Genetica - Mayana Zatz PDF

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com o objetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando


por dinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo
nvel."
Folha de Rosto

Mayana Zatz
Gentica
Escolhas que nossos avs no faziam

prefcios:
Jorge Forbes
Adriana Diafria
Crdito
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser
utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou
eletrnico, fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em
sistema de bancos de dados, sem a expressa autorizao da editora.

Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortogrfico da Lngua


Portuguesa
(Decreto Legislativo no 54, de 1995

Editor responsvel: Andr de Oliveira Lima


Coordenao editorial: Martha San Juan Frana
Preparao: Juliana de Araujo Rodrigues
Reviso: Ana Maria Barbosa e Carmen T. S.
Costa
Capa: Delfin [Studio DelRey]
Imagem da Capa: Andrew
Brookes/Corbis/Latinstock
Produo para ebook: S2 Books

1 Edio de 2012

Dados internacionais de catalogao na publicao (cip)


(cmara brasileira do livro, sp, brasil)

Zatz, Mayana
Gentica : escolhas que nossos avs no
faziam / Mayana Zatz ;

Bibliografia
isbn 978-85-250-5286-5
691kb; ePUB
I. Clonagem 2. Comportamento 3.
Sociedade 4. DNA
1. Forbes, Jorge. 11. Diafria, Adriana. 111. Ttulo.

11- 08703 cdd-576.5

ndice para catlogo sistemtico:


1- gentica : Cincias da vida 576.5

Direitos de edio em lngua portuguesa para o Brasil


adquiridos por Editora Globo s.a
Av.jacarpagua, 1485 - 05346-902 - So Paulo - sp
www.globolivros.com.br
Dedicatria

A meus pais, que me transmitiram a herana dos valores ticos.

A meus filhos, Fabio e Cintia, as minhas mais importantes obras de


engenharia gentica.

A vocs, protagonistas dessas histrias, por manterem vivo um


eterno questionamento.
Agradecimentos

Agradecimentos

Este livro no teria sido possvel sem a participao de inmeras pessoas do


Centro de Estudos do Genoma Humano que me acompanham h muitos anos e
por quem tenho um enorme carinho e gratido. Listar todas uma misso
impossvel alm do enorme risco de esquecer nomes importantes. Mas eu no
poderia deixar de agradecer profundamente dra. Rita de Cssia Pavanello
uma pessoa fantstica , minha parceira em todas as situaes aqui relatadas e
com quem passei horas analisando, discutindo, questionando qual seria a melhor
conduta em cada um dos casos. A Maria Rita Passos-Bueno, Mariz Vainzof e
Constancia Urbani pelo constante apoio e amizade ao longo dos anos. Ao Jorge
Forbes e equipe de psicanalistas pelas ricas discusses.
Sou profundamente grata tambm ao Drauzio Varella, uma das pessoas que
mais me incentivaram a escrever este livro e ao saudoso Oswaldo Frota-Pessoa,
meu mestre e pai cientfico, pelo exemplo e por tudo que me ensinou.
Ao Instituto de Biocincias, Universidade de So Paulo e s agncias
financiadoras de nossas pesquisas, em particular ao cnpq e fapesp, que
possibilitaram este trabalho de tantos anos, meu mais sincero muito obrigada.
Sumrio
Sumrio

Folha de Rosto
Crdito
Dedicatria
Agradecimento
Um futuro que j presente
Direito em um mundo em transformao

Introduao

Captulo 1
Captulo 2
Captulo 3
Captulo 4
Captulo 5
Captulo 6
Captulo 7
Captulo 8
Captulo 9
Captulo 10
Captulo 11
Captulo 12
Captulo 13

Para entender melhor


Saiba mais
Sites teis
Um futuro que j presente

Este livro a base de uma medicina do futuro, do que vai nos acontecer, no do
que nos aconteceu.
Este livro uma bomba em todas as certezas acomodadas; ele coloca
problemas, pgina a pgina, frente aos quais nossas bulas de bem viver entram em
parafuso. A gentica est para o sculo xxi assim como a fsica esteve para o
sculo xx. Os avanos da gentica deixam para trs uma forma de viver e geram
problemas de ordem tica que no podem ser resolvidos geneticamente. o que
faz Mayana Zatz em seu texto. Em linguagem simples, clara, precisa, instigante e
at mesmo divertida, ela vai implacavelmente apertando o torniquete nos
crebros dos leitores, convidando docemente a responder questes impossveis,
nas quais ela, sempre na primeira pessoa com a qual escreve, incita o leitor a
participar. Como recusar to perigoso e ao mesmo tempo inevitvel convite?
Impossvel. No s pela gentileza enrgica da autora, mas, e principalmente,
porque no h como escapar s perguntas que ela coloca. As histrias relatadas
na mincia de suas particularidades so as histrias de todo mundo, promovendo
um encontro marcado com um futuro que j presente.
Este livro uma decepo para aqueles que vivem correndo atrs de reduzir
a experincia humana a uma tabela de genes onde tudo estaria previsto, como se
houvera um maktub, um estava escrito cientfico. Os que veem os geneticistas
como astrlogos autorizados pela Academia, com ttulo de doutor, vo sofrer
nessas linhas, vo ficar embaraados. Por outro lado, um blsamo aos que
compreendem que o mais essencial da humanidade ser criativo, a saber, onde
falta a determinao biolgica, porque somos seres incompletos, podemos criar,
inventar, mudar. Uma vaca sempre uma vaca, um homem... nem sempre.
Este livro um incmodo a uma parte da imprensa que adora publicar
pesquisas, a maioria merecedora do Prmio IgNobel, como se a vida se reduzisse
a estatsticas. Achava que a gentica iria ser a soluo mais perfeita, por pensar
que pesquisas escapam opinio pessoal, sempre vista com desconfiana. Qual o
qu! s mostrar seus exames a dois mdicos diferentes que voc vai ver que as
pesquisas sempre levam a marca de quem as interpreta. Por outro lado,
animador, pois chama responsabilidade de cada um frente imensido das
possibilidades atuais.
Este livro uma provocao aos juristas, que tero que reinventar o Direito,
que h muito j tropea no obsoleto e que agora, aqui, cai de vez em
contradies evidentes. Tambm os psicanalistas tero que refazer suas ideias
perseguidas de que a gentica sua inimiga, por desconsiderar o sujeito. O
nmero brutal de informaes genticas que ser disponibilizado, a partir de
agora, clamar pelos especialistas em interpretao.

Este livro, enfim, para voc encher sua bagagem de ideias sobre a vida
humana neste sculo xxi e embarcar entusiasmado nessa viagem. Bom voo!
Jorge Forbes
Psicanalista e mdico psiquiatra
Direito em um mundo em transformao

Se olharmos os resultados dos avanos cientficos nas ltimas dcadas, em


especial a partir do incio da dcada de 1990, temas como clonagem reprodutiva
e teraputica (quem no se lembra da meiga ovelha Dolly?), clulas-tronco,
reproduo assistida, aconselhamento gentico, farmacogentica, patentes
biotecnolgicas, bancos de cordo umbilical ou de dna, biotica, tica em
pesquisa, nanobiotecnologia, genoma humano e at mesmo a vida artificial,
passaram a fazer parte do dia a dia das pessoas, seja por meio dos veculos de
comunicao, seja pelo conjunto de iniciativas acadmicas e de pesquisa, que se
organizaram para difundir informaes e incentivar o debate que contribui com o
aprimoramento das polticas pblicas voltadas para esses temas no Brasil.
A medicina laboratorial, a gentica, a biologia celular e molecular e a
bioinformtica tiveram um expressivo avano tecnolgico e, consequentemente,
levaram a um aumento da quantidade de informao em escala de difcil alcance
inclusive para os especialistas na matria, o que dir para os leigos. E at mesmo
em razo dessa virtuosa evoluo de conhecimentos, e consensos ticos e
cientificos estao em permanente processo de construo, principalmente em
relao s descobertas mais recentes. Somado a isso, o avano industrial tambm
tem identificado importantes oportunidades nesses novos campos, o que coloca
questes relevantes no desafio de construir polticas pblicas adequadas e com
ampla participao social.
Fruto da experincia das atividades desempenhadas pela autora ao longo de
sua trajetria de vida e, em especial, no Centro de Estudos do Genoma Humano,
ligado ao Instituto de Biocincias da Universidade de So Paulo, maior centro de
estudos de doenas genticas da Amrica Latina, este livro acumula uma
diversidade de conhecimentos/questionamentos e situaes fticas que nos
permite uma reflexo tica, moral e jurdica mais aprofundada sobre os
resultados desses avanos cientficos e tecnolgicos. Ele nos mostra, claramente,
diversas questes ticas decorrentes da produo cientfica e tecnolgica, no s
do ponto de vista da relao do ser humano consigo mesmo, mas principalmente
na ruptura de dogmas como no caso da reproduo a partir de clulas
somticas e a manipulao, o congelamento e o descarte de embries, entre
tantos outros , retomando a necessidade de se revitalizar as mais tradicionais
questes filosficas. Questes como: O que a vida?, O que somos?, O que
desejamos ser?, esto presentes nessa discusso. Sem contar a interao dos
seres humanos com as diferentes formas de vida no sistema ecolgico, pois no
podemos esquecer que fazemos parte de um macrossistema que depende de um
equilbrio harmnico para a sobrevivncia de todas as espcies, o que ainda deve
ser objeto de estudos mais aprofundados.
Para responder a essas questes, h pouco menos de duas dcadas, a
doutrina jurdica no Brasil vem buscando trabalhar numa proposta de
sistematizao dos elementos a serem regrados conforme os princpios do
Direito, destinada a delinear os contornos pelos quais os comportamentos
cientficos, mdicos e industriais podero se realizar, ao mesmo tempo que
estabelece o conjunto das sanes pelo descumprimento das regras e normas
estabelecidas. Essa sistematizao nomeada por alguns como biodireito.
Convm lembrar que, fora do Brasil, a discusso j se estabeleceu h mais tempo,
tendo em vista o estgio cientfico tecnolgico mais avanado. Todavia, devido s
diferenas dos contextos sociais, muitas vezes as anlises comparadas no
permitem a adequao dos conceitos ao estgio atual de desenvolvimento desses
temas no Brasil.
O biodireito tem como pressuposto um conjunto de princpios, inspirados na
biotica, que orientam a aplicao das normas jurdicas relativas s inovaes
cientfico-tecnolgicas associadas ao cdigo gentico, substncias e outras
partes do corpo humano, visando proteo da dignidade humana. Grande parte
da doutrina jurdica especializada no tema tem entendido que os referenciais da
biotica que contribuem, num primeiro plano, para a construo desse arcabouo
jurdico so os princpios da autonomia do consentimento informado, da
beneficncia ou no maleficncia, da justia, da sacralidade da vida humana e da
dignidade do ser humano, questes que de forma prtica e sincera so abordadas
neste livro.
Ocorre que, na prtica, grande parte desses temas ainda precisa e deve ser
enfrentada com profundidade pelo Poder Legislativo, uma vez que no foi objeto
de tratamento jurdico adequado, ou, quando isso ocorreu, esbarrou em
problemas conceituais que dificultam a efetiva aplicao das normas. o
clssico caso em que a dinmica da cincia relativiza os conceitos j construdos
em face dos novos resultados alcanados, e fica difcil estabelecer novos
conceitos legais para temas que ainda esto em construo no campo tico e
cientfico. Somado a esses fatores, o Poder Judicirio tambm precisa se
aprofundar nessas questes, pois a falta de jurisprudncias que reflitam esses
novos referenciais bioticos tem dificultado a melhor orientao na conduo
desses temas no campo prtico.
A perplexidade humana em face dos impressionantes resultados da ao
cientfica e tecnolgica, em campos que at ento eram de absoluto domnio da
natureza ou da divindade, no pode paralisar o debate e a construo dos
instrumentos necessrios que permitam o progresso de toda a humanidade de
forma digna, harmnica e consciente. Obviamente, o Direito no deve impedir o
desenvolvimento cientfico, mas sim orientar os contornos mnimos que
asseguram o equilbrio e a ponderao de valores entre a preservao da
dignidade humana e a ruptura de paradigmas resultante dos avanos do
conhecimento e das tcnicas. O vazio na regulamentao jurdica e no
tratamento tico desses temas fragiliza a preservao dos valores mais
fundamentais que estruturam as sociedades humanas, os quais devem ser
fortemente respeitados e protegidos. Portanto, imprescindvel se considerar
que as respostas e as solues para esses dilemas devero ser sempre buscadas, e
iniciativas como a desta obra devem ser reconhecidas, em toda sua importncia e
na contribuio que trazem para toda a sociedade.
A riqueza deste trabalho est no s na contribuio que traz para a
continuidade dos debates sobre as questes que envolvem o acesso e o uso das
informaes geradas pelos avanos cientficos e tecnolgicos, mas
principalmente em razo da forma simples e didtica com que aborda conceitos
cientficos e bioticos que giram em seu entorno, permitindo a todo leitor
interessado na temtica entender um pouco mais dessa realidade e compreender
as novas estruturas e dilemas que j esto sendo tecidas e que necessitam da
participao de toda a sociedade para a construo dos novos pilares de
sustentao das civilizaes vindouras.
Dar oportunidade para a ampla disseminao dessas questes pode garantir
um maior comprometimento de setores estratgicos do pas voltados gentica,
como o caso dos gestores de polticas pblicas de sade, instituies de
pesquisa, agncias de fomento, conselhos de tica em pesquisa, Poder
Legislativo, Poder Judicirio e toda a sociedade brasileira, de forma que sejam
institucionalizados mecanismos adequados que garantam efetivamente o respeito
dignidade da pessoa humana, corolrio maior da Constituio Federal
brasileira, a partir da compreenso das novas relaes que as cincias e as
tcnicas passam a estabelecer com o ser humano, na sua esfera mais ntima, de
sua individualidade e de sua forma de ser e de estar no mundo.
Participar desse processo fundamental para quem deseja estar consciente
da realidade em que vive e se sentir capaz de exercer o direito pleno de poder
fazer suas escolhas, para garantir sua dignidade, sua qualidade de vida e, acima
de tudo, sua felicidade, pois todos ns estamos aqui para isso: sermos felizes.
Nossos avs no puderam fazer essas escolhas, mas as geraes futuras
dependem das nossas.
Adriana Diafria
Doutora em Direito das Relaes Sociais pela Puc-sp especializada nos temas
Biotecnologia, Acesso a Patrimnio Gentico e Biossegurana
Introduo

