Metafísica Da Guerra - Julius Evola

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METAFSICA DA GUERRA

Julius Evola

Introduo Captulo I - Das Formas do Herosmo Guerreiro Captulo II A Sacralidade da Guerra Captulo III O Significado das Cruzadas Captulo IV A Guerra Maior e a Guerra Menor Captulo V Metafsica da Guerra

Introduo "Noi vogliamo glorificare la guerra, sola igene del mondo, il militarismo, il pattriottismo, il gesto distruttore dei libertari, le belle idee per cui si muore." - Marinetti Trazemos ao leitor brasileiro este pequeno ensaio do vate metafsico Julius Evola, destacado pintor, escritor, cientista poltico e estudioso das cincias sapienciais do Oriente e Ocidente. Os pacifistas, diante de todo aquele que defende os valores superiores da guerra, costumam argumentar que esses valores so defendidos apenas por idelogos", sofistas e por gente que nunca sentiu o pssimo cheiro das trincheiras. Este argumento no pode ser aplicado a Evola, pois o Baro foi condecorado por bravura devido a seus feitos durante a I Guerra Mundial, quando combateu no posto de cabo. A foto que ilustra a capa deste ensaio do prprio Evola, tirada durante os combates travados nas trincheiras italianas. Influenciado pelo futurismo, que sacrificou diversos dos seus durante a I Guerra, mas alm da anlise superficial dos futuristas no que tange ao valor da guerra, possvel notar a profunda compreenso espiritual de Evola sobre o ascetismo . Nos dias de hoje, tanto pela influncia do ascetismo cristo ocidental1, como dos diversos pasccios orientais que apresentam apenas uma forma muito rasteira das tradies orientais, anlises sobre um ascetismo restrito contemplao religiosa e piedade (muitas vezes a falsa piedade), so sobrepostas sobre a verdadeira viso sobre ascetismo - que engloba tanto o ascetismo brahmnico, contemplativo, como o ascetismo do guerreiro, de natureza ksatria, ativo e lutador. E, por fim, a unio das duas naturezas numa s forma - da natureza contemplativa dentro da ao guerreira e da ao guerreira dentro da natureza contemplativa. Num espao sucinto e de forma muito clara, o Baro desmonta os mitos modernos que contestam o caminho da realizao espiritual atravs da guerra, isto , do caminho ao supra humano atravs da guerra. Particularmente, consideramos a leitura deste ensaio uma excelente introduo para outra obra do Baro, La dottrina del risveglio (A Doutrina do Despertar, ainda sem traduo para o portugus), dedicada natureza guerreira do ascetismo dentro do budismo ariano. Infelizmente, quase todas as tradies tiveram seu ascetismo seqestrado2 por uma pacvia pacifista, afetada a uma falsa noo de piedade.

Trataremos sobre isso em futuros artigos no Grupo de Ur. Por enquanto, podemos dizer que isso fruto da influncia excessiva no Ocidente de Santo Agostinho e, mais recentemente, de msticas como Santa Catarina de Sena e Santa Teresinha do Menino Jesus, que transformaram a via espiritual em algo muito pouco atrativo aos de natureza solar e guerreira, pois suas vidas espirituais no passam de um amor ertico, atravs de uma vida asctica amorosa, em direo unio personalista com o criador, ao contrrio do verdadeiro ascetismo o do monge guerreiro, que trava uma guerra contra si mesmo e contra todas as limitaes humanas em busca de, atravs desta guerra, dissolver-se no Absoluto. 2 Isso no ocorre exclusivamente no cristianismo ocidental, conforme j falamos aqui. O mesmo fenmeno ocorre nas tradies orientais, repletas de mestres em prontido para melhorar ou transformar a vida dos outros em harmonia, sempre com discursos feitos sobre paz, boas energias e outras bobagens semelhantes.

Esperamos que o leitor seja capaz de absorver toda a vasta influncia de Evola, bem como seu profundo conhecimento e sua capacidade de sntese sem igual, maior at daquele que Evola considerava um de seus mestres - Ren Gunon.

Don Avadoro

Captulo I - Das formas do herosmo guerreiro

O princpio geral para o qual seria possvel apelar para justificar a guerra sobre o plano humano o herosmo. A guerra, segundo este princpio, oferece ao homem a ocasio de acordar o heri adormecido em si. Ela rompe a rotina da vida cmoda e atravs das mais duras provas, favorece um conhecimento transcendente da vida em funo da morte. O instante no qual o individuo deve comportar-se como um heri, seja ele o ltimo da sua vida terrestre, pesa infinitamente mais na balana que toda a sua existncia vivida monotonamente, na agitao inquieta das cidades. Isto o que compensa, em termos espirituais, os aspectos negativos e destrutivos da guerra, aspectos que o materialismo pacifista coloca unilateral e tendenciosamente em destaque. A guerra, ao estabelecer e realizar a relatividade da vida humana, estabelece e realiza tambm o direito de algo alm da vida pois sempre tem sempre um valor anti-materialista e espiritual. Estas consideraes tm um peso indiscutvel e reduzem todas as demagogias do humanitarismo, os lamentos dos sentimentalistas e os protestos dos paladinos dos imortais princpios e da Internacional dos heris da pluma. Contudo, preciso reconhecer que para definir corretamente as condies pelas quais a guerra se apresenta realmente como fenmeno espiritual, deve-se proceder a um exame posterior, para esboar uma espcie de fenomenologia da experincia guerreira e distinguir as diferentes formas e hierarquiz-las, para dar toda a importncia ao ponto absoluto que servir de referncia experincia herica. Para isso, preciso recorrer a uma doutrina que no tenha uma estrutura de construo filosfica particular e pessoal, mas que, a sua maneira, tenha uma referncia de fato positiva e objetiva. Trata-se da doutrina quaternria de diviso histrica e hierrquica, como tambm da histria atual como uma decadncia retroativa de um a outro desses graus hierrquicos. A diviso quaternria, em todas as civilizaes tradicionais - sem dvida alguma - deu origem a quatro castas diferentes: servos, burgueses, aristocracia guerreira e lderes da autoridade espiritual. Neste ponto, no devemos entender por casta

