desgosto da vida so enquadrados nos casos de loucura, como
declara explicitamente Bracton no seu tratado. O homem
medieval no imagina que se possa pr em dvida a prpria
bondade da existncia. A Idade Mdia exclui a possibilidade
daquilo que no sculo XVIII chamaremos de suicdio
filosfico. ento inconcebvel que um ser so de esprito
pudesse considerar a sangue-frio que a vida no valia a pena ser
vivida. O simples fato de o considerar sem razo particular em
si sintoma de loucura, do desequilbrio mental que se comea a
chamar de melancolia. O termo, oriundo do grego e
significando humor negro, designa uma afeco fsica, um
excesso de bile negra obscurecendo o crebro e suscitando
pensamentos sombrios. Brunetto Latini um dos primeiros a
empreg-lo na Idade Mdia, em torno de 1265. (MINOIS, 1995,
p. 51)35

Latini ocupa apenas uma linha de Saturno nos trpicos A melancolia


europia chega ao Brasil, de Moacyr Scliar. mencionado como um dos autores
que ajudou a povoar os bestirios medievais (com a mantcora), eles mesmos,
porm, expresses da angstia do homem com o desconhecido mundo que
habitava, fonte, por sua vez, do sentimento definido como melancolia. De resto, a
histria que Scliar conta compatvel com a de Minois. Inclusive pela
importncia que ambos depositam na publicao do caudaloso A anatomia da
melancolia, pelo ingls Robert Burton, bem mais tarde, em 1621.

35
Il est frappant de constater que les suicides par simple dgot de la vie son rangs dans le cas de
folie, comme le dclare explicitement Bracton dans son trait. Lhomme mdival nimagine pas
que lon puisse remettre en cause la bont de lexistence mme. Le Moyen Age exclut la possibili-
t de ce quon appellera au XVIIIe sicle le suicide philosophique. Il est alors inconcevable
quun tre sain desprit puisse considrer de sang-froid que la vie ne vaut pas la peine dtre vcue.
Le simple fait de lenvisager sans raison particulire est en soi un symptme de folie, de dsquili-
bre mental que lon commence appeler mlancolie. Le terme, issu du grec et signifiant hu-
meur noire, dsigne une affection physique, un excs de bile noire obscurcissant le cerveau et
suscitant de sombres penses. Brunetto Latini est um des premiers lemployer ao Moyen Age,
vers 1265.
59

Scliar relaciona a publicao do livro com a chegada a Messina, na Siclia,


em 1347 ou 1348, ou seja, quase dois sculos antes, de uma frota genovesa que
inadvertidamente trouxe do Oriente a Peste Negra. Dali em diante, a doena
ceifaria um tero da populao europia. At a publicao de Burton, Londres
esteve livre da Peste Negra por apenas doze anos. Por isso, a emergncia de
doena to letal levou Europa uma nova conscincia da fragilidade e da finitude
da vida humana justamente num momento em que a Renascena inflava a
esperana no conhecimento. Estabeleceu-se, desta forma, um distrbio bipolar
continental.
Entre tantas e tantas obras representativas do perodo, Scliar menciona
Biothanatos A declaration of that paradoxe, or thesis, that self-homicide is not
so naturally sinne, that it may never be otherwise, do poeta John Donne:

Nele, Donne sustenta a tese de que o auto-homicdio, ou seja, o


suicdio, no por natureza um pecado, no que se ope
frontalmente a Toms de Aquino. Biothanatos foi publicado
apenas alguns anos depois de A anatomia da melancolia, o que
significativo: o estudo da melancolia conduziria
inevitavelmente questo do suicdio, a nica questo
filosfica verdadeiramente importante, no dizer de Camus. E,
como na abordagem da melancolia, temos duas possibilidades.
De um lado, o suicdio seria visto como um crime contra a
religio, um pecado terrvel, com a figura de Judas vindo de
imediato mente. Essa era a posio, digamos, oficial. (...)
Mas, por outro lado, o suicdio poderia ser encarado, pelos
intelectuais, como uma conseqncia at certo ponto previsvel
da situao de misria moral e desespero resultante da tristeza.
(SCLIAR, 2003, p. 38-39).

Minois chama a ateno para o fato de que Donne no era apenas um


poeta: era, alm disso, capelo anglicano da corte da Inglaterra, doutor em
Teologia por Cambridge e professor na maior escola de Direito da Londres da
poca, a Lincolns Inn. O autor francs assinala, ainda, que o seu livro foi redigido
por volta de 1610, ou seja, antes do livro de Robert Burton. Longe de invalidar a
tese de Scliar, da complementaridade entre melancolia e suicdio, tal circunstncia
apenas refora a simultaneidade do novo mal-estar. Enquanto esteve vivo, Donne
foi consciente do gesto audacioso, ainda mais para algum de sua posio: fez o
livro circular em pouqussimas cpias e apenas entre amigos e discpulos. Para um
60

deles escreveu a prudente dedicatria: Escrito por Jack Donne e no pelo doutor
Donne. O livro foi impresso apenas em 1647, dezesseis anos aps sua morte.

3.3
As vises gregas e romanas sobre o suicdio

Gutenberg, como se v, abriu Renascena e posteridade um mundo novo


que, se no exatamente admirvel, permite uma circulao de idias indita na
Idade Mdia. Crculos cada vez mais numerosos de leitores mais numerosos seja
pelas tiragens crescentes dos livros, seja pela melhoria na educao, seja, em
breve, pelo aumento de circulao de jornais tero disposio textos que
escapam do modelo cultivado pelas elites medievais. Antes mesmo de Burton ou
de Donne, antes mesmo de Thomas More (Utopia, 1516) ou de Michel de
Montaigne (A propsito de um costume na Ilha de Ceos, um de seus clebres
Ensaios, de 1580), dois autores modernos que ousaram se debruar sobre o tema
sem preconceitos religiosos ou de classe, vises bem menos intolerantes sobre a
morte voluntria comearam a circular graas impresso de clssicos gregos e
romanos.

(...) a literatura, que exprime os sonhos, as aspiraes, os


receios, os valores mais respeitados na elite intelectual. Esta
elite, porm, se amplia na Renascena com a revoluo da
tipografia. As obras no so mais confinadas a um pblico de
clrigos para os tratados em latim ou a um auditrio de
cavaleiros para as canes de gesta e os romances cortesos. A
cultura escrita se abre a uma nova parcela burguesa e pequena
nobreza, que ao mesmo tempo fornece autores e leitores. Os
livros, muito mais numerosos, refletem os sentimentos de uma
camada mais importante da populao. Sobretudo o
desenvolvimento do teatro permite tocar um pblico maior e
difundir junto aos iletrados os ideais da elite. (MINOIS, 1995,
p. 79-80)36

36
(...) Est la littrature, qui exprime les rves, les aspirations, les craintes, les valeus les plus res-
pectes dans llite intellectuelle. Or cette lite slargit la Renaissance avec la rvolution de
limprimerie. Les oeuvres ne sont plus confines un public de clercs pour les traits em latin, ou
un auditoire de chevaliers pour les chansons de geste et les romans courtois. La culture crite
souvre une nouvelle frange bourgeoise et la petite noblesse, qui fournissent la fois auteurs et
lecteurs. Les livres, beaucoup plus nombreux, refltent les sentiments dune couche plus important
de la population. Surtout, lessor du thtre permet de toucher un public trs large, et de diffuser
auprs des illettrs les idaux de llite.
61

Nomes como Pitgoras, Digenes, Demcrito, Scrates, Cato, Lucrcia,


Brutus, Sneca, Antnio e Clepatra, entre inmeros outros, que se mataram por
sentimentos to distintos quanto patriotismo e remorso, honra ultrajada e
indiferena, amor e razo, voltam a circular envoltos em admirao e no mais
no pavor e no dio devotados aos suicidas na Idade Mdia. Surgem, compilados
por autores contemporneos, at mesmo dicionrios biogrficos de suicidas
clebres37. Particularmente notvel entre eles o de Ravisius Textor, cujo
Officina, publicado em Paris no ano de 1520, coleta 150 casos clssicos e, no
contente de os relatar, freqentemente os elogia. Meio sculo mais tarde, dentro
do mesmo esprito, Thodore Zwinger retoma e completa a lista de Ravisius no
seu Theatrum vitae humanae. A inteno de livros como estes provavelmente no
era a de sabotar a moral crist e sim apenas elogiar gestos encarados como
hericos num tempo em que tambm o individualismo renascentista se insere no
distrbio bipolar desencadeado pela Peste Negra.
Um dos casos clssicos, em particular, despertava profunda admirao
nesses livros e em quem quer que tratasse do assunto: o do romano Marcius
Porcius Cato (95-46 a.C.), dito Cato, o Jovem para diferenci-lo do bisav Cato,
o Censor, autor da clebre frase Delenda Cartago (Cartago deve ser destruda).
Marcius Porcius desenvolveu brilhante carreira poltica e militar, tendo travado
combate, por exemplo, contra os gladiadores insurrectos de Espartacus. Adepto
fervoroso da Repblica romana, ops-se o quanto pde ao triunvirato formado por
Crasso, Csar e Pompeu. Quando a guerra civil eclodiu entre os dois ltimos,
aliou-se a Pompeu. Ao ver sua cidade, tica, cercada por Csar, Cato cometeu
suicdio. Neste ponto, as verses divergem. Ou ele se matou para no cair
prisioneiro, enfiando a espada no peito e tratando de rasgar o ferimento e as
entranhas com as prprias mos quando viu que demorava a morrer. Ou ele foi
feito prisioneiro e se matou depois que soube da morte de Pompeu e que releu o
dilogo Phedon, de Plato, o que simboliza o perigoso poder dos livros. Seja
como for, sua frrea determinao de preservar a honra foi louvada por
contemporneos e, graas tipografia, psteros. Num efeito Werther avant la

37
Tal gnero ainda persiste em livros recentes como Dicionrio de suicidas ilustres (1999), do
brasileiro J. Toledo, e Adis mundo cruel Los suicidios ms clebres de la Historia (2003), da
espanhola Alicia Misrahi.
62

lettre, alis, seu sobrinho-genro Brutus e sua filha Prcia tambm se mataram38,
quatro anos depois de sua morte.
Cato era um estico, isto , um seguidor do estoicismo do filsofo grego
Zeno de Ccio, que se matou aos 98 anos, depois de um episdio emblemtico:
saindo da sua escola, o ancio caiu e quebrou um dedo; sacudindo a terra de sua
mo, ele recitou um verso de Nobe (Eu vou. Por que me chamas?); e
imediatamente se enforcou. Episdio emblemtico porque o estoicismo propunha
basicamente uma tica da indiferena, diante das prprias paixes ou diante do
destino. A deciso entre viver ou morrer, assim, era posta na conta da liberdade do
homem racional, que bem poderia concluir ser o suicdio a melhor soluo para a
impossibilidade de manter uma linha de conduta pr-estabelecida ou
simplesmente para a necessidade de se conformar ordem das coisas.
A histria de Cato se manteve, ao menos at o sculo XVIII, como um
verdadeiro campo de batalha entre os crticos e os simpatizantes se que esta
palavra se aplica da morte voluntria. Entre estes, freqentemente apenas os
suicdios clssicos eram tolerados com a argumentao de que, sendo pagos, os
antigos no poderiam ser condenados por desobedecerem quinta lei mosaica,
que desconheciam. Os catecismos dos sculos XVII e XVIII, alis, passaram a
especificar que o no matars se aplicava tambm a si mesmo39. Em 1597, por
exemplo, o moralista catlico Franois Le Poulchre reprovou a atitude de Cato
afirmando que a verdadeira fora a de conter em si mesmo, pelo julgamento da
razo, a cupidez, purgando sua alma de paixes reprovveis, enquanto o poeta
Chassignet viu no romano o smbolo do suicdio honroso. Em 1709, Jonathan
Swift, autor de As viagens de Gulliver, escreveu um poema no qual via uma
reunio de notveis da Antiguidade, na qual Cato era louvado veementemente
por Ccero. Quatro anos depois, Joseph Addison escreveu uma pea de grande
sucesso de pblico e de crtica, Cato, na qual o suicdio do estico era descrito

38
Um dos assassinos de Csar, Brutus matou-se ao atirar-se sobre a espada, depois de perder a
Batalha de Filipos, na Macednia. Teria exclamado na ocasio: Virtude, no passas de um no-
me!. Estica como o pai Cato, o Jovem, Prcia matou-se engolindo carvo em brasa quando
soube da morte do marido.
39
O que os obrigava a enquadrar o caso de Sanso, por exemplo, numa categoria excepcional, de-
rivada de Santo Agostinho: a daqueles que haviam recebido um chamado especial e secreto de
Deus. Sanso, como se sabe, matou trs mil pessoas mas tambm morreu ao sacudir as colunas do
Templo de Dagon.
63

como sendo de uma nobreza insupervel. Consta que Alexander Pope chorou ao
assisti-la.
Em Sleepless souls Suicide in early modern England, estudo sobre as
mudanas de mentalidade, da hostilidade tolerncia, em relao morte
voluntria entre 1500 e 1800, os historiadores americanos Michael MacDonald e
Terence R. Murphy, registram detalhadamente a disposio inglesa para com
Cato.

O exemplo de Cato foi usado para justificar suicdios


modernos de vez em quando. Mais radical e extremo foi
Hume40, que declarou: Em todos os casos, cristos e pagos
esto precisamente na mesma senda: Cato e Brutus, Arria e
Prcia agiram heroicamente; aqueles que agora imitam seus
exemplos devem receber os mesmos elogios da posteridade.
Quando o poetastro Eustace Budgell atirou-se ao Tmisa em
1737, ele deixou para trs um par incompleto de versos para
justificar seu gesto: O que Cato fez e Addison aprovou,/ No
pode estar errado. (MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 180-
181).41

Diferentemente dos romanos, tolerantes quando no incentivadores de


certo tipo de suicdio, entre os gregos havia uma pluralidade de opinies sobre o
assunto como, de resto, sobre todos os outros assuntos. Os epicuristas, por
exemplo, recomendavam que nos matssemos sempre que a vida se nos tornasse
insuportvel. Os pitagricos, ao contrrio, condenavam o suicdio porque ele
liberava a alma de uma expiao corprea que ela deveria cumprir at o final e
porque ele quebrava a harmonia numrica da associao da alma ao corpo. Plato
era ambguo quando tratava do assunto; Aristteles, radicalmente contrrio.

40
David Hume (1711-1776) escreveu dois ensaios simpticos ao suicdio, On suicide (de onde
essa citao foi retirada) e On the natural history of religion. Arrependido diante das paixes le-
vantadas, ele caou como pde as cpias do livro onde eles se encontravam, Five dissertations
(1756). Os ensaios s reapareceram aps a sua morte. Neles, Hume encara o suicdio como um mal
menor, posto que o homem que o pratica no faz mal sociedade, apenas deixa de fazer o bem. Ao
mesmo tempo, ele advoga uma certa reciprocidade: se a sociedade no faz bem ao homem, por que
ele seria culpado de deix-la para trs?
41
Catos example was used to justify modern suicides from time to time. Most sweeping and ex-
treme was Hume, who declared that: In all cases Christians and Heathens are precisely upon the
same footing: Cato e Brutus, Arrea and Portia acted heroically; those who now imitate their exam-
ple ought to receive the same praises from posterity. When the poetaster Eustace Budgell cast
himself into the Thames in 1737, he left behind onde unfinished couplet to justify his deed: What
Cato did and Addison approved,/ Cannot be wrong.
64

Ambos, porm, consideravam o homem na perspectiva de um ser social, inserido


numa comunidade, diferentemente das correntes individualistas que os
precederam.
Em Roma, herdeira do pensamento grego, porm, a simpatia pelo suicdio
desenvolveu-se at tornar-se a mais alta entre todas as civilizaes ocidentais at
hoje. Excetuando-se a interdio aos soldados e escravos, nascida de evidentes
motivaes econmicas, existe apenas uma meno, feita por Plnio, o Velho, a
uma proibio legal morte voluntria: deveriam ser crucificados aqueles que se
suicidassem para protestar contra a tirania de Tarqunio, o Soberbo, o ltimo rei
de Roma (534-509 a.C.). A idia era evitar que os mortos se vingassem dele:
pregados cruz num lugar afastado, os pssaros os devoraram e, assim, atraam
para eles mesmos qualquer energia negativa.
Nisso, Roma no se diferenciava nem da Grcia, nem de sociedades
africanas, nem da Europa Medieval. Como anota Minois, parece haver um fundo
comum de temor supersticioso em relao a um ato fora do comum e, portanto,
sobrenatural (p. 62). Na Grcia arcaica, a despeito da aberta celeuma filosfica
sobre o ato em si, na prtica cortava-se a mo direita do suicida de modo a evitar
que ele cometesse crimes. J os bangandas, tribo da frica central, queimavam o
corpo do suicida junto com a rvore que ele utilizara para se enforcar e, quando as
mulheres passavam perto das cinzas, se recobriam a fim de evitar que o esprito do
morto no as pudesse penetrar e assim renascer.
Na Idade Mdia europia, os corpos dos suicidas eram vilipendiados de
variadas maneiras: desmembrados, pendurados, jogados num rio dentro de um
tonel. A Lei de Beaumont, do sculo XIV, ordenava que o cadver fosse arrastado
o mais cruelmente que se possa, para mostrar a experincia aos outros as
prprias pedras sobre as quais ele foi arrastado deveriam ser arrancadas. Para
Minois, na Frana, a questo tratada sobretudo na metade norte do reino, onde
o direito visivelmente assimilou prticas supersticiosas mais antigas visando a
impedir os suicidas de voltar a incomodar os vivos (p. 47).
65

3.4
Repetio, doena, contgio, ideologia

Podemos, aqui, arriscar algo acerca da natureza deste incmodo. O corpo


era brutalizado ou para servir de exemplo aos outros membros da comunidade que
cogitassem se matar ou para evitar que ele mesmo, ou o esprito que o empolgara
em vida, voltasse Terra para atazanar os vivos. No primeiro caso, evidente o
carter exemplar da medida: havia a tentativa de evitar que o ato se repetisse na
sociedade (em particular na famlia do suicida, obrigada a assistir desonra
pblica de seu corpo) que o suicdio a contagiasse. No segundo caso, impedir o
retorno do morto seria tanto a expresso de um temor literal, expresso por um
zumbi cometendo atrocidades, quanto de um temor figurado, o de que ele voltasse
vida no corpo de outros mais uma vez, que o suicdio contagiasse a sociedade.
O fundo comum de temor supersticioso ainda se manifesta de outras formas.
At Gutenberg, a concentrao do objeto livro na mo de clrigos e nobres
e freqentemente ambas as classes se reuniam numa mesma pessoa
significava, no que tange morte voluntria, um duplo movimento. Por um lado,
o martrio voluntrio, conceito dos primrdios da cristandade ressuscitado pelas
Cruzadas (empreendidas entre os sculos XI e XIII) era considerado diferente do
suicdio e, assim sendo, louvado. Por outro, dificilmente o nobre precisaria se
matar se assim o desejasse: ele estava constantemente envolvido em guerras que
ao mesmo tempo davam vazo s suas pulses suicidas e as protegiam delas.
Suicdios de religiosos e de nobres, portanto, tinham tratamento discreto, quando
no herico. Se, porm, um homem do povo ou um burgus ousasse se matar,
fugindo de suas obrigaes para com Deus ou para com seu senhor terreno, ai
dele.
Paralelamente condenao religiosa do suicida, introduziu-se nas leis
seculares francesas desde 1205 a figura do confisco, em propores variveis, dos
bens mveis e imveis do morto, de sua esposa e de sua famlia, em benefcio do
baro local. Em algumas provncias, como Maine e DAnjou, a casa do morto
tinha ainda a fachada demolida42, seu terreno era queimado e suas vinhas e

42
Interessante lembrar que, em pleno sculo XXI, as Foras Armadas de Israel ainda destroem as
casas dos terroristas suicidas palestinos, desalojando suas famlias. A punio ps-morte renova a
velha prtica medieval.
66

rvores eram cortadas altura de um homem. Neste mundo prestes a ser


revolucionado pela inveno de Gutenberg, havia a preocupao de enquadrar o
seu habitante.

As autoridades civis e religiosas travam o mesmo combate


contra o suicdio, e suas medidas dissuasivas se complementam:
confisco de bens e danao eterna. Nos dois domnios, a
proibio do suicdio acompanha o recuo da liberdade humana:
o homem perde o direito essencial de dispor da sua prpria
pessoa, em benefcio da Igreja, que dirige toda a sua existncia
e tira sua fora do nmero de fiis, e em benefcio dos senhores,
alguns dos quais eclesisticos, que tm a necessidade de
conservar e de aumentar sua mo-de-obra num mundo
subpopulado onde a fome e as epidemias regularmente
comprometem o valor dos domnios. (MINOIS, 1995, p. 42-
43).43

interessante notar que a moral censitria em torno da morte voluntria


resultou na criao, pela casta militar e religiosa medieval, de uma distino que
antecipa, noutros termos, aquela que, sculos depois, Durkheim iria fazer entre
suicdio egosta e altrusta. O morto que se mata por suas prprias razes, dvidas
ou adultrio, por exemplo, seria entregue solitariamente ao fogo dos infernos: era
condenado severamente tanto pela lei de Deus quanto pela lei dos (gentis)
homens. Estava, ento, duplamente distanciado da sociedade na qual vivia. Era
um egosta e seu exemplo deveria ser desinfetado e, se possvel, banido. J o
morto que se matava em nome da f crist ou dos ideais da cavalaria seria
admitido no reino dos cus: era absolvido por ter buscado a morte em nome de
algo que no ele mesmo. Este estava, por seu turno, perfeitamente inserido na sua
comunidade. Era um altrusta e seu exemplo merecia ser divulgado.
A ideologia medieval, como tantas outras, antes e depois dela, igualava o
interesse da elite ao do conjunto da populao. No processo, criava suicidas de
primeira e de segunda classe. Mais interessante ainda notar que ns, to
distantes da Idade Mdia quanto o homem medieval estava do Imprio Romano,

43
Les autorits civiles et religieuses mnent le mme combat contre le suicide, et leurs mesures
dissuassives se compltent: confiscation des biens et damnation ternelle. Dans le deux domaines,
la proibition du suicide accompagne le recul de la libert humaine; lhomme perd le droit essentiel
de disposer de sa propre personnne ao profit de lglise, qui dirige toute son existence et tire sa
force du nombre des fidles, et au profit des seigneurs, dont certains ecclsiastiques, qui ont besoin
de conserver et daccrotre leur main-doeuvre dans un monde sous-peupl o les famines et les
pidmies viennent rgulirement compromettre la mise em valeur des domaines.
67

de certa forma no muito sutil reproduzimos o mesmo tipo de distino de classe.


No seria, afinal, o comportamento da imprensa da rea da Baa de So Francisco
em relao aos que pulam da Golden Gate silncio, a no ser que o morto seja
uma celebridade ou que seu gesto tumultue o trnsito o reconhecimento de que o
contgio durkheimiano possa atuar e tambm de que certas mortes voluntrias so
tacitamente permitidas pelo status ou, ao menos, dignas de serem notadas pelo
transtorno que causam aos concidados do suicida? Os jornais da rea da Baa de
Guanabara no agem de modo diferente. Eis, por exemplo, o que diz o manual de
redao e texto jornalstico de O Dia:

O Dia no publica suicdios. Exceto em situaes particulares,


pela notoriedade dos envolvidos ou pelo interesse pblico das
razes que o levaram ao ato. So exemplos disso os suicdios do
ex-tcnico da Seleo Brasileira de vlei, Inaldo Manta, do
aluno do Colgio Militar que no resistiu aos rigores da
disciplina e suas humilhaes, e do banqueiro que se matou em
um quarto de hotel ao ver descoberto o desfalque que praticara.
(O DIA, 1996, p. 47).

No preciso estar beira-mar para adotar tal procedimento. O Manual da


Redao da Folha de S. Paulo sucinto s raias da ambigidade em sua seo
Padronizao e estilo: No omita o suicdio quando ele for a causa da morte de
algum (2001, p.99) A morte de algum alm do suicida, depreende-se. Tal
recomendao consistente com a posio pessoal do seu diretor de redao,
Otavio Frias Filho. No livro Queda livre Ensaios de risco, publicado em 2003,
ele se props a enfrentar os crculos do inferno pessoal em sete ensaios-
reportagens, um deles sobre seu trabalho annimo e voluntrio, durante cerca de
um ano, num dos postos de atendimento do Centro de Valorizao da Vida, em
So Paulo.
O CVV nasceu de uma idia implantada em Londres por um reverendo
anglicano, Chad Varah, em 1953. Psiclogo por formao, ele leu num jornal que
em mdia trs pessoas se suicidavam por dia na capital inglesa. Lembrou-se,
imediatamente, que seu primeiro trabalho como sacerdote, em 1936, se dera no
funeral de uma suicida de 14 anos, que se apavorara, temendo uma doena
venrea, ao ver o sangue da sua primeira menstruao. Pouco depois, Varah
tornou-se reitor da parquia de St. Stephen, no centro de Londres, e decidiu fazer
alguma coisa a respeito dos suicidas. A 2 de novembro de 1953, os mesmos
68

jornais que trouxeram a informao que tanto impressionara o pastor publicaram a


notcia de que qualquer pessoa deprimida que quisesse falar com Chad Varah
deveria telefonar para o nmero tal. A agenda encheu-se rapidamente, e tambm
de encontros com pessoas que, tendo lido os jornais, queriam ajudar na tarefa a
que o reverendo havia se proposto, sem jamais, no entanto, dar um enfoque
religioso conversa.
Varah logo notou que em quase todos os casos bastava a pessoa angustiada
conversar com um dos seus assistentes na fila de espera para ir embora,
pacificadas. E, se esse cliente (palavra por ele adotada) voltava, era para
conversar com o mesmo assistente da primeira visita. Todo o atendimento, ento,
logo passou do reverendo-psiclogo para os leigos. A elas caberia ouvir
atentamente e nada alm disso, nada de perguntar ou de aconselhar as pessoas
em desespero. Falar, afinal, seria uma forma simples de exorcizar o suicdio.
Logo, o tablide sensacionalista Daily Mirror publicou uma reportagem sobre
Varah com o ttulo Pastor samaritano vai salvar suicidas. Sem querer, o redator
deu uma boa idia ao prprio reverendo: a partir dali, o seu grupo de apoio
chamar-se-ia Samaritanos, tambm por referncia parbola bblica44.
Nasceu ali a primeira organizao leiga desde o ano anterior funcionava
na Califrnia um centro de preveno do suicdio a cargo de psiclogos, fundado
pelo Dr. Edwin Shneidman a prestar auxlio a pessoas que contemplavam a
morte voluntria. Os Samaritanos tornaram-se a inspirao para outras
organizaes de voluntrios, como o Centro de Valorizao da Vida, na qual
trabalhou Otavio Frias Filho. Um pouco por sua experincia no CVV, um pouco
pela convico pessoal na preponderncia de um fator clnico nas taxas de
suicdio, ele escreve em Queda livre, num trecho revelador do norte das
coberturas jornalsticas sobre o assunto, no s na Folha de S. Paulo, no s no
Brasil, mas em todo o Ocidente:

44
No Evangelho de Lucas, perguntado por um doutor da lei quem o meu prximo? (para poder
am-lo), Jesus responde com a histria do homem assaltado e espancado no caminho de Jerusalm
para Jeric: um sacerdote v o sujeito cado sem deter o passo; um judeu da tribo dos levitas tam-
bm no pra para ajud-lo; um samaritano, membro de outro povo da Judia, isto , um estranho,
um distante quem se detm para cuidar do infortunado. Ata-lhe as feridas, leva-lhe a uma esta-
lagem e paga os servios do hospedeiro.
69

Como jornalista, eu no poderia deixar de mencionar um


aspecto muito controvertido: a divulgao de suicdios pelos
rgos de comunicao. No existe dvida de que casos
sensacionais, noticiados com estardalhao, do ensejo a
imitadores. Minha opinio que a mdia deveria se obrigar a
certas renncias na cobertura de suicdios e temas correlatos,
como na prtica j ocorre na grande maioria dos casos. S me
parece admissvel noticiar suicdios quando o fato implicar de
alguma forma o interesse pblico ou envolver celebridades que
despertem curiosidade irrefrevel. Seria bom que essas notcias
omitissem detalhes mrbidos e prestassem algum
esclarecimento cientfico. Informaes sobre os meios prticos
para cometer suicdio no deveriam ser publicadas. Mas o
debate desimpedido sobre os mecanismos psicolgicos do
suicdio e os modos de preveni-lo a melhor maneira de
enfrentar a questo. Adquiri a convico de que saber mais
sobre o fantasma do suicdio pode ser o caminho para domin-
lo. Ajuda a dissipar a nvoa de fantasia e ignorncia que tanto
obscurece os terrores que acompanham esse ato de desamparo
extremo, como impede de ver que o suicdio no somente pode,
mas deve ser evitado. (FRIAS FILHO, 2003, p. 284).

Ao mesmo tempo em que reproduz o velho consenso sobre o carter


perigoso (contagioso) do ato suicida, o texto de Frias Filho tambm se inscreve no
movimento de humanizao do suicida, cujo incio, como vimos, remonta
Renascena europia e inveno da tipografia. A anatomia da melancolia, de
1621, j advogava, lembra Minois, que a tendncia suicidria, resultado da
melancolia, (...) uma doena, e no um pecado satnico: a obra de Burton marca
uma mudana no modo de encarar o homicdio de si-mesmo (p. 123). No mesmo
pas, duas dcadas antes, outras obras imensamente populares prepararam o
esprito da populao para contemplar os suicidas de outra maneira: as peas de
teatro, que poca se dirigiam, majoritariamente, a um pblico de iletrados.

3.5
Hamlet, o inventor do sujeito e da psicanlise

Na virada do sculo XVI para o sculo XVII, o suicdio foi um componente


quase obrigatrio no teatro ingls, seja nos dramas clssicos, seja nas tragdias
contemporneas. Bernard Paulin, em Du couteau la plume Le suicide dans la
littrature anglaise de la Renaissance (1580-1625), estudo publicado na Frana
em 1977 e citado por Minois, contou, em cem peas, nada menos que 43 suicdios
70

entre 1580 e 1600 e, aumento notvel, 128 de 1600 a 1625. Alguma obras,
sozinhas, somaram cinco casos. As cinco principais causas para o cometimento do
ato eram, pela ordem, amor, remorso, honra, desespero e num dado novo, ligado
ao avano do capitalismo runa econmica. A explicao sociolgica,
aparecida em Robert Burton, comea timidamente a concorrer com a psicolgica,
enquanto a explicao sobrenatural recua, explica Minois (p. 127). O suicida,
portanto, assume uma feio humana, mesmo que o tom dos autores no seja
preponderantemente admirado ou compreensivo com suas motivaes. E sim
porque, de qualquer forma, o assunto se banaliza no jogo social e perde o apelo
moral.
Os nmeros levantados por Paulin so ainda mais assombrosos porque
deles esto excludas as 52 mortes voluntrias ocorridas nas peas do maior de
todos os dramaturgos ingleses do perodo. Em Shakespeare A inveno do
humano, Harold Bloom v em Hamlet, por exemplo, a encarnao da nossa busca
pela identidade e pela autoconscincia. Em Hamlet, a autoconscincia faz
exacerbar a melancolia, custa de todos os demais sentimentos, escreve (2000,
p. 505). Noutra obra, O cnone ocidental, o crtico literrio americano chega a
dizer que Freud (...) entendia que Shakespeare inventara a psicanlise, ao
inventar a psiqu, at onde Freud podia reconhec-la e descrev-la (1995, p. 65).
Freud, por sua vez, foi co-responsvel pelo descentramento do sujeito, tal
como encampado por Stuart Hall em A identidade cultural na ps-modernidade
[1992]. Segundo ele, o sujeito surgido com Hamlet, podemos dizer foi
deslocado por uma srie de rupturas dos discursos do conhecimento moderno: o
marxismo, a lingstica (de Saussure), a microfsica do poder (de Foucault), o
feminismo e a psicanlise (de Freud). Todas contribuem para o quadro anmico
verificado por Durkheim e Lipovetsky (e talvez entre essas rupturas pudssemos
acrescentar o absurdismo proposto por Camus). Para Hall:

A teoria de Freud de que nossas identidades, nossa sexualidade


e a estrutura de nossos desejos so formadas com base em
processos psiqucos e simblicos do inconsciente, que funciona
de acordo com uma lgica muito diferente daquela da razo,
arrasa com o conceito do sujeito cognoscente e racional provido
de uma identidade fixa e unificada o penso, logo existo do
sujeito de Descartes. (HALL, 2002, p. 36).
71

Nas tragdias de Shakespeare, as pessoas se suicidam de todas as formas e


por todos os motivos. Cssio, Brutus, Antnio e Clepatra, por exemplo, evocam
os suicdios clssicos, honrosos. Os jovens Romeu e Julieta se matam por amor
e mal-entendido. Macbeth se mata para cumprir seu destino. Otelo, por remorso.
Oflia, enlouquecida, afogada, por nenhuma razo em especial. Dela, o espectador
no ouve nenhuma palavra de explicao.
No entanto, na primeira cena do quinto ato, o mesmo espectador de
Hamlet escuta dos coveiros de Oflia um irnico dilogo que remete aos ns-em-
pingo dgua dados pela casustica catlica (que, ao analisar situaes caso a
caso45, deliberando se a pessoa havia ou no se matado, por exemplo,
involuntariamente nem encerrava a questo e nem pacificava o esprito dos fiis,
como pretendia) e ao carter censitrio da reprovao ou no ao suicdio:

1 coveiro. Deve ser enterrada em sepultura crist aquela que


buscou voluntariamente a salvao?
2 coveiro. Digo-te que deve; portanto, abre logo essa cova. O
pontfice informou-se de tudo e deliberou que o enterro fosse
cristo.
1 coveiro. Como pode ser isso, a no ser que ela se afogasse
em sua prpria defesa?
2 coveiro. Ora, foi decidido assim.
1 coveiro. Deve ter sido se ofendendo, nem pode ser de outro
modo. Pois esse o ponto: se eu me afogo voluntariamente,
isso indica ato, e um ato tem trs partes: agir, fazer e consumar.
Ergum, ela afogou-se voluntariamente.
2 coveiro. No; mas, escuta, mestre cavuqueiro.
1 coveiro. Com licena. Aqui est a gua, bem; aqui est o
homem, bem; se o homem vai para esta gua e se afoga, queira
ou no queira, ele que vai. Presta ateno: mas se a gua vem
para ele e o afoga, no ele que se afoga; ergum, ele no o
culpado de sua prpria morte, ele no encurta a prpria vida.
2 coveiro. Mas isso lei?
1 coveiro. , sim, senhor; lei de borda e capelo.
2 coveiro. Queres saber a verdade? Se ela no fosse nobre,
seria enterrada fora do ritual cristo.