Introduo

Este livro dedicado gerao que nasceu ou vai nascer nesta era revolucionria
da gentica. tambm um livro para profissionais geneticistas, mdicos,
pesquisadores, psicanalistas, antroplogos, advogados, juzes que certamente
se confrontaro com decises difceis na interseco entre os avanos da
gentica e da tecnologia reprodutiva e os dramas pessoais das famlias daqueles
afetados por doenas com essa origem. Por outro lado, este livro tambm
dedicado s inmeras pessoas que, felizmente, no tiveram contato direto com
esses dramas, mas pertencem a uma sociedade que tem a oportunidade de
discutir, de refletir e de se posicionar sobre as implicaes dos avanos
cientficos. O conhecimento do genoma humano e o desenvolvimento de novas
tcnicas tais como reproduo assistida, diagnstico pr-natal, diagnstico
pr-implantao, seleo de embries, clulas-tronco, clonagem, terapia gnica,
manipulao de genes tero desdobramentos que se estendem a domnios que
extrapolam o contedo objetivo das descobertas.
Por se tratar de questes difceis de ser explicadas para quem no vive o
drama de perto ou no cientista, a evoluo da gentica costuma passar
despercebida da maioria das pessoas. At que uma manchete extraordinria nos
jornais desperte a ateno e desafie a imaginao. O fato que a cincia do
sculo xxi, que j est revolucionando a medicina e o que temos de mais
importante o conhecimento do nosso genoma , avana a passos rpidos
demais. Quando me apaixonei pela gentica, ainda adolescente, quase ningum
sabia o significado dessa palavra. Naquela poca, poucos se davam conta de que
esse ramo da biologia estava destinado a se tornar to vital com tantas
aplicaes na vida humana. Hoje, mesmo quem no est familiarizado com as
tcnicas por trs desses avanos sabe o quanto eles so importantes at por meio
de filmes, livros e novelas de tv. Mas no o bastante. Como voc vai perceber
no desenrolar deste livro, a gentica no envolve apenas cincia e tcnica, mas
dramas humanos, filosficos, ticos e morais.
Ao me defrontar com a cincia e o sofrimento de famlias atingidas por
doenas genticas, tive a sorte de contar com excelentes mentores. No posso
deixar de mencionar o professor Oswaldo Frota-Pessoa, uma inteligncia
brilhante e uma pessoa extraordinria, extremamente amoroso com as famlias
dos pacientes que o procuravam, e muito rigoroso com seus alunos no
questionamento cientfico. Foi um lder inesquecvel. Aprendi com ele que, para
compreender algo de fato, temos que nos envolver. Ainda na faculdade, o
professor Frota-Pessoa me abriu as portas de um mundo alm dos livros e
laboratrios ao me convidar para fazer parte do servio de aconselhamento de
famlias com portadores de doenas genticas. Foi quando percebi que, ao entrar
no campo da gentica mdica, eu poderia fazer pesquisa cientfica e ao mesmo
tempo ajudar aqueles que sofriam com essas doenas. Comecei a me interessar
pelas doenas neuromusculares, que atingem uma em cada mil pessoas,
originando uma perda da musculatura e uma fraqueza progressiva. Muitos me
perguntam por que, j que felizmente eu no tinha nenhum parente afetado. Foi
um desses acasos determinantes na vida das pessoas.
Na dcada de 1970, ainda iniciante nesse trabalho, conheci uma moa muito
jovem que procurava aconselhamento gentico porque sua irm tinha trs filhos
afetados por distrofia muscular de Duchenne, uma doena degenerativa letal que
causa perda progressiva da musculatura, para a qual ainda no existe cura. Ela ia
se casar e no queria que os filhos que viesse a conceber estivessem destinados a
desenvolver a doena. Foi muito frustrante saber que eu no poderia fazer nada
por aquela moa a no ser recitar estatsticas sem sentido para quem vivia o
drama to de perto. Naquele momento, decidi que gostaria de fazer mais para
ajud-la e a outras como ela, e assim estabeleci que aquele grupo de doenas
seria o foco das minhas pesquisas.
A era da medicina molecular estava apenas comeando e meu trabalho tambm.
Enquanto fazia pesquisas laboratoriais e tentava aprender mais sobre as
distrofias, iniciei o servio que hoje est consagrado como aconselhamento
gentico. Trata-se de uma expresso que abrange um leque amplo de
procedimentos, comeando pelo diagnstico (que se inicia com um exame clnico
e diferentes exames moleculares). Uma vez confirmado o diagnstico, possvel
saber se h ou no chance de repetio daquela doena e se existem outros
familiares em risco. durante o aconselhamento gentico que se discute qual a
probabilidade de desenvolver ou transmitir uma doena e as opes para evitar ou
prevenir o mal. O que significa, na maioria das vezes, um alvio para quem vive sob
a ameaa de doenas s vezes pouco conhecidas e enfrenta questes emergentes
relacionadas reproduo, experincias teraputicas e tratamentos ainda no
reconhecidos que frequentemente s visam ao lucro.
Naquela poca, sentia cada vez mais a necessidade de esclarecer e informar
cuidadosamente as famlias com afetados sobre o que eram as alteraes
genticas responsveis pela doena que estava presente naquela famlia, quais os
prognsticos, quais os riscos de terem outros filhos com o problema, e o que
poderia ser feito para melhorar a qualidade de vida de todos que viviam com
distrofias e outros males. Foi um perodo rico em que, a cada dia, surgiam mais
informaes e os desdobramentos da gentica avanavam. Iniciei um laboratrio
independente em 1978, quando voltei dos Estados Unidos depois de meu ps-
doutorado na Universidade da Califrnia. Com a colaborao das minhas alunas
Maria Rita Passos-Bueno e Mariz Vainzof, hoje professoras da Universidade de
So Paulo, as pesquisas avanaram. Fomos pioneiras na introduo das tcnicas
de biologia molecular para o estudo de genes humanos no Brasil. Formamos uma
equipe capacitada para estudar os pacientes desde o gene at as protenas
musculares que, quando ausentes ou defeituosas, eram responsveis por aquelas
doenas. Nesse perodo, conseguimos identificar vrios genes novos responsveis
por doenas genticas, principalmente neuromusculares. Foi o incio da nossa
contribuio ao projeto internacional que estava se desenrolando naquele
momento. Descobrir os genes que causam doenas nos permite entender qual a
funo deles que o objetivo maior do to falado Projeto Genoma Humano.
Foi tambm nessa poca que passei a revisitar os parentes de afetados que
eu havia conhecido no incio dos meus estudos, para avaliar se o aconselhamento
gentico havia tido algum impacto na vida reprodutiva das famlias com alto risco
gentico. Tive a boa notcia ao saber que nasceram poucas crianas afetadas
naquelas famlias que havamos atendido. A grande maioria tinha compreendido a
natureza gentica da doena que acometia seus filhos e o risco de vir a ter outros
com o mesmo problema, tomando medidas contraceptivas eficientes. Por outro
lado, me confrontei com uma triste realidade: o total abandono das crianas mais
velhas que j haviam nascido antes do aconselhamento gentico, na poca em
que eu havia iniciado meus estudos. Meninos que no tinham cadeira de rodas,
acesso escola, fisioterapia ou a alguma atividade recreativa. Crianas
excludas da vida social.
Foi quando decidi que ser s cientista era muito pouco. Precisava fazer mais
por eles. Fundei, em 1981, a Associao Brasileira de Distrofia Muscular, que
presido at hoje. Graas a uma equipe multidisciplinar que trabalha em contato
direto com a equipe cientfica, a expectativa de vida dos pacientes com distrofia
de Duchenne, que dificilmente passava dos vinte anos, j ultrapassa os trinta e
at quarenta anos. Recentemente um grupo de pesquisadores dinamarqueses
entrevistou pacientes com distrofia que haviam ultrapassado os quarenta anos.
Apesar de estarem todos em cadeira de rodas e dependentes para todas as
atividades, mais de 80% deles declararam-se muito felizes. Essa porcentagem
bastante superior quela encontrada na populao saudvel dessa faixa etria,
conforme declararam os pesquisadores surpresos. Isso nos d um enorme nimo e
refora que no podemos medir esforos quando se trata de melhorar e
aumentar a expectativa de vida desses pacientes.
Desde o incio, j fazamos testes para identificar se as irms dos pacientes
de distrofia de Duchenne tambm tinham o gene com a mutao responsvel
pela doena. Essas meninas, identificadas como possveis portadoras, no
desenvolveriam seus sintomas, mas eram informadas que tinham alto risco de
gerarem filhos doentes. Embora isso seja raro nos dias de hoje, naquela poca era
comum educar as meninas apenas para o casamento e para a procriao. Quando
descobramos que uma menina era portadora, orientvamos os pais a incentiv-la
a estudar e a ter uma realizao profissional, e no almejar casar e ter filhos
como objetivo nico na vida. A experincia mostrou que, embora a notcia de que
eram portadoras de uma mutao capaz de produzir uma doena grave pudesse
representar um impacto emocional, muitas delas, hoje adultas, nos procuram
mais preparadas para tomar decises reprodutivas e prevenir o nascimento de
crianas afetadas. E importante lembrar que os testes genticos baseados em
anlise de dna so hoje muito mais precisos que os testes bioqumicos de ento.
Alm disso, tecnologias modernas, como o diagnstico pr-natal no primeiro
trimestre, bem como o diagnstico pr-implantao, que veremos mais adiante,
no existiam naquela poca.
Essas pessoas e suas histrias de vida, dilemas e grandezas me ensinaram
muito e me comovem at hoje. Elas nos levam a repensar e redimensionar nossos
problemas constantemente. E, ao contrrio do que muitos pensam, o retorno que
recebemos dessas famlias, os seus exemplos, os seus ensinamentos, as suas lies
de vida so infinitamente maiores do que qualquer ajuda que acreditamos estar
lhes dando. So elas que nos motivam a lutar, a pesquisar, a no desanimar com
os obstculos. Lembro-me sempre de um pai tentando consolar uma me que
estava desesperada. Acabara de saber que seu filho tinha uma doena progressiva
e incurvel. Ele olhou para ela e disse: Voc ainda no percebeu. Ns somos
muito especiais. Ns fomos escolhidos para cuidar dessa criana. E o mais
admirvel que esse pai no havia sido escolhido. Ele havia decidido adotar uma
criana com distrofia muscular.
Culminando esse trabalho, em 2000, inauguramos o Centro de Estudos do
Genoma Humano (cegh), ligado ao Instituto de Biocincias da Universidade de
So Paulo, que hoje o maior centro de estudos de doenas genticas da
Amrica Latina e, desde a sua criao, j atendeu mais de 50 mil famlias
interessadas em se submeter a aconselhamento gentico. O cegh tem quatro
misses: pesquisa bsica sobre o genoma humano e as doenas genticas,
atendimento gentico s famlias com afetados (diagnstico clnico e
laboratorial de portadores, orientao e aconselhamento gentico), ensino e
divulgao.
Ao longo dos anos, enquanto continuvamos com os estudos, mapeando novos
genes, tentando compreender o seu papel no processo das doenas, atendamos
as famlias de afetados, possibilitando-lhes o acesso tecnologia de ponta e aos
resultados mais recentes das nossas pesquisas. Esse envolvimento direto com as
famlias permitiu selecionar ocasionalmente pacientes que poderiam contribuir
para novas descobertas, em uma estrada de mo dupla: os pacientes permitindo
avanos nas pesquisas e as pesquisas ajudando os pacientes. Isso porque famlias
grandes, com vrios afetados, so preciosas para mapear novos genes. Toda vez
que identificvamos genealogias como essas, l amos ns, Brasil afora, em busca
de todos os parentes. Visitar essas pessoas em lugares distantes, muitas vezes de
difcil acesso, conhecer as suas histrias, a sua cultura, as suas crenas, foram
experincias inesquecveis. ramos sempre recebidos com muito carinho. Foram
essas famlias que nos permitiram identificar novos genes, entender quais eram as
suas funes, o que havia de errado neles, por que causavam doenas. E, de posse
dessas informaes, podamos dar um retorno nessa via de mo dupla: identificar
nessas famlias quem tinha ou no risco de gerar novos afetados e como prevenir
que isso acontecesse. Assim, os avanos na tecnologia molecular permitiram
aprimorar o diagnstico e a identificao de casais com risco de terem seus
filhos afetados.
Esse conhecimento e a experincia do aconselhamento gentico trouxeram
novos e inmeros questionamentos, no apenas para ns, mas para todas as
pessoas que, em outras partes do mundo, se dedicavam a esse trabalho. Definiu-
se que a procura de testes genticos para diagnstico ou identificao de casais
em risco deveria ser voluntria. A exceo o rastreamento de recm-nascidos
para algumas condies que possam benefici-los com tratamento precoce, tais
como fenilcetonria (doena causada pelo defeito ou ausncia de uma enzima,
acarretando danos cerebrais) e hipotireoidismo congnito (quando a glndula
tireoide do recm-nascido no capaz de produzir a quantidade adequada de
hormnios). Essas e outras doenas, como anemia falciforme e fibrose cstica,
podem ser detectadas pelo teste do pezinho, obrigatrio por lei em todo o Brasil
e parte do Programa Nacional de Triagem Neonatal realizado pelo Sistema
nico de Sade (sus).
Fora esses casos, a privacidade de um indivduo deve ser protegida de
terceiros institucionais, tais como empregadores, seguradoras, escolas, entidades
comerciais e rgos governamentais. O diagnstico pr-natal deve ser feito
apenas para detectar condies genticas e malformaes fetais.
Estabeleceu-se tambm que, apesar do termo aconselhamento gentico, o
geneticista no aconselha. Ele deve apenas cuidar para que as possibilidades de
escolha de seus pacientes sejam informadas e esclarecidas, sem emitir suas
opinies. As decises sobre o que fazer com as informaes contidas nos genes
so exclusivamente dos interessados. Ouo frequentemente consulentes
perguntarem: O que voc faria se estivesse no meu lugar?. No podemos opinar.
A percepo do risco gentico, da gravidade da doena, de quanto isso ir
influenciar na vida pessoal uma questo totalmente subjetiva. Mas sempre me
pergunto se, na prtica, no acabamos transmitindo a nossa opinio ou nossos
sentimentos involuntariamente por meio de um gesto, de um olhar.
Fomos percebendo claramente que, ao mesmo tempo que o aconselhamento
gentico permite prevenir o nascimento de novos afetados ou melhorar a
qualidade de vida, tambm cria uma srie de questionamentos ticos. Esses
questionamentos no se referem apenas aos avanos mais recentes da medicina,
ou biotica de fronteira, mas tambm a dilemas cotidianos, tomando
emprestadas as palavras de Giovanni Berlinguer, referindo-se s novas formas de
nascer, viver e morrer em um mundo tecnicamente avanado, mas pleno de
contradies. Estudiosos do tema, como Berlinguer e outros, se dedicaram
biotica, nascida na dcada de 1970, para alertar os pesquisadores, em particular
os da rea biomdica, quanto ao eventual uso eticamente inadequado dos
avanos da biologia molecular. No tenho a pretenso de ser uma profunda
conhecedora dessa cincia, embora aprecie muito essas discusses. No entanto,
o servio de aconselhamento gentico ao longo desses anos me permitiu reunir
uma srie de histrias que desafiam esse conhecimento, quando baseado numa
padronizao de valores.
So histrias que reuni e chamo a ateno para elas neste livro porque
resvalam em conflitos, em dilemas pessoais para muitos dos quais no tenho
respostas. No so consideraes tericas. So histrias reais, histrias do
genoma, ou da constituio gentica de pacientes e famlias atendidos ao longo
dos anos, cujos nomes, evidentemente, foram alterados. So questes que pem
prova vrios princpios, como a confidencialidade, por exemplo, cuja garantia
um dos pilares do aconselhamento gentico e uma das medidas tomadas para
proteger os portadores de doenas ou seus descendentes. um princpio muito
justo, uma vez que o risco da quebra da confidencialidade pode resultar na
discriminao decorrente de usos indevidos que possam ser feitos da informao
gentica. Mas a prtica j demonstrou que as situaes inesperadas resultantes
dos avanos cientficos extrapolam as respostas bvias. O que fazer, por exemplo,
quando h alto risco de srio dano para os familiares e a informao pode ser
utilizada para evitar esse dano? Podemos interferir? Os casos relatados nos
captulos 1 e 2 e o impacto que as informaes teriam sobre a vida das suas
famlias ilustram bem esses dilemas.
Os avanos nas tcnicas de diagnstico pr-natal permitem a deteco de
um nmero crescente de doenas genticas no incio da gravidez. Trata-se de um
grande avano incorporado, aos poucos, rotina dos exames que asseguram a
sade do feto e a tranquilidade do casal. Mas se de um lado esses exames trazem
segurana e uma gestao serena, por outro podem ter impactos descritos a
partir do captulo 3 que dificilmente algum imaginaria h alguns anos.
E o que dizer dos testes preditivos, que permitem em algumas situaes
determinar em um recm-nascido se ele ir desenvolver uma doena trinta,
quarenta, cinquenta anos mais tarde? Decidimos h alguns anos no testar
crianas que poderiam ser portadoras assintomticas de doenas que s iriam se
manifestar na vida adulta e para as quais no existe tratamento, apesar da
insistncia de alguns pais que queriam ter seus filhos testados. No h benefcios
nessa descoberta. Ao fazer esses testes, voc acaba tirando da criana a opo
de decidir no futuro se ela deseja ou no saber se possui esse gene patognico.
Nossa experincia mostra que os jovens adultos preferem no ser testados ao
compreender que nada pode ser feito para ajud-los se o resultado do teste
mostrar que eles tero a doena. Coletar uma amostra de sangue ou de saliva
para um exame gentico muito fcil. Mas a lista de questes que uma pessoa
precisa considerar antes de decidir fazer esses testes cresce a cada dia. Para que
problema ela est sendo testada? Quais as implicaes de um resultado positivo?
Ou negativo? O que possvel fazer em cada um desses casos?
Com o desenvolvimento de novas tecnologias e a possibilidade de analisar o nosso
genoma a um custo cada vez mais acessvel, novas questes inesperadas tomam
corpo a cada dia. Os dilemas e os questionamentos ticos, que eram, no incio,
restritos a famlias com afetados por doenas genticas, esto tomando
propores maiores. Menino ou menina: o que voc faria se pudesse escolher?
Quantos filhos voc est determinado a ter ao recorrer fertilizao assistida?
tico selecionar embries de determinado sexo? Ou para tentar salvar um irmo
afetado por uma doena letal, os chamados irmos salvadores? E se no futuro
essa tecnologia for usada para escolher embries com determinadas
caractersticas, tais como cor de olhos, estatura, habilidade para esportes ou
outros motivos fteis? No se trata de uma nova eugenia? Quais so os limites?
o que procurei relatar nos captulos 4 e 8.
Outro assunto polmico: as clulas-tronco, que em passado recente
motivaram tanta controvrsia. Estamos preparados para iniciar os primeiros
testes clnicos? Por um lado, devemos sempre agir com cuidado nessas
circunstncias; por outro, as possibilidades so to surpreendentes que a cautela
exagerada pode resultar em no salvar vidas. Mal comparando, imagine um
motorista de ambulncia. Apesar de a regra ser o extremo cuidado e a cautela, o
que fazer quando se est transportando um paciente beira da morte? A ordem
no correr mais e dar o alerta para que os outros carros abram passagem? E os
bancos de cordo umbilical: pblicos ou privados? tico cobrar por uma
promessa ainda sem fundamento? So assuntos polmicos que discuto nos
captulos 9 e 10.
Testes de dna j esto sendo oferecidos em farmcias. Algumas das
variantes genticas so totalmente fteis: cera mida ou seca no ouvido,
capacidade de sentir ou no alguns odores so exemplos do que chamei de genes
da futilidade. Mas e os testes que prometem determinar se temos risco
aumentado para algumas doenas como cncer, mal de Alzheimer ou outros
problemas genticos? Saber desses riscos vai nos ajudar ou simplesmente nos
angustiar? No estamos contribuindo para aumentar o nmero de
hipocondracos? E o mais importante: quem ir interpretar os resultados? Testes
de dna mexem com probabilidades de doenas que podem assustar os portadores
se no tiverem acompanhamento adequado e explicaes minuciosas sobre o que
se pode fazer a respeito. Mas qual o impacto que esses testes tm na vida das
pessoas que j esto se submetendo a eles? Ser que to significativo?
Bancos de dna so outra questo polmica. As amostras devem ser
decodificadas para garantir o anonimato ou o registro de cada amostra deve ser
mantido em confidencialidade? Quais so os prs e os contras de cada uma
dessas condutas? o que discutimos nos captulos 11 e 12. E se, por um lado, a
tica anda sempre na rabeira dos avanos cientficos, os interesses comerciais
esto sempre na dianteira. A gentica no exceo, como veremos.
E finalmente a clonagem reprodutiva humana. Hoje um risco biolgico
inaceitvel. Mas e se amanh essa tcnica puder ser realizada de maneira
segura? tico ou no? Quem deveria ser clonado? Quem deveria decidir?
Estamos vivendo em uma era invejvel em termos de cincia. Novas
descobertas so anunciadas a cada dia a uma velocidade comparvel gua que
jorra de uma mangueira de bombeiro. Aos poucos, elas interferem na vida de
cada um. No h como escapar. O que h de mais fascinante que nesse mundo
da gentica, que tantos julgam determinista, o que menos h so certezas. A
informao gentica abala alguns dos nossos valores mais importantes, toma
rumos inesperados e traz tona reaes contraditrias. o que pretendi mostrar
neste livro em que conto alguns dos muitos conflitos a que fui exposta ao longo
desses anos. No existe regra de conduta ainda. Cada caso um caso. No
tenho respostas para a maioria deles, mas convido voc, leitor, a refletir junto e
se posicionar ou a concluir quo difcil isso pode ser em algumas situaes. Cabe
sociedade discutir, refletir e decidir: O que tico? Quais so os limites?
Estamos preparados para lidar com a avalanche desses novos conhecimentos?
Captulo 1
Captulo 1

Paternidade ou o direito de no saber

Entre as novas tecnologias relacionadas ao material gentico, certamente aquela


que mais se popularizou foi o exame de investigao da paternidade. Trata-se de
uma tecnologia excelente que a gentica oferece, esclarecendo situaes de
incerteza que no passado desgastavam os relacionamentos e a qualidade de vida
dos filhos. Brinca-se que os testes de paternidade acabaram com a sndrome de
Capitu, assim chamada em aluso ao romance Dom Casmurro, de Machado de
Assis. Na histria, Bentinho, casado com Capitu, atormentado pela dvida de
ser ou no pai de Ezequiel, que se parece muito com Escobar, amigo do casal. No
final, corrodo pelas incertezas, Bentinho se separa da mulher e do filho.
Mas e quando a dvida sobre a paternidade no existe e o exame de dna
revela segredos que a famlia gostaria que ficassem ocultos? Uma dessas
situaes ocorreu na Universidade de Leiden, na Holanda, e foi discutida em
seminrio por colegas do Departamento de Gentica Humana com os quais
fazemos pesquisas em colaborao. Eles haviam atendido, no servio de
diagnstico pr-natal, Ingrid, uma advogada muito bem informada, que estava no
incio da gravidez. Seu pai tinha hemofilia e ela sabia que era portadora
assintomtica do gene causador da doena.
Hemofilia o nome que se d a um distrbio na coagulao do sangue
provocado por mutaes no gene dos fatores viii ou ix, que so protenas
envolvidas nesse processo. Nos casos mais graves, os sangramentos evoluem para
hemorragias s vezes internas, ou em locais como msculos ou articulaes.
Muitas vezes, esses sangramentos resultam em restrio aos movimentos,
aumento da temperatura e dor forte.
Ingrid contou que era muito ligada ao pai e sofria toda vez que o via nessa
situao. No queria colocar no mundo um filho com essa doena e estava
disposta a interromper a gestao para que isso no ocorresse. Na Holanda,
como em outros pases europeus, isso permitido quando se trata de doenas
genticas, desde que o casal manifeste essa inteno. importante lembrar que,
embora nesses pases o aborto seja permitido desde que a mulher manifeste essa
vontade, interromper uma gestao quando o diagnstico pr-natal revela que o
feto ter uma doena sem tratamento sempre uma deciso dolorosa. Isso
ocorre com casais que desejam ardentemente um filho, mas no acham justo
colocar no mundo uma criana sabendo de antemo que ela ser doente.
Lembro que, na Califrnia, onde fiz meu ps-doutorado, enquanto as
enfermeiras tratavam com muito desprezo mulheres que queriam abortar por
motivos sociais, havia toda uma equipe para dar suporte quelas que
interrompiam a gravidez porque o diagnstico pr-natal havia revelado um feto
doente. Alm disso, tomvamos uma srie de cuidados para tentar diminuir o
vnculo materno-fetal e minimizar o sofrimento desses casais com alto risco
gentico enquanto esperavam os resultados dos testes. Por exemplo, usava-se
sempre a expresso feto em risco, e no beb em risco. Os profissionais do
servio de diagnstico pr-natal eram orientados a no revelar o sexo em exames
de ultrassonografia enquanto no se soubesse se o feto tinha ou no a mutao
patognica.
Mas voltemos a Ingrid. Para entender melhor o drama que ela estava
vivendo, preciso explicar que a hemofilia resulta de uma herana gentica
transmitida por um gene presente no par de cromossomos sexuais xx e xy.
Normalmente, as mulheres, que so xx, tm apenas um dos dois genes alterado e
o outro compensa a falha promovendo os fatores de coagulao em quantidade
suficiente. Nos homens, entretanto, esse par formado pelos cromossomos xy.
Possuindo apenas um X, eles no tm como compensar a deficincia e, portanto,
a produo da protena fica comprometida.
Existem vrias outras doenas genticas que seguem o mesmo padro de
herana ligada ao cromossomo X. Isso explica por que as mulheres podem ser
portadoras sem sinais clnicos, enquanto os homens manifestam a doena. O pai
hemoflico transmite sempre o cromossomo X afetado para suas filhas. Elas no
tero nenhuma manifestao, mas os herdeiros do sexo masculino tm uma
probabilidade de 50% de ter o gene da hemofilia.
Hoje, j possvel determinar o sexo do beb e se ele portador ou no de
uma mutao responsvel pela hemofilia com apenas oito a dez semanas de
gestao. um exame simples, que analisa o dna do feto, por meio da coleta
intravaginal de vilosidades corinicas (um tecido que origina a placenta). O
primeiro passo descobrir qual a mutao, o que feito por meio da coleta de
sangue e anlise de dna da gestante e de seus pais, em particular, no caso de
Ingrid, de seu pai afetado. Caso ela estivesse esperando um menino, seria
necessrio determinar se ele havia ou no herdado a mutao que causa a
hemofilia de seu av materno.
O exame foi feito com amplo consentimento de toda a famlia. Mas, ao
fazer a primeira anlise gentica, antes do diagnstico pr-natal, os
pesquisadores holandeses descobriram inesperadamente que o senhor hemoflico
no era o pai biolgico de Ingrid. De um lado, tratava-se de uma tima notcia.
Significava que ela no era portadora e, portanto, nem poderia transmitir o gene
da doena. Assim, no teria risco de ter um beb afetado nem nessa gestao
nem em uma futura gravidez. Mas como dar essa notcia?
Um dos primeiros mandamentos da tica mdica informar o paciente de
todos os procedimentos que sero adotados. No caso de testes de
reconhecimento de alguma doena, ele deve conhecer os riscos, os benefcios, os
possveis resultados e tudo o que seria possvel descobrir com base em sua anlise.
O objetivo deixar a pessoa totalmente informada sobre como esses exames
podem eventualmente mudar a sua vida e as possveis consequncias sobre seu
organismo ou de sua descendncia.

Mas numa especialidade como a gentica mdica, em que as descobertas


ocorrem to rapidamente, impossvel prever todas as implicaes ticas. E uma
coisa que deve ficar clara que, apesar de no ser um teste de paternidade,
frequentemente o exame determina o vnculo gentico entre a pessoa testada e
seus parentes. E o que continua chocando muitas pessoas pesquisas
realizadas nos Estados Unidos mostraram que esse tipo de informao
acidental, revelada pelo exame de dna, no rara. Em cerca de 10% das
famlias testadas naquele pas, o pai reconhecido no o pai biolgico da
criana, o que pode alterar totalmente o risco para futuros descendentes
daquele casal.
Segundo uma pesquisa americana realizada em vrios pases, 96% dos
mdicos consultados optam por no revelar o resultado do teste para manter a
famlia unida. Uma minoria (13%) disse que ocultaria o fato ou mentiria a
respeito (diria, por exemplo, que a mutao no est presente, apesar da doena
familiar). Contei essa histria em meu blog na revista Veja, e os comentrios dos
leitores foram bastante divididos. Muitos sugeriram que no se contasse a
verdade, apenas revelasse que o beb no corria riscos de vir a ter hemofilia.
Diziam que se o exame solicitado foi de averiguao do gene de hemofilia, e no
de investigao de paternidade, no existiria nenhum constrangimento e nem
obrigao de revelar um fato que no diz respeito sade do filho de Ingrid.
Outros disseram que o certo seria ter uma conversa com a me de Ingrid para
que ela ento contasse a verdade filha e ao marido.do exame para Ingrid e a
me, e elas ento decidiriam se contariam ao suposto pai. E houve tambm quem
optasse pela regra bsica: se toda a verdade deve ser dita, Ingrid e o pai tambm
devem saber, e as consequncias devem ser assumidas pela me. Os leitores que
optaram por essa soluo, no entanto, salientaram que a notcia deveria ser dada
com todo o cuidado, com auxlio de psiclogo ou servio especializado, lembrando
o trauma que poderia causar a toda a famlia.
Como se v, a questo bem delicada e no h um consenso sobre isso. No
caso de Ingrid, a famlia era muito unida e ningum desconfiava da situao.
Contar a verdade mesmo que fosse apenas para a futura me poderia
desestruturar a relao familiar. No contar implicava fazer exames que no
deixam de ser invasivos e desnecessrios. O que voc faria se estivesse na
situao dos geneticistas responsveis?
Histrias desse tipo ocorrem tambm aqui no Brasil. Eu mesma tive a
oportunidade de atender Snia, uma mulher casada havia mais de dez anos, cujo
pai tinha coreia de Huntington, uma doena neurodegenerativa que, em geral, s
se manifesta aps os quarenta anos de idade. A doena, que se caracteriza por
uma perda progressiva dos neurnios (as clulas nervosas), no tem cura e
costuma progredir muito rapidamente. Indivduos de ambos os sexos so
igualmente afetados. O risco de um descendente de uma pessoa afetada herdar a
mutao tambm de 50%. esse, a nossa conduta desestimular adultos em
risco que queiram se submeter a esses testes genticos enquanto no houver
tratamento adequado ou preventivo. No testamos crianas mesmo que esta seja
a vontade dos pais. Em vez de trazer benefcios, um diagnstico positivo pode
significar um peso enorme que a pessoa ter que carregar durante toda a
juventude. como uma bomba-relgio cujo prazo para detonar no pode ser
previsto nem interrompido.
A situao de Snia, porm, era diferente. Aps dez anos de casamento, ela
queria ter um filho, mas temia passar o gene da doena paterna para seus
descendentes. E vivia um dilema: se fizesse o teste, e o resultado fosse positivo,
teria de conviver com o drama. Se no se submetesse ao teste, no teria coragem
de engravidar.
Na primeira consulta de aconselhamento gentico, Snia veio acompanhada
do marido e da me. Enquanto o primeiro, vendo o seu sofrimento, a aconselhava
a desistir do teste, a me, por outro lado, insistia em que ela levasse o caso
adiante. Estranhamos a sua atitude porque, em geral, as mes querem poupar
seus filhos dessa carga. Mas, depois que o casal deixou a sala, a me revelou o
motivo de sua insistncia. Disse que o pai de Snia no era de fato seu pai
biolgico, mas ela no tinha coragem de contar para a filha, mesmo vendo todo o
seu sofrimento, porque temia que Snia no a perdoasse.
Fica novamente a pergunta: em casos como esse, devemos entrar no jogo
familiar e realizar o teste, mesmo sabenlada? Contaramos a Snia que ela no
era portadora e o motivo que nos levava a afirmar isso? Ou nos recusaramos a
fazer o teste esperando que a me se manifestasse?
No h consenso, como foi mostrado na situao anterior pelos colegas
holandeses. Discutimos esse caso com a equipe da Clnica de Psicanlise que
assessora nossos estudos do Genoma Humano. O nosso sentimento era de raiva
daquela me, por deixar a sua filha sofrer tanto tempo sem necessidade. Afinal,
seria to mais fcil contar-lhe a verdade. Dizer que ela poderia perseguir o seu
sonho de ser me sem susto porque no era portadora daquela mutao. E, ainda
por cima, que estava livre para sempre do terror de poder vir a manifestar a
doena no futuro. Mas o grupo de psicanalistas nos orientou e preferiu manter
em suspenso aquela tenso no domnio familiar, apostando que as posies,
especialmente a da me, mudariam. Snia no voltou a nos procurar e
engravidou. Desconfio que a me tenha afinal contado a verdade.

