Joe Sacco, Jornalismo Literário em Quadrinhos

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Joe Sacco: Jornalismo Literrio em quadrinhos

Ana Paula Silva Oliveira 2


Mateus Yuri Passos 3

PUC-Campinas, UNIVS
Unicamp, ABJL

Resumo: O objetivo deste artigo indicar caminhos para entender de que maneira a
histria em quadrinhos pode ser considerada reportagem jornalstica e como, durante as
transformaes das HQs ao longo do sculo XX, chegou-se a essa linguagem para fazer
jornalismo. Para isso, ser realizada uma reflexo sobre o trabalho do reprter e desenhista
Joe Sacco, considerado o pioneiro na utilizao das tcnicas jornalsticas aplicadas arte
dos quadrinhos a partir da anlise de seus dois livros sobre a Palestina: Palestina, uma
nao ocupada e Palestina, na faixa de Gaza. Sero utilizadas as caractersticas do
Jornalismo Literrio para a anlise dos livros acima.
Palavras-chave: Joe Sacco; Histria em Quadrinhos; Quadrinhos autorais; Jornalismo
Literrio

Introduo
Gibi coisa de criana!
At meados da dcada de 80, quem proferisse essa frase no estaria errado. Em
1954, o psicanalista alemo Frederick Wertham publicou A seduo dos inocentes, livro
que culpava as histrias em quadrinhos (HQ) por conduzir jovens indolncia e
criminalidade por meio de tramas violentas. O furor gerado pelo livro resultou em vrios
processos judiciais e criao do Comics Code Authority, selo de qualidade exposto nas
capas das revistas, indicando um contedo inofensivo. Houve, ento, uma infantilizao das
HQs norte-americanas, reduzidas a super-heris, personagens dos desenhos animados
Disney e histrias infanto -juvenis como Archie.

1
Trabalho apresentado ao NP Produo Editorial, do VI Encontro dos Ncleos de Pesquisa da Intercom
2
Mestre em Comunicao e Semitica pela PUC-SP, jornalista, professora da Faculdade de Jornalismo da PUC-Campinas
e da Univs - Pouso Alegre(MG) , graduanda em Cincias Sociais pela PUC-Campinas., membro do grupo de pesquisa
Comunicao e Poltica. E-mail: [email protected]
3
Jornalista. Graduando em Estudos Literrios pela Unicamp, ps-graduando no curso lato sensu de Jornalismo Literrio
pela ABJL, membro do grupo de pesquisa de Gesto e Polticas de Comunicao na UNESP. E-mail: m-
[email protected]

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As primeiras contestaes dessa atitude surgiram na dcada de 70, com a profuso
dos quadrinhos underground (cujo maior expoente foi Robert Crumb) e a reinsero de
relativa violncia e problemas sociais nas tramas por exemplo Ricardito, parceiro- mirim
do heri Arqueiro Verde, revelou-se viciado em herina, em roteiros de Denny ONeil.
Contudo, nas grandes editoras, iniciativas como essa foram poucas e esparsas.
Nos anos 80, enfim, as HQs norte-americanas passaram por uma revoluo: Frank
Miller, em Demolidor: o homem sem medo e Batman: o cavaleiro das trevas, e Allan
Moore, em V de Vingana e Watchmen, reinventaram o gnero dos super- heris, criando
tramas maduras e complexas. Watchmen, considerada pela crtica a melhor histria em
quadrinhos j feita, constitui-se de mincias que proporcionam uma anlise to inesgotvel
quanto a do Ulisses de Joyce. Gian Danton(2005), por exemplo, identificou uma estrutura
baseada na teoria do caos tanto na trama (explorando em vrios nveis o efeito borboleta)
quanto nos desenhos de Dave Gibbons (cuja utilizao recorrente de fractais ocorre em toda
parte).
Porm, aquela dcada traria ainda mais novidades, transformando de vez o conceito
de arte nos quadrinhos. At o momento, cada pe rsonagem e histria criados pertenciam
editora que os publicava. Por essa razo, Jerry Siegel e Joe Shuster, criadores do Super-
Homem, morreram na pobreza enquanto o personagem gerava milhes de dlares em lucro
DC Comics e Time-Warner, detentoras de seus direitos. Todavia, em 1981, a luta
judicial de Steve Gerber contra a Marvel Comics pelos direitos de seu Howard the Duck
(cf. EVANIER, 1994) abriu uma brecha para que os autores, tanto roteiristas quanto
desenhistas, se encorajassem para criar ttulos prprios (inaugurando os quadrinhos ditos
autorais) e at edit- los por conta prpria (HQs independentes). Superando o estigma dos
super-heris, a partir da surgiram ttulos como Cerebus, de Dave Sim, Elfquest, de Wendy
e Richard Pini, Estranhos no paraso, de Terry Moore, e Bone, de Jeff Smith. O
energmeno brbaro Groo, de Sergio Aragons e Mark Evanier, publicado pela Marvel
Comics ao longo de 10 anos, provou que havia mercado para quadrinhos de humor.
Surgiram, tambm, quadrinhos de relato pessoal. As histrias escrachadas de
Crumb, nas revistas underground da dcada de 70, estavam j impregnadas por impresses
e histrias pessoais. A renovao dos anos 80, contudo, trouxe liberdade autoral para o

