MIANI, Rozinaldo. Charge - Uma Prática Discursiva e Ideológica
MIANI, Rozinaldo. Charge - Uma Prática Discursiva e Ideológica
MIANI, Rozinaldo. Charge - Uma Prática Discursiva e Ideológica
RESUMO: N e s t et r a b a l h oa p r e s e n tamos uma reflexo sobre a charge, entendida como uma m o d a l i d a d ed a sl i n g u a g e n si c o n o g r f i c a s ,d en a t u r e z ad i s s e r ta t i v aei n t e r t e x t u a l ,eq u es e c a r a c t e r i z ac o m ou m ap r t i c ad i s c u r s i v aei d e o l g i c a .P r o c u r a m o si d e n t i f i c a ro sp r i n c i pa i s e l e m e n t o sp o l t i c o s ,e s t t i c o sed el i n g u a g e mq u ec o m p e mou n i v e r s od ed e f i n i od ac h a r g e , r e c o n h e c e n d oas u ah i s t o r i c i d a d eed e t e r m i n a n d oas u ac o n d i od es i g n oi d e o l g i c o .A c r e d i tamos q u eac h a r g ep o r ta d o r ad eu m ad i s c u r s i v i d a d ed en a t u r e z ap e r s u a s i v a ,p o r ta n t or e v e l a d o r ae d e f e n s o r ad ei d e i a s , e tambm uma expresso ideolgica, e n q u a n t oe s t r a t g i ac o m u n i c a t i v an o s m a i sd i v e r s o sc o n t e x t o ss o c i o p o l t i c o s. h a r g e ;I d e o l o g i a ;D i s c u r s op e r s u a s i v o ;I n t e r t e x t u a l i d a d e . PALAVRAS-CHAVE: C ABSTRACT:T h i s pa p e rp r e s e n ts a r e f l e c t i o no nt h ec h a r g e ,u n d e r s t o o da sak i n do fi c o n o g r a p h i c l a n g u a g e s ,w h e t h e rl e c t u r ea n di n t e r t e x t u a l ,a n dw h i c hi sc h a r a c t e r i z e da sa ni d e o l o g i c a la n d d i s c u r s i v ep r a c t i c e . We s e e kt oi d e n t i f yt h ek e yp o l i c ye l e m e n ts ,a e s t h e t i c ,a n dl a n g u a g et h a tm a k e u pt h eu n i v e r s ed e f i n i t i o no fc h a r g e ,a c k n o w l e d g i n gi ts h i s t o r i c a la n dd e t e r m i n i n gi ts c o n d i t i o n i d e o l o g i c a ls i g n . We b e l i e v et h a tt h ec h a r g ec a r r i e sap e r s u a s i v en a t u r eo fd i s c u r s i v i t y,s or e v e a l i n g a n da d v o c a t ei d e a s ,a n da l s oa ni d e o l o g i c a le x p r e s s i o n ,w h i l ec o m m u n i c a t i v es t r a t e g yi nv a r i o u s s o c i o p o l i t i c a lc o n t e x ts . KEY WORDS: C h a r g e ;I d e o l o g y ;P e r s u a s i v es p e e c h ;I n t e r t e x t u a l i t y.
Introduo
Este artigo uma primeira tentativa de sistematizao conceitual sobre a charge, objeto de pesquisa privilegiado durante todo o processo de produo acadmica individual (mestrado e doutorado), e que ora se prope ao conhecimento, submisso e apreciao crtica de outros pesquisadores no assunto. Um breve resgate da historicidade da charge, seguido por uma detalhada caracterizao dos seus elementos constitutivos, tanto de ordem poltica quanto esttica, so
9 A r t e |S oP a u l o ,v o l .1 ,n .1 ,3 7 4 8 ,1 o .s e m e s t r e / 2 0 1 2
etapas importantes para atingir o objetivo central de nossa reflexo que demarcar e analisar a condio ideolgica e persuasiva da charge enquanto estratgia comunicativa nos mais diversos contextos sociopolticos.
Ah i s t o r i c i d a d ed ac h a r g e
Ao realizarmos um breve histrico da caricatura no Brasil a partir do sculo XIX 1, verificamos que as caractersticas prprias da linguagem caricatural daquela poca, na verdade, compem o universo conceitual do que hoje assumimos
1 Ap r i m e i r ac a r i c a t u r ap u b l i c a d an oB r a s i lf o i de autoria de Manuel de A r a j oP o r t o A l e g r e , em setembro de 1837, durante o perodo r e g e n c i a l .U m as n t e s es o b r eah i s t r i ad a c a r i c a t u r an oB r a s i l ,e mc o m e m o r a oa o ss e u s 1 7 0a n o s ,p o d es e re n c o n t r a d an u me s p e c i a ld o j o r n a ld a ABI (n 322) de outubro de 2007.