como faz a maioria uma diviso artificial e arbitrria, mas sim um lao que rene uma mesma natureza, um tipo de interesse e vocao idntica, uma qualificao original idntica. Normalmente, uma verdade e uma funo determinada definem cada casta e no o contrrio. No se trata de privilgios e de formas de vida fundadas num monoplio e baseadas numa constituio social mantida, mais ou menos, artificialmente. O verdadeiro princpio que fundamenta estas instituies, segundo formas histricas mais ou menos perfeitas, que no existe um modo nico e genrico de viver a sua prpria vida, a no ser o modo espiritual, quer dizer, como guerreiro, burgus, servo e, quando as funes e reparties sociais correspondem verdadeiramente a esta articulao, segundo a expresso clssica, estamos perante uma organizao proveniente da verdade e da justia. Esta organizao converte-se em hierrquica quando implica uma dependncia natural e com a dependncia a participao de modos inferiores de vida, queles que so superiores, considerando como superior toda a personalizao de um ponto de vista puramente espiritual. Somente neste caso h relaes claras e normais de participao e subordinao, conforme o ilustra a analogia oferecida pelo corpo humano: ali onde no h condies ss e normais, quando o elemento fsico (servos) ou a vida vegetativa (burgus), ou a vontade impulsiva e no controlada (guerreiros), assumem a direo ou a deciso na vida do homem,surge o caos; mas quando o esprito constitui o ponto central e ultimo de referncia para as faculdades restantes, s quais no lhes negada uma autonomia parcial, uma vida prpria e um direito auferido dentro do conjunto da unidade, a est a ordem. Mas no devemos falar genericamente de hierarquia, pois aqui tratamos da verdadeira hierarquia, na qual quem est no alto e dirige verdadeiramente superior, preciso fazer referncia aos sistemas de civilizao baseados numa elite espiritual e onde os modos de viver do servo, do burgus e do guerreiro buscam inspirao neste principio para justificar as atividades em manifestadas materialmente. Pelo contrrio, estamos num estado anormal, quando o centro se deslocou e o ponto de referncia no o princpio espiritual mas sim o da classe servil, burguesa ou simplesmente guerreira. Em cada um dos casos, tambm h hierarquia e participao, mas no algo natural. Ela deformada, subversiva e acabar por ultrapassar todos os limites, transformando-se num sistema onde a viso da vida, prpria de um servo, orienta e sustenta todos os elementos do conjunto social. No plano poltico, este processo de degenerao particularmente perceptvel na histria do Ocidente atual. Os Estados sacro-aristocrticos foram substitudos por Estados monrquicos-guerreiros, amplamente secularizados e estes, por sua vez, foram substitudos e ultrapassados por Estados fundamentados em oligarquias capitalistas (castas dos burgueses e mercadores) e finalmente por tendncias socialistas, coletivistas e proletrias, que atingiram seu apogeu no bolchevismo russo (casta dos servos). Este processo paralelo troca de um tipo de civilizao por outra, de um significado fundamental da existncia a outro, apesar de que, em cada fase particular destes conceitos, cada princpio e cada instituio receba um sentido diferente, conforme a parte

predominante. Isto igualmente vlido para a guerra. E assim que vamos poder abordar positivamente a tarefa que nos propusemos no incio deste ensaio: especificar os diversos significados que a morte e o combate herico podem assumir. Conforme manifestada sob o signo de uma ou outra casta, a guerra adquire um aspecto diferente. Ou seja, dentro do ciclo da primeira casta, a guerra justificvel por motivos espirituais, considerada uma via de realizao sobrenatural e de imortalidade para o heri (tema da Guerra Santa). Nas aristocracias guerreiras, luta-se pela honra e por um princpio de lealdade, que se associa ao prazer da guerra pela guerra. Com a passagem do poder para as mos da burguesia d-se uma profunda transformao, o conceito de nao materializa-se e se democratiza; cria-se uma concepo anti-aristocrtica e natural da ptria e o guerreiro d lugar ao soldado e ao cidado; que luta simplesmente para defender ou conquistar uma terra; com os guerreiros, quase sempre, fraudulentamente guiados por razes ou primazias de ordem econmica ou industrial. Por fim, onde o ultimo estado pode ser alcanado abertamente, numa organizao nas mos de servos, expressada perfeitamente por Lnin: A guerra entre naes um jogo pueril, uma subservincia burguesa que no nos pertence. A verdadeira guerra, a nossa guerra, a revoluo mundial para destruio da burguesia, e o triunfo da classe proletria. Com isso esclarecido, evidente que o heri pode ser um denominador comum que abarca as formas e significados mais variados. Morrer, sacrificar a vida, pode ser vlido somente no plano tcnico e coletivo, melhor dizendo, no plano hoje chamado brutalmente de material humano. evidente que no em tal plano que a guerra pode reivindicar um autntico valor espiritual para o indivduo, quando este se apresenta no como material, mas sim maneira romana como personalidade. Isto no se realiza apenas quando h uma relao dupla entre meio e fim, mas tambm quando o individuo um meio em relao guerra e aos seus fins materiais, mas simultaneamente, quando a guerra, por sua vez, transforma-se num meio em relao ao individuo, oportunidade ou via cujo fim seja a sua realizao espiritual, favorecida pela experincia herica. Neste caso h sntese, energia e mxima eficcia. Nesta ordem de idias, e em funo do que dissemos anteriormente, evidente que todas as guerras no nos oferecem as mesmas possibilidades. E isto em funo de analogias, absolutamente abstratas, embora positivamente ativas, segundo os caminhos, invisveis para a maioria, que existe entre o carter coletivo predominante nos diferentes ciclos de civilizao e o elemento que corresponde a este carter no todo da entidade humana. Se a era dos mercadores e servos aquela na qual predominam as foras correspondentes s energias que definem no homem o elemento pr-pessoal, fsico, instintivo, telrico ou simplesmente orgnico-vital, na era dos guerreiros, na dos chefes espirituais so expressadas foras que correspondem respectivamente no homem ao carter e personalidade espiritualizada, realizada segundo o seu destino sobrenatural. De acordo com o que desenvolve o transcendente no indivduo, evidente que numa guerra, a maioria no pode mais que sentir coletivamente o despertar correspondente, mais ou menos, com a influncia preponderante, ainda que dependa tambm das causas

que pesaram na declarao de tal guerra. Em funo de cada caso, a experincia herica conduz a diversos pontos e sobretudo a trs formas. No fundo, correspondem s trs possibilidades de relao que podemos verificar pela casta guerreira e seu princpio em relao s outras articulaes j examinadas. Pode-se verificar o estado normal de uma subordinao ao princpio espiritual, onde o herosmo como desencadeamento conduz supra vida e supra personalidade. Mas o princpio guerreiro pode ser um fim em si mesmo, rejeitando admitir aquilo que h de superior nele, neste caso a experincia herica d lugar a um tipo trgico, arrogante e temperado como o ao, mas sem luz. A personalidade permanece est inclusive reforada como lhe ordena o limite do seu lado naturalista e humano. Este tipo de heri sempre oferece certa garantia de grandeza e naturalmente, para os tipos hierarquicamente inferiores, burgueses ou servos, este herosmo e esta guerra significa superao, elevao e realizao. O terceiro caso se refere ao princpio guerreiro degenerado, ao servio de elementos hierarquicamente inferiores (ltima casta). Aqui a experincia herica se associa quase fatalmente a uma evocao, um desencadeamento de foras instintivas, pessoais, coletivistas, irracionais, provocando finalmente uma leso e uma regresso na personalidade do indivduo, o qual, rebaixado a tal nvel, est condicionado a viver a situao da forma passiva ou sob a sugesto de mitos e impulsos passionais. Por exemplo, os romances de Eric Maria Remarque no refletem mais que uma possibilidade deste gnero: pessoas levadas guerra por falsos idealismos e que constatam que a realidade diferente. No so desertores nem covardes, mas no meio de terrveis provas, so sustentados exclusivamente por foras elementares, impulsos instintivos, reaes meramente humanas, sem conhecer um s instante de luz.3 Para preparar uma guerra no plano material mas tambm no espiritual, preciso ver tudo isso de forma clara e firme, para que as almas e energias possam ser orientadas at a soluo mais elevada, a nica que convm s idias tradicionais. Logo seria preciso espiritualizar o princpio guerreiro. O ponto de partida poderia ser o desenvolvimento virtual de uma experincia herica, no sentido da mais elevada das trs possibilidades que analisamos. Mostrar como esta possibilidade mais elevada, mais espiritual, foi plenamente vivida nas grandes civilizaes que nos precederam, ilustrando assim o seu aspecto constante e universal, algo que no depende da simples erudio. precisamente o que nos propomos fazer a partir das tradies inerentes romanidade antiga e medieval.