45
Em 1659, o jesuta espanhol Antonio Escobar analisa um caso hipottico extremo. Nele, uma
jovem solteira grvida est determinada a se matar para evitar a vergonha da famlia. Poderia ela
provocar o aborto por ser este o nico meio de a desviar do suicdio?, pergunta-se o casusta. Sim,
responde, porque trata-se de escolher o mal menor. Se nos lembrarmos da luta encarniada trava-
da pela Igreja desde as suas origens contra o aborto, mediremos melhor o horror ao suicdio que
pode representar tal soluo (MINOIS, 1995, p. 147). Se, no entanto, a pobre grvida decidisse
mesmo tirar a prpria vida, ai dela. Em 1718, em Chteau-Gontier, na Frana, Marie Jaguelin, gr-
vida de seis meses e desesperada com a desonra, se suicidou por envenenamento. Seu cadver foi
desenterrado, julgado, arrastado. Em praa pblica, seu ventre foi aberto, de modo a que o feto
fosse retirado e enterrado na parte do cemitrio reservada aos no-batizados. Maria foi pendurada
pelos ps e exposta ao pblico. Depois, foi queimada. Por fim, suas cinzas foram jogadas ao vento.
72

1 coveiro. Assim o disseste; e uma lstima que os grandes


deste mundo tenham o direito de afogar-se ou de enforcar-se,
mais do que qualquer outro cristo. Vamos, a minha p. No h
gentis-homens mais antigos do que os jardineiros, os cavadores
e os coveiros; eles conservam a profisso de Ado.
(SHAKESPEARE, 2004, p. 287-288).

, no entanto, um pouco antes, na primeira cena do terceiro ato, de um


personagem que no se mata na mesma pea de 160046, data redonda e simblica,
que as platias escutam a problematizao do suicdio em termos eminentemente
modernos, pois despidos de dogma religioso ou superstio em favor do exame
racional do custo-benefcio de se viver. Afinal, o solilquio mais famoso da
histria do teatro no fala de outra coisa que no disso, embora Harold Bloom, em
Hamlet Poema ilimitado, discorde: Convm afirmar de maneira direta: no se
trata de uma reflexo que, seriamente, contemple o suicdio (p. 42) No mesmo?

Ser ou no ser, essa a questo:


Ser mais nobre suportar na mente
As flechadas da trgica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer dormir,
Nada mais; e dizer que pelo sono
Findam-se as dores, como os mil abalos
Inerentes carne a concluso
Que devemos buscar. Morrer dormir;
Dormir, talvez sonhar eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invlucro
Mortal, fazem cismar. Esse o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
(ibidem, p. 217-218).

Sim, Hamlet quem a um tempo sintetiza todo o pensamento ocidental


sobre o suicdio e, tambm, o externa com uma clareza contundente, capaz de
atingir tanto o velho pblico letrado religioso-militar, aquele que at menos de
duzentos anos antes detinha o monoplio da palavra escrita, quanto o novo
pblico iletrado dos grandes centros, cuja maior diverso era beber, fornicar e ir

46
Esta a data aceita para a verso consagrada de Hamlet, embora existam evidncias de que Sha-
kespeare vinha trabalhando na pea havia muito tempo antes, uma ou duas dcadas talvez.
73

ao teatro Globe no se deve perder de vista, mesmo diante do vocabulrio hoje


considerado rebuscado de Shakespeare, que era para esse povo que ele escrevia.
Em Sleepless souls, MacDonald e Murphy chamaram a ateno para o fato
de que Hamlet e todo os demais membros da corte se inclinam para o estoicismo
(a mesma escola filosfica de Cato) ao encararem o suicdio como um problema
moral e tico, no religioso. O prncipe, em particular, se indaga sobre a nobreza
do gesto, tema central para os seguidores de Zeno de Ccio, retomado no sculo
XVI por Michel de Montaigne. O que Hamlet se (lhes/nos) pergunta : vale a pena
viver? Vale a pena suportar golpes do destino, erros do opressor, escrnio alheio,
ingratido no amor, lei tardia, quando se pode:

(...) procurar repouso


Na ponta de um punhal? Quem carregara
Suando o fardo da pesada vida
Se o medo do que vem depois da morte
O pas ignorado de onde nunca
Ningum voltou no nos turbasse a mente
E nos fizesse arcar coo mal que temos
Em vez de voar para, esse que ignoramos?
(ibidem, p. 218)

A linguagem to veraz, to visceral que Minois, retoricamente, pergunta


em Histoire du suicide: Hamlet Shakespeare?47 Esta discusso, to velha e
fascinante quanto inconclusiva j empolgou as melhores cabeas da Humanidade.
Aqui, em relao especificamente a uma suposta identidade entre os pontos de
vista suicidrios de criador e criatura, quem responde Alvarez:

47
Pouco provvel, embora haja uma ligao familiar entre o autor e o personagem. Seu nico filho
chamou-se Hamnet e morreu aos 11 anos, em 1596, pouco antes, portanto, do surgimento da ver-
so final da tragdia protagonizada pelo lendrio prncipe dinamarqus. Sintomaticamente, ou no,
o fantasma do pai de Hamlet foi um dos dois nicos personagens interpretados pelo prprio Sha-
kespeare o outro foi Ado, na comdia Como gostais. James Joyce defendeu, pela voz de seu
alter ego Stephen Dedalus, no captulo nono de Ulisses [1922], passado na biblioteca, que Hamlet
era inspirado em Hamnet Shakespeare: tivesse Hamnet Shakespeare vivido ele teria sido gmeo
do prncipe Hamlet (2005; p. 213). Bloom, em Shakespeare A inveno do humano, no acredi-
ta nisso: Se a dor maior de Shakespeare adveio da morte do filho Hamnet, o luto aparece de tal
modo trasmutado na tristeza de Hamlet que chega a ser irreconhecvel (2000; p. 514). Bloom re-
conhece uma identidade apenas exegtica, no pessoal, na posio que Hamlet ocupa na obra de
Shakespeare: to central quanto Shakespeare na histria da literatura ocidental.
74

A atitude de Shakespeare para com problemas morais era


basicamente igual sua atitude para com suas fontes:
pragmtica. O que importa a pea. Ele nunca permitiu que os
seus prprios preconceitos religiosos48 fossem eles qual
fossem sub-vertessem o seu instinto para a boa e prtica
eficincia dramtica. Alm disso, os gostos da Alta Renascena
com relao tragdia no implicam que houvesse uma nova
tolerncia para com o suicdio real. O sofrimento de um heri
trgico, distanciado e enobrecido pelo drama potico, fica
literalmente a um mundo de distncia do suicdio fora do palco,
que raramente trgico, nunca grandioso e na maior parte das
vezes srdido, deprimente, confuso. No haveria a menor
razo para que o corpo de um Otelo da vida real no fosse
arrastado pelas ruas atrs de um cavalo e enterrado numa
encruzilhada com uma estaca cravada no corao. (ALVAREZ,
1999, p. 159).

Para Alvarez, a diferena entre a Idade Mdia e a Renascena no esteve


num sbito acesso de esclarecimento na prtica e sim numa mudana de
perspectiva na abordagem no s deste mas de todos os problemas morais da
poca: a emergncia do individualismo aquele mesmo individualismo que,
agudizado nos sculos por vir, Goethe captaria na figura romntica do seu
Werther e Lipovestky descreveria como a viga-mestra do Modernismo tornou-
os mais complexos e sujeitos a controvrsias. Do mesmo modo, Minois registra
que no houve, fora dos palcos ingleses, aumento das taxas de suicdio
comparvel s deles. Discutir o tema, obviamente, no igual a espos-lo; mas j
se trata de uma mudana.
Inclusive Hamlet, convm repetir, no se mata. Por um lado, ele
experimenta consigo mesmo o procedimento dos Samaritanos e do CVV: falar do
suicdio , de certa forma, exorciz-lo. Alm disso, o prncipe da Dinamarca tem
um objetivo bem preciso, que transcende a sua prpria existncia e, por
conseguinte, o livra de uma das pr-condies durkheimiana para o gesto
extremo: alertado pelo fantasma do pai, Hamlet fica obcecado em vingar o
assassinato dele pelo tio adltero (que lhe roubara a rainha-me) e usurpador (que

48
Bloom concorda com Alvarez: Dificilmente, conseguiremos estabelecer as tendncias religio-
sas de Shakespeare, seja no incio ou no fim da vida. Ao contrrio do pai, que era catlico, Sha-
kespeare manteve-se sempre ambguo nessa questo perigosa, e Hamlet no obra catlica nem
protestante. Com efeito, a pea, a meu ver, no nem crist nem anticrist, pois o ceticismo de
Hamlet no apenas excede uma possvel origem em Montaigne como se torna, no quinto ato, algo
estranho e fascinante, algo que no conseguimos rotular (2000, p. 488-489).
75

lhe roubara o trono)49. Por outro lado, Minois destaca, recorrendo uma vez mais
ao estudo de Paulin50 sobre o suicdio nos palcos ingleses entre 1580 e 1625, que
talvez a grande questo posta em cena por Shakespeare no clebre solilquio de
Hamlet tenha sido no ser ou no ser? e sim o suicdio tem um sentido?

3.6
Bills of mortality: a listagem de mortos na imprensa

Se o sentido do suicdio tema de reflexo, ainda que na idealizao dos


palcos e da literatura, tambm na sujeira cotidiana das ruas ele comea a ser
examinado. Neste duplo movimento, avana um processo de humanizao do
suicida, visto no mais como possudo, mas como doente. No comeo do sculo
XVII, as autoridades londrinas estava preocupadas com a insalubridade, com o
progresso das epidemias, com o espectro da Peste Negra. Passaram, ento, a
publicar nos jornais da cidade um cmputo semanal de mortes por doena ou
acidente, as bills of mortality (contas da mortalidade, i.e, listagem de mortos). Seu
propsito prtico era alertar os leitores sobre os perigos da vida na metrpole, de
modo que eles pudessem evitar a ida a uma zona infectada por uma molstia ou se
prevenir contra o afogamento acidental no Tmisa. MacDonald e Murphy
acreditam que elas serviam tambm a um profundo propsito psicolgico,
mantendo os leitores cientes da fragilidade da prpria vida em si e assim
afirmando simultaneamente a boa sorte deles e a incerteza da continuao dela
(1990, p. 306).
Os suicdios eram includos na poro dos acidentados, juntamente s
vtimas de outros acasos infelizes. Na maior parte dos casos, tais notcias se
restringiam a indicar se uma ou mais pessoas de uma parquia em particular
haviam se matado por enforcamento, afogamento, facadas, saltos etc., e se devia-
se atribuir loucura alguma(s) da(s) morte(s). Um texto tpico, coletado por

49
Goethe, pai do Werther, apreciava particularmente esta fala de Hamlet: Os tempos de hoje es-
to pervertidos. Oh, maldio que eu tenha nascido um dia para restaurar a ordem!
50
Escreve Paulin, apud Minois: Em vez de demonstrar, Shakespare mostra: o suicdio (de Romeu
e Julieta, cuja fatalidade exclui todo julgamento) tem o sentido que lhe d o conjunto de um mo-
vimento dramtico e potico. por isso que Shakespeare no nos prope uma apologia do suic-
dio, mas uma apologia do amor ou, mais precisamente, do amor tal como o viveram Romeu e Juli-
eta. Nesta tica existencial, o suicdio no apenas coroa a vida; ele a prolonga.
76

MacDonald e Murphy no Weekly Journal da semana terminada em 21 de janeiro


de 1721, nos dias que se seguiram a uma crise de especulao financeira, dizia:
Enforcaram-se 6. Um na Christ-Church em Londres, trs (atordoados) em St.
Giles in the Field, um (luntico) em St. James Clerkenwell e um em St. Martin in
the Fields. s vezes, porm, eram adicionados, nesta ordem de freqncia, a
profisso do morto, seu endereo ou o local da sua morte, o seu nome e o
veredicto do coroner.
Ao lado de Cato ou de Oflia, ento, o ingls comum passou a se
acostumar ao suicdio ocorrido, por assim dizer, na porta ao lado cometido por
outro ingls comum. Embora no houvesse nem exatido quanto s causas nem
preciso estatstica, a publicao das listas semanais inadvertidamente tornou a
morte voluntria familiar Inglaterra, passando aos leitores a impresso de
regularidade do fenmeno, de tal modo que logo surgiria o mito da doena
inglesa um eufemismo para suicdio, assim como inefvel vcio grego foi por
muito tempo usado para calar a palavra homossexualidade. A expresso foi
consagrada em The English malady, or a Treatise of nervous diseases of all kinds
[1733], obra de um famoso e devoto mdico, George Cheyne. Na ocasio, ele
admitiu ter sido instigado a escrev-la por amigos alarmados justamente com a
freqncia e o crescimento do nmero de suicdios registrado largamente pelos
jornais. A idia da existncia de uma maladie anglaise pegou sobretudo na
Frana.
Cheyne culpava basicamente duas causas complementares pela
concentrao de suicdios na Inglaterra: o avano do atesmo, estimulado pelo
culto aos clssicos greco-romanos; e a tendncia melancolia, devida ao mau
tempo das ilhas britnicas. As pessoas realmente acreditavam numa razo
climtica, ao menos at a publicao do estudo de Durkheim51. Seu conterrneo
Csar de Saussure, por exemplo, recm-chegado a Londres, em 1727, declarou-se
abatido com as condies meteorolgicas e que, se ingls fosse, certamente se
suicidaria. Em Histoire du suicide, Georges Minois comenta que este mito das
Luzes s se atenuaria com o advento das estatsticas modernas (p. 213).

51
Cruzando suas estatsticas, o socilogo mostrou que no havia nenhuma ligao direta entre o
mau tempo e o nmero de suicdios. Pelo contrrio, a maior parte das pessoas se matava em dias
de bom tempo segundo sua tese, justamente porque eles representam maior necessidade ou pos-
sibilidade de interao social.
77

John Graunt, considerado o primeiro demgrafo ingls digno deste nome,


embora criticasse a exatido dos nmeros das bills of mortality, utilizou-os para
calcular uma mdia de 15 suicdios por ano em Londres entre 1629 e 1660 para
uma populao estimada entre 350 mil e 400 mil em 165052. Havia, dentro desse
perodo, picos tidos como inexplicveis. o caso dos 36 suicdios registrados em
1660. Minois levanta uma hiptese: H uma ligao com a troca de regime
ocorrida naquele ano, a monarquia sendo restaurada e pondo fim s esperanas de
alguns puritanos? Impossvel de saber (p. 178). Diferentemente do que pode ser
dito em relao varivel climtica, porm, este pico perfeitamente compatvel
com a viso de Durkheim sobre a anomia, momento de transformaes em que o
homem perde suas referncias dentro da sociedade. Naquele 1660, a monarquia
foi restaurada, com Charles II sagrado rei, sucedendo ao lorde protetor Oliver
Cromwell e, aps sua morte, ao seu filho Richard Cromwell.
Seja como for, sobretudo sob a Coroa, o nmero de suicidas registrado nas
bills of mortality era jogado para baixo pelo mascaramento dos bitos em naturais
ou acidentais. Os jris locais, formados por moradores da comunidade,
freqentemente tambm tratavam de subavaliar os bens do suicida, de modo a
proteger sua famlia da Justia Real e do confisco que julgavam injusto. Uma lei
de 1693 estimularia ainda mais a fraude nos veredictos: por ela, os bens dos
suicidas no seriam mais confiscados em benefcio do rei e sim do senhor local
que os jurados odiavam ainda mais visceralmente.
Antes mesmo disso, MacDonald e Murphy mencionam com espanto o caso
de um certo John Wilkins, merceeiro em Norwich. Ele teria morrido em 1598,
uma semana depois de ter cortado a garganta. Chamados a testemunhar diante do
jri, coisa que raramente acontecia, um mdico e trs cirurgies declararam que o
ferimento no poderia ter sido mortal. O jri, ento, registrou que a misteriosa
doena fatal era anterior ao golpe, de modo a livrar Wilkins da condenao como
felo de se (expresso latina para assassino de si mesmo) que tambm adviria se
a doena fosse considerada posterior ao golpe. A histria toda boa demais para
ser provvel, embora, claro, possa ter sido real (p. 80), escrevem os autores.

52
Compare-se aos nmeros divulgados pelos jornais de 1953 e lidos por Chad Varah (cf. p. 72):
trs suicdios por dia para uma populao recenseada em 8.196.807 habitantes em 1951.
78

Em seu livro, eles destacam um captulo inteiro macluhanianamente


batizado de The medium and the message para o papel da imprensa no
importante processo que chamam de secularizao do suicdio, ou seja, a
passagem do tema do domnio religioso para o domnio leigo durante o perodo
estudado, 1500-1800. Nestes trs sculos, no contexto da reao s idias da
Renascena, a atitude prevalente na sociedade inglesa foi de severidade e
represso ao suicdio; e, num segundo momento, no contexto do Iluminismo, foi
de aumento da tolerncia com respeitveis contra-correntes de sensibilidade s
razes da morte voluntria e de intolerncia dentro de cada uma dessas mars.
A partir de 1695, a mar da tolerncia cresceu lado a lado com o notvel
aumento da tiragem dos jornais na Inglaterra e, portanto, do notvel aumento da
circulao das bills of mortality. As tiragens dos principais ttulos londrinos
atingiram 15 mil exemplares (s vezes trs dias por semana) em 1704. A feroz
cobrana de impostos pela Coroa e a correspondente sonegao pelos editores
impossibilitam a obteno de dados precisos para os anos seguintes. No entanto,
mesmo as incompletas estatsticas oficiais apontam para o crescimento acentuado
do nmero de exemplares vendidos: 7,4 milhes em 1753 e 15 milhes em 1792
100% de aumento em menos de cinqenta anos. Tais cifras esto longe de conter
o universo de leitores no s pelas fraudes, mas tambm porque pubs, cafs e
estalagens faziam assinaturas de jornais. Seus fregueses discutiam os temas em
pauta, da poltica ao suicdio. Ou seja, indiretamente, a profuso de publicaes na
poca atingia inclusive os analfabetos da populao. Ocorreu uma revoluo,
descrita na seguinte citao (o grifo no final meu):

O fenomenal crescimento da imprensa peridica e o contnuo


avanar da alfabetizao depois de 1700 transformou a
hermenutica do suicdio, assim como afetaram quase todo
outro aspecto da vida social e cultural. A proliferao de jornais
dirios e semanais e de resenhas mensais criou um novo modo
de comunicao. O papel da tradio oral e do ritual
comunitrio diminuiu e ler se tornou crescentemente
importante. Pat Rogers corretamente assinala que a ascenso da
imprensa peridica afetou o modo como as pessoas
construram o mundo em torno delas. Ela alargou
enormemente o horizonte espacial e social dos leitores. Ela
levou-lhes notcias de eventos ocorridos por todo o pas,
particularmente em Londres, e divulgou novas atitudes e idias
muito mais efetivamente do que panfletos ou plpitos. Ela
ajudou a formar conscincia poltica e exps leitores
provincianos de todas as classes sociais aos valores e opinies
79

correntes na sociedade londrina. Ela tambm carregou notcias


de suicdios para um vasta audincia de leitores e os habilitou
a formar seu prprio juzo sobre eles. Os rituais de julgamento
e enterro foram eclipsados como o principal meio pelo qual as
pessoas conheciam suicdios e avaliavam seu significado.
(MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 301).53

As prprias necessidades intrnsecas ao moderno texto jornalstico


facilitavam a compreenso da morte voluntria e de sua freqncia dentro da
sociedade. A credibilidade dos jornais passava e passa pela cobertura extensa,
acurada e detalhada de dados: cotaes da bolsa, preos de mercadorias,
estatsticas, votaes, placares. No sculo XVIII, as bill of mortality entravam
neste pacote. O Northampton Mercury, por exemplo, se gabava: A Bill of
Mortality, ou conta dos batizados e enterros, ser inserida (aqui) com a mais
precisa exatido. Dizia-se isso na insinuao de que os concorrentes poderiam
estar e s vezes efetivamente estavam omitindo de suas listagens os suicidas.
Assim, at esta briga empresarial pelo nascente mercado de jornais ajudava a
consolidar a passagem do assunto da esfera religiosa para a esfera leiga sua
secularizao.

Os jornais dificilmente teriam conquistado respeitabilidade


como veculos de dados factuais se tivessem tratado as mortes
nas bill of mortality como evidncia dos julgamentos de Deus
ou influncia satnica, como as velhas folhas faziam.
(MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 306).54

53
The phenomenal growth of the periodical press and the continuing spread of literacy after 1700
transformed the hermeneutics of suicide, just as they affected almost every other aspect of social
and cultural life. The proliferation of daily and weekly newspapers and monthly reviews created a
new form of communication. Oral tradition and communal rituals played a diminishing role in
popular culture and reading became increasingly important. Pat Rogers rightly remarks that the
rise of the periodical press affected the way in which people constructed the world around them.
It greatly broadened the spatial and social horizons of its readers. It brought them news of events
that occurred all over the country, particularly in London, and it publicized new attitudes and ideas
far more effectively than pamphlets or the pulpits. It helped form political consciousness and ex-
posed provincial readers of every social rank to the values and opinions current in London society.
It also carried news of suicides to a vast audience of readers and enabled them to form their own
judgements about them. The rituals of judgement and burial were eclipsed as the chief means by
which people learned of suicides and assessed their significance.
54
The papers would hardly have gained credibility as vehicles of factual data had they treated the
deaths in the bills as evidence of Gods judgements or satanic influence, as the old broadsides had.
80

A apresentao do suicdio como mero fato da vida, como uma desgraa


igual a qualquer outra, desestimulava e ridicularizava as interpretaes
sobrenaturais do gesto de tal modo que nem mesmo o devoto doutor Cheyne
invocava mais o demnio em suas peroraes anti-suicidrias ps-1700. Sua
crena na doena inglesa se referia a fatos sociais e ao menos supostamente
cientficos, ou seja, deste mundo, no do outro. A imprensa inglesa da poca,
contudo, no se limitou a secularizar o suicdio pela revelao de sua freqncia e
de sua quantidade nas bills of mortality. O imperativo jornalstico-mercadolgico
da veracidade tambm atuava no sentido de detalhar casos especficos.
A eficincia da personalizao ainda vlida nos jornais de hoje: uma
notcia ir interessar mais fortemente ao leitor conforme adquira uma feio
humana. Informar apenas o aumento mdio do preo do material escolar, por
exemplo, no to atraente para o pblico quanto achar, nas lojas, uma
determinada me, com nome e sobrenome uma pessoa comum com quem o
leitor possa se identificar. Ao abundantemente noticiarem, crescentemente
detalharem, largamente debaterem e seguidamente reescreverem os casos mais
clebres de suicdio de seu tempo, os jornais da Inglaterra do sculo XVIII
fizeram o mesmo: mostraram que o morto era uma pessoa comum atravessando
um mau momento. Na maior parte das vezes, ele era digno de pena, no de
condenao ou excomunho.
Se a partir de 1780 o respeitvel The Times experimentou uma onda
conservadora, elogiando, por exemplo, o coroner de Middlesex por seu rigor
investigativo contra os suicidas, tambm foi capaz de carrear solidariedade a um
certo Kennedy, um ator se no eminente, til, na sua edio de 23 de junho de
1786 (citada em Sleepless souls, p. 314-315). Kennedy havia tido seu rosto
desfigurado no incndio que matou sua esposa. Por conta dos ferimentos, sua
carreira acabou. Deprimido, ele ficou paraltico depois de um derrame. Ficou
inteiramente dependente de um amigo, que, por sua vez, tambm no tardou a
morrer. Diante dessa sucesso de desgraas, o Times publicou: Pobre Kennedy,
que foi um homem de esprito e de estrita integridade, (quando sua vida) tornou-
se insuportvel, ele saiu de cena pela ltima vez com uma navalha, nos seus 66
anos!
Dois outros casos levantados na poca por Sleepless souls do bem uma
idia de a que mincias os jornais ingleses desciam no duplo propsito de
81

protestar apego aos lamentados fatos e aproxim-los do distinto pblico leitor. Os


exageros da concorrncia, porm, freqentemente faziam que o segundo propsito
preponderasse sobre o primeiro em relatos fantasiosos e de jornal a jornal, ou
mesmo de verso a verso num mesmo veculo contraditrios. MacDonald e
Murphy entendem, de um modo que ecoa Van Dijk55, que:

Num sentido, ento, os jornais eram um tipo de literatura


popular coletiva. Seus estilos e contedos eram produto dos
gostos e interesses de muitas pessoas, no apenas os de seus
impressores. Professores de literatura recentemente nos
ensinaram a interpretar obras de arte em termos de cdigos
culturais que elas expressam e refletem. Eles pediram uma
potica cultural que contemple os textos literrios como
produes coletivas manifestaes de prticas culturais e
crenas coletivas mais do que como expresso nica das
imaginaes individuais de seus autores. Nenhuma forma de
literatura se presta melhor a essa abordagem do que a
imprensa popular. (ibidem, p. 302)56

Em seu texto includo em A handbook of qualitative methodologies, o


pesquisador holands utiliza um texto publicado no jornal ingls Daily Mail, em
sua edio de 21 de janeiro de 1989, como exemplo da nfase e reproduo, pela
imprensa conservadora ocidental, de esteretipos negativos sobre minorias,
imigrantes e refugiados, assim contribuindo para o crescimento de formas de
intolerncia, preconceito e discriminao contra os povos do Terceiro Mundo na
Europa e na Amrica do Norte (1991; p. 111).
Este, afinal, o foco de sua pesquisa: o racismo no discurso jornalstico.
Van Dijk destrincha a notcia da repatriao de um refugiado do Sri Lanka, Viraj
Mendis, depois de ele ter buscado refgio numa igreja de Manchester. Encontra
nela os elementos que reforam a ideologia de seus prprios leitores: forasteiros
so perigosos e no so bem-vindos. Mendis, de quebra, chamado de
marxista, rtulo irrelevante no contexto, como nota o estudioso. Mesmo aqueles
ativistas que foram protestar contra sua deportao no entorno do aeroporto de

55
Cf. p 23 e 56.
56
In a sense, then, the newspapers were a kind of collective popular literature. Their style and con-
tent were the product of many peoples tastes and interests, not just those of their printers. Literary
scholars have recently taught us to interpret works of art in terms of the cultural codes they express
and reflect upon. They have called for a cultural poetics that regards literary texts as collective
productions manifestations of cultural practices and collective beliefs rather than as the unique
expression of their authors individual imaginations. No form of literature lends itself to this
approach more readily than the popular press.
82

Gatwick, em Londres, no escapam deste tipo de associao despropositada: so,


para o jornal, revolucionrios, gays, lsbicas e negros no exatamente os grupos
sociais aos quais os leitores do Mail so simpticos.
Nos dois casos levantados por MacDonald e Murphy, o mecanismo o
mesmo, mas atua no sentido contrrio: no o de despertar a ojeriza dos leitores e
sim o de estimular-lhes a simpatia. Detalhes irrelevantes so apresentados
Londres do sculo XVIII como estratgia para tornar os suicidas simultaneamente
mais reais e mais humanos aos seus olhos. Bilhetes de despedida, em particular,
eram disputados a tapa pelos jornais. Para os historiadores americanos, as extensas
descries permitiam transportar o leitor para a cena da morte; e os bilhetes
permitiam-lhe entrar na prpria cabea do morto, ouvir-lhe a voz, reverberando do
alm, a dar explicaes sobre o seu gesto extremo. Antes de os examinarem eles
fazem uma ponderao que se aplica tanto ao caso analisado por Van Dijk quanto
aos casos publicados no Globo em 2004, que veremos mais adiante:

O realismo uma conveno to artificial quanto a alegoria.


Para ser convincente, uma narrativa deve satisfazer nossas
expectativas do que inclui um relato verdadeiro de um evento.
Ela deve ser apta visualizao, acurada nos detalhes
circunstanciais e plausvel psicologicamente. Os jornais so
ruins para a arte mimtica. Eles oferecem pouca possibilidade
para criar uma narrativa profunda, porque a maior parte das
histrias nos jornais so curtas e a publicao seriada torna
difcil o desenvolvimento dos personagens. (MACDONALD e
MURPHY, 1990, P. 316).57

A aparncia de verdade, portanto, surge como to indispensvel ao


jornalismo como a prpria verdade. No raro se escuta nas redaes, ainda hoje,
uma frase que remete ao rocambolesco caso do veredicto para John Wilkins (cf. p.
83): Esta histria boa demais para ser verdade! Logo, a construo da
histria inventada ou no, no todo ou parcialmente por detalhes verossmeis
que impulsiona o marketing da verdade praticado pelos primeiros jornais
modernos.

57
Realism is as artificial a convention as allegory. To be convincing a narrative must satisfy our
expectations of what a truthful account of an event includes. It must be able to be visualized, accu-
rate in its circunstantial details, and psychologically plausible. The newspaper is a poor medium
for mimetic art. It affords little scope for creating narrative depth, for most newspaper stories are
short, and serial publication makes it difficult to develop character.
83

3.7
Os casos de Fanny Braddock e do casal Smith

O primeiro caso destacado por Murphy e MacDonald o de Fanny


Braddock, dama da sociedade que se enforcou em Bath, em 1731. Aps sua
morte, ela foi universalmente descrita pela imprensa como uma pessoa estimada
por seus bons comportamento e senso. A discreta nota crtica se deu no sobre o
seu ato, mas sobre seu gosto pelo jogo. Ela dissipara duas grandes heranas, de
6 mil cada, uma recebida diretamente de seu pai, outra, indiretamente, de sua
irm. A mensagem nos textos, portanto, era a de que a jogatina era um vcio
perigoso e no a de que o suicdio era um pecado. Simplesmente no se tratava
mais disso. Assim, os jornais se esmeraram no raro entrando no terreno do
meramente fantasioso sem culpas na descrio de detalhes de como seu corpo
fora encontrado.
O Fogs Weekly Journal, por exemplo, destacou o fato de que ela usou uma
cinta de ouro para se enforcar. J o Gentlemans Magazine explicou que, na
verdade, ela usara duas cintas, uma de ouro, outra de prata, para fazer o n
corredio que lhe tirara a vida. O primeiro jornal imaginava que a suicida,
imediatamente antes de sua morte, se encontrava num estado contemplativo por
causa da posio da cadeira e de um livro sobre a mesa. O segundo detalhava o
modus operandi de Fanny: um lao vermelho rasgado numa primeira tentativa, a
cadeira usada para se equilibrar antes do enforcamento etc. O Gentlemans
Magazine avanava tambm em detalhes mrbidos, como o rosto congestionado
de sangue e a lngua mordida. MacDonald e Murphy consideram este caso
especialmente interessante porque mostra o quo indeterminada era a fronteira
entre jornalismo e fico (p. 318):

Alguns anos aps a morte de Fanny, John Wood incluiu um


depoimento sobre ela em seu Description of Bath. Wood foi,
segundo ele mesmo, senhorio de Fanny durante os ltimos treze
meses de sua vida e a conhecia bem. Ele forneceu informaes
sobre o seu passado, a herana da fortuna, os hbitos e suas
conexes que no haviam sido publicadas previamente. Ele
tambm a descreveu como vtima de rumores caluniosos que a
acusavam de levar uma vida sexual promscua, mas acrescentou
que ela parecia exercer um poder mais forte sobre o desejo das
mulheres do que o seu considervel atrativo aos homens. (...)
Oliver Goldsmith, em sua biografia de Beau Nash, desenvolveu
84

uma verso ainda mais pungente da histria de Fanny. Ele a


tornou vtima de um cavalheiro inescrupuloso, cuja dissipao a
levou a gastar a sua fortuna. (ibidem, p. 318-319).58

Os autores duvidam que tanto Wood quanto Goldsmith um dos maiores


autores da poca, frisam estivessem cientes da distino entre fico e no-
fico. Interessante, no relato do primeiro, notarmos a apario no-conclusiva
do tema da homossexualidade ou, ao menos, do homoerotismo, tema ao qual aos
leitores conservadores da poca de Fanny, como, alis, os do contemporneo
Daily Mail, ainda reagem mal, como mostrou Van Dijk. Igualmente, na
reconstruo ficcionalizada do segundo, cabe ressaltar o empenho no sentido de
atrair a solidariedade do pblico desafortunada dama. Neste duplo e discreto
movimento, de repulsa e de atrao, porm, os leitores de jornais e de livros do
sculo XVIII experimentam o suicdio cotidiano de um modo substancialmente
diferente daquele vivido pelos que os precederam. Fanny emergia como uma
mulher de carne e osso, com qualidades e defeitos, no mais como uma
endemoniada ou louca. Foi nesta poca, alis, entre os sculos XVII e XVIII, que
Michel Foucault, em Histria da Loucura, localiza a conscincia de que a loucura
um problema social, com a conseqente multiplicao dos lugares destinados ao
seu confinamento. Porque era lgico, no natural, que ela configurasse uma
ameaa era que se pretendia da Razo.