O fantasma da falsa paternidade, no entanto, costuma assombrar os clnicos de


formas totalmente inesperadas. Esse caso no aconteceu comigo, mas me foi
relatado por colegas. Paulo era um adolescente que estava com leucemia, uma
doena do sangue que pode ser curada com transplante de medula ssea ou
sangue de cordo umbilical de um doador compatvel. O sangue doado precisa ter
a mxima afinidade possvel com o do receptor para que no haja rejeio e, para
Leucocitrios Humanos (hla, na sigla em ingls).
Quanto maior a compatibilidade dos hla, maior a probabilidade de xito do
transplante. Em gmeos idnticos, os antgenos so exatamente os mesmos.
Entre irmos, existe a possibilidade de 25% de que sejam semelhantes. Por isso, a
orientao testar a famlia toda para saber se h um doador compatvel.
Foi o que ocorreu. Todos os membros da famlia de Paulo foram testados.
Descobriu-se ento que um dos irmos, Pedro, no era filho biolgico do mesmo
pai e, pior ainda, isso foi tornado pblico. A tragdia da doena foi acrescida por
essa outra notcia. A repercusso inesperada ameaava desestruturar uma
famlia unida em torno da doena. O pai estava pronto a abandonar aquela
mulher que supostamente o havia trado, enquanto ela afirmava que isso nunca
havia acontecido: Se ele no seu filho tambm no deve ser meu, exclamava
ela perplexa. De fato, levou-se a busca adiante at descobrir que Pedro, ao
nascer, havia sido trocado na maternidade. No era filho biolgico de nenhum
dos dois. O drama adquiriu outra conotao. Pergunta-se: era necessrio que
essa informao se tornasse pblica? No bastaria dizer que Pedro no era
doador compatvel para o transplante?
Qual a nossa conduta hoje? Toda vez que descobrimos um caso de falsa
paternidade, discutimos em equipe se essa informao ter algum impacto no
aconselhamento gentico. Caso no tenha, no h por que contar. Acreditamos
que isso no da nossa conta. Mas no uma deciso to simples. Veja, por
exemplo, mais esse dilema tico: Paula e Joo procuraram o servio de
aconselhamento porque o filho Pedro, de trs anos, era portador de uma doena
gentica cujas caractersticas incluam um importante distrbio de
comportamento. Queriam confirmar o diagnstico da criana e saber se haveria
risco de repetio no caso de terem mais filhos. A histria adquiria contornos
ainda mais dolorosos porque a doena em questo, quando herdada, era
transmitida pelo pai.
Numa situao dessas, comum que, por mais que tentemos explicar aos
pais de crianas afetadas que ningum tem culpa de transmitir uma mutao ao
filho, o sentimento permanece. Era o caso de Joo. Mesmo antes de saber o
resultado, j se sentia responsvel pela doena do filho. Coletamos sangue para
analisar o dna dos trs (Paula, Joo e Pedro), para confirmar o diagnstico de
Pedro, e verificar se havia realmente risco de recorrncia. O diagnstico foi
confirmado, mas, inesperadamente, o exame de dna revelou que Joo no era o
pai biolgico de Pedro.
Contei esse caso em um congresso de biotica, organizado por uma
faculdade de Direito, e perguntei qual, na opinio dos advogados, deveria ser a
nossa atitude. A resposta foi que eu poderia ser processada em ambas as
situaes: se contasse ou se no contasse. importante lembrar que essas
descobertas so sempre inesperadas, pois ocorrem quando testamos casais com
filhos ou parentes afetados que querem saber o risco de terem descendentes com
determinadas doenas, mas as situaes de falsa paternidade no so raras.
Entre os comentrios dos leitores do meu blog est o de um advogado que
sugeriu que uma forma de evitar qualquer processo seria justamente estabelecer
no termo de consentimento, que os consulentes assinam antes de se submeter ao
exame, que poderia ser necessrio estabelecer a comparao de paternidade, e,
nesse caso, se os pais gostariam de ser informados de qualquer alterao no
resultado. Algo assim: voc est sendo submetido a um teste gentico para
confirmar o diagnstico de seu filho e saber se existe risco de repetio para a
futura prole. Entretanto, esse teste tambm pode revelar uma falsa paternidade.
Em caso positivo, voc quer saber? Ou voc s quer saber se essa informao
interferir no risco de que voc venha a ter descendentes afetados?
Deixo a voc a reflexo sobre os prs e os contras de incluir essa informao
nos termos de consentimento, sabendo que a deciso no nada fcil. Como
definiram alguns dos leitores, pode-se chamar de autntica sinuca de bico, a
qual as pessoas tm de enfrentar, de refletir e de debater, pensando primeiro na
tica e no que melhor para toda a famlia. Ou talvez algumas pessoas possam
decidir no se submeter ao teste gentico com medo de resultados inesperados,
foi a opinio de um leitor.
Recentemente tive a oportunidade de discutir esse assunto com um grupo de
geneticistas em Israel. Esse problema no existiria naquele pas, afirmaram
categoricamente. Segundo a lei israelense, a criana deve ser protegida a
qualquer custo. Revelar uma falsa paternidade poderia torn-la um possvel filho
bastardo e prejudic-la no futuro. Para evitar que isso acontea, testes em
casos de paternidade duvidosa so proibidos em Israel e, se um laboratrio
infringir a lei, ter sua licena cassada.
Captulo 2
Captulo 2

Confidencialidade: esses genes so meus

Alm de fazer a anlise tcnica de diagnsticos, de probabilidades e de riscos de


doena, as pessoas envolvidas no aconselhamento gentico precisam tambm
considerar o impacto das informaes sobre a vida de seus pacientes. Por isso, os
princpios da privacidade e da confidencialidade so considerados referncias
ticas obrigatrias na rotina do nosso trabalho, como de resto representam um
pressuposto to central na rea mdica que se tornaram um tema regulamentado
por inmeros cdigos legais e ticos nacionais e internacionais. Mas, em algumas
situaes, decidir o que fazer, ou o que melhor para os consulentes,
praticamente impossvel.
Veja o caso extremamente complicado que enfrentamos de uma menina de
quinze anos, a quem chamaremos de Maria. Ela veio nos procurar porque tinha
dois irmos com distrofia de Duchenne, uma doena neuromuscular progressiva e
degenerativa, que afeta o sexo masculino. Meninos portadores comeam aos trs
ou quatro anos a ter quedas frequentes, devido perda progressiva da
musculatura. Aos poucos, essas dificuldades vo se agravando, de modo que esses
meninos perdem a capacidade de andar por volta dos dez a doze anos. A fraqueza
continua progredindo e atinge os membros superiores, at que os pacientes se
tornam totalmente dependentes para todas as atividades.
A doena pode ocorrer por uma mutao nova em um tero dos casos, e,
nessa situao, no h risco de repetio na famlia. Mas, nos outros dois teros
dos casos, o gene herdado da me, que portadora clinicamente normal.
Significa que no ter o problema, mas seus filhos do sexo masculino tm
probabilidade de 50% de herdar a mutao e serem afetados.
Quando Maria veio fazer o aconselhamento gentico, acompanhada de seus
pais e de uma assistente social, j estava grvida. Queria saber se o embrio era
do sexo masculino e, nesse caso, se teria a doena. O primeiro passo, antes de
fazer o diagnstico pr-natal, seria saber se Maria era ou no portadora da
mutao. E, para isso, era necessrio testar seu pai e sua me para identificar
qual cromossomo X ela havia herdado da sua me e qual do seu pai. O teste
revelou que a adolescente grvida era portadora, portanto, havia o risco de 50%
de que o seu futuro beb se fosse do sexo masculino tambm tivesse a
doena.
A famlia era de origem muito simples, vinda de uma cidade pequena do
interior. Logo aps a consulta, a assistente social do posto de sade que a
acompanhava quis falar comigo em particular. Contou que havia um rumor na
cidadezinha de que o pai do beb no era o namorado de Maria, mas seu prprio
pai biolgico. A situao se complicava muito, pois, probabilidade da distrofia
de Duchenne, se somavam os riscos resultantes de uma relao incestuosa. Ou
seja, alm dos problemas morais e jurdicos, o beb tinha 50% de chance de
apresentar tanto a distrofia como outras anomalias genticas, por exemplo,
doenas recessivas (aquelas nas quais a criana herda uma dose dupla de gene
alterado) e problemas mentais.
A primeira questo suscitada pela assistente social era se devamos testar o
feto para saber quem era o pai, j que esse no tinha sido o motivo da consulta.
No caso do gene da distrofia, o teste de dna revelou que a menina havia herdado
o gene da distrofia da me, portanto, tinha um risco de 50% de transmiti-lo para
seus descendentes. O exame do feto mostrou que, felizmente, ele no tinha
herdado esse gene. Mas ser que deveramos test-lo para saber se era ou no
resultante de incesto? No era esse o motivo pelo qual havamos sido procurados.
Por outro lado, ser que ela sabia do risco gentico que o feto corria se
realmente fosse resultante de uma relao incestuosa? Depois de muito discutir,
decidimos que valeria a pena tentar descobrir. Essa informao poderia lhe ser
til. Alm disso, o teste serviria de prova jurdica de que o pai havia cometido
estupro com uma filha menor de idade.
O teste realmente confirmou a suspeita e, numa conversa particular, Maria
confessou que o pai tinha relaes sexuais com ela escondido da me. A menina
no queria que a me soubesse em hiptese nenhuma. Ento, o que fazer?
Estvamos de mos atadas. Mas o mais chocante que ela falava disso com
naturalidade, no parecia ter sido forada. Qualquer atitude para proteger
Maria, ou tentar prevenir o nascimento de um feto com grande risco de ter uma
doena gentica, tornaria o teste pblico e acabaria com a famlia. Se
contssemos apenas para a me, que no tinha ideia do que o marido estava
fazendo, estaramos desrespeitando a confidencialidade do aconselhamento
gentico. Alm disso, era o pai que sustentava a famlia, inclusive os dois filhos
afetados (irmos de Maria) e totalmente dependentes. Na ltima consulta com a
adolescente, disse-lhe que manteramos o sigilo, como ela havia pedido, mas que
ela teria as portas abertas para voltar quando quisesse. Explicamos tambm os
riscos para o feto de outras doenas genticas em decorrncia do incesto,
embora ele no tivesse herdado o gene da distrofia. Nunca mais a vi. Mas espero
que tenha tomado a deciso certa.
Recentemente, li um artigo na revista mdica Lancet mostrando que exames
genticos com novas tecnologias em crianas com malformaes ou doenas
genticas esto revelando que, em certas situaes, elas foram geradas por
relao incestuosa. O artigo me motivou a escrever essa histria na minha coluna
da revista Veja, alterando um pouco a situao para garantir o sigilo, mas
mantendo a questo central. Provoquei os leitores: o que fariam no meu lugar?
Teriam denunciado o caso polcia?
Segundo a opinio da maioria, eu deveria denunciar o caso. Um leitor me
escreveu que, ao tentar proteger as crianas afetadas, eu havia destrudo a vida
da adolescente. Foi muito crtico: A senhora cometeu o erro gravssimo ao
pensar nos outros (irmos deficientes), e no na vtima De colocar a menina de
alguma forma como responsvel pela situao A minha opinio que a senhora
colaborou para arruinar a psique desta menina.
Porm outra leitora tambm tinha dvidas como eu: O correto seria
informar s autoridades o caso de incesto e revelar a real paternidade da
criana, porque no h como construir um futuro sobre mentiras. Mas devemos
ressaltar a falta de uma infraestrutura que d apoio vtima em tais
circunstncias. Aps denunciado o caso, comprovado o delito e o culpado na
cadeia, quem garantiria o sustento da famlia se, provavelmente, o autor do crime
era tambm o responsvel por isso? justamente por esse motivo que, nesse caso
particular, fica a dvida do benefcio em se fazer valer a verdade.
Alm disso, outro leitor escreveu: Infelizmente o incesto no Brasil,
principalmente em algumas regies e em zonas rurais, muito comum. Um
estudo antigo feito pela Igreja em favelas cariocas demonstrou que as condies
de vida de suas populaes proporcionavam todos os tipos de relaes
incestuosas. Assim, sob o ponto de vista religioso, por questo de vida em
promiscuidade, esses atos no deveriam ser considerados pecados. Em questes
legais no sei se o incesto crime passvel de pena. J vi, no passado, vrios pais
serem presos por esse ato e serem defendidos por teses de isolamento em zona
rural. A questo da sade fsica e psicolgica das famlias vtimas desse desvio
merece ateno do setor de sade do governo.
Para minha surpresa, uma outra leitora, advogada, escreveu: No houve
crime se pai e filha fizeram sexo consentido depois que ela j tinha feito quinze
anos.
Como se v, trata-se de uma situao complexa, sobre a qual no h
consenso.
No Reino Unido, nos casos em que a me menor de idade, quando os
geneticistas descobrem que houve uma relao incestuosa, so obrigados a
informar os servios de proteo infantil ou at a polcia, quando houver suspeita
de que houve abuso sexual por parte do pai ou de um irmo. No consolo saber
que os casos que enfrentamos aqui tambm existem nos pases mais
desenvolvidos. A diferena que nesses pases h mecanismos sociais para
proteger os envolvidos, o que no ocorre aqui. Dramas como o dessa menina
talvez l pudessem ser resolvidos com amparo dos servios de sade. No sei.

Um dos argumentos mais usados em defesa da confidencialidade a constatao


de que a informao gentica faz parte de nossa individualidade e deve ser
tratada como qualquer outro tipo de informao pessoal. O aconselhamento
gentico traz informaes para tentar levar as pessoas a tomarem decises
conscientes, autnomas e responsveis tanto no mbito pessoal como no
familiar. Mas as decises so unicamente do casal ou da pessoa que se submeteu
ao teste. A pergunta que surge : e quando os testes genticos envolvem
diretamente outros membros da famlia? Ou, como nos casos anteriores,
situaes que no foram objeto primrio da busca por aconselhamento gentico?
As legislaes oscilam entre a total obrigatoriedade de se manter o segredo at
previses especficas de quebra da confidencialidade em casos de risco de vida ou
de imposies legais.
A experincia nos mostra que as pessoas reagem s informaes das
maneiras mais inesperadas. Somos diferentes na forma como lidamos com as
desiluses e relacionamentos das nossas vidas. Ao mesmo tempo, a capacidade de
percepo de risco varia e depende das convices morais, religiosas, culturais e
econmicas de cada um, bem como de sentimentos de culpa, de ansiedade e de
outras suscetibilidades despertadas pela informao.
Veja o caso de Estela, que tinha um filho com distrofia de Duchenne.
preciso lembrar que, em um tero dos casos, a doena causada por uma
mutao nova sem risco de repetio. Nos outros dois teros transmitida pela
me, que portadora clinicamente normal, mas pode passar o gene defeituoso
para os filhos do sexo masculino, que tm 50% de chance de herd-lo e serem
afetados.
Estela tinha se informado e queria fazer um teste para saber se era
portadora da doena e se corria risco, caso engravidasse, de ter outros filhos com
distrofia de Duchenne. Atendemos o seu pedido e fizemos o teste gentico.
Infelizmente, descobrimos que ela era portadora.
Sugerimos que trouxesse sua me para o exame de dna, pois, dependendo do
resultado, outras mulheres da famlia tambm poderiam ser portadoras. O teste
revelou que a me de Estela tambm tinha a mutao. Essa informao mostrava
que outras pessoas do sexo feminino estavam em risco de vir a ter filhos afetados:
a irm de Estela, bem como vrias primas. Como fazemos sempre, explicamos que
seria do risco e da possibilidade de fazer o teste se assim o quisessem. o
procedimento de rotina. Alis, frequentemente vemos as parentes marcarem
uma consulta e se apresentarem com o seguinte comentrio: Vocs mandaram
que eu viesse aqui para fazer um teste gentico. A nossa primeira preocupao
esclarecer que ningum mandou que elas fizessem o teste, ou seja, essa no
uma atitude obrigatria. Elas devem, no entanto, saber quais as implicaes do
risco gentico antes de decidir se querem ou no ser testadas.
Mas Estela, ao saber que suas parentas prximas poderiam ser portadoras
da mutao no gene, responsvel pela mesma doena de seu filho, manifestou-se
de forma categrica: iria contar para a irm, mas negava-se terminantemente a
alertar outras pessoas da famlia sobre esse risco. Detestava as primas.
Como lidar com atitudes como essa? No existe consenso nem aqui e nem
em outros lugares do mundo. No caso da distrofia de Duchenne, alertar
familiares em risco pode prevenir o nascimento de crianas afetadas por uma
doena grave e ainda sem cura. Por outro lado, como quebrar o princpio da
confidencialidade?
Uma pesquisa entre clnicos de dezenove pases, realizada pelos geneticistas
Dorothy Wertz e John Fletcher para o Centro Hastings de biotica dos Estados
Unidos, em meados da dcada de 1980, mostrou que esse tipo de dilema tico
recorrente. Os autores da pesquisa chamaram o dilema de o dever proteger a
confidencialidade do paciente & o dever de alertar terceiros sobre o risco. No
encontraram uma resposta unnime entre os especialistas em casos
semelhantes relacionados a outras doenas, praticamente a metade optaria por
quebrar o princpio da confidencialidade, enquanto a outra metade manteria o
silncio.
No Brasil, embora no exista norma para tratar a questo na esfera jurdica,
a confidencialidade garantida. Mas s consigo pensar numa situao
semelhante em que a discusso avanou a dos pacientes soropositivos para o
hiv. A regra, nesses casos, de respeito rigoroso ao sigilo profissional em relao
aos pacientes. Isso se aplica, inclusive, depois de sua morte e aos casos em que
ele no deseja que sua condio seja revelada aos familiares. Mas a quebra do
sigilo permitida quando existe autorizao expressa, por dever legal (por
exemplo, preenchimento de atestado de bito) ou por justa causa de terceiros.
Quando o portador do vrus se recusa a informar sua condio a parceiros
sexuais ou a pessoas com quem compartilha seringas e agulhas para o uso de
drogas endovenosas, a questo da confidencialidade, para alm da matria legal,
sobretudo tica e moral, e o mdico pode interferir, pois o silncio afetaria a
vida de outras pessoas e, no caso de gravidez, a sade de crianas por nascer. No
entanto, mesmo nessas situaes-limite, em que a vida de outras pessoas est em
jogo com a manuteno do segredo, os profissionais de sade tm a obrigao de
procurar formas alternativas de prevenir o perigo, antes de optar pela quebra de
confidencialidade. No mais, vale a Constituio: So inviolveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenizao
por dano material ou moral decorrente da violao.
Para mostrar que essas situaes so mais comuns do que se imagina, deixo aqui
o relato de outro caso relacionado distrofia muscular de Duchenne. Denise
queria saber se era portadora do gene da doena, pois um de seus primos
maternos tinha a mutao. Ela acabara de se casar, queria ter filhos e sabia que
corria o risco de enfrentar o mesmo problema. Em situaes semelhantes, para
fazer o teste gentico necessrio que se tenha uma amostra de dna da pessoa
doente ou de sua me, e assim verificar qual a mutao existente.
Mas tanto o primo de Denise como sua tia materna j haviam morrido, o que
dificultava o estudo. O tio, apesar de saber o resultado do teste gentico no
menino, se recusava a repassar qualquer informao. Segundo alegava, isso no
traria nenhum benefcio a ele ou ao filho morto. Em resumo, era o tipo do
assunto que ele no queria mais enfrentar mesmo que fosse to importante
para os parentes em risco de sua falecida esposa.
Bem, at onde sei, Denise no levou o caso adiante. Entretanto, tratava-se
de uma informao importante que poderia, por um lado, tranquiliz-la. Por
outro lado, caso fosse portadora, poderia prevenir o nascimento de bebs
afetados por uma doena terrvel. Existiria alguma maneira de obrigar o tio a dar
a informao? Fica aqui a pergunta.
H ainda outra situao que gostaria de mencionar, embora, felizmente, no
seja to comum no Brasil. O principal risco da quebra da confidencialidade o da
discriminao. Esse problema decorre de usos indevidos que podem ser feitos da
informao gentica por parte das pessoas que tm acesso a esse tipo de dado.
inquestionvel que as companhias de seguro-sade e seguro de vida teriam o
maior interesse em saber que doenas poderamos desenvolver e cobrar mais por
isso. O mesmo ocorre com nossos empregadores, agncias de adoo, centros de
coleta de sangue.
A geneticista e especialista em tica Dbora Diniz, da Universidade de
Braslia, informa que so raros os estudos brasileiros sobre discriminao
gentica. Em um caso, que ela relata, um centro pblico de doao de sangue
realizava testes laboratoriais para anemia falciforme a fim de evitar a
propagao de doenas por transfuses. Essa a doena gentica de maior
prevalncia na populao brasileira. Seu nome se deve alterao dos glbulos
vermelhos do sangue, que os torna semelhantes a uma foice, da o nome
falciforme. Essas clulas tm sua membrana alterada e rompem-se mais
facilmente, causando anemia. O teste do pezinho, realizado no beb, permite
detect-la.
Mas, no caso relatado por Dbora, o centro queria saber a incidncia da
doena em adultos, e as pessoas nas quais era detectada, ou que tinham
probabilidade de vir a t-la, recebiam em casa uma carta de convocao para se
reapresentar ao centro. A unio entre duas pessoas com o trao falciforme pode
gerar uma criana com a doena. O problema que as pessoas iam doar sangue e
muitas vezes nem sabiam que estavam sendo testadas. Aps a denncia de
Dbora, o centro de sade mudou o protocolo, que agora traz a informao sobre
os exames e realiza o aconselhamento mantendo a confidencialidade.
Nos Estados Unidos, h vrios casos relatados de discriminao. Uma
pesquisa feita por Lisa Geller, da Faculdade de Medicina de Harvard, em 1996,
alertou para esse perigo. A pesquisa levou em conta pessoas com maior
propenso ou que mantinham algum tipo de relao com pessoas propensas
a contrair a doena de Huntington, mucopolissacaridose (mps), fenilcetonria
(pku) e hemocromatose. A doena de Huntington um distrbio fatal cujos
sintomas aparecem por volta dos quarenta a cinquenta anos. A mps est
associada ao retardamento mental e a pku tambm resulta em retardamento
mental, mas pode ser tratada com dietas especiais aps o nascimento. A
hemocromatose um distrbio caracterizado pelo depsito excessivo de ferro no
organismo. Dos 917 indivduos pesquisados com essas doenas, 455 disseram ter
sofrido algum tipo de discriminao por causa de sua constituio e de sua
predisposio gentica.
O problema to srio que, em 2005, o Senado americano aprovou uma lei
proibindo a discriminao com base em informaes sobre o patrimnio gentico.
E, na maioria dos pases, as diretrizes no sentido de orientar as aes na rea da
gentica humana so de que o aconselhamento e os testes tm carter
voluntrio, e a confidencialidade das informaes deve ser assegurada e
protegida de terceiros. Mas, como todos esses exemplos mostram, muito difcil
estabelecer como essas diretrizes funcionam na prtica.
Captulo 3
Captulo 3