3 7
como charge. Ana Maria de Moraes Belluzzo, tomando o termo caricatura para se referir produo do humor grfico na segunda metade do sculo XIX, assim argumenta: Efetivamente, a caricatura veio preencher o espao da comunicao domstica. Em sua primeira fase (1844-1895) revelou um carter combativo, e nos melhores casos, uma intensa participao na vida social e poltica do Segundo Reinado. Marcou uma nova posio do artista face sociedade (BELLUZZO, 1992, p.210). Antes mesmo do aparecimento do Diabo Coxo, em 1865, o primeiro jornal de caricaturas de So Paulo, produzido por ngelo Agostini, a histria da caricatura no Brasil j estava associada ao combate e crtica dos costumes e da poltica. Era um termo genrico aplicado a todos os desenhos humorsticos, desde que desencadeasse o riso, a crtica escarnecedora e a stira contundente. Segundo Antonio Luiz Cagnin: As armas dessa caricatura era, no raro, a stira ferina, escancarada no riso destruidor e dos ataques pessoais. Amenizouse pelo fim do sculo. Tornou a crescer no comeo deste, com a Primeira Repblica, para depois ser calada pela ditadura, primeiro de Vargas, depois da gloriosa de 1 de abril. Mas ela no se calou de todo. Disfarou as farpas, sob um sorriso fino, inteligente, mas ferindo da mesma forma que o riso escrachado (CAGNIN, s/d). Talvez em razo da instabilidade histrica da produo desse recurso iconogrfico identificado no termo caricatura no Brasil, conforme descrito por Cagnin,
3 8
associada ao fato de terem surgido outros termos que reivindicavam a identificao deste tipo de expresso artstica (como charge e cartum), vimos ocorrer uma generalizao do significado de caricatura como retrato sugerido pela semelhana entre a palavra caricatura e cara. No entanto, conforme Cagnin, h que se advertir que: [...] s nos pases de fala portuguesa possvel supor que a palavra caricatura seja derivada de cara, e, em conseqncia, que caricatura no seja outra coisa seno um retrato, uma representao humorstica da cara, em que se ressaltam os traos caractersticos, sobretudo os defeitos faciais, para provocar o riso, quando no ferir com a stira mordaz e o deboche. [...] Certamente a cara, o rosto, presente em quase todos os desenhos de humor, por ser a figura humana extremamente familiar, consolidaram este conceito equivocado, hoje to radicado entre ns, de supor que a palavra cara tenha dado origem palavra caricatura (CAGNIN, s/d). No sentido de desfazer essa associao grosseira, lembramos que a palavra caricatura no vem de cara e sim de caricare que, em italiano, quer dizer a ao material de carregar, pr, ou impor um grande peso sobre alguma coisa, pessoa, ou animal; significa tambm exagerar, aumentar de coisas e atos alm da medida. Por esta interpretao, a caricatura seria ento aquela imagem em que se carregam os traos mais evidentes e destacados de um fato ou pessoa, principalmente os seus defeitos, com a finalidade de levar ao riso. Eis nossa constatao, por ocasio de dissertao de mestrado:
A partir desta rpida anlise, chegamos concluso de que a charge, da forma como est apresentada neste trabalho, e como acreditamos deva ser entendida, enquanto uma representao humorstica, caricatural e de carter poltico, satirizando um fato especfico, herdeira da caricatura; mudou de nome, mas continua a mesma em significado e funo (MIANI, 2000, p.61). Portanto, herdeira da caricatura, termo este que passou a fazer referncia quase que exclusivamente aos retratos caricatos, a palavra charge foi conquistando o direito de significar o desenho humorstico de natureza poltica, predominantemente vinculado produo comunicativa impressa, com o objetivo de ilustrar e/ou apresentar uma opinio a respeito de determinado acontecimento histrico. Vejamos, ento, algumas das suas principais caractersticas.