A Salptrire abrigava 3.059 pessoas em 1690; cem anos mais


tarde, mais do dobro, 6.704, segundo o recenseamento feito por
La Rochefoucauld-Liancourt para o relatrio do Comit de
Mendicncia. (...) De repente, todos se pem novamente a
praticar o internamento dos loucos de que se tinha notcia ainda
na Renascena. (FOUCAULT, 2003, p. 382-383).

58
Some years after Fannys death, John Wood included an account of her death in his Description
of Bath. Wood had been, according to his own testimony, Fannys landlord during her last thirteen
months of her life and knew her well. He supplied information about her background, the inheri-
tance of her fortune, her habits, and her connections that had not been previously published. He
also depicted her as the victim of slanderous rumours charging her with being sexually loose, but
he added that she seemed to exercise a power over the desires of women stronger than her consid-
erable attractviness to men. (...) Oliver Goldsmith, in his biography of Beau Nash, developed an
even more poignant version of Fannys story. He made her into the victim of na unscrupulous gen-
tleman, whose dissipation causes her to waste her fortune.
85

Um episdio ocorrido no ano seguinte morte de Fanny Braddock ilustra


ainda melhor a humanizao da figura do suicida e a conseqente secularizao
do seu ato: o duplo suicdio de Richard e Bridget Smith, no dia 18 de abril de
1732. Antes de se enforcarem em seus alojamentos, o pai matou o filho de dois
anos com um tiro na cabea. As primeiras histrias a circular faziam de Richard o
assassino tambm de sua esposa59. Ele estaria sendo pressionado por uma parenta
dela, de quem tomara dinheiro emprestado. No noticirio, a culpa pela tragdia era
apontada muito mais para a falta de sensibilidade desta personagem misteriosa do
que para as furiosas paixes do marido. A imprensa popular inglesa da poca
como, alis, qualquer imprensa popular de qualquer perodo subseqente era
particularmente simptica aos devedores, seus potenciais leitores. Afinal, havia
cada vez mais devedores naquela poca de anomia, capitalismo iniciante,
crescimento urbano desordenado e decomposio das solidariedades tradicionais:

certo que o desenvolvimento do capitalismo um fator


importante na alta da taxa de suicdios ao curso daquele
perodo. Fundado sobre o individualismo, o risco, a
concorrncia, as apostas arriscadas, um fator de instabilidade
e de insegurana. Os sistemas de solidariedade das guildas e
corporaes desaparecem e deixam o indivduo sozinho face
sua runa. (...) A imprensa ecoa tambm os suicdios ordinrios
por desiluso amorosa, problemas conjugais, dramas familiares,
lutos insuportveis, violao, vergonha, remorso, litania
habitual das misrias humanas. Mas no impossvel que estes
casos tenham sido multiplicados por um comeo de
afrouxamento dos laos familiares, os primeiros sinais da
moderna desintegrao das grandes famlias. (...) O isolamento
do indivduo cresce no prprio seio do gregarismo e da
promiscuidade urbanos. (MINOIS, 1995, p. 218-219).60

59
Como vimos, ainda hoje, a Folha de S. Paulo recomenda que o suicdio no seja omitido quan-
do for a causa ou a conseqncia da morte de (mais) algum. Como veremos na terceira parte des-
te trabalho, homicdio seguido por suicdio tambm rotineiramente noticiado pelo Globo.
60
Il est certain que le dveloppement du capitalisme est un facteur important de la hausse du taux
de suicides au cours de cette priode. Fond sur le individualisme, le risque, la concurrence, les
paris hasardeux, cest un facteur dinstabilit et dinscurit. Les systmes de solidarit des guildes
et corporations disparaissent et laissent lindividu seul face sa ruine. (...) La presse se fait aussi
lcho des suicides ordinaires pour chagrin damour, problmes conjugaux, drames familiaux,
deuils insupportables, voil, honte, remords, litanie habituelle des misres humaines. Mais il nest
pas impossible que ces cas aient t multiplis par um dbut de relchement des liens familiaux,
les premier signes de la dsintgration moderne de la familie large. (...) Lisolement de lindividu
saccrot au sein mme de la grgarit et de la promiscuit urbaines.
86

Richard e Bridget, contudo, deixaram trs bilhetes de despedida, um para o


seu senhorio e dois para um familiar de nome Brindley. Liberados por este ltimo
para a imprensa, uma semana depois da morte do casal e do filho, eles lanaram
novas luzes sobre o episdio, dividindo a responsabilidade entre marido e mulher,
destacando a face humana, demasiado humana do seu gesto. O bilhete endereado
ao senhorio pedia-lhe que pagasse algumas contas pendentes e que arrumasse um
novo lar para o co e para o velho gato da famlia. Eles haviam deixado um pouco
de dinheiro e alguns bens especificamente com este propsito. O segundo bilhete,
dirigido ao prprio parente, acusava uma pessoa no identificada, provavelmente
um credor, pela desgraa da famlia Smith. A terceira, tambm dirigida a
Brindley, fazia uma longa defesa filosfica da morte voluntria. O conjunto era
espetacular. Tanto que o Country Journal, por exemplo, publicou toda a histria
como uma espcie de conto epistolar, pouca informao acrescentando alm da j
presente nos trs bilhetes. Ns escolhemos d-las genunas ao leitor e deixar a ele
fazer suas reflexes sobre cena to chocante (p. 320-321), justificou.

As notas eram irresistveis para os homens de imprensa por


causa das vvidas impresses que transmitiam das
personalidades dos Smith e tambm pelas vises heterodoxas
que eles propem. Eles tornam inadequadas as caricaturas
simples das histrias criminais, e os redatores modelaram seus
relatos para aumentar o seu impacto. Richard e Bridget revivem
em suas cartas como complexos e contraditrios seres humanos.
Eles eram trabalhadores e honestos, mas amargurados contra o
sistema e as pessoas que haviam punido sua labuta com pobreza
e degradao. Capazes de estourar os miolos de seu filho, eles
mostraram ternas preocupaes pelos seus co e gato
(MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 321).61

Segundo o relato do Fogs Weekly Journal, porm, eles tambm


demonstraram comoventes cuidados um pelo outro: entre os corpos pendurados
do marido e da mulher teria sido encontrada uma cortina suspensa, detalhe
interpretado como supostamente para impedir a viso um do outro quando sob as

61
The notes were irresistable to the pressmen because of the vivid impressions that they conveyed
of the Smiths personalities as well as the heterodox views that they propounded. They made the
simple caricatures of criminal story inadequate, and writers shaped their accounts to enhance their
impact. Richard and Bridget come alive as complex and contraditory human beings in their letters.
They were industrious and honest but embittered against the system and people that had punished
their industry with poverty and degradation. Capable of blowing their childs brains out, they sho-
wed a tender concern for their dog and cat.
87

agonias da morte. J o redator do Historical Register, citado por MacDonald e


Murphy, fez um significante elogio fnebre de Richard e Bridget ao escrever:
Eles foram, talvez, o mais carinhoso casal a ser encontrado nas Bills of
Mortality. Mesmo jornalistas menos simpticos ao suicdio fizeram questo de
ressaltar que os Smith eram tidos por todos os seus vizinhos como honestos,
trabalhadores e carinhosos, tamanha a simpatia despertada por eles na conscincia
de seus contemporneos.
Livros e impressos parecem envolver toda a histria do casal Smith.
Richard era encadernador. Pouco antes da sua morte, havia sido publicada, no
sem escndalo, uma apologia do suicdio escrita por Alberto Radicati, conde de
Passerano, exilado em Londres. A Philosophical dissertation upon death podia
faltar sutileza filosfica ou originalidade, mas no paixo na defesa da morte
voluntria. Radicati era um epicurista. Como os esticos, ou seja, como Cato, os
epicuristas buscavam atingir a indiferena diante da morte, a ponto mesmo de
busc-la se a Natureza, tida como fundamentalmente benvola, no mais lhes
proporcionasse qualquer pequeno prazer. Dada a profisso de Richard e o apego
da famlia pelos livros, o nobre italiano foi acusado de influenciar a drstica
deciso dos Smith.
No mais filosfico de seus bilhetes de despedida, eles tentavam justificar
seu suicdio e o assassinato de seu filho apelando no tanto ao desespero mas
razo. Eles chegavam a dizer que sua f em Deus no era propriamente f e sim
uma crena racional, deduzida da Natureza e da Razo das Coisas. Assim
sendo, diante da harmonia universal vislumbrada para alm da morte, acreditaram
que seriam julgados com misericrdia pela bondade divina, posto que no
anteviam nada mais, exceto degradao, diante de si e de seu beb. Sua defesa da
morte voluntria cuja seriedade era certificada pelo seu prprio suicdio
circulou por jornais no apenas de Londres e da Inglaterra, mas de toda a Europa,
proporcionando notoriedade obra de Radicati. No por acaso, no ano seguinte ao
suicdio dos Smith, o alarmado Cheyne publicava The English malady.
88

3.8
O papel didtico das cartas dos suicidas

No momento da morte, eles no tinham nada mais a no ser a linguagem


para endireitar o mundo (p. 327), escrevem MacDonald e Murphy acerca no
especificamente dos Smith, mas de todos aqueles suicidas que julgaram adequado
deixar uma carta para a posteridade. No era apenas uma explicao dos seus
motivos. A carta no se encerrava em si ou com a morte do remetente. Era
tambm o meio mais eficiente de influenciar a recepo do suicdio pelos
sobreviventes, a includos os conhecidos, os desconhecidos e, last but not least,
as autoridades encarregadas de apur-lo e, se fosse o caso, puni-lo. Uma grande
audincia, enfim. Neste ponto, cabe informar que as punies aos suicidas s
foram abolidas pelo Parlamento ingls em 1823 (as religiosas), 1871 (as
seculares) e 1961 (a abolio da figura jurdica do felo de se, o assassinato de si
mesmo, na Common Law).
Os historiadores americanos notaram que bilhetes de suicdio eram muito
raros no sculo XVII. Sua concluso de que o mesmo crescimento da
alfabetizao que aumentou a circulao dos jornais, o seu nmero de leitores e o
contato destes com notcias de suicdio tambm conduziu multiplicao das
cartas de despedida. Em Sleepless souls, eles conseguiram reunir 70 bilhetes do
sculo XVIII. Embora seja virtualmente impossvel separar os autnticos dos
inventados, e embora reconheam a limitao numrica de sua amostragem face
ao amplo universo da morte voluntria na Inglaterra daquele perodo, MacDonald
e Murphy acreditam que ela ainda assim seja til no sentido de atestar o
estabelecimento do bilhete de suicdio como um outro gnero literrio em si.

A maioria tanto dos bilhetes impressos quanto dos manuscritos


foi escrita por londrinos, principalmente homens e mulheres das
classes mdias. O estilo e o contedo da dzia de bilhetes
manuscritos acompanham de perto os que eram impressos nos
jornais. Como os bilhetes na imprensa, eles empregam a
retrica dos testamentos, das ltimas palavras e das cartas
pessoais. A maioria em prosa, mas vrios foram escritos em
versos. Muitos bilhetes tinham um propsito instrumental. Eles
perpetuavam a influncia do suicida ao menos por um curto
perodo aps a sua morte. Como as ltimas vontades e os
testamentos que eles freqentemente imitavam, eles
combinavam a disposio de suas propriedades, concediam
89

bnos aos sobreviventes e at expediam instrues para o


enterro de seus corpos. (...) Alguns suicidas, sabendo que suas
palavras seriam lidas publicamente durante o inqurito do
coroner, procuravam influenci-lo ou influenciar os jurados.
(ibidem, p. 327-328).62

Portanto, as pessoas aprendiam a se dirigir do alm-morte ao grande


pblico, seja nos inquritos seja nos jornais, lendo na prpria imprensa outras
cartas de despedida. Tomadas como modelos, elas ensinavam tanto o modo de se
expressar como, tambm, quais tpicos deveriam ser preferencial ou
obrigatoriamente includos. MacDonald e Murphy afirmam que, mais que
qualquer outra, a grande preocupao dos suicidas em seus bilhetes era com sua
reputao. Cientes de que, como eles mesmos haviam feito a fim de apreender
uma retrica da morte voluntria, outros leriam suas alegaes finais, no
poupavam recursos no sentido de comover a sua platia, apresentando-se, o mais
das vezes, como vtimas das circunstncias, simples merecedores de piedade, no
de animosidade.
A necessidade de prestar satisfaes confirma as idias de Durkheim sobre
a relao, pela afirmao ou pela negao, entre a morte voluntria e a sociedade
em que ela se d: o egosta se matando por estar desligado dela, o altrusta por
estar ligado demais a ela e o anmico por no mais se localizar nela. Fosse qual
fosse o tipo, ele no levava muito a srio o contedo das cartas do suicdio.

As confidncias que o prprio sujeito nos faz sobre seu estado


so, na maioria das vezes, insuficientes, quando no suspeitas.
Com muita freqncia ele levado a enganar-se a respeito de si
mesmo e da natureza de suas disposies; por exemplo, imagina
que age com sangue-frio, ao passo que est no auge da
superexcitao. (DURKHEIM, 2000, p. 166-167).

A despeito deste possvel processo de mistificao, porm, ou talvez


justamente por causa dele, as cartas de Sleepless souls no raro alcanavam um

62
The majority of both the printed and the manuscript notes were written by Londoners, mostly
men and women of the middling classes. The style and content of the dozen manuscript notes clo-
sely resemble those that were printed in the papers. Like the newspaper notes, they employed the
rhetoric of wills, of dying speeches, and of personal letters. Most are in prose, but several were
written in verse. Many notes had an instrumental purpose. They perpetuated the suicides influence
at least a brief space after his death. Like the last wills and testaments that they often imitated, they
settled the disposition of the property, bestowed blessings on their surviors, and even issued in-
structions for the burial of their bodies. (...) Some suicides, knowing that their words would be
read publicly at the coroners inquest, sought to influence the coroner or the jurors.
90

alto nvel literrio. Foi o caso da de uma nobre que se afogou voluntariamente no
mar, em Deal, em 1726. Em sua carta, publicada no London Journal, ela comea
oferecendo perdo a todos aqueles que a enganaram, inclusive um certo Mr. L,
causador de sua desgraa. Ao mesmo tempo, faz questo de esclarecer que, ao
contrrio do que o seu sedutor espalhara pela comunidade, ela no era uma
vagabunda. Apenas fora fraca diante dos repetidos apelos de Mr. L (ele
continuou de joelhos, implorando para perdo-lo; prometendo tudo o que um
homem pode dizer, diz um trecho) enquanto o marido dela estava fora, no mar. E
por a vai, dando a prpria verso dos fatos que resultaram na sua morte.

Esta carta uma extraordinria realizao. A oscilao da


autora entre raiva e dor, honradez e vergonha, dio e amor, cria
um quadro inteiramente realista de uma mente tomada por
emoes poderosas e conflitantes. Como o monlogo final de
uma herona trgica, esta carta captura a tenso entre o
reconhecimento da autora do papel que desempenhou em sua
prpria queda e sua persistncia na iluso que a arruinou.
Tragdia contempornea apenas um dos gneros que
fornecem o material literrio para esta desesperada obra de arte.
(MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 333).63

Alm do zelo com sua reputao pstuma, os suicidas do sculo XVIII


tentavam, por intermdio das palavras, ou amenizar a dor dos entes queridos ou,
ao contrrio, aument-la com um derradeiro gesto de vingana como parte da
carta da senhora de Deal. Cita-se ainda o bilhete de John Stracy, que, a despeito
do my dear de praxe no incio, culpa a mulher infiel pela sua morte e ainda espera
que o amante dela pense em sua triste catstrofe. Explcita ou implicitamente,
no final das contas, a vingana64 sempre foi um componente forte do suicdio, seja
para espicaar a j pesada culpa que toma as pessoas prximas (sem falar na culpa

63
This letter is an extraordinary achievement. The writers oscillation between anger and grief,
righteousness and shame, hate and love, creates an utterly realistic picture of a mind rent by pow-
erful and conflicting emotions. Like a tragic heroines last monologue, this letter captures the ten-
sion between the writers recognition of the part that she played in her own downfall and her per-
sistence in the delusion that ruined her. Contemporary tragedy is only one of the genres that pro-
vided the literary materials for this desperate work of art.
64
Cassorla, em O que suicdio, coleta exemplos de suicdios explicitamente vingativos. Na China
antiga, por exemplo, grupos de homens se suicidavam antes das batalhas, buscando fazer com que
suas almas atacassem furiosamente os inimigos, responsveis ltimos por suas mortes. Em certas
tribos de Gana, se o indivduo se mata culpando outro habitante da aldeia, este tambm obrigado
a se matar. O povo chuvache, da Rssia, costumava se enforcar porta dos seus desafetos. Em
muitos grupos, acreditava-se que a alma do suicida perseguia o ofensor; isso persistiu pelos tempos
e continua no psiquismo profundo das pessoas at hoje (CASSORLA, 2005, P. 38).
91

original que o prprio suicida talvez busque expiar com seu gesto) seja na crena
mstica de exercer um devastador poder prtico sobre os supostos desafetos.
Se partirmos das cartas de despedida examinadas por MacDonald e
Murphy para as cartas de despedida coletadas por Marc Etkind em ...Or not to be,
iremos encontrar a mesma retrica derivada dos testamentos escritos65, a mesma
pretenso de influenciar o julgamento dos sobreviventes e a mesma tentativa de
atrair-lhes a simpatia e a piedade, alm, claro, do mesmo subtexto de vingana.
Eis, por exemplo, um trecho da ltima carta de Adolf Hitler, que, junto
com a mulher Eva Braun, se suicidou a 30 de abril de 1945 , no bunker sob o solo
da Chancelaria, em Berlim, quando as tropas soviticas j se encontravam a
poucas centenas de metros (a Segunda Guerra acabaria na Europa oito dias
depois):

Minha mulher e eu escolhemos morrer para escapar da


vergonha da deposio ou da capitulao. nosso desejo que
nossos corpos sejam cremados imediatamente no lugar onde eu
prestei a maior parte do meu trabalho durante doze anos a
servio do meu povo. (apud ETKIND, 1997, p. 20).66

No encontramos a tanto a justificativa para o gesto e o protesto de honra


quanto a mal-disfarada acusao? De acordo com seu bigrafo Joachim Fest,
Hitler, tomado por delrios de abandono e traio nos ltimos dias de sua vida,
passou a culpar a suposta fraqueza do povo alemo pela derrota do Terceiro
Reich67. Diferentemente dos Smith, que pouparam o gato e o co, Hitler ordenou
que at a sua amada cadela pastor alemo, chamada Blondi, fosse morta, bem
como seus cinco filhotes, para evitar que tambm ela casse na mo dos
soviticos.
Outro duplo suicdio mencionado por Etkind adota, em seu bilhete de
despedida, um tom no muito diferente, apesar do contedo e da conjuntura

65
Cabe lembrar que, com Rodrigues em Tabu da morte, o testamento era oral e parte naturalmen-
te integrante do rito de morrer. A partir do sculo XII que ele se torna quase um sacramento,
sendo apropriado (e escrito) primeiro por um religioso, depois por um funcionrio pblico.
66
My wife and I choose to die in order to escape the shame of overthrow or capitulation. It is our
wish for our bodies to be cremated immediately on the place where I have performed the greater
part of my daily work during twelve years of service to my people.
67
Pela incinerao dos corpos, Hitler quis evitar que acontecesse com ele e com Eva Braun o
mesmo que acontecera com o ditador Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci: aps serem
executados por partigiani, seus corpos foram exibidos e vilipendiados por uma multido furiosa na
Piazzale Loreto, em Milo.
92

completamente diversas. o do casal Arthur e Cynthia Koestler. Autor de O zero


e o infinito, entre outras obras, o escritor, jornalista, filsofo, ex-combatente e
ativista poltico ingls nascido na Hungria foi vice-presidente de uma sociedade
pelo direito morte digna, chamada sugestivamente de Exit (sada, em ingls).
Para ela, escreveu A guide to self deliverance. Aos 77 anos de idade, sofrendo de
um tipo raro de leucemia e de Mal de Parkinson, e apesar de j mal andar ou falar,
Koestler decidiu passar da teoria ao. Deu o co de estimao e se trancou na
casa do bairro londrino de Knightsbridge para se matar ingerindo barbitricos, a 2
de maro de 1983. Sua terceira mulher e me de sua filha, Cynthia Jeffries, ento
com 55 anos, embora gozasse de perfeita sade, decidiu acompanh-lo.
No bilhete que comeara a escrever oito meses antes de sua morte,
Koestler exps suas mazelas fsicas, suas razes para cometer o suicdio e disse:
O que (...) torna difcil dar o ltimo passo a reflexo sobre a dor que ele est
destinado a infligir a meus poucos amigos vivos e, sobretudo, minha esposa
Cynthia. Ao p da pgina, porm, ela acrescentou: Eu gostaria de terminar meu
relato sobre o trabalho com Arthur uma histria que comeou quando nossos
caminhos se cruzaram, em 1949. Contudo, eu no posso viver sem Arthur, a
despeito de certos recursos interiores. Suicdios de vivas no so raros noutras
sociedades.

3.9
As cartas brasileiras e as dos resistentes franceses

O nico trabalho realizado no Brasil em torno de cartas e bilhetes alm de


fitas cassete deixados por suicidas at a presente data coube psicloga paulista
Maria Luiza Dias. Em Suicdio Testemunhos de adeus (1991), originado de sua
dissertao de mestrado na USP, ela coletou exemplos relativos aos anos de 1986
e 1987 no Instituto de Criminalstica de So Paulo, estado em cuja capital estima-
se que mais de 1.000 pessoas se matem a cada ano. Antes de enveredar pela
anlise destas ltimas palavras, Maria Luiza levanta brevemente as principais
vises (sobretudo as clnicas) sobre o tema e narra sua experincia como
voluntria do Centro de Valorizao da Vida, assim como o jornalista Otavio
Frias Filho.
93

Os exemplos levantados por ela em cartas e bilhetes de suicidas de So


Paulo guardam notveis diferenas com aqueles analisados por MacDonald e
Murphy, deixados por habitantes de Londres, duzentos anos antes. Isto a despeito
de sua falta de circulao nos jornais brasileiros. Sem platia, a retrica muda
bastante: torna-se mais ntima, menos literria, menos grandiloqente. Todavia,
eles parecem submetidos a um tabu ainda mais feroz que o que cerca o prprio
ato. Minois pensava nisso ao dizer que Montaigne, Shakespeare e Donne, entre
outros, abordavam a questo como abstrata, intelectual, filosfico e moral bem
diferente de casos concretos: (...) Tratam de um problema perigoso, uma bomba
que eles desativam por sua prpria conta afogando-a em suas hesitaes, mas que
pode ser fatal aos outros, mais dados ao que meditao (p. 159). Assim, cr
o historiador francs, fica claramente colocada a responsabilidade dos escritos
sobre o suicdio. Imagine-se, ento, o perigo dos escritos dos suicidas.
Os grupos pesquisados por Maria Luiza, MacDonald e Murphy buscam
projetar a sua existncia para o futuro, para alm de suas mortes, seja zelando por
sua reputao, seja dando instrues aos sobreviventes, seja, ainda, efetivamente
concebendo uma nova existncia, sobrenatural, menos sofrida. Nisso, so
consistentes tambm com as observaes de Cassorla de que, no fundo,
quantidade expressiva dos suicidas no quer de fato morrer, deixar de existir, e
sim se livrar de um problema pela simples e absoluta impossibilidade de pensar
a prpria morte. Em Testemunhos de adeus, a partir do Freud de Luto e
melancolia, Maria Luiza explica como o melanclico reintrojeta o objeto perdido,
amado ou odiado, e passa a se identificar com ele. O indivduo, no impulso de
livrar-se do mal que o perturba, acaba por destruir-se por inteiro. (...) Assim, o
suicdio um homicdio, onde o indivduo que mata tambm a prpria vtima
(p. 23). A expresso assassinato de si mesmo revela-se, afinal,
psicanaliticamente premonitria.
Maria Luiza opta por no identificar os suicidas, a no ser por iniciais.
O.T.C.F., homem de 36 anos que se enforcou, deixou quatro bilhetes bastante
prosaicos. Todos com indicaes prticas sobre o que fazer com seu corpo ou
como seus parentes devem se comportar. Quer que seu corpo seja cremado no
Cemitrio de Vila Alpina. No quer que ningum veja o seu cadver. Pede que o
pai e a me sejam levados to logo possvel para Araatuba. Especifica quanto
dinheiro tem em casa ou no Bradesco. R., mulher de 20 anos que se matou com
94

arma de fogo nas dependncias da PUC-SP, deixou quatro cartas e um bilhete.


Embora no conste nenhuma referncia a elas no laudo assinado pelo perito do
Instituto de Criminalstica de So Paulo, o que a faz pensar que a populao que
deixa mensagem seja mesmo muito maior do que se tem registro, Maria Luiza
informa que a notcia do suicdio de R. publicada no jornal Folha de S. Paulo as
menciona mas no as reproduz, coisa que a psicloga consegue graas cesso
pela famlia da moa. Um deles no se dirige a ningum em especial.

No posso mais continuar!


Chega!
o fim da trilha!
Tenho sofrido mais que o suportvel.
Tudo deu errado em minha vida. Talvez eu tivesse nascido em
hora errada, tempo errado. Merda!
O que quer que eu faa errado!
Ser que porque admiro Hitler, sou anarquista, esquerdista e
adepta do comunismo?
Ser que porque minha me nunca se casou?
Porque o meu pai era um panaca perfeito?
Que dio passei a ter de tudo isto!
Da vida!
Uma grande e gigantesca droga!
Meu Deus ou devo chamar pelo Diabo? Quem me ajudaria?
Uma criatura como eu, jovem, fria, inteligente, mas que em
nada deu certo.
Coloquem todas as cartas no correio lacradas como esto, isto
aliviar algumas pessoas da culpa. No culpa de ningum,
mas do sistema.
O sistema mata!
No tentem me salvar, pois outras oportunidades surgiro.
(apud DIAS, 1997, p. 204).

Esta carta um verdadeiro compndio de temas presentes nos testemunhos


de adeus, tal como tambm relatados por Etkind, MacDonald e Murphy. Fala em
narcisismo, sofrimento e culpa, na desordem da vida e do mundo, na inadequao
ao prprio tempo, em problemas com a famlia, pede providncias prticas, faz a
ameaa de se repetir caso a presente tentativa seja malsucedida. Ao mesmo tempo,
traz o distanciamento caracterstico das cartas de suicida, expresso, entre outras
coisas, pela mordacidade da meno a Deus e ao Diabo. Por fim, mas no menos
sintomaticamente (no na acepo psicanaltica, mas do ponto de vista de uma
retrica da morte voluntria), h uma meno a Hitler. O Fuehrer parece
95

desempenhar, na contemporaneidade, o papel que foi de Judas na antiguidade. o


nome que concentra a ignomnia associada ao ato de abrir mo da prpria vida.
A retrica clssica do suicdio pode ser encontrada, ainda, por exemplo, nos
ltimos bilhetes escritos pelos resistentes franceses condenados morte ou pelos
invasores alemes ou pelo governo colaboracionista de Vichy durante a Segunda
Guerra Mundial, no raro a poucos instantes de encararem o peloto de
fuzilamento. Embora formalmente eles no sejam suicidas, por no terem chegado
morte pelas suas prprias mos, grande parcela deles tem plena noo de que
chegou morte pelos seus prprios atos: sabia que a luta contra os fascistas era
passvel de punio com pena de morte. Neste ponto, tais casos se aproximam aos
dos mrtires voluntrios do cristianismo, prontos a sacrificarem a vida por uma
causa que a suplanta. Uma causa laica: a Frana, a humanidade, a liberdade, o
amanh.
Guy Krivopissko selecionou e comentou 120 cartas escritas nestas
circunstncias no livro La vie en mourir _ Lettres de fusills 1941-1944.
Aquelas que no foram escritas por homens condenados injustamente ou rapazes
que se engajaram na Resistncia sem avaliar as possveis conseqncias de seus
atos, isto , aquelas que so maioria mantm o tom dos bilhetes de suicidas
analisados por MacDonald e Murphy: tanto buscam influenciar o juzo dos
sobreviventes sobre os seus atos, garantir-se uma boa reputao, quanto
transformam algo que a princpio deveria ser apenas uma comunicao pessoal a
parentes em um discurso diante de uma platia mais ampla, de desconhecidos
capazes de lerem suas ltimas palavras em cpias mimeografadas ou nos jornais
clandestinos. O prefcio de outro historiador francs, Franois Marcot, capta-lhes
o alcance e a intensidade.

Essas cartas figuram entre os mais fortes testemunhos que a


escrita humana nos legou. A leitura e a releitura delas nos faz
chorar. Com qual direito podemos ler, publicar ou comentar
estas ltimas mensagens dos condenados, quando elas so
destinadas aos pais, aos esposos, aos prximos que os amavam?
O direito e o dever da fraternidade humana: estas ltimas cartas
se dirigem a ns porque elas narram a vida desses homens e
dessas mulheres, que se encontravam ento face morte,
palavras de homens sobre a vida do homem. Estas cartas se
dirigem a ns, tambm, porque os condenados explicitamente
96

desejaram que o sentido de seu engajamento, de sua vida, de


sua morte nos seja conhecido. (KRIVOPISSKO, 2003, p. 9).68

To tocantes nas cartas quanto os patriticos brados de Vive la France!


so as preocupaes prticas com os sobreviventes: no chore por mim, arranje
um outro bom homem como marido, cobre ou entregue meus pertences a fulano,
no brigue com sua irm, diga a nossos filhos quem fui. Nenhuma dessas cartas
foi mais reproduzida ou teve maior repercusso durante o curso restante da guerra
que a de Henri Fertet a seus pais. Aos 16 anos, ainda aluno do liceu de Bezanon,
ele se juntou Resistncia e participou de aes como a destruio de linhas de
alta tenso e a tomada de um depsito de explosivos. Preso na casa de seus pais e
torturado, foi fuzilado pelos alemes, com 26 outros companheiros, a 26 de
setembro de 1943. Na carta, Fertet fala, nesta ordem, do amor pela famlia, da
confiana na eterna Frana, avisa sobre livros emprestados, proclama que morre
voluntariamente pela sua ptria e explica: Talvez minha escrita esteja tremida,
mas porque tenho um pequeno crayon (...) Desculpem os erros de ortografia,
no h tempo de reler (idem; p. 244). Tpicas tambm so as palavras
endereadas, em dois bilhetes distintos, do campo de Choisel a seu filho e sua
companheira pelo ferrovirio Henri Barthlemy, fuzilado pelos alemes a 22 de
outubro de 1941.