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exerccio do gnero em grandes editoras ou em publica es independentes, atividade que o
artista Art Spiegelman defende:

Os quadrinhos so um meio de expresso bastante denso. Transmitem


informaes muito concentradas em relativamente poucas palavras e
imagens-cdigo simples. Isso parece ser um modelo de como o crebro
formula pensamentos e lembranas. Pensamos na forma de desenhos. Os
quadrinhos tem demonstrado com freqncia como servem bem para
contar histrias de aventuras cheias de ao ou humor, mas a pequena
escala de imagens e o carter direto desse meio, que tem algo a ver com a
escrita mo, permitem aos quadrinhos um tipo de intimidade que
tambm os torna surpreendentemente adequados para
autobiografia.(SPIEGELMAN, 2001, p. VII-VIII)

Curiosamente, grande parte das histrias pessoais retratadas em quadrinhos


relaciona-se com a guerra. Maus, de Spiegelman, apresenta a experincia de seu pai Vladek
em campos de concentrao na Polnia. Gen Ps Descalos, de Keiji Nakazawa, trata da
exploso da bomba atmica em Hiroshima. No Corao da Tempestade, de Will Eisner,
relata a experincia de seu pai e a sua com a I e II Guerras Mundiais, (o pai evitando a
convocao por meio do casamento, o filho se dirigindo para o campo de treinamento). Por
fim, Perspolis, de Marjane Satrapi, conta a infncia e adolescncia da autora no Ir logo
aps a queda do x da Prsia e a tomada do poder pelo aiatol Khomeini. 4
Se a maturidade do meio abriu a possibilidade de contar histrias pessoais em
quadrinhos, por que no a de relatar a vida dos outros? Aps a Guerra do Golfo Prsico, em
1991, um quadrinista de pouca expresso, obcecado por combates, decidiu retratar a
realidade dos campos de batalha partindo do ponto dos humilhados e ofendidos: o malts
Joe Sacco, que viajou ento para o Oriente Mdio. O resultado de sua iniciativa foi a pedra
fundadora de um novo gnero informacional: o jornalismo em quadrinhos.

Jornalismo e Quadrinhos
No deveria haver estranheza ao se falar em jornalismo em quadrinhos. Afinal, as
histrias em quadrinhos nasceram nos jornais e at hoje permanecem neles na forma de

4
Dos ttulos mencionados, apenas Maus e No corao da tempestade so norte-americanos. Nakazawa publicou seu
trabalho no Japo e Satrapi na Frana. Embora no pertenam ao mercado norte-americano de quadrinhos, Gen e
Perspolis so exemplos de destaque e qualidade nos quadrinhos autobiogrficos.

