Olavo de Carvalho - A Nova Era e A Revolução Cultural PDF

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - ndice

3a edio,
revista e aumentada.

The blood-dimmed tide is loosed, and everywhere


The ceremony of innocence is drowned;
The best lack all conviction, while the worst
Are full of passionate intensity.
William Butler YEATS,
ndice The Second Coming.
Introduo geral Trilogia

Prefcio Segunda Edio e Nota prvia [da


1 Edio]
Captulo I: Lana Caprina, ou: A sabedoria
do Sr. Capra
Captulo II: Sto. Antonio Gramsci e a
salvao do Brasil
Captulo III: A Nova Era e a Revoluo
Cultural
Apndices:

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - ndice

I. As esquerdas e o crime organizado


II. O Brasil do PT
Observaes finais

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Introduo

3a edio,
revista e aumentada.

INTRODUO GERAL TRILOGIA


MANUAL DO USURIO
de O Imbecil Coletivo: Atualidades Inculturais
Brasileiras
e dos volumes que o antecederam: A Nova Era e a
Revoluo Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci e
O Jardim das Aflies: De Epicuro Ressurreio de
Csar Ensaio sobre o Materialismo e a Religio
Civil.
Texto lido no Lanamento de O Imbecil Coletivo.
Faculdade da Cidade, Rio de Janeiro, 22 de agosto de
1996.

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Introduo

O Imbecil Coletivo encerra a trilogia iniciada com A


Nova Era e a Revoluo Cultural ( 1994 ) e
prosseguida com O Jardim das Aflies ( 1995 ).
Cada um dos trs livros pode ser compreendido sem os
outros dois. O que no se pode , por um s deles,
captar o fundo do pensamento que orienta a trilogia
inteira.

A funo de O Imbecil Coletivo na coleo bastante


explcita e foi declarada no Prefcio: descrever,
mediante exemplos, a extenso e a gravidade de um
estado de coisas atual e brasileiro do qual A
Nova Era dera o alarma e cuja precisa localizao no
conjunto da evoluo das idias no mundo fora
diagnosticada em O Jardim das Aflies.
O sentido da srie , portanto, nitidamente, o de
situar a cultura brasileira de hoje no quadro maior
da histria das idias no Ocidente, num perodo que
vai de Epicuro at a "Nova Retrica" de Chaim
Perelman. Que eu saiba, ningum fez antes um esforo
de pensar o Brasil nessa escala. Meus nicos
antecessores parecem ter sido Darcy Ribeiro, Mrio
Vieira de Mello e Gilberto Freyre, o primeiro com a
tetralogia iniciada com O Processo Civilizatrio, o
segundo com Desenvolvimento e Cultura, o terceiro com
sua obra inteira. Separo-me deles, no entanto, por
diferenas essenciais: Ribeiro emprega uma escala
muito maior, que comea no Homem de Neanderthal, mas
ao mesmo tempo procura abranger esse imenso
territrio desde o prisma de uma determinada cincia
emprica, a Antropologia, e fundado numa base
filosfica decepcionantemente estreita, que o
marxismo nu e cru. Vieira de Mello, com muito mais
envergadura filosfica, no se aventura a remontar
alm do perodo da Revoluo Francesa, com algumas
incurses at o Renascimento e a Reforma. Quanto a
Gilberto, o ciclo que lhe interessa o que se inicia
com as grandes navegaes. De modo geral, os
estudiosos da identidade brasileira deram por
pressuposto que, tendo entrado na Histria no perodo
chamado "moderno", o Brasil no tinha por que tentar
enxergar-se num espelho temporal mais amplo. Estou,
portanto, sozinho na jogada, e posso alegar em meu
favor o temvel mrito da originalidade.
Temvel porque originalidade singularidade, e a
mente humana est mal equipada para perceber as
singularidades como tais: ou as expele logo do

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Introduo

crculo de ateno, para evitar o incmodo de


adaptar-se a uma forma desconhecida, ou as apreende
somente pelas analogias parciais e de superfcie que
permitem assimil-las erroneamente a alguma classe de
objetos conhecidos. Entre a rejeio silenciosa e o
engano loquaz, minha trilogia no tem muitas chances
de ser bem compreendida.
Mas a singularidade, nela, no est s no assunto.
Est tambm nos postulados filosficos que a
fundamentam e na forma literria que escolhi para
apresent-la, ou antes, que sem escolha me foi
imposta pela natureza do assunto e pelas
circunstncias do momento.
Quanto forma, o leitor h de reparar que difere nos
trs volumes. O primeiro compe-se de dois ensaios de
tamanho mdio, colocados entre duas introdues,
vrios apndices, um punhado de notas de rodap e uma
concluso. O todo d primeira vista a idia de
textos de origens diversas juntados pela coincidncia
fortuita de assunto. A um exame mais detalhado,
revela a unidade da idia subjacente, encarnada no
smbolo que fiz imprimir na capa: os monstros
bblicos Behemot e Leviat, na gravura de William
Blake, o primeiro imperando pesadamente sobre o
mundo, o macio poder de sua pana firmemente apoiado
sobre as quatro patas, o segundo agitando-se no fundo
das guas, derrotado e temvel no seu rancor
impotente. No usei a gravura de Blake por boniteza,
mas para indicar que atribuo a esses smbolos
exatamente o sentido que lhes atribuiu Blake. Detalhe
importante, porque essa interpretao no nenhuma
alegoria potica, mas, como assinalou Kathleen Raine
em Blake and Tradition, a aplicao rigorosa dos
princpios do simbolismo cristo. Na Bblia, Deus,
exibe Behemot a J, dizendo: "Eis Behemot, que criei
contigo" ( J, 40:10 ). Aproveitando a ambigidade do
original hebraico, Blake traduz o "contigo" por from
thee, "de ti", indicando a unidade de essncia entre
o homem e o monstro: Behemot a um tempo um poder
macrocsmico e uma fora latente na alma humana.
Quanto a Leviat, Deus pergunta: "Porventura poders
pux-lo com o anzol e atar sua lngua com uma corda?"
( J, 40:21 ), tornando evidente que a fora da
revolta est na lngua, ao passo que o poder de
Behemot, como se diz em 40:11, reside no ventre.
Maior clareza no poderia haver no contraste de um
poder psquico e de um poder material: Behemot o
peso macio da necessidade natural, Leviat a

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infranatureza diablica, invisvel sob as guas o


mundo psquico que agita com a lngua.

O sentido que Blake registra nessas figuras no uma


"interpretao", na acepo negativa que Susan Sontag
d a esta palavra: , como deve ser toda boa leitura
de texto sacro, a traduo direta de um simbolismo
universal. Para Blake, embora Behemot represente o
conjunto das foras obedientes a Deus, e Leviat o
esprito de negao e rebelio, ambos so igualmente
monstros, foras csmicas desproporcionalmente
superiores ao homem, que movem combate uma outra no
cenrio do mundo, mas tambm dentro da alma humana.
No entanto no ao homem, nem a Behemot, que cabe
subjugar o Leviat. S o prprio Deus pode faz-lo. A
iconografia crist mostra Jesus como o pescador que
puxa o Leviat para fora das guas, prendendo sua
lngua com um anzol. Quando, porm, o homem se furta
ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo,
ento se desencadeia a luta destrutiva entre a
natureza e as foras rebeldes antinaturais, ou
infranaturais. A luta transfere-se da esfera
espiritual e interior para o cenrio exterior da
Histria. assim que a gravura de Blake, inspirada
na narrativa bblica, nos sugere com a fora
sinttica de seu simbolismo uma interpretao
metafsica quanto origem das guerras, revolues e
catstrofes: elas refletem a demisso do homem ante o
chamamento da vida interior. Furtando-se ao combate
espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer
com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a
perigos de ordem material no cenrio sangrento da
Histria. Ao faz-lo, move-se da esfera da
Providncia e da Graa para o mbito da fatalidade e
do destino, onde o apelo ajuda divina j no pode
surtir efeito, pois a j no se enfrentam a verdade

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Introduo

e o erro, o certo e o errado, mas apenas as foras


cegas da necessidade implacvel e da rebelio
impotente. No plano da Histria mais recente, isto ,
no ciclo que comea mais ou menos na poca do
Iluminismo, essas duas foras assumem claramente o
sentido do rgido conservadorismo e da hbris
revolucionria. Ou, mais simples ainda, direita e
esquerda.
O drama inteiro a descrito pode-se resumir
iconograficamente no esquema em cruz que coloquei
depois em O Jardim das Aflies, mas que j est
subentendido em A Nova Era e a Revoluo Cultural,
pois constitui a estrutura mesma do enfoque analtico
pelo qual procuro a apreender a significao das
duas correntes de idias mencionadas no ttulo: o
holismo neocapitalista de Fritjof Capra e o
empreendimento gramsciano de devastao cultural.

Nesse primeiro volume, a forma adotada inicialmente


no podia ser mais clara e foi imposta pela natureza
mesma do assunto: uma introduo, um captulo para
Capra, outro para Gramsci, um retrospecto comparativo
e uma concluso inescapvel: as ideologias, quaisquer
que fossem, estavam sempre limitadas dimenso
horizontal do tempo e do espao, opunham o coletivo
ao coletivo, o nmero ao nmero; perdida a vertical
que unia a alma individual universalidade do
esprito divino, o singular ao Singular, perdia-se
junto com ela o sentido de escala, o senso das
propores e das prioridades, de modo que as
ideologias tendiam a ocupar totalitariamente o
cenrio inteiro da vida espiritual e a negar ao mesmo
tempo a totalidade metafsica e a unidade do
indivduo humano, reinterpretando e achatando tudo no
molde de uma cosmoviso unidimensional.
As notas e apndices, que aparentemente colocam

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Introduo

alguma desordem na forma do conjunto, servem a a


dois propsitos opostos e complementares: de um lado,
indicar as bases mais gerais que o argumento
conservava implcitas, mostrando ao leitor que a
anlise de Capra e Gramsci era apenas a ponta visvel
de uma investigao muito mais ampla que, quela
altura, s meus alunos conheciam atravs das aulas e
apostilas do Seminrio de Filosofia, mas que, nas
condies de uma vida anormalmente agitada, eu no
estava certo de poder redigir por completo algum dia;
de outro lado, indicar que minhas anlises no
pairavam do cu das meras teorias, mas que se
aplicavam compreenso de fatos polticos que se
desenrolavam na cena brasileira na hora mesma em que
eu ia escrevendo o livro da as arestas polmicas
que do a trechos desse ensaio uma aparncia de
jornalismo de combate. Se alguns leitores no viram
no livro mais que essa superfcie como outros no
vero em O Imbecil Coletivo seno a crtica de
ocasio a certos figures do dia e em O Jardim das
Aflies um ataque ao establishment uspiano , no
posso dizer que perderam nada, pois o restante e o
melhor do que se contm nesses livros no foi feito
realmente para esses leitores e bom mesmo que
permanea invisvel aos seus olhos.
Se no primeiro volume permiti que a idia central
fosse apenas esboada em fragmentos, um tanto
maneira minimalista, para que o leitor, antes
pressentindo-a do que percebendo-a, tivesse o
trabalho de ir busc-la no fundo de si mesmo em vez
de simplesmente peg-la na superfcie da pgina, no
segundo, O Jardim das Aflies, segui a estratgia
inversa: ser o mais explcito possvel e dar
exposio o mximo de unidade, obrigando o leitor a
seguir uma argumentao cerrada, sem saltos ou
interrupes, ao longo de quatrocentas pginas. Mas,
para no dar a iluso de que essa forma completa
abrangesse a totalidade do meu pensamento a respeito
do tema, espalhei ao longo do texto centenas de notas
de rodap que indicavam os pressupostos tericos
implcitos, as possibilidades de aprofundamentos por
realizar ( ou j realizados s oralmente em aula ), e
mil e uma sementes de desenvolvimentos possveis e
interessantes, que eu realizaria se tivesse uma vida
sem fim, mas que os leitores inteligentes bem podem
ir realizando por sua conta. A unidade de
argumentao de O Jardim das Aflies, que na minha
inteno, confirmada por alguns leitores, d a esse

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Introduo

livro no obstante pesadssimo e complexo a


legibilidade de um romance policial, mostra assim no
ser a unidade cerrada de um sistema, mas a unidade de
um holon, como diria Arthur Koestler: algo que, visto
de um lado, um todo em si, e, de outro lado,
parte de um todo mais vasto. Esta homologia de parte
e todo repete-se, por sua vez, na estrutura interna
do livro, onde o evento aparentemente insignificante
que lhe serve de ponto de partida j contm, na sua
escala microcsmica, ou microscpica, as linhas
gerais da interpretao global da histria do
Ocidente, que apresentada nos captulos restantes.
Aqueles leitores que se queixaram de que um livro to
substancioso comeasse pelo comentrio polmico de um
acontecimento menor, mostraram no compreender bem
uma das mensagens principais do livro, que a de
que, luz de uma metafsica da Histria, no h
propriamente acontecimentos menores o grande e o
pequeno esto coeridos na unidade orgnica de um
Sentido que tudo pervade. Aquilo que nada pesa na
ordem causal pode muito revelar na ordem da
significao.
E, na verdade, se houvesse acontecimentos
perfeitamente insignificantes, que nada merecessem
seno o desprezo e o silncio, o terceiro volume da
srie, O Imbecil Coletivo, no poderia sequer ter
sido escrito: pois o que nele apresento um
mostrurio comentado de banalidades culturais que
muito significam precisamente na medida em que no
valem nada. E, se decidi reuni-las num volume,
dando-lhes a dignidade de serem lembradas quando seus
autores j nada mais forem seno sombras no Hades,
que o sepulcro do irrelevante, foi precisamente
porque entendi que, partindo de cada uma delas, e
girando em crculos concntricos cada vez mais
amplos, se poderia chegar a vises de escala
universal semelhantes quela em que, partindo de uma
picuinha cultural ocorrida no Museu de Arte de So
Paulo em 1990, mostrei aos leitores de O Jardim das
Aflies o combate de Leviat e Behemot no horizonte
inteiro da histria Ocidental. E, no podendo refazer
tamanho esforo hermenutico a cada nova babaquice
cultural que lesse nos jornais, decidi reunir algumas
e oferec-las aos leitores como amostras para fins de
exerccio. O Imbecil Coletivo , portanto, o livro de
tarefas que acompanha o texto-base trazido em O
Jardim das Aflies, ficando A Nova Era como
abreviatura para principiantes. Quem leia assim O

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Introduo

Imbecil Coletivo, buscando ali as lies de casa para


reconstituir, desde trs dezenas de exemplos, os
lineamentos da viso da Histria e do mtodo
interpretativo exposto nos volumes anteriores, e
buscando sempre a unidade orgnica entre a parte e o
todo, entre a viso filosfica de uma cultura milenar
e as amostras da incultura momentnea de um pas
esquecido margem da Histria, esse ter conquistado
para si a melhor parte do que lhe dei. Pois assim
que se lem os livros dos filsofos, mesmo quando se
trate apenas de um filosofinho como este que lhes
fala.
Admito que, se em qualquer dos trs livros tivesse
adotado uma forma expositiva mais ao gosto acadmico,
eu no precisaria estar agora chamando a ateno para
uma unidade de pensamento que transpareceria
primeira vista. Mas essa visibilidade custaria a
perda de todas as referncias vida autntica e o
aprisionamento do meu discurso numa redoma
lingstica que no combina nem com o meu
temperamento nem com a regra que me impus alguns anos
atrs, de nunca falar impessoalmente nem em nome de
alguma entidade coletiva, mas sempre diretamente em
meu prprio nome apenas, sem qualquer retaguarda mais
respeitvel que a simples honorabilidade de um animal
racional, bem como de nunca me dirigir a
coletividades abstratas, mas sempre e unicamente a
indivduos de carne e osso, despidos das identidades
provisrias que o cargo, a posio social e a
filiao ideolgica superpem quela com que nasceram
e com a qual ho de comparecer, um dia, ante o Trono
do Altssimo. Estou profundamente persuadido de que
somente nesse nvel de discurso se pode filosofar
autenticamente.
Ademais, existe algum mrito pedaggico em no ser
bem arrumadinho, em poder dispor os dados no na
ordem mais costumeira em que os desejaria o
espectador preguioso, mas em desarrum-los
inteligentemente de modo a obrigar o leitor a tomar
parte ativa na investigao. E h um prazer imenso em
misturar os gneros literrios quando se autor de
um livreto que antes os distinguiu e catalogou com
requintes de rigidez formal1.
Estou imensamente satisfeito de ter podido concluir
esta trilogia e de poder estar aqui hoje, nesta
celebrao que para mim menos a do lanamento de um
livro que a da concluso de uma parte, de uma etapa
da tarefa que me cabe nesta vida. Tarefa que , em

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Introduo

essncia, a de romper o crculo de limitaes e


constrangimentos que o discurso ideolgico tem
imposto s inteligncias deste pas, a de vincular a
nossa cultura s correntes milenares e mais altas da
vida espiritual no mundo, a fazer em suma com que o
Brasil, em vez de se olhar somente no espelho
estreito da modernidade, imaginando que quatro
sculos so a histria inteira do mundo, consiga se
enxergar na escala do drama humano ante o universo e
a eternidade. Tarefa que , no seu mais elevado e
ambicioso intuito, a de remover os obstculos mentais
que hoje impedem que a cultura brasileira receba uma
inspirao mais forte do esprito divino e possa
florescer como um dom magnfico a toda a humanidade.

22/08/96
NOTAS
1. V. Os Gneros Literrios: Seus Fundamentos
Metafsicos ( Rio, Stella Caymmi / IAL, 1993 )
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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

3a edio,
revista e aumentada.

PREFCIO SEGUNDA EDIO

DECORRIDOS alguns meses da primeira edio,


rapidamente esgotada, os acontecimentos no fizeram
seno confirmar com igual rapidez os diagnsticos que
apresentei neste livro.
O Brasil vive, de um lado, uma crise profunda da
inteligncia, de que reflexo o deslumbramento
apalermado com que recebemos e enaltecemos, como
altas produes do esprito, as idias mais sonsas e
descabidas que nos chegam do estrangeiro. O sr. Capra
no foi o ltimo da srie. Depois dele recebemos a
visita e as luzes do sr. Richard Rorty, cuja
proposta, filosoficamente indecorosa e moralmente
repugnante, os pensadores locais no ousaram criticar
seno com precaues e desculpas que raiavam o
servilismo1.

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

Esse fenmeno , em parte, efeito passivo da crise da


inteligncia norte-americana, como explico num outro
livro que dever sair logo aps esta segunda edio2.
Mas, de outro lado, ele tambm o resultado de uma
poltica deliberadamente conduzida pelos movimentos
de esquerda, interessados em reduzir toda a vida
intelectual brasileira a um coro unanimista de
reclamaes. O rebaixamento das artes, da filosofia e
at de algumas cincias condio de megafones da
propaganda revolucionria, que os melhores pensadores
marxistas sempre rejeitaram como uma tentao
aviltante, tornou-se a praxe estabe lecida, que
ningum ousa contestar, menos pelo temor de um revide
explcito do que pela certeza absoluta de que seus
ouvintes j no podero compreend-lo, to longe
esto de imaginar que a cultura possa ter outros e
mais elevados fins. Pois o dogma da cultura militante
no se adotou como opo consciente, vencedora no
confronto com outras concepes possveis, mas se
infiltrou sorrateiramente, como um pressuposto
implcito, aproveitando-se da ignorncia das novas
geraes, que ao despertarem para o mundo da
"cultura" j a encontram identificada propaganda
ideolgica como se este fosse o seu estado natural e
seu destino eterno. O pior que essa propaganda j
no transmite sequer idias ou smbolos de uma
doutrina revolucionria, mas limita-se a repetir, de
maneira rasa, literal e direta, as reivindicaes do
dia: fora Collor, morte aos corruptos, viva o
Betinho, queremos sexo. Todos os anes do Congresso,
reunidos e somados, no fizeram tanto mal a este pas
quanto essa prostituio completa da inteligncia s
ambies polticas imediatas e s paixes mais
corriqueiras. O dinheiro perdido pode-se ganhar
novamente; o esprito, quando se vai, no volta mais.
Os templos abandonados a experincia universal
tornam-se para sempre covis de feiticeiros e
bandidos.
Pelo efeito conjugado da decadncia norte-americana e
da ao local tendente a amassar e fundir todos os
crebros deste pas na frma sem rosto do
"intelectual coletivo" gramsciano, o fato que a
inteligncia nacional est indo ladeira abaixo, ao
mesmo tempo que sobe, das ruas e dos campos, o rumor
sombrio de uma revoluo em marcha.
Sim, o Brasil est inequivocamente entrando numa
atmosfera de revoluo comunista. A imbecilizao no
seno um sintoma: o temporrio obscurecimento da

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

luz, mencionado pelo I Ching, no qual se geram, entre


as dobras da noite, os monstros que iro povoar as
vises de um despertar temvel.
Esses monstros j no so to pequenos para que um
olhar atento no consiga enxerg-los e espantar-se
com a velocidade com que vo crescendo no ventre da
inconscincia nacional.
O prprio unanimismo da intelectualidade um dos
sinais. Mas outro, aparentemente contraditrio, a
proliferao das reivindicaes gremiais, do esprito
de diviso, na hora em que o pas mais necessita do
sacrifcio das partes pelo bem do todo. Em cada
classe, em cada regio, em cada sindicato, em cada
empresa, em cada famlia, em cada alma, o que se nota
um sentimento agudo e exasperado dos prprios
direitos e o completo amortecimento do senso do
dever. o predomnio desastroso do reivindicar e
protestar sobre o criar e oferecer. Quanto menos
cumpre sua obrigao, mais cada um se cr no direito
de acusar o prximo. O governo reprime os aumentos
abusivos de preos enquanto protege as elevadas taxas
de juros e alimenta a gigantesca tnia petrolfera
que pela majorao peridica dos combustveis vai
marcando o compasso para a subida generalizada do
custo de vida. O pai de famlia vocifera contra a
corrupo dos polticos enquanto solicita a um
contador que "d uns retoques" na sua declarao de
rendimentos para tornar mais verossmil a mentira que
o isentar do imposto. As empresas censuram o governo
no instante mesmo em que elevam os preos de seus
produtos e servios acima de tudo quanto permite a
lei e recomenda a decncia. A esquerda clama contra
as oligarquias enquanto promove greves de
funcionrios pblicos voltadas diretamente contra os
direitos da populao. Os intelectuais e artistas
clamam contra as injustias enquanto levam vida de
prncipes s expensas do errio pblico. A imprensa
acusa, delata, aponta homens e instituies ao
oprbrio, enquanto discretamente, em congressos de
profissionais longe dos olhos da multido, confessa
sua prpria falta de decoro, tica e dignidade. Os
sem-terra exibem diante das cmeras sua pobreza
comovente enquanto gastam fortunas em operaes
paramilitares que o prprio exrcito no teria verba
para sustentar. O discurso do unanimismo , como o
coro entusistico das torcidas durante a Copa, no
seno um Ersatz, a ostentao de uma unidade postia
que encobre a luta covarde e sem regras de todos

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contra todos. O egosmo, a inconscincia, a maldade


ganham terreno a cada nova investida da "campanha
pela tica".

Quia bono? A quem aproveita o crime? Quem lucra com a


dilacerao da alma nacional num confronto vil de
todos os egoismos e de todas as inconscincias? As
pesquisas de opinio respondem que, de todos os
brasileiros, o nico que no tem medo de ser feliz j
ganhou quarenta por cento das intenes de voto para
a Presidncia.
Poderia ser uma coincidncia, o efeito acidental de
uma conjuntura. Mas, recuando em busca das suas
razes, vemos que esse efeito foi longamente desejado
e meticulosamente preparado pela mais hbil e
talentosa gerao de intelectuais ativistas j
nascida neste pas. A gerao que, derrotada pela
ditadura militar, abandonou os sonhos de chegar ao
poder pela luta armada e se dedicou, em silncio, a
uma reviso de sua estratgia, luz dos ensinamentos
de Antonio Gramsci. O que Gramsci lhe ensinou foi
abdicar do radicalismo ostensivo para ampliar a
margem de alianas; foi renunciar pureza dos
esquemas ideolgicos aparentes para ganhar eficincia
na arte de aliciar e comprometer; foi recuar do
combate poltico direto para a zona mais profunda da
sabotagem psicolgica. Com Gramsci ela aprendeu que
uma revoluo da mente deve preceder a revoluo
poltica; que mais importante solapar as bases
morais e culturais do adversrio do que ganhar votos;
que um colaborador inconsciente e sem compromisso, de
cujas aes o partido jamais possa ser
responsabilizado, vale mais que mil militantes
inscritos. Com Gramsci ela aprendeu uma estratgia
to vasta em sua abrangncia, to sutil em seus
meios, to complexa e quase contraditria em sua
pluralidade simultnea de canais de ao, que
praticamente impossvel o adversrio mesmo no acabar
colaborando com ela de algum modo, tecendo, como
profetizou Lnin, a corda com que ser enforcado.
A converso formal ou informal, consciente ou
inconsciente da intelectualidade de esquerda
estratgia de Antonio Gramsci o fato mais relevante
da Histria nacional dos ltimos trinta anos. nela,
bem como em outros fatores concordantes e
convergentes, que se deve buscar a origem das
mutaes psicolgicas de alcance incalculvel que
lanam o Brasil numa situao claramente
pr-revolucionria, que at o momento s dois

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

observadores, alm do autor deste livro, souberam


assinalar, e alis mui discretamente3.
A expectativa, a esperana, o anseio da revoluo so
to velhos, to arraigados na alma da intelligentzia
nacional4 que, mesmo diante do fracasso mundial do
socialismo, ela no ter foras para resistir
tentao de faz-la, agora que a conjuntura local,
pela primeira vez na nossa Histria, lhe oferece os
meios de chegar ao poder. O Brasil, de fato, tem um
descompasso crnico em relao ao tempo da Histria
universal. O reconhecimento mundial da debacle do
comunismo ecoou neste pas paradoxalmente, segundo
a lgica humana, mas coerentemente, segundo a linha
constante da Histria nacional como um toque de
esperana: chegou a nossa vez de conquistar aquilo
que j ningum mais quer.
Durante algum tempo, nutri a insensata esperana de
que o PT expeliria de si o veneno gramsciano e se
transformaria no grande partido socialista, ou
trabalhista, de que o Brasil precisa para compensar,
na defesa do interesse dos pequenos, o avano
neoliberal aparentemente irreversvel no mundo, e
propiciar, pelo sadio jogo de foras, o movimento
regular e harmnico da rotatividade do poder que a
pulsao normal do organismo democrtico. Movido por
essa iluso, votei em Lula para presidente. Hoje no
votaria nele nem para vereador em So Bernardo.
que, pela sucesso de acontecimentos desde a campanha
do impeachment, o PT mostrou sua vocao, para mim
surpreendente, de partido manipulador e golpista,
capaz de conduzir o pas s vias fraudulentas da
"revoluo passiva" gramsciana, usando para isso dos
meios mais covardes e ilcitos a espionagem
poltica, a chantagem psicolgica, a prostituio da
cultura, o boicote a medidas saneadoras, a agitao
histrica que apela aos sentimentos mais baixos da
populao , e de adornar esse pacote de sujidades
com um discurso moralista que recende a sacristia. O
partido que, para sabotar um candidato, promove no
lanamento da nova moeda algo como uma "greve
preventiva" sob a espantosa alegao de uma
possibilidade terica de danos salariais futuros,
sabendo que essa greve resultar em aumento do preo
dos combustveis e em retomada do ciclo
inflacionrio, dando facticiamente confirmao
retroativa aos danos anunciados, que, francamente,
decidiu imitar o capeta: produz o mal para no ventre
dele gerar o dio, e no ventre do dio o discurso de