Diagnstico pr-natal ou o que voc vai ser quando crescer

O diagnstico pr-natal permite a deteco de um nmero crescente de


malformaes ou doenas genticas ainda durante a gravidez. Trata-se de um
grande avano incorporado, aos poucos, rotina dos exames que asseguram a
sade do feto e a tranquilidade do casal. Ele permite optar pela gravidez mesmo
em situaes de alto risco gentico, em que normalmente o casal no tentaria
ter filhos. Mais ainda: as pesquisas mostram que, nos pases em que o aborto
permitido, muitos casais decididos a interromper a gravidez de um feto em risco
deixaram de adotar esse procedimento quando o diagnstico pr-natal excluiu a
possibilidade do nascimento de uma criana com determinada doena.
Em nosso laboratrio, onde j se realizaram centenas de exames de
diagnstico pr-natal em casais em risco para diferentes formas de distrofias
musculares, atrofia espinhal e fibrose cstica, entre outros casos, somente uma
minoria resultou positiva para essas doenas. Portanto, ao contrrio do que se
imagina, o diagnstico pr-natal tem salvado inmeras vidas normais. muito
difcil descrever a emoo
sentida pelo casal quando contamos que o beb no portador do gene
alterado. Da vem a importncia fundamental de discusses ticas em torno da
legalizao da interrupo da gestao no caso de doenas graves ou incurveis,
pois as nossas leis certamente no tm acompanhado os avanos das pesquisas.
Relato aqui o caso de uma moa que acompanhei enquanto estava na
Universidade da Califrnia. Ela tinha na poca dezenove anos e veio nos procurar
porque acabara de saber que estava grvida. Jeanne tinha perdido dois irmos e
dois tios maternos com distrofia de Duchenne. Tinha plena compreenso da
gravidade da doena. Alm disso, j havia sido testada e sabia que era portadora
da mutao e, portanto, com risco de 50% de vir a ter um filho afetado. Contou
que aquela no havia sido uma gravidez planejada, mas ela queria ter a criana,
desde que soubesse que ela no teria a doena. Fizemos os testes e, infelizmente,
descobrimos que se tratava de um feto de sexo masculino e portador da mutao.
Ou seja, havia a certeza de que teria a distrofia.
Chamamos Jeanne para contar os resultados do teste e ela veio
acompanhada da me e da av materna. Quando lhe disse que eu no tinha boas
notcias porque o feto herdara a mutao, ela comeou a chorar. Sua me e sua
av a abraaram e exclamaram enfaticamente: No pense duas vezes,
interrompa essa gravidez imediatamente. Voc no precisa passar por todo o
sofrimento pelo qual ns passamos e colocar no mundo uma criana que ter
tantas aflies. Jeanne, que era uma pessoa religiosa, olhou para mim e
perguntou: Ser que Deus quer que eu interrompa essa gravidez?.
Como responder a uma pergunta como essa?
Olhei nos seus olhos e disse: A nica coisa que posso te dizer que sua av e
sua me tiveram filhos com distrofia porque no sabiam que tinham esse risco.
No tiveram escolha. No seu caso, Deus quis que voc soubesse. As trs foram
embora e eu voltei ao Brasil, sem saber qual havia sido sua deciso. Alguns anos
mais tarde, recebi um carto de Natal de Jeanne. Era uma foto em que ela
aparecia sorridente, abraando seu marido e duas lindas meninas. Eram suas
filhas Marion e Carol.
Relato aqui outro dilema que me foi colocado por uma assistente social que
desejava que o Centro de Estudos do Genoma Humano fizesse o diagnstico pr-
natal de uma moa ndia. Ela queria saber o risco de o feto ser portador de um
gene que causa distrofia muscular progressiva. Recordando, essa doena pode ser
causada por vrias alteraes genticas caracterizadas pela degenerao
progressiva da musculatura.
Nesse caso, a moa indgena j tivera dois filhos afetados. Era a terceira
gravidez e ela estava no oitavo ms de gestao. Quando a assistente social
solicitou o exame, minha reao imediata foi dizer-lhe que no fazia sentido fazer
um diagnstico to tardio. O que seria feito com aquela informao? Foi ento
que a assistente social me revelou uma situao chocante. Na cultura daqueles
indgenas, era costume enterrar viva qualquer criana que nascesse com um
defeito visvel. Como no caso da distrofia, a doena no se manifesta antes dos
trs ou quatro anos, ela temia que a tribo quisesse enterrar esse beb prestes a
nascer para no correr riscos. Afinal, a me j havia tido duas crianas com
distrofia e, portanto, a comunidade indgena acreditava que uma terceira
tambm teria o problema. A esperana da assistente social era que o teste
gentico revelasse que a criana no seria afetada, salvando o beb.
E se o teste gentico revelasse que o feto seria afetado? O que aconteceria?
Poderamos ocultar tal resultado? A assistente social no soube responder. Da a
minha angstia. Afinal, a responsabilidade pelo que poderia ocorrer era minha e
da nossa equipe no Centro de Estudos do Genoma Humano. O risco de que esse
beb fosse portador da mutao que causa esse tipo de distrofia era de
25%, ou seja, uma em quatro. Para entender o que significa um risco desses,
exemplificamos com a seguinte analogia: imagine que voc tem quatro mas na
sua frente. Todas so aparentemente iguais, mas em uma delas h um veneno
letal que o mataria na primeira mordida. Voc se arriscaria a comer uma dessas
mas?
Essa histria foi contada no meu blog na revista Veja e fiquei novamente
surpresa com a reao dos leitores. Muitos sugeriram fazer o teste. Segundo
eles, seria importante estabelecer a verdade para essa me. bvio que a torcida
seria para um resultado negativo. Houve quem sugerisse que no deveramos
interferir nos costumes indgenas. Mas como compactuar com tal prtica?
Outros leitores ficaram aflitos com a responsabilidade definida por eles de
direito de vida ou de morte, que de repente pairou sobre nossas cabeas.
Lembraram que falar a verdade deve ser a regra quando se pode corrigir uma
situao ou ajudar algum. Nesse caso, seria antecipar um sofrimento
desnecessrio, e at mesmo instigar um crime, que seria praticado pela tribo
indgena.
Como esse caso terminou? Estabelecemos como uma regra de ouro no
Centro (e isso tambm em inmeros servios de gentica ao redor do mundo) no
testar crianas assintomticas para doenas de incio mais tardio para as quais
ainda no h tratamento. No h por que antecipar um sofrimento. Era o caso
desse beb prestes a nascer.
Expliquei assistente social que ela teria que convencer a comunidade
indgena a no fazer esse teste. Como? Em vez de ressaltar que o risco para esse
beb era de 25%, ela deveria enfatizar exatamente o contrrio. Ou seja, havia a
probabilidade de 75% de o beb ser normal. Desta forma, era trs vezes mais
provvel que ele fosse saudvel em vez de afetado. Alm disso, inmeros
pesquisadores acreditam que talvez seja possvel encontrar um tratamento nos
prximos anos. Era isso que ela teria de dizer comunidade indgena. No tive
mais notcias, mas acredito que o beb foi poupado.

H muitas situaes que devem ser levadas em considerao antes de fazer um


diagnstico pr-natal. Em alguns casos, por exemplo, a deteco de mutaes
genticas uma certeza do desenvolvimento de doenas graves, mas, em outras,
difcil fazer um prognstico. o caso da ataxia espinocerebelar, que costuma
progredir ao longo dos anos. Os sinais clnicos, a idade de incio dos sintomas, a
velocidade de progresso da doena e a intensidade do quadro clnico dependem
do tipo de ataxia. Frequentemente ocorrem variaes entre famlias com o
mesmo tipo de doena e at mesmo entre os afetados de uma mesma famlia.
Essas variaes podem dificultar o diagnstico em muitos casos. Existem testes
que permitem identificar se a pessoa ou no portadora da mutao, mas no
podemos prever quando e como esse distrbio pode se manifestar.
Atendi uma vez uma moa cujo pai apresentava a doena. Na ataxia,
indivduos de ambos os sexos so igualmente afetados, e o risco de um filho ou
uma filha ter a doena de 50%. Minha consulente sabia disso, mas no
suportava a ideia de fazer o teste e descobrir que poderia ser portadora da
mutao. Preferia engravidar e fazer o diagnstico pr-natal para saber se o feto
tinha herdado ou no a mutao do av materno. Perguntei-lhe se ela tinha
noo de que, se descobrssemos que o feto era portador, isso era uma indicao
de que ela tambm era. Seriam duas notcias ruins ao mesmo tempo. Ela sabia,
mas, dentro de sua lgica, o feto tinha s 25% de risco (0,5 de ela ser portadora
X, 0,5 de transmitir), enquanto, se ela se testasse direto, a chance era de 50%.
Estava decidida. Iria fazer o diagnstico pr-natal.
De fato, engravidou e, para alvio de todos, o resultado deu negativo. J que
havia dado certo, quis repetir esse procedimento na segunda gravidez e
novamente foi excluda a ataxia no feto. Dois anos depois ela voltou grvida de
novo.
Mais daquela vez, nos recusamos fazer o teste era muito mais coerente que ela o
fizesse diretamente e verificasse se era ou no portadora. Alm do mais, a partir
dos resultados dos primeiros exames, que mostraram que os dois primeiros filhos
eram saudveis, sabamos que a probabilidade de que isso ocorresse era muito
baixa. Isso porque, se a me fosse portadora, a mutao estaria em um dos dois
cromossomos transmitidos para seus filhos, que podemos chamar de A e B. Mas
aconteceu que a primeira criana tinha herdado o cromossomo A e a segunda o
cromossomo B. Como as duas crianas eram normais, isso nos permitiu concluir
que a mutao no estava presente nem em A e nem em B. Evitava-se assim a
realizao de um exame que, apesar de estar associado a um baixo risco, no
deixava de ser invasivo para o feto.
Outra questo muito importante que costumamos enfrentar: tico testar
crianas para doenas que s se manifestam em adultos? Esses testes so
frequentemente solicitados pelos pais. Quando surgiram os primeiros testes
genticos para doenas de incio tardio, na dcada de
1990, no tnhamos nos dado conta do impacto que pode provocar a
descoberta de um gene causador de um problema grave em uma criana. Hoje
somos totalmente contra, como expliquei no caso relatado no primeiro captulo.
Antes, testvamos todas as crianas que pertenciam a famlias de risco,
mesmo sem apresentar sintomas para doenas, desde que fosse a pedido dos pais.
Quando decidimos interromper esse procedimento, os resultados que j tnhamos
foram arquivados e mantidos em confidencialidade. O acerto dessa medida foi
comprovado por uma histria que conto a seguir.
Certa vez, Joo, um rapaz que havia acabado de fazer dezoito anos, nos
procurou porque desejava ser testado para coreia de Huntington, doena
neurolgica bastante grave e incurvel, que geralmente acomete o indivduo com
quarenta anos ou mais, e provoca deteriorao intelectual e distrbios
psiquitricos. Como a doena tem em geral um incio tardio, quando o
diagnstico estabelecido o paciente frequentemente j procriou. O pai de Joo
j estava bastante comprometido e ele sabia que tinha 50% de chance de
tambm ser afetado. Sabia ainda que no havia cura para a doena.
fcil imaginar o impacto que um teste positivo nesse caso teria sobre o
rapaz, que enfrentaria o diagnstico de uma vida mais curta, cuja parte final
seria de grande sofrimento. Nesses casos, nossa orientao fornecer todas as
informaes e deixar bem claro que a pessoa interessada s deve fazer o teste se
tiver condies emocionais aps uma avaliao por psicanlise de enfrentar
qualquer que seja o resultado. Em teoria talvez, mas, na prtica, me questiono se
algum pode estar preparado para saber que tem uma mutao para uma doena
de incio tardio, incurvel. Por isso, hoje s concordamos em fazer o teste depois
de muito dilogo com os consulentes. Numa dessas conversas de aconselhamento
gentico, ficou evidente que Joo no estava muito seguro. Ele chorou vrias
vezes e acabou indo embora, indeciso com a promessa de voltar para conversar
quando quisesse.

Depois que Joo saiu, descobrimos por acaso que ele fizera parte daqueles
procedimentos que haviam sido testados no passado, quando ainda no tnhamos
decidido que crianas no deveriam se submeter a esses testes. E que,
felizmente, ele no era portador da mutao. Decidimos cham-lo de novo para
explicar o que havia acontecido e dar-lhe a boa notcia. Quando ele entrou na
minha sala, e antes que eu abrisse a boca, ele exclamou imediatamente: Voc
tinha razo, no estou pronto para ser testado. Mas eu no podia mais guardar
aquele segredo. Impossvel descrever a emoo quando Joo soube por que o
havamos convocado. Choramos juntos. Muitos anos depois, eu soube que ele fora
entrevistado por uma jornalista e dissera que no sabia se era portador ou no.
Fiquei surpresa. Ser que havia esquecido? Ele depois nos contou que havia
preferido negar que sabia estar livre da doena para proteger os irmos que no
tinham sido testados e ainda corriam o risco de ter a mutao, mas nada podiam
fazer, por se tratar de uma doena incurvel.

Casais que j tiveram filhos ou parentes afetados por uma doena gentica
podem saber se correm o risco de vir a ter crianas com o mesmo problema e
planejar a sua prole. No caso de uma doena gentica severa, encontram-se
perante delicadas escolhas reprodutivas: no ter filhos biolgicos, optar pela
doao de vulos ou espermatozoides de pessoas no aparentadas, confiar na
sorte e arriscar uma gravidez ou submeter-se ao diagnstico pr-natal. Se o feto
for portador da mutao, vem outro dilema: seguir em frente ou interromper a
gravidez? Outra possibilidade, embora muito mais difcil tecnicamente, e muito
menos conhecida, fazer o diagnstico pr-implantao. Qual a diferena
entre esses dois procedimentos?

Muitas pessoas acham que diagnstico pr-natal e pr-implantao so


procedimentos comparveis. Mas, embora a finalidade seja a mesma nos dois
casos, isto , garantir um feto sem a mutao causadora da doena gentica
naquela famlia, existem diferenas fundamentais: o diagnstico pr-natal feito
durante a gestao (geralmente entre dez e doze semanas) e, portanto, existe a
possibilidade de que, mesmo que o feto tenha uma doena gentica grave, ele
venha a nascer. J o diagnstico pr-implantao (dpi) realizado em embries
de oito clulas gerados por fertilizao in vitro no laboratrio.
Para quem no conhece a tcnica, vale explicar que o dpi um
procedimento difcil. Requer primeiro uma fertilizao in vitro, fora do tero.
Quando o embrio tem de oito a dezesseis clulas, possvel, antes de implant-
lo no tero, retirar uma ou duas clulas e verificar se existe alguma alterao no
nmero ou estrutura dos cromossomos (ou se do sexo masculino ou feminino).
Pode-se tambm descobrir se h alguma mutao especfica responsvel por uma
doena gentica. Mas isso s possvel na prtica se essa mutao j for
conhecida, pois existem milhares de mutaes que podem causar uma doena
gentica, e rastrear todas ainda impossvel. Portanto, o dpi s indicado para
famlias de alto risco, ou seja, quando um dos cnjuges tem uma doena sria, ou
para casais que j tiveram um filho ou parente prximo afetado e no querem
passar pelo mesmo problema novamente. O dpi permite selecionar apenas os
embries sem a mutao para serem implantados, possibilitando, assim, ao casal,
gerar um descendente livre daquela doena.
Em resumo, os embries s sero transferidos para o tero se no tiverem a
mutao. Diferentemente do diagnstico pr-natal, se o embrio no for
implantado, no h vida.
Mas a escolha por esse mtodo tambm leva a dilemas ticos muito
importantes, principalmente quando se trata de doenas de incio tardio ou que
esto associadas a um risco aumentado, mas no a uma certeza de doena.
tico excluir um embrio que tenha uma mutao para coreia de Huntington, um
distrbio que geralmente s se manifesta depois dos quarenta anos? E, no futuro,
quando ser possvel identificar e excluir centenas de mutaes relacionadas a
doenas como hipertenso, diabetes e outras? Ser o caso de selecionar embries
perfeitos em um novo tipo de eugenia? Esse assunto discutido pela pesquisadora
Dena S. Davis no seu livro Genetic dilemmas, sobre o que as novas tecnologias em
gentica e reproduo significam para o futuro das crianas.
Autores, como o filsofo da cincia Philip Kitcher, apoiam o que j foi
chamado de prticas eugnicas responsveis, consideradas aquelas que mesclam
a liberdade reprodutiva individual com a educao e a discusso pblica sobre
procriao responsvel, desde que isso no seja a expresso de desejos relativos
cor de olhos, tipo de pele e de cabelo, tendncia obesidade ou preferncias
sexuais. Mas os limites dessa deciso so muito tnues, como se pode avaliar por
questes prticas. comum, por exemplo, pais surdos desejarem gerar um filho
tambm surdo. J acompanhei casais em que o pai e a me eram acondroplsicos
(a forma mais comum de nanismo) e no queriam ter um filho de estatura
normal.
Para quem tem audio ou estatura normais parece um absurdo. Teramos
sido rejeitados por esses pais. Embora no aprove, claro, consigo entender o
ponto de vista deles. muito mais fcil para um casal deficiente auditivo
comunicar-se com algum que tambm no ouve ou para pessoas de baixa
estatura construir uma casa onde todos so igualmente anes. E, se esses casais
querem ter filhos semelhantes a eles, isso muito positivo. Significa que esto
bem adaptados e felizes em serem diferentes. Mas impor isso a seus filhos
outra histria... Veremos isso em um captulo adiante.
Outra coisa selecionar embries para caractersticas como inteligncia,
habilidade para esportes ou altura. Quanto a isso, recomendo a leitura do livro
The genius factory: the curious history of the Nobel prize sperm bank, do jornalista David
Plotz. Ele relata a histria real do banco de esperma criado em 1980, pelo
milionrio americano Robert Graham, de indivduos ganhadores do prmio Nobel,
prodgios matemticos, empresrios bem-sucedidos e atletas uma histria de
busca por pessoas perfeitas que esconde as intenes racistas de seu criador.
Plotz foi atrs das crianas geradas por esses doadores e mulheres interessadas
em ter filhos especiais. Desnecessrio dizer que encontrou um bando de
indivduos comuns, no muito diferentes da mdia. Ainda bem. Prova de que
possuir genes favorveis no basta. O ambiente e a educao tm um papel
fundamental.
Captulo 4
Captulo 4

Gmeos, trigmeos e at mais

No apenas impresso. O nmero de mulheres grvidas de gmeos e de


trigmeos realmente deu um salto nos ltimos anos, aps a disseminao das
tcnicas de fertilizao assistida. Desde o nascimento de Louise Brown, o
primeiro beb de proveta, em 1978, o nmero de filhos mltiplos aumentou vinte
vezes no mundo. Basta ver as colunas de notcias sobre gravidez de atrizes e
pessoas famosas: Jennifer Lopez, Geena Davis, Marcia Cross, todas na faixa dos
quarenta, tiveram gmeos. A linda Julia Roberts tambm teve e, aqui mesmo no
Brasil, a apresentadora de tv Ftima Bernardes me de trigmeos. Na Europa,
as estatsticas apontam para 26,4% de gestaes de mais de um beb. Nos
Estados Unidos, entre 1978 e 2000, o nmero de gmeos dobrou. Na dcada de
1990, entre os filhos de mulheres entre 40 e 44 anos, o ndice cresceu 80%, ou
seja, passou de 24 para 44 a cada mil nascimentos. Na Inglaterra, o Human
Fertilisation and Embryology Authority (hfea), que regula e fiscaliza todas as
clnicas de fertilizao in vitro, inseminao artificial e armazenamento de vulos,
esperma e embries congelados daquele pas, alm da pesquisa com embries
humanos, fez uma comparao assombrosa: um em cada oitenta nascimentos de
crianas concebidas naturalmente naquele pas resultava em mltiplos. Em
contrapartida, um em cada quatro nascimentos por fertilizao assistida era de
gmeos ou trigmeos. No Brasil, acredito que no existam registros oficiais, mas
tenho visto estatsticas de clnicas de fertilizao que calculam em 42% o
nmero de gestaes assistidas que resultam em gmeos ou trigmeos.
Mas por que to grande assim a incidncia de gmeos de proveta? Para
tentar entender o que ocorre, preciso explicar antes como funciona a
fecundao fora do tero ou in vitro, qual recorrem os casais que no
conseguiram engravidar por mtodos naturais e desejam muito ter uma criana.
Ou que desejam fazer o diagnstico pr-implantao (dpi), tcnica que, como
expliquei anteriormente, serve para evitar o nascimento de crianas com doenas
genticas graves. Esses casais procuram ento as clnicas de fertilizao para um
tratamento que custa caro e pode demorar. Se forem frteis, o primeiro passo
conseguir vulos e espermatozoides. No preciso explicar como obter
espermatozoides. Todo mundo sabe. J no caso dos vulos, a mulher precisa
tomar hormnios que estimulem a ovulao. Em mdia, so produzidos de oito a
nove vulos, embora esse nmero possa variar muito. Esses vulos so retirados da
mulher e em seguida so colocados em contato com os espermatozoides do
marido em um tubo de ensaio, em condies que favoream a unio dos dois. Se a
fertilizao for bem-sucedida, o vulo fecundado comea a se dividir: uma clula
em duas, duas em quatro, quatro em oito e assim por diante. Em mdia, isso
ocorre com cerca de seis vulos fertilizados, que so os pr-embries. Por volta
do terceiro dia, esses pr-embries esto com oito clulas. Nessa fase, so
implantados no tero da mulher e, se tudo der certo, ocorre a gestao.
A questo que, de maneira geral, seja pela fertilizao natural ou pela in
vitro, as chances de sucesso de obter uma gravidez esto longe dos 100%. No caso
de casais que j tm dificuldade, so ainda menores e, por isso mesmo, so
necessrias vrias tentativas com toda a carga de ansiedade que acarretam.
Como fazer ento? Para aumentar a probabilidade de sucesso, comum os
mdicos transferirem para o tero no um, mas vrios pr-embries. Em tese,
quanto mais, melhor. Tanto que, durante muito tempo, havia especialistas que,
para garantir a eficcia do tratamento e o bom nome do mdico, recomendavam
que fossem inseminados at seis de uma s vez, na expectativa de que pelo menos
um resultasse em uma gravidez. Isso resultou nas estatsticas impressionantes de
gestao mltipla que foram citadas.
A tal ponto que, nos Estados Unidos, em 2009, uma mulher da Califrnia
chegou a ter ctuplos, depois de j ter concebido seis filhos por fertilizao
assistida. A histria que chegou aos jornais de uma moa com menos de 35
anos, que pediu para serem implantados seis pr-embries remanescentes de
tratamentos de fertilizao in vitro anteriores, e dois deles se separaram em dois
pares de gmeos, resultando em oito bebs. O pai das crianas apenas havia
doado o esperma, mas ela no o queria como companheiro. Depois do
nascimento, a moa aparecia sorridente na tv afirmando ter recebido presentes
de todo tipo para os bebs. Foi noticiado tambm que ela no tinha condies
financeiras para criar os filhos e os estava usando para conseguir doaes. Nesse
caso, to ou mais irresponsvel que essa me foi o mdico que implantou todos
aqueles embries. Ser que se esqueceram que no estavam lidando com bonecas
para brincar, mas com seres humanos? Depois de ter escrito sobre esse caso
expressando minha opinio a respeito, o conselho mdico da Califrnia revogou a
licena do especialista em fertilidade responsvel por tornar Nadya Suteman me
de catorze filhos gerados por repetidos tratamentos de fertilizao in vitro.
O problema da gravidez mltipla ainda maior se considerarmos que a
implantao de muitos pr-embries implica um risco aumentado de nascerem
crianas prematuras, com baixo peso e que podem vir a ter problemas de sade
ou comprometimento intelectual. A hfea inglesa registrou que 126 bebs morrem
a cada ano como consequncia de gestaes mltiplas, sendo 51 logo aps o
nascimento, 42 na primeira semana de vida e 33 no primeiro ano. Os riscos para a
me tambm so altos: vo de aumento de casos de pr-eclmpsia, diabetes
gestacional, rompimento do colo uterino e parto prematuro. Por tudo isso, os
mdicos chegaram concluso de que o risco sade de gravidez de mltiplos
era isoladamente o mais grave nos casos de tratamento de fertilizao assistida.
Tanto que, mais recentemente, o nascimento desses bebs passou a ser
considerado um caso de sade pblica, no s devido aos problemas que poderiam
causar s mes e s crianas, como pelo alto custo gerado ao sistema de sade
nos anos aps o nascimento.
A hfea criou em 2005 um grupo de especialistas que publicou o relatrio One
child at a time [Uma criana por vez], em que prope que o risco de nascimentos
mltiplos poderia ser minimizado se as mes com histrico de concepo de
gmeos tivessem a transferncia de apenas um pr-embrio. Essa tcnica ficou
conhecida como transferncia eletiva, ou seja, o uso de mtodos criteriosos de
avaliao para eleger o melhor dos pr-embries antes de transferi-lo para o
tero. Os especialistas ingleses fizeram uma ampla consulta pblica em 2007
visando a uma poltica de reduo de nascimentos de gmeos por fertilizao
assistida. Ficou estabelecido que as clnicas desenvolveriam estratgias para
diminuir o ndice de mltiplos nascimentos. A poltica foi introduzida em janeiro
de 2009. No primeiro ano, a taxa era de 24%. No ano seguinte, esse nmero
deveria ser de 20%, depois 15% e assim por diante.