Consideraes sobre a charge
Antes de tudo, faz-se necessrio registrar que a charge se constitui como uma modalidade das chamadas linguagens iconogrficas; neste contexto tambm se inserem a caricatura (retrato caricato); o cartum e as histrias em quadrinhos, pois tais meios de expresso se definem por tipos de arte de representao constitudos atravs da imagem produzida pelo trao humano (MIANI, 2000, p.42). Sem pretender estabelecer um consenso ou uma elaborao definitiva para o conceito de charge, consideramos basicamente as contribuies de dois autores para apresentar uma definio de charge. Para Antonio Luiz Cagnin, charge
9 A r t e |S oP a u l o ,v o l .1 ,n .1 ,3 7 4 8 ,1 o .s e m e s t r e / 2 0 1 2
o desenho que se refere a fatos acontecidos em que agem pessoas reais, em geral conhecidas, com o propsito de denunciar, criticar e satirizar (CAGNIN, s/d). Observa ainda este autor que a charge utilizada na stira poltica como instrumento de crtica e arma retrica de combate, bem como na defesa e divulgao de ideologias, princpios e programas polticos. E, para Edson Carlos Romualdo, a charge compreendida como o texto visual humorstico que critica uma personagem, fato ou acontecimento poltico especfico. Por focalizar uma realidade especfica, ela se prende mais ao momento, tendo, portanto, uma limitao temporal (ROMUALDO, 2000, p.21). A partir desses elementos, podemos afirmar que a charge uma representao humorstica de carter eminentemente poltico que satiriza um fato ou indivduo especficos; ela a revelao e defesa de uma ideia, portanto, de natureza dissertativa, traduzida a partir dos recursos e da tcnica da ilustrao. Outro elemento importante a destacar a efemeridade da charge, que geralmente esquecida quando o acontecimento a que se refere se apaga de nossa memria individual ou social (porm, ela permanece viva enquanto memria histrica). Na sua apresentao fsica, a charge aparece, invariavelmente, em um nico quadro e apenas raramente o artista vai recorrer da diviso do espao em duas ou mais imagens para expressar a sua ideia. Ao contrrio da charge, os quadrinhos vo realizar a sua narrativa atravs da sequncia de vrios quadros (e espaos entre eles), constituindo-se numa histria, por isso, histria em quadrinhos. No entanto, necessrio ponderar que a presena de vrios quadros representa um elemento distintivo, estrutural, das
3 9
histrias em quadrinhos; serve apenas como indicativo, uma vez que, j afirmamos, a charge pode se apresentar em mais de um quadro. Com relao funo social atribuda charge, concordamos com Aucione Torres Agostinho que a charge se constitui realidade inquestionvel no universo da comunicao, dentro do qual no pretende apenas distrair, mas, ao contrrio, alertar, denunciar, coibir e levar reflexo (AGOSTINHO, 1993, p.229). Corroboramos, ainda, com Luciana Coutinho de Souza quando a pesquisadora afirma que a charge, como toda configurao visual, expressa e transmite ideias, sentimentos e informao a respeito de si prpria, de seu tempo ou a respeito de outros lugares e outros tempos (SOUZA, 1986, p.46). Acrescentamos a essa elaborao outra qualidade da charge que a de se constituir como instrumento de persuaso, intervindo no processo de definies polticas e ideolgicas do receptor, atravs da seduo pelo humor 2, e criando um sentimento de adeso que pode culminar com um processo de mobilizao. Por este caminho, chegamos ao que se define como a finalidade da charge. Esta forma de expresso , antes de tudo, dissertativa. Nas palavras de Cagnin, cabe charge, [...] expor uma idia, dissertar sobre um tema. Ainda que esteja ligada a um fato ou acontecimento e o represente de alguma forma, sua preocupao ou a do chargista, no o acontecimento, mas o conceito que faz dele, ou mais comumente a crtica, a denncia do fato, quando no procura aliciar o leitor para os seus arrazoados,
ou
No entanto, no se devem ignorar as manifestaes narrativas, prprias da histria em quadrinhos (at porque, no limite, uma nica imagem potencializa uma narrao), e mesmo descritivas, atribudas ao novo conceito de caricatura (ou mais corretamente ao retrato caricato), presentes nas charges. Quanto aos elementos estticos e de linguagem constitutivos da charge, como tradicionalmente apresentada, em desenho, podemos citar a linha, o espao, o plano, o ponto de enfoque, o volume, a luz e a sombra, o movimento, a narrativa, o balo, a onomatopeia e o texto verbal, no aparecendo, necessariamente, todos estes elementos em todas as charges. Enfim, segundo Agostinho, [...] os elementos que estruturam a charge podem ser materiais que constituem a estruturaobjeto - ou pertencentes a outros nveis de elementos, tais como: sistema de referncia ao qual a charge recorre, ou ainda, aos sistemas de reaes psicolgicas contidas no desenho. Estes nveis podem tambm se subdividir em tantos outros, como os nveis de ritmo, de sons, de enredo, de ideologia etc (AGOSTINHO, 1993, p.227).