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

acusao. A greve dos petroleiros no deu certo, mas


ela o mais puro exemplo do que o povo denomina
"apelao": o recurso extremo usado para fins
levianos.
Se o PT faz isso, porque perdeu sua confiana no
futuro majestoso a que o destinava a nossa democracia
em formao, e, excitado por indcios de um sucesso
momentneo que teme no repetir-se nunca mais,
resolveu apostar tudo no jogo voraz e suicida do it's
now or never. No quer mais apenas eleger o
presidente, governar bem, submeter seu desempenho ao
julgamento popular daqui a cinco anos, fazer Histria
no ritmo lento e natural dos moinhos dos deuses: quer
tomar o poder, fazer a Revoluo, desmantelar os
adversrios, expelir da poltica para sempre os que
poderiam derrot-lo em eleies futuras. Nos termos
da poesia de Murillo Mendes, preferiu, s "lentas
sandlias do bem, as velozes hlices do mal". A
mitologia gramsciana, diagnosticando pomposamente a
"transio para um novo bloco histrico", deu uma
legitimao verbal a essas pretenses, e eis que o
Brasil, mal tendo ingressado no caminho da
democracia, j se apressa a abandon-lo pelo atalho
da Revoluo. Aonde ele leva, algo que o mundo
sabe, mas que importa o conhecimento do mundo s
hordas de menores-de-idade que a lisonja esquerdista
consagrada em norma constitucional transformou na
parcela decisiva do eleitorado, dando-lhes poder
antes de lhes dar educao? O que importa
aproveitar o momento, levar a todo preo o Lulal,
carregado nos ombros de garotos raivosos, insolentes
e analfabetos, e, antes que o "consenso passivo" da
populao tenha tempo de avaliar o que se passa,
atrelar irreversivelmente o pas ao carro-bomba que
se precipita, morro abaixo, no rumo da Revoluo.
A gerao que atingiu a idade adulta no momento em
que a ditadura fechava as portas de acesso vida
poltica est agora com cinqenta anos. Ao longo dos
ltimos trinta ela esperou, sonhou, planejou,
desejou, cobiou entre lgrimas de rancor impotente,
e, sobretudo, leu muito Antonio Gramsci. Que a
Revoluo socialista j tenha mostrado ao mundo sua
verdadeira face, que ela j tenha provado cabalmente
que no vale a pena, isto pouco interessa. A gerao
dos guerrilheiros far o que longamente se preparou
para fazer. Pouco importa que, pelo relgio do mundo,
tenha passado a hora. O fim da festa , para o
catador de lixo, o sinal de que a sua festa est para

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

comear.
Por essas razes que este livro, aparentemente
constitudo de pedaos inconexos, comea a mostrar,
pela fora dos acontecimentos externos, a unidade
que, no plano literrio, o autor no teve o tempo ou
o engenho de lhe dar. Sob a aparncia comprometedora
de uma salada histrica que mistura Lnin, o I Ching,
Max Weber, Freud e o Comando Vermelho, ele aponta,
pela ordem e, segundo creio, com lgica, o sintoma e
a causa da doena da intelectualidade brasileira: a
origem ao menos parcial da nossa vulnerabilidade
falsa mensagem do sr. Capra est nas idias de
Antonio Gramsci, transformadas em prtica pela
gerao de intelectuais esquerdistas que, na Ilha
Grande, fez ofcio de parteira do Comando Vermelho, e
que agora d o tom da vida mental neste pas. Se, na
primeira edio, no consegui dar desse fenmeno uma
exposio seguida e coesa, tendo de adotar, em vez
disso, um enfoque prismtico e desnivelado, antes
sugerindo em fragmentos do que declarando por extenso
o sentido do conjunto, no foi por nenhuma inteno
profunda: foi por autntica incapacidade de fazer de
outro modo. Mas no creio, por isto, merecer censura:
afinal, aqui foi dito aos trancos e pedaos o que
ningum mais disse de maneira alguma. Do primeiro a
esboar a unidade de um quadro confuso, no se exige
que seja completo; e do primeiro a anunciar um perigo
terrvel, no se exige que fale claro e ordenado
segundo o bom estilo. Esbaforido e gaguejante,
semilouco e abstruso, ele afinal presta um servio de
emergncia. Como diz um provrbio rabe: "No repares
em quem sou, mas recebe o que te dou."5

Rio de Janeiro, junho de 1994.

NOTA PRVIA [ DA 1A EDIO ]

A "NOVA ERA" da qual Fritjof Capra se tornou


festejado porta-voz e a "Revoluo Cultural" de
Antonio Gramsci tm algo em comum: ambas pretendem
introduzir no esprito humano modificaes vastas,
profundas e irreversveis. Ambas convocam ruptura
com o passado, e propem humanidade um novo cu e

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

uma nova terra.


A primeira vem alcanando imensa repercusso nos
crculos cientficos e empresariais brasileiros. A
segunda, sem fazer tanto barulho, exerce h trs
dcadas uma influncia marcante no curso da vida
poltica e cultural neste pas.
Nenhuma das duas foi jamais submetida ao mais breve
exame crtico. Aceitas por mera simpatia primeira
vista, penetram, propagam-se, ganham poder sobre as
conscincias, tornam-se foras decisivas na conduo
da vida de milhes de pessoas que jamais ouviram
falar delas, mas que padecem os efeitos do seu
impacto cultural.
Para os adeptos e propagadores conscientes das duas
novas propostas, nada mais reconfortante do que a
passividade atnita com que o pblico letrado
brasileiro tudo recebe, tudo admite, tudo absorve e
copia, com aquele talento para a imitao maquinal
que compensa a falta de verdadeira inteligncia.
Mas a Revoluo Cultural de Gramsci e o movimento da
"Nova Era" no so simples modas, que se possam
adotar e abandonar vontade, com a despreocupao de
quem troca de cuecas. So propostas de imensa
envergadura, que, uma vez aceitas, mesmo
implicitamente, mesmo informalmente, mesmo
hipoteticamente, levam a conseqncias de alcance
incalculvel. Essas conseqncias no pouparo,
decerto, aqueles que tiverem aderido s suas causas
por mero passatempo, sem uma clara conscincia das
responsabilidades em jogo. No pouparo ningum que
esteja dentro do seu raio de ao. E todos estamos.
, portanto, uma leviandade suicida absorver idias
como essas sem um exame crtico preliminar. este
exame que inauguro no presente livreto, ciente de
que, ao faz-lo, me adianto a uma lerda opinio
pblica que nem de longe levantou ainda as questes
aqui discutidas, mas nem por isto o fao com menor
atraso em relao s exigncias de minha prpria
conscincia, que me cobra este trabalho desde que
pela primeira vez falei em pblico sobre estes
assuntos, em l987. Falador prolfico, sou tardo em
escrever, motivo pelo qual meu sentimento de urgncia
se transforma, s vezes, em sentimento de culpa. A
urgncia, no caso, era a de esclarecer a ligao
entre aquelas duas correntes de pensamento; ligao
que, uma vez percebida, revela a inconsistncia de
ambas, e de ambas nos liberta. Por no perceb-la, a

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

mente brasileira gira hoje em falso em torno do eixo


balizado por esses dois plos. Pelo nmero de adeptos
e pelos postos estratgicos que alguns destes ocupam
na sociedade, Capra e Gramsci dominam as duas
correntes mentais mais atuantes deste pas. O fato de
que jamais tenham sido confrontados e de que a idia
mesma de confront-los soe estranha mostra apenas que
o pas no tem clara conscincia das alternativas em
que se debate, e que a vida mental nele tende a
cindir-se em devoes estanques a deuses que se
desconhecem mutuamente e que mutuamente se hostilizam
nas trevas, como espadachins vendados. Trata-se
portanto, aqui, de esclarecer um conflito
subconsciente, em que o destino de um pas se decide
entre as sombras de um sonho. Brasil sonmbulo: para
que sustentas com dinheiro e lisonjas os teus
intelectuais, se no para te revelarem a ti mesmo,
para te dizerem o que se passa contigo para alm da
superfcie do noticirio?
Os trs captulos que compem este livro reproduzem,
tanto quanto possvel, o contedo de aulas e
conferncias que dei sobre os respectivos temas, seja
no Seminrio Permanente de Filosofia e Humanidades,
que dirijo no Instituto de Artes Liberais, seja fora
dele. O captulo sobre Fritjof Capra foi redigido e
distribudo aos meus alunos em setembro de l993,
quando se anunciava a prxima vinda ao Brasil do guru
da Nova Era, promovida pela Universidade Holstica de
Braslia. Os outros, seus naturais complementos como
se ver, foram escritos agora em fevereiro de l994,
especialmente para este livro. Os apndices ilustram
detalhes que importam compreenso do Cap. II.
Reconheo que, ao menos quanto a Gramsci, o exame que
apresento superficial, que haveria ainda milhares
de coisas a dizer que aqui no foram ditas.6 Mas
algum tem de comear, e, na falta de melhores
crebros que se dispusessem a digerir o assunto, a
coisa sobrou para mim. Quanto a Capra, ele est longe
de representar a "Nova Era" na sua totalidade; embora
alguns vejam nele uma sntese desse movimento, ele
constitui apenas um seu sintoma, ainda que agudo e
sonante. Que ningum me censure, portanto, a
incompletude destas anlises: minhas amostras levam o
rtulo de amostras, com altiva modstia. Tambm no
tem, este trabalho, a menor pretenso de interferir
no curso das coisas. Seu nico anseio fornecer, aos
que tenham um sincero desejo de compreender os
acontecimentos, alguns meios de faz-lo. Ora, os que

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

tm esse desejo so sempre poucos, no meio do


vozerio, entusistico ou ameaador, dos que crem j
saber tudo e que no aguardam seno com impacincia
que o mundo se curve s suas propostas. queles
poucos e silenciosos, portanto, dedicado este
trabalho. Dentre eles, destaco o romancista Herberto
Sales, que leu em verso datilogrfica o primeiro
captulo e lhe fez referncias generosas, que
agradeo comovido. Tanto mais comovido porque, se eu
tivesse de escolher um guru estilstico, ele no
seria outro, na presente fase da nossa literatura,
seno Herberto Sales. Destaco ainda o valente grupo
de alunos e ouvintes que h anos acompanha meu
trabalho com um interesse que me reconforta.
Rio, fevereiro de l994
Olavo de Carvalho

NOTAS
1. V. Jos Arthur Gianotti, "Conversa com Richard
Rorty", Jornal do Brasil, 26 de maio de 1994.
no mnimo estranho que um homem como Gianotti,
to valente ao expor idias polticas mesmo
quando lhe atraiam a ira dos sumos-sacerdotes da
esquerda nacional, se cubra de cautelas ao
criticar um pensamento to vulnervel como o de
Rorty. Explica-se, talvez, pela crnica timidez
uspiana, inibio intelectual que se tornou, em
verso fetichizada, a caricatura tupiniquim do
"rigor" ensinado pelos primeiros mestres
franceses fundadores da USP. O "rigor" uspiano
na verdade moleza, tremor da gelia
terceiromundana ante a autoridade dos dolos da
moda compensao junguiana pela petulncia ante
o legado espiritual do passado. Mesmo em sua
verso original europia, herdeira de nobres
tradies filosficas, um rigorismo acadmico
inibitrio torna-se muitas vezes o refgio
comunitrio onde o intelecto mal dotado vai
abrigar-se contra os perigos da investigao
solitria vale dizer, contra o exerccio mesmo
da filosofia. O verdadeiro rigor filosfico, ao
contrrio, pura coragem interior, no se curva
seno ante a evidncia e no tem nada de temor
reverencial adolescente ( ou colonial ) ante os
prestgios acadmicos do dia. Com a ascenso da
intelectualidade paulista ao primeiro plano da
vida nacional, a inverso uspiana do rigor, que

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

devota ao prestgio o culto que nega verdade,


ameaa contaminar o pensamento brasileiro como um
todo, selando a morte da inteligncia nesta parte
do mundo. Nada vai aqui contra Gianotti, homem
capaz e correto, que s peca por admirar quem no
merece ou por fingir admirar, talvez, j que o
floreio bajulatrio involuntariamente irnico
outra marca registrada do estilo uspiano, onde
faz as vezes de polidez acadmica. Voltar
2. O Imbecil Coletivo. Atualidades Inculturais
Brasileiras, Rio, IAL & Stella Caymmi Editora,
1994, que forma, com o presente volume e com O
Jardim das Iluses. Epicuro e a Revoluo
Gnstica, que tambm vir a pblico em breve, uma
trilogia dedicada ao estudo da patologia cultural
brasileira na presente fase da nossa Histria.
Voltar
3. Um deles foi Fernando Henrique Cardoso ( Jornal
do Brasil, 11 nov. 93 ), um homem que conhece as
esquerdas muito bem e que, por isto mesmo, sentiu
o dever de se opor a elas no momento em que mais
poderia ajud-las. O outro foi Oliveiros da Silva
Ferreira, que vem explorando o assunto em vrios
artigos publicados em O Estado de S. Paulo.
Voltar
4. O mito da Revoluo Brasileira um componente
ativo do pathos esquerdista desde a dcada de 30.
"Fadado a um grande destino, o Brasil seria a
terceira grande revoluo neste sculo. A
primeira, a Unio Sovitica, segunda a Repblica
Popular da China, e a terceira, a Repblica
Democrtica Popular do Brasil" ( Lus Mir, A
Revoluo Impossvel, So Paulo, Best Seller,
1994, p. 10 ). Voltar
5. Nada retirei nem alterei do original nesta
Segunda Edio, apenas corrigi erros de grafia,
acrescentei este Prefcio, uns quantos adendos, e
adendos de adendos, e muitas notas de rodap. O
leitor austero achar que so excrescncias
complicatrias, mas gosto delas justamente por
isso, porque eliminam do texto a enganosa
linearidade e lhe do aquele aspecto vivente de
rede nervosa, de trama vegetal, que faz com que,
precisamente, um texto seja um texto. Voltar
6. Limito-me ao estudo da estratgia e, mais
brevemente, de alguns aspectos da gnoseologia,

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Prefcio segunda edio

sem tocar por exemplo na sociologia gramsciana,


que mereceria no por seu valor cientfico, mas
pela fora persuasiva da sua alucinante
falsificao da realidade um exame mais atento.
Prometo faz-lo no livro O Antroplogo
Antropfago. A Misria das Cincias Sociais, a
sair no ano que vem. Tambm no pude seno
mencionar de longe as concepes estticas e
literrias de Gramsci, to influentes at hoje,
mas sobre as quais no pretendo escrever nada
nunca, se os deuses me pouparem esse castigo. [
Nota da 2a. ed. ] Voltar
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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

3a edio,
revista e aumentada.

I
LANA
CAPRINA,
OU: A SABEDORIA DO SR. CAPRA

NO COMEO de novembro7 estar chegando ao Brasil o


sr. Fritjof Capra, chamado pela Universidade
Holstica de Braslia para falar sobre a Nova Era que
ele anuncia no seu livro O Ponto de Mutao.
A voz do sr. Capra no clamar no deserto. A
Universidade Holstica j reuniu uma congregao de
intelectuais locais para dizer-lhe amm. Entre os
aclitos contam-se Frei Betto e o ex-reitor da UnB,
Christovam Buarque. O sr. Capra, j se v, no um
escritor como os outros: um lder, uma autoridade
espiritual e, admitamos logo, um profeta.

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

O contedo de suas profecias bastante conhecido: O


Ponto de Mutao anda at nas mos das crianas, que
o debatem nas escolas. Mas, segundo a Universidade
Holstica, isso no basta. O sr. Capra tem de ser
ouvido por todos os amigos da espcie humana. Pois,
embora homnimo de um cineasta que se celebrizou
pelas fitas de happy end, ele no garante nenhum
final feliz para o nosso sculo a no ser que a
humanidade siga os seus conselhos. Passemos portanto
a examin-los, com a urgncia requerida pelo caso.
Segundo o sr. Capra, a histria do mundo chegou a um
turning point, e deve mudar o seu curso. As trs
principais mudanas em pauta so as seguintes:
primeira, a humanidade deixar de consumir
combustveis fsseis ( petrleo ); segunda, o
patriarcado vai acabar; terceira, o paradigma
cientfico vigente ser substitudo por um outro, de
base holstica. Estas trs coisas j esto
acontecendo, mas, assegura o sr. Capra, urge apressar
a sua consumao, que marcar o advento da Nova Era.
Ao falar do primeiro item, o sr. Capra muito breve,
como convm aos profetas. Em vez das longas anlises
que concede aos dois outros temas, ele emite apenas
esta profecia: "Esta dcada ser marcada pela
transio da era do combustvel fssil para uma nova
era solar, acionada por energia renovvel oriunda do
Sol." Tendo o livro sido publicado em 1981, a dcada
a que o sr. Capra se refere terminou em 1990. Bem,
nem todos os profetas do sorte. Mas, se a mencionada
profecia vier a cumprir-se com quatro, cinco ou nove
dcadas de atraso, o sr. Capra sempre poder alegar
que S. Joo Evangelista tambm no foi muito preciso
quanto data do Apocalipse.
Como muitos outros profetas, o sr. Capra pode
queixar-se de ser um incompreendido. Eu, por exemplo,
no compreendo como que o mundo poderia ter saltado
direto da era dos combustveis fsseis para a da
energia solar, sem passar pela era atmica, na qual
j estvamos na data de emisso da profecia e na qual
continuamos a estar aps a data do seu vencimento.
Mas talvez a intuio proftica do sr. Capra opere
velocidade da luz, saltando etapas. Eis a alis um
bom motivo para saltarmos logo para o item seguinte,
j que o primeiro captulo da mutao no teve um
happy end.
O patriarcado consiste, segundo o sr. Capra, num

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

complexo de trs elementos: primeiro, o domnio do


homem sobre a mulher; segundo, o domnio da espcie
humana sobre a natureza; terceiro, o predomnio da
razo ( faculdade masculina ) sobre a intuio
( feminina ). So trs lados de um fenmeno nico,
que o sr. Capra resume como a supremacia do yang
sobre o yin.
, como se v, um tipo especial de patriarcado, bem
diferente daquele que podemos encontrar nos livros de
histria e sociologia. Pois estes nos dizem que o
aumento do poderio tcnico sobre a natureza abalou o
regime de propriedade rural no qual se esteava o
patriarcado; e que o advento do Imprio da Razo,
trazido no bojo da Revoluo Francesa, promoveu logo
em seguida a igualdade de direitos para homens e
mulheres, desferindo o golpe de misericrdia na
autoridade do pater familias. Em suma, que das trs
coisas que o sr. Capra rene sob o rtulo comum de
"patriarcado", duas so precisamente o contrrio. Mas
os profetas no ligam para as cincias profanas. Non
enim cogitationes meae cogitationes vestrae, j nos
tinha advertido a Bblia. O sr. Capra, com efeito,
no pensa como ns.
Mas h algo nele que pelo menos alguns de ns podem
compreender perfeitamente bem. Sendo a lgica, no seu
entender, uma expresso do abominvel patriarcado
cujo fim ele deseja, ele no poderia mesmo obedec-la
sem tornar-se, ipso facto, ilgico. ento por uma
simples questo de lgica que ele opta por ser
ilgico. Qualquer beb de colo pode compreender isto.
O difcil compreend-lo quando j no se um beb
de colo. Para ser admitido nos cus da Nova Era, o
leitor deve portanto tornar-se como os pequeninos.
Eis aqui um caso tpico. Para livrar-se do odioso
patriarcado, diz o nosso profeta, a humanidade
deveria inspirar-se no exemplo da civilizao
chinesa, cuja concepo da natureza humana, expressa
sobretudo no I Ching, "est em flagrante contraste
com a da nossa cultura patriarcal". Buscando agora
munio antipatriarcal nas pginas do I Ching, o
leitor encontrar, no hexagrama 37, as seguintes
recomendaes: "A esposa deve ser sempre guiada pela
vontade do senhor da casa, isto , pelo pai, pelo
marido ou pelo filho adulto. O lugar dela dentro de
casa." A vida que Betty Friedan pediu a Deus. Alis,
segundo informa Marcel Granet no clssico La

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

Civilisation Chinoise8, o feudalismo chins, perodo


no qual se redigiu o grosso dos comentrios do I
Ching, "repousa sobre o reconhecimento do predomnio
masculino". A China a que o sr. Capra se refere no
deve portanto ser a mesma que os gegrafos profanos
conhecem por esse nome.
O que o sr. Capra no pode mesmo ser acusado de
facciosismo sinfilo. Pois, se ele rejeita a lgica
ocidental, nem por isto se curva s exigncias da
oriental. Segundo ele, o yang representa a razo
analtica, que divide, e o yin a intuio, que
unifica. Os chineses, nada entendendo destas
sutilezas, representaram o divisivo yang por um trao
contnuo, e o unificante yin por um trao dividido ao
meio. Na Nova Era, as edies do I Ching viro
devidamente retificadas.

Enquanto essas edies no aparecem, o sr. Capra j


vai tratando, por conta, de introduzir no pensamento
chins umas modificaes mais srias. Ele diz, por
exemplo, que na civilizao chinesa o homem no
procura dominar a natureza, mas integrar-se nela.
Novamente, a sabedoria chinesa do sr. Capra pegou a
China desprevenida: um chins nem mesmo entenderia
essa frase, pela razo de que na sua lngua no h
uma palavra que signifique "natureza" no sentido
ocidental, isto , ao mesmo tempo o mundo visvel e a
ordem invisvel que o governa ( ambiguidade que as
lnguas modernas herdaram do grego physis ). O chins
nisto, com o perdo da palavra, mais "analtico":
tem um termo para designar o mundo visvel ( khien ),
e um outro ( khouen ) para a ordem invisvel. Para
compensar, o mundo visvel ou khien abrange,
"sinteticamente", tanto a natureza terrestre quanto a
sociedade humana. O sr. Capra no diz a qual das duas
"naturezas" o homem deveria integrar-se, mas claro
que ningum poderia integrar-se em ambas
simultaneamente e de um mesmo modo. Os antigos
chineses j haviam advertido isto, e resolveram a
contradio propondo uma dualidade de atitudes para
fazer face a esse duplo aspecto da natureza: o sbio,
diz o I Ching, deve buscar ativamente integrar-se na
ordem invisvel ou khouen ( chamada por isto
"perfeio ativa" ) e contornar suavemente as

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

exigncias da natureza terrestre ( khien ou


"perfeio passiva" ). Dito de outro modo:
integrar-se na ordem celeste, integrando em si e
superando dialeticamente a ordem terrestre ( e
portanto absorvendo-a, por sua vez, na ordem
celeste ). O "celeste" e o "terrestre", nesse
sentido, identificam-se respectivamente ao dharma e
ao kharma da tradio hindu. O homem no se "integra"
no kharma, porm "absorve-o" na medida em que se
integra no dharma: livra-se do peso da terra na
medida em que atende ao apelo celeste. Exatamente no
mesmo sentido diz o cristianismo que o homem vence a
necessidade natural na medida em que segue as vias da
Providncia. No bem o que diz o sr. Capra.

O ideograma Wang ( "o Imperador" ) esclarece isso


melhor. Ele constitui, por si, um compndio de
cosmologia chinesa. Compe-se de trs traos
horizontais o Cu em cima, a Terra em baixo, o
Homem no meio, formando a trade Tien-Ti-Jen,
"Cu-Terra-Homem" cortados por um trao vertical, o
Tao, que se traduz um tanto convencionalmente por Lei
ou Harmonia. A Harmonia consiste em que cada coisa
fique no lugar que lhe cabe, de modo que, por trs de
todas as mudanas por que passa o mundo, a ordem
suprema no seja violada ( embora neste mundo de
aparncias ela o seja necessariamente, pois, como
dizia o Evangelho, " necessrio que haja escndalo";
mas no fim todas as desordens parciais so
reintegradas na ordem total ).
Na Trade chinesa, o homem chamado "filho do Cu e
da Terra". Sendo o Cu o pai, j se v, pelo
hexagrama 37, quem que manda. O homem governa
portanto o mundo visvel, mas no o faz por arbtrio
prprio, e sim em nome de uma ordem transcendente.
Tien no significa o "cu" no sentido material, mas a
"perfeio celeste" ou mais propriamente a "vontade
do Cu"; em ingls, que o sr. Capra compreende
melhor, no o sky, mas o heaven, morada do Esprito
Santo. O sbio ou imperador apreende no invisvel a
vontade do Cu e a pe em execuo na Terra. Na sala
central do seu palcio, ele cumpre diariamente ritos
de um complexo simbolismo geomtrico e numerolgico
( similar ao do pitagorismo ), mediante os quais os
arqutipos celestes "descem" ( exatamente como na
missa "desce" o Esprito Santo ) para trazer Terra
a ordem e a harmonia. Se o imperador pra de fazer os
ritos, a Terra sociedade e natureza ao mesmo tempo

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

entra em convulso, espalham-se por toda parte a


ignorncia, o medo, a violncia, a fome, a peste.
No era s a interrupo dos ritos que podia trazer a
catstrofe. "O imperador escreve Max Weber em A
Religio da China tinha de se conduzir segundo os
imperativos ticos das escrituras clssicas. O
monarca chins permanecia basicamente um pontfice.
Ele tinha de provar que era mesmo 'filho do Cu', o
regente aprovado pelos Cus, para que o povo, sob o
seu governo, vivesse bem. Se os rios arrebentavam os
diques ou a chuva no caa apesar de todos os ritos,
isto era prova acreditava-se expressamente de que
o imperador no tinha as qualidades carismticas
requeridas pelo Cu."
O homem governa a Terra, mas em nome do Cu. Governa
como pontifex, "construtor de pontes", que liga a
Terra ao Cu atravs do Reto Caminho, o Tao. Caso se
afaste do Reto Caminho, ele perde de vista a Vontade
do Cu e j no pode governar seno em nome prprio,
como tirano e usurpador. A, num choque de retorno,
ele perde seu poder e cai sob o domnio das potncias
terrestres que antes comandava. Como a Terra designa
ao mesmo tempo a natureza fsica e a sociedade
humana, o choque pode significar tanto uma revoluo
civil ou golpe militar, quanto uma tempestade ou
terremoto. O monarca que cai representa, por
analogia, qualquer homem que, rompendo com a ordem
celeste, perca de vista o seu destino ideal e caia
presa das paixes abissais. a situao descrita no
hexagrama 36, O Obscurecimento da Luz: "Primeiro ele
subiu ao Cu, depois mergulhou nas profundezas da
Terra." O comentrio tradicional, resumido por
Richard Wilhelm, o seguinte: "O poder da treva
subiu a um posto to alto que pode trazer dano a
quantos estejam do lado do bem e da luz. Mas no fim o
poder das trevas perece por sua prpria obscuridade."
J se v que o conselho do sr. Capra, afetado pela
ambiguidade da palavra "natureza", pode ter dois
significados opostos: com "integrar-se", pretende ele
que obedeamos Vontade do Cu ou que mergulhemos
nas profundezas da Terra? As falas dos profetas,
quando obscuras, merecem interpretao.
Interpretemos.
Na verso do sr. Capra, o Cu no mencionado. A
trade fica reduzida a uma dualidade: de um lado o
homem, de outro a natureza visvel. O macho e a