Cf. J. Evola: Dal Nulla di nuovo sul fronte ocidentale al Ritorno, in La vita italiana, novembro de 1931.

Captulo II - A Sacralidade da Guerra

Acabamos de ver como o fenmeno do herosmo guerreiro pode revestir vrias formas e obedecer a diferentes significados, uma vez j definidos os valores da autntica espiritualidade que o diferenciam profundamente. Por enquanto, comearemos com o exame de certos conceitos relativos s antigas tradies romanas. Geralmente, no h nada alm de um conceito laico do valor da romanidade antiga. O romano no foi mais que um soldado no sentido estrito da palavra, e graas s suas virtudes militares, unidas a uma feliz concorrncia de circunstncias, pde conquistar o mundo. Opinio equivocada, no importa de quem seja. Antes de tudo, o romano alimentava a intima convico de que Roma, seu Imperium e sua Aeternitas, eram derivados de foras divinas. Para considerar esta convico romana, sob um aspecto exclusivamente positivo, preciso substituir esta crena por um mistrio: mistrio de como um punhado de homens, sem nenhuma necessidade de terra ou ptria, sem estarem possudos por nenhum destes mitos ou paixes, que tanto atraem os modernos e com as quais justificam a guerra e promovem aes hericas, mas sob um estranho e irresistvel impulso, este mistrio arrastava os romanos, cada vez mais longe, de pas em pas, reduzindo tudo a uma ascese de poder. Segundo testemunhos de todos os clssicos, os primeiros romanos eram muito religiosos nostri maiores religiosissimi mortales relembra Salstio e repetem Ccero e Aulo Glio, mas esta religiosidade no se limitava a uma esfera abstrata e isolada, espalhava-se na prtica, no mundo da ao e por conseqncia, abarcava tambm a experincia guerreira. Um colgio sagrado formado pelos Fetiales presidia em Roma a um sistema bem determinado de ritos, que eram o lado mstico de qualquer guerra, desde a sua

declarao at a sua concluso. No geral, certo que um dos princpios da arte militar romana era evitar travar batalhas antes que os signos msticos tivessem, por assim dizer, indicado o momento. Com as deformaes e preconceitos da educao moderna no se querer ver nisto mais que uma super estrutura extrnseca feita base de supersties. Quanto aos mais benvolos, no ser nada mais que um fatalismo extravagante. Mas no era nem uma coisa nem outra. A essncia da arte de adivinhao praticada pelo patriciado romano, assim como outras disciplinas anlogas de carter mais ou menos idntico no ciclo das grandes civilizaes indo-europias, no era descobrir o destino na base de uma supersticiosa passividade. Pelo contrario, era descobrir antecipadamente os pontos de conjugao com influncias invisveis, para concentrar as foras dos homens e torn-las mais poderosas, de multiplic-las e as induzir a atuar sobre um plano superior, com o fim de varrer - quando a concordncia era perfeita - todos os obstculos e resistncias no plano material e espiritual. difcil pois, a partir disso, duvidar do valor romano, a ascese romana de potncia no era s na sua contrapartida espiritual e sacra, instrumento da grandeza militar e temporal, mas tambm num contacto e uma unio com as foras superiores. Se fosse oportuno, poderamos citar farta documentao para fundamentar esta tese. No entanto, nos limitaremos a recordar que a cerimnia do triunfo tinha em Roma um carter muito mais religioso que laico-militar, e numerosos elementos permitem deduzir que o Romano atribua a vitoria dos seus duces mais a uma fora transcendente, que se manifestava real e eficazmente atravs deles, no seu herosmo e inclusive por meio do seu sacrifcio (como no rito da devotio no qual os chefes se imolavam), que a suas qualidades simplesmente humanas. Desta forma, o vencedor, revestindo as insgnias do Deus capitolino supremo, se identificava com ele, era sua imagem, e depositava nas mos deste Deus, os louros da sua vitria, em homenagem ao verdadeiro vencedor. No fundo, uma das origens da apoteose imperial, era o sentimento que debaixo da aparncia do Imperador se escondia um numen imortal, incontestavelmente derivado da experincia guerreira: O Imperatore, originariamente era o chefe militar aclamado sobre o campo de batalha, no momento da vitria, mas nesse instante aparecia tambm como transfigurado por uma fora vinda do alto, terrvel e maravilhosa que dava a impresso do numen. Esta concepo, por outro lado, no exclusivamente romana, encontra-se em toda a antiguidade clssico-mediterrnea e no se limitava aos generais vencedores, estendia-se aos campees olmpicos e aos sobreviventes dos combates sangrentos do circo. Na Grcia, o mito dos Heris confunde-se com as doutrinas msticas, como o orfismo, e identifica o guerreiro vencedor como o iniciado, vencedor da morte. Testemunhos precisos sobre um herosmo e um valor que emanavam, mais ou menos conscientemente, das vias espirituais, abenoados no s pelas conquistas materiais e gloriosas, mas tambm pelo seu aspecto de evocao ritual e de conquista espiritual. Passemos a outros testemunhos desta tradio que, pela sua natureza metafsica e, como conseqncia, o elemento raa no pode ter mais que uma parte secundria e