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tiras cmicas (em geral publicadas nos cadernos de cultura) e charges (localizadas nas
pginas de opinio, a seo nobre das publicaes impressas). Alm disso, o uso de
desenhos para ilustrar matrias em lugar de fotografias comum em revistas como New
Yorker e em textos de jornalismo gonzo (cf. CSAR, 2005, p.54-8).
A origem dos quadrinhos no jornalismo motivo de debates: o senso comum de
que a tira Yellow Kid (1895), do norte-americano Richard Outcault, foi a pioneira no
gnero. Todavia, diversos pesquisadores, como Wellington Srbek(2005, p.23),
identificaram histrias em quadrinhos (por ele definidas como narrativas grficas
seqenciais em que texto e imagem se complementam) anteriores. O pioneiro seria, ento, o
suo Rodolphe Tpffer, autor de Les Amours de Monsieur Vieux-bois e Docteur Festus,
publicados ao longo da dcada de 1820 e reunidos em 1846 no volume Histoire des
Estampes.
As tirinhas em quadrinhos se popularizaram no incio do sculo XX, quando
surgiram os syndicates, organizaes criadas para negociar a venda de histrias para
publicaes de todo o mundo. Ao longo dos anos, foram criados dezenas de personagens
marcantes, alguns posteriormente transpostos para outros meios, como Flash Gordon,
Popeye, Betty Boop, Prncipe Valente, Charlie Brown, Dilbert e Garfield, outros arraigados
de modo firme nos jornais, como Calvin e Hagar. Embora a maioria das tiras apresentasse
gags isoladas, havia diversas histrias seriadas, como Prncipe Valente e Flash Gordon, as
quais levavam meses e at anos para atingirem sua concluso. No Brasil, um dos maiores
exemplos de tirinha seriada foi Ed Mort, escrita por Lus Fernando Verssimo e desenhada
por Miguel Paiva, cujas tramas foram posteriormente reunidas em cinco volumes. Ao
contrrio da maior parte das histrias publicadas em srie, Ed Mort apresentava gags a cada
captulo, apresentando um pequeno clmax que permitia ao leitor ocasional tambm
divertir-se com a tira.
De acordo com SRBEK(2005) as charges desenvolveram-se nos jorna is desde o
sculo XVII, a partir das caricaturas. Sua presena constante e conseqente evoluo
resultaram numa mudana de seu papel. Hoje, servem para manifestar a opinio do artista
(ou do jornal) sobre fatos do cotidiano, principalmente relacionados poltica partidria. De
manifestaes artsticas, as charges tornaram-se uma modalidade do jornalismo opinativo,
partilhando do espao destinado a editoriais e artigos. A importncia atual da charge

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corroborada por Mrio Erbolato, em Tcnicas de codificao em jornalismo, classificando-
a como desenho que ironiza fatos, pessoas ou situaes. utilizada para crtica aos
polticos e tem a fora de um editorial [grifo nosso] (2001, p.242).
Se um gnero artstico que se confunde entre jornalismo e HQ possui tamanha
importncia e credibilidade para ser comparada ao editorial por um pesquisador de renome,
j no h dvida da existncia de jornalismo em quadrinhos. A charge, porm, possui
geralmente um ou dois quadros. A inovao de nomes como Sacco est, na verdade, em
levar a grande reportagem para as HQs. Na introduo edio brasileira de Palestina, Jos
Arbex afirma que as portas para esse novo tipo de linguagem se abriram a partir da diluio
de gneros na televiso com a dramatizao da notcia e a impresso de realidade na fico,
permitindo que os quadrinhos reivindicassem para si o estatuto de jornalismo. Segundo
Arbex, a objetividade jornalstica um mito que mesmo uma cmera de TV no consegue
quebrar, pois a imagem no mostra O mundo, mas UM mundo. Assim, a esttica da HQ,
no pretendendo verossimilhana, apresenta uma viso prpria, um testemunho da histria
de forma totalmente inovadora: cenrios, pessoas e situaes so vistos pela tica pessoal
do autor o qual tambm se insere na trama como personagem.
Para DUTRA CORRA(2003), o gnero foi ainda levado a outros patamares. Em
2000, a revista New Yorker publicou uma resenha inteiramente em quadrinhos de Art
Spiegelman sobre o romance As aventuras de Kavalier e Clay, de Michael Chabon (o livro
trata de dois quadrinistas fictcios e sua criao, o personagem Escapista). A mesma revista
publicara, um ano antes, uma verso em HQ de sua coluna The talk of the town, mantendo o
espao e formato originais, e a edio de 50 anos da Correio da Unesco, em 1996, foi
produzida em sua totalidade com matrias em quadrinhos.
Embora Palestina tenha sido a primeira publicao a se proclamar jornalismo em
quadrinhos, houve precursores. Maus, de Art Spiegelman, uma entrevista no formato de
HQ, estendendo-se por mais de 300 pginas. O entrevistador Spiegelman e o entrevistado
Vladek, seu pai, que relata ao filho sua juventude em guetos de judeus na Polnia e seu
confinamento em Auschwitz. Embora os personagens sejam graficamente animalizados
(judeus so ratos, na zistas so gatos, poloneses so porcos, americanos so cachorros j o
judeu que se passasse por gentio utilizaria mscaras correspondentes respectiva
nacionalidade), as situaes descritas so reais. H em Maus muito de metalinguagem e