Meu querido filho,


Antes de morrer, eu te envio meus ltimos pensamentos,
que sero por ti. Lembra-te de teu pai que tanto te amou e que
vai em alguns instantes reencontrar aquela que foi tua me. No
jogue na misria Yvonne, que tem todos os seus mveis na
casa. Mais uma vez, meu querido filho, eu te beijo. Teu pai, que
te ama at o seu ltimo suspiro.
Adeus, meu filho, adeus.
Barthlemy

Minha querida Yvonne,


Esta carta a minha ltima. Eu vou morrer com 29
camaradas. Tenho apenas alguns instantes por viver. Guardo at

68
Ces lettres figurent parmi les plus forts tmoignages que lcriture humaine nous at lgus. La
lecture et la relecture des dernires lettres nous font pleurer. De quel droit pouvons-nous lire, pu-
blier et commenter ces ultimes messages de condamns, quand ils sont destins aux parents, aux
poux, aux proches quils aimaient? Du droit et du devoir de fraternit humaine: ces dernires let-
tres sadressent nous parce quelles dissent la vie de ces hommes et de ces femmes, ce qui comp-
te alors face la mort, paroles dhommes sur la vie de lhomme. Ces lettres sadressent nous,
aussi, parce que les condamns ont explicitement voulu que le sens de leur engagement, de leur
vie, de leur mort nous soit connu.
97

o fim uma boa lembrana de ti. Tem coragem. Eu tenho. Ns


combatemos pela boa causa. Ela triunfar. Eu te beijo. Meus
melhores pensamentos para todos os amigos. Adeus Yvonne.
Adeus.
Barthlemy.
(apud KRIVOPISSKO, 2003, p. 75-76)69

Embora no fossem militares profissionais, os dois Henri comungam de


uma caracterstica que Durkheim, j em O suicdio, apontava como sendo tpica
dos exrcitos: o altrusmo. O socilogo chega, inclusive, a afirmar que o suicdio
militar no mais que uma forma do suicdio altrusta. No se refere nem ao
soldado que avana destemidamente sobre a metralha nem, muito menos, quele
que sabe que, uma vez capturado pelo inimigo, ser fuzilado como era o caso
dos resistentes franceses cujas cartas foram coletadas em La vie en mourir.
Refere-se, isto sim, predisposio ao altrusmo, sem o qual no h esprito
militar. Durkheim acha que, aqui, mais uma vez, cabe falar em contgio porque,
para ele, o soldado se mata diante da menor contrariedade uma recusa de
licena, uma punio considerada injusta etc. ou at, simplesmente, porque
presenciou ou ficou sabendo de outros suicdios (p. 299). Isso implica que:

da que provm os fenmenos de contgio freqentemente


observados nos exrcitos e dos quais j demos exemplos. Eles
seriam inexplicveis se o suicdio dependesse essencialmente
de causas individuais. No se pode admitir que o acaso tenha
reunido justamente num determinado regimento num
determinado ponto do territrio, um nmero to grande de
indivduos predispostos, por sua constituio orgnica, ao
homicdio de si mesmos. Por outro lado, mais inadmissvel
ainda que uma tal propagao por imitao possa ocorrer
independentemente de qualquer predisposio. (DURKHEIM,
2000, p. 299-300).

69
Mon cher fils, Avant de mourir, je tenvoie mes dernires penses, qui seront pour toi. Rappelle-
toi de ton pre qui ta tant aim et qui va dans quelques instants aller rejoindre celle qui fut ta
mre. Ne fais pas de misre Yvonne qui a tous seus meubles la maison. Encore une fois, mon
cher fils, je tembrasse. Ton pre qui taime jusqu son dernier souffle. Adieu, mon fils, adieu.
Barthlemy.
Ma chre Yvonne, Cette lettre est la dernire. Je vais mourir avec 29 camarades. Je nai plus que
quelques instants vivre. Je garde jusquau bout un bon souvenir de toi. Aie du courage. Jen ai.
Nous avons combattu pour le bonne cause. Elle triomphera. Je tembrasse. Mes meilleurs penses
pour tous les amis. Adieu Yvonne. Adieu. Barthlemy.
98

Para o socilogo, a moral militar representa a sobrevivncia de uma


moral primitiva, pela qual o indivduo est disposto a se desfazer da existncia
se assim orientado ou coagido pelas normas, seja praticando um suicdio altrusta
seja adotando um comportamento temerrio na frente de batalha. Se, entretanto,
circunstncias pessoais tambm lhe colocarem diante da opo pela morte
voluntria, o militar tambm no hesitar em pratic-la. De novo, v-se que
dificilmente um suicdio de um tipo puro, mas sim, como queria Thomson,
bigrafo de Primo Levi, se deve a uma complexa teia de fatores. Os jornais a
reproduzem.
4
Como a imprensa brasileira trata o suicdio

Retrica bastante parecida utilizada pelos resistentes franceses contra os


nazistas pode ser encontrada no mais famoso bilhete de suicdio da Histria do
Brasil, a chamada carta-testamento de Getlio Vargas. Acuado no Palcio do
Catete, no Rio de Janeiro, ento capital da Repblica, o presidente matou-se com
um tiro do seu revlver Colt calibre 32 no corao, s 8h25m do dia 24 de agosto
de 1954. Tinha 71 anos. At aquele momento, Vargas encontrava-se sob imensa
presso poltica e pessoal: a oposio udenista fazia uma campanha pesada contra
seu governo, que acabara de conceder um aumento de 100% ao salrio-mnimo; as
multinacionais o sabotavam, contrariadas pela lei que limitava a remessa de lucros
para o exterior em 10%; os militares haviam retirado o seu apoio; a quase
totalidade da imprensa o atacava ferozmente (a solitria exceo era Samuel
Wainer, cujo jornal ltima Hora fora fundado sob os auspcios do prprio
presidente).
A agonia que desembocaria no suicdio comeara dezenove dias antes,
quando o principal opositor a Vargas, o jornalista e deputado federal pela UDN
Carlos Lacerda, havia sido alvo de um atentado a tiros quando chegava de
madrugada ao seu prdio, na Rua Toneleros, 180, em Copacabana, vindo de uma
conferncia antigetulista no Externato So Jos, na Tijuca. Lacerda levou apenas
um tiro no p, sem gravidade. No entanto, o major da Aeronutica Rubens Vaz,
que voluntariamente se revezava com outros jovens oficiais da mesma arma na
segurana ao poltico, foi baleado no peito e morreu a caminho do hospital. Ao
saber do atentado, Vargas disse: Este tiro uma punhalada em minhas costas.
A arma que matara o major Vaz era de calibre 45, privativo das Foras
Armadas. Este pormenor fez as investigaes, por injunes do prprio Lacerda,
serem retiradas da polcia e levadas para a Aeronutica. Um dos trs pistoleiros do
chamado Atentado da Toneleros foi identificado e posteriormente preso, ao fim
de uma intensa perseguio que mobilizou de ces policiais a helicpteros pelo
100

Inqurito Policial-Militar (IPM) como Climrio Eurides de Almeida. Ele era um


dos 200 membros da guarda presidencial, quase todos gachos, como o prprio
presidente nascido em So Borja. Ao fim do IPM, ficou estabelecido que o
mandante direto da ao havia sido o chefe da guarda presidencial, Gregrio
Fortunato, conhecido como Anjo Negro, fiel guarda-costas de Vargas70. Acima
dele, suspeitas nunca comprovadas recaram, entre outros, sobre Lutero Vargas,
filho de Getlio, e sobre o general getulista ngelo Mendes de Morais. A partir
deste ponto, o presidente viu-se confrontado com as opes de renunciar ou de
resistir at o fim. Vargas escolheria uma terceira via. Na manh do dia 24, ps fim
prpria vida. Apenas dois minutos depois de o estampido ter sido ouvido no
Catete, Samuel Wainer recebia um telefonema de seu reprter no palcio
presidencial.

Um tiro no corao, informou Lus Costa, em prantos.


Desliguei o telefone e corri para a oficina do jornal. As
emissoras de rdio transmitiam incessantemente a notcia, e um
clima de absoluta comoo se espraiava pelo pas. Na oficina,
encontrei operrios chorando, outros desmaiados. Lembrei-me,
ento, de que a pgina com a manchete publicada na vspera
S MORTO SAIREI DO CATETE continuava composta em
chumbo. Naquele poca, tnhamos o hbito de guardar algumas
pginas numa estante, para a eventualidade de republicar certos
textos, anncios principalmente. Nos dias seguintes amos
utilizando os tipos de chumbo ali armazenados e a pgina era
desfeita aos poucos. Aquela histrica primeira pgina, contudo,
permanecia intacta, e tive a idia de republic-la exatamente
como sara na vspera, mudando apenas alguns detalhes. Numa
linha no alto da pgina, escrevi: Ele cumpriu a promessa.
Abaixo da frase em que Getlio prevenia que no o tirariam
vivo do palcio, descrevi o suicdio do presidente da Repblica.
(WAINER, 2005, p. 260).

Naquele dia, a grfica da ltima Hora imprimiu em sucessivas edies


800 mil cpias, recorde brasileiro na ocasio. Elas rapidamente se esgotaram sem
nem serem distribudas s bancas: o povo emocionado as tirava direto dos
caminhes, atirando o dinheiro para dentro dos veculos. A mesma comoo
resultou no empastelamento dos outros grandes jornais, todos antigetulistas,
sobretudo da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda. Vargas virara a mar
poltica.

70
Entretanto, Fortunato foi condenado pela Justia apenas em 1957.
101

Naquele mesmo 24 de agosto, rdios e jornais comearam a reproduzir a


sua carta-testamento. Com o passar do tempo, foram levantadas dvidas sobre a
sua verdadeira autoria e surgiu at um bilhete verdadeiro, muito menos
eloqente que a verso consagrada, possivelmente at o rascunho que Alzira
Vargas, confidente e secretria do pai, encontrara entre os papis dele em meados
do ms71. Na ocasio, o presidente tratara de tranqiliz-la: No te preocupes,
minha filha, no penso em suicidar-me. Todavia, a beleza literria de sua pea de
despedida mostra que ele ruminou longamente no apenas a deciso de sair de
cena pelas prprias mos como tambm suas ltimas palavras.

Mais uma vez, as foras e os interesses contra o povo


coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim. No
me acusam, insultam; no me combatem, caluniam e no me
do o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir
a minha ao, para que eu no continue a defender, como
sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o
destino que me imposto. Depois de decnios de domnio e
espoliao dos grupos econmicos e financeiros internacionais,
fiz-me chefe de uma revoluo e venci. Iniciei o trabalho de
libertao e instaurei o regime de liberdade social . Tive de
renunciar. Voltei ao governo nos braos no povo.72 (...)

Ao dio, respondo com o perdo. E aos que pensam que me


derrotaram, respondo com a minha vitria. Era escravo do povo
e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui
escravo no ser mais escravo de ningum. Meu sacrifcio
ficar para sempre em sua alma e meu sangue ter o preo do
seu resgate. Lutei contra a expoliao do Brasil. Lutei contra a
expoliao do povo. Tenho lutado de peito aberto. O dio, as
infmias, a calnia, no abateram meu nimo. Eu vos dei minha
vida. Agora ofereo a minha morte. Nada receio. Serenamente

71
Segundo a verso on-line do Dicionrio Histrico-Biogrfico Brasileiro, do CPDOC da Funda-
o Getlio Vargas, apesar de toda a controvrsia sobre a autoria da Carta-Testamento, h razes
suficientes para se acreditar na sua autenticidade. Vrias pessoas, entre as quais Osvaldo Aranha,
Amaral Peixoto, Tancredo Neves, o brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos, declararam ter
visto o presidente ler, assinar e guardar cuidadosamente um papel que devia ser a carta. Outro da-
do fora de discusso a participao maior ou menor na elaborao do documento do jornalis-
ta Jos Soares Maciel Filho, o redator favorito dos discursos de Getlio
(http://www2.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5458_54.asp)
72
Vargas refere-se Revoluo de 30, que o conduziu pela primeira vez presidncia da Repbli-
ca, exercida com mo de ferro durante os anos do chamado Estado Novo, de inspirao nazi-
fascista. Mesmo assim, pressionado pelos EUA e pela populao, ele mandou tropas para comba-
ter do lado dos Aliados durante a Segunda Guerra. Quando a vitoriosa Fora Expedicionria Brasi-
leira retornou da Itlia em 1945, porm, instalou-se o paradoxo: como lutar pela democracia l fora
se ela no existia aqui dentro? Embora Vargas tenha comeado a liberalizar o regime, foi deposto
em outubro pelas Foras Armadas. Nas eleies presidenciais, no entanto, ganhou o marechal Eu-
rico Gaspar Dutra, candidato lanado e apoiado por Vargas. No pleito seguinte, em 1950, seria o
prprio Vargas o candidato vencedor, agora legitimado pelas urnas.
102

dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida


para entrar na Histria. (apud NOSSA HISTRIA, 1980, p.
124).

Como se disse acima, a carta-testamento de Vargas guarda notveis


semelhanas com os patriticos bilhetes dos resistentes franceses selecionados por
Krivopissko. Porm, no apenas com eles como com os distanciados bilhetes de
suicidas ingleses do sculo XVIII e brasileiros do sculo XX, analisados por
MacDonald, Murphy e Maria Luiza Dias. Previsivelmente neste gnero literrio73,
o presidente justifica o seu gesto extremo no pelo desespero pessoal ou pela
dificlima situao poltica e sim por uma causa maior: os humildes, o povo, o
futuro do Brasil. De suas prprias palavras, o suicdio emerge no mais como um
pecado ou uma fraqueza de carter, mas como um sacrifcio ao qual ele,
destemidamente, est disposto a fazer. Qualquer suposio de desespero
afastada, tambm, pelo distanciamento sentimental, pelas belas frases de efeito
que sobreviveram na memria popular como slogans nacionalistas e pela
presuno, alis, quase certeza, de que a posteridade saberia interpretar seu ato de
modo correto e isento. Reconhece-se, neste particular, a inteno do suicida que
pretende influenciar o juzo que os outros tero a seu respeito e a tentativa
(muitssimo bem-sucedida no caso de Vargas) de fazer com que o suicdio
prolongue simbolicamente a vida.
Naturalmente, no dia 24 de agosto de 1954, no passou pela cabea de
nenhum jornalista brasileiro omitir ou mascarar a causa da morte de Vargas. Era
necessrio notici-la com todas as letras, por conta da importncia pblica do
suicida e das conseqncias do seu gesto para a sociedade (critrios que valeriam
ainda hoje em qualquer redao). Alm disso, preciso ter em mente que a
imprensa brasileira de meados dos anos 50 do sculo passado no se intimidava
diante da morte voluntria. Era uma imprensa bastante diferente da que estaria nas
bancas do final da dcada em diante. Portanto, era similar quela que o jovem
Nelson Rodrigues encontrou, quando comeou a trabalhar como reprter policial,
na redao do A Manh, jornal que seu pai, Mrio Rodrigues, fundou em 1925.
Nela, embora as pginas dos crimes fossem o fil-mignon da edio junto com as

73
Cf. p. 94 e 96.
103

dedicadas poltica e literatura, cobriam uma cidade a anos-luz do atual Rio de


Janeiro. A colorida descrio de Ruy Castro:

Os jornais da poca, principalmente os vespertinos, davam


dezenas de ocorrncias policiais por dia. E, numa cidade
lindamente sem assaltos como o Rio, em que a captura de um
ladro de galinhas era uma sensao, quase todos os crimes
envolviam paixo ou vingana. Maridos matavam mulheres por
uma simples suspeita, sogras envenenavam genros porque estes
no lhes tinham dado bom-dia aquela manh e casais de
namorados faziam pactos de morte como se estivessem
marcando um encontro no Ponto Chic.

As matrias eram feitas na delegacia ou por telefone, mas nos


casos escabrosos, a caravana do jornal (como ento se
chamava a dupla de reprter e fotgrafo) pegava o vale de vinte
mil ris para o txi e saa feito uma flecha. Era importante
chegar antes da concorrncia porque, com o rdio ainda de
fraldas e a TV inexistente, os jornais trabalhavam com o furo,
ou seja, a notcia em primeira mo. (...)

A caravana era onipotente. No se limitava a entrevistar os


parentes da vtima ou do assassino. Quando chegavam antes da
polcia, reprter e fotgrafo julgavam-se no direito de vasculhar
as gavetas da famlia e surrupiar fotos, cartas ntimas e ris de
roupa do falecido. Os vizinhos eram ouvidos. Fofocas
abundavam no quarteiro, o que permitia ao reprter abanar-se
com um vasto leque de suposies. Como se no bastasse, era
estimulado, quase intimado pela chefia a mentir
descaradamente. (No futuro, Nelson lamentaria: Hoje o
reprter mente pouco, mente cada vez menos.) De volta
redao, o reprter despejava o material na mesa do redator e
este esfregava as mos antes de exercer sobre ele os seus
pendores de ficcionista. (CASTRO, 1992, p. 47).

Interessante notar a semelhana entre o quadro descrito por Castro e o


ambiente de competio entre os jornais londrinos no sculo XVIII, tal como
pintado por MacDonald e Murphy em Sleepless souls74, ambiente que, l como c,
ensejava aventuras ficcionais nas redaes, inclusive na hora de informar casos de
suicdio. Dentro dessa cultura, por conseguinte, os detalhes sobre a morte do
presidente no gozavam de nenhum privilgio em relao aos da morte do
bancrio que tomava chumbinho por descobrir a traio da esposa. O suicdio era
notcia corrente nos jornais brasileiros do perodo. Isto, porm, iria mudar.

74
Cf. p. 85.
104

Um dos principais agentes desta mudana freqentava a mesma redao de


A Manh na qual Nelson Rodrigues era o foca que fazia a rondas das delegacias
pelo telefone, atrs dos casos escabrosos que ensejassem o despacho das
caravanas formadas por colegas mais experientes. Seu nome era Danton Jobim.
Era um dos medalhes da redao. Vinte e cinco anos depois, no comeo daqueles
anos 50, Jobim era o diretor de redao do Dirio Carioca, jornal fundado dois
anos depois de A Manh e onde surgiria na imprensa brasileira a tcnica
americana do lead (pela qual o primeiro pargrafo de cada notcia deveria
responder s seis seguintes questes: Quem? O qu? Quando? Onde? Por qu?
Como?), bem como suas decorrentes exigncias de objetividade e neutralidade.
A mudana estilstica coincidiu com uma mudana fsica na redao do
Dirio Carioca, anota Nelson Werneck Sodr em Histria da imprensa no Brasil
(1983). Em 1951, a velha sede da Avenida Presidente Vargas havia sido vendida
justamente para a ltima Hora que Samuel Wainer estava criando. O Dirio
Carioca passou a funcionar, ento, na esquina de Avenida Rio Branco e Rua So
Bento. Como toda criana bonita, a reforma tem vrios pais: Sodr credita-a ao
chefe de reportagem Lus Paulistano, que, de quebra, inventou o sublead (segundo
pargrafo, a sustentar o lead); Ana Arruda Callado, em seu artigo O texto em
veculos impressos (in CALDAS, 2002), elege Danton Jobim, por ele ter estado na
Universidade de Columbia, em Nova York, antes do terceiro candidato; este, o
chefe de redao Pompeu de Sousa, costuma ser citado pelos contemporneos.
A favor de seu eleito, Ana Arruda cita trechos do livro Esprito do
jornalismo, publicado por Jobim no final dos anos 50: O que se observa nas
redaes que o estilo do reprter melhora quando ele escreve dentro da medida
padro, do cnone, imposto pelas exigncias da tipografia e da paginao. O
limite certo obriga a esquematizar as idias e os fatos a narrar (p. 47). Como se
pode supor, o novo estilo industrializado se contraps ao velho estilo romntico,
que um Nelson Rodrigues j tarimbado ecoaria em suas crnicas cheias de
escndalos e exageros. O cadver de Vargas surgiu em meio a esta transio. Com
alguma licena potica e uma mesclise ambos agradariam em cheio aos
redatores de A Manh poder-se-ia dizer que, depois dele e da gigantesca
comoo que sua morte gerou, os jornais brasileiros tratariam o suicdio de
maneira diversa. No foi bem isto que aconteceu, naturalmente. No entanto, como
a forma determina o contedo (j na proposio citada de Jobim), o texto
105

sanitizado nos conformes do lead foi paulatinamente obrigando redatores e


reprteres a abrir mo do exagero e da fantasia, preparando o terreno para a
irrupo de uma palavra inexistente no vocabulrio de qualquer redao de jornal
em 1954: tica.

4.1
O que diz O Globo sobre tica

No Manual de redao e estilo (1992) do matutino carioca O Globo,


organizado e editado para publicao pelo jornalista Luiz Garcia, a nica e breve
meno direta ao suicdio surge exatamente no captulo denominado Questes
ticas: O jornal evita noticiar suicdios de desconhecidos, exceto quando o fato
tem aspectos fora do comum (p. 87). Na introduo a Segurana, porm,
quesito que engloba tanto o procedimento do Globo em relao morte voluntria
quanto aos casos de seqestro, como ainda a instrues para fabricao de armas e
bombas ou para burlar a lei, o manual conceitua:

Sempre que houver risco para a segurana pessoal de pessoa


inocente, dever do jornal omitir informaes que criem ou
aumentem esse risco. Cabe ao jornal informar-se para decidir,
sempre por conta prpria, se a notcia realmente perigosa.
Esse princpio tem aplicao freqente, mas no obrigatria, em
casos de seqestros. Leva-se em conta o fato de que o respeito
privacidade de algum tem um preo: significa uma informao
sonegada ao pblico (que, por exemplo, tem o direito de saber
que h uma onda de seqestros na cidade); em contrapartida,
difcil conceber notcia to importante que justifique a
probabilidade de perda de uma vida. (GARCIA, 1992, p. 87).

O texto insinua, em expresses como criem ou aumentem esse risco e


se a notcia realmente perigosa, a persistncia da noo de contgio ou de
imitao. isso mesmo? Em entrevista especialmente concedida para esta
pesquisa, Luiz Garcia, ex-editor-chefe e de Opinio, atual articulista, 69 anos de
idade, 52 de profisso e 31 de O Globo, diz que sim: Eu sempre entendi, e foi a
poltica geral do jornal, a idia de que h muita gente que suicida de imitao.
Noticia-se o menor nmero de suicdios e s se noticia aquele que tem uma
importncia, uma referncia histrica qualquer.
106

Esta ltima frase no deve ser entendida como um sinnimo para suicdio
de celebridades. A morte voluntria de uma pessoa desconhecida tambm pode ter
uma relevncia histrica que a ultrapasse. Garcia exemplifica com os suicdios em
prises. Segundo ele, necessrio notici-los. Primeiro, porque comum o
homicdio disfarado de suicdio, o que exige investigao das autoridades.
Depois, porque, se confirmado o suicdio, a morte paradoxalmente pode ser uma
informao relevante sobre as condies de vida no sistema prisional brasileiro.
As diferenas de interpretao das prprias normas de redao esto
presentes dentro de cada jornal. Contudo, geralmente elas so aplainadas antes de
o produto chegar s bancas. A despeito do que diz o Manual de redao e estilo
sobre o assunto, a percepo da maioria dos jornalistas do Globo, bem como de
boa parte dos seus leitores, a de que notcias de suicdio simplesmente no so
publicadas. Como este trabalho mostrar, elas so publicadas. Antes, entretanto,
elas passam por tantos filtros, por tantas avaliaes baseadas em critrios
jornalsticos de importncia, que apenas uma amostra delas chegar s pginas.
Esses filtros so criados ou destrudos informalmente, no dia-a-dia dos
fechamentos.
A viso que o diretor de redao Rodolfo Fernandes, 43 anos de idade, 25
de profisso e 16 de O Globo, tem da suposta periculosidade das notcias sobre
suicdio, por exemplo, substancialmente distinta da de Garcia. Em meados de
2005, na inexistncia de qualquer imposio oficial de silncio, ele reafirmou aos
seus subordinados que o jornal noticia suicdios, desde que, naturalmente, eles
preencham os pr-requisitos da relevncia jornalstica, no pelo medo difuso de
um contgio. Em entrevista, sua hiptese para o tabu que molda e era moldado
pelos procedimentos da redao remete religio:

Desconfio que mais um problema religioso, de a Igreja


catlica negar enterro, do que propriamente um medo de que se
propagassem os suicdios a pelo mundo, um medo de gerar
imitao. Isso no Brasil. No sei como na imprensa
estrangeira. Era uma dessas regras no-escritas da imprensa.
No sei como comeou. S sei que dizamos assim: No
publicamos suicdio. No prprio dia-a-dia, em decises que
ns fomos tendo de tomar, a regra no-escrita foi sendo abolida.
No h motivo para no noticiar um suicdio, sendo que voc
noticia coisas muito mais violentas, agressivas e potencialmente
destrutivas para a moral da sociedade. At porque esta uma
longa discusso na imprensa. O que se publica que vai gerar
107

danos sociedade? H uma quantidade grande de leitores que


acha que existe violncia no Rio de Janeiro porque os jornais
publicam violncia no Rio de Janeiro. Ento, por a, voc no
publica mais nada, no tem jornalismo. (FERNANDES, 2005).

O diretor executivo Agostinho Vieira, 45 anos de idade, 25 de profisso e


20 de O Globo, cinco deles passados no comando da editoria Rio, interpreta as
normas do jornal de modo ligeiramente diverso dos de Garcia e Fernandes. O
suicdio um ato pessoal, ntimo, desesperado, maluco e talvez at libertador,
dependendo da crena de cada um, diz ele, em entrevista Se este ato fica
limitado deciso ntima e no interfere na vida de outras pessoas, da cidade ou
do pas, o jornal deve respeitar e no se envolver nisso. Claro que existe o temor
de que a publicao de uma notcia de suicdio sirva de inspirao para algum
mas esse no o motivo ou o critrio principal, acredita Vieira. Segundo ele,
mesmo porque o temor de que a notcia seja contagiosa no se limita aos
suicdios:

Com certeza existe esse temor. A responsabilidade de um jornal


muito grande e esse medo faz parte do nosso dia-a-dia.
Pessoalmente no acredito muito nisso. Pelo menos no
acredito como regra. Uma vez, quando era Editor da Rio,
publicamos uma matria sobre um menino de 12 anos que
matou o amigo a porrada depois de ter visto o filme Karat
Kid na TV. Com certeza o maior problema desse garoto no
foi ter visto as lutas do Daniel-san. (VIEIRA, 2005).

Vieira recorda, ainda, uma das notcias de suicdio publicadas quando de


sua passagem pela chefia do noticirio local uma das notcias mencionadas nas
normas de redao do concorrente O Dia75. No dia 17 de maio de 1990, O Globo
publicou, em detalhes, a histria de Celestino Jos Rodrigues Neto, o Netinho, de
14 anos, que se matou com o revlver calibre 38 do pai, sargento da Aeronutica.
Dias antes, ele fora surpreendido colando de um livro de Geografia durante uma
prova no Colgio Militar, onde cursava a oitava srie do Ensino Bsico. Tirara
zero e havia sido punido publicamente com seis dias de suspenso e a perda de
seis pontos no quesito Comportamento durante a formatura semanal de sua
turma. Achou que submetera sua me a uma grande humilhao e entrou em

75
Cf. p. 72.
108

depresso. Matou-se com um tiro na cabea, deixou uma carta-testamento e virou


notcia, cujo texto foi assinado pelo reprter Mcio Bezerra.
Reproduzida integralmente pelo jornal, a sua carta de despedida,
endereada me, Magda Rego Rodrigues, guarda notveis semelhanas com a de
Henri Fertet76, no tom contido e no contedo prtico. Netinho pede desculpas
me, por ter sido o responsvel pela humilhao, exime o colega Clvis de culpa
no episdio, atribui o problema a dois outros alunos e destina os seus pertences
aos parentes e aos amigos. (...) O skate e o quadro para o meu melhor amigo,
Marcos Gadelha de Lima (Bolo). A bicicleta, a prancheta e os lbuns para o meu
segundo melhor amigo, Marcelo Gomes de Lima (Bolinha) (...), escreveu o
garoto, por exemplo. Depois, agradeceu me: Obrigado pela vida que voc me
proporcionou at hoje. Houve dvida sobre a publicao da notcia do suicdio de
Netinho? Vieira acredita que no, justamente pelo interesse coletivo:

O caso do menino que deixou a bola de herana para um amigo


era uma histria emocionante e foi muito bem contada pelo
Mcio. Envolvia o Colgio Militar e o rigor das cobranas do
colgio e dos pais. Ou seja, um drama envolvendo muita gente.
Mas acho que no chegamos a ficar na dvida se publicvamos
ou no. (idem, 2005).

Para Fernandes, a notcia de um suicdio no se distingue essencialmente


de qualquer outra notcia. Cada uma deve ser avaliada dentro de seu prprio
contexto. Um pobre coitado que pula da Ponte Rio-Niteri talvez no merea
registro, um(a nota no) coluno na (editoria) Rio, se tanto. No entanto, se o
mesmo saltador estiver sendo perseguido pela polcia, depois de assaltar um
banco, a histria j outra e ter de ser avaliada em sua singularidade.77 Como
sempre em jornal, voc tem de estar atento ao bom gosto, em no expor violncias
desnecessrias, coisas gratuitas, mesmo dentro do enorme contexto de violncia
da cidade tem, afirma o diretor de redao do Globo.
Pelo fato de um suicdio ser considerado, em princpio, um ato ntimo,
pessoal e desesperado, ela igualado a outras notcias que o jornal opta por no
publicar em respeito privacidade. Nessa linha, tambm no publicamos a
notcia de um poltico muito famoso e conceituado que tem um filho fora do

76
Cf. p. 102.
77
Cf. p. 31.
109

casamento, exemplifica Vieira. Ou que o jogador X ou Y se droga todos os dias,


ou que o ator fulano de tal gay e adora festas sadomasoquistas... A idia a de
que notcias assim em nada interferem na vida da sociedade.
Mesmo fotos de cadveres em vias pblicas tambm so evitadas na
primeira pgina do jornal. Houve o dia, porm, em que um fotgrafo registrou um
cadver sendo carregado num carrinho de mo, favela da Rocinha abaixo, depois
de um confronto entre os traficantes e a polcia. Excepcionalmente, O Globo
decidiu public-la. Seguramente grande parte dos nossos leitores ficou chocada
com aquela foto, conta Fernandes. Era uma foto chocante, um fato chocante.
No tinha como no d-lo de uma forma chocante. Talvez chocar fosse uma forma
de denunciar tambm.
O recurso ao bom senso que remete, por sua vez, opinio comum de
Tocqueville (cf. p. 41) tambm faz parte da argumentao de Garcia, que,
diferentemente de Fernandes e em concordncia parcial com Vieira, cr no efeito
multiplicador do noticirio sobre suicdio:

Outro fator que deve ser considerado a proximidade. O


suicdio do cantor de rock australiano vai ter muito menos
efeito propagador, digamos assim, do que se o Cauby Peixoto
se matar. O risco de reflexo muito maior. sempre uma
questo em aberto. O bom senso faz com que as decises da
grande imprensa tendam a coincidir. No uma coisa
combinada. Na imprensa, nada se combina. Quando algum diz,
a imprensa decidiu fazer tal coisa mentira, porque voc no
v o (diretor do jornal O Estado de S. Paulo, Ruy) Mesquita
ligar para o Joo Roberto (Marinho, vice-presidente das
Organizaes Globo) e dizer: O que voc acha? Ah, ento
vamos nessa! H, isso sim, uma briga de foice por um
mercado cada vez menor. (GARCIA, 2005).