No Brasil, mudanas nas regras de reproduo assistida foram aprovadas pelo


Conselho Federal de Medicina (cfm) e j esto em vigor. A norma atualizada
define o nmero mximo de embries a serem transferidos. A recomendao
depende da idade da paciente. Mulheres de at 35 anos podem implantar at
dois embries; de 36 a 39 anos, at trs; acima de quarenta, quatro. Em casos de
gravidez mltipla, o cfm manteve a proibio de utilizao de procedimentos que
visem reduo embrionria, prtica que se assemelha ao aborto. Alis, com essa
proibio, evita-se e muito bem a questo tica da seleo dos embries. Qual o
critrio, por exemplo, na escolha do embrio que deveria prosseguir na gravidez e
qual seria retirado? Quem deveria escolher: a me, o casal ou o mdico que
acompanhou o processo de fertilizao? E se os pais quisessem conservar os
embries de meninas, mas os mais saudveis fossem meninos ou vice-versa?
Sempre defendi a fertilizao assistida para quem no pode ter filhos
naturalmente, mas concordo que, no caso de mltiplos, os problemas s
aumentam. Imagine o estresse emocional que as famlias passam a enfrentar ao
se ver diante de dois, trs, s vezes quatro bebs de uma s vez. No me refiro
apenas ao nmero de fraldas e mamadeiras. A preocupao comea ainda na
gravidez, mais sensvel e arriscada, e no para quando os bebs j esto instalados
em casa. Mesmo para quem atriz de cinema, a mudana de vida exige muito
planejamento, trabalho e amparo afetivo. Para quem ainda tem uma viso
romanceada do que significa, basta ler o depoimento das mes de gmeos e
trigmeos que reconhecem a alegria que os filhos trazem a suas vidas, mas
enfrentaram situaes difceis de imaginar nas outras famlias.
Apesar disso, no Brasil, ainda h uma cultura de vrias transferncias de
pr-embries. Imagino que isso acontea porque boa parte dos casais acredita
que as probabilidades de uma tentativa dar certo so muito baixas quando s um
ou dois pr-embries so transferidos e, na ansiedade de terem aqueles filhos to
desejados, querem uma garantia maior, mesmo custa de terem que cuidar de
muitas crianas depois. Por outro lado, muitos mdicos tambm no querem
arriscar a sua reputao em vrias tentativas fracassadas e se apoiam em
procedimentos arriscados, at mesmo pressionados por quem est pagando, ou
seja, o casal aflito.
Veja o caso noticiado no Paran quando pais de trigmeas, geradas por
fertilizao assistida, decidiram depois de elas terem nascido que s queriam
duas. De acordo com o que li, funcionrios do hospital contaram que, durante o
parto, o pai afirmou que levaria somente dois bebs. Chegou a escolher duas das
trs meninas, que nasceram prematuras e com pulmo ainda em desenvolvimento.
Ao saber que uma das escolhidas precisaria de cuidados especiais, por estar mais
fragilizada, teria dispensado a garota, dizendo que s queria as saudveis. Depois,
foi dito que, durante o processo de fertilizao, os pais sabiam que poderiam ter
trigmeas, mas arriscaram mesmo assim. Quando a gravidez mltipla foi
confirmada, cogitaram fazer um aborto de um dos embries fora do pas
(reduo embrionria), j que no Brasil proibido. Mas acabaram desistindo. A
questo acabou indo parar na Justia, que deve considerar os aspectos
psicolgicos envolvidos antes de decidir se o casal fica com as meninas ou se elas
vo para algum outro lar.
Independentemente do desfecho, o caso elucidativo pelo seu significado.
Se a questo de seleo de pr-embries, um conjunto de oito clulas que no
sabemos se ser vivel quando implantado em tero, suscitou tanta polmica
entre ns, como se ver na discusso em captulo mais adiante sobre as clulas-
tronco, o que dir de bebs j nascidos? Concebe-se artificialmente um beb
porque se deseja ardentemente construir uma famlia, o que muito natural.
Mas no consigo entender por que, depois de nascidos, os pais decidem que no
querem mais um dos bebs, como se fosse uma mercadoria escolhida em uma loja
que se manda de volta ou se joga fora quando cansa. Os avanos da medicina
reprodutiva so uma bno, e nesses anos todos tenho acompanhado os
benefcios trazidos com as novas tcnicas de fertilizao. Mas h limites na tica
e na motivao das pessoas. Por que certos casais desejam tanto ter filhos? E
quantos? Dois suficiente, trs demais?
Por enquanto, a discusso, j delicada, se resume a casos como esse. Mas
futuramente, quem sabe, ser possvel ter a chance de escolher apenas os bebs,
por exemplo, de sexo masculino, de olhos azuis ou os quietinhos e deixar de lado as
meninas ou os mais chores. Fico pensando: adotar uma criana no um
processo fcil. Antes de serem considerados aptos a criar uma criana
abandonada, e entrar na fila de espera que pode levar anos, os responsveis
passam por inmeras entrevistas. Ser que, antes de submeter-se a uma
fertilizao assistida e conceber filhos, no deveria haver uma avaliao
semelhante?
Captulo 5
Captulo 5

Menino ou menina: o que voc faria se pudesse escolher o sexo do


beb?

Uma das mais emocionantes indefinies durante a gravidez do casal saber se


o futuro beb ser menino ou menina. A ansiedade no se refere apenas s cores
do enxoval ou do quarto, mas educao, ao modo de tratar, aos sonhos para o
futuro. E, embora muitos digam que ter um menino ou menina no faz diferena,
o importante que tenha sade, h situaes em que a preferncia dos pais
ntida por um sexo ou por outro. No passado, isso seria impossvel, mas na era da
gentica escolher o sexo do beb factvel para quem tiver meios para tanto.
Atualmente, h dois mtodos disponveis em um deles, o casal precisa
apenas comparecer a uma clnica, onde a mulher ser fertilizada aps o
isolamento do espermatozoide do parceiro contendo o cromossomo X ou Y,
conforme o sexo desejado para o beb. O processo, conhecido pelo nome
comercial de MicroSort e desenvolvido originalmente em uma clnica de
fertilizao in vitro nos Estados Unidos, baseia-se no fato de que o cromossomo Y,
que define o sexo masculino, tem menos material gentico que o cromossomo X,
do sexo feminino. Isso o torna mais leve. De maneira geral, seria como colocar os
espermatozoides em um tubo de ensaio. A poro inferior estar enriquecida com
espermatozoides mais pesados, e portanto com maior chance de gerar uma
menina, enquanto na poro superior ser o oposto. O sucesso maior em caso
de meninas (cerca de 88% para meninas e 73% para meninos). As clnicas que
oferecem esse servio no revelam os detalhes da tcnica, mas cobram alto pelos
resultados.
O outro mtodo, bem mais complexo, cuja taxa de sucesso ainda maior,
chama-se diagnstico gentico pr-implantao (dpi), do qual falamos em
captulos anteriores, originalmente desenvolvido para detectar e evitar doenas
genticas como a anemia falciforme, a doena de Tay-Sachs, a talassemia, a
distrofia de Duchenne, entre outras. Nesses casos, aps a fertilizao in vitro,
retira-se uma clula do embrio com oito a dezesseis clulas, para avaliar a
ocorrncia da mutao presente na famlia. Mas nada impede que os testes
revelem tambm o sexo do embrio. Para os casais submetidos fecundao in
vitro, possvel fazer a seleo antes de o vulo fecundado ser implantado no
tero. Os ovos so fertilizados e cultivados para o estgio de oito clulas (cerca
de trs dias). Em seguida, so testados. Se aquela clula tiver dois cromossomos
X, ser uma menina; e, se tiver um X e um Y, ser do sexo masculino. Isso se o
embrio for transferido e a gravidez for a termo. Somente aqueles do sexo
escolhido so implantados.
Os avanos no estudo do genoma humano permitiro, em um futuro prximo,
selecionar tambm portadores de variantes genticas associadas altura,
potencial atltico etc. Mas essa outra histria, que trataremos nos captulos
seguintes.

Pode-se imaginar o que a seleo do sexo, se for praticada em larga escala, pode
representar. Lembro de um caso que chegou a meu conhecimento. Tratava-se de
um casal proveniente de um pas asitico. Eles explicaram que, pela legislao
daquele pas, o filho mais velho herda todo o dinheiro do pai desde que tenha um
descendente do sexo masculino. Entretanto, o casal tinha duas filhas e queria
indicao de uma clnica para fazer o diagnstico pr-implantao (dpi).
Queriam um descendente de sexo masculino a todo custo. Pagariam qualquer
preo por isso.
Explicamos ao casal que, no Brasil, a Resoluo 1.358/92 do Conselho
Federal de Medicina probe que mdicos atendam a vontade de escolha do sexo
do beb por outro motivo que no seja o risco de doena gentica que s afeta o
sexo masculino, como, por exemplo, em famlias que tm casos de hemofilia ou
distrofia de Duchenne. O marido no se deixou convencer. Disse que, se no
fizessem o dpi, a mulher iria engravidar e, se com o resultado da ultrassonografia
descobrisse que era uma menina, iria fazer o aborto. E mais: disse que tentaria de
novo at ter um filho homem. Isto , a clnica, ao recusar-se a fazer o dpi,
tornava-se indiretamente responsvel pelo aborto de fetos do sexo feminino.
No difcil entender por que esse homem achava tal prtica possvel. Em
alguns pases, a escolha do sexo do beb praticada por vazio legal ou como
experimento. A essas prticas recorrem casais que podem viajar grandes
distncias ou gastar fortunas para gerar seus filhos. E os motivos para a escolha
do sexo do futuro beb so os mais variados. A empresa americana que
desenvolveu o MicroSort, por exemplo, anuncia que os clientes s podem usar a
tecnologia para fins de equilbrio familiar, ou seja, aqueles casais com mais
filhos do que filhas podem escolher ter uma menina, ou vice-versa. Mas no h
como saber se essa regra est sendo seguida. E tambm no d para entender
por que, na cultura ocidental, esse equilbrio familiar de gnero considerado
to significativo a ponto de merecer uma referncia especial. O fato que, em
alguns pases, a escolha do sexo do beb praticada at mesmo margem da lei.
Nos Estados Unidos, no existem leis sobre seleo de bebs, embora muitas
pessoas defendam que as tcnicas de reproduo como a dpi deveriam ter algum
tipo de regulao.
Sou a favor do diagnstico pr-implantao para evitar doenas genticas,
mas no por motivos fteis, como a escolha do sexo. Alis, fico imaginando aquele
adolescente que hoje provoca os pais dizendo eu no pedi para nascer,
vociferando eu no queria ser menina, queria ser homem ou vice-versa. Na
Inglaterra, o rumo dessa discusso tornou-se interessante. Um questionrio foi
enviado em 1993 a um grupo de 2.300 grvidas perguntando se elas preferiam
menino, menina ou se a escolha do gnero era indiferente. A anlise dos
resultados mostrou que, se a populao pudesse escolher o sexo de seus futuros
filhos,isso no causaria um desequilbrio de gnero. A natureza sbia tambm
nesse quesito: dos bebs que nascem no mundo, em mdia, 51% so meninos e
49%, meninas. Mas morrem mais meninos no nascimento, resultando num
equilbrio geral.
Uma pesquisa semelhante, realizada na Alemanha, deu praticamente o
mesmo resultado; o que mostra que no existe uma preocupao to grande pela
escolha do sexo dos futuros filhos entre os ocidentais. Quando existe esse tipo de
preocupao, em 95% dos casos, so famlias que j tm um grande nmero de
crianas do mesmo sexo e querem garantir que o prximo seja diferente. Em
Israel, depois de muito debate, chegou-se seguinte deciso: se um casal tiver
quatro filhos do mesmo sexo, e quiser uma quinta criana, permite-se que utilize
o dpi.
O problema maior ocorre em pases como ndia e China, onde determinados
valores culturais e religiosos, bem como a economia, levaram a uma preferncia
declarada por filhos homens. Em algumas regies pobres da ndia, a proporo de
homens para mulheres de 130 para 100. A preferncia por homens advm em
muitos casos da necessidade de dote, mesmo em famlias de menor poder
aquisitivo, o que torna as mulheres uma desvantagem econmica. Na China,
especialmente, cresce o nmero de nascimento de homens devido ao aborto
seletivo, que, embora seja proibido por lei, praticado em larga escala, j que a
Poltica do Filho nico, estabelecida para barrar o aumento da populao, prev
que os casais s tenham um filho, e a preferncia por menino, sendo essa uma
exigncia cultural ainda profundamente arraigada no povo chins. Se, por acaso,
o beb menina, surge para o casal um gravssimo problema tico e cultural: se
ficar com ela, no pode mais ter o filho homem. A triste realidade normalmente
a morte ou o abandono da menina recm-nascida.
Nos dois pases, a lei probe o uso de ultrassonografia para determinao do
sexo, por receio de que os fetos de sexo feminino sejam abortados. Mas isso no
significa que no acontea. Em 1990, o prmio Nobel de Economia, Amartya Sen,
estimou que havia cerca de 100 milhes de mulheres vivas a menos na sociedade
indiana. Embora outros tenham considerado esse dado superestimado, existe a
preocupao nesse pas de que o desequilbrio de gnero possa significar, em um
futuro prximo, que um grande nmero de homens no vai encontrar mulheres
com quem constituir famlia.
Por outro lado, muito interessante observar que a escolha de um sexo ou
do outro pode mudar em funo de fatores que nada tm a ver com as
preferncias familiares. No Japo, por exemplo, a opo por descendentes
masculinos, que era gritante h 25 anos, mudou radicalmente. Uma pesquisa
realizada em 1999 revelou que 75% dos casais escolheriam uma menina se
tivessem uma s criana. Aparentemente, isso se deve a mudanas na economia e
maior presso social sofrida pelos homens.

medida que as tcnicas se tornam mais populares, a possibilidade de escolha de


gnero poder levar a um aumento maior do interesse dos pais em garantir com
quase 100% de certeza o gnero do beb. Na verdade, trata-se de uma questo
mais complexa que envolve a expectativa dos pais em relao aos seus futuros
descendentes. Em seu livro Genetic dilemmas, Dena S. Davis contrape os desejos s
vezes inconfessados dos pais vontade das crianas. Segundo ela, pais obcecados
pela vontade de ter uma filha, ou um herdeiro msico, ou atleta, ou cientista,
demonstram enorme dificuldade em aceitar as escolhas futuras dos herdeiros e
suas inclinaes naturais. Da mesma forma que no aceitariam de bom grado
que, depois de um grande sacrifcio pagando aulas de piano, o filho desistisse de
seguir a carreira.
Tambm no se contentariam de ter uma menina somente com constituio
cromossmica xx, mas sonhariam que ela apresentasse todos os esteretipos
associados feminilidade. Pensemos em um pai que j tem duas meninas e sonha
em ter um filho homem. Para qu? Seu desejo ter um companheiro com quem
possa pescar ou assistir ao jogo de futebol aos domingos. Mas por que no
poderia fazer isso com suas filhas meninas, se elas assim o quisessem?
Ter nascido menina como resultado do acaso (mesmo no caso de pais que
desejavam ardentemente que isso ocorresse) qualitativamente diferente de ter
nascido uma menina como resultado da escolha do sexo. Como diz Dena S. Davis,
a questo complexa: O futuro dessa criana ser influenciado no apenas pelo
sexo, mas pelas expectativas e motivaes dos pais ao selecionar o gnero.
Mas h outro lado da questo. Em um livro muito interessante sobre o tema,
Babies by design: the ethics of genetic choice, o americano Ronald M. Green estabelece
que bastante difcil determinar se o motivo da escolha do sexo de um beb de
fato ftil. Ele cita o caso de um casal de escoceses, Alan e Louise Masterton,
que perdeu uma filha de trs anos em um terrvel incndio em sua residncia.
Nicole era a nica menina numa famlia em que j havia quatro irmos. O casal
quis ter outra menina por fertilizao assistida, mas o rgo encarregado de dar
a autorizao em programas desse tipo na Inglaterra negou o pedido. Naquele
pas, s autorizada a escolha de sexo para evitar o nascimento de uma criana
com problemas genticos.
Os Masterton no desistiram e procuraram clnicas que ofereciam o dpi em
outros pases. O caso tornou-se pblico, tendo Alan protestado: Ser que ns
no podemos, sendo pais amorosos e bem estabelecidos, decidir o que melhor
para a nossa famlia?. A discusso foi adiante: ser preciso que casais que
tenham motivos pessoais necessitem se deslocar e buscar soluo onde no vigora
nenhuma lei a respeito? O caso dos Masterton desencadeou discusses
importantes sobre os impactos dessas escolhas na vida da famlia e da sociedade.
E no Brasil? Sempre tive curiosidade em saber qual seria o resultado de uma
pesquisa como aquela feita na Inglaterra, sobre o interesse dos casais em ter um
filho deste ou daquele gnero. Meu palpite que, nos centros urbanos, ter um
menino ou menina no faz diferena. Para tentar tirar isso a limpo, fiz uma
enquete preliminar na revista Veja. Um total de 1.616 pessoas respondeu. Eram
pessoas com o seguinte perfil: 82% tinham entre vinte e quarenta anos, 85%
tinham nvel universitrio e 64% se declararam do sexo feminino. A pergunta-
chave era: se voc pudesse ter um s descendente, o que escolheria? As respostas
foram: 37% meninos, 32% meninas e 31% indiferente.
J afirmei vrias vezes que nunca me senti discriminada como cientista por
ser mulher. Mas talvez a experincia fosse diferente em locais distantes onde a
preocupao pelo destino das mulheres das famlias maior. Embora o
comentrio de uma leitora no meu blog tenha lembrado que, seja nos centros
urbanos, seja na rea rural, as mulheres brasileiras sofrem de enorme
discriminao, a comear dos salrios, que so, em mdia, 30% inferiores aos dos
homens, alm de violncia e preconceito. Est aberta a discusso.
Captulo 6
Captulo 6

Embries salvadores ou o motivo pelo qual eu nasci

O filme Uma prova de amor, baseado no livro My sisters keeper da americana Jodi
Picoult, conta a histria de Anna, uma menina de treze anos que processa os pais
para obter emancipao mdica e os direitos sobre seu prprio corpo. Anna foi
concebida por meio de fertilizao in vitro para ser geneticamente compatvel
com sua irm mais velha, Kate, que sofre de um tipo de leucemia mieloide aguda.
Apesar de ser uma menina saudvel, durante toda a sua vida Anna frequentou
consultrios mdicos, fez cirurgias e transfuses para que sua irm pudesse viver.
At o momento em que, ao completar quinze anos, Kate comea a sofrer de
insuficincia renal e Anna descobre que ser obrigada a doar um de seus rins
para a irm.
Essa uma histria de fico. Mas poderia ocorrer nesse mundo em que j
possvel escolher irmos salvadores gerados por fertilizao assistida. Por essa
tcnica, casais podem selecionar embries imunologicamente compatveis para
serem implantados de modo que, ao nascer, doem o sangue do cordo umbilical
ou da medula ssea para salvar um irmo ou irm. Por exemplo, pacientes
afetados por leucemia, talassemia ou algumas formas de anemias hereditrias
para os quais um transplante a nica salvao. Por isso so chamados de
irmos salvadores.

De minha parte, acho impossvel no ficar emocionada com dramas como esses.
O primeiro de que tive conhecimento foi o caso de Molly. Era um beb
aparentemente normal, mas nos primeiros meses de vida comeou a apresentar
uma grave anemia. Depois de vrios exames, foi diagnosticada anemia de
Fanconi, uma doena gentica (de herana autossmica recessiva ver Para
entender melhor), que faz com que a medula ssea perca aos poucos as suas
funes. A falncia da medula leva no apenas anemia, mas a distrbios
hemorrgicos. A causa mais frequente de morte a leucemia. Era o caso de
Molly, que estava piorando progressivamente. S havia uma soluo para salv-la:
um transplante de clulas-tronco de medula ssea ou de cordo umbilical.
Molly, porm, no tinha doador compatvel. Seus pais decidiram ento ter
outra criana que doaria seu cordo umbilical para a menina, na poca com
cinco anos. Mas existia um agravante: esse futuro irmozinho, alm de no ser
portador da anemia de Fanconi, tambm teria que ter o sangue compatvel. No
era possvel jogar com a sorte. No havia tempo para arriscar. A nica maneira
de garantir isso seria fazer uma fertilizao in vitro, selecionar um embrio
compatvel e implant-lo no tero da me.
Ocorre que isso se deu na dcada de 1990 e, na poca, tal procedimento
nunca havia sido feito. At ento o diagnstico pr-implantao (dpi) s havia
sido oferecido para selecionar embries que no fossem portadores de uma
mutao responsvel por uma doena gentica grave. Nunca se havia pensado em
escolher um embrio que tambm deveria ser compatvel para doar seu cordo
umbilical. Comearam ento os debates envolvendo filsofos, geneticistas,
bioeticistas. tico ou no tico? No havia consenso. Como se sentiria essa
criana gerada para salvar sua irm? Isso no seria injusto com ela? Eram
ponderaes levantadas em torno da discusso.
O resto da histria me foi relatado pelo prprio mdico de Molly e pioneiro
da tcnica de dpi, Mark Hughes. Ele conta que, um belo dia, o pai da criana
entrou no seu laboratrio. Estava desesperado e tinha o rosto transtornado. Com
um murro na mesa, comeou a esbravejar: Enquanto vocs ficam tentando
decidir o que certo ou errado, a minha filha est morrendo. As pessoas querem
ter filhos pelas mais diferentes razes. Porque se sentem ss, por causa de uma
herana, porque querem algum para cuidar deles durante a velhice, at para
tentar salvar um casamento. Por que no podemos ter uma criana para salvar
nossa filha que est morrendo? Vamos am-la do mesmo modo que amamos
Molly!.
Foi nesse momento, conta o dr. Hughes, que ele se decidiu. Sabia que no
seria fcil, mas iria ajudar aquele casal. Fizeram uma primeira tentativa de
selecionar um embrio compatvel com Molly, mas a me no ficou grvida. Na
segunda tentativa, ela engravidou, porm teve um aborto depois de dois meses. A
terceira tentativa foi bem-sucedida. Hoje, Molly uma moa saudvel com a vida
pela frente. Seu melhor amigo? Adam, seu irmo mais novo.