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making of, pois os bastidores da entrevista so mostrados durante a histria, prtica tambm
adotada pelos adeptos do new journalism Gay Talese e Hunter S. Thompson.
Essa mistura de reportagem e bastidores ocorre tambm na obra de Sacco(2004),
que hesita em fotografar uma garota ferida (p.32-3), reflete sobre a empatia com um
personagem palestino J conquistei o cara! Salaam aleikum (p.45) expe seu medo
frente a uma revolta de estudantes (p.118) e se convence a ir at o local do acontecimento,
porque bom para o gibi (p. 121).

O pioneiro
Joe Sacco 5 nasceu na ilha de Malta em 1960. Viveu a infncia na Austrlia e, aos 12
anos, mudou-se com sua famlia para Los Angeles, EUA. Formou-se em jornalismo pela
Universidade do Oregon, mas no trabalhou no ramo. A partir da segunda metade da
dcada de 80, tornou-se quadrinista e trabalhou em publicaes underground, criando
histrias de humor escrachado.
Contudo, nem todos os laos com o jornalismo foram cortados. Em 1989, Sacco
publica, em sua revista Yahoo (publicada no Brasil na coletnea Derrotista) a HQ Uma
experincia nojenta (2006, p.99-109), um conto ilustrado com desenhos a tcnica de
somar texto a desenhos que cumprem a funo de fotografias, como em revistas
jornalsticas, foi reutilizada posteriormente pelo autor na HQ histrico-jornalstica Quando
bombas boas acontecem a pessoas ms (2006, p.123-130), sobre o bombardeio britnico
Alemanha durante a II Guerra Mundial, e em Palestina, no captulo Lembre-se de mim
(2004, p.41-50), no qual as ilustraes so baseadas em fotografias tiradas por Sacco.
Quando bombas boas acontecem a pessoas ms foi a primeira HQ de Sacco
relacionada a guerra. Seguiu-se, em 1990, Mais mulheres, mais crianas, mais rpido
(2006, p.134-155), baseada nas memrias de sua me, Carmen, sobre bombardeios italianos
a Malta durante o governo de Mussolini. A histria narrada do ponto de vista de Carmen,
em primeira pessoa.