Houve, no entanto, um caso de suicdio em que jornalistas mas, ainda a,


no os donos das empresas de ao menos duas publicaes se comunicaram de
modo a estabelecer um procedimento comum em relao a um de seus aspectos: o
do mdico e escritor Pedro Nava. Por volta das 23h30m do dia 13 de maio de
1984, ele se matou com um tiro de revlver na cabea. Estava sentado num meio-
fio do bairro onde morava, a Glria, prximo a uma rea em que prostitutas e
travestis habitualmente fazem ponto. Tinha 80 anos, estava a dias de receber o
ttulo de Cidado Fluminense (era mineiro) da Assemblia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro e mal havia comeado a escrever o stimo volume (intitulado
110

Cera das almas) da monumental obra memorialstica iniciada por Ba de ossos


em 1972.
O suicdio de um personagem de tal magnitude no poderia passar
despercebido nas redaes dos jornais. Ainda assim, e embora Nava tenha
escolhido uma via pblica para consumar o ato, houve dvidas sobre a maneira de
noticiar sua morte. Para Luiz Garcia, a cultura de no publicar notcias de
suicdios estava to arraigada que quase venceu o dever jornalstico. Num
primeiro momento, houve uma tendncia a no dizer que era suicdio, lembra.
Depois, chegou-se concluso de que tinha de dar o suicdio, porque certas
pessoas tm tanta importncia que no se pode omitir este fato. O caso virou
referncia.
A publicao de que Pedro Nava havia se matado, entretanto, estava longe
de encerrar a questo. Faltava explicar, ou no, o que o levara a se matar. Cerca de
duas horas e meia antes de ele ter feito o disparo contra a prpria cabea, Nava
recebeu um telefonema que o deixou perturbado. Sua mulher, Nieta, para quem
acabara de ler o discurso de agradecimento pelo ttulo de Cidado Fluminense e
que atendera a ligao, reparou que, depois de ouvir o que o homem do outro lado
da linha tinha a dizer, Nava parecia ter sido vtima de algum abalo, alguma
chantagem. Contudo, ela foi ao banheiro e ele se aproveitou disso para pegar o
revlver numa gaveta e sair sem se despedir, pela porta dos fundos do
apartamento da Glria. Antes de meia-noite, Pedro Nava estava morto.
J no dia seguinte chegou s redaes o boato de que Nava se matara
porque estava sendo ameaado de ter a homossexualidade divulgada por um
garoto de programa com quem se relacionara, um certo Beto da Prado Jnior.
As equipes das diversas publicaes saram a campo para apurar se aquilo era ou,
ao menos, tinha a possibilidade de ser verdade.
Ento chefe da sucursal da revista Isto no Rio, o jornalista Zuenir
Ventura, hoje colunista do Globo, narra o episdio em seu livro de memrias,
Minhas histrias dos outros. Dois jornalistas da revista, Artur Xexo e Jos
Castello, foram encontrar o tal Beto e voltaram redao impressionados com o
relato do rapaz, que colocava a culpa da chantagem num outro garoto de
programa, chamado a participar dos seus encontros com Nava. Quase ao mesmo
tempo, na redao da concorrente Veja, o relato de Beto tambm impressionara os
111

jornalistas Flvio Pinheiro e Dcio Malta, respectivamente chefe e subchefe da


sucursal carioca.

Entre dois fogos, eu continuava em dvida. Liguei ento para


Flvio Pinheiro (...). Tanto quanto ns, eles dispunham apenas
da verso do rapaz. Normalmente, concorrente no consulta
concorrente, a no ser para coisas menores: uma declarao que
o reprter perdeu numa coletiva, trecho de um discurso. Nunca
para tpicos mais relevantes, menos ainda para tratar da edio
de como se vai dar uma matria. Mas aquela era uma situao
nova para ns dois. (VENTURA, 2005, p. 169).

As redaes, ento, se dividiram internamente entre os que queriam apurar


mais para confirmar ou refutar a verso de Beto e os que queriam simplesmente
ignorar a questo da homossexualidade de Nava. Pesadas as opes, ganhou a de
no mencion-la na ocasio78. Para Garcia, no caso do mdico e escritor omitir
este detalhe equivaleu a renunciar a explicar toda a histria: Como vo se fazer
os livros de Histria depois? Se o cara vai aparecer em livro de Histria, em
antologia, se o cara vai ser citado em alguma coisa, j obrigao no tirar isso da
biografia dele. O jornalista Humberto Werneck, ento na Isto, embora no
tenha tido qualquer influncia na no-publicao da informao pela revista, faz
uma autocrtica importante porque teria votado por ela.

Sinto vergonha das futuras geraes, da gerao dos meus


filhos, sinto vergonha do futuro bigrafo de Pedro Nava quando
fosse remexer no assunto, j distante da circunstncia: eu era
jornalista naquele momento e fui a favor de sonegar ao leitor
uma informao importante. (apud VENTURA, 2005, p. 172).

Para Zuenir:

O caso Pedro Nava encerra uma das questes ticas mais


complexas do jornalismo: os limites entre aquilo que pblico
e cujo conhecimento um direito de todos e um dever do
jornalista divulgar e o que, por pertencer esfera privada,
deve ser mantido como tal. Nava era um homem pblico que
escolheu uma via pblica para praticar um gesto que, ele sabia,
teria repercusso, chegaria imprensa e seria investigado em
suas causas e motivaes. O ato final de sua tragdia foi
exposto como um espetculo de rua.

78
S dois anos depois do suicdio, comearam a aparecer menes homossexualidade de Nava.
112

(...) Hoje, acho que os jornais e revistas teriam publicado mais


do que publicamos, embora se deva admitir que ainda cultivem
uma boa dose de tabus e interditos morais. (VENTURA, 2005,
p. 173).

O diretor de redao do Globo, Rodolfo Fernandes, tem um ponto de vista


distinto. Para ele, as mudanas entre 1984 e 2005 no foram grandes a esse ponto:
Se o Pedro Nava tivesse se matado hoje, no haveria dvidas quanto a noticiar o
suicdio, mas ainda teramos cuidado com a questo da homossexualidade, cuja
importncia no estava muito clara no episdio.
Todavia, tabus e interditos morais se modificam, conforme se modificam
as circunstncias objetivas da vida em sociedade, na qual a imprensa desempenha
um papel simultaneamente de formadora e de repetidora de opinio. As mudanas,
entretanto, podem ser lentas a ponto de no serem percebidas no interior de cada
gerao. Por isso, uma das mais significativas diz respeito ao tratamento dado
pelos jornais do Rio de Janeiro aos casos de seqestro.
Antes da poca de redao do manual do Globo, por exemplo, o
comportamento geral da imprensa carioca em relao aos seqestros ocorridos na
cidade era bastante diferente do que aquele nele prescrito. Quase invariavelmente
acatava-se a exigncia dos seqestradores reforada pelo desespero das famlias
dos seqestrados de manter silncio sobre os casos, como, alis, acontecia com
os suicdios. O colunista Ancelmo Gois, h seis anos no Globo, tem uma opinio
original sobre o fim da lei do silncio em torno destes temas. Para ele, quem de
fato a quebrou foi a multiplicao e a concorrncia de outros meios de
comunicao:

H no muito tempo, o figuro ligava para o doutor Roberto


Marinho aqui no Globo, ligava para o doutor Nascimento Brito
no Jornal do Brasil e ligava para o doutor Ary de Carvalho no
Dia e pedia para que os jornais no noticiassem o suicdio da
mulher dele. Era atendido. Hoje, enquanto ele est dando os
telefonemas, os sites na internet, as rdios e os canais de TV por
assinatura, em desabalada competio pelo furo, j esto
noticiando o fato. A informao circula mais e mais rpido.
(GOIS, 2005).

O seqestro do publicitrio Roberto Medina, dono da agncia Artplan e


idealizador dos festivais Rock in Rio, em 1990, comeou a mudar o modo de os
jornais cariocas perceberem como poderiam colaborar melhor tanto com o cativo
113

(e sua famlia) quanto com a polcia (e a Justia): no silenciando e sim noticiando


os crimes desde que, logicamente, preservadas quaisquer informaes
financeiras que pudessem vir a estimular o apetite dos bandidos.
Hoje, como explica Luiz Garcia, entende-se que atender o pedido da
famlia para que o seqestro no seja noticiado no ajuda o seqestrado em nada
e s facilita a vida do seqestrador, alm de criar um efeito multiplicador dos
seqestros. Quebrar o silncio foi determinante para que o Disque-Denncia,
criado em 1995 e administrado por Zeca Borges, funcionasse mais eficientemente
no Rio do que em So Paulo79. Aqui, o risco criado para os seqestradores pela
cultura da denncia annima feita por cidados de bem, que tomam conhecimento
dos crimes pela imprensa, fez com que tal crime deixasse de compensar. L, a
imprensa decidiu manter-se calada e os seqestros continuam muito comuns. Se
isso no causa e efeito..., ironiza Garcia. Ele chegou a escrever uma coluna
intitulada O direito de denunciar sobre o assunto:

Para que os cidados disquem para denunciar importante,


claro, que saibam que seqestros andam acontecendo. O que
ocorrer se os meios de comunicao o informarem disso. (...)
Infelizmente, isso comprovado tambm pelo confronto com a
atitude dos meios de comunicao de So Paulo, que no
apenas atendem a todos os pedidos de sigilo sobre seqestro
como do pouca importncia ao registro de crimes em geral. E
l, mesmo sem o problema das favelas enquistadas em todos os
cantos da cidade, crimes como seqestro esto em alta. Cada
um publica o que acha relevante, e no estou aqui para ensinar
o ofcio a ningum. (...) Mas tenho certeza de que quase sempre
publicar o que mexe com a vida do cidado melhor do que
abusar de um suposto dever de o proteger de pedaos
desagradveis da realidade. (GARCIA, 2005, p.7).

Rodolfo Fernandes concorda com Garcia e oferece um exemplo um


exemplo, alis, que serve tambm para o que Gois diz sobre a multiplicao e a
acelerao da informao. O cativeiro do publicitrio Washington Olivetto s foi
estourado em 2002 porque a Rede Globo o anunciou, diferentemente dos jornais
paulistanos em papel, que, fiis a suas prprias avaliaes, no o noticiaram.
Seno aquela menina na casa ao lado, que ouviu o cara bater na parede dizendo
que era o Washington Olivetto, ia achar que era um trote, lembra. Se ela no

79
Alm de Rio e So Paulo, hoje tambm h telefones do Disque-Denncia funcionando em Cam-
pinas, Caruaru, Itaperuna e Recife, alm dos estados do Esprito Santo e de Gois.
114

soubesse o que estava acontecendo, no teria avisado polcia. Para Fernandes, a


quebra do silncio na televiso pode ter salvo a vida do dono da agncia W/Brasil.

Dar seqestro hoje uma regra muito clara. A gente d


seqestro como um servio. Nunca ningum vai chegar para o
Globo e dizer foi seqestrado um figuro do Rio de Janeiro,
vamos evitar dar. Isso no existe. Est muito claro que hoje em
dia a gente noticia qualquer tipo de seqestro. Mas, mesmo
neste caso, com algumas condies. Por exemplo, a gente no
noticia valor de resgate. No d ao bandido informaes sobre o
estado financeiro da vtima. (FERNANDES, 2005).

Agostinho Vieira acrescenta:

No damos o patrimnio da famlia, evitamos dizer o valor do


resgate porque isso pode servir de parmetro para os
seqestradores etc. Mas publicamos a notcia e damos sempre,
com destaque, a cara dos bandidos. Essa deciso no tem sido
acompanhada pelos jornais de So Paulo, que no do notcias
de seqestro. Mas acho que o tempo mostrou que tnhamos
razo. Quando damos a notcia, publicamos a foto e divulgamos
o telefone do Disque-Denncia, a polcia tem muito mais
chances de resolver os casos. No podemos ser coagidos por
bandidos. (VIEIRA, 2005).

Garcia, entretanto, no atribui a postura dos jornais paulistanos ao


bairrismo ou a qualquer tentativa de esconder a violncia local. Prefere a
explicao urbano-geogrfica. So Paulo tem a populao de classe alta e classe
mdia de um lado e a marginal nas marginais (dos rios Tiet e Pinheiros), diz.
O crime e a violncia tm l os seus lugares definidos. No mexem tanto com a
vida da comunidade em geral. Assim, como a pobreza que ocasiona a maior parte
da violncia est longe da vista de quem l e de quem faz jornal, os rgos de
imprensa praticamente a ignoram em seus noticirios locais e a exibem muito
justamente escandalizados em seus noticirios nacionais, dando a falsa impresso
de que o Rio de Janeiro, por exemplo, uma cidade mais violenta do que So
Paulo80. Neste ponto, mais uma vez, v-se como h uma relao dialtica entre
sociedade e imprensa, em que uma interage sobre a outra. Isso implica uma viso

80
Ranking feito pelo Ministrio da Sade entre 2000 e 2004, com base nas estatsticas de mortes
no-naturais (homicdios, mortes por arma de fogo sem causa determinada, suicdios e acidentes
de trnsito), mostra que a violncia paulistana a maior do pas e quase o dobro da carioca, segun-
da colocada: alcana um ndice de 11,53, contra 6,75. Entretanto, o primeiro lugar no ranking iso-
lado dos assassinatos de Maca (RJ), com 108,15 homicdios por 100 mil habitantes.
115

bem mais complexa do que a mera emissor-receptor. Ou, como diz Miquel
Rodrigo Alsina:

A teoria da construo da temtica (agenda-setting) aponta


claramente que muito possvel que os mass media no tenham
o poder de transmitir s pessoas como elas devem pensar ou
atuar, mas o que conseguem sim impor ao pblico o que ele
h de pensar. Por ela, em princpio, se pode afirmar que a
efetividade do discurso jornalstico informativo no est na
persuaso (fazer crer) ou na manipulao (fazer fazer), mas
simplesmente em fazer saber, em seu prprio fazer
comunicativo. (ALSINA, 1989, p. 14).81

O que a imprensa pretende fazer saber, no entanto, estabelecido no


apenas por uma agenda prpria, mas tambm pela percepo e pelo reflexo de
mudanas na sociedade a que ela se dirige. Mudanas, claro, que ela tambm
ajudou a ensejar. Logo, mesmo num tema como o suicdio, sobre o qual
aparentemente paira um interdito imutvel, alteraes significativas podem ser
percebidas num perodo relativamente curto, do ponto de vista histrico. Duas
geraes. Ou cinqenta anos. esta a distncia entre a morte de Getlio Vargas
(1954) e o ano objeto de anlise mais detalhada (2004) no presente estudo.

4.2
A cobertura do Globo em 2004

Para lembrar o ex-presidente, O Globo publicou, no dia 22 de agosto de


2004, um caderno especial de 16 pginas sobre sua vida e sua morte. Durante todo
o ano, o suicdio de Vargas mereceu expurgadas matrias secundrias, sobre
exposies e documentrios, por exemplo 60 menes nas pginas do jornal.
Parece muito, mas trata-se, como vimos, de um suicdio fixado no passado, pico,
altrusta, para usarmos a denominao de Durkheim. Ao matar-se por uma causa

81
La teora de la construccin del temario (agenda-setting) apunta claramente que es muy posible
que los mass media no tengan el poder de transmitirle a la gente cmo deben pensar o actuar, pelo
lo que s consiguen es imponer al pblico lo que han de pensar. Por ello, en principio, se puede
afirmar que la efectividad del discurso periodstico informativo no est en la persuasin (hacer
creer) o en la manipulacin (hacer hacer), sino sencillamente en el hacer saber, en su propio hacer
comunicativo.
116

maior do que a sua prpria vida, o Brasil, o povo, Getlio Vargas de certa forma
se inocentou do pecado de ter infringido um tabu. Exatamente como os mrtires
da f ou da coletividade estudados pelo socilogo francs.
A linguagem utilizada pelo editorial de O Globo do dia 24 de agosto de
2004, 50 aniversrio da morte do presidente, admite isso quando diz:

Poucos fatos da Histria se eternizaram como o suicdio do


presidente Getlio Vargas. O tiro que Vargas disparou no
corao na manh de 24 de agosto de 1954, talvez o gesto
pessoal mais ousado da crnica da nossa Repblica, transcende
o ato em si. Alm de sacramentar a entrada de Vargas na
Histria como uma espcie de mrtir do povo como ele
prprio intuiu e registrou na carta-testamento o suicdio teve
at mesmo o poder de adiar por uma dcada uma ruptura
institucional cujas razes, profundas, vinham do movimento
tenentista da dcada de 2082. (s/a, 2004, p. 6).

Luiz Garcia comeou a trabalhar como jornalista em 1953, ano anterior ao


suicdio de Vargas. No s isso. Seu primeiro emprego foi na Tribuna da
Imprensa, de Carlos Lacerda, vizinho de prdio da famlia Garcia na Rua
Toneleros 180, em Copacabana. Nesta condio, cobriu parte do julgamento de
Gregrio Fortunato. No tempo de Vargas sequer se discutia essa questo de no
publicar suicdio, conta. No me lembro de este assunto ser discutido. Mas no
era uma deciso tomada, de publicar ou no publicar. Publicava-se naturalmente,
no se encarava isso como uma questo. Em 1957-1958, Garcia estudou, numa
bolsa conseguida pelo prprio Lacerda, na mesma Universidade de Columbia que,
anos antes, inoculara com a idia ento revolucionria do lead o pessoal do Dirio
Carioca. Garcia ficou na Tribuna da Imprensa at o Golpe de 64, trabalhou
brevemente no Globo e nas sucursais cariocas dos principais jornais paulistanos.
At ali, no ouviu ou participou de nenhuma discusso tica sobre o suicdio.
No que os jornais no fossem ticos ou fossem ticos, afirma. que no era
uma questo que se considerava necessrio discutir.
Na Veja, onde trabalhou de 1972 a 1974, como correspondente em
Washington, a questo tica era suplantada pela proeminncia dos mortos: A
revista no trabalhava com o noticirio corriqueiro, mas apenas com o suicdio de
pessoas muito famosas. Trinta e um anos atrs, de volta ao Brasil e,

82
O editorial se refere ao golpe militar de 31 de maro de 1964.
117

definitivamente, ao Globo, ento dirigido por Evandro Carlos de Andrade, Garcia


pela primeira vez se viu num pas e num jornal onde havia discusses ticas a
serem travadas, entre elas a do suicdio. Contudo, por ter estado no exterior dois
anos, ele hoje no consegue estabelecer um marco para a mudana de
comportamento da imprensa brasileira em relao ao tema, de comum e
escandaloso a raro e discreto.
Cabe registrar, porm, que o retorno de Garcia ao Brasil praticamente
coincide com a suposto suicdio do jornalista Vladimir Herzog nas instalaes do
DOI-Codi de So Paulo, de 24 para 25 de outubro de 1975. Em 2004, por sinal,
cinco matrias publicadas pelo Globo lembraram a morte suspeita de Herzog, cujo
corpo com marcas de tortura poca gerou uma crise no seio do prprio regime
militar. O pretexto foi a publicao, pelo Correio Braziliense, de fotos de um
homem ainda vivo, nu e desconsolado no DOI-Codi: provavelmente o ento
diretor de jornalismo da TV Cultura. A sua viva Clarice Herzog reconheceu-o.
Para a Agncia Brasileira de Informao (Abin), entretanto, o homem na foto no
seria Herzog, mas outro investigado pelos rgos de segurana da ditadura, no
em 1975, mas em 1974. A identidade deste suposto outro preso no foi revelada.
Alm das 60 matrias sobre Getlio Vargas e das cinco sobre Vladimir
Herzog, dois outros suicidas ou supostos suicidas do passado brasileiro foram
objeto de reportagens do Globo durante o ano de 2004: Tito de Alencar Lima, o
Frei Tito, e Iara Iavelberg. O primeiro enforcou-se em L'Arbreste, no sul da
Frana, em 1974. Segundo deciso da Comisso Especial de Mortos e
Desaparecidos polticos, tomada em 10 de agosto (e registrada no jornal na edio
do dia seguinte), sua famlia ganhou direito a indenizao porque concluiu-se que
seu suicdio decorreu das seqelas fsicas e psicolgicas deixadas pelas torturas a
que foi submetido pelo regime militar. J Iara se matou a bala em Salvador, Bahia,
em 1971. Segundo a mesma comisso, em deciso anunciada pelo Globo para 1
de dezembro, a militante poltica e ltima companheira do guerrilheiro Carlos
Lamarca se suicidou porque estava acuada pelo Exrcito no seu encalo. Iara
tambm ganhou direito a indenizao do governo. No caso dela, a reportagem de
Evandro boli, da sucursal de Braslia, menciona o tabu religioso enfrentado pelos
Iavelberg:
118

Em 2003, a famlia de Iara obteve na Justia direito de exumar


o seu corpo, enterrado no Cemitrio Israelita de So Paulo. A
me e os trs irmos de Iara contestam a verso de que a ex-
guerrilheira se suicidou e querem tirar seus restos mortais da ala
de suicidas do cemitrio judaico. Para os judeus, o suicdio
considerado ofensa e, por isso, o corpo enterrado de costas e
prximo do muro do cemitrio, longe do tmulo da famlia.
(BOLI, 1/12/2004, p. 13).

As duas decises da Comisso Especial de Mortos e Desaparecidos


cumpriram, alm de sua funo precpua de restaurao histrica, outra misso,
simblica: ao reconhecerem a culpa do regime militar pela morte de Frei Tito e de
Iara Iavelberg, de certa forma os absolveu de seu prprio suicdio, dando sustento
s alegaes da famlia dela (e, possivelmente, da do religioso tambm).
Somados, os textos sobre os suicdios altrustas de Getlio Vargas,
Vladimir Herzog, Frei Tito e Iara Iavelberg totalizam 67 quase metade das 142
menes ao tema nas pginas do Globo no decorrer de 2004. Das 75 restantes, 37
mencionam o suicdio de maneira mais ou menos genrica, por tratar do tema ou
em abstrato ou fazendo referncia a acontecimentos distantes do tempo etc.. So
estudos (por exemplo, sobre o crescimento do nmero de casos de suicdio entre
os soldados americanos servindo na Guerra do Iraque), entrevistas (com o
cientista poltico alemo Rolf Tophoven, sobre o ataque terrorista islmico a uma
escola de Beslam, Osstia do Norte), artigos (do cronista Luis Fernando
Verissimo e dos jornalistas Ali Kamel e Mauro Ventura), recapitulaes (uma
nova hiptese ligando o Brasil ao atentado Associao Mutual Israelense
Argentina, em Buenos Aires, no ano de 1994, no qual morreram 85 pessoas) e
ameaas no-consumadas por homens-bomba (contra o estdio Old Trafford, do
Manchester United).
Ou seja: apenas 38 no total de 142 so notcias sobre mortes voluntrias de
fato ocorridas em 2004. Ainda assim, destas, menos de 25% nove ocorreram
fora do contexto de atentados terroristas. Todas as outras 29 noticiam a morte em
ao de militantes radicais no Paquisto, no Afeganisto, no Iraque, na Palestina,
em Israel, na Turquia, na Rssia, na Espanha e at na Bolvia. Com exceo desta
ltima, efetuada por um mineiro desempregado dentro do anexo do Congresso
119

boliviano83, em La Paz, no dia 30 de maro, as outras 28 foram praticadas por


muulmanos, o que, para utilizarmos a definio de Alsina, pode fazer saber ao
leitor algo enganoso, ou seja, que o Isl leniente para com a morte voluntria.
Entretanto, isto no seria verdade. No islamismo, a condenao do suicdio
similar do judasmo e do cristianismo. Bane o fiel dos campos santos e
envergonha as famlias. S se pode comet-lo em nome de Deus. Jamais em nome
do fiel.
Mais especificamente ainda, destes nicos nove casos (sendo que um
envolve as mortes de nove jovens japoneses que fizeram um pacto) de suicdio
no associado a terrorismo, apenas trs foram cometidos no Estado do Rio de
Janeiro, um em So Joo do Meriti, o outro em So Pedro DAldeia e o terceiro na
capital. O que nos leva questo da proximidade levantada anteriormente por
Garcia84. Se a possibilidade de um dado suicdio despertar, no bojo da reao a
ele, um outro suicdio (configurando o contgio ou a imitao) est na
proporo direta da proximidade com quem a cometeu, faz sentido que dos 96
casos registrados pela pesquisa do Ministrio da Sade que visava estabelecer o
ranking das cidades brasileiras com mais mortes violentas85 somente um tenha
sido registrado no jornal.
Esta, ao menos, seria uma boa teoria conspiratria. Porque uma
porcentagem certamente maior dos 2.220 homicdios anotados pela mesma
pesquisa no Rio de Janeiro em 2004 chegou s pginas do Globo. Embora ele no
adote a linha popularesca do se espremer, sai sangue, raro o dia em que no
traga a notcia de ao menos um assassinato. Logo, de alguma forma, e o
depoimento de Garcia o confirma, teme-se que a publicao da notcia de um
suicdio estimule algum leitor a cometer outro suicdio.
Em Ideologia e tcnica da notcia (1982), Nilson Lage destaca seis itens
que, no campo da avaliao emprica, estabelecem se uma notcia merece ou no
ser publicada, isto , se ela vai ou no interessar ao leitor. So eles a proximidade,

83
Tipicamente, o governo boliviano rapidamente negou que a ao que matou dois policiais a-
lm do mineiro, identificado como Eustquio Picachuri, de 47 anos e feriu outros dez configu-
rasse um ataque terrorista. Durante uma coletiva de imprensa especialmente convocada para tran-
qilizar a populao, o ento presidente Carlos Mesa chegou a qualificar Picachuri como uma
pessoa desesperado com um conjunto de peties de carter estritamente pessoal.
84
Cf. declarao p. 115.
85
Cf. nota p. 120.
120

a atualidade, a identificao, a intensidade, o ineditismo e a oportunidade.


Trocando em midos: cada notcia publicada correlaciona internamente um, dois
ou vrios desses itens, criando a um valor jornalstico.
Como a noticiabilidade dos acontecimentos uma valorao assumida
socialmente, embora no necessariamente compartilhada (ALSINA, 1989, p.
108), importante ressaltar que a proximidade pode ser mais do que meramente
fsica. O raciocnio corrente de que o homem se interessa principalmente pelo
que lhe est prximo. No entanto, esta proximidade varia tanto com as trocas
materiais (o comrcio) quanto com as trocas culturais ou populacionais
(migraes) (LAGE, 1979, p. 67). Para o meu propsito, isto significa que o
prximo pode ser o padeiro vizinho que comete o suicdio, mas tambm,
dependendo do caso, o personagem romntico de uma novela alem do sculo
XVIII ou um roqueiro angustiado de Seattle86. Ambos se enquadram na categoria
das trocas culturais.
Se o objetivo desta pesquisa comprovar e, na medida do possvel,
entender o temor de que alguma notcia publicada possa trazer para usar a
expresso constante no Manual de redao e estilo do Globo risco para a
segurana pessoal de pessoa inocente parece-me natural que ela se detenha mais
meticulosamente sobre aqueles casos que, de acordo com o peso dos fatores
proximidade e identidade, se afigurem mais potencialmente perigosos. Ou seja os
trs acontecidos no Estado do Rio, embora sobre o de Meriti haja exigidade de
dados.
Abordarei tambm, por se valerem da mesma linguagem, os seis nicos
outros casos em que o(s) suicida(s) no era(m) terrorista(s), pois parece-me
necessrio estabelecer algum parmetro pelos quais eles possam ser medidos em
seu valor jornalstico. Em cinco deles, o morto ganhou o direito de ser
metaforicamente enterrado sob as pginas do jornal ainda portando nome,
sobrenome, humanidade. Se tomarmos esta deferncia como uma metfora para o
tmulo individualizado, podemos lembrar Jos Carlos Rodrigues em Tabu da
morte:

86
Em tempo: duas semanas depois de Kurt Cobain cometer suicdio, em 1994, O Globo enviou a
Seattle o seu correspondente em Washington, Jos Meirelles Passos, com a misso de estabelecer
uma geografia sentimental do lder da banda Nirvana. O resultado foi publicado em duas pginas
inteiras do Segundo Caderno de 22 de abril daquele ano.
121

(...) O tmulo individualizado, quer pela escritura quer pela


representao da figura do morto, era um luxo. Para o mortal
comum, a nica marca que aponta para uma sobrevivncia
simblica no aqui uma marca coletiva, a grande cruz plantada
no meio do terreno de inumao, sobre a qual periodicamente
se escrevia um epitfio coletivo, dirigido a todos os vivos por
todos os mortos e ainda presente nos cemitrios das cidades do
sculo XIV. (RODRIGUES, 1983, p. 127).

Como contraponto a esta individualizao lanarei mo tambm de dois


exemplos de notcias de atentados cometidos por homens ou mulheres-bomba.
importante frisar, de imediato, que os atentados terroristas de 11 de maro de
2004, em Madri, perpetrados pela al-Qaeda e que mataram 191 pessoas, no
lanaram mo de homens-bomba, apesar das suspeitas iniciais. Os explosivos
foram acionados por celulares. Na caada policial aos responsveis que cinco
deles, cercados num apartamento da capital espanhola, cometeram suicdio.
Conquanto a identidade de um ou outro terrorista suicida (altrusta) possa
vir a ser estabelecida, freqentemente em vdeos preparados antes da ao, a
reclamar a autoria dos atentados e um lugar no Paraso, o que sempre lhes
negado justamente o direito humanidade. Isto diz respeito no somente ao
carter desumano termo extremamente auto-benevolente, posto que apenas o
bicho homem comete atos desumanos de sua ao, mas tambm velha idia de
que o suicdio tem algo de sobre-humano de louco ou de demonaco. No dia-
a-dia, no raro a sua morte sequer computada claramente entre as causadas pela
prpria ao terrorista. No foi o caso, excepcionalmente, do mineiro boliviano.:

Trs pessoas morreram dentro de um anexo do Congresso da


Bolvia depois que um suicida detonou explosivos que levava
junto ao corpo, na tarde de ontem. Alm do suicida um
mineiro desempregado morreram na exploso dois policiais
que tentavam negociar com ele. (s/a, 31/3/2004, p. 35).

A ambigidade quanto incluso da morte do suicida ou dos suicidas entre


as vtimas de sua prpria ao tem, parece-me, o propsito de apaziguar a
conscincia do leitor, de afast-la do fato de que ao menos uma daquelas pessoas
que no Iraque ocupado por vezes atingem a casa das centenas morreu
voluntariamente. O choque pela brutalidade de sua ao soterra esta evidncia
igualmente perturbadora. O que acontece, portanto, duplamente ambguo: o
terrorista suicida condenado, mas no pela sua prpria morte. Assim sendo, seu
122

fim individual pode ser desinfetado e inscrito na ordem da normalidade e se tornar


incuo. Ao menos, naturalmente, para o leitor brasileiro. So conhecidos os
efeitos multiplicadores das suas aes e, logo, dos seus suicdios, entre os jovens
rabes sem perspectivas que vem no martrio islmico um atalho para o Paraso.

4.2.1
Uma jovem palestina em Jerusalm

No dia 23 de setembro, O Globo publicou, em sua pgina 31, editoria O


Mundo, a notcia de um atentado a bomba contra guardas de fronteira israelenses
em Jerusalm, cometido por uma palestina de 18 anos, Zeinab Ali Issa Abu
Salem. Naquele momento, tratava-se do primeiro atentado do tipo na cidade em
sete meses. A matria foi publicada em seis medidas ou seja, ocupando toda a
largura da folha tamanho standard do jornal no meio da pgina, abaixo de uma
reportagem sobre o risco de epidemias no Haiti aps a passagem da tempestade
tropical Jeanne e acima de um anncio e de uma coluna de trs notas: uma sobre o
programa nuclear iraniano; outra sobre o novo diretor da CIA; e a terceira sobre
um talib americano que combinou sua libertao com o Departamento de Estado.
Isto significa que ela no foi escondida pela edio da pgina: quem
fechou a notcia do ataque suicida julgou-a possivelmente levando em conta
os mesmos itens de avaliao emprica que Lage chama de atualidade, ineditismo
(no caso, pelos ltimos sete meses) e oportunidade merecedora no s deste
espao, como ainda de uma foto, que chama a ateno do leitor para o texto,
sinalizando-lhe a importncia. A foto colorida mostra um dos 17 feridos no
atentado sendo socorrido por mdicos israelenses.
na linguagem utilizada, porm, que se apresentam os estratagemas
caractersticos, embora dificilmente conscientes, para se desviar o foco do suicdio
da terrorista. A palavra suicida, alis, aparece apenas uma vez, no ttulo, lugar
de destaque, mas apenas ali: Palestina suicida mata 2 em Israel. O subttulo traz:
Jovem de 18 anos detona bomba em Jerusalm pela primeira vez em sete meses.

JERUSALM. Uma mulher-bomba palestina matou ontem dois


policiais de fronteira israelenses e feriu outras 17 pessoas num
atentado em Jerusalm, o primeiro do tipo em sete meses na
cidade. Paralelamente, o primeiro-ministro Ariel Sharon
123

anunciou que a retirada unilateral israelense dos 21


assentamentos da Faixa de Gaza e de quatro na Cisjordnia
comear em meados de 2005 e durar um ano.

O ataque ocorreu no bairro de French Hill, na parte oriental da


cidade, habitada majoritariamente por rabes e tomada da
Jordnia em 1967. A palestina Zeinab Ali Issa Abu Salem, de
18 anos, aproximou-se de um ponto de carona usado por
soldados e, ao ser abordada pelos policiais, detonou os
explosivos que levava numa bolsa. Os guardas de fronteira
Menach Komami, de 19 anos, e Mamoya Tahyo, de 20,
morreram.

Ela jogou o corpo para trs e houve a exploso contou uma


testemunha, Debbie Segal, Rdio do Exrcito.

As Brigadas dos Mrtires de al-Aqsa disseram que o atentado


foi uma resposta morte de cinco de seus militantes pelo
Exrcito israelense em Nablus na semana passada. A mulher-
bomba era do campo de refugiados de al-Askar, na Cisjordnia,
tinha nove irmos e, segundo sua famlia, acabara de passar nos
exames do Ensino Mdio. O premier palestino, Ahmed Qorei,
condenou o atentado. (...) (s/a, 23/09/2004, p. 31).

Note-se que o texto no utiliza nem a palavra suicida nem a palavra


suicdio. A morte de Zenaib est apenas e to-somente subentendida na
descrio de sua ao. Ela sequer foi contabilizada entre as duas ocorridas no
atentado.