contingente. Portanto, mais adiante, trataremos da Guerra Santa praticada no mundo guerreiro do Sacro Imprio Romano-Germnico. Esta civilizao apresentava-se como um ponto de confluncia criadora de vrios elementos: um romano, um cristo e um nrdico. Com relao ao primeiro elemento, j fizemos aluso a ele no contexto que nos interessa. O elemento cristo se manifestara sob as caractersticas de um herosmo cavalheiresco supranacional com as cruzadas. Nos sobra o elemento nrdico. Para que ningum se espante, assinalamos que se trata de um carter essencialmente supra-racial, incapaz de valorizar ou denegrir um povo em relao a outro. Para fazer aluso a um plano no qual nos auto exclumos, de momento nos limitaremos a dizer que nas evocaes nrdicas, mais ou menos frenticas celebradas hoje em dia ad usum delphini na Alemanha nazista, por surpreendente que possa parecer, se assiste a uma deformao e a uma depreciao das autnticas tradies nrdicas tal como foram originariamente e tal como se perpetuaram nos Prncipes que tinham por grande honra o poder de se denominarem romanos ainda que fosse de raa teutnica. Pelo contrrio, para numerosos escritores racistas de hoje, nrdico no significa nada alm de anti-romano e romano tem mais ou menos um significado equivalente a judeu. Portanto, interessante reproduzir uma significativa forma guerreira da tradio celta: combatei por vossa terra e aceitai a morte se for preciso: pois a morte uma vitria e uma liberao da alma. Este conceito corresponde, em nossas tradies clssicas, expresso mors triumphalis. Quanto tradio realmente nrdica, ningum ignora a parte do Walhalla, reino imortal reservado, no apenas aos homens livres de fonte divina, mas tambm aos Heris mortos no campo de honra (Walhalla significa literalmente o reino dos eleitos). O Senhor deste lugar simblico Odin-Wotan, conforme descrito na Ynglingasaga, como aquele que, pelo seu sacrifcio simblico na rvore do mundo, indicou aos Heris um modo de esperar o descanso divino, um lugar em que se vive eternamente sobre um cume luminoso e resplandecente, alm das nuvens. Segundo esta tradio, nenhum sacrifcio, nenhum culto, to grato a Deus, nem mais rico em recompensa no outro mundo, como aquele realizado pelo guerreiro que combate e morre na luta. Alm do mais: o exrcito dos heris mortos em combate deve reforar a falange dos heris celestes que lutam contra o ragna-rkkr, ou seja, contra o destino do obscurecimento do divino que, segundo os ensinamentos, como no caso dos clssicos gregos, (Hesodo) est sobre o mundo desde as eras mais remotas. Encontramos este tema sobre formas diferentes nas lendas medievais que concernem ltima batalha que livrar o Imperador imortal. Neste ponto, para perceber o elemento universal, temos que trazer luz a concordncia de antigos conceitos nrdicos (que, digase de passagem, Wagner desfigurou com o seu romantismo empolgado, confuso e teutnico) com as antigas concepes iranianas e persas. Alguns se surpreendero ao saber que as famosas Walkirias no so quem escolhe as almas dos guerreiros destinados ao Walhalla, mas sim a personificao da parte transcendente destes guerreiros, que tem como equivalentes exatas as fravashi, que na tradio persa so representadas como mulheres de luz e virgens arrebatadas das batalhas. Personificam mais ou menos as foras sobrenaturais em que as foras humanas dos guerreiros fiis

ao Deus da Luz podem transfigurar e produzir um efeito terrvel e turbulento nas aes sangrentas. A tradio iraniana continha igualmente a concepo simblica de uma figura divina - Mitra, concebido como o guerreiro sem sono - que frente das fravashi de seus fiis, combate contra os emissrios do deus das trevas, at a apario do Saoshyant, senhor de um reino futuro, de paz triunfal. Estes elementos da antiga tradio indo-europia repetem sempre os temas da sacralidade da guerra e do heri que na verdade no morre, mas que passa a ser soldado de um exrcito mstico numa luta csmica, interferindo visivelmente com os elementos do cristianismo: pelo menos do cristianismo que pode assumir o lema Vita est militia super terram e reconhecer que no apenas com a humildade, caridade, esperana e tudo mais que se alcana o Reino dos Cus, mas que tambm possvel alcan-lo com certa violncia a afirmao herica. precisamente desta convergncia de temas que nasceu a concepo espiritual da Grande Guerra prpria das Cruzadas da Idade Mdia e que analisaremos debruados especialmente sobre o aspecto interior individual destes ensinamentos, que sempre so atuais.

Captulo III - O Significado das Cruzadas

Trataremos outra vez das formas da tradio herica que permitem guerra assumir o valor de um caminho de realizao espiritual, no sentido mais rigoroso do termo, e tambm de uma justificao e de finalidade transcendental. J falamos das concepes que, sob este ponto de vista, foram as do antigo mundo romano. Depois olhamos as tradies nrdicas e o carter imortal de toda a morte realmente herica no campo de batalha. Referimo-nos necessariamente a estas concepes para chegar ao mundo medieval, Idade Mdia como civilizao resultante da sntese de trs elementos: primeiro romano, depois o nrdico e finalmente o cristo. Examinaremos agora o ideal de sacralidade da guerra, tal como foi concebido e cultivado ao longo da Idade Mdia. Evidentemente devemos nos referir s Cruzadas, presos ao seu significado mais profundo, sem as reduzi-las aos determinismos econmicos e tnicos, como os historiadores materialistas, e muito menos reduzi-las a um fenmeno de superstio e de exaltao religiosa, como desejam os espritos evoludos, enfim, nem mesmo a um fenmeno simplesmente cristo. Sobre este ltimo ponto no devemos

perder de vista a relao estreita entre meio e fim. Diz-se que nas Cruzadas a f crist se serviu do esprito herico da cavalaria ocidental. precisamente o contrrio que verdadeiro. A f crist e seus fins relativos e contingentes de luta religiosa contra o infiel, da Libertao do Templo e da Terra Santa, no foram mais que os meios que permitiram a manifestao do esprito herico, de se afirmar e de se realizar numa espcie de ascese, distinto da contemplao, mas no menos rica em frutos espirituais. A maioria dos cavaleiros que entregaram suas foras deram o sangue pela guerra santa no tinham mais que uma idia e um vago conhecimento teolgico sobre a doutrina pela qual combatiam. Entretanto, o contexto das Cruzadas era rico em elementos susceptveis para fornecer um significado simblico, espiritual e superior. Atravs das vias do subconsciente, os mitos transcendentais refloresciam na alma da cavalaria ocidental: a conquista da Terra Santa, situada alm dos mares, apresenta infinitamente mais referncias reais que poderiam supor os historiadores com a antiga saga segundo a qual no longnquo Oriente onde nasce o sol, se encontra a cidade sagrada onde a morte no reina, mas onde os valorosos heris que sabem esper-la gozam de uma celestial serenidade e de uma vida eterna. Por outro lado, a luta contra o Islam revestiu, por sua natureza, desde o princpio, o significado de uma luta asctica. No se trata de combater pelos reinos da terra escreveu Kluger, clebre historiador das Cruzadas mas pelo reino dos cus; as Cruzadas no eram do domnio dos homens, mas sim de Deus por isso no as podemos considerar semelhantes a outros acontecimentos humanos. A guerra santa devia, segundo a expresso de um antigo cronista, comparar-se com o batismo semelhante ao fogo do purgatrio antes da morte. Os papas e os pregadores comparavam simbolicamente aqueles que morriam nas cruzadas com o ouro trs vezes ensaiado e sete vezes purificado pelo fogo e que podia conduzir ao Deus Supremo. No esqueais jamais este orculo escreveu So Bernardo quer vivamos, quer morramos, ao Senhor pertencemos. Que Glria para vs sair da batalha cobertos de louros. Mas que alegria maior para vs, de ganhar sobre o campo de batalha uma coroa imortal oh, condio afortunada! Poder enfrentar a morte sem temor, mesmo desej-la com impacincia, e receb-la com de corao firme. A glria absoluta estava prometida ao cruzado glria asolue - em provenal pois, parte da imagem religiosa lhe oferecia a conquista da supra vida, do estado sobrenatural da existncia. Assim, Jerusalm, fim cobiado da conquista, apresentava-se sob o duplo aspecto, duma cidade terrestre e duma cidade simblica, a Cruzada tomava um valor interior, independente de todos os seus aparatos, seus suportes e suas motivaes aparentes. Afinal, foram as ordens da Cavalaria quem ofereceram o maior tributo s Cruzadas, com a Ordem do Templo e a dos Cavaleiros de So Joo de Jerusalm, compostas por homens que, como o monge ou asceta cristo aprenderam a desprezar a vaidade desta vida; em tais ordens encontravam-se guerreiros fatigados pelo mundo, que tudo tinham visto e tudo tinham provado, prontos a uma ao total e que no sustentavam mais nenhum interesse pela vida material e temporal nem pela poltica ordinria, no sentido mais estrito. Urbano II dirigia-se cavalaria como comunidade supranacional daqueles dispostos a partir at onde rebentasse uma guerra, a fim de levar o terror das suas armas para defender a