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

fmea. O yang e o yin. A cada um s resta a


alternativa de subjugar o outro ou "integrar-se"
nele. O homem da civilizao industrial optou pela
primeira hiptese. O sr. Capra advoga a segunda.
verdade o que diz o sr. Capra, que a civilizao
ocidental optou por dominar a natureza. Mas verdade
tambm que, desde o Renascimento ao menos, ela apagou
( exatamente como o sr. Capra ) toda referncia a uma
ordem transcendente ( Tien ) e deixou o homem
sozinho, face a face com a natureza material. Desde
ento a histria das idias ocidentais tem sido
marcada por uma oscilao pendular entre as
ideologias da dominao e as ideologias da submisso:
classicismo e romantismo, revoluo e reao,
historicismo e naturalismo, cientificismo e
misticismo, ativismo prometico e evasionismo
quietista, marxismo e existencialismo e, last not
least, revoluo cultural socialista versus ideologia
da "Nova Era".
neste ltimo par de opostos que reside a chave para
a compreenso do nosso profeta. O sr. Capra acerta na
mosca ( nenhum profeta pode realizar o prodgio de
errar sempre ) ao dizer que sua viso da histria
cultural uma alternativa ao marxismo. Para Marx e
seus epgonos, a natureza nada mais que o cenrio
da histria humana. Est a no como um ser, uma
substncia ontolgica que o homem deva contemplar e
respeitar em sua constituio objetiva, mas como
matria-prima a ser apropriada e transformada
livremente segundo o arbtrio humano. A natureza, em
Marx, ancilla industriae. O marxismo prossegue a
tradio de prometeanismo revolucionrio do
Renascimento, potencializando-a mediante a submisso
completa e explcita da natureza histria. A isto
que se ope a ideologia da Nova Era.
Mas ela no se ope somente ao marxismo em geral, e
sim a uma forma especfica de marxismo, que tambm,
como ela, quis operar uma "mutao", um giro de cento
e oitenta graus na orientao do pensamento humano. O
fundador desta corrente marxista foi o idelogo
italiano Antonio Gramsci ( 1891-1937 ). O gramscismo
prope uma revoluo cultural que subverta todos os
critrios admitidos do conhecimento, instaurando em
seu lugar um "historicismo absoluto", no qual a
funo da inteligncia e da cultura j no seja
captar a verdade objetiva, mas apenas "expressar" a
crena coletiva, colocada assim fora e acima da

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

distino entre verdadeiro e falso. a total


submisso do "objeto" ( natureza ) ao "sujeito"
( humanidade histrica ). Neste novo paradigma, a
nfase da atividade cientfica j no cai no
conhecimento objetivo da natureza ( descrio exata
da sua aparncia visvel e investigao dos
princpios invisveis que a governam ), mas sim na
sua transformao pela tcnica e pela indstria, a
isto correspondendo, na esfera das idias, uma
espcie de "revoluo permanente" de todas as
categorias de pensamento a suceder-se numa acelerao
vertiginosa do devir histrico.
Contra isto levantou-se a ideologia da Nova Era. Ao
prometeanismo revolucionrio, ela ope a "integrao
na natureza"; acelerao da histria, o equilbrio
"ecolgico" da Nova Ordem Mundial; e, ao historicismo
absoluto, o "fim da Histria". Capra inconcebvel
sem Fukuyama. Capra a casca da qual Fukuyama o
miolo. Todo o vistoso "esoterismo" da Nova Era, com
suas iniciaes secretas, seus gurus, seus magos e
seus ritos, no constitui seno o exoterismo, o
aparato religioso externo e social, cujo interior,
cujo "sentido esotrico" na verdade uma cincia bem
moderna, racional e profana: o planejamento
estratgico. Fukuyama est para Capra exatamente como
o esoterismo est para o exoterismo, como a Igreja de
Joo est para a Igreja de Pedro. Mas ambas, cada
qual no seu plano e pelos meios que lhe so prprios,
combatem um mesmo adversrio.
O gramscismo fez muito sucesso nos anos 60,
inspirando a febre passageira do eurocomunismo e
revigorando algumas esperanas comunistas. No Brasil,
conquistou praticamente a esquerda inteira, e o PT
um partido essencialmente gramsciano, admita-o ou no
explicitamente. Mas o intento de renovao foi fraco
e tardio: o comunismo acabou sendo derrotado pela
ascenso mundial da ideologia da Nova Era. Afinal, a
mistura de fsica quntica e simbolismos orientais,
experincias psquicas e sexo livre, promessas de paz
e miragens de auto-realizao, que essa ideologia
oferece, infinitamente mais sedutora do que
qualquer "historicismo absoluto". O Brasil, sempre
atrasado, um dos poucos lugares do mundo onde o
combate ainda prossegue, com um feroz ncleo de
remanescentes gramscianos oferecendo uma quixotesca
resistncia local aos exrcitos triunfantes da Nova
Era.
Mas, se o prometeanismo revolucionrio representou o

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mximo da hybris, da avidez dominadora do homem sobre


a natureza, a ideologia da Nova Era no outra coisa
seno o choque de retorno anunciado pelo I Ching.
A Nova Era venceu a revoluo gramsciana. Mas foi uma
teratomaquia: um combate de monstros. Diriam os
chineses que foi um combate suicida: que, sem a
obedincia comum a Tien, a luta entre Ti e Jen s
pode terminar pelo "Obscurecimento da Luz". A vitria
da Nova Era prenuncia, portanto, o prximo passo do
ciclo das mutaes: a humanidade vai cair da
autoglorificao prometica na passividade inerme;
vai integrar-se, "ecologicamente", no equilbrio da
Nova Ordem Mundial, onde o conformismo coletivo ser
assegurado mediante a justa repartio dos meios de
satisfazer as paixes mais baixas e mediante um
arremedo de religiosidade externa que dar a essas
paixes uma aura lisonjeira de "profundidade" e
"autoconhecimento".
Pode-se interpretar isso psicanaliticamente. Grard
Mendel, no seu livro La Rvolte contre le Pre, uma
das mais importantes contribuies das ltimas
dcadas psicanlise freudiana, diz que, ao longo da
histria, o impulso do homem para superar o pai tem
sido, como pretendia Freud, um dos mais potentes
motores do progresso. Mas este impulso, prossegue
ele, pode tomar duas direes: ou o homem supera e
vence o pai carnal integrando-se na ordem racional
representada pelo pai ideal, ou manda logo s urtigas
a ordem ideal para, livre de toda trava moral, matar
o pai carnal e tomar posse da me. Esta ltima
alternativa a revolta prometica, a que se segue,
num choque de retorno, a queda no irracional, a
regresso uterina, a "integrao" do homem nas
trevas. Da, segundo Mendel, a importncia
antropolgica, e tambm psicoteraputica, das
palavras da mais clebre orao crist: a "revolta
contra o pai" s saudvel e frutfera quando
empreendida "em nome do Pai". Trocando em midos
chineses: o pai carnal , para o homem adulto
( Jen ), nada mais que um aspecto de Ti, a Terra.
preciso submet-lo ordem celeste, Tien ou pai
ideal, para a ento poder assumir, sem usurpao nem
violncia, o governo justo e harmnico da Terra.
Sempre achei que o dr. Freud tinha algo de chins.
Nos termos de Mendel, a revoluo gramsciana a
revolta destrutiva contra o pai, e a ideologia da
Nova Era, com seus apelos fuso das conscincias

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

individuais numa sopa de miragens holsticas, a


regresso uterina que se lhe segue. Todas as
regresses uterinas anunciam-se pela exacerbao da
fantasia, pelo chamamento hipntico das esperanas
insensatas, pela anteviso medinica de delcias sem
fim. Todas terminam na escravido abjeta, na
passividade inerme ante a agresso das foras
abissais, no obscurecimento da luz.
inevitvel que haja escndalo. A Nova Era venceu o
prometeanismo gramsciano, e sai de baixo: l vem o
hexagrama 36. There's coming a shitstorm e Fritjof
Capra o seu profeta. Mas, no fim, que por certo no
se anuncia breve, o poder das trevas sucumbir por
fora da sua prpria obscuridade.

Findo o perodo das trevas, assegura o Apocalipse, a


loucura dos novos profetas que arrastaram a
humanidade ao erro ser exibida plena luz do dia, e
todos a vero.
Como a Nova Era ainda mal comeou, no est na hora
de fazer o show completo. Por enquanto, tudo o que se
pode fazer dar umas amostras preliminares, que
atestem, para as geraes vindouras, a realidade de
um passado que lhes parecer inverossmil. Como disse
o sbio Richard Hooker ante o avano do besteirol
puritano no sc. XVI, quando tudo isto tiver passado
"a posteridade poder saber que no deixamos, pelo
silncio negligente, as coisas se passarem como num
sonho".
De amostras est cheio o livro do sr. Capra. Porm
manda a justia que as selecionemos segundo a
gradao de importncia que lhes d o prprio autor.
Devemos portanto agora examinar o terceiro "ponto de
mutao": a revoluo do paradigma cientfico.
Neste terreno o sr. Capra no parece estar em
desvantagem como no mundo chins, que s conheceu por
fontes de terceira mo. Doutor em fsica pela
Universidade de Viena, ele no pode ignorar a
histria da cincia ocidental como ignora a
civilizao chinesa. Mas quem disse que no pode? Aos
profetas tudo possvel.
Segundo o sr. Capra, "o paradigma ora em
transformao dominou a nossa cultura por muitas

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centenas de anos"; ele "compreende certo nmero de


idias" que "incluem a crena de que o mtodo
cientfico a nica abordagem vlida do
conhecimento; a concepo do universo como um sistema
mecnico composto de unidades materiais elementares;
a concepo da vida em sociedade como uma luta
competitiva pela existncia". Essas concepes tm os
nomes respectivos de: cientificismo, mecanicismo e
social-darwinismo ou darwinismo social. Repito:
segundo o sr. Capra, elas dominam a nossa cultura h
muitas centenas de anos. Isto sugere duas perguntas.
Primeira: Que "dominar uma cultura?" Segunda:
Quanto "muitas centenas"?
Dizemos que uma certa idia domina uma cultura
quando: primeiro, ela acreditada pelos intelectuais
mais importantes de todos os setores; segundo, as
idias concorrentes ou j no so frteis, quer
dizer, j no se expressam em obras poderosas e
significativas, ou ento desapareceram completamente
de cena. Assim, por exemplo, o cristianismo dominou a
Idade Mdia porque, de um lado, todos os filsofos e
os homens cultos em geral eram cristos e, de outro
lado, as correntes de pensamento no-crists, ainda
que persistindo vivas pelo menos no subconsciente
coletivo, no produziram nesse perodo nenhuma obra
digna de ateno. Dizemos que o marxismo dominou a
cultura sovitica at a dcada de 60 porque nesse
perodo nenhum intelectual eminente que residisse na
URSS produziu nenhuma idia que sasse dos quadros
conceptuais do marxismo e porque as subcorrentes
no-marxistas ( exceto no exlio e em lnguas
ocidentais ) nada criaram de significativo.
Nesse sentido estrito, nenhuma das trs idias que
compem o "paradigma dominante" jamais foi dominante
em parte alguma do Ocidente. Desde que surgiram, as
trs foram incessantemente contestadas, combatidas,
refutadas, rejeitadas no todo ou em parte por
intelectuais importantes. De outro lado, correntes
abertamente hostis a essas idias continuaram frteis
o bastante para produzir algumas das obras mais
significativas de seus respectivos campos.
Vejamos o mecanicismo. Como pode ser "dominante" uma
corrente que, desde seu nascimento, rejeitada por
gigantes como Leibniz, Schelling, Vico, Schopenhauer,
Driesch, Fechner, Boutroux, Nietzsche, Weber,
Kierkegaard e muitos outros, at ser derrubada no
sculo XX pela teoria de Planck?

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

A rigor, o mecanicismo s foi dominante, e mesmo


assim com reservas, numa certa parte do mundo, que
para o sr. Capra "o" mundo: os crculos
universitrios anglo-saxnicos. Que esse mundinho
tradicionalmente presunoso e seguro de si se abra
hoje para novas idias, que se disponha at a ouvir
os orientais sem a tradicional incompreenso
colonialista, sem dvida uma novidade auspiciosa.
Mas uma novidade local. No h meio mais seguro de
tornar provinciano um povo do que persuadi-lo de que
ele o centro do mundo. Desde esse momento ele
declara inexistente ou irrelevante tudo o que saia do
seu campo de viso, e quando finalmente descobre algo
que todo o resto do mundo j sabia d a esta
descoberta uns ares de revoluo mundial.
Quanto ao cientificismo, tanto se escreveu contra
ele, que perfeitamente errado consider-lo
dominante mesmo num sentido atenuado do termo. Para
isto seria preciso excluir do primeiro plano da
cultura o marxismo, a psicanlise, a fenomenologia, o
neotomismo e o existencialismo, pelo menos. Aqui,
novamente, o sr. Capra toma como mundialmente
dominante a opinio de um grupo restrito.
O darwinismo social, por sua vez, s chegou a ser
dominante, como crena pblica, num nico pas do
mundo: nos Estados Unidos. Nunca entrou, por exemplo,
nos pases comunistas e no mundo islmico, que,
somados, completam quase dois teros da humanidade.
Nos pases catlicos, foi recebido desde logo como
perversa anomalia, suscitando reaes de escndalo de
que do testemunho as encclicas sociais dos papas
desde pelo menos Leo XIII.
Mas, alm de afirmar que essas trs crenas "dominam
o mundo", o sr. Capra ainda assegura que o fazem "h
muitas centenas de anos". Contemos a histria.
A mais velha das trs o mecanicismo. Prenunciado
por Descartes, foi formulado plenamente por Isaac
Newton ( Princpios Matemticos da Filosofia Natural,
1687 ), mas s se tornou conhecido da
intelectualidade europia em geral a partir de 1738,
quando Voltaire divulgou em linguagem compreensvel
aos leigos os Elementos da Filosofia de Newton.
No foi s fazendo divulgao cientfica que Voltaire
promoveu a vitria de Newton. Ele tanto difamou com
ironias grosseiras o principal opositor de Newton,
G.-W. von Leibniz, que os contemporneos cessaram de

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

prestar ateno ao que este dizia. Leibniz caiu em


quase descrdito at o sculo XX, quando a
redescoberta de suas idias ocasionou avanos
prodigiosos nas matemticas, na lgica e nas cincias
da natureza. A nova fsica de Planck e Heisenberg
veio a dar razo a Leibniz contra Newton,
substituindo o mecanicismo pelo probabilismo. Esta
substituio poderia ter ocorrido dois sculos antes,
se Voltaire, imperador da opinio pblica no sculo
XVIII, no tivesse tecido em torno de Leibniz uma
teia de preconceitos duradouros. Por ironia, Voltaire
entrou para a Histria como o inimigo de todo atraso
e de todo preconceito.
Mas, de qualquer modo, a opinio de Voltaire no se
propagou com a velocidade do raio. Demorou duas ou
trs dcadas, pelo menos, para tornar-se crena
dominante na Europa inteira. Por volta de l780, o
mecanicismo gozava de um prestgio invejvel, e pode
ser dito, desde ento, dominante, se dominante no
quer dizer unanimemente aceito, ou aceito sem
reservas. No se pode esquecer a oposio que lhe
moveram o vitalismo de Goethe e Driesch, o
contingencialismo de Boutroux e muitas outras
correntes, at o golpe de misericrdia desferido por
Planck e Heisenberg.

No momento em que o sr. Capra redigia O Ponto de


Mutao, o mecanicismo estava completando portanto
dois sculos de glria incessantemente contestada e
de periclitante reinado sobre as faces majoritrias
do mundo acadmico. Isto bem diferente de um
domnio de muitos sculos sobre todo o mundo.
Quanto ao darwinismo social, um filhote do
darwinismo biolgico e no poderia ter nascido antes
do pai. O princpio da "subsistncia do mais apto"
surgiu como uma teoria biolgica e s depois, aos
poucos, foi se transformando num argumento ideolgico
para a legitimao retroativa da concorrncia
capitalista.

A Origem das Espcies de 1859. Herbert Spencer, nos


seus Primeiros Princpios, publicados em l862, amplia
o alcance das idias evolucionistas, fazendo delas um
princpio sociolgico. Paralelamente, ocultistas como
Allan Kardec e Madame Blavatski pegam no ar o termo
"evoluo" e lhe do um sentido mstico, ou
misticide: j no so somente os anfbios que
evoluem em rpteis, e estes em mamferos; so as

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almas desencarnadas que, no outro mundo, evoluem em


"seres de luz", subindo na escala csmica enquanto os
macacos descem das rvores. Revestida de mil e um
sentidos, a palavra "evoluo" se dissemina, e surgem
os debates pblicos, que atraem a ateno dos
intelectuais para o potencial poltico-ideolgico do
evolucionismo. Os debates alcanam um auge de sucesso
com a conferncia de Thomas Henry Huxley, "Evoluo e
tica", em 1892. A est aberto o caminho para a
legitimao do capitalismo liberal pela
"sobrevivncia do mais apto". O resto vem com os
livros de Gustav Ratzenhofer ( Natureza e Finalidade
da Poltica, 1893 ) e William G. Sumner ( Folkways,
l906 ), que fundamentam explicitamente a noo de
"evoluo social", dando aos idelogos capitalistas o
precioso slogan de que necessitavam. O darwinismo
social tem, portanto, pouco mais ou pouco menos do
que um sculo. Tinha menos no momento em que o sr.
Capra redigia o seu livro.
Finalmente, o cientificismo. A rejeio formal e
completa, em nome da cincia, de qualquer explicao
filosfica ou teolgica da realidade, foi proposta,
pela primeira vez, por Augusto Comte ( Discurso sobre
o Esprito Positivo, l844 ). Mas Comte ainda
reservava para a filosofia a tarefa de sntese e
ordenao do conhecimento cientfico, e Comte s foi
aceito sem contestao num nico lugar deste planeta:
no Brasil! ( Em 1914, o positivista Alain atribua a
guerra mundial ao fato de nenhum outro pas do globo
haver seguido o exemplo do Brasil, que adotara na
bandeira republicana o positivismo como doutrina
oficial do Estado: Ordem e Progresso , com efeito, o
resumo da filosofia comtiana. ) Uma declarao formal
e taxativa de cientificismo, com a completa demisso
de todas as demais formas de conhecimento como vazias
ou insignificantes, s veio mesmo em 1934, com Rudolf
Carnap, em Sintaxe Lgica da Linguagem. Mas Carnap
no era nenhum Voltaire, para contar com a imediata
aprovao de um vasto pblico. A maioria dos
filsofos do sculo XX rejeitou categoricamente o
cientificismo, que s exerceu domnio sobre grupos
determinados, principalmente no mundo anglo-saxo.
Contemporaneamente declarao de Carnap, o
matemtico e filsofo Edmund Husserl, fundador da
fenomenologia escola que iria gerar Heidegger,
Scheler, Hartmann, Sartre e Merleau-Ponty, entre
outros , fazia na Universidade de Praga as clebres
conferncias depois reunidas no livro A Crise das

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

Cincias Europias, em que negava o cientificismo


pela base e desde dentro: as cincias fsicas, dizia
ele, haviam perdido o seu essencial fundamento
cientfico e j no serviam como modelo de
conhecimento da realidade. Husserl era e pelo menos
to influente quanto Carnap, embora no tanto no
mundo anglo-saxnico que o limite do horizonte
mental do sr. Capra.
Em suma, o cientificismo, que "domina a nossa cultura
desde h sculos", est completando sessenta
primaveras neste ano de 1994. Mas, para cmulo, sua
primeira manifestao ostensiva j foi posterior, de
trs dcadas, publicao dos primeiros trabalhos de
Max Planck, cujo indeterminismo viria a ser uma das
bases do "novo paradigma" cujo advento o sr. Capra
veio agora nos anunciar. O novo paradigma um tanto
anterior ao velho.

O sr. Capra, como se v, pouco entende dos assuntos


em que exerce, para um pblico multitudinrio, uma
autoridade proftica. Ele prima pela carncia de
informao elementar sobre a cosmologia chinesa, na
qual diz basear sua viso da histria cultural, bem
como sobre a histria cultural mesma, que ele
procura, mediante generalizaes grosseiras, e
escandalosas alteraes da cronologia, encaixar
fora num modelo preconcebido.
No questiono, aqui, a validade da proposta holstica
em geral. Reservo-me o direito de faz-lo num outro
trabalho. Apenas creio que ela deve ter defensores um
pouco mais qualificados do que o sr. Capra.
Meu propsito foi dar um testemunho sobre um fato de
relevncia mundial, que acontece bem diante das
nossas barbas, e de cuja realidade as geraes
vindouras tero o direito de duvidar. Pois, para a
razo e o bom-senso, no verossmil que milhares de
intelectuais de prestgio, em seu juzo perfeito,
possam aceitar e aplaudir como um marco da histria
do pensamento uma obra como O Ponto de Mutao, que
no atende sequer aos requisitos mnimos de
informao fidedigna, de autenticidade das fontes e
de rigor conceptual que se exigem de uma tese de
mestrado. Dentre tantos outros defeitos que um livro
pode ter, este padece do nico que no se pode
tolerar em hiptese alguma: a ignoratio elenchi, a

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

ignorncia completa do assunto. O sr. Capra define o


seu livro, pretensiosamente, como um novo modelo de
histria cultural baseado nas concepes chinesas do
homem e do universo. Mas ele no estudou o suficiente
nem a histria cultural nem as concepes chinesas
para que sua opinio a respeito possa ter qualquer
importncia objetiva, fora do seu crculo de
convivncia pessoal. O contedo de sua propalada
sabedoria do assunto pura lana caprina.
O sucesso deste livro s pode ser explicado por um
nico fator, inteiramente alheio ao seu valor
intrnseco: sua oportunidade. Ele diz o que as
pessoas desejam ouvir, no momento em que o desejam.
Ele oferece uma perspectiva sedutora a um pblico que
pede para ser seduzido.
Que esse pblico no inclua somente populares
incultos, mas intelectuais de projeo, e que estes
se prontifiquem a aceitar as promessas do autor sem
pedir-lhe sequer as credenciais cientficas que se
exigem de um estudante de faculdade, realmente um
acontecimento inverossmil.
Mas, dizia Aristteles, no mesmo verossmil que
tudo sempre se passe de maneira verossmil. O
inverossmil aconteceu. Ele atesta que, aps sculos
de fria iconoclstica voltada contra todas as
crenas do passado e os valores de outras
civilizaes, a opinio letrada do Ocidente enfim se
cansou de ser arrogante; mas, em vez de um
arrependimento sincero, est encenando diante de ns
um arremedo de converso, que deixa mostra todas as
marcas do fingimento histeriforme. Estonteada pela
viso sbita de suas prprias culpas, ela abjurou de
toda precauo crtica como quem repele um vcio do
passado; e entregou-se, inerme e crdula, ao culto do
primeiro dolo que lhe ofereceu uma promessa de
alvio. Ela pensa ou finge pensar que esse dolo o
seu salvador. Na verdade a sua Nmesis.
Mas no s ela que est enganada. O profeta do
engano tambm se engana: ele imagina trazer ao mundo
a sabedoria, quando traz o obscurecimento e a
confuso. Imagina trazer uma nova profecia, quando
traz o cumprimento de uma velha maldio.

Mas no posso encerrar estas consideraes sobre o

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

profeta da Nova Era sem fazer, tambm eu, uma


profecia: nos sculos vindouros, quando puderem
encarar o nosso tempo com alguma objetividade, o
fenmeno da Nova Era ser considerado um escndalo
que depe contra a inteligncia humana.
foroso que venha o escndalo. Nada se pode fazer
para evit-lo. Nem mesmo vou sugerir, como Jesus, que
se amarre ao seu portador uma pesada pedra, para
jog-lo ao fundo do mar. Pois, como diria o hexagrama
36, ele j est no fundo. Tudo o que posso fazer
deixar posteridade, se vier a ter notcia destas
pginas, um testemunho pessoal destes tempos
obscuros: Nem todos, nem todos acreditaram no falso
profeta9.

Adendo
H no livro do sr. Capra uma infinidade de erros e
contra-sensos, alm dos mencionados. Apont-los e
corrigi-los todos requereria um volumoso comentrio:
uma lei constitutiva da mente humana concede ao erro
o privilgio de poder ser mais breve do que a sua
retificao.
Mas vale a pena dar mais algumas amostras, para que o
leitor veja quanto um erro nas premissas pode ser
frtil em consequncias:
l. O sr. Capra combate o uso da energia nuclear,
mesmo para fins pacficos, mas, ao mesmo tempo, faz
da fsica moderna um dos fundamentos do "novo
paradigma" que prope. Ele separa a fsica enquanto
modalidade de conhecimento terico e a natureza das
suas aplicaes prticas, como se uma no decorresse
da outra necessariamente.
O sr. Capra , nisto, perfeitamente inconsequente com
o mtodo holstico que advoga. Para o holismo, toda
separao estanque entre uma idia e suas
manifestaes prticas nada mais que um
abstratismo. Holisticamente falando, o efeito
benfico ou destrutivo dos engenhos nucleares tem de
estar arraigado no prprio modus cognoscendi que os
produziu. Se o sr. Capra enxerga ligaes at mesmo
entre o mecanicismo e a estrutura da famlia
patriarcal, como pode ser cego para as relaes,
muito mais prximas, entre o contedo teortico de
uma cincia e suas aplicaes prticas?

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

2. Em nossa sociedade, afirma o sr. Capra, o trabalho


entrpico ( trabalho repetitivo que no deixa efeitos
duradouros, como por exemplo cozinhar um jantar que
ser consumido imediatamente ) desvalorizado, e por
isto atribudo s mulheres e aos grupos
minoritrios. Esta desvalorizao, diz ele, tpica
da sociedade industrial.
Nesse caso, deveramos considerar sociedades
industriais as tribos do Alto Xingu, as
cidades-Estado da antiga Grcia, a sociedade europia
da Idade Mdia. No existiu jamais uma sociedade em
que os servios entrpicos fossem mais valorizados
que os outros.
Mas, segundo o sr. Capra, existiu. Ele d como
exemplos os mosteiros de monges budistas e cristos,
onde cozinhar uma honra e limpar as privadas um
mrito invejvel. Ser preciso explicar ao sr. Capra
que uma ordem monstica no constitui uma
"sociedade", mas uma comunidade minoritria que
pressupe em torno a existncia de uma sociedade a
cujos valores possa se opor? Se, dentro de um
mosteiro, o trabalho entrpico tem valor,
justamente porque no o tem na sociedade maior em
torno. Os trabalhos humildes adquirem ali dentro um
valor espiritual e disciplinar justamente na medida
em que no "mundo" tm pouco prestgio social ou valor
econmico. A desvalorizao social do trabalho
entrpico no caracterstica da sociedade
industrial, mas da sociedade humana em geral;
inversamente, a sua valorizao espiritual um trao
distintivo das minorias espiritualizadas envolvidas
em alguma forma de rejeio religiosa do "mundo".
3. "Tradies como o vedanta, a ioga, o budismo e o
taoismo assemelham-se muito mais a psicoterapias do
que a filosofias ou religies", diz o sr. Capra. Bem,
se h um trao caracterstico do Ocidente moderno,
que o distingue radicalmente das tradies orientais,
justamente o desenvolvimento, nele, de uma
psicologia como cincia independente de qualquer
referncia mstica ou religiosa; e, em decorrncia, o
esforo para dar uma explicao "psicolgica" de
todos os fenmenos espirituais. Ao englobar as
tradies espirituais do Oriente no conceito de
"psicoterapia", o sr. Capra mostra a tpica
incapacidade do cientificista moderno para apreender
tudo quanto h nelas de puramente metafsico e
no-psicolgico.