5
O autor publicou, alm de Palestina e Derrotista, mencionadas no artigo, as seguintes obras: Natal com
Karadzic, pertencente coletnea Comic Book o Novo Quadrinho Norte-Americano(Conrad do Brasil, 2000)
e trs livros baseados em sua viagem Bsnia: Soba(no publicado no Brasil), Uma Histria de
Sarajevo(Conrad do Brasil, 2005) e rea de Segurana Gorazde - A Guerra na Bsnia Oriental(1992-1995)
(Conrad do Brasil, 2001)

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Em 1991, quando ocorreu a Guerra do Golfo Prsico, o quadrinista assistia aos
noticirios de guerra como quem acompanha uma telenovela. Passando por alguns conflitos
internos (entreter-se com o sofrimento alheio), produziu a HQ Como amei a guerra (2006,
p.159-191), durante a qual, ao perguntar a um rabe se no seria cinismo de Saddam
Hussein ligar a invaso do Kuwait questo palestina, obteve como resposta: Sim, mas ele
o nico que fala a nosso respeito (p.170). Foi um passo para a deciso de viajar ao
Oriente Mdio e retomar o jornalismo, dando incio s entrevistas que originaram
Palestina, uma nao ocupada(2004).
Nas 3 HQs sobre guerra mencionadas, j aparece uma caracterstica marcante do
estilo de Sacco: os rostos dos personagens, mais prximos s feies humanas do que
ocorre nos quadrinhos em geral. As feies se assemelham a caricaturas e so mais um
elemento que expressa o olhar e a opinio do autor sobre os entrevistados.
A presena constante do reprter como personagem em Palestina leva
pesquisadores como Rodrigo Abrantes Csar (2005) a classificar a reportagem como
jornalismo gonzo em quadrinhos. Embora a obra de Sacco possua algumas caractersticas
em comum com o jornalismo gonzo (por exemplo, observao e captao participativas),
no apresenta traos marcantes do gnero como sarcasmo e vulgaridade, alterao de
conscincia e uso de elementos ficcionais. As outras caractersticas citadas pelo autor como
uso criativo da linguagem e descrio extrema de situaes, originam-se do Jornalismo
Literrio, precursor do gonzo. A seguir, analisaremos Palestina a partir das sete
caractersticas do Jornalismo Literrio propostas pelo jornalista norte-americano Norman
Sims.

Palestina: uma anlise


Primeiro projeto de Sacco na linha de jornalismo em quadrinhos, Palestina foi
primeiro lanado como uma srie de nove gibis nos anos 90. Transformou-se em dois livros
e, cada histria, num captulo.
O primeiro volume Palestina: uma nao ocupada foi publicado em 1993 e, no
Brasil, em 2000. Vencedor do prmio American Book Award , em 1996, divide-se em cinco
captulos em que so tratados diferentes assuntos: campos de refugiados, prises, torturas e

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as mulheres palestinas. O segundo, Palestina, na Faixa de Gaza, foi publicado no Brasil
em 2004 e dedica-se a mostrar a maneira como vivem os palestinos nesse local..
Nessa obra, resultado de uma viagem Cisjordnia, Jerusalm e Faixa de Gaza que
durou dois meses, Sacco retrata a situao dos palestinos sob a ocupao israelense do
ponto de vista dos seus personagens(civis). Para isso, ouviu inmeras fontes e coletou
histrias de vida em diferentes lugares: ruas, hospitais, escolas, casa de refugiados e
entrevistou vtimas de tortura, velhos e crianas. Em alguns momentos, chegou a presenciar
confrontos entre os soldados e a populao.
Na introduo de Palestina: uma nao ocupada(2004), o jornalista Jos Arbex
salienta que os quadrinhos de Sacco do visibilidade aos rabes invisveis ao mostrar um
grupo social que no tem voz na mdia e, quando aparece, tem sua imagem relacionada ao
fundamentalismo religioso. No entanto, conforme pontua Arbex, o quadrinista-reprter no
faz um panfleto palestino, mas sim mergulha nas histrias de vida narradas e extrai delas
o sentimento dos palestinos que vivem em meio aos conflitos.
Tendo em vista tais preocupaes, Joe Sacco tem por objetivo atrair, por meio das
histrias em quadrinhos, o interesse das pessoas para questes sociais:

muito difcil encontrar um amigo meu interessado em saber o que se


passa no Oriente Mdio ou na Bsnia. Mas se eles vem um livro de
histrias em quadrinhos, por alguma razo isso parece mais acessvel a
eles. Os quadrinhos tm muito apelo em razo das imagens. Assim, voc
conquista a ateno do leitor, capaz de contar a ele histrias difceis e
introduzir a informao.(SACCO apud STAROBINAS, 2001, p. E2)