honra e a justia com mais razo deviam escutar e atender ao apelo da Guerra Santa, guerra que, segundo um dos escritores da poca, no tinha por recompensa um feudo terrestre, revogvel e contingente, mas um feudo celestial. Mas o desenrolar das Cruzadas, num contexto mais amplo e no plano ideolgico geral, provocou uma purificao e uma interiorizao do esprito de iniciativa. Segundo a convico inicial de que a guerra pela verdadeira f no podia ter mais que uma sada vitoriosa, os primeiros fracassos militares sofridos pelos exrcitos cruzados foram um foco de surpresas e assombro, mas posteriori serviram, contudo, para trazer luz o aspecto mais elevado da guerra santa. O resultado desastroso de uma Cruzada era comparado pelos clrigos de Roma ao destino da virtude desgraada que no julgada nem recompensada, a no ser em funo da outra vida. E isto anunciava o reconhecimento de algo superior tanto na vitria como na derrota, a colocao no primeiro plano do aspecto prprio ao herica cumprida independentemente dos frutos visveis e materiais, quase como uma oferenda transformando o holocausto viril de toda a parte humana em glria absoluta e imortal. evidente que desta maneira se devia acabar por atingir um plano, por assim dizer, supra tradicional, tomando a palavra tradio num sentido mais restrito, mais histrico e religioso. A f religiosa em particular, os fins imediatos, o esprito antagonista, convertiamse ento em elementos to contingentes como a natureza varivel de um combustvel destinado somente a produzir e a alimentar uma chama. O ponto central continuava a ser o valor santo da guerra. Mas se prefigurava igualmente a possibilidade de reconhecer, que aqueles que eram adversrios no momento, pareciam atribuir a este combate o mesmo significado tradicional. Este um dos elementos graas ao qual as Cruzadas serviram, apesar de tudo, para facilitar o intercmbio cultural entre o Ocidente gibelino e o Oriente rabe (ponto de reencontro, por sua vez, de elementos tradicionais ainda mais antigos), mas o alcance disso vai muito alm do que a maioria dos historiadores demonstraram at ao presente. Da mesma forma, as ordens de cavalaria das cruzadas, se encontraram diante das ordens de cavalaria rabes, que lhes eram quase anlogas no plano da tica, por vezes mesmo dos smbolos, e por isso a guerra santa que havia motivado as duas civilizaes, uma contra a outra em nome das suas religies respectivas, permitiu igualmente o seu reencontro e que, partindo de duas crenas diferentes, cada uma acabou por dar guerra um valor de espiritualidade anlogo e independente. afinal aquilo que se sobressai, quando estudarmos como, forte na sua f, o antigo cavaleiro rabe se eleva ao mesmo nvel supra tradicional que o cavaleiro cruzado pelo seu ascetismo herico. Agora, este outro ponto que queremos aflorar. Aqueles que julgam as Cruzadas superficialmente, as remetem a um dos episdios mais extravagantes da obscura Idade Mdia, no supem que o que definem como fanatismo religioso a prova tangvel da presena e da eficcia de uma sensibilidade e de um tipo de deciso cuja ausncia caracterizava a barbrie autntica. J que o homem das Cruzadas sabia todavia afirmarse, combater e morrer por um ideal, que era essencialmente supra poltico e supra

humano. Associava-se tambm a uma unio baseada, no sobre o particular, mas sobre o universal. E isto significa um valor, um ponto de referncia inabalvel. Naturalmente no se deve confundir nem pensar que a motivao transcendente possa ser uma desculpa para tornar o guerreiro indiferente, para torn-lo negligente aos deveres inerentes sua fidelidade a uma raa e a uma ptria. No bem assim. Pelo contrrio, trata-se essencialmente de significados profundamente diferentes, segundo os quais aes e sacrifcios podem ser vencidos, embora observados do exterior, possam parecer absolutamente os mesmos. Existe uma diferena radical entre quem faz simplesmente a guerra, e quem pelo contrrio, na guerra faz tambm a guerra santa e vive uma experincia superior, desejada e desejvel para o esprito. preciso acrescentar que, se esta diferena , antes de tudo interior e sob o impulso de tudo o que interiormente tem uma fora, traduz-se tambm no exterior, provocando efeitos sobre outros planos e particularmente nos seguintes termos: antes de tudo, termos uma irredutibilidade do impulso herico: quem vive espiritualmente o herosmo est carregado de uma tenso metafsica, animado por um estimulo cujo objetivo infinito, e superar sempre aquilo que anima quem combate por necessidade, por oficio ou sob impulsos naturais ou sugestes. Em segundo lugar, quem combate numa guerra santa situa-se espontaneamente alm de todo o particularismo, vive num clima espiritual que, num determinado momento, pode muito bem dar origem a uma unidade supranacional dentro da ao. justamente isso que ocorreu nas Cruzadas, quando prncipes e chefes de todos os pases se uniram para a expedio herica e santa, para alm dos seus interesses particulares e utilitrios e das divises polticas, realizando pela primeira vez uma grande unidade europia conforme a sua civilizao comum e ao prprio princpio do Sacro Imprio Romano-Germnico. Se soubermos abandonar o pretexto, se soubermos isolar o essencial do contingente, encontraremos um elemento precioso que no se limita a um perodo histrico determinado. Conseguir conduzir a ao herica sobre um plano asctico, justific-la tambm em funo desse plano, significa desimpedir o caminho para uma nova e possvel unidade de civilizao. Isto tambm significa separar todo o antagonismo condicionado pela matria, preparar o espao das grandes distncias e as amplas frentes, para dimensionar, pouco a pouco, os objetivos externos da ao em seu novo significado espiritual: tal como se verifica quando no s por um pas ou por ambies temporais que se combate, mas em nome de um princpio superior de civilizao, de uma tentativa que por ser metafsica nos faz ir adiante, alm de todo limite, alm de todos os perigos e alm de qualquer destruio.