Neste sentido, a charge pode conter a caricatura (melhor dizendo, retrato caricato) como um de seus elementos materializados. Ainda sobre a charge, Agostinho afirma que: [...] dirige-se ao do indivduo dentro do social e, como conseqncia, necessita de vrios elementos grficos para se materializar, tais como: cenrio,
4 0
espao, perspectiva, movimento, onomatopias e, s vezes, texto verbal para completar a ao ou para dar voz aos personagens. (AGOSTINHO, 1993, p.228). Aqui, preciso afirmar que a maioria das charges vem acompanhada de textos ou palavras, uma vez que o elemento lingustico se torna importante para explicitar a sua intencionalidade ou completar o sentido humorstico e poltico proposto pela ilustrao. Vale ressaltar, ainda, que a charge se popularizou em jornais e peridicos para estimular o consumo deste ou daquele impresso, mas foi ganhando espao como material de opinio. E aqui que a charge revela toda a sua potencialidade poltica e ideolgica enquanto manifestao de linguagem. De natureza eminentemente poltica, como vimos, a charge acaba sendo uma espcie de editorial grfico [...] e por vezes ela atingiu o status de grande meio de expresso (MARINGONI, 1996, p.86), alm de revelar aspectos concretos de uma determinada poca histrica. Essa afirmao ganha maior importncia quando verificamos que, por inmeras vezes, ela aparece isolada no contexto de uma determinada publicao, sem um texto verbal fazendo referncia mesma temtica, rompendo com a (falsa) assertiva de que a imagem serve to somente como elemento decorativo ou complementar ao texto lingustico; ou seja, a charge no se restringe a reproduzir, reeditando o texto verbal no cdigo visual, nem tem como objetivo apenas ilustrar uma notcia, mas tambm interpret-la.
A charge e sua intertextualidade
no possvel analis-la de maneira absolutamente autnoma. Invariavelmente a charge participa de um contexto comunicativo maior que o jornal, revista ou outro veculo impresso qualquer e sua significao se assenta em interseces de sentido com a produo textual verbal, caracterizando-a como uma produo intertextual. As charges se integram, do sentido e compem os textos e essa unidade no deve ser quebrada. Romualdo vai alm ao afirmar que o processo de construo da charge se baseia na remisso a um universo textual e na dinamicidade da relao com outras produes textuais, seja convergente ou divergente. O referido autor afirma: Embora possua caractersticas especficas, no podemos pensar a charge como um texto isolado, sem relaes com outros textos, que aparecem no s no prprio jornal, mas tambm fora dele. O jornal apresenta um conjunto de textos que podem se relacionar de maneiras diferentes uns com os outros. Se a charge contm a expresso de uma opinio sobre determinado acontecimento, este deve ser um fato importante, com muita probabilidade de aparecer em outros textos do jornal. Isso d ao leitor a possibilidade de relacion-los e, at mesmo, usar esses outros textos para auxiliar na interpretao da charge. Nos casos em que as relaes intertextuais se do com textos que no esto no jornal, cabe ao leitor fazer a recuperao desses intertextos, para inteirar-se mais profundamente da mensagem transmitida pelo texto chrgico (ROMUALDO, 2000, p.6). Isso significa que uma situao comunicativa como a charge
4 1
Um aprofundamento sobre essa questo pode s e re n c o n t r a d oe m MIANI, Rozinaldo A n t o n i o . As transformaes no mundo do trabalho na dcada de 1990: o o l h a ra t e n t od ac h a r g en ai m p r e n s ad oS i n d i c a t o dos Meta l r g i c o sd o ABC pa u l i s ta .A s s i s : Unesp, 2005. Tese (Doutorado em Histria). F a c u l d a d ed eC i n c i a seL e t r a sd eA s s i s , Universidade Esta d u a lP a u l i s ta ,A s s i s ,2 0 0 5 .