Palestina e Jornalismo Literrio


No site Textovivo Edvaldo Pereira Lima define o Jornalismo Literrio como:

Modalidade de prtica da reportagem de profundidade e do ensaio


jornalstico utilizando recursos de observao e redao originrios da (ou
inspirados pela) literatura. Traos bsicos: imerso do reprter na
realidade, voz autoral, estilo, preciso de dados e informaes, uso de
smbolos (inclusive metforas), digresso e humanizao. Modalidade
conhecida tambm como Jornalismo Narrativo.(p.1)

Elaboradas pelo jornalista norte-americano Norman Sims, as sete caractersticas do


Jornalismo Literrio apresentadas acima aparecem com clareza na obra Palestina.

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No processo de imerso do reprter na realidade o jornalista deve conhecer seu
objeto de trabalho em profundidade. Para isso, necessrio dispor de tempo para pesquisa e
anlise do material coletado durante as entrevistas. Joe Sacco costuma afirmar em
entrevistas que estuda muito antes de viajar e ressalta que:

Tenho uma maneira diferente de trabalhar. Quando voc est pensando


em escrever reportagens, voc sempre pensa numa histria curta. No meu
caso, eu penso sobre a situao em geral, passo bastante tempo com as
mesmas pessoas. Elas passam a confiar em mim, ficamos amigos. E assim
fica mais fcil entender quem eles so. A minha sorte que no preciso
enviar matrias e ter um horrio de fechamento todos os dias. No tenho
aquela urgncia de ter de voltar para casa aps trs horas, antes que meu
jornal tenha de comear a rodar.(SACCO apud STAROBINAS, 2001, p.
E2)

A partir desse convvio com as fontes, Sacco costuma narrar a histria em primeira
pessoa e desenha a si prprio tomando parte nos dilogos. Ilustra no somente aquilo que
v, mas tambm aquilo que lhe contam. Esses traos marcam a voz autoral presente na
obra. De acordo com o autor:

Eu tiro muitas fotos e fao muitas entrevistas. Na Palestina, passei todo o


tempo visitando cidades, vilarejos e campos de refugiados. Basicamente
deixo as coisas aconteceram naturalmente. Ia a uma cidade, descia do txi
e, invariavelmente, algum aparecia e comeava a falar. Eu explicava que
queria ver a situao dos palestinos sob ocupao e eles me levavam para
os lugares. Foi fcil fazer contatos. (SACCO apud STAROBINAS, 2001,
p. E2)

Marcado pela mistura entre a estrutura do texto jornalstico, a linguagem das


histrias em quadrinhos e as experincias vividas, o estilo da reportagem de Sacco baseia-
se em acontecimentos presenciados pelo reprter. Nota-se sua preocupao com o
tratamento da realidade ao afirmar que:

Acho que impossvel ser completamente objetivo. Por um motivo: sou


estrangeiro, estou chegando com os olhos de um ocidental na Palestina ou
na Bsnia. E no quero fingir que eu no tenho uma opinio. Eu tenho
meus preconceitos e quero que as pessoas saibam quais so. o preo que
elas pagam para ver as coisas pelos meus olhos. tambm muito difcil
ser objetivo quando se parte da histria. No acredito em objetividade,
mas em ser justo.(SACCO apud ASSIS, 2002, p. E2)