Captulo IV A Guerra Maior e a Guerra Menor

No devemos estranhas, aps o exame dum conjunto de tradies ocidentais relativas guerra santa, quer dizer, guerra com valor espiritual, nos propomos agora examinar este conceito conforme foi formulado pela tradio islmica. Com efeito, nosso objetivo, como j o sublinhamos muitas vezes, de pr em relevo o valor objetivo de um princpio, pela demonstrao da sua universalidade, da sua conformidade ao quod ubique, quo ab omnibus e quod semper. Somente assim, podemos ter a sensao que certos valores tm uma conotao absolutamente diferente do que podem pensar uns e outros, mas tambm, na sua essncia, eles so superiores s formas particulares que assumiram para se manifestar nas duas tradies histricas. Quanto mais reconhecermos a correspondncia interna das formas, e seu princpio nico, mais aprofundaremos na prpria tradio, at a intuir integralmente e a compreender partindo de seu ponto original e metafsico. Historicamente, devemos sublinhar que a tradio islmica, na parte que nos interessa neste ensaio, de certa forma herana da tradio persa, uma das mais altas civilizaes indo-europias. A concepo mazdesta original da religio como milcia sob o signo do Deus de Luz e da existncia na terra como uma luta incessante para arrancar seres e coisas de um poder anti-Deus, o centro da viso persa sobre vida. Deve-se considerar esta viso como a contrapartida metafsica e o fundo espiritual das lides guerreiras, cujo apogeu foi a edificao do imprio persa do Rei dos reis. Depois da queda da grandeza

persa, alguns resqucios desta tradio subsistiram no ciclo da civilizao rabe medieval, sob formas mais materiais e algumas vezes exageradas, mas sem nunca anular efetivamente o motivo original de espiritualidade. Aqui, ns nos referimos s tradies deste gnero principalmente porque elas colocam em evidncia um conceito muito til para esclarecer posteriormente a ordem de idias que desejamos expor. Trata-se dum conceito da grande guerra santa, diferente da pequena guerra, mas, ao mesmo tempo ligada a esta ltima de acordo com uma correspondncia especial. A diferencia baseia-se num hadit (verso) do Profeta, que ao retornar duma expedio guerreira declarou: - ns voltamos da pequena guerra santa para a grande guerra santa. Aqui a pequena guerra corresponde guerra exterior, guerra sangrenta e que se faz com armas materiais contra o inimigo, contra o brbaro, contra uma raa inferior diante da qual reivindicamos um direito superior, ou ento, quando a expedio dirigida por um motivo religioso contra o infiel. Por mais terrveis e trgicos que possam ser os acidentes, por mais monstruosas que possam ser as destruies, nada mais resta a esta guerra, metafisicamente sempre a pequena guerra. A grande guerra santa, pelo contrrio, de ordem interna e espiritual, o combate que se trava contra o inimigo, ou o brbaro, ou o infiel que cada um abriga em si, e que vai surgir em si mesmo, no momento em que se quer submeter todo o seu ser a uma lei espiritual. Tudo que for preconceito, desejo, paixo, instinto, fraqueza e covardia interior, o inimigo que habita dentro do homem deve ser vencido, quebrado na sua resistncia, encarcerado e dominado ao homem espiritual: tal a condio para se atingir a libertao interior, a paz triunfal que permite participar naquilo que est alm da vida e da morte. simplesmente ascetismo - diro alguns. A grande guerra santa a ascese de todos os tempos. E qualquer um estar tentado a acrescentar: a via daqueles que fugiram do mundo e com a desculpa de uma luta interior transformam-se em rebanhos de pacifistas. No nada disso. Depois da distino entre as duas guerras, expomos agora a sua sntese. prprio das tradies hericas prescrever a pequena guerra , ou seja, a verdadeira guerra, sangrenta, como um instrumento para a Grande Guerra Santa, at ao ponto em que, finalmente, as duas no terminam sendo mais que uma s e mesma coisa. assim que no Islam, guerra santa jihd e caminho de Deus so indiferentemente utilizados por uns e por outros. Sobre os que combatem pelo caminho de Deus, segundo um clebre hadith, muito caracterstico desta tradio diz: - o sangue dos Heris est mais perto do Senhor que a tinta dos sbios e as oraes dos devotos. Aqui, e tambm nas tradies que j falamos, como a ascese romana da potncia e a clssica mors triumphalis, a ao assume o exato valor de uma ultrapassagem interior de acesso a uma via livre de obscuridade, do contingente, de dvidas e da morte. Em outros termos, as situaes, os riscos, as provas inerentes s expedies guerreiras provocam a apario do inimigo interior, que enquanto instinto de conservao, crueldade ou covardia, compaixo ou furor cego, surge como aquele que deve ser

vencido, precisamente no momento exato de vencer o inimigo exterior. Isto mostra que o ponto decisivo constitudo pela orientao interior, a permanncia inabalvel que o esprito na dupla luta: - sem precipitao cega, nem transformao em brutos incorrigveis, mas pelo contrrio, com o total domnio das foras mais profundas, controle para nunca ser ludibriado interiormente, mas ficar sempre senhor de si mesmo, e este domnio permite de se afirmar acima de qualquer limite. Mais frente abordaremos uma outra tradio, onde esta situao representada por um smbolo muito caracterstico: - um guerreiro e um ser divino impassvel, que sem combater, sustenta e conduz o soldado, ao lado do qual ele se encontra, e esto no mesmo carro de combate. a personificao da dualidade dos princpios do verdadeiro heri, cujas emanaes tm sempre qualquer coisa de sagrado, e do qual ele portador. Na tradio islmica, podemos ler num dos textos mais importantes: Combatei no caminho de Deus (quer dizer na guerra santa), aquele que sacrifica o caminho terrestre por aquele do alm: pois aquele que combate no caminho de Deus e morto, ou vencedor, ns daremos uma imensa recompensa. A premissa metafsica segundo a qual dito: combatei segundo a guerra santa aqueles que vos fazem a guerra. Matai-os onde quer que os encontreis e esmagai-os. No vos mostreis fracos nem os convideis paz pois a vida terrestre somente um jogo e um passatempo, e quem se mostra avarento, s avarento consigo mesmo. Este ultimo principio evidentemente relacionado com o fac-simile do evangelho: quem quer salvar sua prpria vida a perder, e quem a perde, a vive realmente, confirmado por esta outra passagem: E a vs que credes, quando vos for dito: vinde batalha, pela guerra santa vs ficastes imveis? Vs preferistes a vida deste mundo vida futura, porque vs esperais de ns uma coisa, recompensa e no os dois supremos, vitria ou sacrifcio?. Esta outra passagem digna de ateno: a guerra vos foi ordenada, embora vos desagrade. Mas, qualquer coisa que seja boa para vs pode vos desagradar, e agradarvos aquilo que mau para vs: Deus, disse, ento vs nada sabeis, que muito prximo de eles preferem ficar entre aqueles que sobram: uma marca gravada em seus coraes, assim eles no o compreendem. Mas o apstolo e aqueles que crem com ele e combatem com aquilo que tm e com a sua prpria pessoa, a eles a recompensa e sero eles que prosperam na grande felicidade. Aqui temos uma espcie de amor fati, uma intuio misteriosa, uma evocao e cumprimento herico do destino, dentro da intima certeza que, quando existe a inteno justa, quando a inrcia e a covardia so vencidas, o estimulo vai alm da prpria vida e da vida dos outros, alm da felicidade e da aflio, guiado no sentido de um destino espiritual e duma sede de existncia absoluta, dando ento nascimento a uma fora que no falhar o objetivo absoluto. A crise de uma morte trgica e herica passa a contingncia sem interesse e que, em termos religiosos, assim expressada: Aqueles que forem mortos no caminho de Deus (aqueles que morrem em combate na guerra santa), a sua realizao no ser perdida. Deus os guiar e dispor de suas almas. Ele os far entrar no paraso que lhes revelou.