4.2.2
O dia mais violento no Iraque

No dia 3 de maro, a mesma editoria O Mundo havia dedicado uma pgina


inteira, a de nmero 33, quele que, como dizia o ttulo da matria, era O dia
mais sangrento no Iraque at ento, desde a queda do ditador Saddam Hussein e
da ocupao do pas for foras anglo-americanas. Na vspera, uma srie de
ataques na capital, Bagd, e em Karbala havia matado mais de 180 pessoas e
deixado quase 500 feridos. Em ambas as cidades, os homens-bomba se infiltraram
em multides que festejavam a Achura, maior festa do calendrio dos
muulmanos xiitas. Nela, lembra-se a morte do im Hussein, neto do profeta
Maom, numa batalha perto de Karbala, no ano 680, travada por ele se recusar a
jurar lealdade ao califa Yazid, da dinastia rival dos omadas. Hussein foi
decapitado e sua cabea levada para Damasco. O fato marca a separao definitiva
124

entre sunitas, seguidores da tradio, e xiitas, seguidores de Ali, pai do im morto


e genro de Maom.
O outro Hussein, Saddam, pertence minoria sunita do Iraque e durante o
seu governo (1979-2003), a festa foi proibida em todo o pas. O principal suspeito
pelo planejamento dos atentados do 2 de maro o terrorista jordaniano Abu
Musab al-Zarqawi, brao da rede al-Qaeda no Iraque. No se pode, contudo,
afastar a hiptese de eles terem sido obra da resistncia sunita, descontente com a
queda de Saddam e a ocupao militar. Tudo isso, e bastante mais, est dito ou
sugerido na pgina do Globo, tanto no noticirio principal quanto num box
histrico sobre a Achura e num infogrfico sobre os principais atentados no
Iraque.
Constam ainda da pgina uma foto em preto-e-branco (maior) de um
ferido aguardando socorro em meio a destroos e corpos despedaados em
Karbala e outra foto em preto-e-branco (menor) mostrando os xiitas golpeando-se
na cabea at sangrarem, para rememorar o sofrimento do im Hussein. O
material todo mereceu chamada na primeira pgina do jornal.
Dada a dimenso da srie de atentados, compreensivelmente no h o
nome das vtimas ou dos terroristas. Estes so mencionados brevemente.

(...)
Mais de dois milhes de fiis se reuniram em Bagd e Karbala
para os festejos, os primeiros em dcadas, pois eram proibidos
por Saddam. Na capital, trs terroristas suicidas mataram 70
pessoas perto da Mesquita de Kadhimiya. Um quarto terrorista
foi preso antes de detonar os explosivos que levava consigo.

Vi um homem andar para dentro da multido e explodir. Ele


simplesmente dissolveu-se no ar contou um zelador da
mesquita.

Aps as exploses, uma multido de milhares de pessoas


marchou at uma base americana e atacou os soldados com
pedras.

Em Karbala, a chacina foi responsabilidade de um nico


suicida, junto com morteiros e explosivos escondidos na
multido. Pelo menos 112 pessoas morreram em seis exploses
ocorridas por volta de 10h (hora local). (...) (s/a, 3/3/ 2004, p.
33).
125

Neste texto, diferentemente do relativo ao atentado executado pela jovem


palestina, h referncias a suicidas. Os quatro terroristas (trs em Bagd e um em
Karbala) so assim qualificados, bem como mencionado um quinto, que no
conseguiu detonar os explosivos que levava consigo e foi preso na capital. Tal
qual a notcia analisada anteriormente, porm, suas mortes so apenas sugeridas,
recebendo uma ligeira nfase graas cinematogrfica descrio do zelador da
mesquita de Khadimiya (dissolveu-se no ar).
Tanto no primeiro caso quando neste, o essencial da notcia est no
resultado do ato terrorista e no no detalhe que ele prprio foi, por assim dizer,
detonado por quatro suicdios em nome da f. No se trata, mais uma vez, de
apenas desviar a ateno do leitor, de modo que ele no se detenha nas motivaes
de algum disposto a sacrificar a prpria vida por uma causa, mas, tambm, de
encarar este gesto poltica e existencialmente radical como ordinrio. Essa
naturalidade, associada ao preconceito ocidental sobre o mundo islmico,
neutraliza a universalidade do suicdio. Ele se torna coisa de fantico, de maluco,
do Outro, no de gente normal. Assim, o leitor pode ler o jornal tranqilamente.
O mesmo O Globo, entretanto, informou no dia 13 de maio que um estudo
publicado na revista New Scientist dizia que a imagem estereotipada dos
terroristas suicidas como fanticos religiosos no corresponde verdade. O autor
do artigo, Michael Bond, analisou 500 atentados em que o terrorista se matou,
ocorridos no mundo inteiro desde 1980, para chegar a esta concluso. Para Bond,
este tipo de terrorista no menos racional ou est menos mentalmente so. No
tem um menor nvel de educao nem mais pobre. Tampouco mais religioso
do que os outros terroristas (p. 32).
Na notcia, Bond ressaltava que este resultado mais alarmante do que o
esteretipo porque aumenta enormemente o campo de surgimento para novos
terroristas suicidas. Havendo as circunstncias adequadas, qualquer um pode se
tornar um terrorista, afirmou. Em outras palavras, qualquer um tambm pode se
tornar um suicida. Mas quais seriam as circunstncias adequadas? Para Bond, a
formao, pelas organizaes, de pequenos grupos de voluntrios que se tornam
alvo de intensa doutrinao ideolgica. Este sentido de servio comunidade,
mais especialmente a uma irmandade de companheiros, a razo mais importante
pela qual se persuadem pessoas racionais a se converterem em terroristas
suicidas, concluiu Bond. Destaque-se que, embora se apresente como
126

ousadamente nova tanto nos termos do artigo da New Scientist quanto nos da
notcia do Globo, a proposio inteiramente compatvel com o que Durkheim
escreveu em O suicdio, mais de um sculo antes.

4.2.3
O pacto suicida dos jovens japoneses

No dia 13 de outubro, a editoria O Mundo do Globo noticiou, em sua pgina


24, a descoberta dos corpos de nove jovens japoneses, mortos por asfixia, dentro
de dois carros alugados. Numa camionete estacionada perto de Saitama, 50
quilmetros a oeste de Tquio, a polcia encontrou quatro homens e trs mulheres,
com idades variando entre 20 e 30 anos. Em Kanagawa, 50 quilmetros ao sul da
capital do Japo, um carro parado em frente a um templo escondia os cadveres de
mais duas mulheres, igualmente jovens. Em ambos os veculos, os mortos haviam
acendido fogareiros e morrido intoxicados por monxido de carbono, pois as
janelas tinham sido fechadas.
A notcia ocupa quatro colunas no meio da pgina. No h fotos. Acima
dela est reportagem sobre a investigao oficial da morte de uma adolescente
palestina com mais de 20 tiros disparados por soldados israelenses. Eles
suspeitaram que Iman al-Hams carregava explosivos em sua mochila e atiraram
nela quando ela estava a 70 metros do seu posto, no campo de refugiados de
Rafah. Os soldados denunciaram seu comandante pela morte. Ao lado da notcia
sobre o pacto suicida no Japo est uma coluna com duas notas, uma sobre a
libertao de um mafioso na Itlia e outra sobre negociaes entre EUA e Ir em
torno do programa nuclear. Na parte inferior da pgina, vem a seo Cincia e
Vida, tratando, entre outras coisas, de um estudo italiano que associa genes
homossexualidade. A notcia oriunda do Japo mereceu chamada na pgina dois
do jornal.
A linguagem da matria sobre as mortes voluntrias direta. Diz o ttulo:
Pacto suicida entre 9 jovens no Japo. Diz o subttulo: Casos de morte coletiva
no pas podem ter sido organizados pela internet. O lead igualmente objetivo:
127

TQUIO. Os corpos de nove jovens japoneses mortos por


asfixia foram encontrados ontem em dois carros alugados, em
dois lugares perto de Tquio, no que provavelmente o maior
caso de suicdio coletivo no pas. A polcia investiga se as
mortes foram organizadas pela internet. (s/a, 13/10/2004, p. 24).

O texto se destaca pelo contexto, pelas informaes que complementam


a notcia propriamente dita, da metade para o final, como se l a seguir:

(...)
Alm de a polcia no encontrar indcios de violncia, os jovens
deixaram mensagens relatando a inteno de se matar. Na
camionete estava o testamento de uma das vtimas pedindo
desculpas pelo suicdio. Uma outra havia enviado na segunda-
feira um e-mail a um amigo avisando que ia se matar.

A mensagem indicava o local preciso do suicdio, e o amigo


nos avisou declarou o porta-voz da polcia de Saitama.

No carro em Kanagawa tambm foi encontrada uma nota: No


se trata de assassinato. Ns planejamos isto.

No se sabe se os casos esto relacionados, mas o mtodo leva


a polcia a suspeitar de ligao com a internet. Recentemente o
Japo tem observado uma onda de suicdios nos quais as
pessoas usam a internet para buscar companhia para morrer.

Dezenas de sites sobre suicdio foram criados recentemente no


Japo e muitos oferecem conselhos de como se matar. No
entanto, especialistas dizem que no adianta culpar a internet e
que um olhar mais atento deveria ser lanado sociedade em
que os casos ocorrem.

Segundo a polcia, 24 pessoas cometeram suicdio coletivo


desde o ano passado, em atos organizados pela internet. Desde
janeiro foram 20, contando as vtimas de ontem. (ibidem).

O trecho final do texto parte do que h de especfico na notcia para o


geral, situando a descoberta dos corpos no dia 12 de outubro dentro de um quadro
maior de suspeio: o de que a internet estaria ajudando a alastrar a idia do
suicdio entre os jovens isto no seio de uma sociedade j normalmente menos
horrorizada com ele do que a ocidental. O contgio aqui se daria,
apropriadamente, como um vrus de computador. Um velho perigo atualizado
pela tecnologia.
128

Talvez valha a pena fazer somente um ligeiro reparo histrico ao texto


publicado pelo Globo a partir de material enviado pelas agncias de notcia.
Certamente o caso de Saitama/Kanagawa no o maior caso de suicdio coletivo
no pas. Em tempos de paz, talvez. Porque, na Segunda Guerra, por fidelidade ao
imperador ou por vergonha da derrota, unidades inteiras do Exrcito cometeram
haraquiri, o tradicional suicdio ritualizado, praticado em nome da honra.
A eles se aplica o que Durkheim escreve ao examinar o suicdio de tipo de
altrusta: Se o homem se mata, no porque se arroga o direito, mas, o que
bem diferente, porque tem o dever (2000, p. 272). Se o indivduo foge a esse
dever, advm a desonra e os castigos religiosos porque, do mesmo modo que a
sociedade veda a morte voluntria de seus membros, ela tambm pode obrig-los
a se destruir. Para ele, ao suicida egosta, ela fala uma linguagem que o desliga
da existncia; ao altrusta, ela prescreve formalmente abandon-la (p. 273).
Para Durkheim, em ambos os casos o sacrifcio imposto pelos fins sociais.
No nos cabe, aqui, tentar adivinhar as motivaes por trs dos suicdios dos
nove jovens de Saitama/Kanagawa, embora a explicao padro de que eles se
encontram pressionados por uma sociedade extremamente competitiva e
ritualizada seja razovel, para no dizer tentadora. Insistir nisso, porm, poderia
implicar resvalar no etnocentrismo fantasioso de que o prprio Durkheim no
escapa ao falar dos japoneses, que se matariam pelas razes mais insignificantes:
Conta-se at que eles praticam uma espcie de duelo estranho em que os
adversrios lutam, no usando a habilidade de se atingirem mutuamente, mas a
destreza de abrir seus ventres com as prprias mos (ibidem, p. 276-277).

4.2.4
Um executivo italiano da Parmalat

No dia 24 de janeiro, na pgina 35 do jornal, a editoria de Economia


noticiou o suicdio, na Itlia, de um assessor financeiro da Parmalat, Alessandro
Bassi, de 32 anos. O registro se insere no contexto especfico o que, de certa
forma, o afasta e isola do leitor carioca tanto quanto o caso dos jovens japoneses
de um escndalo envolvendo quantias astronmicas na companhia de leite e
derivados que, at ento, atuava vigorosamente no mundo, inclusive no Brasil.
Como desdobramento de um caso rumoroso, o que nos remete ao item atualidade
129

da lista de Lage, a morte abre um noticirio que, de maneira alguma, se detm


nela.
Na verdade, o suicdio de Bassi funciona praticamente como um gancho
para atrair a ateno de um leitor que, de outra forma, o jornal correria o risco de
perder por exausto diante de um assunto quela altura velho de duas semanas nas
pginas. O ttulo, sobretudo, tem enorme poder de atrao: Parmalat: assessor
financeiro se mata na Itlia. E ainda reforado pelo subttulo: Funcionrio
trabalhava com os ex-diretores Fausto Tonna e Luciano Del Soldato, presos
devido a fraudes contbeis. Bassi ocupa os trs primeiros pargrafos do material,
que totaliza 12 pargrafos e teve chamada na primeira pgina do jornal, e depois
sai de cena, para no mais ser citado, nem nos dias seguintes:

PARMA e MILO. Alessandro Bassi, assessor financeiro da


Parmalat, suicidou-se ontem se jogando de uma ponte, na
cidade de Rubbiano di Solignano, prxima a Parma, segundo
informou a polcia. Bassi trabalhava diretamente com os ex-
diretores financeiros da Parmalat Fausto Tonna e Luciano Del
Soldato, dois dos 11 presos devido ao escndalo de mais de
US$ 12 bilhes em fraudes envolvendo a companhia. A polcia
local apressou-se em descartar a hiptese de assassinato.

claramente um suicdio. Um pedestre o descobriu disse


um policial.

Bassi, de 32 anos, era empregado do departamento financeiro


da Parmalat e foi interrogado por juzes esta semana, mas no
estava sob investigao. Em nota divulgada ontem, Enrico
Bondi, administrador responsvel pela tentativa de reerguer a
Parmalat, expressou condolncias famlia, que, por sua vez,
disse a jornalistas que Bassi estava muito estressado com o
escndalo financeiro.

(...) (s/a, 24/1/2004, p. 35).

O suicdio emerge das palavras claramente como um suicdio de honra,


altrusta. Para retomar Durkheim, Bassi no exerceu um direito ao tirar a prpria
vida. Pelo contrrio, ao agir assim, obedeceu a uma presso social sobre a sua
conscincia individual, foi forado a faz-lo por vergonha da desonra de estar, de
alguma forma, associado a atos ilcitos. O texto, simultaneamente, se empenha em
afastar de modo enftico a suspeita de assassinato, comum nas circunstncias de
uma quadrilha lutando para salvar a pele. Tal movimento contrrio ao que se v
mais comumente (veremos adiante) nas pginas dos jornais: o de colocar em
130

dvida a ocorrncia do suicdio, levantando a hiptese de um assassinato


disfarado.
Na mesma pgina 35, h ainda uma foto colorida do ex-diretor financeiro
Fausto Tonna, no momento de sua priso, dez dias antes; duas matrias oriundas
do Rio de Janeiro (Produtor do Rio quer duplicata da empresa) e de So Paulo
(No Brasil, metade da produo est parada); e, em seu miolo, um anncio
colorido, irregular no formato, do lanamento de um filme nacional.
H, porm, um interessante e pequeno box na metade interna da pgina, a
da esquerda, por se tratar de pgina mpar. Sob o ttulo Suicdios no mundo
corporativo, historiam-se trs casos recentes de mortes voluntrias praticadas por
altos funcionrios de grandes empresas. O primeiro o do americano John
Clifford Baxter, ex-vice-presidente da notoriamente fraudulenta Enron. O
segundo, do sul-coreano Chung Mong-hun, diretor-executivo da Hyundai Asan,
brao turstico do grupo Hyundai. Baxter deu um tiro na cabea. Chung, acusado
de ter enviado US$ 500 milhes para Coria do Norte, pulou do seu escritrio
num 10 andar.
O terceiro pargrafo do box merece reproduo integral por sua vinculao
ao caso anterior, o dos jovens envolvidos num pacto: O Japo, pas do seppuku
(suicdio ritual), no fica de fora. No fim dos anos 90, durante uma crise do
sistema bancrio, vrios executivos se suicidaram, incluindo Takayuki
Kamoshida, presidente do Banco do Japo, em maio de 1998. (s/a, 24/1/2004, p.
35).

4.2.5
O fim da carreira do Dr. Morte

No dia 14 de janeiro, a editoria O Mundo havia publicado, pgina 28, a


notcia de que Harold Shipman, mais conhecido como Dr. Morte, mdico
considerado o maior assassino em srie da histria da Gr-Bretanha, havia sido
encontrado morto em sua cela na penitenciria Wakefield, em West Yorkshire, no
dia anterior. Na data da edio de O Globo, Shipman estaria completando 58 anos.
Ele estava preso desde 2000, quando fora condenado, pela morte de 15 pacientes,
a 15 penas perptuas consecutivas. Uma investigao subseqente, no entanto,
revelou que o mdico havia matado ao menos 215 pacientes, talvez 260,
131

sobretudo mulheres idosas que viviam sozinhas, com doses letais de herona,
desde 1977.
Casado e pai de quatro filhos, ele nunca admitiu os crimes, para os quais,
como si acontecer, havia tentativas divergentes de explicao: para uns, o
mdico queria brincar de Deus; para outros, ele ficara traumatizado com a morte
da me, que tinha cncer e tomava herona para aliviar a dor. Com este currculo,
no causa espanto que o provvel suicdio de Shipman ficasse em segundo plano.

(...)

Funcionrios da Penitenciria Wakefield, em West Yorkshire,


encontraram-no pela manh, pendurado numa forca feita com
lenis presos s barras da janela. Eles ainda tentaram reanim-
lo, mas no conseguiram. Shipman esteve sob vigilncia em
outras prises porque as autoridades temiam que cometesse
suicdio. Mas segundo Jane Parsons, porta-voz do Servio
Penitencirio britnico, ele no parecia oferecer risco prpria
vida.

Seu comportamento no era causa de preocupao. E ele no


havia recebido ameaas contou Parsons.

Embora os indcios apontem para suicdio, ser aberta uma


investigao.

(...)

Os parentes das vtimas estavam revoltados com a notcia do


suicdio, reclamando que assim nunca sabero por que os
pacientes foram mortos.

Foi uma sada fcil para ele. Shipman nunca demonstrou


remorso, e agora a porta est fechada para ns declarou Jane
Ashton-Hibbert, cuja av, Hilda, foi assassinada. (s/a,
14/1/2004, p. 28).

Nas declaraes tanto da porta-voz do Servio Penitencirio britnico


quanto da neta de uma das vtimas de Shipman, encontram-se dois juzos
freqentemente associados ao suicdio. Primeiro, que a pessoa precisa demonstrar
algum tipo de inteno de se matar para ser realmente vigiada (no era causa de
preocupao). Segundo, que o suicida foge de alguma coisa (uma sada fcil).
Uma ignora que a morte voluntria, como Durkheim comprovou pelo cruzamento
de estatsticas, um fenmeno da razo, no da loucura. Outra, que
132

perfeitamente aceitvel um ponto de vista contrrio, no-religioso: de que um


suicida est indo voluntariamente ao encontro de algo que todos os outros
tememos. Ademais, embora ele estivesse condenado priso perptua, 15 delas, a
nfase na vigilncia aproxima o caso do Dr. Morte daqueles de condenados
morte vigiados dia e noite para no fazerem aquilo que o Estado se arroga o
direito exclusivo de fazer.
Dada a notoriedade de Shipman, a notcia da sua morte foi publicada, com
o ttulo chamativo Dr. Morte encontrado enforcado e o cauteloso subttulo
Aparente suicdio na priso do mdico que matou 215 pacientes revolta parentes
das vtimas, no alto da pgina, em cinco medidas, com uma foto em preto-e-
branco da venda de um tablide de Manchester anunciando o seu enforcamento87.
Faziam-lhe companhia, na pgina, a divulgao de uma gravao que ligaria o
primeiro-ministro israelense Ariel Sharon a um escndalo de fundos de campanha
eleitoral; a notcia da condenao de um editor de mangs (histrias em quadrinho
japonesas) por pornografia, em Tquio; e a seo Cincia e Vida, destacando o
fato de que 12 pessoas haviam morrido de gripe aviria no Vietn.

4.2.6
A danarina brasileira na Espanha

Embora Elizngela Barbosa Guimares fosse brasileira, o seu suicdio ainda


no faz parte daqueles que melhor atendem ao pr-requisito de proximidade na
avaliao emprica da notcia. Ela se matou em Gijn, na Espanha, e sua morte
parece ter sido, ainda que indiretamente, relacionada com os atentados terroristas
de Madri, meses antes. Portanto, a notcia da sua morte foi publicada ainda na
editoria O Mundo, na edio de 14 de dezembro de 2004, em uma medida, no alto
da pgina 33. Na verdade, a reportagem especial para O Globo de Priscila
Guilayn era um box de uma matria maior, intitulada Zapatero: Aznar apagou
registros de ataques, na qual o atual chefe do governo acusava seu antecessor de
ter apagado dos computadores da Presidncia os registros efetuados entre o dia 11
de maro e as eleies de 14 de maro, pelas quais os socialistas voltaram ao
poder.

87
Num toque sinistro adicional, o doutor clinicava em Hyde, subrbio de Manchester.
133

O tom do ttulo do box contrasta fortemente com o do texto de Priscila.


Um circunspecto (Comisso liga morte de brasileira a 11 de maro). O outro,
vagamente romanesco, como nestes dois primeiros pargrafos, num total de sete:

MADRI. Seu nome de guerra era Lorena. Trabalhando de


danarina ertica numa casa noturna de Gijn, a brasileira
Elizngela Barbosa Guimares conheceu o marido, importante
testemunha nas investigaes do 11 de Maro, atentado que
matou 191 pessoas em Madri este ano. No ltimo dia 3,
Elizngela teria anunciado a amigos e parentes, em mensagem
no celular, que se mataria. Afogou-se no Mar Cantbrico, na
praia de San Lorenzo, dois dias antes de completar 23 anos.

Embora a autpsia tenha confirmado o afogamento, alguns


rgos dela foram trazidos a Madri para exame toxicolgico,
ainda sem resultado. Um dos membros da comisso do 11 de
Maro abriu uma investigao sobre a morte da brasileira. (...)
(GUILAYN, 14/12/2004, p. 33).

Da em diante, a jornalista conta que Elizngela havia chegado Espanha


vinda de Gois, cinco anos antes de sua morte. Conheceu o marido, Francisco
Javier Villazn, o Lavandero, quando ambos trabalhavam na boate Club
Horscopo. Ele cuidava das cobras com quais a brasileira fazia o seu nmero
ertico. Em 2001, ele fora procurado por dois homens interessados em algum
que fabricasse bombas que pudessem ser detonadas com um telefone celular
precisamente o tipo utilizado no 11 de maro de 2004. Villazn tornou-se, ento,
testemunha contra os terroristas e passou a viver sob a proteo da polcia.
Elizngela tivera um filho com ele (alm de dois que j deixara no Brasil)
e se separara. O ex-marido foi um dos que recebeu, pelo celular, mensagens em
que ela avisava que se suicidaria. O ento patro de Elizngela na boate Sagitrio,
um portugus identificado como Joo G., declarou a Priscila Guilayn: Por volta
das 5h de sexta-feira, Lorena saiu do clube com amigas e foi percorrendo bares,
discotecas que marcaram a vida dela aqui em Gijn. Foi a lugares que a faziam
lembrar do marido e do filho. Era uma despedida (ibidem). Segue-se um relato
dramtico da sua tentativa de impedir que Elizngela consumasse o ato.
Toda a narrativa, nota-se, adquire um tom novelesco, destinado a atrair
simpatia para a infeliz danarina brasileira. Ela at mesmo se aproxima do tipo de
texto comum nos jornais brasileiros pr-lead. A histria se torna to singular que,
mais uma vez, no pode ser compartilhada a ponto de se tornar um foco de
134

contgio. Alm disso, segundo a clssica tipologia de Durkheim, este o primeiro


caso analisado de suicdio preponderantemente egosta.
Neste ponto, recordo o final da pera Dido & Aeneas, do compositor
ingls Henry Purcell (1659-1695). A rainha de Cartago, Dido, e o prncipe
troiano, Enas, embora apaixonados, so separados pelo sortilgio de uma
feiticeira, que simula uma ordem de Jpiter para que ele abandone a capital
fencia no norte de frica e funde uma nova Tria. A natureza j melanclica de
Dido evolui rapidamente para a deciso de morrer no fica claro como, o que
abre a porta para uma interpretao suicidria e ela canta uma ria famosa,
When I am laid in earth: Quando eu estiver deitada na terra/ Que os meus erros
no criem/ Problemas em vosso peito/ Lembrai-vos de mim, lembrai-vos de mim/
Mas, ah, esquecei meu destino88. O texto sobre Elizngela de certa forma faz o
mesmo que os dois versos finais: pede que nos lembremos dela, mas esqueamos
seu destino.

4.2.7
O assassino da jornalista goiana em Atlanta

No penltimo dia do ano, a editoria O Pas noticiou outro suicdio de


brasileiro ocorrido no exterior. Por que no O Mundo? Porque a regra interna
(no-escrita) do Globo que fatos envolvendo brasileiros fora do Brasil ainda so
assunto das pginas nacionais. Excees como a de Elizngela ou de Jean
Charles de Menezes, fuzilado pela polcia inglesa no ano seguinte aparecem nas
pginas internacionais apenas se esto vinculados a eventos maiores, como os
atentados terroristas do 11 de maro em Madrid (2004) ou do 7 de julho em
Londres (2005). O suicdio de Marley Alves Pereira, portanto, foi publicado na
seo costumeira e teve chamada na pgina dois. O caso, todavia, tem uma
caracterstica distinta.

88
When I am laid in earth/ May my wrongs create/ No trouble in thy breast./ Remember me, re-
member me/ But, ah!, forget my fate.
135

GOINIA. Foi liberado ontem tarde o corpo da jornalista


goiana Eliete Barcelos, de 33 anos, assassinada no fim de
semana com um tiro em Atlanta, nos EUA, pelo ex-namorado,
o tambm goiano Marley Alves Pereira, de 27, que se matou em
seguida. O corpo ser levado para Goinia, onde ser sepultado.
J o enterro de Marley ser em Edia, a 127 km de Goinia.

Os corpos foram encontrados pela polcia de Atlanta em um


quarto do Hotel Comfort Inn, na tarde de segunda-feira. A
polcia americana informou que os dois morreram no domingo
e que o crime foi premeditado por Marley, que foi modelo em
Gois mas trabalhava como preparador de carne numa
churrascaria de Miami. Ele teria cortado a linha de telefone e
trancado a porta do quarto antes de atirar no rosto de Eliete e
contra a prpria cabea. A arma do crime, uma pistola 12mm,
foi achada no local.

(...)

(SOUZA, 30/12/2004, p. 8).

Homicdios seguidos de suicdio eram, ao menos at a multiplicao dos


homens e mulheres-bomba, o tipo mais comum de apario da morte voluntria na
imprensa brasileira. Os casos passionais como o envolvendo Marley e Eliete
proliferavam nos jornais no tempo de Nelson Rodrigues e das cidades muito
menos violentas. Neles, no incomum que, aps eliminar o objeto do seu desejo
(a retrica possessiva deliberada), o sujeito apaixonado aja de forma a se unir a
ele na eternidade. Se, como quer Maria Luiza Dias89, o suicdio um homicdio
nestas circunstncias, deve ser vlido tambm concluir que o homicdio um
suicdio. Por outro lado, o suicdio, com toda a pesada carga de interdio que o
cerca em nossa sociedade, na qual sua figura emblemtica Judas, tambm surge
no caso de se seguir a um homicdio como uma pena imediata, uma danao.
A reportagem sobre o caso tem o ttulo Jornalista brasileira assassinada
por ex-namorado nos Estados Unidos. O que no deixa dvida quanto real
notcia que o jornal pretende dar. O suicdio surge coadjuvantemente, apenas no
subttulo: Rapaz, que tambm era de Gois, suicidou-se com um tiro na cabea.
Depois do lead e do sublead, acima reproduzidos, o texto especial para O
Globo, assinado por Isonilda Souza, entrevista o pai da moa, Jos Otvio
Barcelos, que conta ter o namoro sido interrompido havia seis meses, sem que, no
entanto, Marley parasse de amea-la. O encontro dos dois no hotel teria sido uma

89
Cf. p. 100.
136

tentativa de pr um ponto final na relao. O pai do rapaz, Mrio Pereira, morador


de Atlanta, citado como afirmando que era a jornalista que o assediava.
O pargrafo final do texto refora a idia de que a notcia era digna de
publicao, ao destacar a importncia de Eliete na comunidade brasileira de
Atlanta: Ele (sic) era scia de um site e de uma revista, ambos em portugus e
direcionados aos brasileiros que vivem nos EUA. Tambm organizava eventos
como o Miss Brasil 2004 nos Estados Unidos, cuja final foi em Nova York, em
setembro. Em termos de diagramao, a matria foi dada em trs medidas, na
pgina oito. Tem uma foto colorida de Eliete em vida. Limita-se, esquerda e
abaixo, com anncios; acima, outra notcia da Regio Centro-Oeste: Chefe do
crime organizado em Mato Grosso tem 2.303 imveis (em quatro medidas) e um
texto-legenda mostrando, em cor, protesto de estudantes de Macei (em duas
medidas).

4.2.8
O desempregado na Praa dos Trs Poderes

O texto-legenda na pgina dois do dia 14 de abril trazia o primeiro captulo


de uma histria singular no ano de 2004: um suicdio que, conquanto primeira
vista pudesse ser altamente contagioso, foi acompanhado pelo jornal como uma
pequena novela. Nele, a foto mostrava o desempregado Jos Antnio Andrade de
Souza, de 40 anos, que ateou fogo em frente ao Palcio do Planalto numa tentativa
de chamar a ateno do presidente Luiz Incio Lula da Silva (s/a, 14/4/2004, p.
2). O texto informava, ainda, que o homem tivera 85% do corpo queimado e
estava em estado grave, alm de chamar para a reportagem completa, na editoria
O Pas. Ele era visto deitado de costas para cima, com a cabea levantada,
recebendo primeiros socorros. Nada na foto traduzia a gravidade da situao de
Souza. Nem nela, nem na foto colorida em duas medidas da pgina 12. Ambas,
todavia, tinham como pano de fundo o Palcio do Planalto, ocupado pela
Presidncia.
Na foto do alto da pgina 12, mostrava-se o desempregado sendo
carregado numa maca, ainda de costas para cima, como aparecera na primeira
foto, mas j a caminho do hospital. O ttulo da matria em quatro medidas
assinada pelo reprter Bernardo de la Pea, da sucursal de Braslia, era direto:
137

Homem ateia fogo ao corpo em frente ao Planalto. O subttulo enfatizava quo


graves tinham sido os ferimentos e o propsito de seu ato extremo:
Desempregado de 40 anos ficou com 85% do corpo queimados; ele disse que
queria chamar a ateno de Lula. O conjunto encimava uma notcia sobre a
quarta invaso de terras pelo Movimento dos Sem Terra (MST) no Pontal do
Paranapanema, no Oeste paulista, nos ltimos dois dias; e outra sobre a
condenao a quatro anos de priso do dono do Caneco Mineiro, boate de Belo
Horizonte que, ao pegar fogo, em 2001, matou sete pessoas e feriu outras 360.
Ambas ocupavam apenas uma coluna. As outras cinco da parte superior da pgina
12 para baixo correspondiam metade de um anncio colorido de venda de
celulares que se completava na fronteira pgina 13.
Texto-legenda, ttulo e subttulo eram adequados ao teor do lead:

BRASLIA. Na tentativa de chamar a ateno do presidente


Luiz Incio Lula da Silva, o desempregado Jos Antnio
Andrade de Souza, de 40 anos, ateou fogo ao corpo ontem de
manh na Praa dos Trs Poderes, em frente ao Palcio do
Planalto. Enquanto Lula recebia um grupo de empresrios e
representantes das 27 federaes de indstria do pas, Souza
usou um produto inflamvel para molhar as roupas e ateou fogo
ao corpo. Aos policiais e bombeiros que o socorreram, Souza
disse que queria falar com o presidente. (DE LA PEA,
14/4/2004, p. 12).