mobiliza necessariamente o conhecimento de outros textos ou experincias vividas pelo leitor, mediando a apropriao do sentido da mensagem. Se esse leitor no conhece o fato, os personagens ou a situao retratada, ou ainda, se sente impulsionado a compreender melhor as informaes acessrias exploradas no contexto chrgico, ele dever buscar auxlio junto aos demais textos que, de alguma forma, dialogam com a charge; esse dilogo pode se dar, inclusive, de uma imagem a outra, publicadas em edies subsequentes. A charge se converte, portanto, em importante estmulo para a leitura do contedo noticioso do jornal, sejam os artigos informativos ou opinativos, como o editorial neste ltimo caso. Para Romualdo, a charge e os demais textos jornalsticos integram-se nesse contexto organizacional-ideolgico, de modo que os textos jornalsticos constrem, em parte, o contexto necessrio para a compreenso do texto chrgico (ROMUALDO, 2000, p.71). Mesmo quando a charge aparece independente de algum texto, compondo ela prpria a informao, nem assim podemos consider-la absolutamente autnoma em seu sentido; este se constitui da mesma forma, apesar da peculiaridade, numa relao de intertextualidade com o texto proveniente do contexto interno ou externo edio em que publicada. Denominamos tais charges de charge editorial, no por sua funo, pois como j vimos anteriormente ela reconhecida como uma espcie de editorial grfico, mas apenas para efeito de classificao (MIANI, 2005, p.27). Na sua natureza intertextual, a charge pode estabelecer, em relao aos demais textos, uma posio convergente ou divergente. Quando a imagem segue a mesma orientao de
sentido proposto por textos publicados no mesmo contexto discursivo em que veiculado (o mesmo jornal ou revista, por exemplo), ela qualificada como produto de relaes intertextuais convergentes; porm, ao se posicionar contrariamente orientao proposta pelos textos correspondentes, definese como produto de relaes intertextuais divergentes3.
Charge: ideologia e persuaso
A natureza de todo sistema de comunicao, de toda linguagem (e a charge uma delas), eminentemente ideolgica. Quem desenvolve essa questo com grande propriedade o pensador russo Mikhail Bakhtin. Para ele, todo signo ideolgico, caracterizado como uma realidade ideolgica, que tem sua materialidade e que se constri no ambiente social da comunicao, pela interao verbal. Afirma Bakhtin, Um produto ideolgico faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo fsico, instrumento de produo ou produto de consumo; mas, ao contrrio destes, ele tambm reflete e ref rata uma outra realidade, que lhe exterior. Tudo que ideolgico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo o que ideolgico um signo. Sem signos no existe ideologia. [...]. A existncia do signo nada mais do que a materializao de uma comunicao. nisso que consiste a natureza de todos os signos ideolgicos (BAKHTIN, 1997, p.31/36). Aqui o autor afirma que o signo reflete e refrata uma realidade. Ele reflete na medida em que se refere a uma realidade que lhe exterior e
4 2
refrata porque, dentro dos seus mais variados ndices de valor possveis, um se sobressai e outros se ocultam. Decorre dessa constatao que um mesmo signo tem significados diferentes de acordo com a situao histrico/social do sujeito e que todo e qualquer discurso se constitui como dilogo entre vrios enunciados, estes construdos socialmente. Neste momento, entramos em contato com uma das ideias fundamentais do pensamento de Bakhtin, que a dialogia (e, por conseguinte, polifonia). Para este autor, qualquer enunciao produzida por seres humanos s pode ser compreendida se entendermos sua relao com outras enunciaes. Bakhtin afirma que toda enunciao um dilogo, que faz parte de um processo ininterrupto da comunicao humana. Um enunciado jamais pode ser entendido como fato isolado, pois ele pressupe uma conexo com todos aqueles que o antecederam e com aqueles que o sucedero; um enunciado configura-se como o elo de uma cadeia e s possvel a sua compreenso dentro desta cadeia. Bakhtin no se limita a considerar dialogia como dilogo esttico entre indivduos; em geral, ele se refere s muitas formas como duas ou mais vozes se inter-relacionam, considerando que as relaes dialgicas so muito mais amplas, heterogneas e complexas do que a mera reduo ao instante da interlocuo. Dois enunciados, aparentemente diferentes, emitidos em tempo e espao diferenciados, quando conf rontados em relao ao seu sentido, podem revelar uma relao dialgica. E, mais do que isso, os mesmos pressupostos ideolgicos. E aqui, para dar continuidade nossa reflexo, h necessidade de tecermos algumas consideraes
9 A r t e |S oP a u l o ,v o l .1 ,n .1 ,3 7 4 8 ,1 o .s e m e s t r e / 2 0 1 2