Ento o leitor se encontra envolvido por idias elevadas e que so baseadas nas tradies clssicas e nrdico-medievais, no que se refere a uma imortalidade privilegiada e reservada aos heris, os nicos que, segundo Hesodo, habitam as ilhas simblicas e onde levam uma existncia luminosa e inatingvel, semelhana daqueles do Olmpio. Na tradio islmica, encontram-se freqentes aluses ao fato que certos guerreiros, mortos na guerra santa, na verdade nunca morreram, dissertao somente simblica, e muito menos a criticar certos estados sobrenaturais, separados das energias e destinos dos vivos. No possvel entrar neste campo, que muito misterioso e que exige referncias que no interessam natureza deste estudo. Na verdade, hoje em dia, e justamente na Itlia, os rituais encontram uma fora singular, pela qual uma comunidade guerreira declara presente os camaradas mortos no campo de honra. Parte de uma idia que tudo que contem um processo evolutivo, e nos nossos dias, dotado de um carter alegrico e de mximo de tica, tem na sua origem um valor de realidade (e todo o ritual ao e no simples cerimnia), deve-se pensar que os rituais guerreiros atuais possam ser matria de meditao e aproximao do mistrio contido nos ensinamentos que acabamos de falar: a idia que os heris no esto verdadeiramente mortos, ou como aqueles vencedores que, imagem do Csar romano, permanecem vencedores perptuos no centro de uma linhagem.

Captulo V Metafsica da Guerra

Atingimos o fim desta concisa obra consagrado guerra como valor espiritual referindonos a uma ltima tradio do ciclo herico indo-europeu, aquela do Bhagavad-Guita, talvez o mais clebre texto da antiga sabedoria hindu, escrito essencialmente pela casta guerreira. A sua escolha no arbitrria nem deve nada ao exotismo. Conforme a tradio islmica nos permite formular, no universal a idia de grande guerra interior, possvel contrapartida da alma numa guerra exterior, a tradio transmitida pelo texto hindu nos permite enquadrar definitivamente nosso tema numa viso metafsica. Sob um olhar mais abrangente, esta referncia ao Oriente hindu, ao grande Oriente herico e no quele dos telogos, dos pantestas humanitrios e das velhas damas em xtase diante de Gandhi e dos Rabindranath Tagore, parece-nos igualmente til para ratificar as opinies e a compreenso supra tradicional que no so os mnimos objetivos que ns procuramos. Ficamos tempo demais escravos das antteses artificiais Oriente/Ocidente: artificiais pois so baseadas no ltimo Oriente modernista e materialista, que afinal, tem pouco de comum com aquele que o precedeu, com a verdadeira e grande civilizao ocidental. O Ocidente moderno to oposto ao Oriente como o ao antigo Ocidente. Ao voltar para um passado remoto, vemos um patrimnio

tnico e cultural largamente comum, e que corresponde logo a uma nica denominao indo-europia. As formas originais de vida e de espiritualidade, das instituies dos primeiros colonizadores da ndia e do Ir, tinham muitos pontos de contacto com aqueles povos helnicos e nrdicos, mas tambm com os antigos Romanos. Agora vamos abordar as tradies que nos do um exemplo das afinidades de concepes espirituais comuns, de combate, de ao e de morte herica, contrariamente idia preconcebida surgida sempre que falamos da civilizao hindu, quando s pensamos em nirvana, faquires, evaso do mundo, negao dos valores ocidentais, da personalidade, etc. O Bhagavad-Guita foi sob a forma de dilogo, entre o guerreiro Arjuna e um Deus, Krishna, seu mestre espiritual. O dilogo tem lugar durante uma batalha em que Arjuna hesita em combater, freado por seus escrpulos humanitrios. Interpretadas em chaves de espiritualidade, as duas figuras, Arjuna e Krishna, representam as duas partes do ser humano: Arjuna o principio da ao, Krishna o principio do conhecimento transcendente. O dilogo transforma-se numa espcie de monlogo, primeiro de clarificao interior, depois resoluo herica enquanto espiritual do problema da ao guerreira, que se impe a Arjuna, no momento de entrar no campo de batalha. Ora, a compaixo que detm o guerreiro, no momento de combater, quando este descobre no campo inimigo os amigos de jogos e alguns de seus parentes, qualificada por Krishna ( principio espiritual), de desordem indigna dos Aryas, que fecha o cu e preenche de vergonha (B.G.II,2 B). Assim retornamos ao tema que j encontramos muitas vezes, nos ensinamentos tradicionais do Ocidente: morto, tu ganhars o cu; vencedor, tu possuirs a terra. Levanta-te ento, filho de Kunti, para combater (op.cit., II,37). Ao mesmo tempo se desenha o tema de uma guerra interior, guerra que preciso travar consigo mesmo: sabendo logo que a razo a mais forte, afirma-te a ti mesmo; e destri o inimigo de formas escusas e de abordagem difcil. (op.cit.,III,43). O inimigo exterior tem, ao lado do inimigo interior, que a paixo, a sede animal de viver. Vejamos como definida a justa orientao: abandona em mim todas as tuas aes, pensa na Alma suprema, torna-te livre de ti mesmo, combate e teus tormentos iro desaparecer. Op.cit.,III,30). Devemos perceber o apelo a uma lucidez, supra consciente e supra passional do herosmo, assim como no devemos negligenciar esta passagem que sublinha o carter de pureza, do absoluto que deve ter uma ao e o que ela pode ter em termos de guerra santa: Tem por igual prazer e pena, ganho e perda, vitria e derrota, e entrega-te inteiramente batalha: assim evitars o pecado (op.cit.,II,38). Assim se coloca a idia de pecado, no que se refere apenas ao estado de vontade incompleto e de ao, interiormente ainda afastada da elevao, na qual a vida significa to pouco, a sua como a dos outros, e onde nenhuma medida humana possui qualquer lugar.