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

Dizer, ademais, que essas tradies "se baseiam no


conhecimento emprico e, assim, apresentam mais
afinidades com a cincia moderna" pretender
enquadrar fora as idias orientais numa moldura
ocidental e moderna, para torn-las aceitveis ao
provincianismo acadmico. Acontece que, nessa
operao, tudo que h nelas de essencialmente
oriental se perde por completo. O vedanta, por
exemplo, afirma categoricamente que a experincia no
pode trazer conhecimento espiritual de espcie
alguma, e esta afirmao mesmo um dos pontos
basilares da doutrina, que o sr. Capra parece
desconhecer completamente: toda experincia ao, e
a ao, no sendo o contrrio da ignorncia, no pode
destru-la ( cf. Brihadaranyaka Upanishad, livro
10 ).
Por esse exemplo, v-se que o sr. Capra est muito
mais preso a esquemas mentais de acadmico ocidental
mdio do que desejaria deixar transparecer. Algum
mais prximo da perspectiva oriental jamais
procuraria explicar as doutrinas sapienciais da ndia
ou da China luz da moderna psicologia ocidental,
mas, ao contrrio, emitiria sobre esta, em nome
delas, um julgamento bastante severo ( v., por
exemplo, Wolfgang Smith, Cosmos and Transcendence,
New York, l970, ou Titus Burckhardt, Scienza Moderna
e Sagezza Tradizionale, Torino, l968 ).
4. Aps realar o sentido holstico das concepes
fisiolgicas de Hipcrates, o sr. Capra insinua que
esse sentido desapareceu completamente da medicina
ocidental e agora temos de ir busc-lo na tradio
chinesa: "A noo chinesa do corpo como um sistema
indivisvel de componentes inter-relacionados est
muito mais prxima da moderna abordagem sistmica do
que do modelo cartesiano clssico." Se o sr. Capra
no seguisse o hbito ocidental moderno de saltar
direto do pensamento grego para o Renascimento, teria
reparado que a mesma concepo holstica domina todo
o pensamento mdico e biolgico do Ocidente medieval,
com destaque para Sto. Alberto Magno e Roger Bacon.
Na verdade, as concepes chinesas so muito mais
parecidas com as da Idade Mdia que com a "moderna
abordagem sistmica".
5. Ao explicar a psicoterapia de Arthur Janov, o sr.
Capra diz que, segundo este eminente psiquiatra, as
neuroses so tipos simblicos de comportamento que
"representam as defesas da pessoa contra a excessiva

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

dor associada a traumas de infncia". Quem quer que


tenha lido Janov sabe que, na teoria deste, a
etiologia das neuroses no de ordem traumtica, mas
reside na frustrao constante e habitual de
necessidades bsicas, frustrao que s vezes no
sequer percebida no nvel consciente. Um trauma, na
psicopatologia de Janov, nada mais que um fator
superveniente. A minimizao da importncia
etiolgica dos traumas justamente o que singulariza
o sistema de Janov. Embora conhecendo o assunto de
orelhada, o sr. Capra no se inibe de opinar a
respeito com ar professoral: "O sistema conceitual de
Janov no suficientemente amplo para explicar
experincias transpessoais..." O que certamente no
amplo o conhecimento que o sr. Capra tem do sistema
de Janov.

Sugestes de Leitura
Alm das obras citadas no texto, o leitor poder
consultar com proveito as seguintes:
l. Quem aprecie o holismo e deseje ter uma informao
sria a respeito, sem aberraes caprinas e com mais
ensinamento valioso, leia o livro de Jol de Rosnay,
Le Macroscope. Vers une Vision Globale ( Paris, Le
Seuil, l975 ). O prof. de Rosnay ensinou no MIT e
trabalha no Instituto Pasteur de Paris.
interessante ler tambm as obras de Edgar Morin, que
foi alis quem lanou a expresso "novo paradigma".
V. especialmente La Mthode, em dois tomos ( I, La
Nature de la Nature, Paris, Le Seuil, l977; II, La
Vie de la Vie, id., 1980 ).

2. O I Ching tem trs tradues ocidentais famosas: a


de James Legge ( verso brasileira de E. Peixoto de
Souza e Maria Judith Martins, So Paulo, Hemus,
l972 ), a de Richard Wilhelm ( verso inglesa de Cary
F. Baynes, London, Routledge and Kegan Paul, l95l,
vrias reedies; verso brasileira de Lya Luft e
Alayde Mutzembecher, So Paulo, Nova Acrpole ), e a
de P.-L. F. Philastre: Le Yi:King. Livre des
Changements de la Dynastie des Tsheou. Annales du
Muse Guimet, t. huitime, 2 vols. ( Paris, Adrien
Maisonneuve, l975 ). Um estudo srio do assunto
requer o exame das trs. A de Wilhelm mais didtica
e fcil de consultar. Legge enfatiza muito as
ligaes estruturais entre as partes e abre para um

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

estudo mais aprofundado. Das trs a de Philastre de


longe a mais interessante, pois a nica que
transcreve integralmente e pela ordem as glosas das
dez "geraes" de comentaristas chineses.
3. Sobre os smbolos da tradio chinesa, v. o livro
clssico de Ren Gunon, La Grande Triade ( Paris,
Gallimard, 1957 ). Convm recorrer ainda, quanto aos
ideogramas, obra monumental do Pe. L. Wieger,
Chinese Characters. Their Origin, Etimology, History,
Classification and Signification. A Thorough Study
from Chinese Documents, transl. by L. Davrout, s. j.
( New York, Dover, 1965; a primeira edio de
1915 ).
4. Sobre o pensamento chins ainda indispensvel, a
quem deseje aprofundar o assunto, estudar: quanto s
concepes cosmolgicas, Marcel Granet, La Pense
Chinoise ( Paris, Albin Michel, l968 ) e La Rligion
des Chinois ( Paris, Payot, 1980 ). Quanto s
instituies e ao governo, Granet, La Civilisation
Chinoise ( Paris, La Renaissance du Livre, 1929 ).
Sobre a moral, o direito e as classes sociais, Max
Weber, The Religion of China, transl. by H. H. Gerth
and C. Wright Mills ( New York, The Free Press,
195l ).
5. Um "novo modelo de histria cultural" baseado em
concepes orientais algo que j estava realizado
pelo menos desde l945, em Le Rgne de la Quantit et
les Signes des Temps, de Ren Gunon ( Paris,
Gallimard ). Um monumento de sabedoria.
6. Sobre a disputa Leibniz-Newton pode-se ler: Jos
Ortega y Gasset, La Idea de Principio en Leibniz y la
Evolucin de la Teora Deductiva ( em Obras
Completas, t. 8, Madrid, Alianza, 1983 ); Paul
Hazard, La Crise de la Conscience Europenne
1660-1715 ( Paris, Gallimard, 1961 ); Edwin A. Burtt,
As Bases Metafsicas da Cincia Moderna, trad. Jos
Viegas Filho e Orlando Arajo Henriques ( Braslia,
UnB, 1983 ).

NOTAS
7. Escrito em setembro de 1993. Voltar
8. Livro I, Cap. III. Voltar

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo I

9. Tendo enviado a Frei Betto uma cpia deste


captulo antes de sua publicao em livro, recebi
dele uma resposta em duas linhas, que um
singular documento psicolgico. Ela diz: "Apesar
das suas reservas, o evento [ NB: recepo ao sr.
Capra ] foi bom para quem l esteve." Deve ter
sido mesmo um barato, imagino eu. Mas o ilustre
frade no me compreendeu. Longe de mim depreciar
o evento em si a organizao do programa, o
servio de som ou o tempero dos salgadinhos. O
que eu disse que no presta a filosofia do sr.
Capra, subentendendo que celebr-la num congresso
de intelectuais jogar dinheiro fora; e quanto
melhor o evento, mais lamentvel o desperdcio.
Caso, porm, o missivista tenha pretendido alegar
a qualidade do evento como um argumento em favor
do sr. Capra, isto seria o mesmo que dizer que o
preo da vela prova a qualidade do defunto. Alm
disso, que opinio se poderia ter de um pensador
que argumentasse em favor de uma filosofia
mediante a alegao de que ela lhe d a
oportunidade de freqentar lugares agradveis? [
N. da 2 ed. ] Voltar
Voltar para o ndice Ir em frente

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

3a edio,
revista e aumentada.

II

STO. ANTONIO GRAMSCI


E A SALVAO DO BRASIL

QUEM DESEJE reduzir a um quadro coerente o aglomerado


catico de elementos que se agitam na cena
brasileira, tem de comear a desenh-lo tomando como
centro um personagem que nunca esteve aqui, do qual a
maioria dos brasileiros nunca ouviu falar, e que
ademais est morto h mais de meio sculo, mas que,
desde o reino das sombras, dirige em segredo os
acontecimentos nesta parte do mundo.
Refiro-me ao idelogo italiano Antonio Gramsci.
Tendo-se tornado praxe entre as esquerdas jamais
pronunciar o nome de Gramsci sem acrescentar-lhe a
meno de que se trata de um mrtir, apresso-me a

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

declarar que o referido passou onze anos numa priso


fascista, de onde remeteu ao mundo, mediante no sei
que artifcio, os trinta e trs cadernos de notas que
hoje constituem, para os fiis remanescentes do
comunismo brasileiro, a bblia da estratgia
revolucionria. Mas no est s nisso a razo da aura
beatfica que envolve o personagem. Da estratgia,
tal como vista por ele, constitua um captulo
importante a criao de um novo calendrio dos
santos, que pudesse desbancar, na imaginao popular,
o prestgio do hagiolgio catlico ( uma vez que a
Igreja, na viso dele, era o maior obstculo ao
avano do comunismo ). O novo panteo seria
inteiramente constitudo de lderes comunistas
clebres, e baseado no critrio segundo o qual "Rosa
Luxemburgo e Karl Liebknecht so maiores do que os
maiores santos de Cristo" palavras textuais de
Gramsci. Os seguidores do novo culto, com inteira
lgica, puseram ainda mais alto na escala celeste o
instituidor do calendrio, motivo pelo qual no se
pode falar dele sem a correspondente uno. E eu,
temeroso como o sou de todas as coisas do alm, no
poderia iniciar esta breve exposio do gramscismo
brasileiro sem a preliminar invocao ao seu patrono,
em quem se depositam, neste momento, muitas
esperanas de salvao do Brasil. Digo, pois: Sancte
Antonie Gramsci, ora pro nobis.
Atendida esta devota formalidade, retorno aos fatos.
Gramsci ficou, dizia eu, meditando na cadeia.
Mussolini, que o mandara prender, acreditava estar
prestando um servio ao mundo com o silncio que
impunha quele crebro que ele julgava temvel.
Aconteceu que no silncio do crcere o referido
crebro no parou de funcionar; apenas comeou a
germinar idias que dificilmente lhe teriam ocorrido
na agitao das ruas. Homens solitrios voltam-se
para dentro, tornam-se subjetivistas e profundos.
Gramsci transformou a estratgia comunista, de um
grosso amlgama de retrica e fora bruta, numa
delicada orquestrao de influncias sutis,
penetrante como a Programao Neurolingustica e mais
perigosa, a longo prazo, do que toda a artilharia do
Exrcito Vermelho. Se Lnin foi o terico do golpe de
Estado, ele foi o estrategista da revoluo
psicolgica que deve preceder e aplainar o caminho
para o golpe de Estado.
Gramsci estava particularmente impressionado com a
violncia das guerras que o governo revolucionrio da

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

Rssia tivera de empreender para submeter ao


comunismo as massas recalcitrantes, apegadas aos
valores e praxes de uma velha cultura. A resistncia
de um povo arraigadamente religioso e conservador a
um regime que se afirmava destinado a benefici-lo
colocou em risco a estabilidade do governo sovitico
durante quase uma dcada, fazendo com que, em reao,
a ditadura do proletariado na inteno de Marx uma
breve transio para o paraso da democracia
comunista ameaasse eternizar-se, barrando o
caminho a toda evoluo futura do comunismo, como de
fato veio a acontecer.
Para contornar a dificuldade, Gramsci concebeu uma
dessas idias engenhosas, que s ocorrem aos homens
de ao quando a impossibilidade de agir os compele a
meditaes profundas: amestrar o povo para o
socialismo antes de fazer a revoluo. Fazer com que
todos pensassem, sentissem e agissem como membros de
um Estado comunista enquanto ainda vivendo num quadro
externo capitalista. Assim, quando viesse o
comunismo, as resistncias possveis j estariam
neutralizadas de antemo e todo mundo aceitaria o
novo regime com a maior naturalidade.
A estratgia de Gramsci virava de cabea para baixo a
frmula leninista, na qual uma vanguarda
organizadssima e armada tomava o poder pela fora,
autonomeando-se representante do proletariado e
somente depois tratando de persuadir os apatetados
proletrios de que eles, sem ter disto a menor
suspeita, haviam sido os autores da revoluo. A
revoluo gramsciana est para a revoluo leninista
assim como a seduo est para o estupro.
Para operar essa virada, Gramsci estabeleceu uma
distino, das mais importantes, entre "poder" ( ou,
como ele prefere cham-lo, "controle" ) e
"hegemonia". O poder o domnio sobre o aparelho de
Estado, sobre a administrao, o exrcito e a
polcia. A hegemonia o domnio psicolgico sobre a
multido. A revoluo leninista tomava o poder para
estabelecer a hegemonia. O gramscismo conquista a
hegemonia para ser levado ao poder suavemente,
imperceptivelmente. No preciso dizer que o poder,
fundado numa hegemonia prvia, poder absoluto e
incontestvel: domina ao mesmo tempo pela fora bruta
e pelo consentimento popular aquela forma profunda
e irrevogvel de consentimento que se assenta na
fora do hbito, principalmente dos automatismos
mentais adquiridos que uma longa repetio torna

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

inconscientes e coloca fora do alcance da discusso e


da crtica. O governo revolucionrio leninista
reprime pela violncia as idias adversas. O
gramscismo espera chegar ao poder quando j no
houver mais idias adversas no repertrio mental do
povo.
Que esse negcio tremendamente maquiavlico, o
prprio Gramsci o reconhecia, mas fazendo disto um
ttulo de glria, j que Maquiavel era um dos seus
gurus. Apenas, ele adaptou Maquiavel s demandas da
ideologia socialista, coletivizando o "Prncipe". Em
lugar do condottiere individual que para chegar ao
poder utiliza os expedientes mais repugnantes com a
conscincia tranquila de quem est salvando a ptria,
Gramsci coloca uma entidade coletiva: a vanguarda
revolucionria. O Partido, em suma, o novo
Prncipe. Como o sangue-frio dos homens fica mais
frio na medida em que eles se sentem apoiados por uma
coletividade, o Novo Prncipe tem uma conscincia
ainda mais tranquila que a do antigo. O condottiere
da Renascena no tinha apoio seno de si mesmo, e
nas noites frias do palcio tinha de suportar sozinho
os conflitos entre conscincia moral e ambio
poltica, encontrando no patriotismo uma soluo de
compromisso. No Novo Prncipe, a produo de
analgsicos da conscincia trabalho de equipe, e
nas fileiras de militantes h sempre uma imensa
reserva de talentos tericos que podem ser convocados
para produzir justificaes do que quer que seja.
Os intelectuais desempenham por isso, na estratgia
gramsciana, um papel de relevo. Mas isto no quer
dizer que suas idias sejam importantes em si mesmas,
pois, para Gramsci, a nica importncia de uma idia
reside no reforo que ela d, ou tira, marcha da
revoluo. Gramsci divide os intelectuais em dois
tipos: "orgnicos" e "inorgnicos" ( ou, como ele
prefere cham-los, "tradicionais" ). Estes ltimos
so uns esquisites que, baseados em critrios e
valores oriundos de outras pocas, e sem uma definida
ideologia de classe, emitem idias que, ignoradas
pelas massas, no exercem qualquer influncia no
processo histrico: acabam indo parar na lata de lixo
do esquecimento, a no ser que tenham a esperteza de
aderir logo a uma das correntes "orgnicas".
Intelectuais orgnicos so aqueles que, com ou sem
vinculao formal a movimentos polticos, esto
conscientes de sua posio de classe e no gastam uma
palavra sequer que no seja para elaborar, esclarecer

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

e defender sua ideologia de classe. Naturalmente, h


intelectuais orgnicos "burgueses" e "proletrios".
Estes so a nata e o crebro do Novo Prncipe, mas
aqueles tambm tm alguma utilidade para a revoluo,
pois atravs deles que os revolucionrios vm a
conhecer a ideologia do inimigo. Gramsci mencionava
como prottipos de intelectuais orgnicos burgueses
Benedetto Croce e Giovanni Gentile: o liberal
antifascista e o ministro de Mussolini.
O conceito gramsciano de intelectual funda-se
exclusivamente na sociologia das profisses e, por
isto, bem elstico: h lugar nele para os
contadores, os meirinhos, os funcionrios dos
Correios, os locutores esportivos e o pessoal do show
business. Toda essa gente ajuda a elaborar e difundir
a ideologia de classe, e, como elaborar e difundir a
ideologia de classe a nica tarefa intelectual que
existe, uma vedette que sacuda as banhas num
espetculo de protesto pode ser bem mais intelectual
do que um filsofo, caso se trate de um "inorgnico"
como por exemplo o autor destas linhas.
Os intelectuais no sentido elstico so o verdadeiro
exrcito da revoluo gramsciana, incumbido de
realizar a primeira e mais decisiva etapa da
estratgia, que a conquista da hegemonia, um
processo longo, complexo e sutil de mutaes
psicolgicas graduais e crescentes, que a tomada do
poder apenas coroa como uma espcie de orgasmo
poltico.
A luta pela hegemonia no se resume apenas ao
confronto formal das ideologias, mas penetra num
terreno mais profundo, que o daquilo que Gramsci
denomina dando ao termo uma acepo peculiar
"senso comum". O senso comum um aglomerado de
hbitos e expectativas, inconscientes ou
semiconscientes na maior parte, que governam o
dia-a-dia das pessoas. Ele se expressa, por exemplo,
em frases feitas, em giros verbais tpicos, em gestos
automticos, em modos mais ou menos padronizados de
reagir s situaes. O conjunto dos contedos do
senso comum identifica-se, para o seu portador
humano, com a realidade mesma, embora no constitua
de fato seno um recorte bastante parcial e
frequentemente imaginoso. O senso comum no
"apreende" a realidade, mas opera nela ao mesmo tempo
uma filtragem e uma montagem, segundo padres que,
herdados de culturas ancestrais, permanecem ocultos e

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

inconscientes.
Como o que interessa no tanto a convico poltica
expressa, mas o fundo inconsciente do "senso comum",
Gramsci est menos interessado em persuaso racional
do que em influncia psicolgica, em agir sobre a
imaginao e o sentimento. Da sua nfase na educao
primria. Seja para formar os futuros "intelectuais
orgnicos", seja simplesmente para predispor o povo
aos sentimentos desejados, muito importante que a
influncia comunista atinja sua clientela quando seus
crebros ainda esto tenros e incapazes de
resistncia crtica.
O senso comum no coincide com a ideologia de classe,
e precisamente a que est o problema. Na maior
parte das pessoas, o senso comum se compe de uma
sopa de elementos heterclitos colhidos nas
ideologias de vrias classes. por isto que, movido
pelo senso comum, um homem pode agir de maneiras que,
objetivamente, contrariam o seu interesse de classe,
como por exemplo quando um proletrio vai missa.
Nesta simples rotina dominical oculta-se uma mistura
das mais surpreendentes, onde um valor tpico da
cultura feudal-aristocrtica, reelaborado e posto a
servio da ideologia burguesa, aparece transfundido
em hbito proletrio, graas ao qual um pobre
coitado, acreditando salvar a alma, comete, na
realidade, apenas uma grossa sacanagem contra seus
companheiros de classe e contra si mesmo.
A que entra a misso providencial dos
intelectuais. Sua funo precisamente por um fim a
essa suruba ideolgica, reformando o senso comum,
organizando-o para que se torne coerente com o
interesse de classe respectivo, esclarecendo-o e
difundindo-o para que fique cada vez mais consciente,
para que, cada vez mais, o proletrio viva, sinta e
pense de acordo com os interesses objetivos da classe
proletria e o burgus com os da classe burguesa. A
este estado de perfeita coincidncia entre idias e
interesses de classe, quando realizado numa dada
sociedade e cristalizado em leis que distribuem a
cada classe seus direitos e deveres segundo uma clara
delimitao dos respectivos campos ideolgicos,
Gramsci denomina Estado tico. a escalao final
dos dois times, antes de comear o prlio decisivo
que levar o Partido ao poder. O pblico brasileiro
tem ouvido este termo, proferido num contexto de
combate corrupo e de restaurao da moralidade.
Mas ele um termo tcnico da estratgia gramsciana,

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

que designa apenas uma determinada etapa na luta


revolucionria uma etapa, alis, bastante avanada,
na qual a radicalizao do conflito de interesses de
classe prepara o incio da etapa orgstica: a
conquista do poder. Que, no catico senso comum
brasileiro, o termo Estado tico tenha ressonncias
moralizadoras inteiramente alheias ao seu verdadeiro
intuito, mostra apenas que o pblico nacional ignora
a inspirao diretamente gramsciana do Movimento pela
tica na Poltica e nem de longe suspeita que seu
nico objetivo politizar a tica, canalizando as
aspiraes morais mais ou menos confusas da populao
de modo a que sirvam a objetivos que nada tm a ver
com o que um cidado comum entende por moral. O
Estado tico, na verdade, no apenas compatvel com
a total imoralidade, como na verdade a requer, pois
consolida e legitima duas morais antagnicas e
inconciliveis, onde a luta de classes colocada
acima do bem e do mal e se torna ela mesma o critrio
moral supremo. Da por diante, a mentira, a fraude ou
mesmo o homicdio podem se tornar louvveis, quando
cometidos em defesa da "nossa" classe, ao passo que a
decncia, a honestidade, a compaixo podem ter algo
de criminoso, caso favoream a classe adversria10.
Que o tradicional discurso moralista da burguesia
brasileira tenha podido ser assim usado como arma
para desferir um golpe mortal na hegemonia burguesa,
mostra menos a esperteza da esquerda gramsciana do
que a estupidez paquidrmica da nossa classe
dominante. Que, por outro lado, os prprios agentes
do gramscismo finjam acreditar no carter apoltico e
puramente higinico da campanha moralizante
apaziguando assim os temores daqueles que sero suas
primeiras vtimas nada mais que uma expresso da
linguagem dupla, inerente a uma estratgia na qual a
camuflagem tudo. So lies de Antonio
S-a-Cabecinha Gramsci.
quase impossvel que, a esta altura, a expresso
"inverso de valores" no ocorra ao leitor. Essa
inverso , de fato, um dos objetivos prioritrios da
revoluo gramsciana, na fase da luta pela hegemonia.
Mas Gramsci , neste ponto, bastante exigente: no
basta derrotar a ideologia expressa da burguesia;
preciso extirpar, junto com ela, todos os valores e
princpios herdados de civilizaes anteriores, que
ela de algum modo incorporou e que se encontram hoje
no fundo do senso comum. Trata-se enfim de uma
gigantesca operao de lavagem cerebral, que deve

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

apagar da mentalidade popular, e sobretudo do fundo


inconsciente do senso comum, toda a herana moral e
cultural da humanidade, para substitu-la por
princpios radicalmente novos, fundados no primado da
revoluo e no que Gramsci denomina "historicismo
absoluto" ( mais adiante explico ).
Uma operao dessa envergadura transcende
infinitamente o plano da mera pregao
revolucionria, e abrange mutaes psicolgicas de
imensa profundidade, que no poderiam ser realizadas
de improviso nem plena luz do dia. O combate pela
hegemonia requer uma pluralidade de canais de atuao
informais e aparentemente desligados de toda
poltica, atravs dos quais se possa ir injetando
imperceptivelmente na mentalidade popular toda uma
gama de novos sentimentos, de novas reaes, de novas
palavras, de novos hbitos, que aos poucos v mudando
de direo o eixo da conduta.
Da que Gramsci d relativamente pouca importncia
pregao revolucionria aberta, mas enfatize muito o
valor da penetrao camuflada e sutil. Para a
revoluo gramsciana vale menos um orador, um
agitador notrio, do que um jornalista discreto que,
sem tomar posio explcita, v delicadamente mudando
o teor do noticirio, ou do que um cineasta cujos
filmes, sem qualquer mensagem poltica ostensiva,
afeioem o pblico a um novo imaginrio, gerador de
um novo senso comum. Jornalistas, cineastas, msicos,
psiclogos, pedagogos infantis e conselheiros
familiares representam uma tropa de elite do exrcito
gramsciano. Sua atuao informal penetra fundo nas
conscincias, sem nenhum intuito poltico declarado,
e deixa nelas as marcas de novos sentimentos, de
novas reaes, de novas atitudes morais que, no
momento propcio, se integraro harmoniosamente na
hegemonia comunista11.
Milhes de pequenas alteraes vo assim sendo
introduzidas no senso comum, at que o efeito
cumulativo se condense numa repentina mutao global
( uma aplicao da teoria marxista do "salto
qualitativo" que sobrevem ao fim de uma acumulao de
mudanas quantitativas ). Ao esforo sistemtico de
produzir esse efeito cumulativo Gramsci denomina,
significativamente, "agresso molecular": a ideologia
burguesa no deve ser combatida no campo aberto dos
confrontos ideolgicos, mas no terreno discreto do
senso comum; no pelo avano macio, mas pela
penetrao sutil, milmetro a milmetro, crebro por

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

crebro, idia por idia, hbito por hbito, reflexo


por reflexo.
claro que a mutao almejada no abrange somente o
terreno das convices polticas, mas visa
principalmente s reaes espontneas, aos
sentimentos de base, s cadeias de reflexos que
determinam inconscientemente a conduta. Condutas
sedimentadas no inconsciente humano h sculos ou
milnios devem ser desarraigadas, para ceder lugar a
uma nova constelao de reaes. importante, por
exemplo, varrer do imaginrio popular figuras
tradicionais de heris e de santos que expressem
determinados ideais, pois essas figuras esto
imantadas de uma fora motivadora que dirige a
conduta dos homens num sentido hostil proposta
gramsciana. Elas devem ser substitudas por um novo
panteo de dolos, no qual, como se viu acima, Karl
Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Lnin, Stlin e
obviamente o prprio Gramsci ocupam os lugares de S.
Francisco de Assis, Santa Terezinha do Menino Jesus e
tutti quanti. Gramsci copiou nisto uma idia de
Augusto Comte, de trocar o calendrio dos santos da
Igreja por um panteo de heris revolucionrios.
Apenas, os dolos de Comte eram os da Revoluo
Francesa: Gramsci atualizou a folhinha.
Uma lavagem cerebral de to vasta escala no poderia,
certamente, limitar-se a extirpar da cabea humana
crenas religiosas, imagens, mitos e sentimentos
tradicionais: ela deveria tambm estender-se s
grandes concepes filosficas e cientficas. A
estas, Gramsci queria destruir pela base, todas de
uma vez, para substitu-las por uma nova cosmoviso
inspirada no marxismo, ou antes, numa caricatura
hipertrfica de marxismo que o prprio Marx
rejeitaria com desprezo. Pois Marx considerava-se,
sobretudo, o herdeiro de grandes tradies
filosficas como o aristotelismo, e construiu sua
filosofia no intuito de torn-la uma cincia, uma
descrio objetivamente vlida das bases do processo
histrico. Para Gramsci, as tradies filosficas
devem ser todas varridas de uma vez, e junto com elas
a distino entre "verdade" e "falsidade". Pois
Gramsci no um marxista puro-sangue. Atravs de seu
mestre Antonio Labriola, ele recebeu uma poderosa
influncia do pragmatismo, escola para a qual o
conceito tradicional da verdade como uma
correspondncia entre o contedo do pensamento e um
estado de coisas deve ser abandonado em proveito de

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

uma noo utilitria e meramente operacional. Nesta,


"verdade" no o que corresponde a um estado
objetivo, mas o que pode ter aplicao til e eficaz
numa situao dada. Enxertando o pragmatismo no
marxismo, Labriola e Gramsci propunham que se jogasse
no lixo o conceito de verdade: na nova cosmoviso,
toda atividade intelectual no deveria buscar mais o
conhecimento objetivo, mas sim a mera "adequao" das
idias a um determinado estado da luta social. A isto
Gramsci denominava "historicismo absoluto". Nesta
nova cosmoviso, no haveria lugar para a distino
burguesa, segundo Gramsci entre verdade e mentira.
Uma teoria, por exemplo, no se aceitaria por ser
verdadeira, nem se rejeitaria por falsa, mas dela s
se exigiria uma nica e decisiva coisa: que fosse
"expressiva" do seu momento histrico, e
principalmente das aspiraes da massa
revolucionria. Dito de modo mais claro: Gramsci
exige que toda atividade cultural e cientfica se
reduza mera propaganda poltica, mais ou menos
disfarada.
A "filosofia" de Gramsci resolve-se assim num
ceticismo teortico que completa a negao da
inteligncia pela sua submisso integral a um apelo
de ao prtica; ao que, realizada, resultar em
varrer a inteligncia da face da Terra, por supresso
das condies que possibilitam o seu exerccio: a
autonomia da inteligncia individual e a f na busca
da verdade. Substituda a primeira pela
arregimentao de "intelectuais orgnicos" de
carteirinha, e a segunda pela concentrao de todas
as energias intelectuais no nobre mister da
propaganda revolucionria, qu sobrar da aptido
humana para discernir entre verdade e mentira?
Gramsci , em suma, o profeta da imbecilidade, o guia
de hordas de imbecis para quem a verdade a mentira
e a mentira a verdade. Somente um outro imbecil como
Mussolini podia consider-lo "uma inteligncia
perigosa". O perigo que h nela o da malcia que
obscurece, no o da inteligncia que clareia; e a
malcia a contrafao simiesca da inteligncia. Mas
a reao de Mussolini significativa. H nela a
tpica inveja mrbida do brutamontes de direita pelo
intelectual esquerdista, sua sombra junguiana que ele
no compreende e que por isto mesmo lhe parece, por
suas habilidades vistosas, o prottipo mesmo da
inteligncia. A atrao mtua, como se v pelo
culto de Nelson Rodrigues entre os esquerdistas que
ele achincalhou como ningum. Entre a grossura

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

direitista e a pseudo-intelectualidade esquerdista, a


relao o amor-dio de um casamento sadomasoquista.
Casamento entre le genti dolorose / C'hanno perduto
il ben dello intelletto... Non ragioniam di lor, ma
guarda e passa.
Para quem quer que pense com a prpria cabea, as
teorias de Gramsci no apresentam o menor interesse,
tanto quanto no o apresentam as velhas escolas
cticas gregas, das quais o gramscismo uma reedio
mal atualizada. A refutao do ceticismo , como se
sabe, o primeiro teste do aprendiz de filsofo. Tal
como se refuta o ceticismo a negao de toda
certeza pela simples afirmao de que a negao
tambm incerta, o gramscismo igualmente no resiste
a um confronto consigo mesmo: tendo negado a
veracidade objetiva, ele se reduz a uma "expresso de
aspiraes". Tendo reduzido toda a cultura
propaganda, ele prprio se desmascara como mera
propaganda. No tem sequer a pretenso de ser
verdadeiro: nada pretende provar nem demonstrar; quer
apenas seduzir, induzir, conduzir. O tipo de
mentalidade que se interessa por pensamentos desse
gnero certamente imune a qualquer preocupao de
veracidade, mas movido por uma ambio insacivel
que o faz revolver sem descanso as trevas, numa
"ao" estril, nervosa, destrutiva, da qual promete
em vo fazer nascer um mundo. Por uma inevitvel e
trgica compensao, quanto menos um homem apto a
enxergar o mundo, mais assanhado fica de
transform-lo de transform-lo imagem e
semelhana da sua prpria escurido interior12.