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Ao fazer suas reportagens, Sacco demonstra no apenas uma preocupao
jornalstica, mas tambm virtuosismo quadrinstico. Na seqncia da pgina 102 113 de
Palestina(2004), quando mostra o encarceramento de um personagem na priso de Ghassar,
transmite tenso e opresso ao leitor por meio da disposio grfica dos quadrinhos.
Partindo de trs, o nmero de quadrinhos por pgina vai aumentando, tornando-se cada vez
menores, chegando a 20 na pgina 112. Quando o personagem libertado, na pgina 113,
um quadro que ocupa metade da folha ilustra a liberdade, o alvio, a amplido espacial
reconquistada. Na pgina 123, ao retratar garotos manifestantes atirando pedras em um
nibus, o jornalista utiliza uma disposio irregular de quadros, reproduzindo a correria e a
confuso vividas por quem estava presente no local. Na pgina 1, no Cairo, diversos
recordatrios 6, tambm dispostos de maneira irregular, retratam a diversidade e mistura de
sons e culturas.
Alm disso, a linguagem hbrida presente nas suas histrias em quadrinhos mistura
caractersticas de diferentes meios de comunicao como a TV, os meios impressos e o
cinema.
Muitas vezes, seus quadros remetem s imagens televisivas pelo modo como
enquadra os entrevistados e da maneira como os identifica 7. No entanto, a percepo dessas
imagens no feita instantaneamente como ocorre na TV. Os quadros permitem um
alargamento temporal em que realizada uma observao repetida e diferenciada dos
detalhes. Dessa maneira, possvel parar, voltar e, com isso, criar uma oportunidade de
rever e refletir sobre as situaes desenhadas.
Outras imagens remetem ao jornalismo impresso, seja por meio do planejamento
grfico da pgina, aluso direta diagramao presente nas revistas semanais, seja por
extratos de trechos de jornais presentes em alguns momentos. Nota-se tambm que alguns
captulos apresentam, aps o ttulo, uma linha-fina 8 . Outro fato que merece destaque a
utilizao de fotos. Em vrios momentos Sacco faz referncia a essa questo.

6
Caixas de texto utilizadas nos quadrinhos para a narrao em terceira pessoa ou reproduo dos
pensamentos de um personagem-narrador.
7
O autor usa um recurso de identificao utilizado no jornalismo televisivo para indicar o nome das
fontes(GC).
8
Jargo jornalstico utilizado para a frase logo abaixo do ttulo que tem por objetivo dar sentido ou completar
informaes.

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O dilogo com a linguagem cinematogrfica estabelecido por meio de elaboradas
construes no que diz respeito ao enquadramento e a utilizao do contraste em preto e
branco. Por meio da estrutura narrativa e de acordo com o contexto abordado no captulo,
Sacco transmite ao leitor a sensao de aprisionamento, liberdade, medo, tenso, euforia e
confuso.
Vrios fundamentos do jornalismo esto presentes em Palestina com destaque para
dois: veracidade e factualidade. Nesse aspecto, nota-se a preocupao de Sacco em relao
preciso de dados e informaes, pois, ao manter esse compromisso em representar um
fragmento do real, no inventa situaes e personagens, mas sim reproduz o vivido. O
prprio Sacco ressalta que: Em geral, costumo fazer reportagens. H muito tempo no
fao fico. (SACCO apud STAROBINAS, 2001)
Ao longo dos dois volumes, fornece informa es, nmeros e datas que demonstram
sua preocupao com os dados e permitem ao leitor uma contextualizao dos fatos
narrados. Situa o leitor, logo na introduo, ao afirmar que as informaes ali contidas
devem ser entendidas a partir do contexto em que sua viagem ao Oriente Mdio foi
realizada (final de 1991 e incio de 1992).Trabalha com dados histricos de maneira precisa
e, em alguns momentos, faz referncia obra do professor palestino Edward Said sobre a
Palestina.
Os dois volumes aqui analisados tratam da questo palestina e tm por objetivo dar
voz aos civis, assim, suas tradies culturais marcam toda a obra. possvel notar o uso de
smbolos que representam a cultura local como a culinria, as danas, a religio, entre
outros elementos. Alm disso, uma vez que o autor utiliza a linguagem dos quadrinhos para
contar a histria do conflito palestino, usa elementos grficos prprios do gnero, como os
bales. No entanto, dependendo da sensao que deseja transmitir ao leitor, esses podem
aparecer de diferentes maneiras na pgina: ora dispersos, ora confusos, ora ausentes.
A linguagem de Sacco(2004) est carregada de metalinguagem, por exemplo,
quando escreve que No s nos gibis da Marvel que h universos paralelos! (p.102) .
H, tambm, a presena de ironia em frases como Bem- vindo ao mundo de Marlboro
(p.16), ao retratar um oficial do exrcito adolescente em Jerusalm, England - grandes
produtos, grandes navios de guerra e grandes canetas-tinteiro (p.12) e O que eram os
problemas dos palestinos, comparados com Klinghoffer? (p.8).