acerca do conceito de ideologia e de sua materializao no processo de comunicao. Nosso ponto de partida para esta questo o conceito marxista de ideologia. Para explicar a formao das ideologias, Karl Marx e Friedrich Engels vo mostrar como se desenvolveu o processo da diviso social do trabalho e como a conscincia estar indissoluvelmente ligada s condies materiais de existncia; as ideias, por sua vez, vo nascer dessa atividade material, mas isso no significa que os homens vo representar nessas ideias essa mesma realidade; o que vai estar representado, na verdade, o modo como essa realidade lhes aparece na experincia imediata. Para sistematizar esse pensamento, Marilena Chau vai dizer que por ideologia devemos entender [...] o sistema ordenado de idias ou representaes e das normas e regras como algo separado e independente das condies materiais, visto que seus produtores - os tericos, os idelogos, os intelectuais - no esto diretamente vinculados produo material das condies de existncia. E, sem perceber, exprimem essa desvinculao ou separao atravs de suas idias. Ou seja, as idias aparecem como produzidas somente pelo pensamento, porque os seus pensadores esto distanciados da produo material (CHAU, 1985, p.65). A ideologia resulta de uma prtica social, portanto no subjetiva, no sentido de oposio a objetiva. Ela nasce da atividade social dos homens no momento em que estes procuram representar essa atividade para si mesmos. Na concepo marxista, a ideologia se apresenta de forma
4 3
invertida, se considerarmos que cada classe social deveria representar o seu prprio modo de existncia de acordo com as experincias vividas no interior das relaes sociais de produo; ou seja, as ideias que deveriam estar nos sujeitos sociais e em suas relaes sociais determinadas pela realidade do processo histrico, so tomadas como determinantes dessa mesma realidade. Marx j desvendara que a classe dominante de uma poca, portanto historicamente definida, faz de suas ideias as ideias de toda a sociedade. A ideologia, neste sentido, passa a ser o processo pelo qual as ideias da classe dominante tornam-se as ideias de toda a sociedade, de todas as classes sociais, enfim, se tornam as ideias dominantes. Nas palavras de Marx e Engels: As idias da classe dominante so, em todas as pocas, as idias dominantes, ou seja, a classe que o poder material dominante da sociedade , ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante. A classe que tem sua disposio os meios de produo material dispe assim, ao mesmo tempo, dos meios de produo espiritual pelo que lhe esto assim, ao mesmo tempo, submetidas em mdia as idias daqueles a quem faltam os meios para a produo espiritual. As idias dominantes no so mais do que a expresso ideal das relaes materiais dominantes concebidas como idias; portanto, das relaes que precisamente tornam dominantes uma classe, portanto as idias do seu domnio. Os indivduos que constituem a classe dominante tambm tm, entre outras coisas, conscincia, e da que pensem; na medida, portanto, em que dominam como classe e determinam todo o contedo de uma poca histrica,
4 4
evidente que o fazem em toda a sua extenso, e portanto, entre outras coisas, dominam tambm como pensadores, como produtores de idias, regulam a produo e a distribuio de idias do seu tempo; que, portanto, as suas idias so as idias dominantes da poca (MARX; ENGELS, 1984, p.56). Na tradio marxista, quem retomou essa questo com muita propriedade foi Antonio Gramsci. Para o pensador italiano, a ideologia concebida como uma concepo de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades econmicas e em todas as manifestaes da vida intelectual e coletiva (GRAMSCI, 1984, p.16). Isso significa afirmar que, para Gramsci, a ideologia estaria presente em todas as atividades humanas e no apenas no campo da produo de ideias, e essa presena se materializa atravs dos aparelhos privados de hegemonia. A esse respeito, Augusto Csar Buonicore afirma: Gramsci procura ento compreender os meios pelos quais a ideologia das classes dominantes penetra e ajuda, em certo sentido, a coesionar as classes subalternas sob sua direo, impedindo assim a ruptura violenta do status quo de dominao, mantendo coeso o edifcio social (BUONICORE, 2011, p.1). No entanto, a reflexo de Gramsci sobre a ideologia, que tem como ponto de partida o pensamento de Marx e Engels, est submetida s condies de hegemonia verificadas numa determinada sociedade, pois, segundo o autor, quando h crise de hegemonia, a imposio das ideias das