Se nos perguntamos, agora, como foi possvel que uma


filosofia assim grosseira alcanasse no Brasil to
vasta audincia a ponto de inspirar o programa de um
partido poltico, a resposta deve levar em
considerao trs aspectos: primeiro, a predisposio
da intelectualidade brasileira; segundo, as condies
do momento; terceiro, a natureza mesma dessa
filosofia.
Ao longo da nossa histria intelectual, somente trs
correntes de pensamento lograram exercer uma
influncia duradoura e profunda sobre as camadas
intelectuais brasileiras: o positivismo de Augusto
Comte, o neotomismo de Leo XIII, o marxismo. O que
h de comum entre elas que no so propriamente

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

filosofias, mas programas de ao coletiva,


destinados a moldar ou remoldar o mundo segundo as
aspiraes de suas pocas e de seus mentores. O
positivismo parte da constatao de que a Revoluo
Francesa, derrubando as concepes crists, deixou
sua obra pela metade, na medida em que no ps no
lugar delas uma nova religio; o positivismo
constitui esta nova religio, com templo, calendrio
dos santos, ritual e tudo o mais; e as teorias
filosficas no so seno a sustentao do novo
Estado teocrtico que Comte pretende fundar. O
neotomismo a reao que, ao novo Estado teocrtico,
ope um apelo ao retorno do antigo, devidamente
revisto e atualizado. Finalmente, o marxismo o
programa de ao do movimento socialista. Nos trs,
as idias, as teorias, no tm um valor intrnseco
mas servem apenas como retaguardas psicolgicas da
ao prtica. Os trs no querem interpretar o mundo,
mas transform-lo. ( Cabe uma ressalva com relao ao
neotomismo: no confundi-lo com o tomismo, se por
esta palavra se entende a filosofia de Sto. Toms de
Aquino. O tomismo filosofia no sentido pleno; o
neotomismo , ao contrrio, um movimento cultural e
poltico ideolgico, em suma votado difuso
dessa filosofia, tomada como soluo pronta de todos
os problemas e, portanto, esvaziada de boa parte de
sua substncia filosfica. Afinal, tudo o que
neo-alguma-coisa , por definio, apenas uma nova
casca da qual essa coisa o miolo. Observaes
semelhantes poderiam fazer-se, com reservas, tambm
do positivismo e do marxismo: em ambos h na raiz
algo de filosofia autntica, sufocada pelo
desenvolvimento hipertrfico de um programa de ao
prtica, dela deduzido aos trambolhes. )
Filosofias que recuam da especulao teortica para a
proposio de aes prticas so filosofias da
decadncia; marcam as pocas em que os homens j no
conseguem compreender o mundo e passam a agitar-se
para escapar de um mundo incompreensvel. A sofstica
nasce, na Grcia, do fracasso das primeiras
especulaes cosmolgicas de Tales, Anaximandro,
Anaximenes, Parmnides e Herclito; incapaz de
resolver as contradies entre as teorias, ela
transfere o eixo das preocupaes humanas para a vida
prtica imediata: para a poltica do dia. Os sofistas
so professores de retrica, que ensinam aos jovens
polticos os meios de agir sobre as conscincias.
sofstica ope Scrates a dialtica e o ideal da
demonstrao apodctica que orientar os esforos

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

gregos em direo ao saber cientfico. Cinco sculos


mais tarde, aps o esquecimento das grandes snteses
teorticas de Plato e Aristteles, tornam-se
novamente dominantes as escolas praticistas: os
cnicos, os cirenaicos, os megricos e, em parte, os
esticos. E assim prossegue a histria do pensamento
Ocidental, numa pulsao entre o empenho da
compreenso teortica e a queda no ceticismo
praticista. O fundo comum de onde emergem o
positivismo, o marxismo e o neotomismo a dissoluo
do racionalismo clssico, levado a um beco sem sada
pela crtica kantiana e que tem no idealismo alemo o
seu canto de cisne. Positivismo, marxismo e
neotomismo so as filosofias de uma poca que no tem
filosofia nenhuma; de uma poca que anseia por
transformar o mundo na medida mesma em que incapaz
de desempenhar o esforo teortico necessrio para
compreend-lo.

Num texto clssico Crise da Filosofia Ocidental


( l874 ) , o filsofo russo Vladimir Soloviev previu
que a filosofia, como atividade intelectual
essencialmente individual, oposta ao pensamento
coletivo da religio e da cincia, estava em vias de
acabar, para ceder lugar a algo de totalmente
diferente. Ele esperava o advento de uma grande
sntese, mas o que se viu foi o advento do "sculo
das ideologias". Ora, o Brasil entra no curso
espiritual do mundo justamente no momento em que
Soloviev faz esse diagnstico: recebemos maciamente
o impacto das novas ideologias, antes de termos
podido vivenciar a tradio filosfica que as
antecedeu. Nosso contato com as fontes filosficas da
civilizao do Ocidente continuou superficial, ao
passo que nos entregvamos de corpo e alma s
retricas coletivistas. Passado mais de um sculo,
ainda no temos uma boa traduo de Aristteles, mas
publicamos, j na dcada de 60, as obras completas de
Antonio Gramsci.
De outro lado, toda tentativa nossa de penetrar mais
fundamente no campo da filosofia mesma ficou limitada
pela timidez, pela insegurana, que nos fazia
apegar-nos como crianas proteo de algum superego
estrangeiro da moda. Cinco dcadas de atividade
filosofante na USP foram resumidas no ttulo
acachapante do livro recm-publicado de Paulo
Arantes: Um Departamento Francs de Ultramar.
Escritrios de importao, representantes
autorizados, imitao, pedantismo, oscilao entre a

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

falsa conscincia e a conscincia de culpa marcam


todos os nossos esforos filosficos universitrios
no sentido de um pensamento independente. No fim, o
intelectual com pretenses filosficas s encontra
alvio quando desiste delas e recai no pensamento
coletivo; quando, abdicando de interpretar o mundo,
se alinha, contrito e obediente, numa das correntes
que professam transform-lo: as converses ao
catolicismo, ao comunismo e s ideologias
cientificistas originadas do positivismo constituem
independentemente dos motivos pessoais em cada caso
um melanclico ritornello na histria dos fracassos
das nossas ambies filosficas. A queda no
pensamento coletivo vivenciada como um retorno da
ovelha desgarrada, como uma libertao das culpas,
como um reencontro com a infncia perdida. Ao
reintegrar-se numa comunidade ideolgica o
ex-filsofo arrependido encontra ainda um alvio para
o isolamento que cerca o intelectual no meio
subdesenvolvido, e o ingresso no grupo solidrio
arremeda a descoberta de um "sentido da vida".
A intelectualidade brasileira estava, por todos esses
fatores, fundamente predisposta ao apelo gramsciano,
onde a vida intelectual deixa de ser o esforo
solitrio de quem cherche en gmissant, para
tornar-se a participao num "sentido da vida"
amparado pela solidariedade coletiva. O Partido s
vezes chamado por Gramsci "intelectual coletivo". o
abrigo dos fracos. A a ascenso ao estatuto de
intelectual barateada: j no custa a penosa
aquisio de conhecimentos, a investigao pessoal, a
luta direta com as incertezas. Obtm-se pelo contgio
passivo de crenas, de um vocabulrio comum, de
cacoetes distintivos13. A sociedade em torno legitima
a pardia: diante dessas marcas exteriores, o
brutamontes de direita acredita piamente estar na
presena de um intelectual. A mdia faz o resto.

O segundo fator, a situao do momento, pode-se


descrever mais ou menos assim: desde a derrota da
luta armada, a esquerda andava em busca de uma
estratgia pela qual se orientar. No sendo capaz de
criar uma nova e no encontrando no repertrio
mundial uma outra sua disposio, ela aderiu a
Gramsci quase por automatismo, sonambulicamente,
levada pela carncia de opes.

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

De fato, o comunismo internacional s teve, ao longo


de sua histria, um nmero pequeno de propostas
estratgicas. Marx no apresentou nenhuma. A primeira
que fez sucesso foi a de Lnin. Consistia na formao
de uma elite autonomeada, na tomada do poder por um
golpe sbito, na posterior converso forada do
proletariado a uma causa vencedora que se apresentava
como sua. A proposta de Lnin veio a predominar sobre
o socialismo evolucionrio de Edward Bernstein, o que
provocou o racha entre os partidos comunistas e a
social-democracia, que pregava a tomada do poder por
via pacfica, eleitoral e gradualista. Hoje em dia a
social-democracia a grande vencedora, dominando
toda a Europa; mas, no tempo de Lnin, sua rejeio
pelos comunistas parecia prenunciar o seu fracasso, o
que a queda de governos social-democratas ante o
avano do nazismo aparentemente confirmou. A terceira
grande estratgia foi a de Mao Ts-tung. Nas
condies da China, no havia um proletariado urbano
suficiente sequer para dar apoio moral guerra
revolucionria, e como, por outro lado, o exrcito
revolucionrio, banido dos grandes centros, acabasse
iniciando uma "grande marcha" pelos campos, o apoio
das populaes camponesas tornou-se fundamental, e
Mao teorizou a coisa a posteriori, transformando a
revoluo proletria em "guerra revolucionria
operrio-camponesa" o que teria provocado engulhos
em Karl Marx, que via nos camponeses uma horda de
reacionrios incurveis. Paralelamente, a submisso
do movimento comunista internacional aos interesses
da poltica exterior sovitica deu nascimento a uma
quarta estratgia, que encontrou sua mais clara
expresso no Front Popular, e que consistia
fundamentalmente numa aliana dos comunistas com os
"elementos progressistas" de todas as outras
correntes, direitistas inclusive. A, a pretexto de
antifascismo, at Benedetto Croce ficou simptico.
Finalmente, a quinta estratgia do movimento
comunista surgiu da revoluo cubana e da guerra do
Vietn. Sem um autor definido, resultando de enxertos
e mixagens de vrias provenincias, ela fundia, num
vasto plano de guerrilhas, o combate rural e o
urbano. Uma de suas verses foi a "teoria foquista"
difundida por um doido de nome Rgis Dbray, que
obteve ampla audincia na Amrica Latina e propunha,
para fazer face ao poder macio do imperialismo
norte-americano, a formao de variados e simultneos
"focos" de guerrilhas. A teoria resumia-se no slogan
ento pixado nos muros de todas as universidades:

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

"Um, dois, trs, muitos Vietns". Deu no que deu.


Dentre as muitas mixagens, uma particularmente
interessante foi a que fundiu a estratgia comunista
at a fundamentalmente proletria e camponesa, ao
menos no nome com as heresias de Herbert Marcuse,
segundo o qual proletrios e camponeses tinham-se
integrado ao "sistema" e a revoluo no tinha outros
representantes autorizados seno os estudantes e
intelectuais, de um lado, e, de outro, a massa dos
miserveis e marginalizados, o vasto
Lumpenproletariat, do qual o velho Karl Marx
aconselhava que os militantes comunistas fugissem
como se foge de um assaltante mo armada. Um dos
resultados locais deste enxerto foi que, aps a
derrota da luta armada, os militantes brasileiros
presos passaram a alimentar uma vaga esperana no
potencial revolucionrio do Lumpen, e, para adiantar
o expediente, trataram de ir ensinando tticas de
guerrilha aos bandidos com quem conviviam no presdio
da Ilha Grande. ( Mais tarde ainda, a fuso do
gramscismo com resduos do marcusismo transformaria
num dos pratos de resistncia do cardpio esquerdista
a defesa da legitimidade do banditismo como "protesto
social", que, formando polaridade com a onda de
combate moralista aos "colarinhos brancos",
estabeleceria uma dupla moral para o julgamento dos
crimes: brando para com o Lumpen, mesmo quando este
mata ou estupra, rigoroso para com os ricos e a
classe-mdia, quando cometem delitos contra o
patrimnio a mais curiosa inverso j observada na
histria da moralidade. )
Nessa resenha das estratgias comunistas, onde entra
o gramscismo? No entra. Ele ficou de fora, restrito
a crculos locais italianos, e s alcanou maior
difuso, mesmo na Itlia, aps a dcada de 50, com a
edio das obras completas de Gramsci por Einaudi. A
partir de l964, a faco comunista brasileira ainda
fiel orientao moscovita de aliana com a
burguesia acreditou ver em Gramsci um potencial
renovador desta estratgia, com a qual ele coincide
ao menos no que diz respeito ao carter eminentemente
no-sangrento da luta revolucionria e na cuidadosa
excluso de quaisquer radicalismos que pudessem
estreitar a base das colaboraes possveis.
Porta-voz dessa corrente, o editor nio Silveira
empreendeu ento a publicao ao menos das principais
obras de Gramsci: A Concepo Dialtica da Histria;
Maquiavel, a Poltica e o Estado Moderno; Os

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Intelectuais e a Organizao da Cultura; Literatura e


Vida Nacional e Cartas do Crcere.
Estas obras foram muito lidas, mas, numa atmosfera
dominada pela obsesso da luta armada, no exerceram
influncia prtica imediata. Seu potencial ficou
retido at a derrota da luta armada, que provocou,
como no poderia deixar de ser, um retorno
generalizado s teses do combate pacfico e
aliancista defendidas pelo PC pr-Moscou. O
reatamento do romance entre a esquerda armada e a
desarmada deu-se, naturalmente, sobre um fundo
musical orquestrado pelo maestro Antonio Gramsci.
Simplesmente no havia outro capaz de musicar esta
cena. A esquerda tornou-se gramsciana meio s tontas,
jogada pelo entrechoque dos acontecimentos, como
bolas de bilhar que, impelindo umas s outras, vo
dar todas enfim na caapa.
Agora, a imprensa brasileira acaba de descobrir, com
um atraso de dez anos, que o programa do PT
gramsciano. Mas, alm de tardia, esta descoberta
inexata: no s o PT que segue Gramsci: todos os
homens de esquerda neste pas o fazem h uma dcada,
sem se dar conta. O gramscismo domina a atmosfera por
simples ausncia de outras propostas e tambm por uma
razo especial: atuando menos no campo do combate
ideolgico expresso do que no da conquista do
subconsciente, ele se propaga por mero contgio de
modas e cacoetes mentais, de maneira que pe a seu
servio informal uma legio de pessoas que nunca
ouviram falar em Antonio Gramsci. O gramscismo conta
menos com a adeso formal de militantes do que com a
propagao epidmica de um novo "senso comum". Sua
facilidade de arregimentar colaboradores mais ou
menos inconscientes , por isto, simplesmente
prodigiosa.
Eis ai o terceiro fator a que me referi. O gramscismo
menos uma filosofia do que uma estratgia de ao
psicolgica, destinada a predispor o fundo do "senso
comum" a aceitar a nova tbua de critrios proposta
pelos comunistas, abandonando, como "burgueses",
valores e princpios milenares.
Que essa "filosofia", para se propagar, no conte
tanto com a persuaso racional como com a eficcia da
penetrao sutil no inconsciente das massas, o que
se v claramente pela sua nfase na conquista das
mentes infantis um terreno onde o avano da
esquerda vem causando um dano incalculvel a milhes

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

de crianas brasileiras, usadas como cobaias de uma


desastrosa experincia gramsciana. Que, enfim, essa
corrente haja alcanado sucesso no Brasil, algo que
testemunha a misria intelectual de um meio onde os
letrados, incapazes de suportar o isolamento, buscam
menos a verdade e o conhecimento do que uma
carteirinha de intelectual orgnico, que lhes garanta
o apoio psicolgico de um vasto grupo solidrio e os
aureole de um ambguo prestgio aos olhos dos
brutamontes de direita, sua mal disfarada paixo.
Isso no poderia acontecer seno aqui.

Adendos

1
O nmero dos adeptos conscientes e declarados do
gramscismo pequeno, mas isto no impede que ele
seja dominante. O gramscismo no um partido
poltico, que necessite de militantes inscritos e
eleitores fiis. um conjunto de atitudes mentais,
que pode estar presente em quem jamais ouviu falar de
Antonio Gramsci, e que coloca o indivduo numa
posio tal perante o mundo que ele passa a colaborar
com a estratgia gramsciana mesmo sem ter disto a
menor conscincia. Ningum entender o gramscismo se
no perceber que o seu nvel de atuao muito mais
profundo que o de qualquer estratgia esquerdista
concorrente. Nas demais estratgias, h objetivos
polticos determinados, a servio dos quais se
colocam vrios instrumentos, entre eles a propaganda.
A propaganda permanece, em todas elas, um meio
perfeitamente distinto dos fins. Por isto mesmo a
atuao do leninismo, ou do maoismo, sempre
delineada e visvel, mesmo quando na clandestinidade.
No gramscismo, ao contrrio, a propaganda no um
meio de realizar uma poltica: ela a poltica
mesma, a essncia da poltica, e, mais ainda, a
essncia de toda atividade mental humana. O
gramscismo transforma em propaganda tudo o que toca,
contamina de objetivos propagandsticos todas as
atividades culturais, inclusive as mais incuas em
aparncia. Nele, at simples giros de frase, estilos
de vestir ou de gesticular podem ter valor
propagandstico. esta onipresena da propaganda que

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o singulariza e lhe d uma fora que seus


adversrios, acostumados a medir a envergadura dos
movimentos polticos pelo nmero de adeptos
formalmente comprometidos, nem de longe podem
avaliar.
Um detalhe que assinala bem as diferenas a atitude
do gramscismo perante a arte engajada. Outras
estratgias exigem do artista que ele imprima s suas
obras um sentido poltico determinado, ou que, pelo
menos, sua viso do mundo, expressa em cada obra,
seja coerente com a interpretao marxista. A
literatura engajada do leninismo, do stalinismo ou do
maoismo, portanto uma coleo de obras das quais
cada uma, por si, uma pea de propaganda, com valor
autnomo. J no gramscismo o que interessa apenas o
efeito de conjunto da massa de obras literrias em
circulao. Esse efeito de conjunto deve tender
mudana do senso comum desejada pelo Partido, pouco
importando que cada obra, tomada isoladamente, nada
tenha de marxista ou seja mesmo destituda de
qualquer valor propagandstico.
Graas a isto, o julgamento gramsciano de cada obra
muito menos rgido e dogmtico que o de outras
correntes marxistas o que muito contribuiu para
elevar o seu prestgio entre intelectuais ansiosos
por conciliar seus ideais marxistas com seu desejo
pessoal de liberdade.

No gramscismo, qualquer obra literria pode


contribuir para a propaganda marxista, dependendo
apenas do contexto em que divulgada tal como num
jornal o teor das notcias tomadas individualmente
interessa menos do que sua localizao na pgina, ao
lado de outras notcias cujo efeito de conjunto
imprime um novo sentido a cada uma delas.
O objetivo primeiro do gramscismo muito amplo e
geral em seu escopo: nada de poltica, nada de
pregao revolucionria, apenas operar um giro de
cento e oitenta graus na cosmoviso do senso comum,
mudar os sentimentos morais, as reaes de base e o
senso das propores, sem o confronto ideolgico
direto que s faria excitar prematuramente
antagonismos indesejveis.
As mudanas a operadas podem ser, no entanto, muito
mais profundas e decisivas do que a mera adeso
consciente de um eleitorado s teses comunistas.
Mudanas de critrio moral, por exemplo, tm efeitos

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

explosivos. Essas mudanas podem ser induzidas


atravs da imprensa, sem qualquer ataque frontal e
explcito aos critrios admitidos. Um caso que
ilustra isto perfeitamente bem, e que demonstra o
alcance da estratgia gramsciana no Brasil, o do
noticirio sobre corrupo. A campanha pela tica na
Poltica no surgiu com um intuito moralizador, mas
como uma proposta poltica antiliberal. Numa
entrevista ao Jornal do Brasil, um dos fundadores da
campanha, Herbert de Souza, o Betinho, deixou isso
perfeitamente claro. A campanha surgiu numa reunio
de intelectuais de esquerda em busca de uma frmula
contra Collor, muito antes de que houvesse qualquer
denncia de corrupo no governo. Mais tarde, estas
denncias vieram a dar campanha uma fora
inesperada, trazendo para ela a adeso de massas de
classe-mdia moralista que, politicamente, teriam
tudo para se opor a qualquer proposta explicitamente
esquerdista. Ora, a campanha exerceu uma influncia
decisiva na direo do noticirio nos jornais e na
TV. Essa influncia foi tal que introduziu nos
julgamentos morais uma mudana profunda.
Impressionado pelo contedo escandaloso das notcias,
o pblico nem de longe reparou que a edio delas
subentendia essa mudana, que, conscientemente, ele
no aprovaria. Ela consistiu em fazer com que os
crimes contra o patrimnio pblico parecessem
infinitamente mais graves e revoltantes do que os
crimes contra a pessoa humana. P. C. Farias, um
trmulo estelionatrio incapaz de dar um pontap num
cachorro, era apresentado como um Al Capone, ao mesmo
tempo que se minimizava a gravidade do banditismo
armado. Se de um lado jornalistas de esquerda
promovem um ataque macio aos criminosos de colarinho
branco e de outro lado intelectuais de esquerda lutam
para que os chefes de bandos de assassinos armados
sejam reconhecidos como "lideranas populares"
legtimas, o efeito conjugado dessas duas operaes
bem ntido: atenuar a gravidade dos crimes contra a
pessoa, quando cometidos pela classe baixa e
aproveitveis politicamente pelas esquerdas, e
enfatizar a dos crimes contra o patrimnio, quando
cometidos por membros da classe dominante. Eis a a
luta de classes transformada em supremo critrio da
moral, desbancando o preceito milenar, arraigado no
senso comum, de que a vida um bem mais sagrado do
que o patrimnio.
Para que essas duas operaes ocorram
simultaneamente, produzindo um resultado unificado,

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

no preciso que emanem de um comando central


organizado. Basta que os intelectuais envolvidos numa
e noutra comunguem ainda que vagamente de um esprito
revolucionrio gramsciano, para que, numa espcie de
cumplicidade implcita, cada qual realize sua tarefa
e todos os resultados venham a convergir na direo
dos fins gramscianos. Isto no exclui, claro, a
hiptese de um comando unificado, mas, para o sucesso
da estratgia gramsciana, a unidade de comando, ao
menos ostensiva, bastante dispensvel na fase da
luta pela hegemonia.
interessante saber que, na Constituio do Estado
sovitico, o homicdio doloso era punido com apenas
dez anos de cadeia e os crimes contra a administrao
pblica sujeitavam o culpado pena de morte. Nem
poderia ser de outro modo, dado o pouco valor que, na
perspectiva marxista, tem a vida individual quando
no posta a servio da revoluo. Ora, o noticirio
sobre corrupo conseguiu introduzir na mente
brasileira o hbito de julgar as coisas segundo uma
escala moral sovitica; e o fez com muito mais
eficincia do que lograria em anos e anos de debates
explcitos. Uma vez explicitada, essa mudana seria
rejeitada com horror por um povo em que ainda so
vivos, no fundo, os sentimentos cristos. Introduzida
por baixo, como critrio subjacente, ela penetra s
ocultas no senso comum e o perverte at a raiz,
preparando-o para aceitar passivamente, no futuro,
aberraes maiores ainda, que venham a ser impostas
por um Estado socialista14.
A atuao espontnea, aparentemente inconexa, de
milhares de intelectuais no sentido gramsciano em
setores distintos da vida pblica, pode ser
facilmente dirigida para onde o deseja a revoluo
gramsciana, no sendo necessrio para isto nem mesmo
um oculto Comit Central de super-crebros a comandar
o conjunto da operao. Basta que uma cumplicidade
inicial se estabelea entre certos grupos, para que,
sobretudo na ausncia de qualquer confronto crtico
com outras correntes, o gramscismo avance como sobre
trilhos azeitados, na estrada que leva conquista da
hegemonia. Ele j penetrou fundo, por esse caminho,
na mentalidade brasileira. Quando um partido poltico
assume publicamente sua identidade gramsciana, que
a fase do combate informal a decisiva j est
para terminar, pois seus resultados foram atingidos.
Vai comear a luta pelo poder. O que marca esta nova
fase que todos os adversrios ideolgicos j foram

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

vencidos ou esto moribundos; nenhum outro discurso


ideolgico se ope ao gramscismo, e os adversrios
polticos que restam lhe do ainda maior reforo, na
medida em que, no possuindo alternativa mental,
pensam dentro dos quadros conceituais e valorativos
demarcados por ele e s podem combat-lo em nome dele
mesmo. Isto hegemonia.