Quem poderia condenar casais que recorrem a essa tecnologia para salvar um
filho? Nos Estados Unidos, atualmente, depois da divulgao de casos como esse,
a prtica j est estabelecida. Mas as questes ticas a ela associadas, e que
levaram ao filme e ao livro de Jodi Picoult, preocupam especialistas de outros
pases. Na Inglaterra, pas pioneiro na fertilizao in vitro desde o nascimento da
primeira criana, Louise Brown, em 1978, e onde, no por coincidncia, as
discusses ticas sobre temas correspondentes esto mais adiantadas, essa
prtica legal, mas s com aprovao da autoridade mdica, como ficou
estabelecido no Human Fertilisation Embryology Act (hfea).
Essa aprovao, no entanto, no concedida se for constatado que a
criana foi gerada no porque os pais desejassem mais um filho, mas s para
tentar salvar um irmo doente ou condenado. Foi o que levou a resultados
diferentes os dois casos que relato a seguir.
No primeiro, o casal Raj e Shahana Hashmi tinha um filho de trs anos, Zain,
portador de talassemia, uma doena gentica caracterizada pela impossibilidade
de fabricar hemoglobina. O paciente obrigado a receber transfuses
sanguneas frequentes at que a nica soluo para mant-lo vivo um
transplante de medula de doador compatvel. O pai e a me de Zain eram
portadores da mutao que causa a doena, o que significava que havia uma
chance de 25% de que um outro filho tambm a tivesse. Mesmo assim, Raj e
Shahana queriam ter mais filhos. Tiveram Haris, concebido de forma natural, e
que felizmente no tinha talassemia, mas cujo sangue no era imunologicamente
compatvel com o do irmo mais velho.
Sem poder receber o transplante do irmo, a sade de Zain se deteriorava
rpido. Os Hashmi procuraram desesperadamente um doador nos bancos de
medula e cordo umbilical, mas nada encontraram. Como o casal queria ter mais
filhos, resolveram que o prximo beb, alm de saudvel, deveria ajudar a salvar
Zain. A histria teve um final feliz: a autoridade mdica deu permisso para que
fosse realizada a fertilizao in vitro e para o diagnstico pr-implantao, com o
objetivo de selecionar um embrio que no tivesse as mutaes para talassemia e
que fosse tambm compatvel. E assim o menino primognito foi salvo.
No segundo caso, o desfecho foi diferente. Michelle e Jayson Whitaker j
tinham uma criana de trs anos, Charlie, que sofria de uma doena rara
chamada anemia de Blackfan-Diamond (dba), na qual a medula ssea produz
pouqussimas clulas vermelhas (hemoglobina). Isso obriga a criana a fazer um
esforo incrvel para que o corao bata regularmente e o oxignio possa circular
pelo organismo. A doena pode levar fadiga e ao cansao crnicos, alm de
irritabilidade, fazendo com que a pessoa se sujeite a uma vida de transfuses
dirias e remdios.
Nesses casos, o transplante de uma medula ssea compatvel pode ajudar. A
busca, no entanto, resultou infrutfera. Foi quando o casal constatou que, se
tivesse outro filho imunologicamente compatvel, haveria 90% de chance de fazer
com que Charlie pudesse ter uma vida igual de outras crianas de sua idade.
Mas havia uma diferena em relao situao do menino Zain: apesar de
representar um grande sofrimento, a dba no uma doena mortal. Charlie no
corria o risco de morrer jovem. Mesmo assim, como no caso dos Hashmi, os
Whitaker requereram autorizao do Departamento de Sade ingls para fazer
fertilizao e dpi, afirmando que desejavam ter um outro filho de qualquer jeito
e, portanto, essa no seria uma criana nascida apenas para salvar o irmo. A
questo foi submetida ao hfea.
Apesar de os dois casos serem parecidos, havia uma diferena sutil. Para a
autoridade mdica britnica, o procedimento, no caso dos Hashmi, era do
interesse tanto do futuro beb como de Zain, ou seja, o dpi era necessrio para
garantir que ele no teria talassemia e, portanto, nasceria saudvel. E, j que
seria selecionado um embrio livre da doena, por que no acrescentar mais um
fator, a compatibilidade sangunea, para que o futuro beb servisse como doador?
Porm, no caso dos Whitaker, o entendimento foi diferente. A anemia de
Charlie no era hereditria e, alm disso, era muito rara. Isso significava que a
chance de que seus pais tivessem outro filho com a doena no era maior do que
na populao em geral (cinco a sete em 1 milho) e, portanto, um embrio
concebido de forma natural dificilmente teria o mesmo problema. No
entendimento da lei britnica, somente embries com risco de ter a mesma
doena podem ser selecionados por dpi. A solicitao foi rejeitada.
Ser que essa deciso no foi rigorosa demais? Estamos preparados para
decidir questes to ntimas de cada casal? Temos esse direito? No sei qual foi o
seguimento desse caso, mas, nos Estados Unidos, por exemplo, pais de filhos com
leucemia ou com anemia podem selecionar embries para que os futuros bebs
doem clulas do cordo umbilical para seus irmos doentes, se assim o desejarem.
A escolha fica por conta dos pais, que, afinal de contas, so as pessoas que devem
saber melhor por que querem ter filhos. Essa deciso, no entanto, deve ser
tomada aps orientao dos geneticistas para que o casal tenha plena
conscincia dos prs e contras da atitude que tomou.
Alan Handyside, especialista em reproduo assistida, assina um artigo na
revista Nature no qual faz um balano dos vinte anos desde o primeiro dpi: como
comeou, o que possvel hoje e as perspectivas futuras. No artigo, intitulado
Let parents decide [Deixem os pais decidirem], ele defende que genitores
quando bem informados so geralmente melhores juzes do que a obedincia a
uma lei padronizada, quando o objetivo decidir sobre o uso dessa tecnologia.
Devo dizer que concordo com ele: no caso de doenas genticas, quem
convive com elas sabe melhor do que ningum se quer ou no que elas sejam
transmitidas. Mas a questo bem mais delicada, principalmente no caso de
doenas dominantes (risco de 50% de transmitir o gene defeituoso para a
descendncia), nas quais um dos cnjuges afetado. Se for a prpria pessoa que
tem a doena gentica, e que decide no querer ter filhos afetados, no h o que
discutir. Ela, melhor do que ningum, sabe as dificuldades que tm com aquele
problema. Por outro lado, as pessoas aceitam e lidam com seus problemas de
maneiras diferentes. Lembro-me de um dia no qual, por coincidncia, atendi duas
consulentes afetadas pela mesma doena neuromuscular. Uma era dentista e a
outra psicloga. Ambas estavam na casa dos trinta anos e eram casadas. A
dentista j tinha uma filha e queria engravidar de novo. No se incomodava muito
com o risco gentico. No considerava a doena um grande empecilho na sua
vida. J a psicloga se recusava terminantemente a colocar filhos no mundo com
aquele problema.
Mas h situaes nas quais o marido o afetado e a mulher declara que no
quer ter filhos com aquela doena, ou vice-versa. Fico sempre incomodada nesses
casos. Como se sente o cnjuge doente quando ouve isso? Ser que o recado que
recebe do seu parceiro(a) : voc no deveria ter nascido?

A hfea muito respeitada e costuma tratar cada caso de seleo de embrio


separadamente. At agora, restringiu os testes genticos apenas a doenas
hereditrias consideradas muito srias e frequentemente fatais, como anemia
falciforme, fibrose cstica e coreia de Huntington. Ao longo dos anos, a sua lista
foi crescendo, e hoje so 130 os males para os quais a entidade permite a
realizao de testes pr-implantao de embries. Mas Handyside argumenta
que ainda no suficiente. Em sua opinio, essa uma lista que deveria ser
abolida, uma vez que aos pais caberia decidir quais as condies que eles no
gostariam de ver em seus futuros filhos. Ele mais radical e cita, por exemplo,
autismo, asma e at mesmo o mal de Alzheimer, que apenas afetaria algum no
fim da vida.
J se fala em testes genticos para futuros pais avaliarem se os filhos tero
alguma possibilidade de vir a ter essas e outras doenas menos significativas. Em
caso positivo, os pais procurariam fazer o diagnstico pr-implantao, optando
pela escolha de embries selecionados para no ter a condio indesejada. At
onde? J se mencionou a venda de kits para a realizao desses testes, da mesma
forma que j existem para adultos que querem se prevenir de vir a ter cncer ou
problemas cardacos (como veremos em captulo mais adiante).

Concordo que estabelecer limites para a realizao do dpi ainda vai dar muito o
que falar nas prximas dcadas. Acho importante que, nos pases onde a tcnica
est evoluindo rapidamente, como na Inglaterra, essas questes sejam discutidas
e haja legislao a respeito. Pode ser que, no futuro, casos como o de Charlie
ou mesmo aquele relatado no filme venham a ser um problema ou no. Por
outro lado, como garantir a um casal, ou a uma famlia, que no haver
problemas aps o nascimento? Que no haver dificuldades de relacionamento
entre irmos ou paise filhos? No Brasil, onde a situao ja serviu ate de tema de
novela, sabemos de casos esporadicos de irmaos que nasceram com essa
incumbencia, mas nao acompa nhamos suas vidas. Seria interessante saber como
evoluf ram essas hist6rias.
Captulo 7
Captulo 7

Projeto Genoma ou o que esperar de nossos genes

Ouo frequentemente dizer que o Projeto Genoma Humano, iniciado em 1990,


cuja proposta era determinar em quinze anos o mapeamento de todos os genes
responsveis por nossas caractersticas hereditrias, no cumpriu as promessas
anunciadas. Discordo em parte. O projeto foi concludo ou quase todo
concludo em 2003, portanto, dois anos antes do previsto. A promessa, nesse
caso, foi cumprida com louvor. Lembro-me de uma conferncia emocionante em
Cancn, no Mxico, em abril de 2003, que celebrava tanto os cinquenta anos da
descoberta da estrutura molecular do dna, por James Watson e Francis Crick em
1953, quanto o fim do sequenciamento do genoma humano. Na ocasio, Francis
Collins, um dos coordenadores do projeto, exclamou comovido no fim de sua
palestra: We did it! [Ns conseguimos!]. Por outro lado, se pensarmos na
promessa da dcada de 1980, de que a determinao do genoma iria mostrar o
que o ser humano ou a linguagem em que Deus criou a vida, ou se alcanaria
o Santo Graal da biologia e outros exageros hiperblicos desse tipo, o Projeto
Genoma Humano s poderia causar frustrao. Diz-se que essas expresses
foram cunhadas na poca justamente porque os cientistas ainda estavam em
busca de patrocinadores de um sonho, que iria custar muito tempo para se tornar
realidade e demandar mais de 2 bilhes de dlares.
Muito se tem escrito sobre esses exageros e com razo. um erro que, para
obter subvenes ou para se chamar a ateno, prometam-se coisas que no se
podem cumprir. Comeando pela ideia de que o Projeto Genoma Humano iria
permitir curar todas as doenas. Ou de que seria possvel impedir ou prevenir o
aparecimento de doenas como a distrofia muscular, o cncer ou o mal de
Alzheimer. Ou fazer com que as pessoas pudessem ter filhos perfeitos
exatamente como imaginavam ou idealizavam. J vou avisando que essas so
promessas impossveis, mesmo que seja repetitivo enfatizar esse aspecto do nosso
trabalho.
Lembro-me de uma vez em que estava voltando de um congresso
internacional e a meu lado, no avio, se sentou um jovem francs. Comeou a
puxar conversa (estava indo ao Brasil pela primeira vez) e, quando soube que eu
era geneticista, comentou com um olhar meio assustado: Vocs so perigosos.
Conseguem fabricar embries com vrias caractersticas. Qual ser o limite?.
Comecei a rir. Mal conseguimos selecionar embries no portadores de algumas
mutaes, que dir fabric-los. Mas essa diferena entre filmes de fico
cientfica e a realidade ainda muito tnue na cabea das pessoas. O que
possvel fazer ainda no foi muito bem analisado da a razo deste livro. E o
que no continua a ser visto como estando ao nosso alcance, embora no
esteja. Com certeza, somos muito mais limitados do que pensa a maioria.
J ouvi pais me perguntarem acerca de coisas impossveis durante as sees
de aconselhamento gentico. Por exemplo, se seria possvel retirar o cromossomo
a mais existente em seu filho com sndrome de Down (os portadores desse
distrbio apresentam trs cpias de cromossomos 21, em vez de duas), ou trocar
um gene ou um cromossomo defeituoso por outro, em outros casos de mutao
que levam a doenas srias. Infelizmente, temos que explicar que a medicina e o
conhecimento cientfico no permitem tanto. Os cientistas tm a obrigao de
ser particularmente atentos e honestos em seus discursos e mostrar de forma
clara os limites da anlise gentica, ainda mais em um terreno com tantas e to
imensas consequncias emocionais e sociais. Mesmo assim, a imaginao dos
consulentes pode ser muito frtil, e j ouvi frequentemente afirmaes de coisas
que eu teria dito e que de fato nunca saram de minha boca.
Para comear, o desenvolvimento de uma pessoa se caracteriza por uma
sucesso contnua de eventos que ocorrem ao longo do tempo at a sua morte. O
tipo de alimentao que recebe, o local onde vive, a famlia e o amor de que
objeto, os amigos, os sucessos, os fracassos, a sucesso de acontecimentos na sua
vida, tudo isso tem importncia na sua histria e na maneira como vive e age. Da
mesma forma, tem importncia o cdigo gentico, que, grosso modo, contm uma
srie de instrues para a montagem do nosso organismo e que vo dirigir o seu
desenvolvimento. Conhecemos algumas peas que, se no estiverem montadas de
determinados jeitos, podem dar origem a doenas. Mas, em outras situaes, a
existncia de uma pea defeituosa no basta; ela predispe doena ou aumenta
a probabilidade de contra-la. Mas, para que a doena se manifeste, so
necessrios outros fatores, produzidos em geral pelo ambiente. Ou a interao
entre diversas peas e a sua relao com o nosso modo de vida que do origem a
males ainda to difceis de curar.

Voltando ao Projeto Genoma Humano, o seu objetivo era sequenciar o nosso


genoma, isto , identificar todos os genes responsveis por nossas caractersticas
hereditrias. Isso seria possvel estabelecendo a ordem das unidades qumicas que
formam a molcula do dna e que permitem a transmisso da informao gentica
atravs das geraes. Essas unidades qumicas so representadas pelas letras A
(adenina), G (guanina), T (timina) e C (citosina), que, de acordo com a
sequncia, determinam as caractersticas de um organismo. Como so muitas, 3
bilhes de pares dessas unidades ou bases, de fato, a definio da sequncia
completa foi um empreendimento gigantesco e grandioso, comparvel, para
muitos, com a primeira ida do homem Lua. Tanto que deu origem a duas
abordagens diferentes de trabalho, protagonizadas por dois cientistas que
ficaram famosos pelo feito, mas tambm por suas divergncias Francis
Collins, que j mencionei no evento em Cancn, que dirigia na poca o Instituto
Nacional de Pesquisa do Genoma Humano, vinculado aos Institutos Nacionais de
Sade dos Estados Unidos (nih), e Craig Venter, que estava frente da
companhia Celera, fundada por ele com capital da Perkin-Elmer, empresa que
comercializava sequenciadores de dna.
Menciono o nome dos dois para explicar o que estava em jogo durante o
andamento do projeto e o progresso alcanado at hoje. O projeto pblico,
internacional, comandado por Collins, nos Estados Unidos, e por John Sulston, na
Inglaterra, era meticuloso e mais demorado, construindo o genoma humano
pedacinho por pedacinho e depois montando as partes at completar a
sequncia. O de Venter era mais rpido, propondo-se a sequenciar todo o
genoma de uma vez. Por esse mtodo, o dna todo picotado, e os bilhes de
pedacinhos so lidos rapidamente por um software no computador. Mas havia
outras diferenas entre eles. O Genoma Humano montado com dinheiro pblico
visava tornar todas as informaes conhecidas de quem quisesse e pudesse
aproveit-las para o desenvolvimento de remdios e curas para doenas. Venter,
que trabalhava com financiamento privado, pretendia ganhar dinheiro com a
venda de informaes conseguidas com o sequenciamento do genoma. No deu
certo, e ele acabou deixando a Celera por divergncias com outros acionistas da
empresa e criou sua prpria companhia. Mas continuou, com suas ideias e
empreendimentos geniais, a levar o conhecimento sobre o genoma adiante, por
exemplo, com a criao, em 2010, de uma bactria com um genoma produzido
por meio de engenharia gentica. Nesse caso, ele remontou no laboratrio os
pedaos de dna da bactria Mycoplasma capricolum e inseriu em outra (Mycoplasma
mycoides). Seu objetivo , no futuro, produzir micro-organismos teis ao homem,
por exemplo, bactrias mais eficientes em degradar a celulose ou o plstico,
criando novas fontes de combustvel biodegradvel.
O Projeto Genoma Humano dependia principalmente de sequenciadores,
mquinas que pudessem determinar a sequncia de bases do dna humano em
pouco tempo e a um custo acessvel. Na poca, o projeto pblico usou seiscentos
desses equipamentos espalhados em diversos laboratrios de vrios pases. A
Celera, por sua vez, utilizou cerca de trezentos sequenciadores, todos sob o
mesmo empreendimento. Foram doze anos de espera at que os dados do projeto
pblico apareceram em onze artigos acompanhados de comentrios na edio de
15 de fevereiro de 2001 na revista Nature. Os dados da Celera apareceram um dia
depois, no nmero de 16 de fevereiro da Science. Mas o Projeto s terminou
oficialmente em abril de 2003, como mencionei antes.
Com a evoluo da tecnologia dos sequenciadores, hoje essas mquinas
fazem o mesmo trabalho que as equipes do genoma executaram no incio do
sculo, s que 50 mil vezes mais rpido. Para se ter uma ideia: em 2007, foi
possvel fazer o sequenciamento do genoma de James Watson em dois meses ao
custo de 1 milho de dlares. Estima-se que o custo pode baixar at mil dlares
nos prximos anos e j se fala de sequenciadores para consultrios mdicos. Ou
seja, descobrir se temos mutaes ou variaes em nossos genes est se tornando
cada vez mais fcil. Mas essa apenas uma parte da questo. As mquinas
trabalham bem, mas o que fazer com a interpretao desses dados?

A cada vez que olhamos o genoma humano descobrimos mais perguntas sobre a
nossa intrincada biologia. Mesmo agora, ainda existem regies no sequenciadas
do genoma e genes a serem descobertos. Descobrimos tambm que temos um
nmero muito menor de genes do que imaginvamos algo como 21 a 22 mil. E
que estes possuem inmeros mecanismos para produzir protenas diferentes, o
que explica por que no precisamos de um nmero to grande deles como se
imaginava antes do sequenciamento executado pelo Projeto Genoma Humano.
Descobrimos ainda que o rna, que se supunha ser um mero transportador de
informaes, pode influenciar o comportamento de nossos genes de muitas
maneiras. E, mais importante ainda, descobrimos que tanto quanto existe uma
diversidade infinita de espcies do mundo vivo, existe tambm uma diversidade
enorme entre indivduos no seio da mesma espcie. Alis, o prprio Craig Venter
se encarregou de comprovar essa tese. Ele foi o primeiro ser humano, antes
mesmo de James Watson, a ter todo o seu genoma descrito, o que permitiu
comparar os resultados obtidos com um banco de dados de referncia do Projeto
Genoma Humano, demonstrando que havia muitas variaes entre os dois mapas.
Isso mostra que somos substancialmente mais diferentes uns dos outros do
que especulvamos, e isso uma boa notcia para a humanidade, afirmou Craig
Venter na poca. Eu gostaria de acrescentar: nem poderia ser diferente. essa
variedade de aptides fsicas e mentais que confere s populaes humanas suas
possibilidades de responder aos desafios do ambiente, suas ferramentas para
progredir em sociedade, desenvolver culturas ricas, criar e ter comportamentos
diferentes. isso que faz com que a espcie humana tenha modelos de beleza
como Gisele Bndchen, atletas e medalhistas olmpicos como os nadadores Ian
Thorpe ou Cesar Cielo, msicos da estirpe de Miles Davis e tantos outros.
Portanto, todo tipo de homogeneizao, destinada a contribuir para a criao de
indivduos iguais ou normais, ideais ou perfeitos, s tende a empobrecer a todos
ns.
No h genes timos ou normais, mas apenas colees de genes que nos
permitem viver e reproduzir com sucesso hoje e, principalmente, que podem ser
diferentes dos considerados normais de amanh.