Ressalte-se, de imediato, o uso, pelo reprter, da tcnica de redao


conhecida como lead de contraste ou lead contraste (como prefere Lage), na
qual se contrapem duas informaes de modo a sugerir ao leitor uma idia, no
necessariamente enunciada adiante. No caso, enquanto o trabalhador
desempregado se imolava na Praa dos Trs Poderes, o presidente operrio se
reunia com os industriais. Mais adiante, porm, o texto no apenas diz, citando a
assessoria do Palcio do Planalto, que Souza no pediu uma audincia ao
presidente (como ser recebido se no houve pedido neste sentido?), como ainda
informa que Lula ordenou que sua equipe mdica se juntasse do Hospital
Regional da Asa Norte, para onde o desempregado queimado foi levado. Assim
que soube do fato, o presidente orientou para que a situao fosse acompanhada
no hospital, declarou o porta-voz da Presidncia, Andr Singer, j noite, a de la
Pea. O presidente lamenta muito o ocorrido e espera que Jos Antnio tenha
uma rpida recuperao no hospital.
138

Antes disso surgem outras peas da histria: Souza era mineiro, mas
morava no Esprito Santo; carregava um cartaz no qual se dirigia a Lula (Senhor
presidente, vendi meu barraco por R$ 800 para falar com voc. Roubaram meus
documentos, tiraram meu direito de cidadania e esto armando um monte de
problemas para mim. Estou perdendo minha famlia e pedindo meus direitos de
cidado.); sua internao era estimada em 30 dias e iria requerer tambm
acompanhamento psiquitrico.
O segundo captulo no Globo do drama marcaria uma dramtica reverso
de expectativas: a morte de Souza reforando a posteriori a deciso de se ter
noticiado a ao. O desempregado que se imolou na frente do Palcio do Planalto
est interferindo na vida do pas, diz Agostinho Vieira, citando-o como exemplo
de ao que diz respeito a outras pessoas alm do suicida e de seus familiares90.
No dia 19 de abril, numa primeira pgina quase totalmente tomada pela
alegria do campeonato estadual do Flamengo (conseguido numa vitria de 3 a 1
sobre o Vasco) e pela manchete PT cobra do governo ofensiva na segurana, o
ttulo de uma chamada em duas medidas informava: Morre o desempregado que
ateou fogo ao corpo. O pequeno texto rememorava as circunstncias da ao de
Souza e noticiava a morte por falncia mltipla, na vspera, alm de apresentar
um dado at ento indito: ele deixava uma filha de 8 anos.
O resto da notcia estava na pgina quatro da editoria O Pas, em quatro
medidas, ao lado da coluna poltica de Helena Chagas e dos resultados das loterias
federais, embaixo das matrias Time inclui Lula na lista das cem pessoas mais
influentes do mundo (subttulo Presidente o nico latino-americano citado
entre lderes mundiais) e PT decide jogar pesado nas alianas (subttulo Em
Fortaleza, partido decide apoiar PCdoB contra vontade do diretrio nacional).
O ttulo desta reportagem praticamente repetia o da chamada na primeira
pgina: Morre homem que ateou fogo ao corpo. O subttulo rememorava o seu
gesto: Jos Antnio de Souza queria ver Lula para protestar contra o
desemprego. O texto, de de la Pea e Rodrigo Rangel, trazia os seguintes lead e
sublead:

90
Cf. p. 113.
139

BRASLIA. O desempregado Jos Antnio Andrade de Souza,


de 40 anos, que ateou fogo ao corpo na manh da ltima tera-
feira na Praa dos Trs Poderes, em frente ao Palcio do
Planalto, morreu ontem, por falncia mltipla dos rgos. Jos
Antnio faleceu s 15h40m no Hospital Regional da Asa Norte,
onde estava internado.

O corpo de Jos Antnio, que nasceu em Minas Gerais, foi


transferido para o Instituto Mdico-Legal e hoje dever ser
liberado para o enterro. A mulher do desempregado, Maria das
Dores Claudia, que chegou a Braslia na quarta-feira, est num
abrigo na cidade. A famlia ainda no sabe como vai transferir o
corpo, mas pretende enterrar Jos Antnio em Cariacica, no
Esprito Santo, onde ele morava. (DE LA PEA E RANGEL,
19/4/2004, p. 4).

O miolo da matria basicamente reproduzia as informaes veiculadas


cinco dias antes at a foto preto-e-branco escolhida era a mesma que havia sido
publicada na pgina 12 da edio de 14 de abril e atualizava alguns dados sobre
o estado de sade de Souza. O final dela descrevia o ltimo dia de vida do
desempregado. Estava consciente, caracterstica que, segundo o chefe do planto
no Hospital Regional da Asa Norte, Delmir Ferreira Souto, comum aos
pacientes com queimaduras. Estava agitado, incomodado com os curativos
aplicados sobre a pele, na tentativa de reconstituir os tecidos destrudos. Alm
disso, passava por hidratao, para repor os nutrientes, e tomava analgsicos
contra a forte dor.
Esta descrio relativamente pormenorizada da agonia de Souza funciona,
ainda que inconscientemente, como um alerta do tipo no faam o mesmo, seno
os sofrimentos sero similares. Ele talvez se fizesse necessrio do ponto de
vista do temor de o jornal se tornar um propagador do suicdio, naturalmente
porque as notcias sobre o suicdio do desempregado mineiro so a um tempo
singulares e comuns: uma morte ocorrida em protesto contra as elevadas taxas de
desemprego (no raro beirando os 17% nas principais regies metropolitanas do
Brasil) poderia ser entendida, em algum nvel, como incitao imitao. Tudo,
porm, pode ser muito mais complexo: sua publicao tambm se enquadra na
linha de crtica ao governo mantida, em variados tons, pelo jornal, bem como
assinala o grau de desespero a que alguns brasileiros estavam sendo levados pelo
desemprego. A avaliao geral sobre o valor desta notcia , como em todas as
outras, sujeita a controvrsias, ambigidades e variadas correlaes de foras.
Parece fora de dvida, no entanto, que trata-se de um suicdio do tipo anmico:
140

Souza havia tido os documentos roubados perdendo, literal e metaforicamente,


sua identidade e encontrava-se em dificuldades financeiras. Perdera as
referncias.
O eplogo da histria de Jos Antnio Andrade de Souza no Globo ocorre
na edio do dia seguinte, 20 de abril. O ttulo e o subttulo da matria principal
no alto, em seis medidas da pgina 12 da editoria O Pas estampavam,
respectivamente, Avio da FAB leva corpo de desempregado e Jos Antnio
de Souza, que ps fogo em frente ao Planalto, foi enterrado na Regio
Metropolitana de Vitria. O lead de Rodrigo Rangel livrava o leitor da angstia
inserida no captulo da vspera (A famlia ainda no sabe como vai transferir o
corpo):

BRASLIA. O corpo do desempregado Jos Antnio Andrade


de Souza, morto aps atear fogo em si mesmo na sexta-feira em
frente ao Palcio do Planalto, foi levado ontem para Vitria
num avio da Fora Area Brasileira (FAB) por determinao
do presidente Luiz Incio Lula da Silva. O enterro foi num
cemitrio da periferia de Cariacica, na Regio Metropolitana de
Vitria. Era perto de l que Jos Antnio morava com a mulher,
a domstica Maria das Dores de Souza, e uma filha de 8 anos.
Tambm por ordem do Palcio do Planalto, um mdico da
Presidncia acompanhou a viva. (RANGEL, 20/4/2004, p. 12).

O resto da matria principal repete, uma segunda vez, os detalhes do ato de


Souza necessidade freqente no jornalismo dada a incerteza se o leitor
acompanhou os lances anteriores da histria e acrescenta algumas novas
informaes sobre o morto: morava no bairro de Nova Rosa da Penha, um dos
mais violentos de todo o estado do Esprito Santo; estava desempregado havia
quatro meses; sua mulher estava grvida de novo, tambm de quatro meses. No
atestado de bito, registrado num cartrio de Braslia, a mulher fez constar a
profisso verdadeira dele, ajudante de pedreiro, escreve Rangel (idem).
A pgina traz duas fotos coloridas: a mesma do atendimento a Souza
publicada na pgina dois da edio do dia 14 de abril; e a da viva Maria das
Dores. Ela a principal personagem da matria secundria, feita pelo reprter
Carlos Orletti, de Vitria, a nica outra constante da pgina (o resto tomado por
variados anncios), de ttulo Ele dizia que se sentia humilhado e subttulo
Viva conta que marido estava desesperado e que j tentara se enforcar. O texto
apresenta novos detalhes da vida miservel de Souza e de Maria na verdade, ele
141

vendera o barraco por R$ 1.000, mas deixara R$ 200 com a mulher. Conta, ainda,
como ela conseguiu viajar a Braslia, para acompanhar os ltimos dias de vida do
marido com uma passagem de avio oferecida pela Prefeitura de Cariacica.
E, por fim, Orletti descreve uma tentativa anterior de suicdio: Camila
(sua filha de 8 anos) ficou com o av. Duas semanas antes da viagem, ela evitara
uma tragdia. Jos Antnio subiu numa rvore para se enforcar. Desistiu ao ouvir
os apelos desesperados da menina. Emerge das informaes a figura de um
homem desesperado e humilhado (Antnio falava que era muita humilhao
vender caranguejo, conta Maria das Dores), o que, subliminarmente, alm do
dado anmico, remete o suicdio a uma perda temporria ou definitiva da razo.

4.2.9
O adolescente na roleta russa em Meriti

Mantendo a idia de vir aproximando os casos de suicdio do Rio de Janeiro


lembremo-nos que desde Durkheim, ao menos, a proximidade surge como um
fato importante no suposto contgio o caso seguinte ocorre j na nossa regio
metropolitana. Trata-se da morte de um jovem em So Joo do Meriti, na Baixada
Fluminense. Os suicdios de adolescentes, por exemplo, geram um sentimento de
culpa muito grande, reconhece Luiz Garcia. J estive numa situao dessas e sei
o que que , fica todo mundo abilolado.
Talvez por isso, talvez por a morte ter ocorrido numa roleta-russa, o caso
no merea mais que uma curta matria na metade inferior do espao editorial da
pgina 25, editoria Rio, edio de 1 de maio. Acima dela, informa-se que um
encontro internacional sobre armas realizado na cidade geraria um relatrio com
sugestes de combate ao trfico de armas. At por suas pequenas dimenses, o
texto analisado caracterstico deste tipo de notcia. Sob o ttulo Polcia apura se
jovem morto fez roleta-russa e o subttulo Estudante de 15 anos encontrado
em casa com tiro na cabea, lem-se trs sucintos pargrafos:

O estudante Tiago Ferraz Ribeiro, de 15 anos, foi encontrado


morto anteontem, com um tiro na cabea, dentro de casa, no
bairro Tiet, em So Joo de Meriti, na Baixada Fluminense.
Ontem, durante o enterro do rapaz no Cemitrio Corte Oito, em
Duque de Caxias, amigos disseram que ele morreu durante uma
brincadeira de roleta-russa com um outro menor. A polcia, no
142

entanto, no confirma a verso e investiga a possibilidade de


suicdio.

Vamos ouvir o depoimento da famlia para saber como estava


o estado emocional do garoto. Mesmo se for uma roleta-russa,
isso j um suicdio disse o delegado Jorge Luiz Diequez, da
64 DP (Vilar dos Teles), que deseja saber onde a arma que
pode ter sido usada pelo rapaz estava guardada.

O pai de Tiago o policial militar Marco Barreto Ribeiro,


lotado no 15 BPM (Caxias). Ele e a mulher, Isabel Cristina,
no estavam em casa na hora em que o filho foi baleado. O
garoto foi socorrido por um vizinho, que teria ouvido o disparo.
(s/a, 1/5/2004, p. 25).

H ao menos duas idias no enunciadas, e por isso mesmo


particularmente significativas, na breve notcia da morte do jovem Tiago: segundo
o jornal, em verso atribuda a amigos do morto, pode no ter havido suicdio e
sim um acidente durante uma brincadeira de roleta-russa (o que, mais uma vez,
retira o fato da alada da conscincia ou da razo implacvel da morte voluntria);
e a culpa indiretamente atribuda ao pai PM, que deixou uma arma carregada em
casa (breve outro caso analisado deixar claro como essa crtica se insere dentro
do apoio, pelo jornal, Campanha do Desarmamento). ao delegado Diequez
(sic) que cabe a ponderao de que a roleta-russa j , em si, uma forma de
suicdio.

4.2.10
O assassino dos prprios filhos

No dia 18 de agosto, a pgina 22 do Globo, editoria Rio, publicou a primeira


de trs reportagens sobre um dos dois nicos suicdios noticiados no ano de 2004
a envolver um morador da cidade do Rio de Janeiro: o empresrio Ruy Kenji
Morimoto, de 47 anos. O ato, todavia, foi cometido fora dos limites da cidade, ou
melhor, noutro municpio: So Pedro DAldeia, na Regio dos Lagos. Alm disso,
Morimoto no apenas se matou a tiros: imediatamente antes ele matara seus dois
filhos, uma menina de 9 anos e um menino de 7 anos, cujos nomes jamais so
mencionados. O empresrio estava separado da me das crianas havia meses.
No caso dele, o resto era tambm importante. No se podia contar a
histria sem mencionar o final, avalia Luiz Garcia. O pai separado que se mata
143

aps matar os filhos no cometeu um ato ntimo e pessoal, interferiu diretamente


na vida da famlia e da comunidade em que vivia, refora Agostinho Vieira.
A notcia ocupava seis medidas no alto da pgina, sob o ttulo Pai mata os
dois filhos a tiros e suicida e o subttulo Crime aconteceu no domingo mas
corpos s foram encontrados anteontem em casa de So Pedro DAldeia. Encima
dois outros registros, o do ataque a trs moradores de rua em Cascadura (uma das
vtimas morreu) e o do assassinato de um corretor de turismo na Tijuca, este com
uma foto colorida do corpo coberto por plstico preto e cercado de cones de
trnsito, alm de um anncio de meia pgina.
O caso de Morimoto merecedor de tamanho destaque que inclui ainda
a chamada na pgina dois porque no se trata apenas de um suicdio mas de um
duplo homicdio seguido de suicdio, com o agravante de as duas vtimas serem
crianas filhas do prprio assassino. A tragdia a contida depe a favor da
publicao em detalhes, um pouco como o caso da jornalista brasileira assassinada
pelo ex-namorado em Atlanta. No ano anterior, tinha sido o caso, ainda, de um
fato brevemente referido no p da matria assinada por Fbio Vasconcellos: H
cerca de um ano, um crime semelhante chocou o Rio. Um engenheiro morador da
Barra matou com tiros de escopeta a mulher as duas filhas enquanto dormiam e
tambm se suicidou (p. 22).
A pressa do fechamento levou o reprter a uma ligeira impreciso na
descrio do armamento empregado: em maio de 2003, o engenheiro Waldo de
Carvalho Wunder se suicidou com um tiro de escopeta na boca depois de matar a
mulher e as duas filhas usando uma pistola Glock calibre 380, na cobertura da
famlia, na Barra da Tijuca91. Wunder devia mais de R$ 700 mil ao INSS. O
detalhamento das armas utilizadas, que lhes atribui uma certa importncia
fetichista, ter desdobramentos importantes na terceira reportagem sobre o caso
Morimoto, como veremos um pouco mais adiante. De imediato, cabe-nos ler lead
e sublead da primeira reportagem, a publicada no 18 de agosto:

91
Em agosto de 2003, um segundo caso assemelhado resultaria no suicdio do empresrio Antnio
Schempri. A diferena que ele no matou a prpria famlia e sim o scio, a esposa deste e o filho
do casal. O assassino suicidou-se duas horas depois, na sua casa do Recreio.
144

A Polcia Civil ainda no sabe o que levou o empresrio Rui


Kenji Morimoto, de 47 anos, a matar os dois filhos e se
suicidar. O crime ocorreu na noite de domingo, mas os corpos
s foram encontrados anteontem, no bairro Ponta da Areia, em
So Pedro DAldeia, aps a polcia receber informaes de que
o empresrio havia desaparecido com as crianas: uma menina
de 9 anos e um menino de 7. As crianas foram mortas com
tiros na cabea. Ao lado do corpo do pai que morreu com tiro
na boca foi achado um revlver calibre 38 com cinco cpsulas
deflagradas.

Os corpos das crianas, que moravam com a me num


condomnio da Avenida Sernambetiba, na Barra da Tijuca,
foram sepultados ontem no Cemitrio do Caju. Morimoto foi
enterrado no Cemitrio Jardim da Saudade, em Sulacap, no fim
da tarde. O desaparecimento das crianas comeou a ser
investigado na segunda-feira, depois que ex-mulher de
Morimoto, Lise Werneck de Menezes, registrou o caso na 16
DP (Barra da Tijuca). (VASCONCELLOS, 18/8/2004, p. 22).

O texto direto e sem meias-palavras. H, neste trecho inicial, duas


insinuaes importantes. Logo a primeira frase do lead nos fala da aparente falta
de motivao para o crime e o suicdio. Implicitamente, portanto, admite-se que
uma morte voluntria tem um motivo, uma razo o que ajudaria a lanar alguma
luz, dar algum sentido, a gestos to chocantes. Depois, no sublead, faz-se uma
espcie de prembulo ao drama familiar que ronda, sem de fato eclodir, todo o
resto do texto: a polcia pretendia tomar o depoimento de Lise e de outros parentes
para tentar estabelecer o que motivou Morimoto, dono de uma loja de miniaturas e
brinquedos no Edifcio Avenida Central; ele pegara os filhos na sexta-feira, mas
no os entregara em casa no domingo, conforme acordado pelo casal na Justia;
ele era uma pessoa reservada e nunca falava dos seus problemas familiares.
Logo em seguida a esta observao, surge uma declarao aparentemente
intil da delegada Cludia Faissal, de So Pedro DAlmeida: A cena do crime
leva a crer que o pai foi mesmo o autor dos disparos. Em nenhum momento
anterior fora levantada qualquer outra hiptese. como se houvesse uma torcida
silenciosa para que as trs mortes fossem um triplo latrocnio ou um triplo
homicdio por vingana, crimes com os quais a sociedade teria menos dificuldade
de lidar do que com o pai matando seus dois filhos e, ainda pior, se matando a
seguir.
No dia seguinte, o jornal manteve o caso no seu noticirio local, em trs
colunas no meio da pgina 15, entre a informao de que um traficante fora
145

baleado ao tentar invadir a Rocinha com seu bando, a de que o corpo de uma
vtima de seqestro havia sido encontrado e a de que o Conselho Nacional de
Peritos Judiciais do Brasil pretendia tomar medidas contra o membro responsvel
pela filiao de outro traficante, alm de dois comunicados pagos. Desta vez, sob
o ttulo Comerciante que teria matado filhos havia perdido a guarda das
crianas, o texto de Dimmi Amora concentrava-se, depois da obrigatria
rememorao do fato original, na perfil psicolgico de Morimoto, um pouco
mais fechado, desde que perdera a guarda dos filhos para a ex-mulher. A
delegada Cludia Faissal foi ouvida mais uma vez, atrs de novos detalhes das
investigaes, entre eles os de que as crianas provavelmente foram dopadas antes
do fuzilamento, para no sofrer.
So ouvidos, ainda, dois psiquiatras, Vera Lengruber, presidente da
Associao Psiquitrica do Estado do Rio de Janeiro, e Fbio Barbirato. Ela
afirma que o ato de Rui costuma ser classificado como suicdio coletivo. No h
maiores detalhes sobre o que seria isso. Ele, a partir de casos semelhantes nos
EUA, opina: um quadro to grave que a pessoa acha que est fazendo um bem
para os parentes para evitar que eles tenham um sofrimento to grande quanto o
que ela est sentido. A pessoa deprimida perde a noo.
No dia 20 de agosto, a terceira reportagem sobre o caso Morimoto opera
um malabarismo editorial. Tendo uma chamada na primeira pgina e sendo
publicada na pgina 13, a de abertura da editoria Rio, com direito ao destaque de
um infogrfico e encimando uma notcia sobre as idas e vindas do desabamento
do edifcio Palace II, ela desvia completamente o assunto. Deixa-se de tratar de
um duplo homicdio seguido de suicdio e passa-se a abordar os riscos de se
manter uma arma em casa e as benesses da Campanha do Desarmamento, que O
Globo apoiou. A campanha pagava entre R$ 100 e R$ 300 por arma entregue.
Tudo porque os reprteres Amora e Maria Elisa Alves conseguiram apurar
que, dias antes do crime, Morimoto entregou dez armas na sede do movimento
Viva Rio. Estas, porm, no eram todas as suas armas, da o ttulo de gosto
duvidoso: S faltou uma arma. O subttulo esclarecia: Pai que matou os dois
filhos e se suicidou havia entregado dez revlveres e pistolas, mas manteve um
38.
146

O infogrfico trazia os desenhos das armas entregues em trs visitas


distintas ao Viva Rio, em troca de R$ 1.200, e da arma no entregue. Elas92 tm
seus calibres informados, bem como, com exceo do fatdico revlver calibre 38,
as datas em que foram deixadas na sede da Glria. O ttulo um primor (Um
arsenal nas mos erradas) e o subttulo ainda pior (As dez armas entregues
pelo criminoso). Lembra uma atualizao retrica do castigo medieval ao
cadver.
Completa o infogrfico um quadrinho sobre o funcionamento da Campanha
do Desarmamento. Na pgina, h tambm um box intitulado Como aderir
campanha. A redundncia da abordagem desarmamentista um sintoma da
mudana de enfoque, radicalizada pela tomada de declaraes do coordenador do
projeto de controle de armas do Viva Rio, Antnio Rangel Bandeira, e de um
membro do Laboratrio de Anlise da Violncia da Uerj, Igncio Cano.
Rangel Bandeira diz:

A campanha para que as pessoas entendam que manter arma


em casa um risco para a famlia. Se esse comerciante tivesse
entregue todas as armas, talvez no tivesse matado os filhos
num momento de fraqueza. Se at um pai mata as crianas
quando est desesperado e com uma arma na mo, imagina s
como fcil ocorrerem crimes passionais, mortes aps
discusses de vizinhos. (apud AMORA e ALVES, 20/8/2004,
p. 13).

Como diz o prprio Rangel Bandeira, talvez. A crena de que a arma de


fogo determinante para que se cometam crimes, a includos, segundo a lgica
vigente, suicdios, faz tbula rasa da constatao de que cada sociedade escolhe
um modus operandi para se matar mas que, no obstante as dificuldades ou
impossibilidades materiais, seus membros no deixam de se matar e insiste em
criminalizar a morte voluntria o que evoca a figura retrica do assassinato de
si mesmo. Na campanha para o referendo sobre a proibio ou no da
comercializao de armas de fogo e munio, realizado em 2005, a frente pelo
Sim, na qual o Viva Rio desempenhou papel importante, afirmou que os suicdios
tambm diminuiriam caso sua proposta fosse vencedora. Ser? Talvez.

92
Dois outros revlveres calibre 38, um revlver calibre 22, uma pistola calibre 380, uma carabina
calibre 44 e cinco garruchas de calibres variveis.
147

Em setembro de 2004, especialistas em suicdio reunidos em Genebra


estimaram que uma pessoa se mata ao redor do mundo a cada 40 segundos. Na
ocasio, Jos Bertolote, da Organizao Mundial da Sade, ligada Organizao
das Naes Unidas, estimou a morte voluntria como responsvel por 1,5% do
custo total das doenas na sociedade93. E Lars Mehlum, presidente da Associao
Internacional de Preveno ao Suicdio, disse que a restrio de acesso a armas de
fogo de fato pode reduzir o nmero de tentativas bem-sucedidas. Armas de fogo
so o instrumento mais letal de suicdio, declarou a Robert Evans, da agncia de
notcias Reuters. Pouca gente sobrevive a tentativas de se balear.
O texto mais precioso do material publicado no dia 20 de agosto,
entretanto, era a ntegra de uma carta enviada por Lise Werneck de Menezes
redao do Globo. Na falta de um bilhete de despedida de Morimoto, a me das
crianas que verbaliza o drama real, no o conflito de idias abstratas. Apesar de a
carta no ter sido escrita por uma suicida, encontramos nela ecos daquelas
analisadas por MacDonald e Murphy, especialmente na tentativa de influenciar a
percepo do suicida perante uma ampla audincia.

Neste momento de dor em que todos buscam uma resposta para


esta tragdia, gostaria de esclarecer o pouco do que pude
entender nos ltimos tempos. Meu ex-marido Ruy era um pai
extremado, afetivamente falando. Aos nossos filhos
proporcionou grandes e imensas alegrias. Eles o adoravam. No
entanto, nunca teve a guarda dos filhos. Sempre como me
extremada e dedicada, eles estiveram sob minha superviso
permanente. Ultimamente, Ruy dava claros sinais de
desequilbrio, causando imensos transtornos para mim, meu
marido e sua prpria famlia.

Talvez o falecimento de seu pai, Shigemi Morimoto, fundador


da Hobbylandia, h cerca de trs meses, tenha piorado seu
estado. Infelizmente, sua confuso emocional tornou-se
insuportvel a ponto de retirar sua prpria vida e a de nossos
filhos. A minha dor e a de meus familiares indescritvel, mas
no deixo de acreditar na fora divina. Peo a todos que os
conheceram que orem por suas almas. Que elevem seus
pensamentos para que meus dois anjos estejam no paraso. Peo
tambm oraes para a alma de Ruy. Muito obrigada. Lise
Werneck de Menezes. (p. 13).

93
sintomtico que o suicdio seja associado doena, ou seja, a algo fora da ordem, da normali-
dade, alheio a uma natureza humana. Por vias transversas, essa separao remete antiga culpabi-
lizao do Diabo. Alm disso, introduz a idia do Absurdo, na acepo camusiana.
148

4.2.11
O famoso estilista no Arpoador

Afinal chegamos ao primeiro e nico caso de suicdio cometido por carioca


(famoso) no Rio de Janeiro noticiado pelo Globo em 2004: o do estilista Amaury
Vencini Veras, de 53 anos, scio da grife Frankie Amaury com o argentino
Francisco Mackey, de 50 anos. Mesmo este exemplo, entretanto, se revela, j num
primeiro olhar, no um caso de suicdio noticiado e sim um caso de suposto
suicdio noticiado. A relutncia em admitir a morte voluntria, porm, teria, mais
adiante, a recompensa de antecipar uma das linhas de investigao da polcia,
linha que s ganhou corpo no ano seguinte: a de que Veras no teria se matado e
sim sido morto, sendo o seu enforcamento no apartamento que dividia com
Mackey na Rua Francisco Otaviano, no Arpoador, apenas uma encenao.
Em 3 de setembro de 2004, todavia, quando a notcia da morte de Veras
foi publicada com destaque, isto , chamada na primeira pgina e quase uma
pgina inteira da editoria Rio (apenas um anncio de tamanho mdio impediu
isso), nada havia neste sentido, exceto a tradicional relutncia da imprensa em
tratar do assunto e a protocolar impercia da polcia fluminense. Ambas as
caractersticas conviviam nos principais ttulo e subttulo da pgina 17,
respectivamente: Estilista encontrado morto em seu apartamento e Corpo de
Amaury Veras, da grife Frankie Amaury, estava pendurado pelo pescoo. Polcia
registra o caso como suicdio. Esta era exatamente a mesma linha crtica da
chamada na primeira pgina, de ttulo Estilista achado morto em casa: Um
dos mais famosos estilistas do Rio, Amaury Vencini Veras, de 53 anos, da grife
Frankie Amaury, foi encontrado ontem morto, enforcado, em seu apartamento, no
Arpoador. A polcia registrou o caso como suicdio mesmo sem laudo
cadavrico.
O lead e o sublead da cobertura feita por Clia Costa, Fernanda Pontes e
Gustavo Goulart mantinham o tom discreto, apesar de ressaltarem a importncia
do morto para a cidade do Rio de Janeiro, tanto por seu trabalho quanto por ele
viver num prdio em que morava outra pessoa famosa, a modelo e apresentadora
de televiso Cynthia Howlett-Martin:
149

A moda carioca perdeu ontem um de seus mais destacados


representantes. O estilista Amaury Vencini Veras, de 53 anos,
da grife Frankie Amaury, foi encontrado morto em seu
apartamento, no Arpoador. Quem o encontrou foi seu scio,
Francisco Mackey, conhecido como Frankie, de 50 anos, que
morava com Amaury no imvel da Rua Francisco Otaviano. A
14 DP (Leblon) registrou o caso como suicdio, mas vai
aguardar o resultado do exame cadavrico para a confirmao
oficial.

O corpo foi encontrado por volta das 9h. Segundo Frankie,


Amaury estava pendurado pelo pescoo por uma echarpe presa
porta, de cerca de 2,5 metros de altura, da sacada de seu
quarto. Ao lado havia uma pequena escada. O scio contou em
trs depoimentos polcia que ps Amaury na cama para tentar
reanim-lo. Depois, segundo ele, bateu porta de uma vizinha,
a modelo e apresentadora Cyntia (sic) Howlett, que no estava,
e pediu ajuda a outra moradora. (COSTA, PONTES e
GOULART, 3/9/2004, p. 17).

O restante da reportagem se dividia em trs aspectos da morte: os


procedimentos prticos da polcia, que descobrira um pequeno ferimento na testa
(atribudo a uma queda no momento em que o corpo foi levado para a cama) e
outro na nuca (causado pelo prprio enforcamento) de Veras; declaraes de
amigos do estilista; e informaes sobre o seu estado psicolgico. Do ponto de
vista deste trabalho, so estas as mais importantes, porque falam das estratgias
psicolgicas dos sobreviventes a includos os jornalistas para superar o
choque de um suicdio, arranjando-lhe uma causa, mas jamais uma desculpa ou
uma explicao.
A matria cita a mdica ortomolecular Doris Israel, que confirmou na
delegacia estar tratando havia seis anos do falecido. Segundo ela, Veras sofria de
transtorno bipolar outrora conhecida como psicose manaco-depressiva. Alm
disso, ele descobriu recentemente que era diabtico, que estava com a taxa de
acar no sangue um pouco alta (ibidem). O psicoterapeuta Tito Gomes, amigo
do morto, confirmou: Ele sempre foi uma pessoa muito alegre. Mas, na ltima
vez em que nos encontramos, percebi que estava triste (ibid.). Imediatamente a
seguir, o texto cita que fontes da polcia apuraram que, alm de deprimido,
Amaury enfrentava problemas financeiros. Tudo desmentido enfaticamente pela
declarao da assessora de imprensa da grife, Celina Penteado:
150

No estamos nadando em dinheiro, mas ningum lanaria a


coleo vero com um coquetel para a imprensa, como
aconteceu h uma semana, se estivesse em crise. Alm disso,
estamos para inaugurar mais uma loja, em outubro, no Rio
Design Center, no Leblon. Amaury no estava em depresso,
trabalhou at tarde ontem (anteontem) e tinha planos para hoje
(ontem) e amanh (hoje). (apud COSTA, PONTES e
GOULART, 3/9/2004, p. 17).

Completava a primeira reportagem do jornal dedicada morte de Veras


um box, assinado por Carolina Isabel Novaes, que historiava a parceria Frankie
Amaury, cuja primeira loja fora aberta em 1981, no Frum de Ipanema. Diziam
seu ttulo e subttulo, respectivamente: Uma grife irreverente e Frankie
Amaury fez do couro a cara do Rio. A pgina era ilustrada por quatro fotos em
preto-e-branco: uma de Veras, de arquivo, a maior; outra da echarpe presa porta
de seu apartamento; uma terceira do corpo do estilista sendo levado do Arpoador
para Instituto Mdico-Legal pelos bombeiros; e a ltima mostrando o bilhete
afixado na porta da loja pioneira, fechada em sinal de luto. Vinte dias depois, ela
estaria fechada definitivamente, bem como a filial do BarraShopping, por causa
das dvidas da dupla de estilistas com senhorios e funcionrios.
No dia seguinte, um sbado, a cobertura do Globo do caso Veras ganhou
mais trs matrias, duas na editoria Rio e uma no caderno de moda Ela. Na
pgina local, a 18, havia fotos coloridas da echarpe (que seria submetido a um
teste de resistncia), de um cristal usado para meditao pelo estilista (a polcia
pode utilizar luminol em busca de vestgios de sangue, antecipava a legenda) e
Frankie Mackey despejando ptalas sobre a sepultura do scio, no Cemitrio da
Ordem Terceira do Carmo, no Caju. No h, em todo o material, embora a
segunda retranca da pgina trate especificamente da cerimnia, nenhuma meno
a qualquer interdio de enterro em campo santo devido natureza da morte.
O ttulo da retranca principal, em seis medidas, assinada pelo reprter
Gustavo Goulart, insistia na dvida: Polcia far nova percia na casa de
estilista. E o subttulo reforava o cada vez menos sutil tom de crtica
corporao: Objetivo descobrir como Amaury, que segundo a polcia j tentara
o suicdio duas vezes, sofreu ferimento na cabea. Os trs primeiros pargrafos
da matria mantm a tenso entre o suicdio e a suspeita de homicdio:
151

A Polcia Civil vai fazer nova percia no apartamento do


estilista Amaury Veras, da grife Frankie Amaury, encontrado
morto por enforcamento em seu quarto, na manh de
anteontem. O objetivo tentar descobrir como o estilista se
feriu na cabea. Um corte sobre o superclio esquerdo levantou
a suspeita de que ele tenha sido golpeado antes de morrer. O
Instituto Mdico-Legal (IML) confirmou, no entanto, que a
causa da morte de Amaury foi asfixia mecnica.