2
Gramsci jura que leninista, mas como ele atribui a
Lnin algumas idias de sua prpria inveno das
quais Lnin nunca ouviu falar, as relaes entre
gramscismo e leninismo so um abacaxi que os
estudiosos buscam descascar revirando os textos com
uma pacincia de exegetas catlicos. Uma dessas
idias a de "hegemonia", central no gramscismo.
Gramsci diz que ela foi a "maior contribuio de
Lnin" estratgia marxista, mas o conceito de
hegemonia no aparece em parte alguma dos escritos de
Lnin. Alguns exegetas procuraram resolver o enigma
identificando a hegemonia com a ditadura do
proletariado, mas isto no d muito certo porque
Gramsci diz que uma classe s implanta uma ditadura
quando no tem a hegemonia. As relaes entre Gramsci
e Marx tambm so embrulhadas, como se v no uso do
termo "sociedade civil": para Marx, sociedade civil
o termo oposto e complementar do "Estado", e, logo,
se identifica com o reino das relaes econmicas, ou
infra-estrutura. Em Gramsci, a sociedade civil,
somada sociedade poltica ou Estado, compe a
superestrutura que se assenta sobre a base econmica.
Essas e outras dificuldades de interpretao do
pensamento de Gramsci decorrem, em parte, do carter
fragmentrio e disperso dos seus escritos. Talvez
elas possam ser resolvidas, mas o que realmente
espantoso que, alguns anos aps revelada ao mundo a
maaroca dos textos gramscianos, e antes mesmo que
algum srio exame produzisse uma interpretao
aceitvel do seu sentido, ela j fosse adotada como
norma diretiva por vrias organizaes, comeando a
produzir efeitos prticos sobre os quais ningum,
nessas condies, poderia ter o mnimo controle. Essa
adeso apressada a uma idia que mal se compreendeu
assinala uma tremenda irresponsabilidade poltica, um
desejo vido de atuar sobre a sociedade humana sem
medir as consequncias. claro que ningum adere a
Gramsci com outro propsito que no o de implantar o

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

comunismo em alguma parte do mundo. Mas, sendo o


gramscismo um pensamento obscuro e s vezes
incompreensvel, no h nenhum motivo para crer que
sua aplicao deva produzir nem mesmo esse resultado,
lamentvel o quanto seja. Pode acontecer, por
exemplo, que a estratgia gramsciana no gere outro
efeito alm de tornar os burgueses ateus, retirando
os freios que a religio impunha sua cobia e ao
seu maquiavelismo. Algo muito parecido aconteceu na
prpria terra de Gramsci: impossvel no haver
conexo entre a decadncia da f catlica e a
transformao da Itlia numa Sodoma capitalista. A
nova cultura materialista e gramsciana que dominou a
atmosfera intelectual italiana desde a dcada de 60
muito contribuiu para esse resultado; apenas, no se
v que vantagem os comunistas puderam tirar disso. Os
esquerdistas brasileiros deveriam pensar na
experincia italiana antes de atirar-se a aventuras
gramscianas que, na educao como na poltica, podem
levar a resultados to confusos quanto as idias que
as inspiram.

3
O termo "Estado tico" ele mesmo um dos primores de
ambiguidade que se encontram na mixrdia gramsciana.
Ora ele designa o Estado comunista, ora o Estado
capitalista avanado, ora qualquer Estado. De modo
mais geral, Gramsci denomina "tico" todo Estado que
procure elevar a psique e a moral de seus cidados ao
nvel atingido pelo "desenvolvimento das foras
produtivas", subentendendo-se que o Estado comunista
faz isto melhor do que ningum. A idia
intrinsecamente imoral: consiste em submeter a moral
s exigncias da economia. Se, por exemplo, um
determinado estgio do "desenvolvimento das foras
produtivas" requer que todos os habitantes de uma
regio sejam removidos para o outro extremo do pas,
como aconteceu muitas vezes na Unio Sovitica,
torna-se "tica" a conduta de um garoto que denuncie
o pai s autoridades por tentar fugir para uma cidade
prxima. A asquerosa admirao que os brasileiros vm
demonstrando nos ltimos tempos pelos irmos que
delatam irmos, pelas esposas que delatam maridos,
ndice de uma nova moralidade, inspirada em valores
gramscianos. No h dvida de que o novo critrio
"tico" no sentido gramsciano, isto , economicamente
til, j que a delao generalizada de pais, irmos,
maridos e amantes pode ressarcir alguns prejuzos

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

sofridos pelo Estado. Mas isto no atenua sua


imoralidade intrnseca.

415
Em cursos e conferncias, venho falando do gramscismo
petista desde 1987 pelo menos, para platias em que
no faltaram jornalistas. Mas a imprensa brasileira,
refratria a tudo quanto seja novo, s em 1994
informou ao pblico a inspirao gramsciana do
petismo, quando ela no era mais uma tendncia
latente e j se havia externalizado no programa
oficial do partido. O primeiro a dar o alarma foi
Gilberto Dimenstein, na Folha de S. Paulo, logo aps
a publicao deste livro que alis nem sei se ele
leu; mas limitava-se a mencionar o nome do idelogo
italiano, sem nada dizer do contedo de suas idias.
No teve a menor repercusso. Mais tarde li duas ou
trs frases alusivas a Gramsci, em outros jornais e
em Veja. Tudo muito sumrio, num tom de quem contasse
com a compreenso de uma platia versadssima em
gramscismo. o velho jogo-de-cena do histrionismo
brasileiro: dar por pressuposto que o ouvinte sabe do
que estamos falando um modo de induzi-lo a crer que
sabemos do que falamos. Na verdade, fora dos crculos
do petismo letrado, s sabem de Gramsci uns quantos
acadmicos, entre os quais Oliveiros da Silva
Ferreira, que defendeu uma tese sobre o assunto numa
USP carregada de odores gramscianos, na dcada de 60.
Gramsci continua esotrico, lido s em famlia, a
salvo de qualquer crtica exceto amigvel uma
crtica dos meios, conivente com os fins, numa
atmosfera de culto e devoo que raia a pura e
simples babaquice. Mas pelo mundo civilizado circulam
crticas devastadoras, que provavelmente jamais
chegaro ao conhecimento do pblico brasileiro.
Assinalo as de Roger Scruton16 e Alfredo Senz17, que
tomam o assunto por lados bem diferentes daquele que
abordo neste livro, mas chegam a concluses no menos
reprobatrias.
Devo apontar como exceo notvel, ainda que tardia,
um artigo de Mrcio Moreira Alves18. Ele resgata
parcialmente a honra da imprensa brasileira,
mostrando que h nela pelo menos um crebro capaz de
saber de Gramsci algo mais do que o nome e pelo menos
um reprter que no foge da notcia. Ele explica em
linhas gerais a estratgia gramsciana e o estado
presente de sua aplicao pela liderana petista,

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

levando concluso de que, em vez de criar uma


democracia como o partido promete, ela vai produzir
aqui a ditadura de uma capelinha de intelectuais.
lamentvel, apenas, que no reduzido espao de sua
coluna o sempre surpreendente Moreira Alves no
pudesse abranger assunto to vasto seno em
abreviatura pesadamente tcnica, de difcil
assimilao pelo pblico. O Globo deveria dar-lhe
duas pginas inteiras para trocar em midos os
ensinamentos ali contidos, talvez os mais importantes
e urgentes que a imprensa brasileira transmitiu ao
pblico nos ltimos anos.
Particularmente oportuna ali a observao de que o
programa mesmo do PT reconhece oficialmente, por
assim dizer a hegemonia da esquerda, principalmente
no campo cultural mas tambm na poltica, na medida
em que proclama o ingresso atual do Brasil num novo
"bloco histrico" ( sistema cerrado de relaes entre
a economia e a superestrutura cultural, moral e
jurdica ). digna da maior ateno, no programa do
PT, a parte referente "revoluo passiva". A
passagem ao novo "bloco histrico" ser feita pela
elite ativista com base no "consenso passivo" da
populao. Isto quer dizer, sumariamente, que o povo
no precisar manifestar seu apoio ao programa do PT
para que este se sinta autorizado a promover a
transformao revolucionria da sociedade. A simples
ausncia de reao hostil, para no dizer de
rebelio, ser interpretada como aprovao popular:
quem cala consente, em suma. A proposta de um
cinismo descarado. Ela investe o PT do direito divino
de agir em nome do povo sem precisar ouvi-lo, j que
o silncio se tornar aplauso. Durante sete dcadas o
silncio de um povo oprimido foi interpretado como
"aprovao passiva" pelo governo da URSS. Em
linguagem tcnica mas incisiva, Mrcio Moreira Alves
mostra que por esse caminho no se pode chegar a uma
democracia. Discordo dele s num ponto: ele acha que
a estratgia petista uma traio aos ideais de
Gramsci, e eu estou seguro de que ela a mais pura
encarnao do gramscismo universal19.
O mais lamentvel em toda essa histria que a massa
dos militantes do PT no tem a menor condio
intelectual de compreender as sutilezas da estratgia
gramsciana, e vai se deixando conduzir
sonambulicamente pelos guias iluminados, sem fazer
perguntas quanto verdadeira meta da jornada.

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

NOTAS
10. Para Karl Marx, aqueles que captam o sentido do
movimento da Histria e representam as "foras
progressistas" ficam ipso facto liberados de
qualquer dever com a "moral abstrata" da
burguesia; seu nico dever acelerar o devir
histrico em direo ao socialismo, pouco
importando os meios. Baseado nesse princpio,
Lnin codificou a moral partidria, onde o nico
dever servir ao partido. Esta moral, por sua
vez, deu origem ao Direito sovitico, que
colocava acima dos direitos humanos elementares
os deveres para com o Estado revolucionrio. A
delao de corruptos ou traidores, por exemplo,
era na Unio Sovitica uma obrigao bsica do
cidado. Mas no s na teoria que o comunismo
imoral. No Estado socialista, todos so
funcionrios pblicos, e basta isto para que a
corrupo se torne institucional. Na Unio
Sovitica ningum conseguia tirar um documento ou
consertar uma linha telefnica sem soltar
propinas: ao socializar a economia, socializa-se
a corrupo. A desonestidade desce das camadas
dominantes para corromper todo o povo. O mesmo
aconteceu na China, pas que ademais se
notabilizou por ser o maior distribuidor de
txicos deste planeta. A justificativa, na poca,
era que os txicos enfraqueceriam a "juventude
burguesa" e facilitariam o avano do socialismo,
sendo, portanto, benficos ao progresso humano.
As drogas s se tornaram um problema de escala
mundial graas ao comunismo chins, que, com
isto, se tornou culpado de um crime de genocdio
pelo qual, at hoje, ningum teve coragem de
acus-lo.

Ainda segundo a moral comunista, as pessoas


profundamente apegadas aos ideais burgueses so
doentes incorrigveis, devendo por isto ser
isoladas ou exterminadas. Sessenta milhes de
pessoas foram mortas, na Unio Sovitica, em nome
da reedificao da cultura e da personalidade. No
Camboja, o genocdio foi adotado como
procedimento normal e legtimo.

Foram os comunistas que, com base nas descobertas


de Pavlov, desenvolveram o sistema de lavagem
cerebral, para despersonalizar os prisioneiros e

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

lev-los a confessar crimes que no haviam


cometido.

Foi tambm o comunismo que instituiu o sistema de


romper sem aviso prvio acordos internacionais,
tratados de paz e compromissos comerciais,
institucionalizando no mundo o do gangsterismo
como norma de conduta diplomtica, depois copiado
por Hitler. Campos de concentrao e de
extermnio so tambm uma inveno comunista
imitada pelo nazismo.

O governo comunista da URSS criou o maior sistema


de espionagem interna de que se teve notcia na
histria humana, a KGB, e por meio dela tornou-se
o primeiro governo essencialmente policial do
mundo.

O comunismo foi ainda o primeiro regime a


instituir em escala continental a mentira
sistemtica como padro de ensino pblico, e a
falsificao da cincia como meio de controle da
opinio.

Que tudo isso possa ser um enorme tecido de


coincidncias, que no haja nenhuma conexo
intrnseca entre todos esses horrores e a
ideologia socialista, somente mais uma mentira
propagada por intelectuais ativistas cuja
formao marxista os tornou para sempre cnicos,
hipcritas e incapazes de qualquer sentimento
moral.

A participao intensa de intelectuais marxistas


na campanha pela "tica na Poltica" um sinal
seguro de que essa campanha no moralizar a
poltica, mas apenas politizar a tica,
tornando-a uma serva de objetivos intrinsecamente
imorais. Quem viver, ver. [ N. da 2 ed.. ]
Voltar
11. Exemplo caracterstico da mutao da escala
moral a campanha contra a Aids. mais do que
evidente que a liberao sexual favorece a
disseminao dessa doena. No entanto,
jornalistas e agitadores culturais do mundo todo
esto levando as pessoas a crer que o
conservadorismo moral, particularmente catlico,
o culpado pela difuso da Aids, na medida em
que se ope distribuio de camisinhas. Fazer

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

de um efeito desastroso da liberao sexual um


argumento contra a moral conservadora um truque
sofstico que s ocorreria a mentalidades
inteiramente perversas. Os liberacionistas do
com isso um exemplo horrendo de insensibilidade
moral, de hipocrisia cnica. Ocultar suas
prprias culpas por trs da acusao lanada a um
inocente um dos comportamentos mais baixos que
se podem conceber. Por outro lado, do ponto de
vista meramente prtico, a esperana no poder das
camisinhas uma insensatez, para dizer o mnimo.
Junto com ela vem a recusa de enxergar a parcela
de razo que tm os religiosos nessa questo.
Qual a taxa de Aids entre catlicos praticantes,
evanglicos, monges budistas, judeus ortodoxos,
mussulmanos devotos? praticamente nula. Uma
bela campanha moralista, por desagradvel que
fosse ( e para mim tambm o seria, pois
pessoalmente sou mais pela liberao ), faria
mais para conter o avano da Aids do que a
distribuio de trilhes de camisinhas. Neste
momento da histria, qualquer campanha moralista,
por boboca que nos parea, um empreendimento
digno de louvor, uma contribuio salvao da
espcie humana. Se amanh ou depois a populao
do Brasil aderir em peso aos Pentecostais, ao
Bispo Macedo ou Renovao Carismtica, a Aids
estar vencida entre ns. Isto uma obviedade
que s os intelectuais no enxergam. [ N. da 2
ed. ] Voltar
12. Querem um retrato moral de Antonio Gramsci?
Podem encontr-lo numa das fbulas que, da
priso, ele remetia para que fossem lidas sua
filha:

"Enquanto um menino dormia, um rato bebeu o leite


que a me lhe havia preparado. Quando o menino
acordou, ps-se a chorar porque no encontrou o
leite; a me, por seu lado, tambm chora. O rato
tem remorsos, bate a cabea contra a parede, mas
finalmente percebe que aquilo de nada serve.
Ento, corre cabra para conseguir mais leite.
Mas a cabra diz ao rato que s lhe dar leite se
tiver capim para comer. Ento, o rato vai at o
campo, mas o campo rido e no pode dar capim
se no for molhado antes. O rato vai fonte, mas
esta foi destruda pela guerra e a gua se perde;
preciso que o pedreiro conserte a fonte. O
pedreiro precisa das pedras, que o rato vai

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

buscar numa montanha, mas a montanha est toda


desmatada pelos especuladores. O rato conta toda
a histria e promete que o menino, quando
crescer, plantar novas rvores na montanha. E
assim a montanha dar as pedras, o pedreiro
refar a fonte, a fonte dar a gua, o campo dar
o capim, a cabra fornecer o leite e, finalmente,
o menino poder comer e no chorar mais." (
Laurana Lajolo, Antonio Gramsci. Uma Vida, trad.
Carlos Nelson Coutinho, So Paulo, Brasiliense,
1982. )

As fbulas sempre foram, ao longo dos tempos, um


depsito de smbolos portadores de um ensinamento
espiritual. Por meio delas, a criana tinha o
acesso ao conhecimento das possibilidades humanas
mais elevadas, e este conhecimento, tanto mais
potente porque cristalizado numa linguagem mgica
e alusiva, bastava para defender sua alma da
total imerso na banalidade esterilizante do meio
adulto. Elas representavam, assim, o fio de
continuidade do ncleo mais puro da alma humana
no meio da agitao alienante da "Histria".

Gramsci consegue aqui inverter a funo da


fbula, transformando-a num meio de ensinar
criana, com realismo literal, o processo de
produo capitalista - da matria-prima
comercializao - e para lhe inocular, de um s
golpe, o dio aos malditos especuladores e a
esperana na futura utopia socialista, onde "tudo
ser mais belo".

O que Gramsci fez com sua prpria filha, por que


no o faria com os filhos dos outros? preciso
que a pregao comunista atinja os crebros
enquanto ainda esto tenros e indefesos, e,
fechando-lhes o acesso a toda concepo de ordem
espiritual, os encerre para sempre no crculo de
ferro da mundanidade "histrica" ( v. adiante,
Cap. III ).

Gramsci revela aqui toda a mesquinhez da sua


concepo do mundo, onde a economia no s o
motor da Histria, mas o limite final do
horizonte humano.

Que um tipo desses possa ser objeto de culto


sentimentalista entre os militantes, isto mostra
que a ideologia comunista traz em seu bojo uma

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

perverso dos sentimentos, uma mutilao da alma


humana. preciso muito agitprop para fazer de
Gramsci um personagem digno de admirao. Mas
entre militantes esquerdistas j vi sujeitos
capazes de proferir toda sorte de blasfmias
contra a religio alheia terem tremeliques de
emoo religiosa ante o santo nome de Antnio
Gramsci. Essa sentimentalidade pseudo-religiosa
no um excesso de zelo: a essncia mesma do
gramscismo, que beatifica o mundano para abafar e
perverter o impulso religioso e transform-lo em
devoo partidria. Querem ver no que d?
Narrando a morte de Gramsci, a hagigrafa Laurana
Lajolo ( op. cit., p. 148 ) termina falando dos
cadernos "nos quais Antnio Gramsci havia
depositado, em sentido laico e historicista, a
imortalidade da sua alma, a possibilidade de
sobrevivncia intelectual na histria". S um
gramsciano roxo incapaz de enxergar o ridculo
que h em teologizar a esse ponto a fama
literria. Se a idia valesse, os imortais da
Academia j no seriam imortais figuradamente,
mas literalmente - e nossas preces pela vida
eterna no deveriam dirigir-se a Jesus Cristo, e
sim pessoa do sr. Josu Montello. [ N. da 2
ed. ] Voltar
13. O fenmeno da pseudo-intelectualidade um dos
traos mais marcantes do chamado Terceiro Mundo,
e ela, no o proletariado ou as massas
famintas, a base social dos movimentos
revolucionrios. Eric Hoffer, que examinou o
assunto com mais seriedade do que ningum,
explica esse fenmeno pelas condies peculiares
em que, nessa parte do globo, se deu, com a
reforma modernizadora empreendida pelas potncias
Ocidentais, a quebra do modo de vida
comunitrio-patriarcal. Escrevendo no comeo da
dcada de 50, e mencionando nomeadamente a sia,
ele fala em termos que se aplicam com preciso ao
Brasil de hoje: "Em toda a sia, antes do advento
da influncia Ocidental, o indivduo estava
integrado num grupo mais ou menos compacto - a
famlia patriarcal, o cl ou a tribo. Do
nascimento morte, sentia-se parte de um todo
eterno e contnuo. Jamais se sentia sozinho,
jamais se sentia perdido, jamais se via como um
pedao de vida flutuando numa eternidade de nada.
A influncia Ocidental [...] destruiu e corroeu a
maneira tradicional de vida. O resultado no foi

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

a emancipao, e sim o isolamento e o desamparo.


Um indivduo imaturo foi arrancado do calor e
segurana de uma existncia coletiva e deixado
rfo num mundo frio.

"O indivduo recm-surgido pode atingir algum


grau de estabilidade [...] somente quanto lhe
oferecem abundantes oportunidades de
auto-afirmao ou auto-realizao. Somente assim
ele poder adquirir a autoconfiana e auto-estima
[...]. Quando a autoconfiana e a auto-estima
parecem inatingveis, o indivduo em formao
torna-se uma entidade altamente explosiva. Tenta
obter uma impresso de confiana e de valor
abraando alguma verdade absoluta e
identificando-se com os atos espetaculares de um
lder ou de algum corpo coletivo - seja uma
nao, uma congregao, um partido ou um
movimento de massa.

" necessrio uma rara constelao de


circunstncias para que a transio de uma
existncia comunitria para a individual siga o
seu curso sem ser desviada ou invertida por
complicaes catastrficas. [...] O indivduo em
surgimento na Europa, no fim da Idade Mdia,
enxergou panoramas deslumbrantes de novos
continentes, de novas rotas de comrcio, de novos
conhecimentos. O ar estava carregado de novas
expectativas e havia a sensao de que o
indivduo por si s era capaz de qualquer
empreendimento. A mudana [...] produziu uma
exploso de vitalidade [...].

"Essa excepcional combinao de circunstncias


no estava presente na sia. Ali, ao invs de ser
estimulado por perspectivas deslumbrantes e
oportunidades jamais sonhadas, [ o indivduo ] se
viu enfrentando uma vida estagnada, debilitada, e
extraordinariamente pobre. um mundo onde a vida
humana a coisa mais abundante e barata. , alm
disso, um mundo analfabeto. [...]

"A minoria letrada , assim, impedida de adquirir


um senso de utilidade e de valor tomando parte no
mundo do trabalho, e condenada a uma vida de
pseudo-intelectuais tagarelas e cheios de pose.

"O extremista da sia hoje geralmente um homem


de certa instruo que tem horror ao trabalho

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

manual e um dio mortal pela ordem social que lhe


nega uma posio de comando. Todo estudante, todo
escriturrio e funcionrio menos graduado se
sente como um escolhido. essa gente palavrosa e
ftil que d o tom na sia. Vivendo vidas
estreis e inteis, no possuem autoconfiana e
auto-respeito, e anseiam pela iluso de peso e
importncia.

" principalmente a esses pseudo-intelectuais que


a Rssia comunista dirige seu apelo. Traz-lhes a
promessa de tornarem-se membros de uma elite
governante, a perspectiva de terem ao no
processo histrico e, com seu falatrio
doutrinrio, proporciona-lhes uma sensao de
peso e profundidade." ( Eric Hoffer, The Ordeal
of Change, London, Sidgwick & Jackson, 1952;
trad. brasileira de Sylvia Jatob, O Intelectual
e as Massas, Rio, Lidador, 1969, pp. 16 ss..) a
descrio exata da liderana petista. [ N. da 2a.
ed.. ] Voltar
14. A proposta do PT, de dar prmios aos cidados
que delatem casos de corrupo, seria repelida
com horror se apresentada uns anos atrs, quando
a corrupo no era menor mas os sentimentos
morais da populao brasileira conservavam uns
vestgios de normalidade porque ainda no tinham
sido corrompidos pela "campanha da tica". Hoje,
aceita com aplausos dos que no percebem nela
aquilo que ela verdadeiramente : a instaurao
do Estado policial em nome da moralidade, a
corrupo de todas as relaes humanas pela
universalizao da suspeita, o incentivo
espionagem de todos contra todos. Para que o
Estado no perca dinheiro, ser preciso que todos
os brasileiros percam a dignidade e o respeito
prprio, transformando-se em alcagetes
premiados. [ N. da 2 ed. ] Voltar
15. Escrito para a 2a. edio. Voltar
16. Roger Scruton, Thinkers of the New Left, Harlow
( Essex ), Longman, 1985. [ N. da 2a. ed. ]
Voltar
17. Alfredo Senz, s. J., "La estratgia atesta de
Antonio Gramsci", em Atesmo y Vigencia del
Pensamiento Catlico. Actas del Cuarto Congreso
Catolico Argentino de Filosofa, Crdoba,
Asociacin Catlica Interamericana de Filosofa,

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo II

1988, pp. 355-366. [ N. da 2a. ed.. ] Voltar


18. "A revoluo passiva", O Globo, 28 de junho de
1994. Voltar
19. H pensadores de quem a gente diverge com o
maior respeito. Entre os marxistas, esse para
mim o caso de um Adorno, de um Horkheimer, de um
Marcuse, ou mesmo de um Lukcs. Mas por Gramsci,
como o leitor j deve ter percebido, no consigo
sentir o menor respeito, porque ele no respeita
nada e se porta ante dois milnios de civilizao
com a petulncia dos ignorantes. Acho uma
babaquice ter ante um escritor qualquer uma
reverncia maior do que a que ele tem ante
Moiss, Jesus Cristo ou a Virgem Maria. Mas a
atmosfera de culto em torno do nome de Antonio
Gramsci to carregada de zelo, que acaba
inibindo por contgio inconsciente at os
melhores crebros, impedindo-os de chegar a uma
viso objetiva e crtica do pensamento de
Gramsci. [ N. da 2a. ed. ] Voltar

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo III

3a edio,
revista e aumentada.