Se ficarmos neste plano, este texto oferece-nos consideraes de ordem absolutamente metafsica, visando mostrar como, num tal nvel, acaba por agir sobre o guerreiro uma fora mais divina que humana. O ensinamento que Krishna (principio do conhecimento) dispensa a Arjuna (principio da ao) para acabar com as suas hesitaes, visa sobretudo realizar a distino entre o que incorruptvel como espiritualidade absoluta, e aquilo que existe somente duma maneira ilusria como elemento humano e natural: Sabemos que o no Ser no tem existncia, sabemos tambm que o Ser nunca deixa de existir () Mas saibam que em tudo que isto for penetrado, indestrutvel, () aquele que cr que mata e aquele que cr que morto, estes dois se enganam; nem este mata nem aquele morre () no est morto quando o corpo est morto () por isso que combatas, oh Filhos de Bharata! (op.cit.,II,16,17,19,20 e 18). Mas no tudo. A conscincia da irrealidade metafsica daquilo que perdemos, ou fazemos perder, como vida caduca e corpo mortal (conscincia que tem seu equivalente numa das tradies que ns j examinamos antes, onde a existncia humana definida como jogo e frivolidade), se associa idia que o esprito, no seu absoluto, em sua transcendncia diante tudo aquilo que limitado e incapaz de ultrapassar este limite, no pode aparecer seno como uma fora destruidora. Por isso se coloca o problema de ver em quais termos, dentro do ser, instrumento necessrio de destruio e de morte, pode o guerreiro evocar o esprito, justamente sob esse aspecto, ao ponto de com ele se identificar. O Bhagavad-Guita assim diz exatamente. No somente o Deus declara: Eu sou a virtude dos fortes quando ela isenta de paixo e de desejo; () eu sou o esplendor do fogo; () eu sou a vida em todos os seres e o ardor da mortificao dos ascetas; () eu sou a inteligncia dos sbios, a majestade dos poderosos (op.VII,11,9,10). Pois o Deus que Se manifesta a Arjuna sob uma forma transcendente, terrvel e fulgurante, e oferece-Lhe uma viso absoluta da vida: tal como lmpadas submetidas a uma luz muito intensa, com circuito investidos de potncia elevada demais, os seres vivos caiem trespassados porque dentro deles queima uma fora que transcende a prpria perfeio, que vai alm de tudo o que eles podem ou almejam. Por causa disto que eles atingem um cume, e como levados por ondas s quais se tinham abandonado e que os levava at um certo ponto, eles arriscam, dissolvem-se, morrem e retornam ao nomanifestado. Mas aquele que no teme a morte, sabe assumir a sua prpria morte, passando por l tudo o que o destri, engole, quebra, ele acaba por atravessar o limite, consegue manter-se na crista das ondas, no se enterra, ao contrrio, aquilo que est alm da vida nele manifestado. assim que Krishna, a personificao do principio do esprito, depois de se ter revelado na sua totalidade a Arjuna, pode dizer: mesmo sem ti, todos estes guerreiros apresentados nas armadas inimigas vo perecer Ento levantate, conquista a tua glria; triunfa sob teus inimigos e adquire um vasto imprio. Eu j assegurei a derrota deles; s somente um instrumento, mata-os. No fiques perturbado; combate e vencers teus rivais. (op.cit., XI,32,33,34).

Portanto encontramos assim a identificao da guerra com o caminho de Deus, como j falamos nas pginas anteriores. O guerreiro cessa de agir enquanto pessoa. Uma grande fora, no-humana, transfigura a ao, a torna absoluta e pura, precisamente no momento onde ela deve ser extrema. Vejamos uma imagem muito eloqente e que pertence a esta tradio: A vida como um arco; a alma como uma flecha; o esprito absoluto o alvo a atingir. Unir-se a este esprito como a flecha disparada se agarra ao alvo. Esta imagem uma das mais fortes formas de justificao metafsica da guerra, uma das imagens mais completa da guerra como guerra santa. Para terminar este trabalho das formas de tradio herica, tal como nos foi apresentado por povos e pocas to diversas, acrescentaremos ainda algumas palavras de concluso. Esta excurso num mundo que pode parecer inslito a alguns e nada tendo a ver com o nosso mundo, ns no o fizemos por curiosidade nem para exibir nossa erudio. Ns o fizemos, pelo contrrio, no intuito preciso de demonstrar o sagrado da guerra, pois a possibilidade de justificar a guerra espiritualmente e a sua necessidade, constitui, no senso mais alto do termo, uma tradio. algo que sempre esteve e sempre se manifestou no ciclo ascendente de todas as grandes civilizaes. Porquanto a neurose da guerra, as propagandas humanitrias e pacifistas, as concesses feitas guerra como mal necessrio, e fenmeno poltico ou natural tudo isto no corresponde a nenhuma tradio, no mais que uma inveno moderna, recente, a par da decomposio que caracteriza a civilizao democrtica e materialista, contra a qual se afirmam novas foras revolucionrias. Neste sentido, tudo aquilo que recolhemos, de fontes to diversas e com o cuidado constante de separar o essencial do contingente, o esprito da palavra, possam servir a um conforto interior, a uma confirmao, a uma certeza aumentada. No somente o instinto viril justificado em termos superiores, mas tambm a possibilidade de discernir as formas da experincia herica que correspondem nossa mais alta vocao, e se desvenda bruscamente. Agora devemos retornar quilo que escrevemos no inicio deste estudo, demonstrando que h vrias maneiras de ser heri, (ver animal e sub-pessoal). Ou seja, o que conta no tanto a possibilidade vulgar de se lanar numa batalha e de se sacrificar, mas sim o esprito segundo o qual podemos viver uma aventura deste gnero. Agora temos todos os elementos para escolher, entre diferentes aspectos da experincia herica, aquele que possamos considerar absoluto, aquele que possa verdadeiramente identificar a guerra com o caminho de Deus, e dentro do heri, possa realmente, deixar entrever uma manifestao divina.

Mas tambm, devemos recordar que, quando dizemos que o ponto onde a vocao guerreira atinja realmente um valor metafsico, refletindo a plenitude universal, dentro de uma raa, s pode tender a uma manifestao e a uma finalidade igualmente universais,

o que significa: s se pode predestinar esta raa a um imprio. Pois somente o imprio, tal uma ordem superior onde reine a paz triumphalis, reflexo terrestre da soberania do supra-mundo, pode ser comparvel s foras, que dentro do domnio do esprito, manifestam as mesmas caractersticas de pureza, de fora, de transcendncia em relao a tudo que pathos, paixo e limites humanos, e que se refletem nas grandes e livres energias da natureza.

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