Segundo o chefe de Polcia Civil, lvaro Lins, alm do corte,


no h qualquer outro indcio de que possa ter ocorrido crime e,
por isso, o caso continuar sendo tratado pela polcia como
suicdio, pelo menos at a concluso da nova percia.

No h qualquer outro indcio de que Amaury tenha se


defendido ou sofrido agresso. No h leses nos braos,
vestgios sob as unhas. (GOULART, 4/9/2004, p. 18).

Seguem-se informaes sobre as duas tentativas anteriores de suicdio no


mesmo ano de 2004, ambas utilizando gs de cozinha: na primeira, em fevereiro,
Veras foi salvo pela empregada, que o levou ao Hospital Pr-Cardaco; na
segunda, mais recente, foi salvo por Mackey. Diante do quadro, a nica voz a
admitir a hiptese de a morte no ter sido causada por suicdio era a do diretor do
Departamento de Polcia Tcnica e Cientfica, Roger Ancilotti. Pela prpria
natureza de seu trabalho, ele foi cauteloso: cogitou que Veras ainda poderia estar
vivo quando do socorro, explicou que a pessoa enforcada pode ter convulses e se
machucar mas aguardava o resultado dos exames para concluir algo.
A retranca dedicada ao sepultamento no Caju, escrita por Fernanda Pontes,
recolhe depoimentos de parentes a amigos sob um ttulo respeitoso (Cem pessoas
comparecem a enterro) e um subttulo idem (Frankie Mackey presta
homenagem usando blazer e anel do amigo). Este material tem chamada na
pgina dois. Completam a pgina 18 a caricatura sabtica de Lan e um anncio.
No mesmo dia, no caderno Ela, a editora de moda Helosa Marra assina a
matria que se estende, cheia de fotos coloridas dos bons tempos, pela primeira e
pela segunda pginas, sob o ttulo geral Querido Amaury, descrito como
arteso da carioca sensual. Este material tem chamada na primeira pgina,
como, alis, qualquer edio de qualquer suplemento dirio ou semanal. Era uma
excepcionalidade absoluta o principal assunto do Ela estar ligado a um caso de
(suposto) suicdio.
152

Nos dias seguintes, O Globo no publicou novas matrias sobre o Caso


Veras. Apenas na edio de 9 de setembro apareceu um texto-legenda sobre a
missa de stimo dia do estilista. Na foto publicada na pgina 23, viam-se amigos
de Veras, entre eles Frankie Mackey, durante a cerimnia na Igreja da
Ressurreio, no Arpoador. Mais uma vez, curioso que, a despeito do suicdio,
ou, ao menos, da suspeita de suicdio, ao morto no tenham sido recusados nem
enterro cristo nem missa. Uma mudana de orientao ou, muito mais
provavelmente, um privilgio pelo status de Veras? Cabe lembrar que, em
Histoire du suicide, George Minois descreve minuciosamente a vista grossa para o
suicdio de nobres e de religiosos durante a Idade Mdia. Eles eram enterrados
com toda a pompa. No resto da pgina, o destaque ia para uma granada
encontrada na Fonte da Saudade. Completavam-na os anncios de falecimentos e
vtimas, na seo Obiturio.
A morte de Veras desapareceu das pginas do jornal e dos jornais at
maio de 2005. No dia 18, o Jornal Nacional, da Rede Globo, revelou o laudo do
IML, segundo o qual o ferimento na testa do estilista dificilmente teria sido
causado por uma queda: o corpo apresentava fratura na base do crnio e edema
cerebral. Na sua edio do dia seguinte, O Globo noticiou as novidades no caso:
Segundo mdicos legistas, Amaury, ainda com vida, sofreu violenta pancada na
cabea e ingeriu uma quantidade excessiva de tranqilizantes (p. 21). O texto
no-assinado reproduzia a declarao de um dos mdicos, no-identificado: No
h dvida de que o ferimento na testa, que atingiu o encfalo, seria suficiente para
deixar qualquer pessoa atordoada, praticamente impossibilitando que ela tivesse
fora para se suicidar (ibidem). As novas informaes, dizia-se, levariam a
polcia a marcar uma reconstituio da morte, com a participao de Frankie
Mackey o que efetivamente viria a ocorrer em junho.
A partir dali, fatos novos vieram a aumentar as dvidas sobre a ocorrncia
de um suicdio, lanando suspeitas sobre a verso do scio de Veras. Alm do
laudo do IML, revelou-se, na edio de 20 de maio, que Mackey continuava
morando no apartamento da Francisco Otaviano, mas enfrentava uma ao de
despejo por atraso de R$ 100 mil no aluguel e tinha tido luz, gs e telefone
cortados por falta de pagamento. Ele se mudaria do imvel no dia 23 de junho. A
investigao sobre a morte do estilista prossegue quando do fechamento desta
dissertao.
153

Todo o episdio leva a uma reflexo curiosa. Se, num primeiro momento,
por alguma razo, tivesse-se optado por ocultar do leitor o suicdio de Amaury
Veras, o que haveria para noticiar a partir do momento em que a polcia
contemplasse cada vez mais fortemente a hiptese do homicdio? Olha, aquilo
que a gente no disse que era no aquilo mesmo no?!, ironiza Rodolfo
Fernandes, diretor de redao do Globo. A desgraa da mentira que, ao contar a
primeira, voc passa a vida inteira contando mentira para justificar a primeira que
contou, declarou o presidente Luiz Incio Lula Silva em entrevista, a propsito
do escndalo poltico envolvendo o PT e o repasse de dinheiro de caixa dois a
partidos aliados. O mesmo verdade se se trocar mentira por omisso.

4.3
Convices pessoais e snteses totalizantes

No tratamento que O Globo d ao tema do suicdio, no entram, como em


tantos outros assuntos, as convices pessoais de cada jornalista da redao ou
nem mesmo de cada membro da sua chefia. Elas tendem a se fundir e de certa
forma se anular numa outra convico, ou melhor, na percepo do que seria a
convico do jornal. Esta percepo, por sua vez, fortemente influenciada pelo
perfil da parcela maior dos leitores, tal como percebido por intermdio de
pesquisas qualitativas dirias. Nem mesmo a famlia Marinho estabelece a linha
isoladamente. Ela surge no embate dirio entre o jornal e o leitor, como, nas
palavras de Voyenne, um pedao do social que volta ao social. Por exemplo, os
donos do Globo acreditam que a nica forma de combate eficiente ao trfico de
drogas seria a legalizao de todas elas. As pesquisas, porm, indicam que tal
posio causaria escndalo entre os leitores. A posio do Globo, ento,
favorvel descriminao da posse de maconha, postura intermediria externada
sem maior alarde.
Nos trs jornalistas da chefia entrevistados especialmente para esta
pesquisa, h trs convices pessoais distintas sobre a morte voluntria que se
articulam dentro da prpria cultural organizacional numa linha nica de trabalho
dirio. Dois deles, Luiz Garcia e Rodolfo Fernandes, declaram-se distanciados de
qualquer religio, embora no usem a palavra ateu. Agostinho Vieira o nico
manifestamente religioso:
154

Sou catlico e acredito em Deus, apesar de no praticar nem um


pouco. Sou contra o suicdio como soluo para qualquer coisa.
Mas entendo o grau de solido e desespero que uma pessoa que
toma essa deciso deve enfrentar. Tenho dvidas sobre a
eutansia, que uma espcie de suicdio com acompanhante.
Em alguns casos de doena terminais difcil chamar aquilo de
vida. (AGOSTINHO, 2005).

Luiz Garcia, pragmtico, no se distancia muito disso:

Acho que o suicdio no uma deciso racional. sempre uma


deciso provocada por um distrbio emocional muito forte. Eu
no vejo nenhuma qualidade que redima o suicdio. Tambm
no vejo nenhuma que o execre, mas no h nobreza no
suicdio. No h aqui nada parecido com a cultura japonesa.
(GARCIA, 2005).

A partir do suicdio de um primo-irmo, a associao entre suicdio e


desespero surge tambm entre as convices pessoais de Rodolfo Fernandes:

Tem um carter de desespero. Mas no chega a ser mais


traumtico que um acidente de automvel, a morte numa
tragdia. Como no tenho fundadas razes religiosas, no me
considero catlico, no pratico, no tenho ligao, no vejo isso
como tabu. Vejo mais pelo lado psicolgico, do desespero do
gesto. Minha aproximao do assunto puramente pessoal. E,
no caso de publicar, as convices que tenho em relao a isso
so s as bsicas de edio de jornal: entre 100 assuntos por
dia, por que publicar este assunto e no outro? (FERNANDES,
2005).

A necessidade de escolher um assunto em detrimento de outro, dada a


realidade fsica de que o espao editorial inelstico e o papel de jornal custa
caro, freqentemente atrai crticas a este trabalho de seleo. Segundo elas, ora os
critrios seriam categorias inventadas pelos prprios jornalistas, ora seriam
categorias impostas a eles pelos seus patres capitalistas.
Pode-se aceitar que os assuntos selecionados pela imprensa determinem a
agenda temtica (agenda-setting) da sociedade, os assuntos que ela ir discutir,
independentemente da relevncia deles ou no, mesmo porque relevncia pode
ser um conceito assaz relativo. Coisa bem diversa, porm, considerar um jornal,
ou a imprensa em geral, como um estrutura homognea, desprovida de sutilezas e
campos de fora interna, totalmente resguardadas de influncias pessoais ou
155

sociais. Arlindo Machado critica este tipo de abordagem, que chama de snteses
totalizantes:

Muitos discursos sobre as mdias parecem mais prximos da


fico cientfica do que da anlise objetiva. Eles imaginam uma
trama maquiavlica, na qual age o vilo, uma espcie de Big
Brother, que tudo controla graas sua onividncia, oniscincia
e onipresena, ao mesmo tempo que domina os milhares de
escravos mudos e submissos colocados a seu servio em todo o
mundo e determina o que a humanidade ao seu redor deve
pensar e fazer. Para o analista, bom seria se tudo fosse to
simples assim.

As mdias so encaradas, nessa abordagem, como estticas e


monolticas, expresses cristalinas da vontade daqueles que as
forjam, impermeveis ao tempo e contexto, sem conflitos
internos ou presses externas, sem perspectivas de perfurao e
contgio. (MACHADO, 2004, p. 49-50).

A abordagem de Ortiz do que chama de esquema geradores do discurso


sutilmente distinta. Comentando os estudos de Bordieu da ideologia das classes
dominantes francesas e relacionando-os atual literatura da administrao global,
ele lembra que, se s vezes discursos de grupos diferenciados e talvez conflitantes
parecem dizer a mesma coisa, isso se d porque as categorias de classificao do
pensamento so idnticas, e antecedem a prpria ideologia, elas permitem
entender como, em situaes variadas, a mesma forma de pensar se impe
(ORTIZ, 1994, p. 162). Neste caso, pondera, a estratgia do discurso
mundializado que nos leva a pensar o poder como descentralizado, parcial,
flexvel, local.
Retornando especificamente ao discurso da imprensa em torno do suicdio
(mais do que sobre o suicdio), no meu entender, ela no se inventou como o
ponto focal da idia de transmisso do suicdio na sociedade; ela mesma foi
contagiada pela idia de contgio, que, como vimos, lhe externa e anterior. A
rigor, por sua prpria funo, qual seja a de fazer circular fatos e conceitos pelos
seus concidados/consumidores, ela em tese poderia ser responsabilizada por
virtualmente todas as idias que pegam/no pegam na sociedade. Tanto, apenas
por exemplo, alis, apenas por ser o meu exemplo, a de que o suicdio pode ser
transmitido como uma doena e, portanto, deve ser tratado com os cuidados
156

devidos a uma doena altamente contagiosa quanto a contrapartida de que o


homem deve preservar sua sade e seu meio ambiente. No caso da morte
voluntria, isolar o comportamento reticente da imprensa sob a lupa, no
laboratrio, implicaria ignorar toda a histria da Humanidade e as prticas e
rituais que os homens adotaram, com o passar dos milnios, para lidar com os que
se decidiram por no mais ser.
5
Concluso

Os versos de Chico Buarque que servem de epgrafe para esta pesquisa


remetem ao linguajar dos jornais. Frases como agonizou no meio do passeio
pblico ou morreu na contramo atrapalhando o trfego parecem extradas de
uma notcia real. Perguntei por e-mail ao compositor se, na sua cabea, a histria
do operrio de Construo era uma queda ou um pulo. deliberadamente
ambguo, Chico respondeu. A despedida algo cerimoniosa da mulher, a
ebriedade dos ltimos momentos, o corpo estatelado no cho, todas estas imagens
compem este quadro de ambigidade deliberada. Na imprensa brasileira, a
tenso notcia espetacular X temor de contaminao quase a regra quando o
assunto suicdio.
Esta tenso e os efeitos colaterais o vazio, a sombra, a ausncia de
explicao, a omisso, a evasiva, o eufemismo que a seu modo negam um
tmulo ao morto chamam a ateno exatamente porque se chocam com uma das
condies sine qua non do jornalismo: a clareza. Benjamin, ao analisar a obra de
Nikolai Leskov em O narrador [1936], bem claro quanto a isso ao contrapor a
secura racionalista da informao (e do romance, posto que para ele ambos
nascem da mesma procura burguesa pelo sentido, real ou ficcional) s antigas e
exuberantes formas narrativas advindas da experincia coletiva. Ele lembra uma
definio de notcia feita pelo fundador do Figaro, Villemessant (Para meus
leitores, o incndio num sto do Quartier Latin mais importante que uma
revoluo em Madri), para mostrar como, na imprensa, o longe (seja espacial
seja temporal) perde para o prximo como fonte da sabedoria porque no
passvel de comprovao.

A informao aspira a uma verificao imediata. Antes de mais


nada, ela precisa ser compreensvel em si e para si. Muitas
vezes no mais exata que os relatos antigos. Porm, enquanto
esses relatos recorriam freqentemente ao miraculoso,
indispensvel que a informao seja plausvel. Nisso ela
158

incompatvel com o esprito da narrativa. (BENJAMIN, 1996,


p. 203).

O suicdio pode, sim, ser uma notcia espetacular, naquilo que uma notcia
tem de igualmente essencial: o inesperado, a ruptura de uma ordem natural das
coisas. Neste sentido, enquadra-se na leitura que Roland Barthes fez dos fait
divers (fato diverso, isto , desastres, acidentes, mortes etc.). Para o semilogo
francs, eles seriam a parcela do noticirio que escapa politizao94: so eventos
que, ao menos na aparncia, se fecham em si e para si, se esgotam em seus
prprios enunciados, no tm contexto exterior so uma informao calada. O
interesse por eles surge da lgica relacional de seus termos: Estilista
encontrado morto em seu apartamento atrai a ateno do leitor pelos termos
inesperados. No processo, o fait divers se reaproxima do romance, qual os relatos
sobre suicdios publicados nos jornais ingleses do sculo XVIII. Carlos Henrique
de Escobar ao analisar as relaes entre comunicao e fait divers a partir de
Barthes prope, no caso das notcias policiais, uma reflexo vlida tambm para o
suicdio:

Outro tipo de fait divers dentro deste plano de


inexplicabilidade aquele que expressa o crime misterioso.
Este fait divers fecundo pela sua riqueza e pelo poder de
implicao simblica que tem com a cultura. Ele tem nveis e s
vezes desprende implicaes filosficas especiais no entender
do homem, da morte, da sua procura intensa de uma causa. (...)
O prprio Barthes (que) enfatiza esta suspeita de que se os
acontecimentos se repetem porque eles querem significar, de
certa forma assopra no interior de todas as crenas, o que nos
leva a sentir a importncia dessa espcie de fait divers, e isso
no apenas no interior contemporneo do sistema de imprensa,
mas no fait divers de todos os tempos. (s/d; p. 115-117).

Da outra ponta do cabo-de-guerra, o discreto tratamento do tema suicdio


pela imprensa mal esconde o temor disseminado de que noticiar um possa
conduzir a outro. Da a necessidade de fazer cada caso aparentar ser nico,
isolado, fechado, fruto amargo de uma perturbao pessoal. Transplantar a morte
voluntria da categoria dos fait divers (Amaury Veras, por exemplo) para a das

94
Tal definio remete que Barthes faz dos mitos: O mito uma fbula despolitizada (Mitolo-
gias; p. 163). No entanto, uma fala despolitizada que pode ser falada politicamente.
159

informaes polticas (Getlio Vargas) implica promov-la categoria dos


enunciados que no se esgotam em si e que se relacionam com o resto da vida,
numa grande narrativa.
Mesmo aqueles que, na nossa sociedade, esto destacados para batalhar na
linha de frente contra a morte, os mdicos, no tm com ela uma relao fcil s
porque a testemunham todos os dias. A morte de cada paciente sentida pela
classe como um atestado de fracasso profissional, pois os seus conhecimentos e
esforos no foram suficientes para manter o paciente vivo mas no s isso. Nas
palavras de Srgio Zaidhaft em Morte e formao mdica, a necessidade a de
triunfar sobre a morte, de negar sua prpria mortalidade. Esta crena em sua
imortalidade que abalada a cada morte de paciente (1990, p. 21). Cabe aos
psiquiatras, alis, prevenir o suicdio e identificar os componentes suicidas em
pacientes, mesmo os politraumatizados e os terminais. como se a cincia mdica
acreditasse, como a religio, que cada morte tem a sua hora.
Se uma morte natural ou acidental j causa um desconforto nos
circunstantes, estejam eles profissionalmente preparados ou no (Zaidhaft discute
longamente o mecanismo psicolgico de distanciamento e defesa que faz o
mdico negar-se a prpria vida a fim de negar-se tambm a prpria morte), uma
morte voluntria ainda pior. Defensor radical da racionalidade do ato suicida, o
filsofo argentino Julio Cabrera lembra as trs entidades burocrticas que
oficialmente sabem da vida e da morte na nossa sociedade: a Igreja, a Justia e a
Medicina. Como vimos, as duas primeiras condenam o suicdio como ofensa a
Deus e como crime contra si prprio. Para Cabrera, a terceira reproduz em seu
jargo a mesma idia de que a vida e a morte no fazem parte do patrimnio de
cada pessoa, mas da sociedade.

Os mdicos costumam dizer de algum que se suicida que ele


estava fora de si mesmo, ou que no era ele mesmo quando
fez aquilo, que se tivesse se recuperado no teria chegado a
tal ato. Nessa formulao, nega-se ao suicida a possibilidade
dele ser dono da sua morte, sujeito dela. (...) O suicida desafia
essas supervises institucionalizadas da vida, e cai na dupla
condenao de doente e subversivo. (CABRERA, 1990, p.
41).

A imprensa, como tomadora de linguagens emprestadas, retransmite a


desqualificao da morte voluntria como mpia, ilegtima ou doentia para outros
160

setores da sociedade. Vem da o mal-estar que cerca o tema. Ele se mostra, por
exemplo, quando Jean-Claude Bernardet vai assistir a um filme de Abbas
Kiarostami e escreve, a propsito das tticas de envolvimento do cineasta
iraniano: Se eu tivesse entrado no cinema sabendo de antemo que o projeto do
senhor Badii era o suicdio, no teria alcanado uma relao to intensa e
perturbadora com O gosto de cereja (BERNARDET, 2004, p. 54). Por qu?
Porque a bem-sucedida humanizao do personagem estabelece entre ele e o
espectador uma slida identificao secundria, para alm de qualquer pr-
conceito em relao ao seu gesto.
O que incomoda em Kiarostami o seu realismo. No o realismo reflexo
de que fala Ortiz em A moderna tradio brasileira, aquele que refora as
demandas subjacentes s exigncias do espectador pois cola realidade j
preexistente. a falta de distncia que lhe retira o carter reflexivo (2001, p.
173). Este o realismo da indstria cultural e do jornal, o que procura consagrar
uma nica verso da realidade, eliminando qualquer tipo de reflexo sobre ela
(idem). J o realismo de Kiarostami e o de Eisenstein, mencionado por Ortiz a
partir de Bazin como o do chamado neo-realismo italiano, cujos filmes:

Propunham uma leitura social que necessariamente implicava o


distanciamento do espectador em relao sua posio atual. O
real mostrado na tela deslocava a ateno do pblico,
colocando-o na situao incmoda de ter ou no que tomar
partido (e no simplesmente gostar ou desgostar) sobre o que
lhe era proposto. (ORTIZ, 2001, p. 73).

Dentro de cada um dos textos sobre casos de suicdio que consegue atingir
as pginas esta mesma tenso entre a espetaculosidade (sua atrao para o
jornalista-leitor) e a subverso existencial da notcia (sua repulsa) mantida. Eles
so mantidos longe da reflexo, fechados em si e para si, numa situao
cmoda. So inmeros os recursos para desviar o assunto, dentro da estratgia do
fait divers: aqui, o homem-bomba que mal mencionado; ali, o pai que
colecionava armas; acol, a suspeita persistente que a morte do estilista foi por
homicdio (pouco importa, aqui, se esta hiptese afinal vier a ser comprovada).
Sendo tributria da imprensa americana, inclusive na adoo da tcnica do
lead, virtualmente inexistente na Europa, no surpreendente que nos EUA se
verifique mais ou menos a mesma queda pela ambigidade, conforme foi visto no
161

relato de Tad Friend sobre as pessoas que saltaram da Golden Gate. Parece lgico,
no? Se noticiar suicdios os multiplica, calar sobre eles uma forma de reduzi-
los. Ser? Num artigo publicado no site Poynteronline (cujo slogan tudo o que
voc precisa saber para ser um jornalista melhor), a radialista americana Cindi E.
Deutschman-Ruiz, conquanto recaia em alguns clichs, discorda disso. Ela chama
a ateno para a impressionante estatstica de que 30 mil pessoas se matam
anualmente nos EUA e que outras 500 mil do entrada em salas de emergncia
depois de uma tentativa de suicdio95.

A mdia reflete essas realidades? Geralmente no. Em vez


disso, a cobertura tende a se deter numa erupo de suicdios
numa universidade; num estudo que encontra evidncia de
tendncias familiares em relao ao suicdio; ou em
proeminentes e bem-sucedidos doutores, atores, escritores e
empresrios que se matam.

E em alguns casos, ns criamos regras escritas ou no-escritas


para no cobrirmos suicdios por causa do medo de inspirar
imitadores. Suicdios por imitao so um problema real, mas
especialistas em suicdio geralmente concordam que no se
trata de questionar se a mdia deve cobrir suicdios, mas como o
fazemos.

Estimando-se pelo noticirio, seria fcil concluir que o suicdio


raro, e no um problema de sade pblica disseminado e
atual. Como jornalistas, ns adoramos nos criticar por
supercobrir o homicdio. Por que no encaramos nossa
subcobertura do suicdio? (DEUTSCHMAN-RUIZ, 2003).96

O ponto central da argumentao que Cindi desenvolve a seguir, porm,


o de que o suicdio deve ser enquadrado dentro do contexto de um problema de

95
Estes dados no devem ser nem menosprezados nem superestimados. Embora em nmeros abso-
lutos os EUA ocupem o quarto lugar no ranking mundial de suicdios (atrs de China, ndia e Rs-
sia), eles caem para 38 lugar quando se considera a taxa por 100 mil habitantes. Segundo esta, os
pases com mais suicidas so, pela ordem, Litunia (com 42 por 100 mil), Estnia, Rssia, Letnia,
Hungria, Sri Lanka, Kazaquisto, Bielo-Rssia, Eslovnia e Finlndia. Os nmeros so da Organi-
zao Mundial de Sade.
96
Does media coverage reflect these realities? Generally not. Instead, coverage tends to focus on a
rash of suicides at a university; a study that finds evidence of family tendencies toward suicide; or
the proeminent, sucessful doctors, actors, writers, ou business people who kill themselves. And in
some cases, we create written or unwritten rules not to cover suicide out of fear of inspiring copy-
cats. Copycat suicides are a real problem, but suicide experts generally agree that its not a ques-
tion of whether media should cover suicide, but how we do so. Gauging from the news, it would
be easy to conclude that suicide is rare, rather than a widespread and ongoing public health prob-
lem. As journalists, were fond of criticizing ourselves for over-covering homicide. Why do we
fail to address our under-coverage of suicide?
162

sade mental falcia que j desmentida por Durkheim mais de um sculo antes.
Seja como for, ela no se furta a criar as prprias regras de como cobrir suicdios.
A primeira regra, o suicdio nunca o resultado de um nico incidente,
busca aprofundar a compreenso do ato, normalmente associado a uma grave
depresso o que condiz com o que escreveu o jornalista Ian Thomson, bigrafo
de Primo Levi. A segunda, detalhes do mtodo ou da locao usada pelo suicida
podem levar a suicdios por imitao, sugere que o reprter seja cautelosamente
genrico o que est em acordo com os procedimentos prescritos no Manual de
redao e estilo do Globo. A terceira, vital usar estatsticas e informao sobre
sade mental muito cuidadosamente , visa a no-associao automtica entre o
suicdio e uma patologia o que objetiva as preocupaes da prpria Cindi. A
quarta, a cobertura de suicdio uma oportunidade de fornecer ao pblico
informaes e recursos que podem salvar vidas, fortalece a mdia prestadora de
servios o que ecoa a experincia de Otavio Frias Filho no CVV.
Como altamente improvvel que Cindi, Thomson, Luiz Garcia e Frias
Filho tenham algum dia se encontrado (e nem mesmo lido uns aos outros) para
deliberar e chegar basicamente s mesmas concluses quanto ao melhor modo de
abordar o tema, razovel supor que suas opinies e aes reflitam, se no o
bom senso mencionado por Rodolfo Fernandes, um senso comum. Ou, para
usar as palavras de Alexis de Tocqueville sobre os americanos, uma religio
menos como doutrina revelada do que como opinio comum.
Todavia, esta opinio no pode ser entendida como comum apenas aos
profissionais das redaes, posto que isto transformaria a comunicao num
circuito fechado e de mo nica. Este senso deve ser comum entre estes jornalistas
(e seus colegas) e os leitores (das sociedades crists ocidentais a quem os
primeiros se dirigem e dos quais saem os prprios jornalistas). Uns no existem,
ou, como quer Alsina, no sabem sem os outros. Conferir imprensa o poder
absoluto sobre o processo de comunicao ignorar as complexas redes de poder
e contrapoder dentro de cada sociedade. Por conta tanto de pesquisas qualitativas
dirias quanto da facilidade de interao imediata com os jornais pelo correio
eletrnico, ou ainda da feroz competio entre empresas que sobrevivem do gosto
do leitor, nunca as redaes ficaram to expostas e sensveis ao mundo fora delas
quanto hoje.
163

Philip J. Stone coloca cristalinamente a questo da interao entre a


linguagem individual (e, poderamos acrescentar, crena individual) e o ambiente
social que a molda quando escreve sobre o pressuposto fundamental da inferncia,
entendida por ele como a raison dtre da anlise de contedo:

As palavras no apenas refletem a significao do que


imaginamos como sua natureza mas tambm contm a
significao da natureza, disposio e interesse daquele que
fala. A disposio e interesse de quem fala refletem em parte
as presses da situao social geral, que podem condicionar o
tpico em discusso e engendrar a necessidade de atingir um
efeito determinado sobre os demais. A natureza de quem fala
inclui caractersticas de personalidade e estilos de expresso,
derivados em parte da experincia passada do indivduo na
famlia, vizinhana, escola e trabalho. (STONE, in: COHN:
1978, p. 318).97

Portanto, a partir do exposto acima, ainda mais razovel supor que o


procedimento recalcado da imprensa frente ao suicdio reflita o mal-estar de toda
a nossa sociedade diante da morte voluntria. Porque, mais do que os prprios
jornalistas, os suicdios levantam questes demais. Questes perturbadoras
demais, como aquela proposta por Camus. Julgar se a vida merece ou no ser
vivida, contudo, no to-somente responder a uma questo fundamental da
filosofia. ter de admitir que, para um nmero considervel e crescente de
pessoas, a resposta no. E ainda ter de aprender a conviver com isso. Da a
milenar satanizao ou criminalizao da figura do suicida, da o wishful thinking
de que apenas uma pessoa sem a posse da sua sade mental pode cogitar tirar a
prpria vida.
No bem assim. Nem mesmo a depresso profunda uma explicao
universal e mecnica para todo suicdio, at porque uma pessoa em depresso
profunda no tem nimo ou foras nem para se matar. Outra maneira de recolocar

97
Refere-se a Hobbes, no Leviat, que usa como epgrafe de seu artigo: Quando imaginamos as
mesmas coisas de maneira diferente, muito dificilmente deixamos de nome-las de modo diverso.
Apesar de ser a mesma a natureza do que imaginamos, a diversidade de nossa percepo do objeto,
devido a diferentes constituies do corpo e devido a preconceitos de opinio, confere a cada coisa
o cunho de nossas diversas paixes. E, por esse motivo, um homem deve ter cautela com as pala-
vras quando raciocina; isto porque, alm da significao do que imaginamos como sua natureza, as
palavras tambm contm a significao da natureza, disposio e interesse daquele que fala.
164

o duplo aspecto da loucura e da doena mental feita por Maurice Halbwacs,


sobrinho de Durkheim, em Les causes du suicide [1930]:

So perturbaes orgnicas tratadas pela psiquiatria. Mas, ao


mesmo tempo, toda doena mental um homem que no est
mais adaptado ao seu meio. Uma doena mental um elemento
de desequilbrio social. (...) um fato social que deve ser
explicado por causas sociais. (HALBWACS, 2002, p. 382-
383).98

Nisso, ele est de plano acordo com o tio, cuja uso da anlise estatstica
para provar suas teorias foi considerado notvel. Como frisa Matilda White Riley,
o interesse de Durkheim pelos aspectos sociais do suicdio e no pelas razes
individuais pelas quais algum comete e outro algum no comete suicdio
consistente com sua viso de socilogo, no de psiclogo ao mesmo tempo em
que no subestima o indviduo em seu papel na sociedade. Porque o
desequilbrio social que se manifesta de modo estatstico: O suicdio anmico
tende a crescer conforme as normas do grupo e os controles sociais entram em
colapso e o suicdio egosta tende a crescer conforme as normas prescrevam um
excessivo afastamento do indivduo do grupo (RILEY, 1963, p. 413).
A presente tentativa de se tentar entender como jornalistas fazem para lidar
com a idia do suicdio alheio como fato social, em seu dia-a-dia, nasceu da
dvida que, variadas vezes, acometeu-me dentro das redaes do Jornal do Brasil
e do Globo: qual a razo para sermos to lacnicos sobre as mortes voluntrias,
para sepult-las sob eufemismos como as causas da morte no foram divulgadas
ou acidente com arma de fogo? Isso mera inveno nossa ou reflete, como ns
temos a pretenso de que as pginas reflitam, algo que nos suplanta?
Ao cabo da pesquisa, entendi que o silncio era menor do que eu supunha
e, mais at que ele, me incomodava o tom das palavras, a desqualificao do
suicida como fantico religioso, criminoso ou louco. Tudo isso, como escreveu
Jos Carlos Rodrigues, no se explica apenas porque o suicdio seja um desafio
ao poder, mas tambm porque todo verdadeiro desafio ao poder seja de natureza
suicidria (p. 282) Admito que, volta e meia, minhas palavras em relao queles

98
Ce sont des troubles organiques qui relvent de la psychiatrie. Mais, em mme temps, tout ma-
lade mental est un homme qui nest plus adapt son milieu. Une maladie mentale est um lment
de dsquilibre social. (...) Cest um fait social, qui doit sexpliquer par des causes sociales.
165

que se mataram, recusando-se a lhes pespegar os estigmas tradicionais, possam ter


soado como apologia ao suicdio. Em absoluto. Isso seria to intil quanto fazer a
apologia da vida. O que me parece necessrio encar-los, ambos, de frente.
Recorro aqui, uma ltima vez, a Rodrigues, quando diz que as mortes voluntrias:

So um imenso clamor pelo direito felicidade, uma


demonstrao, por um gesto irrecusvel, de que a vida tal como
no merece mais que a ela se esteja ligado. So uma
escandalosa afirmao do direito liberdade e dignidade,
afirmao que o oprbrio lanado contra o suicida e seus
prximos tenta anular. (...) Alm de dramas pessoais, estes
dados podem nos permitir supor que, embora de modo
desorganizado e privado, muitos transgrediram o tabu da morte
em busca da liberdade. (RODRIGUES, 1983, p. 282).
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<http://www.marxists.org/francais/trotsky/livres/litterature/essenine.htm>
Acessado: em 6 de janeiro de 2005.

Entrevistas ao autor:

FERNANDES, R. Realizada 16 de novembro de 2005.

GARCIA, L. Realizada 16 de novembro de 2005.

GOIS, A. Realizada em 16 de novembro de 2005.

VIEIRA, A. Realizada em 2 de dezembro de 2005.


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