III
A NOVA ERA E A REVOLUO CULTURAL

AS IDIAS de Capra e de Gramsci so puras fices,


mas nem por isto as semelhanas entre elas so mera
coincidncia. A simples listagem basta para por
mostra uma raiz comum:
1 - Ambas essas correntes so radicalmente
"historicistas" quer dizer: para elas, toda
"verdade" apenas a expresso do sentimento coletivo
de um determinado momento histrico. O que importa
no se esse sentimento coletivo capta uma verdade
objetivamente vlida, mas, ao contrrio, ele vale por
si como nico critrio do pensamento correto.
2 - Em ambas, o sujeito ativo do conhecimento no a

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo III

conscincia individual, mas a coletividade. Elas


divergem somente, na superfcie, quanto delimitao
desse mstico "sujeito coletivo": para Capra, "a
humanidade", ou, mais vagamente ainda, "ns" (
caracterstico dos doutrinrios da Nova Era, como
Capra ou Marilyn Ferguson, dirigir-se a um auditrio
universal na primeira pessoa do plural, de modo que
no sabemos se quem fala um Autor divino ocultando
sua supra-personalidade num plural majesttico, ou se
a autoconscincia coletiva da humanidade ). Para
Gramsci, o sujeito coletivo o "proletariado", ou,
mais propriamente, o conjunto dos intelectuais
orgnicos que o "representam", isto , o Partido.
3 - Ambas insistem menos em provar alguma tese do que
em induzir uma "mudana de percepo", uma virada
repentina que faa as pessoas sentirem as coisas de
um modo diferente. Com Capra e Gramsci ningum pode
discutir, tese por tese, demonstrao por
demonstrao: a converso tem de ser integral e
sbita, ou no se realiza jamais: capristas e
gramscistas so "convertidos" ou "renascidos", que
num determinado instante de suas vidas "viram a luz"
mediante uma rotao instantnea do eixo de sua
cosmoviso. O decisivo, em ambos os casos, no a
argumentao racional, mas uma adeso prvia,
volitiva ou sentimental: o sujeito "sente-se" de
repente, como um todo, identificado com a Nova Era ou
com a causa do proletariado, e em seguida passa a ver
os detalhes de acordo com o novo quadro de
referncia.
4 - Ambas so "revolues culturais". Pretendem
inaugurar um novo cenrio mental para a humanidade,
no qual todas as vises e opinies anteriores sero
implicitamente invalidadas como meras expresses
subjetivas de um tempo que passou. Como, de outro
lado, a nova cosmoviso tambm no se apresenta como
verdade objetivamente vlida e sim apenas como
expresso de um "novo tempo", j no se pode
confrontar as idias de hoje com as de antigamente
para saber quem tem razo: o critrio de veracidade
foi substitudo pelo da "atualidade", e como toda
poca atual para si mesma, cada qual constitui uma
unidade cerrada, com suas idias que s so vlidas
subjetivamente para ela. Plato tinha as idias do
"seu tempo"; ns temos a do "nosso tempo" cada um
na sua.
5 - A dimenso "tempo" assim absolutizada, reinando
sozinha num mundo de onde foi extirpado todo senso de

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo III

permanncia e de eternidade. Em Gramsci, a amputao


explcita; em Capra e na Nova Era em geral,
implcita e disfarada pela verborria mstica. Aps
essa cirurgia, a mente humana torna-se incapaz de
captar o que quer que seja das relaes ideais que,
para alm do real emprico, apontam para a esfera do
possvel, da infinitude, do universal. O emprico, o
fato consumado, o horizonte imediato das preocupaes
prticas pessoais ou coletivas torna-se o extremo
limite da viso humana. O "cosmos" de Capra e a
"Histria" de Gramsci so campnulas de chumbo que
prendem a imaginao humana num mundo pequeno,
artificialmente engrandecido pela retrica.
6 - Com o senso da eternidade e da universalidade,
vai embora tambm o senso da verdade, a capacidade
humana de distinguir o verdadeiro do falso,
substituda por um sentimento coletivo de "adequao"
ao "nosso tempo". A "supra-conscincia" da Nova Era e
o "intelectual coletivo" de Gramsci tm em comum a
mais absoluta falta de inteligncia. Para ambos vale
o que o jornalista Russel Chandler disse de um deles:
"A maior capacidade da mente humana a
sua habilidade de discriminar entre o
que verdadeiro e o que falso,
distinguir o que real do que
ilusrio ou aparente. Mas a
supraconscincia da Nova Era est
programada para ignorar essas
distines."
7 - Dissolve-se tambm a autoconscincia reflexiva e
crtica, pela qual o indivduo humano capaz de
sobrepor-se s iluses coletivas e julgar o seu
tempo. Fechado na redoma do momento histrico,
vedado ao indivduo enxergar para alm dele, exercer
os privilgios de uma inteligncia autnoma, ter
razo contra a opinio majoritria seja ela a
opinio conservadora do establishment ou o anseio
coletivo dos ambiciosos insatisfeitos.
8 - A depreciao da conscincia individual vem com a
negao do critrio da evidncia intuitiva como base
para julgar a verdade. Reduzida a seu aspecto
psicolgico, imanente, a intuio torna-se apenas uma
experincia interna como qualquer outra, incapaz de
evidncia apodctica. Confunde-se com o sentimento,
com o pressentimento, com a vaga impresso e com a
fantasia. Da a necessidade de um novo critrio, que
ser, na Nova Era, a fantasia mesma, adornada com o

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Captulo III

ttulo de intuio mstica, e na Revoluo Cultural


de Gramsci o sentimento coletivo do Partido, detentor
proftico do sentido da Histria.

As semelhanas so to substanciais que, perto delas,


as diferenas se tornam meramente adjetivas. A
filiao comum remonta, no mnimo, ao mito mais
querido da iluso moderna: o mito da Revoluo, do
"apocalipse terreno", que, num giro sbito de todas
as aparncias, transfigurar o mundo, inaugurando um
Cu na Terra. O mito da Revoluo a
cenoura-de-burro que h sculos mantm a humanidade
no encalo do comboio da Histria disparado em
direo a uma miragem, sem poder atingir outro
resultado seno a acelerao do devir, que, no
chegando a parte alguma, acaba sendo entronizado ele
mesmo como supremo objetivo da vida: o acontecer pelo
acontecer, a eternizao do fluxo das impresses, a
reduo do homem ao ser emprico preso a uma
girndola sem fim de "experincias" e "momentos"
atomsticos. Em termos orientais, que o linguajar da
Nova Era repete sem compreender-lhes o sentido, a
absolutizao da Maya, a priso eterna no crculo do
samsara.
Nem as idias de Capra nem as de Gramsci necessitam
de refutao. Sua interpretao ordenada e clara j
vale como refutao. O simples desejo de
compreend-las basta para exorciz-las. So idias
que s podem prosperar sob a proteo de uma nvoa de
ambiguidades, e s encontram terreno frtil nas almas
que anseiam por iluses lisonjeiras, em cujo colo
macio possam esquecer sua prpria misria, a misria
de toda vaidade.

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

3a edio,
revista e aumentada.

Apndice I.
As esquerdas e o crime
organizado

Comando Vermelho. A Histria Secreta do Crime


Organizado, de Carlos Amorim, um trabalho de valor
excepcional, cuja leitura se recomenda a todos os
brasileiros que se preocupem com o futuro deste pas.
Futuro do qual se pode ter um vislumbre pelas
palavras de William Lima da Silva, o "Professor",
fundador e guru do Comando Vermelho, citadas p.
255:
"Conseguimos aquilo que a guerrilha no
conseguiu: o apoio da populao carente. Vou
aos morros e vejo crianas com disposio,
fumando e vendendo baseado. Futuramente, elas

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

sero trs milhes de adolescentes, que mataro


vocs [ a polcia ] nas esquinas. J pensou o
que sero trs milhes de adolescentes e dez
milhes de desempregados em armas?"

A quem entenda isso como mera expresso de um delrio


megalmano, o livro de Carlos Amorim mostra que a
sinistra profecia j est em curso de realizao: o
Comando Vermelho no apenas domina dois quintos do
territrio do Grande Rio, desfrutando a o monoplio
dos sequestros, do comrcio de carros roubados, do
trfico de drogas, mas exerce tambm nessa rea
funes de governo, por meio do terror alternado com
lisonjas paternalistas, e tem ainda a liderana no
contrabando de armas pesadas, sendo hoje uma
organizao mais equipada do que a polcia ou mesmo
do que as guarnies locais do Exrcito. As
autoridades reconhecem que o poder da mfia dos
morros absolutamente incontrolvel, e ela
prossegue, de vitria em vitria, atordoando a
polcia, humilhando os governantes, e atribuindo s
suas operaes criminosas, para cmulo de
descaramento, o sentido pico de uma luta pela
libertao dos oprimidos.
No vou aqui resumir o livro, pois pretendo que o
leiam. Nas pginas que se seguem, concentrarei minhas
observaes antes no que me parece o seu nico ponto
fraco. No farei isto para depreciar os mritos da
obra, que so elevados, mas justamente para os
realar; pois essa lacuna, que est no diagnstico
das causas e origens profundas do crime organizado,
s poderia ser preenchida por uma investigao que
iria muito alm do seu escopo. O autor, de fato,
alude a algumas causas provveis, mas centraliza sua
ateno no fenmeno do Comando Vermelho como tal, sem
estender seu exame ao conjunto dos fatores histricos
que cercaram, propiciaram e finalmente determinaram o
seu surgimento. No se trata portanto de assinalar
aqui algum defeito do livro, mas de sugerir
investigaes suplementares que dariam matria para
outro livro, ou vrios.

Uma certeza o livro de Amorim parece deixar


definitivamente assentada: o Comando Vermelho nasceu
da convivncia entre criminosos comuns e ativistas
polticos dentro do presdio da Ilha Grande, entre os
anos de 1969 a 1978. Ali os militantes esquerdistas

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

ensinaram aos bandidos as tcnicas de guerrilha que


eles viriam a usar em suas operaes criminosas e os
princpios de organizao poltico-militar sobre os
quais viria a estruturar-se o Comando Vermelho, bem
como a fraseologia revolucionria com que o bando
hoje glamuriza suas faanhas.
O que no fica claro de maneira alguma o grau e a
natureza da participao das organizaes de esquerda
na criao do Comando Vermelho, a sua
responsabilidade histrica pela ecloso do fenmeno
que hoje aterroriza a populao carioca e pe em
risco a sobrevivncia da jovem e frgil democracia
brasileira.
Quanto a esse ponto, o autor se contradiz: sua
narrativa dos fatos aponta num sentido, suas opinies
no sentido contrrio. Eis uma dessas opinies:
"Os revolucionrios nunca pretenderam
ensinar criminosos a fazer guerrilhas. Em
mais de uma dcada de pesquisas, nunca
encontrei o menor indcio de que houvesse
uma inteno menos ainda uma estratgia
para envolver o crime na luta de
classes."

Logo, na interpretao do autor, os ensinamentos de


guerrilha teriam sido passados aos bandidos de uma
maneira natural, espontnea, impremeditada, ao sabor
de contatos fortuitos entre indivduos, e sem
qualquer responsabilidade das organizaes
esquerdistas.
Mas os fatos narrados pelo prprio Amorim desmentem
frontalmente essa interpretao. Sem chegarem a dar
respaldo tese policial que v no Comando Vermelho
uma extenso ou um recrudescimento da velha guerrilha
revolucionria, eles indicam, no entanto, que o que
se passou na Ilha Grande foi algo de bem mais
comprometedor do que simples conversas casuais.
Poderosos interesses vetam, hoje, uma investigao
mais profunda desses episdios. Os prisioneiros
polticos de ento tornaram-se gente importante,
deputados, ministros, procuradores, com poderes
suficientes para dissuadir qualquer olhar curioso que
se lance sobre um passado que eles preferem manter
protegido entre nvoas. No duvido que a ambiguidade
do prprio Amorim tenha brotado do prudente desejo de
evitar um confronto com essa gente, cujos partidrios
e simpatizantes exercem uma completa hegemonia sobre
o seu ambiente de trabalho: as redaes de jornais.
Da minha parte, porm, nada espero deles. No tempo em

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

que eram perseguidos polticos, ajudei-os o quanto


pude, escondendo foragidos e armas, redigindo e
distribuindo propaganda contra a ditadura, porque via
em seus rostos o emblema da verdade, hostilizada pela
mentira oficial. Hoje, que esto a um passo do poder,
j enxergo em seu semblante a mscara da hipocrisia,
que anuncia para breve, neste pas, um novo imprio
da falsidade. Todo sacerdcio converte-se, mais cedo
ou mais tarde, num culto de si mesmo: tendo outrora
servido verdade, eles hoje tomam o lugar dela no
altar de um culto degenerado
Investigar o sentido dos episdios da Ilha Grande
romper um tabu, violar o preceito consagrado
segundo o qual a maldade, a baixeza, a hipocrisia so
monoplio da direita.

A convivncia entre presos polticos e bandidos


comuns antiga no Brasil, reconhece Amorim. Vem
desde 1917, com as primeiras prises de agitadores
sindicalistas e anarquistas. Intensificou-se durante
e aps a rebelio comunista de 1935. Desde ento foi
constante e sistemtico o esforo dos comunistas para
doutrinar criminosos e enquadr-los na luta poltica.
Um dos lderes de 35, Gregrio Bezerra, conta em suas
memrias como "transformou guardas penitencirios e
bandidos em militantes comunistas". Durante os anos
do Estado Novo, conta Amorim, "o contato com
intelectuais, militares radicais, polticos e
sindicalistas fez a cabea de punguistas e escroques.
A partir dessa convivncia, muitos homens deixaram
para trs as carreiras no crime e optaram pela
militncia revolucionria".
Nada disso no entanto provocou a menor alterao de
conjunto no mundo do crime: "Nas ruas, o crime
continuava o mesmo: avulso, violento, desorganizado.
O fenmeno da conscientizao e o surgimento do
chamado crime organizado s vo aparecer na dcada de
70."
Houve portanto a a introduo de um fator novo, de
uma diferena especfica no tipo de influncia
exercido pelos militantes sobre os bandidos. Essa
diferena residiu essencialmente no contedo das
informaes transmitidas: em vez de simples
doutrinao ideolgica, os bandidos receberam
ensinamentos prticos, que puderam por em ao to

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

logo saram da cadeia. Que ensinamentos foram esses?


Primeiro, princpios de organizao, que incluam
desde a estrutura hierrquica e disciplinar do grupo
armado at sistemas de comunicao em cdigo.

Em seguida, tcnicas de propaganda ou agitprop, que


lhes permitiram transformar assaltos e sequestros em
espetculos de protesto "propaganda armada", no
jargo esquerdista , que ganham a simpatia ao menos
parcial da populao e da intelligentzia.
Terceiro, tticas de ao armada. Aqui a lista
grande. Dentre os procedimentos usados pela guerrilha
e copiados pelo Comando Vermelho, pode-se destacar os
seguintes:
1 - Realizao de assaltos simultneos em vrios
bancos, para desorientar a polcia.
2 - Com o mesmo objetivo, bombardear os postos
policiais com dezenas de alarmes falsos, no dia dos
assaltos planejados.
3 - No sair para uma operao armada sem deixar
montado um "posto mdico" para atender os feridos
( que antes os bandidos deixavam sua prpria sorte,
expondo-se delao por vingana ).
4 - Em caso de emergncia, invadir pequenas clnicas
particulares selecionadas de antemo, obrigando os
mdicos a dar atendimento aos feridos.
5 - Planejamento e organizao de sequestros.
6 - Designar para cada operao um "crtico", que no
participa da ao mas apenas observa e assinala os
erros para aperfeioar a ao seguinte.
7 - Planejar as aes armadas com exatido, de modo a
obter no mnimo de tempo o mximo de rendimento com o
mnimo derramamento de sangue. ( Hoje o Comando
Vermelho consuma em quatro ou cinco minutos um
assalto a banco. )
8 - Tcnicas para o bando retirar-se do local da ao
em tempo record, aproveitando-se da conformao das
ruas, do congestionamento, etc., ou provocando
deliberadamente acidentes de trnsito.
9 - Planejamento cuidadoso de todas as aes, segundo
o princpio de Carlos Marighela: "Somos fortes onde o
inimigo fraco. Ou seja: onde no somos esperados."

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

10 - Informao e contra-informao como base do


planejamento.
11 - Sistema de "aparelhos" casas compradas em
pontos estratgicos da cidade, para ocultar fugitivos
aps as operaes, guardar material blico etc.
O quarto e ltimo grupo de ensinamentos dizia
respeito seleo das melhores armas para cada tipo
de operao, e ainda fabricao de explosivos
apropriados para o uso na guerrilha urbana, como
coquetis-molotov com uma frmula especial preparada
por estudantes de Qumica e "bombas de fragmentao
com pregos acondicionados junto plvora e enxofre
num tubo de PVC ou numa lata do tamanho de uma
cerveja".
O conjunto forma um curso completo de guerrilha
urbana, apoiado ainda numa bibliografia
especializada, que inclua O Pequeno Manual do
Guerrilheiro Urbano, de Carlos Marighela, Guerra de
Guerrilhas, de Ch Guevara, e A Revoluo na
Revoluo, de Rgis Dbray, alm de A Guerrilha Vista
por Dentro, de Wilfred Burchett. Este ltimo apenas
uma reportagem feita no Vietn por um correspondente
de guerra ingls; mas entre os militantes era to
prezado quanto as obras de guerrilheiros
profissionais, e sua circulao chegou a ser proibida
no Brasil durante os governos militares, porque
"mostra como o vietcongue fabricava munio,
inclusive com uma frmula para se produzir plvora
caseira. Explica tambm como funcionava o sistema de
tneis para a fuga dos comandos guerrilheiros, com
iluminao a partir de geradores movidos a roda de
bicicleta. O livro fala ainda dos cdigos, do correio
baseado em bilhetes entregues de mo em mo, de
aldeia em aldeia. Um manual de guerra revolucionria
que contm longas explanaes de ttica e estratgia.
Enfim, dinamite pura". Rematavam a bibliografia
clssicos da literatura marxista Marx, Lnin e
obras menores de doutrinao.
Todos esses ensinamentos foram depois levados
prtica pelo Comando Vermelho, que demonstrou possuir
at mesmo um domnio mais extenso deles do que as
prprias organizaes guerrilheiras: "O crime
organizado foi muito alm do que a luta armada tinha
conseguido nos anos 70, tanto em matria de
infra-estrutura quanto na disciplina e organizao
internas". Como bem resumiu o assaltante de bancos

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

Vadinho ( Oswaldo da Silva Calil ), que viu tudo de


perto na Ilha Grande, "os alunos passaram a
professores".

Amorim opina enfaticamente que "no houve inteno"


de ensinar guerrilha aos bandidos, que a transmisso
desses ensinamentos se deu de maneira "involuntria",
em resultado espontneo do "convvio eventual nas
cadeias". Diante dos fatos narrados, difcil
acreditar nessa opinio, difcil mesmo admitir que
o prprio Amorim acredite nela. Mais sensato v-la
como uma concesso verbal: tendo ousado divulgar
fatos que so profundamente comprometedores para as
esquerdas, Amorim preferiu deixar que a narrativa
falasse por si, sem endossar pessoalmente a concluso
que ela impe. Manha de reprter, que com muita
prudncia teme mais as lnguas de seus colegas de
ofcio do que as balas do Comando Vermelho.
O que me faz interpretar as coisas desse modo a
desproporo entre a fora da narrativa e a timidez
dos argumentos em que Amorim sustenta sua opinio.
Qualquer principiante do jornalismo sabe que a
exposio dos fatos exerce sobre o leitor uma
influncia mais profunda do que a opinio expressa. A
verdadeira inteno de um jornal est na sua maneira
de selecionar e ordenar as notcias, e no no que ele
afirma nos editoriais. As cabeas dos reprteres
funcionam de modo anlogo: inteligncias antes
narrativas do que analticas, expressam-se mais
plenamente contando os fatos do que alinhando
argumentos.
O principal argumento que Amorim apresenta em defesa
de sua tese que, ao longo de doze anos, no
encontrou indcios ou provas "de uma inteno, menos
ainda de uma estratgia" no sentido de os militantes
ensinarem guerrilha aos bandidos.
O argumento destri-se a si mesmo. Em primeiro lugar,
no existe prova de inteno, a no ser a lgica
mesma do ato, pela qual das consequncias podemos
remontar s causas. Todo ato humano que no possa ser
explicado pela mera acidentalidade pressupe uma
inteno, e todo acidente , por definio,
momentneo: no existem acidentes continuados; a mera
casualidade no se prolonga, inalterada e uniforme,
ao longo dos anos, como um par de dados no prossegue

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

dando seis e seis incansavelmente ao longo das


rodadas. Qualquer ato reiterado , por si mesmo,
prova da sua inteno. Se um homem fica bbado uma
vez, duas vezes, pode ser sem inteno e por mero
efeito acumulado dos tragos mal medidos; mas se
quatro ou cinco vezes por semana o encontramos
virando novamente o copo at trocar as pernas, ser
preciso alguma outra "prova" para certificar que ele
teve inteno de se embriagar? Ora, a transmisso de
ensinamentos de guerrilha prosseguiu, na Ilha Grande,
por nada menos que nove anos. Que mais ser
necessrio para comprovar uma inteno?
Pode-se ver a coisa por um segundo ngulo. Uma
inteno nada mais do que a previso de uma
consequncia, somada ao desejo de provocar essa
consequncia. S podemos, portanto, supor ausncia de
inteno quando um homem no est em condies de
prever as consequncias de seu ato. Se um marido
furioso desfere um tabefe na esposa e a manda para o
hospital, podemos admitir que o brutamontes no mediu
sua fora; mas depois de uma longa srie de
internaes da infeliz, devemos supor que ele ainda
no avaliou corretamente a proporo entre o empuxe
da porrada e suas consequncias hospitalares, ou que
ele teve a inteno de desencadear precisamente essas
consequncias? Quanto aos nossos guerrilheiros, a
hiptese da ausncia de inteno pressupe que fossem
incapazes de atinar com o uso que os discpulos
fariam de seus ensinamentos. Se um deles, uma vez ou
outra, desse com a lngua nos dentes, poderia ser
coincidncia. Mas vrios deles transmitindo
informaes seguidamente ao longo dos anos, sem
jamais atinar com as consequncias do que faziam,
mais do que a credulidade humana pode admitir.
Provas externas s so necessrias quando a lgica
dos fatos no fala por si, quando nos fatos h algo
de ambguo que admite interpretaes variantes, o que
no o caso. Mas Amorim absolve os guerrilheiros
justamente com base na ausncia desse tipo de provas.
E acontece que mesmo estas no esto realmente
ausentes. Querem ver?
S existem no mundo trs tipos de provas: materiais,
documentais e testemunhais.
A prova material est l: a presena dos livros, dos
manuais de guerrilha nas mos dos bandidos prova de
que algum os entregou a eles. Entregar um livro
comprova, manifestamente, o intuito de transmitir

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

informaes, e de faz-lo de maneira mais completa do


que se poderia em meras conversas de ocasio.
Os livros citados por Amorim eram obras raras, de
tiragem limitada e circulao proibida, que s se
encontravam, quando se encontravam, nas mos de
militantes diretamente envolvidos nas organizaes da
esquerda armada. O de Rgis Dbray circulou num
volume impresso clandestinamente pela ala
marighelista do PC, e o de Guevara era uma apostila
mimeografada, de pouqussimos exemplares. Mesmo o de
Burchett ( Amorim escreve "Bulcher", mas a grafia
certa Burchett ), que saiu por uma editora
comercial ( Civilizao Brasileira ), teve tiragem
reduzida e logo foi apreendido, sobrando em
circulao uns poucos exemplares que os militantes de
esquerda disputavam a tapa. No eram, enfim, livros
de interesse geral, que se dessem a algum para ler
por mero passatempo, mas manuais de ensino tcnico,
dirigidos a um pblico especializado. Transmitir
esses livros aos bandidos algo mais do que
manifestar uma inteno de ensinar guerrilha:
realizar essa inteno.

Quanto a provas documentais que atestassem uma


deciso das organizaes de esquerda de promover o
ensino de guerrilhas, s poderiam consistir em atas
de reunies dos comits de presos polticos, que
declarassem formalmente essa inteno. Mas os
prisioneiros polticos teriam de ser doidos ou
suicidas para registrar uma deciso desse teor em
atas que certamente iriam parar nas mos da direo
do presdio mais dia menos dia. Alis eles nunca
fizeram ata de deciso nenhuma, pela mesmssima
razo. Se o historiador fosse hoje depender de atas
para estudar esse perodo, no teria sequer uma prova
de que os comits de presos polticos chegaram a
existir. Uma prova documental, no caso, no
exigvel. Presos polticos no fazem atas, tal como
no se fazem atas de uma reunio de meliantes para
planejar um assalto a banco. O argumento da falta de
provas no vale, portanto, para provas documentais.
Restam, ainda, as provas testemunhais. Estas so
ambguas. Amorim alis s cita duas. Vadinho afirma
que houve ensinamento. O ento prisioneiro poltico e
depois ( no governo Brizola ) diretor do mesmo
presdio da Ilha Grande, Jos Carlos Trtima ( hoje
procurador do Estado ), proclama que no:
" uma mentira essa histria de que os

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

presos comuns aprenderam como se organizar


e noes de guerrilha urbana com os presos
polticos. O contedo ideolgico deles
de tal forma individualista que de maneira
nenhuma poderiam absorver a proposta de
apoio coletivo... Repudio claramente
qualquer insinuao de que os presos
comuns foram formados pelos polticos.
Isso um mito veiculado pela direita."

O dr. Trtima , pelo visto, um desses devotos


esquerdistas, para quem a sentena " de direita!"
constitui, em si e por si, uma prova fulminante
contra qualquer argumento. Algo assim como o Roma
locuta, causa finita, um rtulo fatal que, colado a
uma idia, basta para invalid-la para todo o sempre.
Se ele no pensasse assim, teria procurado calar
melhor seu testemunho, citando fatos em vez de
dispensar-se de faz-lo, confiado na fora
exorcizante da frase mgica.
Pois, na verdade, o seu no um testemunho; um
parecer, uma opinio, que ope abominvel tese
direitista um argumento de probabilidade lgica:
individualistas ferrenhos no podem, em princpio,
absorver uma proposta de ao coletiva, ou pelo menos
muito pouco provvel que o faam.
De um ponto de vista hipottico e abstrato, devemos
dar razo ao dr. Trtima: a lei das probabilidades
est com ele. Mas, em primeiro lugar, estranho que
uma testemunha, chamada a mostrar a falsidade de uma
alegao, se limite a demonstrar sua improbabilidade.
Raciocinamos por probabilidades quando no temos
acesso aos fatos, quando, no sabendo o certo, s nos
resta conjeturar sensatamente. Testemunhas no
conjeturam: testemunhas narram.
Se passamos da conjetura para os fatos, a conversa
muda. Hipoteticamente, a absoro da proposta de
apoio coletivo pelos individualistas era de fato
improvvel; mas o prprio livro de Amorim mostra bem
claro que o improvvel se realizou: que no somente
os marginais absorveram a proposta, como tambm a
puseram em prtica com mais rigor, eficincia e
amplitude do que os prprios militantes polticos; e,
organizando-se melhor do que eles, chegaram ainda a
coordenar o "apoio coletivo" da populao pobre dos
morros cariocas, superando tudo o que em matria de
arregimentao popular os guerrilheiros haviam sequer
sonhado: "Os alunos tornaram-se professores."