classes dominantes sobre toda a sociedade no se caracteriza como absoluta. Ainda a respeito da ideologia, Gramsci afirma que necessrio distinguir entre ideologias historicamente orgnicas e ideologias arbitrrias e que somente as ideologias orgnicas vinculadas a uma das classes fundamentais da sociedade capitalista - burguesia e proletariado - deveriam ser consideradas (BUONICORE, 2011, p.1). Enfim, reconhecemos que a ideologia, enquanto fenmeno social, a expresso das ideias dominantes de uma determinada poca histrica, num contexto de solidificao de uma hegemonia (na sociedade capitalista, da hegemonia burguesa), mas tambm a expresso das concepes polticas de cada uma das classes fundamentais da sociedade capitalista, num contexto de disputa pela hegemonia. Neste sentido, retomando nossa questo, faz-se necessrio analisar como um determinado discurso, atravs dos vrios materiais semiticos (e, portanto, ideolgicos) vai permear uma ao social que se apresente como um discurso ideolgico. Para Bakhtin, para quem a ideologia se materializa e se manifesta atravs da linguagem, esta se apresenta como um campo de batalha social, o local onde os embates polticos so travados tanto pblica quanto intimamente; neste sentido, o material privilegiado da comunicao na vida cotidiana a palavra. A palavra proporciona a compreenso da prpria conscincia e atua de maneira decisiva na criao ideolgica. A palavra est presente em todos os atos de compreenso e em todos os atos de interpretao, havendo uma relao dialtica entre a linguagem e o pensamento, decorrendo da manifestaes
9 A r t e |S oP a u l o ,v o l .1 ,n .1 ,3 7 4 8 ,1 o .s e m e s t r e / 2 0 1 2
concretas no comportamento humano (prxis). Para Bakhtin, O ser, refletido no signo, no apenas nele se reflete, mas tambm se refrata. O que que determina esta refrao do ser no signo ideolgico? O confronto de interesses sociais nos limites de uma s e mesma comunidade semitica, ou seja, a luta de classes. [...] Classes sociais diferentes servemse de uma s e mesma lngua. Conseqentemente, em todo signo ideolgico confrontam-se ndices de valor contraditrios. O signo se torna a arena onde se desenvolve a luta de classes (BAKHTIN, 1997, p.46). Verificamos, portanto, que atravs de um processo de comunicao, utilizando-se das vrias formas de linguagem, e considerando a natureza ideolgica dos signos - que constituem essas linguagens -, um determinado grupo que se situa como dominante, numa instituio, em relao ao seu conjunto, apresenta/ impe os pilares para a construo de uma formao ideolgica para essa coletividade, atravs da sua prtica discursiva. A charge, neste contexto e entendida como uma dessas prticas discursivas, ganha fora como reveladora de ideias e expresso ideolgica de uma determinada posio poltica que est no exerccio do poder. Feitas estas consideraes, cabe-nos agora verificar o processo de materializao da charge num discurso ideolgico e da consequente construo de um discurso persuasivo, pelas imagens. Admitimos por discurso persuasivo aquele discurso que [...] se dota de signos marcados pela superposio. So signos que, colocados como expresses de uma verdade, querem fazerse passar por sinnimos de toda
4 5
I l u s t r a o1-E m1 9 8 4 ,as o c i e d a d e clamava por democracia e o movimento Direta sJ e x p l i c i t o uo s a n ta g o n i s m o sp o l t i c o sn oB r a s i l Fonte: Sindicato dos Qumicos de So Paulo - Boletim S i n d i l u ta ,n 2 5 3 , a b r i ld e1 9 8 4 A u t o r i a :B i r a
a verdade. Nessa medida, no difcil depreender que o discurso persuasivo se dota de recursos retricos objetivando o fim ltimo de convencer ou alterar atitudes e comportamentos j estabelecidos. Isso nos leva a deduzir que o discurso persuasivo sempre expresso de um discurso institucional. As instituies falam atravs dos signos fechados, monossmicos, dos discursos de convencimento (CITELLI, 1994, p.32). Para dar um exemplo, tomemos o caso de um sindicato de trabalhadores. Como uma instituio de carter poltico/ideolgico, representativo de interesses de classe, historicamente contextualizado, um sindicato vai utilizar determinados instrumentos para sua ao poltica. Neste sentido, a referida entidade far uso da comunicao como importante aliado no processo de formao poltica de suas bases e, para tanto, far de seu discurso um ato persuasivo. preciso, com toda certeza, verificar os nveis de persuaso presentes nas produes comunicativas, de modo geral, e nas charges, de modo particular,
utilizadas no mbito do movimento sindical, mas possvel generalizar que essa ao persuasiva incontestvel. Num outro contexto poltico, como a imprensa burguesa, tambm podemos reconhecer a ocorrncia do mesmo fenmeno da ao persuasiva atravs das charges, porm numa perspectiva ideolgica antagnica, uma vez que os veculos dessa imprensa esto em consonncia com os interesses histricos das classes dominantes, por mais que se reivindiquem imparciais. Retomando algumas de nossas reflexes, j admitimos anteriormente que o estudo dos signos nos remete impreterivelmente ao estudo das ideologias e que esta, por sua vez, s existe pela mediao dos signos; j reconhecemos tambm que o signo s pode ser pensado socialmente, contextualmente, criando-se uma relao estreita entre a formao da conscincia individual e o universo dos signos, ou seja, o signo forma a conscincia que, por sua vez, se expressa ideologicamente; e j expressamos nossa posio de reconhecer a palavra como o material privilegiado da comunicao na vida cotidiana e fenmeno ideolgico por excelncia.