Embora essas riqueza e variao sejam to importantes, elas tornam a cura das
doenas mais difcil. Se tudo fosse uniforme, o Projeto Genoma Humano teria
desvendado a causa e alcanado a cura de doenas graves, como diabetes e
cncer. No teriam sido nenhum exagero as promessas feitas na poca. O
resultado do trabalho seria de fato um manual, o livro da vida. O mdico leria o
dna do paciente e procuraria por algum gene ou mutao diferente
potencialmente responsvel por aquela doena. Se encontrasse alguma alterao
conhecida, prescreveria um tratamento que atuasse direto naquele gene. E tudo
estaria acertado.
Mas as coisas no so assim to simples. Da a demora de apresentar
resultados concretos, o que tambm uma queixa dos crticos do Projeto
Genoma Humano. Alis, para entender melhor essa demora, preciso explicar
que esse projeto teve duas fases. Da primeira, ou seja, do sequenciamento dos
bilhes de unidades qumicas que formam a populao humana, o Brasil
participou pouco. Concentramos nossos esforos em desenvolver conhecimento
nessa rea, fazendo o sequenciamento completo de uma espcie menor a
Xylella fastidiosa, a praga do amarelinho. A proposta inicial era aumentar o nmero
de laboratrios e de pesquisadores na rea de biologia molecular e de
bioinformtica e aprender a trabalhar em conjunto para conhecer o genoma
utilizando dados obtidos pelos sequenciadores. Depois de muitas discusses, foi
escolhida a Xylella, por ter um tamanho possvel de ser sequenciado em dois anos
naquela poca e pelo seu interesse econmico. Os resultados foram muito
alm da expectativa. Reunimos quase duzentos cientistas em 34 laboratrios.
Conseguimos sequenciar o primeiro patgeno de plantas no mundo, demos um
salto no desenvolvimento da bioinformtica e fomos capa da prestigiosa revista
cientfica Nature em 2000. O Brasil deixou de ser conhecido internacionalmente
apenas como o pas do carnaval, das praias e do futebol. Mostramos ao mundo
que dominvamos a tecnologia de ponta do sequenciamento de dna. O ento
governador de So Paulo, Mario Covas, quis comemorar a nossa conquista
reunindo todos os participantes em um evento na Sala So Paulo. Nunca esqueci
a emoo daquele momento. No caminho havia faixas dizendo: So Paulo tem
orgulho de seus cientistas. Eu me senti como um jogador de futebol voltando ao
Brasil aps ganhar a Copa. Depois disso, nosso conhecimento continuou a evoluir,
com o desenvolvimento de uma tcnica que permitiu resultados muito mais
rpidos, ao sequenciar a rea central dos genes, utilizada para entender melhor
alguns tipos de cncer de estmago, boca, colo de tero, que no eram o objetivo
de muitas pesquisas no exterior.
Vrias pessoas me perguntam se participamos diretamente no Projeto
Genoma Humano. Na realidade, nosso grupo no esteve envolvido de forma
direta no processo de sequenciamento, ou na identificao das letrinhas, as
famosas atgc. Mas tivemos e continuamos a ter um papel importante no
chamado Genoma Funcional, que , na realidade, a segunda fase do projeto e seu
objetivo maior: entender a funo dos genes. Nossa atuao se deve ao fato de se
tratar da continuao do trabalho que j executvamos no Centro de Estudos do
Genoma Humano.
A natureza de nossas pesquisas fazer o mapeamento de genes responsveis
por vrias doenas e descobrir quais so as suas funes a partir do estudo de
genealogias com doenas genticas. Se constatamos que h vrias pessoas
afetadas em uma mesma famlia, esse um sinal da existncia de um gene
defeituoso (s vezes mais de um), que pode estar causando aquela doena.
Quando procuramos esse gene desconhecido, o primeiro passo o mapeamento,
isto , saber em que regio, dentre os 23 pares de cromosso a mutao ou erro
gentico que est sendo transmitido naquela famlia de modo a causar aquela
patologia.
Mal comparando, como achar uma casa onde h um vazamento de gua,
na cidade de So Paulo, sem endereo. o que chamamos de mapear. Uma vez
achada a casa, precisamos descobrir por que est havendo o vazamento. Cano
furado? Encaixe malfeito? O terceiro passo tentar entender qual a funo
daquele gene, qual o seu papel no organismo. Isto , quem mora naquela casa e
o que eles fazem. Entender a funo do gene fundamental para saber como ele
funciona normalmente e por que ele responsvel por uma doena gentica
quando existe uma mutao. A partir da, a ideia desenhar estratgias para
corrigir seu mau funcionamento.
No incio, antes do Projeto Genoma Humano, achar um gene novo, ou a tal
casinha sem endereo em uma cidade como So Paulo, era um trabalho
gigantesco. Representava uma aventura que podia levar anos. Hoje, com o
desenvolvimento da tecnologia de sequenciamento e as informaes do Projeto
Genoma Humano armazenadas em bancos de dados, podemos fazer isso bem mais
rapidamente, s vezes em dias. D para entender agora o meu entusiasmo com o
projeto?
Mas, de novo, preciso enfatizar que essas pesquisas no so simples. s
vezes, os genes esto ligados diretamente a determinadas doenas. Um nico
defeito em determinado gene suficiente para causar uma patologia. Mas, na
maioria dos casos, achar mutaes patognicas e saber o que elas fazem pode ser
uma tarefa rdua. O Centro de Estudos do Genoma Humano tem contribudo
com uma participao importante nessa rea. Identificamos cerca de vinte genes
novos, descobrimos a funo de vrios deles e hoje estamos pesquisando novas
estratgias para corrigir o defeito pelo qual so responsveis.
O estudo do genoma tambm tem permitido descobrir que, para algumas
doenas, pessoas portadoras da mesma mutao podem ter um quadro clnico
discordante, variando desde uma forma grave at ausncia de sintomas. Isso
demonstra que muitas mutaes ditas patognicas podem no ser
determinantes por si s de uma patologia e que outros fatores interferem na
expresso dos genes. A identificao desses fatores que protegem algumas
pessoas dos efeitos deletrios de determinado gene abre um leque enorme para
futuros tratamentos. E mais uma evidncia de que no h determinismo
gentico.
Por outro lado, a resposta individual aos medicamentos, isto , por que um
mesmo remdio pode ser benfico, incuo ou prejudicial para diferentes pessoas,
tambm depende em grande parte de nossos genes. Por exemplo, a velocidade
com a qual metabolizamos uma droga depende de nosso perfil gentico. Se
formos metabolizadores rpidos, precisamos de doses maiores porque a droga
ser rapidamente eliminada do organismo. Mas, se formos metabolizadores
lentos, uma mesma droga, que pode ser benfica para uma pessoa, poder ter
efeitos txicos e se acumular no nosso organismo. De fato, milhares de pessoas
morrem todos os anos por causa dos efeitos adversos de drogas.

Se as pessoas soubessem o efeito catasrfico que alguns medicamentos


podem causar, pensariam duas vezes antes de receitar um remedinho timo
para seu vizinho, uma prtica muito comum entre ns. Lembro-me de um
professor famoso de neurologia que nos contou que atendeu um dia uma menina
que chegou ao pronto-socorro do hospital em coma. A garota no havia sofrido
nenhum acidente e no exame clnico no parecia haver nada que justificasse
aquele estado. At que se descobriu a causa. Havia ingerido o remdio de sua
irm que era diabtica e, como ela tinha nveis normais de glicemia, no seu
organismo a droga havia causado uma profunda hipoglicemia e da o coma.
O conhecimento que est sendo conquistado pelo estudo do nosso genoma
vai revolucionar o modo como so prescritos os medicamentos atualmente. Em
um futuro muito prximo, eles sero administrados de acordo com o perfil
gentico de cada um. Iremos ao mdico e, antes de ele receitar um remdio,
faremos um exame gentico para saber qual a droga que mais se adapta ao
nosso perfil gentico e em que dose devemos tom-la. E, com isso, as bulas com
letras minsculas que acompanham os remdios descrevendo os possveis efeitos
colaterais no sero mais necessrias. J pensaram que maravilha? Alis, para o
tratamento de cncer, a chamada farmacogenmica tem sido uma importante
aliada no direcionamento de tratamentos. por a que a tal medicina
personalizada est comeando, e esperam-se vrias novidades nos prximos anos.
Resta abordar uma ltima questo que trataremos com mais vagar nos
captulos seguintes. Como a evoluo e o barateamento dos sequenciadores
tornaro a descoberta de mutaes ou variaes em nossos genes mais comuns,
os testes genticos vo se disseminar cada vez mais? Como j expliquei, isso no
significa que a interpretao do seu significado seja simples. No Centro de
Estudos do Genoma Humano, j identificamos mutaes que teoricamente
causariam doenas graves em pessoas totalmente normais. Foram descobertas
simplesmente porque foram feitos testes em parentes saudveis de doentes
afetados. Como lidar com isso? uma grande incgnita. O parente veio ao
centro apenas a fim de contribuir para elucidar o diagnstico de uma pessoa
afetada de sua famlia e descobre que ele, que totalmente normal, portador
de uma mutao associada a uma doena. Ser que vai desenvolv-la mais tarde
ou permanecer assintomtico toda a vida? Qual o risco de transmitir essa
mesma mutao de efeito desconhecido para a sua prole? No sabemos. A
constatao pode ajudar a prevenir uma doena? Ou pode simplesmente gerar
uma angstia e um sofrimento desnecessrios, j que ele pode nunca desenvolv-
la e nem transmiti-la?
Ao sequenciar o genoma de pessoas jovens, iremos cada vez mais encontrar
alteraes novas cujos significados ainda so desconhecidos. Esto associadas a
um risco aumentado para certas doenas ou so manifestaes incuas que
simplesmente contribuem para que uma pessoa seja diferente da outra? Para
tentar resolver essa questo, estamos desenvolvendo um projeto no Centro de
Estudos do Genoma Humano chamado 80+. Estamos coletando dna de pessoas
com mais de oitenta anos que esto saudveis tanto do ponto de vista cognitivo
como fsico, isto , capazes de viver independentemente. Essas pessoas sero
tambm submetidas a uma ressonncia funcional do crebro. Queremos saber
como ele funciona. A meta coletar pelo menos mil amostras que nos daro um
parmetro para os novos achados no genoma. Se forem encontradas alteraes
desconhecidas em um jovem, iremos comparar com as nossas amostras de 80+. Se
coincidirem, saberemos que se trata de uma mutao sem importncia para a
sade. Caso contrrio, valer a pena aprofundar a pesquisa para entender melhor
o significado daquelas alteraes.
A cincia evolui to rapidamente que, enquanto escrevemos este captulo,
novas observaes, publicadas na revista Science em maio de 2011, podem
revolucionar nossas pesquisas. Todos ns aprendemos que as sequncias de bases
que esto no dna so copiadas pelo rna e determinam a sequncia de
aminocidos que vo formar as protenas. Isso considerado quase o b--b da
gentica. Quando a leitura do rna no corresponde do dna, isso considerado
um erro ou uma mutao. Mas a pesquisadora Vivian Cheung, da Universidade da
Pensilvnia, mostrou que, com muita frequncia, a leitura do rna pode no
corresponder do dna. Fazendo uma analogia, seria como se uma sequncia de
letras do dna que deveria ser lida pelo rna como casa, fosse lida como cama. Se
for confirmado esse estudo, o resultado pode mudar a nossa compreenso acerca
das mutaes que causam doenas e explicar, pelo menos parcialmente, por que
pessoas com a mesma mutao podem ter quadros clnicos totalmente
diferentes, ou explicar por que uma mesma mutao afeta um tecido e no o
outro em uma mesma pessoa. Abre-se um novo leque gigantesco de perguntas e
perspectivas para novas estratgias teraputicas.
Tenho um pster de um macaco coando a cabea e dizendo: Quando
aprendi todas as respostas, eles mudaram todas as perguntas. Sem dvida,
estudar o genoma humano, o nosso genoma, fascinante e, para quem
apaixonada pelo assunto como eu, a perspectiva de muito assunto para
pesquisas por dcadas. No podemos nos queixar de monotonia.
Captulo 8
Captulo 8

Loira ou morena, alta ou baixa, atleta ou cientista: os genes fteis

Testes pr-natais e pr-implantao, escolha de sexo, pesquisa com embries e


outras prticas tm ou podem ter aplicaes eticamente aceitveis e desfechos
muitas vezes comoventes. Mas onde esto os limites? Desde que o bilogo
molecular Lee M. Silver lanou em 1997 o sugestivo De volta ao den (no original
Remaking Eden: how cloning and beyond will change the human family), j se fala na
reprogentica e no design de crianas. Em tese, significa que os pais vo poder
decidir no futuro se querem que seus filhos nasam mais resistentes a infeces,
mais bonitos ou mais inteligentes. No se trata de modificar genes dos
descendentes para que eles no tenham doenas fatais, ou mesmo que afetem
irremediavelmente a sua qualidade de vida, mas de selecionar, entre vrios
embries, um ou outro com as caractersticas desejveis, um passo adiante
daquela questo levantada pela escolha dos gmeos no captulo 4.
Quem primeiro levantou a possibilidade da seleo foi justamente o
polmico pai dessa cincia, James Watson, que com Francis Crick revolucionou a
gentica com a descoberta da dupla hlice de dna em 1953. Em palestra
proferida na Universidade da Califrnia, em 1998, ele chegou a afirmar que se
ns pudermos melhorar os seres humanos por meio da modificao de seus genes,
por que no fazer isso?. Em contraponto, Jeremy Rifkin, autor do livro O sculo da
biotecnologia, chama esse tipo de melhoria de eugenia comercial, motivada pelo
desejo do consumidor de ter crianas melhores e mais perfeitas. Para ele, essa
nova eugenia se relaciona com a ideia de aprimoramento de certas
caractersticas, em contraposio velha eugenia, que visava eliminao de
caractersticas indesejveis. Mas as duas tm em comum um suposto
aprimoramento da espcie humana.
No h dvida de que essas pesquisas vo exigir cada vez mais reflexo.
Atualmente, o mximo que os avanos do genoma humano e a aplicao do
diagnstico pr-implantao (dpi) permitem a seleo de portadores de genes
associados a determinadas doenas e a algumas caractersticas como altura, cor
dos olhos, do cabelo, ou que poderiam conferir vantagem em alguma modalidade
esportiva. E, mesmo nesses casos, a gentica estabelece limitaes. No
possvel esquecer que a seleo de embries com traos desejveis, como cor do
cabelo ou dos olhos, por exemplo, deve estar presente no genoma de um ou nos
dois pais.
Outra coisa importante a ser considerada que a fertilizao in vitro resulta
em apenas um punhado de embries fertilizados dos quais possvel retirar uma
ou duas clulas para o teste gentico. A probabilidade de um embrio herdar a
combinao correta de variantes genticas para ter os traos desejados pode ser
pequena demais para valer a tentativa. Como j expliquei, o dpi um
procedimento difcil, que requer fertilizao in vitro. Alm disso, esse embrio
selecionado pode ter uma das caractersticas supostamente vantajosa e no a
outra. Sem contar que apenas uma frao dos embries transplantados vivel.
Dito isso, fica mais fcil entender por que essa tecnologia s deve ser
considerada em questes realmente srias, como o risco para o desenvolvimento
de doenas limitantes ou letais. Por exemplo, uma condio que no permita uma
vida independente. Como j vimos, casais ou famlias que j tiveram filhos ou
parentes afetados por uma doena gentica podem saber se correm o risco de vir
a ter parentes com o mesmo problema e planejar sua prole de acordo com essa
informao, evitando o futuro sofrimento para a criana e todos que a amam.
Mas o conhecimento e a tecnologia avanam rapidamente, e por isso to
necessrio um debate tico a respeito.

O que dizer da identificao precoce de genes que aumentam a nossa


predisposio para doenas, como certos tipos de cncer, hipertenso ou males
cardacos? Testes para avaliar a predisposio para o cncer de mama
hereditrio em embries de sexo feminino j so realizados em pases como
Austrlia, Blgica, Estados Unidos e aqui mesmo no Brasil. Em princpio, so
vlidos para os casos em que j se detectou uma mutao no gene brca1 ou
brca2. Esses genes so responsveis por 5% a 10% das ocorrncias de cncer de
mama e de ovrio no mundo, isto , 90% a 95% dos casos de cncer de mama no
esto associados a mutaes nesses dois genes. Mulheres portadoras tm sete
vezes mais probabilidade de desenvolver a doena do que aquelas sem essa
mutao. Por isso, muitas pessoas querem se testar para saber se essas variantes
esto presentes em suas famlias. importante reforar que s vale a pena ser
testado quem tem vrias manifestaes de cncer de mama na famlia,
principalmente os de incio precoce. Isso porque qualquer mulher tem um risco
de 10% a 12% de vir a desenvolver um cncer de mama, independentemente da
presena de mutaes nos genes brca1 ou brca2.
Queria relatar o caso de Betsy, que, segundo os jornais, uma menininha
inglesa nascida de uma famlia com cncer hereditrio. Tanto a av como a me,
a irm e a prima de seu pai tiveram tumor de mama por volta dos vinte anos e
eram portadoras do gene brca1 mutante. A me temia tanto a doena na sua
descendncia que decidiu pela fertilizao in vitro e diagnstico pr-implantao
(dpi). Considerei o quanto isso era importante e que, se minha filha tivesse o
gene e desenvolvesse o tumor, eu no poderia encar-la e dizer que no tinha
feito todo o possvel para evit-lo, disse a me aos jornais. Betsy ento foi
selecionada e nasceu porque no tinha a mutao nesse gene. Isso no quer dizer
que ela esteja imune doena e no venha a ter cncer um dia. Apenas que a sua
probabilidade a mesma da de outras mulheres sem a variante do gene.
A histria dessa menina trouxe tona a discusso sobre os limites do dpi
porque foi o primeiro caso conhecido de seleo de embrio livre de um gene que
aumenta a probabilidade de ter uma doena potencialmente curvel. O brca1
no significa uma sentena de morte, mas ainda assim to grave que muitas
mulheres preferem fazer mastectomia preventiva a correr o risco de ter o tumor.
compreensvel o medo do cncer e a deciso dos pais de Betsy de tentar evitar
esse sofrimento filha. O problema que, uma vez ultrapassado o limite de
descartar embries com genes que causam doenas letais ou altamente
incapacitantes, para aqueles associados ao risco de uma doena futura, fica
difcil estabelecer onde parar. Se um dos pais diabtico, por exemplo, ser que
ele no faria tudo para que seu filho no tivesse que se submeter s mesmas
restries alimentares e sofrer as consequncias que enfrentou durante toda sua
vida? Voc condenaria a sua atitude?
Mas podemos ir um pouco mais adiante. E aquele pai obeso ou com calvcie
prematura? Hoje em dia, j existem testes personalizados que oferecem a pessoas
adultas, at mesmo pela internet, uma previso de risco para o desenvolvimento
de doenas ou caractersticas associadas a variantes genticas conhecidas.
Cerca de vinte companhias operam nesse mercado altamente lucrativo. Nos
Estados Unidos, j esto propondo vender kits at em farmcias.
Voc acharia vlido selecionar o feto para que ele no tivesse tais
incmodos que poderiam eventualmente fazer com que no fosse bem aceito pela
sociedade? A questo : qual a utilidade de saber se a pessoa tem predisposio
calvcie, obesidade, sndrome de pernas inquietas, cera mida ou seca no
ouvido ou a outras caractersticas absolutamente fteis que essas empresas
abordam?
Recentemente, tomei conhecimento de que algumas clnicas de fertilidade
no Reino Unido estariam planejando vender para casais que querem ter filhos kits
capazes de testar os riscos para cerca de seiscentas doenas, muitas delas fatais
nos primeiros anos de vida, outras no. As clnicas anunciam que todos deveriam
fazer o teste, mesmo que no tivessem um histrico familiar de doenas. Faz
sentido, porque, no caso de doenas recessivas, geralmente s se descobre que os
dois cnjuges so portadores de mutao para uma mesma doena depois do
nascimento do primeiro filho afetado. Se isso pode ser prevenido, por que no? Os
idealizadores desses exames pr-concepo defendem que os casais em risco
devem ser encaminhados para servios de aconselhamento gentico a fim de
discutir quais as possveis opes: doao de vulo ou espermatozoide,
diagnstico pr-implantao, interrupo de gestao ou mesmo adoo. E, com
isso, previnem o sofrimento associado ao nascimento de filhos com doenas
genticas lembrando que o risco de um casal normal ter um descendente
afetado por uma doena gentica de 2% a 3%.
Na realidade, testes pr-nupciais j so realizados no caso de judeus
ortodoxos, mas s para algumas doenas, como fibrose cstica, doena de
Gaucher ou Tay-Sachs. Como os casamentos so arranjados, se for descoberto
que uma pessoa portadora de mutao em determinado gene, proucura-se um
parceiro queno tenha o mesmo gene alterado.
E h quem defenda a realizao desses testes mesmo para quem no esteja
ainda pensando em ter filhos. Posso imaginar um casal de namorados
comparando seus kits a fim de saber se, no futuro, seriam compatveis para ter
filhos perfeitos. Nesses casos, fundamental alertar: esses testes permitem
excluir doenas, mas jamais garantir um descendente perfeito. Alm disso, h
aqueles que se opem, claro. Estamos falando de uma nova forma de eugenia?
Ser que as pessoas no vo se sentir estigmatizadas? Como os casais iro lidar
com essas informaes? Quem vai garantir o sigilo das informaes?

Outras situaes ainda mais complexas, que vo dar margem a muitas discusses,
comeam a aparecer. Ningum pode se opor s terapias genticas destinadas a
diminuir ou atrasar a degenerao progressiva da distrofia muscular, certo? Mas
e se essa mesma terapia fosse usada para melhorar o desempenho dos atletas?
Pois foi estudando o problema da degenerao muscular da distrofia e de
idosos que o geneticista H. Lee Sweeney, da Universidade de Pensilvnia,
descobriu genes que controlam o mecanismo de crescimento das clulas dos
msculos. Sweeney isolou esses genes e os introduziu num vrus aparentemente
incuo. Depois injetou o vrus na musculatura de camundongos. Deu certo: os
camundongos com os genes modificados tiveram um aumento de 15% a 20% da
massa muscular e, quando submetidos a exerccios fsicos, se tornaram 50% mais
fortes. A linhagem de animais com essas caractersticas foi apelidada de ratos
Schwarzenegger e representou na poca uma das esperanas de tratamento
futuro para os portadores da distrofia muscular.
S que, assim que a pesquisa se tornou conhecida, Sweeney comeou a
receber telefonemas de treinadores e atletas perguntando se esse mesmo
aumento de musculao poderia ser obtido em humanos. E se houvesse a
possibilidade de obter um medicamento desse tipo, qual seria a probabilidade de
rastrear a sua presena no organismo em testes antidoping? O alerta foi dado no
comit olmpico e o caso foi levado a srio a tal ponto que a Agncia Mundial
Antidoping incluiu o doping gentico na lista de procedimentos proibidos, antes
mesmo de ele existir.
Mas suponha que seja possvel introduzir fatores de crescimento dos
msculos na seleo de embries com determinadas caractersticas. Se voc
tivesse a opo de escolher, e fosse apaixonado por esportes, no ficaria tentado
a fazer com que seus filhos tivessem o fsico ou a habilidade de um jogador de
futebol? Ou de um atleta de olimpada? Se ele nascesse com essas
caractersticas, em vez de competir em igualdade de condies, j estaria
geneticamente em vantagem. Seria tico ou no?
E a beleza ento? Um corpo e rosto bonitos no abririam todas as portas
para quem sonha com uma filha artista de cinema ou vencedora de um concurso
de miss?

Existem vrias caractersticas genticas que esto associadas a um melhor


desempenho em determinadas modalidades esportivas, como a capacidade de
captar oxignio pelos pulmes, a composio das fibras musculares ou a nossa
proporo corporal. Por exemplo, em algumas modalidades esportivas, os
jogadores j so pr-selecionados de acordo com traos genticos, como a altura
para jogadores de basquete. Isso levanta vrias questes. Como lidar com as
diferenas biolgicas dos atletas? Ser possvel no futuro manipular os genes para
melhorar o desempenho nos esportes? O que tico ou no?
Um dos casos mais conhecidos o do ciclista Lance Armstrong, famoso por
ter vencido o Tour de France sete vezes consecutivas, logo aps se restabelecer
de um cncer. Armstrong foi acusado de ter se valido de doping para o seu
extraordinrio desempenho. Os fisiologistas o consideram um monstro gentico
por possuir caractersticas como fora, flego e resistncia muito superiores s
dos outros atletas. Sem contar, claro, a sua tcnica, persistncia e preparo
fsico, Lance possui vantagens biolgicas em relao aos seus concorrentes.
Essas caractersticas foram herdadas naturalmente, mas, se tivessem sido
resultado da seleo gentica de embries, ele seria menos atleta?
Caso semelhante foi constatado com o atleta finlands Eero Mntyranta,
que obteve vrias medalhas de ouro na dcada de 1960 em competies de esqui.
Ele foi acusado de doping biolgico porque, na poca, os exames de sangue
indicavam que Eero apresentava 15% mais hemoglobina do que o normal. A
transfuso de sangue para melhorar o desempenho (aumentar o transporte de
oxignio e a energia) era uma prtica considerada ilegal. Hoje, ela foi substituda
por injees de eritropoetina (epo), a verso sinttica de um hormnio secretado
pelos rins, que estimula a medula ssea a aumentar a produo de glbulos
vermelhos (hemoglobina).
Como o oxignio transportado no sangue pela hemoglobina, um aumento
do epo resulta em maior disponibilidade de oxignio portanto maior produo
de energia para os msculos e, consequentemente, um melhor desempenho
para esportes que exigem grande consumo energtico. Na realidade, os atletas
que se injetam epo esto se expondo ao perigo porque as consequncias podem
ser letais.
Mas a evoluo do conhecimento sobre o tema trouxe a explicao para a
extraordinria perfomance de Eero. Ele e vrios de seus familiares possuam uma
mutao gentica rara no gene que produz o hormnio epo. Os portadores dessa
mutao podem produzir at 25% mais glbulos vermelhos que a mdia normal da
populao. Portanto, o atleta tinha nascido com um doping natural que lhe dava
uma vantagem competitiva extraordinria. A questo se podemos considerar
justo o desempenho de quem j tem vantagens genticas como essa.
Por que no? No fazemos isso todo o tempo? No selecionamos os melhores
entre os mais altos, os mais rpidos, os de maior flego? E se, no futuro,
pudermos atuar nos genes associados a um melhor desempenho esportivo? Se o
desempenho dos atletas resultado de sua herana gentica e do ambiente, seria
desonesto ajudar os geneticamente menos favorecidos para que possam disputar
em situao de igualdade? o que muitos defensores da seleo gentica
argumentam. Por outro lado, quando voc seleciona uma criana com essas
caractersticas, no est limitando a sua opo de escolha de no querer praticar
esporte, por exemplo, e determinando o que voc gostaria que ela fizesse?

