Tempos de isolamento: reflexões e qualidade de vida
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Tempos de isolamento - José Xavier Cortez
E no princípio era o verbo
Aos 83 anos, pela primeira vez, ousei enfrentar o desafio de escrever um livro. Essa é minha primeira experiência nesse ofício, após ter publicado, como editor, mais de 1.300 títulos pela Cortez Editora ao longo de pouco mais de cinquenta anos no mercado livreiro e editorial. Como muita gente que viu sua vida mudar neste inevitável período de isolamento imposto pela pandemia da Covid-19, decidi aproveitar o momento para inovar, criar, seguir produzindo. Confesso que foi, também, uma maneira de tirar o foco de uma enfermidade que, nos últimos 23 anos, volta e meia ressurge para perturbar meu juízo.
Mas escrevi, sobretudo, porque acredito ter o que contar e porque aposto que algumas escolhas podem fazer muita diferença em termos de qualidade de vida, especialmente quando nos tornamos parte da emblemática população de idosos – que merece muito mais discussões, políticas públicas e holofotes do que infelizmente vem obtendo.
Convivo com o mundo educacional e cultural, do qual faço parte também como estudante
. A leitura mais diversa entrou na minha vida tardiamente, a partir do ingresso na Universidade, e se tornou – ainda bem! – minha companheira, e nela percebi que encontro remédio pra tudo
. Por isso pensei que, talvez, estes escritos também possam, quem sabe, exercer uma influência positiva em alguém que venha a lê-los. Comecei por preencher as primeiras folhas em branco partindo de vagas lembranças e, no conjunto, foram surgindo (deve ser o que acontece com os escritores) temas observados ou vividos na atualidade, questões que defendo hoje.
Contemplo o que fiz, celebro o que lembrei, tanto que resolvi expor essas memórias e reflexões com palavras que vêm em meu auxílio tecer o texto da vida, a começar pelo título deste próprio texto, que remete a uma conhecida passagem bíblica, presente no primeiro capítulo do Evangelho de João. Desde sempre, a importância dos verbos/palavras segue firme na história e na nossa vida pessoal. Nesses tempos obscuros em que vivemos, termos como compartilhar
e cooperar
são – ou deveriam ser – a força motriz de nossas ações e pensamentos. Em seu ensaio Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade, o historiador israelense Yuval Noah Harari nos lembra: O verdadeiro antídoto para epidemias não é a segregação, mas a cooperação
.
A última palavra da frase de Harari destaca, justamente, a ação de cooperar, cada vez mais imprescindível nestes tempos de quarentena vividos em 2020 devido à epidemia da Covid-19, que, em 4 de outubro, data em que finalizamos este livro, já havia contaminado, no Brasil, 4.263.208 pessoas, vitimando 146.352¹, sem contar os casos não notificados que, sabemos, são muitos. Por ora, a melhor forma de cooperar é, para os que podem ter esse luxo, ficar em casa, evitando a propagação dessa doença extremista, capaz de provocar tanto sintomas levíssimos em alguns, quanto quadros gravíssimos em outros, levando-os à morte.
E ao pensar na força dessas palavras, fui tomado por imenso desejo de escrever estes textos aqui apresentados com duas preocupações principais: a primeira é compartilhar algumas das minhas experiência e reflexões provenientes das minhas mais de oito décadas de vida; a segunda é, por meio dessas vivências e percepções, cooperar para que possamos usufruir de uma aproximação possível nesse período que, em contrapartida, impõe o isolamento. Creio que, ao trocar experiências sobre o que vivemos, pensamos e produzimos nessa época de exceção, poderemos, quem sabe, nos fortalecer de forma conjunta e nos erguer dessa grande adversidade que, entre outras limitações, vem significando, para alguns, doses extremas de solidão e, para outros, de convívio (no geral, com a família).
Ambas as situações exigem paciência, resiliência, tolerância, equilíbrio físico e mental. Verdade é que o mundo enfrenta pestes desde sempre, porém essa é a primeira pandemia vivenciada nessa época marcada pelos avanços científicos e tecnológicos, associados à rapidez da informação. Sabemos, portanto, dos benefícios do isolamento e das medidas de higiene, e boa parte do planeta adotou essas normas no intuito de evitar o contágio. Diferentemente disso, no Brasil, o próprio Governo Federal desdenhou, desde o princípio da pandemia, da importância do isolamento e da letalidade do vírus. O resultado vemos nos altos índices de mortes e no colapso da saúde em vários Estados da Federação.