4 6
Considerando, ainda, que a conscincia um fato scio-ideolgico e tem como lgica a prpria lgica da comunicao ideolgica da interao semitica de um determinado grupo social e que pela conscincia que nos constitumos como seres sociais e histricos, priv-la de seu contedo semitico e ideolgico eliminar a prpria conscincia como um fato social. Portanto, o signo (palavra, imagem, gesto significante - e aqui individuamos a charge), constitui o nico abrigo da conscincia e reconhecemos como estreitas as relaes entre a charge, ideologia e construo de uma prtica discursiva, essencialmente persuasiva.
Consideraes finais
Tese (Doutorado em Comunicao). ECA-USP, So Paulo, 1993. BACCEGA, Maria Aparecida. a o e linguag em Comunica linguagem em: discursos e Comunic cincia. So Paulo: Moderna, 1998. BAKHTIN, Mikhail. Mar xismo e ia da linguag em ilosofia linguagem em. 8.ed., So f ilosof Paulo: Hucitec, 1997. BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. olino e as r azes do mo de r nismo lto razes mode der nismo. Volt So Paulo: Marco Zero, 1992. BUONICORE, Augusto Csar. logia e int e lect uais na obr a de deologia inte lectuais obra I deo A nt onio G ramsci ntonio Gr amsci. 2001. Disponvel em < http://grabois.org.br/portal/ revista.int.php?id_sessao=9&id_ publicacao=422&id_indice=2358 > Acesso em: 18 set. 2011. CAGNIN, Antonio Luiz. O s dr inhos quadr drinhos inhos. So Paulo: tica, 1975. qua CAGNIN, Antonio Luiz. Cares, caras e caretas: salo de humor e de outros humores. mimeo, s/d. CIRNE, Moacy. Uma introduo poltica aos quadrinhos . Rio de Janeiro: Angra/Achiam, 1982. CITELLI, Adilson. Linguagem e persuaso. 8.ed., So Paulo: tica, 1994. GRAMSCI, Antonio. Concepo dialtica da histria . 5.ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1984. LIMA, Herman. Histria da caricatura no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio, 1963. MARINGONI, Gilberto. Humor da charge poltica no jornal. Revista Comunicao e Educao. n 7. So Paulo: Moderna, 1996.
4 7
Como anunciado, a proposta desse artigo foi apresentar uma primeira tentativa de sistematizao conceitual sobre a charge e esperamos poder suscitar dilogos produtivos com outros pesquisadores da temtica. De nossa parte, afirmamos que o reconhecimento de sua natureza dissertativa e intertextual, portadora de ideologia e constituda enquanto prtica persuasiva, faz da charge uma importante estratgia poltica no contexto discursivo das mais diversas instituies e organizaes sociopolticas. Por fim, ressalvamos que neste trabalho, por uma questo das limitaes de espao, no aprofundamos um elemento de extrema importncia para a compreenso da charge, qual seja, o humor, que ser objeto de anlises posteriores.
Referncias
MIANI, Rozinaldo Antonio. A utilizao da charge na imprensa sindical na dcada de 80 e sua influncia poltica e ideolgica. So Paulo: ECA/USP, 2000. Dissertao (Mestrado em Comunicao). Escola de Comunicao e Artes, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2000. MIANI, Rozinaldo Antonio. As transformaes no mundo do trabalho na dcada de 1990: o olhar atento da charge na imprensa do Sindicato dos Metalrgicos do ABC paulista. Assis: Unesp, 2005. Tese
(Doutorado em Histria). Faculdade de Cincias e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista, Assis, 2005. MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A ideologia alem . 4.ed., Lisboa: Presena. 1980. SOUZA, Luciana Coutinho P. de. Charge poltica: o poder e a fenda. So Paulo: PUC/SP, 1986. Dissertao (Mestrado em Comunicao e Semitica). Pontifcia Universidade de So Paulo, So Paulo, 1986.
4 8