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

De que vale o argumento de improbabilidade, diante da


prova do fato consumado? Diante desse fato, o que
vemos o argumento do dr. Trtima voltar-se a favor
da tese que ele enfaticamente repudia, contra a que
defende. Se era pouco provvel que os individualistas
anrquicos absorvessem a proposta de apoio coletivo
mesmo quando esta lhes fosse transmitida por hbeis e
solcitos professores de guerrilha, muito menor, para
no dizer nula, seria a probabilidade de que o
fizessem to-somente pelo esforo prprio e sem
nenhuma ajuda pedaggica. O esforo necessrio para
aprender sozinho significativamente maior do que o
requerido para seguir as lies de um bom professor.
Se, portanto, os individualistas desorganizados se
tornaram eficientes organizadores coletivos, o mrito
muito provavelmente no s deles, nem s deles a
culpa pelo tipo de coisa que vieram a organizar.
De passagem, a desastrada argumentao do dr. Trtima
derruba tambm as opinies do prprio Amorim em favor
do carter fortuito e impremeditado dos ensinamentos
de guerrilha. Se os bandidos comuns eram uns
individualistas anrquicos, como poderiam colocar em
boa ordem fragmentos de informao colhidos aqui e
ali em conversaes casuais, a ponto de compor com
eles uma tcnica racional apta a desenvolver-se em
amplas e notveis aplicaes prticas? Seria preciso
um QI fora do comum, mas mesmo gnios teriam alguma
dificuldade em aprender organizao to
desorganizadamente. Com toda a franqueza: pedir que
acreditemos que homens primitivos, brbaros,
indisciplinados e volveis conseguiram apreender os
complexos princpios de organizao poltico-militar
da guerrilha urbana to-somente ciscando aqui e ali
uns pedaos de conversas e depois transformar essa
maaroca informe numa tcnica de grande eficcia,
realmente fazer pouco da nossa inteligncia.
Contar com a credulidade alheia alis um vcio da
esquerda brasileira, adquirido nos anos que se
seguiram queda da ditadura. A revelao das
torturas, dos cadveres escondidos, confirmando
denncias que antes a opinio oficial desqualificava
como invencionices de agitadores, desmoralizou a
direita e elevou s alturas a credibilidade da
esquerda. Desde ento esta vem abusando do crdito
para nos fazer engolir patranhas e calnias de toda
sorte, sem outra garantia seno a de terem sido
proferidas por quem nos disse a verdade uma vez. At
quando as atrocidades da direita sero fiadoras das

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

mentiras da esquerda?
O que o dr. Trtima nos impinge como testemunho no
poderia mesmo valer nada, pois a "testemunha" saiu da
cadeia em 1971, antes, portanto, da fase decisiva de
formao do Comando Vermelho, sobre a qual ele sabe
s o que leu nos jornais, se que os leu. Isto alis
confirma o carter muito provavelmente calunioso de
insinuaes que o acusem de envolvimento pessoal no
ensino de guerrilha aos bandidos. Mas o fato de ele
estar inocente no o qualifica para inocentar outros,
dos quais nada sabe. Qual, no entanto, o esquerdista
brasileiro que recusar falar em pblico sobre um
assunto do qual ignora tudo, se o convite lhe servir
de ocasio para dar umas alfinetadas na "direita"?
Acreditar que o "testemunho" do dr. Trtima baste
para absolver algum alm dele mesmo exigiria que a
nossa f removesse montanhas. Destitudos da f,
faamos algo que, no Brasil de hoje, se tornou sinal
de impiedade: raciocinemos.
Raciocnio I - O livro de Carlos Amorim informa que
os militantes esquerdistas, uma vez encarcerados,
procuraram fortalecer a unidade disciplinar de suas
organizaes, para poderem resistir ao ambiente
hostil. De outro lado, o mesmo livro deseja que
acreditemos que homens assim afeitos a uma disciplina
espartana deixaram escapar, em amenas conversas
informais com os detentos comuns, todos os segredos
de tcnica militar e de organizao poltica que
constituam o sangue e os nervos da revoluo. Quer
que acreditemos que esses homens de ferro, capazes de
resistir tortura fsica e psicolgica para no
entregar nenhum segredo aos policiais, deram tudo aos
bandidos, de mo-beijada, por mera desateno; que de
conversa em conversa foram deixando vazar teoria
marxista, princpios de agitprop, tcnicas militares,
mtodos de organizao, enfim todo o conhecimento de
guerrilha urbana ento disponvel, sem jamais se dar
conta de que estavam ensinando guerrilha nem ter a
mais mnima inteno de faz-lo. Nunca ouvi uma coisa
mais doida na minha vida.
Raciocnio II Se, ao contrrio dos presos comuns,
individualistas anrquicos, os militantes eram
socializados, politizados e disciplinados, ento
certamente nada faziam de importante sem prvia
consulta ao "coletivo". Logo, das duas uma: ou a
transmisso de ensinamentos de guerrilha aos bandidos
foi autorizada pelo coletivo, ou foi feita em

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

flagrante desobedincia sua proibio. Nesta ltima


hiptese, devemos entender que, malgrado o alto grau
de politizao ali reinante, reinava tambm a mais
completa anarquia, de modo que o coletivo no
conseguia controlar as veleidades individuais de seus
membros e os deixava solta para que, como
verdadeiros individualistas anrquicos, fizesse cada
qual o que bem lhe desse na telha. claro que, neste
ltimo caso, os presos polticos no teriam podido
resistir s presses do ambiente nem muito menos
fazer, como disse o dr. Trtima, "que os bandidos se
acomodassem s nossas regras". Ento no h dvida:
transmitir aos bandidos ensinamentos de guerrilha no
pode ter sido uma deciso deixada ao arbtrio
individual. Amorim diz muito claro que, pelo menos a
partir de 1975, etapa decisiva na formao do Comando
Vermelho, as relaes entre presos comuns e presos
polticos no se davam de indivduo a indivduo, mas
de comit a comit.
Raciocnio III Se os livros, os manuais de
guerrilha, estavam proibidos de circular em todo o
territrio nacional, muito mais o estavam entre os
muros da priso. Introduzi-los ali e faz-los
circular, mesmo exclusivamente entre militantes, era
grande temeridade. Transferi-los a bandidos comuns,
gente isenta de qualquer compromisso ideolgico e de
toda confiabilidade moral, era certamente expor-se a
risco de delao, a no ser que houvesse um acordo
prvio entre o comit dos polticos e o dos presos
comuns, com previso de graves sanes contra os
faltosos. Hipteses contrrias, s h duas: ou os
presos polticos entregavam aos bandidos obras de Ch
Guevara e Carlos Marighela por mero descuido,
folgadamente como quem distribui a crianas
exemplares de Luluzinha e Tio Patinhas; ou ento os
presos comuns que tinham um organizadssimo servio
de espionagem capaz de burlar a vigilncia dos
polticos e surrupiar uns quantos exemplares das
obras explosivas ciosamente guardadas. Mas, se era
improvvel que militantes to descuidados
sobrevivessem na Ilha Grande, muito mais o seria que
os "individualistas" anrquicos lograssem montar um
servio de espionagem to eficiente.

O testemunho de Trtima e as opinies de Amorim,


portanto, caem por terra. O que fica de p a

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

narrativa de Amorim, a sustentar, com eloquncia


terrvel, a concluso que o autor no quis endossar
pessoalmente: ou os militantes de esquerda ensinaram
guerrilha aos bandidos com um propsito deliberado,
ou ento a aquisio desse conhecimento pelos lderes
do Comando Vermelho o mais prodigioso milagre de
absoro espontnea j registrado nos anais da
pedagogia universal. Deixo esta hiptese para os
adeptos da tese segundo a qual Deus brasileiro.
Quanto outra, resta discutir se o propsito dos
esquerdistas foi cooptar os bandidos para a luta
armada sob seu comando ou simplesmente o de vingar-se
pela derrota da guerrilha deixando para o governo
militar a semente do futuro tormento do banditismo
organizado. Pode ter sido uma mistura das duas
coisas. Alguns policiais apostam na primeira, jurando
que o Comando Vermelho uma extenso e
recrudescimento da guerrilha urbana, um novo brao
armado das esquerdas. Esta certeza tem o mesmo
fundamento daquela do dr. Trtima: uma opo
ideolgica prvia que faz ver tudo torto, ou trtimo.
Deixarei esta questo para outra oportunidade,
advertindo apenas que ela no pode ser resolvida pelo
mtodo das apostas sentimentais. Mas, qualquer que
tenha sido o caso, uma coisa certa: se os
militantes da esquerda armada treinaram
bandidos-guerrilheiros dentro da priso, os da
esquerda desarmada, fora dela, esto dando seguimento
coerente sua iniciativa, na medida em que ajudam o
Comando Vermelho a conquistar uma posio de fora
como "liderana popular" legitimada artificialmente,
e o integram assim na estratgia global da esquerda,
j no como fora militar, e sim poltica. Se os
jovens guerrilheiros de l968 no tinham uma
estratgia definida para aproveitar-se politicamente
do banditismo, os velhos polticos esquerdistas de
1994 esto lhes dando uma, retroativamente. No se
trata de uma ponte entre geraes: que estes
velhos, simplesmente, so aqueles jovens, adestrados
pelo tempo. Os jovens matavam e roubavam pela
revoluo; os velhos tiram dividendos polticos de
assaltos e homicdios praticados por outros.
Servem-se do banditismo duplamente: ao proteg-lo e
ao denunci-lo. No primeiro caso, ganham ou pelo
menos tencionam ganhar os votos da populao pobre,
que supem obediente ao Comando Vermelho; no segundo,
servem-se dele como pretexto para denunciar a
corrupo da sociedade capitalista. Alimentam o mal
para poder acus-lo, o que , sem exagero, o tipo da
malcia propriamente diablica, imitando o tinhoso no

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice I

seu duplo e inseparvel papel de tentador e acusador.


Se a idia de cooptar os bandidos para a luta armada
era uma fantasia insensata, se o desejo de vingar-se
da ditadura era uma pirraa juvenil, uma esquerda
mais madura e experiente est sabendo reaproveitar e
tirar vantagem poltica daquilo que, entre nvoas,
foi gerado na Ilha Grande. A quem poderia ser doce
esse fruto seno a quem, de olho no futuro, plantou a
sua semente?

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice II

3a. edio,
revista e aumentada.

Apndice II.
O Brasil do PT

A entrevista do terico do PT, Marco Aurlio Garcia,


no Jornal da Tarde de 12 de janeiro, mostra que, por
trs de uma tranquilizante fachada moderninha, esse
partido no tem nada a propor seno o bom e velho
comunismo.
l. Segundo o entrevistado, o governo do PT no ser
socialista. Os ingnuos tomam esta promessa como uma
garantia. Mas, prossegue Marco Aurlio, esse governo
ser uma "democracia popular" e constituir "um
aperfeioamento do capitalismo" com vistas a "um
horizonte socialista" um horizonte vago e
indistinto o bastante para no alarmar o eleitorado.

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice II

O que o eleitorado, novo e inculto, ignora por


completo que aperfeioar o capitalismo para chegar
ao socialismo no nenhuma proposta nova, mas sim a
nica estratgia de governo comunista que j existiu
e a nica que poderia existir, j que, segundo Marx,
o socialismo no pode ser implantado antes que o
capitalismo desenvolva suas potencialidades at o
esgotamento. A funo do governo de transio,
"democrtico-popular", acelerar esse esgotamento.
Na Rssia, essa fase intermediria chamou-se NEP,
Nova Poltica Econmica, implantada por Lnin logo
aps a tomada do poder pelos comunistas. Se o prprio
Lnin, subindo ao poder no bojo de uma revoluo
armada, no implantou logo o comunismo, e sim apenas
um "capitalismo aperfeioado", por que o PT haveria
de fazer mais, levado ao poder pela via gradual e
pacfica do gramscismo?
2. Marco Aurlio Garcia, prosseguindo na linha
tranquilizante, assegura que os empresrios nada
perdero e tero tudo a ganhar no Brasil petista: "Se
queremos desenvolver um grande mercado de massas,
claro que grande parte da burguesia vai tirar
proveito disso." Mas exatamente o que dizia Lnin:
no se pode fazer a transio para o socialismo sem
que, na passagem, a burguesia ganhe um bocado de
dinheiro com o incremento dos negcios. Nisto
consistiu precisamente a NEP. Mas no se pense que os
comunistas fiquem tristes com a sbita prosperidade
dos seus desafetos. Ao contrrio: acenando com a
promessa de ganhos rpidos, o governo comunista faz
trabalhar em favor da revoluo a cobia imediatista
dos burgueses, cumprindo a profecia de Lnin: "A
burguesia tece a corda com que ser enforcada." O
truque simples: com o progresso rpido do
capitalismo, cresce tambm rapidamente o
proletariado, base de apoio do governo comunista. To
logo esta base esteja firme para sustentar o governo
sem a ajuda dos burgueses, o governo puxa o lao. Em
seguida os burgueses mortos ou banidos so
substitudos em suas funes dirigentes por uma nova
classe de burocratas de origem proletria ao menos
nominal.
3. Garcia diz que o PT quer um "Estado forte", dotado
de "mecanismos de controle do Parlamento, da Justia,
do Tribunal de Contas e das estatais". Mas que diabo
isto seno o totalitarismo mais descarado? Nas
democracias, a autonomia dos trs poderes tem sido um
mecanismo confivel e suficiente para o controle do
poder. O que o PT advoga que dois desses poderes

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice II

sejam controlados por um terceiro, o Executivo, desde


o momento em que este caia nas mos do sr. Lus
Incio Lula da Silva. Nesta hiptese, dar na mesma
que o Executivo policie os outros dois poderes
diretamente, numa ditadura ostensiva, ou que o faa
por intermdio de organizaes autonomeadas
representantes da sociedade civil sindicatos, ONGs,
grupos de intelectuais, grmios estudantis e
controladas, por sua vez, pela faco poltica
dominante, isto , pelo PT: em ambos os casos, o que
teremos ser o crescimento hipertrfico do poder e
seu absoluto descontrole.
4. Interrogado sobre o destino que o governo petista
dar s Foras Armadas, Garcia responde, com toda a
clareza de quem diz exatamente o que pensa: mudar a
Constituio, para que as Foras Armadas deixem de
ter, entre suas atribuies, a de combater inimigos
internos, e passem a se incumbir exclusivamente da
defesa das fronteiras nacionais. Ora, mandadas para a
fronteira, desligadas do combate a inimigos internos,
as Foras Armadas estaro duplamente impedidas pela
obrigao constitucional e pela distncia de mover
um s dedo contra o crime organizado, que, sob
aplausos de uma certa intelectualidade esquerdista,
j domina um Estado da Federao. Se, ampliando o que
hoje acontece no Rio, uma aliana entre polticos e
delinquentes atear fogo ao pas inteiro, as Foras
Armadas nada podero fazer contra isso, porque
estaro, fiis ao dever constitucional, aquarteladas
num cafund amaznico, velando contra a iminente
invaso boliviana ou talvez dando nos marines uma
surra de fazer inveja ao vietcongue.
Mas ser estranho que um dirigente petista alimente
esse projeto insano, quando seu partido tambm tem,
entre seus principais quadros tericos, um tal sr.
Csar Benjamin, bigrafo-apologista do fundador do
Comando Vermelho? Recordemos: escrito com a ajuda
deste terico petista, o livro em que o quadrilheiro
William Lima da Silva faz a apologia do crime foi
publicado pela Editora Vozes, da esquerda catlica, e
lanado, com noite de autgrafos e muita badalao,
em cerimnia realizada na sede da ABI em 199l. Apesar
do que dispe o Art. 287 do Cdigo Penal, ningum foi
processado. Alguns vem em fatos como esse perigosos
sinais de ligaes entre as esquerdas e o crime
organizado. Se h ou no a uma aliana poltica
subterrnea, algo que s o tempo dir. Mas que as
esquerdas esto ligadas ao Comando Vermelho pelo

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice II

passado comum e por uma profunda afinidade


"espiritual" baseada no culto dos mesmos mitos e dos
mesmos rancores, coisa que est fora de dvida. E
como os senhores do crime no haveriam de sentir essa
afinidade como um verdadeiro reconforto, diante da
promessa petista de tirar do seu caminho o nico
obstculo que ainda pode inibir suas ambies?
A proposta petista de aumentar a dotao oramentaria
das Foras Armadas em troca de retirar delas a
responsabilidade pelo combate ao inimigo interno
puro suborno, em que o PT veste implicitamente a
carapua de inimigo interno. Se ainda existe
conscincia estratgica entre os militares, a
proposta indecente ser repelida.
5. Enfim, se Marco Aurlio Garcia procura aplacar o
temor ante o espectro comunista dizendo que o regime
petista no ser socialismo e sim "democracia
popular", tambm nisto no h novidade alguma: todos
os regimes comunistas se intitulavam "democracias
populares".
O PT, seguindo a lio de Hitler, no se d sequer o
trabalho de ocultar o que pretende fazer: anuncia
seus planos abertamente, contando com a certeza de
que o wishfulthinking popular dar s suas palavras
um sentido atenuado e inocente, sem enxergar qualquer
periculosidade mesmo nas ameaas mais explcitas.
Afinal, quanto mais assoberbado de males se encontra
um povo, mais ansioso fica de crer em alguma coisa e
menos disposto a encarar com realismo a iminncia de
males ainda maiores. Nessas horas, a maneira mais
segura de ocultar uma inteno maligna proclam-la
cinicamente, para que, tomada como inverossmil em
seu sentido literal, seja interpretada
metaforicamente e aceita por todos com aquela
benevolncia compulsiva que nasce do medo de ter
medo. Quando Hitler prometeu dar um fim aos judeus,
tambm foi interpretado em sentido metafrico.
A predisposio da opinio pblica para no enxergar
o risco evidente nasce, por um lado, da prpria
hegemonia que as ideologias de esquerda exercem sobre
o nosso panorama cultural, impondo viseiras
psicolgicas mesmo a pessoas que, politicamente,
divergem da esquerda. A poltica apenas uma
superfcie da vida social, e de nada adianta divergir
na superfcie se, no fundo nas convices morais,
nos sentimentos bsicos, nas atitudes vitais
elementares copiamos servilmente o figurino mental

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice II

do adversrio.
Nasce, por outro lado, da iluso de que o comunismo
est morto. um excesso de ingenuidade ou, talvez,
medo de ter medo supor que o fracasso do comunismo
no Leste europeu liquidou de vez as ambies dos
comunistas em toda parte. O ressentimento move
montanhas, dizia Nietzsche. Particularmente no
Brasil, muito profunda nas esquerdas a aspirao
mtica de alcanar uma vitria local que, pelo seu
prprio carter inesperado e tardio, possa resgatar a
honra do movimento comunista humilhado em todo o
mundo. Permitir que o PT realize seus planos de
"democracia popular", sob o pretexto de que o
comunismo um cavalo morto, arriscar-se a um coice
que provar a vitalidade do defunto.
Ademais, o movimento das idias no Brasil no
acompanha pari passu a evoluo do mundo, mas fica
sempre atrs. Em 1930, quando o positivismo de
Augusto Comte j era pea de museu no seu pas de
origem, uma revoluo tomou o poder no Brasil
inspirada no modelo positivista do Estado. O
espiritismo, moda europia que morreu por volta da
Primeira Guerra sem nunca mais reencarnar, ainda no
Brasil quase uma religio oficial. Nossos
intelectuais ainda esto empenhados no combate ao
lusitanismo em literatura, quase um sculo depois de
rompido o intercmbio literrio entre Brasil e
Portugal. As velhas religies africanas, que os
negros de todo o mundo vo abandonando para aderir ao
islamismo, aqui vo conquistando novas massas de
crentes entre os brancos. Enfim, o tempo nesta parte
do mundo corre ao contrrio. Por que o comunismo,
morto ou moribundo em toda parte, no poder
ressurgir neste pas, fiel ao atraso crnico do nosso
calendrio mental? Pelo menos o que nos promete a
entrevista de Marco Aurlio Garcia: se depender dele,
no falharemos em nossa misso csmica de coletores
do lixo refugado pela Histria.
Homens de formao arraigadamente marxista,
insensveis durante toda uma vida a quaisquer outras
correntes de idias, simplesmente no podem, no breve
prazo decorrido desde a queda do Muro de Berlim, ter
feito uma reviso profunda e sria de suas
convices. Mudanas, se houve, foram epidrmicas,
para no dizer simuladas. A fora atrativa do
messianismo comunista no acabou: refluiu para a
obscuridade, de onde, vitalizada pelo apelo

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice II

nostlgico e pela nsia de um renouveau


transfigurador, est pronta a ressurgir ao menor
sinal de uma oportunidade. Declaraes improvisadas
de arrependimento nada significam, sobretudo em
homens que, habituados por uma praxe do cerimonial
comunista a utilizar-se de rituais de "autocrtica"
como instrumentos de sobrevivncia poltica, acabaram
por assimilar profundamente o vcio da linguagem
dplice, a ponto de torn-la uma segunda natureza. Um
sculo de histria do comunismo prova que nada iguala
a capacidade da esquerda de tapar os prprios ouvidos
verdade, seno a sua habilidade de desviar dela os
olhos alheios. A pressa mesma com que alguns prceres
comunistas compareceram ante as cmeras de TV para
declarar a falncia do comunismo suspeita, uma vez
que em nenhum deles a desiluso foi profunda a ponto
de faz-lo desejar abandonar a poltica. Do dia para
a noite, desvestiram a camisa sovitica, vestiram um
modelito novo, e sem mais delonga reapareceram,
prontos para outra, com o maior vigor e animao,
discursando com aquela certeza, com aquela segurana
de quem jamais tivesse sido desmentido pelos fatos.
Acredite nessa gente quem quiser.
Da minha parte, no duvido de todos os comunistas.
Acredito em Antonio Gramsci, quando diz que o Partido
o novo "Prncipe" de Maquiavel, e acredito em
Bertolt Brecht, quando diz que para um comunista a
verdade e a mentira so apenas instrumentos, ambos
igualmente teis prtica da nica virtude que
conta, que a de lutar pelo comunismo.

Nota
Aos que, lido este apndice, enxergarem no autor um
hidrfobo antipetista, advirto que votei em Lula para
presidente e o faria de novo, com prazer, se ele
tomasse as seguintes providncias:

l. Banir do seu partido o elenco de vedettes


intelectuais que, formadas numa atmosfera marxista, e
apegadas a ela como um beb saia da me, insistem
em manter aprisionado nela o movimento socialista que
anseia por novas idias. Exorcizar de vez os
fantasmas de Marx, Lnin, Dbray, Althusser, Gramsci
e tutti quanti, e permitir que a idia socialista
cresa livre de gurus e totens. Quando Lula diz que
nossas elites viveram "com os olhos voltados para a
Frana e a bunda voltada para o Brasil", no percebe

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Apndice II

ele que isso uma descrio exata da elite


intelectual petista, e esquerdista em geral?
2. Reprimir o uso de tticas de movimento clandestino
e revolucionrio, que so indecentes num partido que
professa conviver democraticamente com outros
partidos num Estado de direito. Infiltrao,
espionagem, delao, boicote moral podem ser
necessrios e inevitveis a um movimento de oposio
que queira sobreviver numa ditadura. Em regime de
liberdade, so prticas intolerveis, principalmente
em polticos que posam de professores de tica.
Quando os apstolos da tica citam como um exemplo
para o Brasil o que os americanos fizeram com Nixon
aps o caso Watergate, esquecem de dizer que Nixon
no caiu por causa de um desvio de verbas, mas por
causa da prtica de espionagem. Se a corrupo um
crime, a espionagem um ato de guerra, que destri,
pela base, o edifcio democrtico.
Lula um homem decente e, como disse Francisco
Weffort, algum maior do que o seu partido. Se ele
se utilizar da tremenda fora do seu prestgio para
exterminar esses dois vcios, o marxismo e o
clandestinismo, o Partido dos Trabalhadores se
transformar naquilo que seu nome promete, deixando
de ser apenas o partido da nostalgia comunista.

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Observaes finais

3a edio,
revista e aumentada.

Observaes finais

Expondo em conferncias as idias que depois viria a


registrar neste livro, muitas vezes recebi dos
ouvintes a exigncia de uma "definio poltica".
Sentiam-se desconfortveis ante um interlocutor sem
filiao identificvel, algo assim como um UFO
ideolgico, e desejavam saber com quem estavam
falando.
Minha resposta, invariavelmente, tem sido a seguinte:
O pressuposto dessa exigncia que no se pode
criticar uma ideologia seno em nome de uma outra
ideologia, dentre as reconhecidas no catlogo do
momento. Esse pressuposto, por sua vez, funda-se num
preconceito meio historicista, meio sociologista,
segundo o qual todo pensamento individual apenas

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Observaes finais

"expresso" de algum anseio coletivo, e deve a este


sua validade. Em oposio a este preconceito e quele
pressuposto, estou profundamente convicto de que
somente o pensamento do indivduo como tal pode ter
validade objetiva, pois no h verdade seno para a
conscincia reflexiva, que s existe no indivduo. As
correntes de pensamento coletivas apenas manifestam
desejos, anseios, temores, e jamais se levantam ao
nvel de autoconscincia crtica no qual a distino
entre verdade e falsidade pode ter algum sentido.
Somente a autoconscincia do indivduo pode captar
essa distino, ascender esfera dos juzos
universalmente vlidos e da veracidade objetiva.
Logo, ela quem juiz do pensamento coletivo.
A monstruosa inverso que submete o juzo da
conscincia individual ao critrio das ideologias
coletivas provm de uma mutilao da mente moderna,
incapaz de atinar com alguma "universalidade" que no
seja meramente quantitativa, reduzida portanto
"generalidade" e, em ltima anlise, validao
puramente estatstica. Como, de outro lado, toda
prova estatstica pressupe a validade universal das
leis da aritmtica elementar, cujo fundamento a
evidncia apodctica somente acessvel conscincia
individual, o primado do pensamento coletivo repousa
numa autocontradio pela qual nega sua prpria
validade.
Para piorar ainda mais as coisas, o pensamento
coletivista, no tendo acesso esfera da validade
objetiva, logo perde toda referncia ao "objeto" como
tal e se fecha num subjetivismo coletivo: da
estatstica dos "fatos" camos para a estatstica das
"opinies", e a contagem dos votos se torna o supremo
critrio da veracidade. Este processo, que se inicia
na esfera da poltica, termina por contaminar a
cincia mesma, onde hoje em dia ouvimos apelos
generalizados em favor da aceitao de critrios
puramente retricos de argumentao como fundamentos
legtimos da credibilidade cienttica. O marketing,
em suma, elevado a cincia suprema, modelo e juiz
de todas as outras cincias.
Ou aceitamos esse resultado, ou devemos negar pela
raiz o primado do pensamento coletivo, restaurando a
conscincia individual no posto de dignidade que lhe
cabe. E, neste caso, deveremos admitir que o
indivduo humano possa elevar-se acima das ideologias
e julg-las, contanto que no o faa em nome de um
protesto pessoal e subjetivo, mas em nome da

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Observaes finais

veracidade universal e apodctica, da qual ele, com


todas as suas fraquezas, com todos os seus
condicionamentos limitantes, continua, afinal, o
nico representante sobre a Terra.
No sculo XX, a conscincia individual sofreu, das
pseudocincias emergentes, os mais violentos ataques,
que pretenderam neg-la, reduzi-la a um epifenmeno
dos papis sociais introjetados, a uma projeo do
instinto de sobrevivncia, a uma fico gramatical, a
mil e uma formas do falso e do ilusrio. De outro
lado, no campo das tcnicas psicolgicas, nunca se
investiu tanto na busca de meios para subjugar a
conscincia individual, quebrar sua autonomia,
for-la a repetir mecanicamente o discurso coletivo.
Se o nosso o sculo do marxismo, da psicanlise, do
estruturalismo, tambm o da hipnose, o das tcnicas
de influncia subliminar, o da lavagem cerebral, o da
"modificao de comportamento" e o da Programao
Neurolingustica. Se, por um lado, tudo se faz para
demonstrar teoricamente a inanidade da conscincia
individual, de outro lado no se poupam esforos para
reprimi-la e subjug-la. Ora, estas duas sries de
fatos, quando confrontadas, sugerem uma pergunta:
para que tanto empenho em derrotar na prtica algo
que, em teoria, no existe? Se o cavalo est morto,
para que aoit-lo com tanta fria?
Este als o tema de um livro que estou preparando,
A Alienao da Conscincia. uma resenha dos ataques
tericos e prticos dirigidos pelas doutrinas
pseudocientficas, em aliana com os governos
totalitrios ou com o establishment tecnocrtico,
contra a autonomia da conscincia individual. Foi
este estudo, precisamente, que me levou rejeio
completa e taxativa de todo pensamento ideolgico.
No me perguntem, portanto, em nome de que ideologia
combato esta ou aquela ideologia. Combato-a desde um
plano que no acessvel ao pensamento ideolgico, e
que s existe para a autoconscincia individual,
quando firmemente decidida a no abdicar de seu
direito e de seu dever verdade e
universalidade. Em consequncia, tambm no me dirijo
a ouvintes e leitores enquanto representantes desta
ou daquela faco ou grupo, mas enquanto portadores
de uma inteligncia universalmente vlida, capaz de
sobrepor-se ao discurso de faces e grupos e
julg-lo objetivamente. No converso com fantoches
coletivos, mas com seres humanos, investidos da
dignidade suprema da autoconscincia, que os torna

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A Nova Era e a Revoluo Cultural - Observaes finais

imagens de Deus. Se, enquanto apegada identidade


biolgica e sujeita portanto iluso passional, a
conscincia do indivduo pura Maya, por outro lado
somente o indivduo, e no o aglomerado estatstico
das coletividades, que pode ascender ao plano da
universalidade onde lcito dizer: Eu sou Brahman.
Rio, maro de 1994.

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