Por curiosidade, conhecedor dos limites dos meus saberes, comecei a pesquisar sobre doenças e temas correlatos que, verdade seja dita, não faziam parte das minhas grandes preocupações. Como surge essa ou aquela doença? Como essas enfermidades se expandem a ponto de originar surtos, endemias, epidemias e, finalmente, pandemias – como essa que vivemos hoje, responsável pela perda de tantas vidas? Tudo isso a história registra. Em séculos passados, outras pandemias dizimaram milhares, por vezes milhões de indivíduos.
No século XIV, a chamada peste negra exterminou um terço da população europeia. Em 1918, como nos lembra Harari no ensaio já citado, a gripe espanhola, provocada por uma cepa de gripe particularmente virulenta [...] infectou meio bilhão de indivíduos – mais de um quarto da espécie humana. Estima-se que a gripe tenha matado 5% da população da Índia. No Taiti, 14% dos ilhéus morreram. Em Samoa, 20%. Ao todo, a pandemia matou dezenas de milhões de pessoas – podendo chegar a cem milhões, em menos de um ano. Foi mais do que se matou em quatro anos de batalhas brutais na Primeira Guerra
².
O historiador nos lembra, ainda, que as diferenças impostas pela passagem do tempo entre uma pandemia e outra são inúmeras. Entre elas, a rapidez dos processos de transmissão decorrentes da velocidade dos transportes. Os aviões, por exemplo, carregam portadores do vírus entre continentes os mais longínquos em menos de 24 horas, espalhando a doença de forma eficiente e veloz pelo planeta. Acrescente-se a isso o fato de que a população mundial é muito maior do que há um século. Outra mudança substancial está no fato de que nunca tivemos tanto acesso à informação, notícias, análises, pesquisas.
Vale registrar que nossa Editora, fundada há quarenta anos, tem dado prioridade à publicação de livros e revistas que tratam essencialmente das grandes questões sociais e educacionais do nosso país. E no que se refere a epidemias, entre nossos títulos publicamos a obra Meningite: uma doença sob censura? (Cortez Editora, 1988), de Rita de Cássia Barradas Barata. A obra aborda a história da epidemia de meningite ocorrida na cidade de São Paulo na década de 1970, cujo auge se deu entre 1974-75, há quase cinquenta anos. Cotejando a situação descrita pela autora com o que ocorre hoje na cidade de São Paulo e no Brasil, constatamos que pouco avançamos em relação à falta de leitos, hospitais, desigualdade social, ausência de políticas públicas para atender, principalmente, a população carente, pertencente ao estrato social no qual os números de mortos se avolumam. O que avançou, sem dúvida – como já disse Harari –, é o acesso à informação.
E como tudo tem dois lados, está aí uma mudança capaz de causar muita preocupação e ansiedade. No meu caso, cheguei a um ponto em que não aguentava mais ficar refém do noticiário repetitivo 24 horas por dia, e isso também contribuiu para minha decisão de escrever este misto de crônicas, memórias e reflexões.
Espero que minhas palavras possam, de alguma forma, estabelecer uma ponte entre nós. Um modo de ligar minhas experiências particulares aos repertórios mais universais possíveis, mesclas de vivências de cada um de vocês, leitores. Dito isso, preciso revelar que meu forte sempre foi muito mais a publicação do que a escrita propriamente dita e, por isso mesmo, contei com o auxílio da jornalista Goimar Dantas, uma das autoras de minha biografia Cortez – A saga de um sonhador (Cortez Editora, 2010), que, por meio de textos e depoimentos que lhe concedi de forma on-line durante esses meses de quarentena, organizou e editou esses meus escritos. Estou convicto de que, como editor, meu legado fundamental serão os livros, as palavras e todo o conhecimento derivado deles.
É a primeira vez, no entanto, que tento fazer isso de forma mais pessoal e intimista. Foi uma experiência singular que, posso assegurar, me manteve ativo mentalmente e entusiasmado a ponto de me apartar de qualquer resquício de depressão e tristeza nesses meses de confinamento. Reviver memórias e refletir sobre o presente, escrevendo-as, me trouxe energia suficiente para buscar formas de compartilhar sentimentos de ordens diversas. Um mergulho profundo na minha própria vida. Nas minhas saudades, medos e desafios, mas também no que tenho de