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Uma outra caracterstica do Jornalismo Literrio presente na obra de Sacco a
digresso. De acordo com Falaschi(2005, p.68) pode-se entend- la como :

a busca de novas possibilidades de tratar um assunto, desviando, fugindo,


afastando-se do tema e personagens centrais, para criar novas
possibilidades de compreenso da realidade., tambm, a busca de
referenciais contextualizados que tornam mais claros determinados
acontecimentos e atitudes.

Nota-se a presena da digresso durante toda a obra do autor, uma vez que busca
compreender a realidade a partir do olhar dos palestinos. Em busca dos referenciais
contextualizados citados acima, Sacco explica a origem do conflito entre rabes e
israelenses, chegando, at me smo, a reproduzir trechos da Bblia e a desenhar Deus no
primeiro volume. Alm disso, afasta-se do tema central em alguns trechos como, por
exemplo, naqueles em que escreve suas lembranas do tempo em que era apaixonado por
Cludia, uma mulher meio iraquiana, estudou rabe em Damasco, onde deixou seu Romeu
palestino, que tem um irmo na OLP, ntimo de Yasser(...)(Sacco, 2004,p.7).
Uma outra caracterstica presente no trabalho de Sacco a humanizao. Na
narrativa possvel verificar sentimentos tantos do autor quanto dos entrevistados ao
descrever cuidadosamente, seja por meio de dilogos e depoimentos ou nas imagens
registradas e desenhadas.
O jornalista tambm humaniza a si prprio. Ao invs de retratar-se como um
reprter-heri, destemido, na pgina 118 de Palestina(2004), Sacco demonstra um grande
pavor em ir s ruas durante uma manifestao. O jornalista se distancia da realidade
retratada e possvel identificao com o leitor e se mostra como uma pessoa comum,
chocada com a realidade do terrorismo, por meio de declaraes como Fui criado no
subrbio - terror, s no cinema (2004,p.94).

Consideraes finais

Ao utilizar a esttica da histria em quadrinhos para escrever uma reportagem, Joe


Sacco consegue conciliar duas linguagens: a do jornalismo e a dos quadrinhos. Por meio da
anlise da obra Palestina de Sacco a partir das caractersticas do Jornalismo Literrio, foi
possvel demonstrar que esse dilogo no s existe, como feito de maneira substancial, de
maneira a utilizar as tcnicas jornalsticas coerentemente e no banalizar o valor esttico da

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linguagem dos quadrinhos. No prefcio do livro Palestina, uma nao ocupada(2004,
p.X),Jos Arbex afirma que:

A notcia se nunca foi um relato objetivo(...)hoje funciona apenas como


uma pea de legitimao de determinada ordem ou percepo de mundo.
Ela um ingrediente do grande show transmitido diariamente pelos
oligoplios da comunicao. Ao diluir as fronteiras entre os gneros, ao
tratar o mundo como show e o show como notcia, a mdia permitiu, em
contrapartida, que outras linguagens, como a dos quadrinhos,
reivindicasse para si o estatuto do jornalismo. E a se resolve o impasse
aparente.

Sendo assim, Sacco no apenas desenha o mundo a partir de suas experincias


vividas como tambm consegue produzir imagens que permitem ao leitor no s subverter
e questionar a percepo estabelecida pela grande mdia ao conhecer histrias e fatores
sociais raramente abordados por ela, como pontua Arbex, como tambm refletir a respeito
da situao narrada.

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