Agora, vejam outra situao: o sequenciamento do genoma humano j permitiu


aos cientistas identificarem uma srie de genes que a depender do ambiente
predispem a doenas psiquitricas ou distrbios do comportamento. Embora
raras, existem mutaes responsveis por formas hereditrias da doena de
Alzheimer ou alteraes que aumentam a probabilidade de uma pessoa ter
doenas do humor, como depresso e transtorno bipolar. Em um estudo muito
interessante realizado na Noruega, verificou-se que, entre os alcolatras, aqueles
que se tornam agressivos sob o efeito do lcool tambm diferem dos no
agressivos em relao a uma variante gentica. E, se uma pessoa se tornar
agressiva quando alcoolizada por causa de sua constituio gentica, ela pode ser
isenta de culpa?
Trabalhos em modelos animais tm demonstrado que poderiam existir genes
que levam ao alcoolismo ou dependncia de drogas. Outros sugerem que a
homossexualidade, o bom humor e o otimismo tambm teriam influncias
genticas. Enquanto os marcadores genticos responsveis pelo comportamento
humano continuam sendo pesquisados, a questo central se podemos manipul-
los. Ou no futuro selecionar embries com essas caractersticas. E novamente
ficam as perguntas: Quais so as caractersticas desejveis de comportamento?
Quem decide? Elas poderiam ser selecionadas em embries?

E o que dizer daqueles que recorrem ao dpi porque querem selecionar embries
que sejam semelhantes a eles, como no caso da surdez, que j mencionamos? Nos
Estados Unidos, embora a questo seja controvertida, algumas clnicas oferecem
essa opo. O argumento dos pais que a surdez no um defeito, mas uma
cultura lingustica a ser preservada. Defendem que seus filhos tm o direito ao
silncio. Por um lado, muito reconfortante saber que pessoas sem audio
esto to bem adaptadas que no achem que passar essa caracterstica a seus
filhos possa prejudic-los. Outra coisa usar o dpi para ter certeza que no iro
gerar descendentes com audio normal.
O direito ao silncio? Concordo que todos ns gostaramos de ser surdos s
vezes. Mas isso tem que acontecer por opo nossa, e no por uma imposio
irreversvel. No h dvidas de que, por mais bem adaptada que seja, uma pessoa
que no ouve tem mais dificuldades em vrias situaes, como falar ao telefone,
prevenir alguns perigos, aprender outra lngua ou viver em outro pas. Alm disso,
justo privar uma pessoa das emoes da msica, de ouvir o rudo do mar, o
choro do beb? justo que os pais determinem que a comunicao dos seus filhos
com o ncleo familiar seja mais importante que a sua comunicao com o
mundo?
Ser que esquecemos que nossos filhos no so nossos? Sobre isso, gostaria
de relembrar as palavras do clebre pensador libans Khalil Gibran: Seus filhos
no so seus filhos. So os filhos e filhas da vida desejando a si mesma. Eles vm
atravs de vocs, mas no de vocs. E, embora estejam com vocs, no lhes
pertencem. Vocs podem lhes dar amor, mas no seus pensamentos, pois eles tm
seus prprios pensamentos. Vocs podem lutar para ser como eles, mas no
procurem torn-los iguais a vocs. Vocs so o arco de onde seus filhos so
lanados como flechas vivas.
Captulo 9
Captulo 9

Pesquisas com clulas-tronco e um alerta sobre o mercado paralelo

Desde que a Lei de Biossegurana, no 11.105, de 24 de maro de 2005, foi


aprovada e regulamentada, permitindo pesquisas com clulas-tronco obtidas de
embries congelados produzidos por fertilizao in vitro, recebo inmeros e-mails
de pessoas se oferecendo para serem cobaias. So pessoas desesperadas,
portadoras de doenas incurveis. Posso compreender perfeitamente a angstia
e a pressa por um tratamento. Costumo explicar que cientistas, como eu, que
estudam essas clulas, esto extremamente otimistas de que elas, algum dia, vo
permitir o tratamento de um nmero enorme de doenas e condies humanas
hoje incurveis. Posso garantir tambm que o conhecimento est avanando.
Todas as semanas so anunciadas novas descobertas sobre o seu funcionamento,
o que nos aproxima cada vez mais das aplicaes clnicas. Mas no podemos pular
etapas. As pesquisas com clulas-tronco, embora promissoras, ainda esto em
fase inicial. O primeiro passo aprender como essas clulas se diferenciam em
tecidos.
Nossa equipe no Centro de Estudos do Genoma Humano vem trabalhando
com clulas-tronco adultas (de cordo umbilical, tecido adiposo e polpa dentria,
entre outras) h alguns anos. J aprendemos como diferenciar no laboratrio
clulas que daro origem a msculo, osso, cartilagem e gordura. Estamos
injetando essas clulas em modelos animais (testes pr-clnicos) para ver se elas
formam no corpo do animal as mesmas clulas. Estamos comparando o
comportamento das clulas obtidas de diferentes fontes, como injet-las, em que
quantidade, como garantir que cheguem ao rgo-alvo. Enfim, as questes so
muitas, e h novidades todos os dias em vrios e respeitados centros de pesquisa
do mundo.
Recordando, h diversos tipos de clulas-tronco presentes em diferentes
partes do nosso corpo. Isso inclui as clulas-tronco embrionrias, que tm o
potencial de formar todos os tecidos do corpo humano e s podem ser obtidas de
embries congelados com menos de uma semana aps a fertilizao do vulo pelo
espermatozoide e, mais recentemente, por tcnicas de reprogramao celular
(clulas iPS ou induced pluripotent stem-cells, como explicarei mais adiante). Outras
so as clulas-tronco adultas ou tecido-especficas, que se originam durante o
desenvolvimento fetal e permanecem no nosso corpo durante toda a vida. Essas
tm o potencial de formar tecidos iguais queles de onde foram extradas, mas
ainda no se sabe bem qual a sua vocao para formar outros tipos celulares.
Por exemplo, as clulas-tronco hematopoticas, retiradas da medula ssea,
regeneram sangue e por isso so usadas em casos de leucemia e anemias.
A polmica em torno das clulas-tronco embrionrias tomou conta do pas
quando o Congresso Nacional discutia a aprovao da Lei de Biossegurana, que
estabelece normas de segurana e mecanismos de fiscalizao em todas as
atividades relacionadas a organismos geneticamente modificados e permite as
pesquisas com essas clulas obtidas de embries humanos supranumerrios. A
dura batalha no Congresso no se referia ao progresso nesses estudos, mas
definio de quando a vida comea e, portanto, se no seria um crime utiliz-las
em laboratrio, mesmo que fosse para pesquisas com o objetivo de salvar outras
pessoas. Como no existe um consenso sobre esse assunto, valeu a argumentao
de que, se a vida termina quando cessa a atividade cerebral, e j que no existe
nenhuma atividade neuronal antes de catorze dias, ela tambm teria incio a
partir desse dia.
Alm disso, esses embries congelados, que sobram nas clnicas de
fertilizao, nunca seriam implantados em tero por determinao de seus
genitores. Eles seriam descartados de qualquer maneira e, portanto, se
justificaria que fossem utilizados para pesquisas objetivando o tratamento de
doenas incurveis e deficincias fsicas. Entretanto, logo aps a aprovao da
lei, o ento procurador-geral da Repblica, Claudio Fonteles, declarou que a lei
era inconstitucional e a questo foi parar no Supremo Tribunal Federal. Aps
muitos debates de cientistas a favor ou contra, em maio de 2008 o Supremo
Tribunal Federal aprovou, sem restries, os avanos com clulas-tronco
embrionrias no pas ao julgar a Ao Direta de Inconstitucionalidade (Adin)
contrria s pesquisas. As restries religiosas continuam a ser respeitadas por
quem as tem, mas as pesquisas podem seguir em frente desde que sejam feitas
com autorizao dos genitores e submetidos os projetos apreciao e
aprovao dos comits de tica em pesquisa.

H muito o que fazer ainda e um longo caminho a ser percorrido. Na atual fase,
no sabemos como controlar as clulas-tronco embrionrias para fazer
exclusivamente o que queremos, isto , diferenciar-se apenas em um tecido
especfico para que cresam somente o necessrio, alm de descobrir o melhor
mtodo para transplant-las. Muitas vezes, como uma criana malcriada, elas se
comportam de modo independente, sem nos obedecer. Assim, imagine que a
nossa inteno utiliz-las para formar clulas nervosas, fundamentais para
tratar inmeras doenas, como o mal de Parkinson, doenas neuromusculares ou
neurolgicas ou pessoas que se tornaram paraplgicas ou tetraplgicas por
acidente. S que, ao injetar as clulas na medula de uma pessoa, perdemos o
controle e elas decidem que, em vez de neurnio, vo formar osso. Imagine o
desastre. Outras questes esto sendo investigadas. Ainda no temos certeza, por
exemplo, de que as clulas-tronco vo chegar ou permanecer no rgo-alvo. E
no sabemos qual o risco de formao de tumores, ou seja, a sua replicao
indefinidamente.
Tudo isso leva tempo. Novas ideias precisam ser testadas como estamos
fazendo: primeiro no laboratrio, em culturas de clulas, e depois em modelo
animal. s vezes,o que parece promissor no laboratrio no funciona em modelo
animal. E, s vezes, o que funciona em animais no funciona em humanos. Se um
novo tratamento no for planejado com cuidado, provvel que no tenha o
efeito desejado. E o mais preocupante: ele pode at piorar a doena ou causar
efeitos colaterais perigosos. S depois de aprendermos tudo isso e tivermos
segurana de que no estamos colocando em risco a vida de pessoas que ser
possvel oferecer tratamento.
Explicado isso, h duas questes ticas que eu gostaria de ver em discusso.
A primeira diz respeito ao rigor com que os comits de tica tratam as questes
de pesquisa mdica. Em pesquisas clnicas realizadas com responsabilidade,
necessrio primeiro que se tenham dados pr-clnicos, em modelos animais,
confirmando que o tratamento seguro e potencialmente eficiente. O estudo
precisa ser desenhado de modo a responder s questes especficas e sempre
comparado com um grupo controle no submetido ao tratamento. O
financiamento feito por companhias que esto desenvolvendo o tratamento
(por exemplo, novos medicamentos) ou agncias de pesquisas. Antes de ser
iniciado, o protocolo precisa ser revisto por um comit independente para a
proteo dos direitos dos pacientes. Em muitos pases, existe uma agncia
regulatria nacional como a European Medicines Agency (ema) na Comunidade
Europeia, e o Food and Drug Administration(fda) nos Estados Unidos. No Brasil,
as pesquisas so reguladas pela Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria
(Anvisa), alm dos comits locais do Conselho Nacional de tica em Pesquisas
(Conep).
Concordo que preciso total e completa segurana antes de tratar pessoas
que se tornaram paraplgicas ou tetraplgicas devido a acidentes, ou crianas
acometidas por paralisia cerebral. Essas crianas possuem deficincias que
fazem com que tenham a vida dificultada, dependendo de suas limitaes e
daquelas impostas pela sociedade, mas no correm risco de morrer. Podem
esperar at que as pesquisas se tornem mais seguras. Mas o que dizer de casos de
doenas rapidamente progressivas e letais, como a esclerose lateral amiotrfica
(ela), que afeta as clulas nervosas responsveis pelo controle dos msculos? Um
ano de espera e pode ser tarde demais.
Nesses casos, defendo que poderamos ousar mais. No estou falando,
claro, que devemos fazer alguma loucura. Falo em testar drogas que esto sendo
descobertas o tempo todo ou novas fontes de clulas-tronco. Nos Estados
Unidos, as primeiras experincias teraputicas em seres humanos esto
comeando. E o melhor que diferentes pesquisas clnicas esto sendo testadas
no que se refere segurana do procedimento, de modo que sua eficincia
poder ser comparada.
Quando leio sobre isso, costumo me lembrar da histria do primeiro
transplante de corao humano. Em 3 de dezembro de 1967, o cirurgio sul-
africano Christiaan Barnard tomou a deciso corajosa de tentar salvar a vida de
um paciente por meio dessa tcnica arriscada, considerando que no havia outra
alternativa. Esse primeiro paciente s sobreviveu dezoito dias, mas muitos
milhares de pessoas foram salvas desde ento, e o procedimento tornou-se
relativamente comum hoje. No seria o caso de tomar a mesma atitude agora?
interessante observar as discusses entre cientistas e mdicos. Enquanto os
primeiros querem entender todos os mecanismos envolvidos para se sentirem
seguros quanto aos procedimentos, os mdicos esto vendo seus pacientes
morrerem. Onde est o ponto de equilbrio? Temos que dirigir de modo seguro,
mas e quando estamos em uma ambulncia com um paciente correndo risco de
morrer se no chegar logo ao hospital?

Essa primeira discusso remete segunda questo tica que tambm gostaria
que fosse aprofundada. Ser que no a nossa excessiva cautela na aceitao de
novos procedimentos que atrasa a sua definio e acaba se tornando a
responsvel pela ida de pacientes desesperados a clnicas no credenciadas,
geralmente em pases distantes, que oferecem tratamentos carssimos e sem
comprovao cientfica? Sem falar dos custos financeiros, que podem arruinar os
pacientes e suas famlias, a probabilidade de haver algum benefcio muito baixa,
e existem riscos de complicaes imediatas ou a longo prazo que podem ser
perigosas. Alm disso, a prtica no traz nenhum retorno para a cincia. Tais
procedimentos envoltos em mistrio no tm protocolo de pesquisa, no sabemos
o que utilizado, no h acompanhamento dos pacientes e nem comparao dos
resultados. Mas os sites que os oferecem mostram vdeos ou depoimentos de
pessoas que declaram ter melhorado aps o tratamento. Desconfie de clnicas
que fazem propaganda dos seus resultados utilizando depoimentos de pacientes.
So pessoas que ganham para fazer isso ou realmente acreditam ter se
beneficiado?
Elas podem at no estar sendo movidas por m-f. Muitas pessoas talvez se
sintam aparentemente melhor depois de um tratamento que julgam ser capaz de
salv-las. Por exemplo, podem se confundir quando seguem ao mesmo tempo
outros tratamentos convencionais que so realizados com mais rigor juntamente
com a aplicao das clulas-tronco, como fisioterapia, hidroterapia, estimulao.
H tambm a flutuao natural da doena existem dias em que nos sentimos
melhor e em outros, pior. Talvez o mais importante seja o desejo intenso ou a
crena de que vo melhorar. o efeito placebo, que pode ter resultados
positivos, independentemente do tratamento. Por isso, uma terapia s
considerada benfica em experincias com controles no tratados. Isto , um
grupo recebe injees com clulas-tronco, o outro no. Nem o paciente e nem
quem avalia os resultados sabe quem est recebendo este ou aquele tratamento.
Esses ensaios so chamados de duplo-cegos.
Mas voltando aos supostos tratamentos experimentais: clulas-tronco de
embries, de fetos abortados, de cordo umbilical, gordura, sangue, medula
ssea, o que utilizado? Ningum sabe. Tomei conhecimento de vrios casos de
pessoas desesperadas que resolveram fazer um suposto tratamento com clulas-
tronco oferecido na China a um alto custo de 20 mil a 50 mil dlares. Quando
me perguntam a respeito, respondo que se trata, literalmente, de um negcio da
China. Para esses chineses claro, que enriquecem a olhos vistos, no para os
pacientes. Milhares de pacientes j foram para l desembolsando muito dinheiro
para o tratamento, sem falar dos custos da viagem e hospedagem. O tratamento
para leses da medula, no Xishan Hospital, em Pequim, coordenado pelo mdico
que todos chamam dr. Huang, supostamente se vale de clulas do trato olfativo
de fetos abortados, mas isso nunca foi mostrado em congressos cientficos. O
mdico tambm afirma que seus pacientes melhoram, em geral, trs dias aps o
procedimento, o que completamente contrrio ao que costuma ocorrer nos
animais em experimentos de laboratrio e vai contra o senso comum (demora
algum tempo para as clulas chegarem a seu destino, se dividirem e repovoarem a
rea lesada).
O dr. Huang no relata o que acontece com seus pacientes a longo prazo.
Os pacientes recebem alta logo depois das injees e no so acompanhados por
essa equipe chinesa. O que acontece depois de um ou dois anos? Nesse sentido,
extremamente importante ler o artigo cientfico de trs especialistas americanos
(Bruce Dobkin, Armin Curt e James Guest) que conseguiram avaliar sete
pacientes com leso de medula, submetidos ao tratamento chins. O trabalho foi
publicado na revista Neurorehabilitation and Neural Repair. assustador. Trs deles
tiveram meningite e dois tiveram febre que precisou ser tratada com antibitico.
E o pior de tudo: nenhum deles apresentou melhora funcional.
Lembro de outro caso noticiado nos jornais sobre um jovem israelense de
dezessete anos, vtima de uma forma rara de ataxia, que desenvolveu tumores
aps transplante de clulas-tronco. No se tratava de uma pesquisa teraputica,
feita por cientistas respeitados, que no deu certo. Muito pelo contrrio. A
equipe mdica israelense que acompanhava o jovem desaconselhou o
procedimento. As injees foram feitas em uma clnica em Moscou sem qualquer
credenciamento. Apesar dos alertas, desesperada com a gravidade da doena, a
famlia insistiu e foi adiante. Aparentemente, o rapaz recebeu clulas-tronco
neurais obtidas de fetos. No se sabe qual a origem das amostras e como as
clulas foram isoladas. Nesses casos, h risco de contaminao em cultura por
bactrias ou vrus patognicos, entre outros problemas. O prprio processo de
retirada e injeo de clulas-tronco tambm envolve riscos. A anlise dos
tumores mostrou que havia clulas de pelo menos dois doadores, um deles do sexo
feminino. O que no quer dizer que foram s dois. Podem ter sido mais. Ou seja,
ele recebeu um coquetel de injees com clulas no caracterizadas. O que
torna impossvel qualquer concluso cientfica at para aprender com os erros do
tratamento.

As clulas-tronco adultas e embrionrias esto sendo pesquisadas com trs


finalidades. A primeira seria para substituir tecidos danificados; a segunda
finalidade seria fazer com que sirvam como veculos para transportar um gene
modificado at o local em que ele serviria para o tratamento de uma leso; e a
terceira seria criar linhagens dessas clulas desenvolvidas a partir de pacientes
com doenas de origem gentica para acompanhar o comportamento dos genes
em diferentes linhagens celulares, testar drogas e estratgias de cura. Mas o que
dizer de pessoas que aproveitam a repercusso que essas clulas tm no meio
cientfico para oferecer tratamentos sem qualquer base at mesmo no bom-
senso?
J existem xampus que alardeiam possuir dna. Comentei em meu blog na
revista Veja de forma jocosa que, como o nosso dna est em toda parte, basta
cuspir dentro do xampu e teremos um produto com dna personalizado o nosso.
Por que no xampu com clulas-tronco? Algumas companhias de cosmticos
afirmam que seus produtos contm clulas-tronco para estimular o crescimento
das clulas da pele. Gostaria que me explicassem como isso possvel. Em
primeiro lugar, como qualquer clula, para se multiplicar e proliferar, as clulas-
tronco precisam estar vivas. Para mant-las vivas, preciso que sejam
armazenadas a temperaturas muito baixas (170 graus negativos) em tanques de
nitrognio lquido. Uma vez descongeladas, requerem condies especiais para
crescer: nutrientes especficos, temperatura controlada etc. claro que
nenhuma dessas condies pode ser encontrada no cosmtico vendido no
supermercado ou na farmcia.
H pessoas tambm que oferecem rejuvenescimento da pele com clulas-
tronco. Na verdade, trata-se de uma variao do j conhecido enxerto de
gordura, praticado h mais de vinte anos, sem resultados consistentes, uma vez
que esse tecido adiposo reabsorvido. Mas alguns profissionais j anunciam esse
tipo de tratamento baseado nas notcias de avanos obtidos com as clulas-
tronco retiradas da gordura resultante de lipoaspirao. Essas clulas, ainda em
estudo, esto sendo utilizadas em pesquisa para avaliar a sua capacidade de se
diferenciar em clulas sseas, de cartilagens e musculares.
O mecanismo que dispara e controla essa diferenciao, como j foi dito,
ainda objeto de pesquisas. Sendo assim, fundamental alertar profissionais e
pacientes sobre os riscos. Em vez de melhorar a aparncia, os resultados podem
ser to desastrosos como aqueles relatados em clnicas no credenciadas de
outros pases. E o pior de tudo que, uma vez injetadas, no h mais o que fazer.
Clulas-tronco como panaceia da humanidade acabam criando um mercado que
necessita ser fiscalizado. E a populao precisa ser alertada constantemente
porque nesses casos a propaganda a alma do negcio e ainda no se consegue
evit-la. Infelizmente, repito. Enquanto as questes ticas so pensadas e
discutidas depois de anunciadas as novas descobertas, o comrcio anda sempre
na frente.

Ironicamente, apesar do meu envolvimento pessoal na aprovao das pesquisas


com clulas-tronco embrionrias, no Centro de Estudos do Genoma Humano
temos nos dedicado a um subgrupo especial de clulas-tronco adultas, as clulas-
tronco mesenquimais. Se estou pesquisando as adultas, por que a briga pelas
embrionrias, me perguntam alguns? Porque elas so as nicas com o potencial
de formar todos os 216 tipos celulares do corpo. Alm disso, a luta para a
aprovao da Lei de Biossegurana envolvia outro ideal: a liberdade para fazer
pesquisas sem restries, sem imposies religiosas, as mesmas que so realizadas
nos pases mais desenvolvidos. Para os pacientes acometidos por doenas graves
que no tm meios econmicos para viajar para o exterior, saber que podemos
fazer aqui as mesmas pesquisas que so realizadas no Primeiro Mundo pelo
menos um conforto, apesar de todo o sofrimento de ter que lidar com doenas
ainda incurveis.
Mas, voltando s clulas-tronco mesenquimais, elas so encontradas em
vrios tecidos: cordo umbilical, polpa dentria de dente de leite, tecido adiposo,
trompas de Falpio (que so retiradas em cirurgias de histerectomia ou
laqueadura) e at sangue menstrual. Brinco sempre que estamos reciclando e
aproveitando todos os descartes biolgicos.
Por que o interesse nas clulas-tronco mesenquimais? fcil de entender.
Elas tm o potencial de formar tecidos muito importantes, tais como tecido
muscular, sseo, cartilagem e gordura. Quem que na vida pode garantir que no
precisar regenerar algum desses tecidos? Estima-se que uma em cada cinco
pessoas que chegam aos 65 anos uma populao crescente com o aumento de
expectativa de vida ir necessitar de algum tipo de terapia celular.
No Centro de Estudos do Genoma Humano estamos empenhados em
descobrir qual a capacidade dessas clulas em regenerar tecido sseo (uma
pesquisa chefiada pela dra. Maria Rita Passos-Bueno) e tecido muscular, pois
portadores de muitas das doenas que atendemos podero no futuro se
beneficiar dessa terapia celular. Na verdade, descobrir um tratamento para as
doenas neuromusculares tem sido meu projeto de vida. O que queremos saber?
Qual a melhor clula para regenerar tecido muscular? Como obter clulas em
quantidade suficiente? Como garantir que, uma vez injetadas, essas clulas
cheguem aos msculos, por exemplo, e no se percam no caminho? Como
control-las, para que se diferenciem somente no tecido que queremos, e no em
outro? Qual o melhor mtodo para transferir as clulas: injees locais,
diretamente nos msculos; ou sistmicas, atravs da circulao? Quanto tempo
as clulas injetadas permanecem no msculo? De quanto em quanto tempo ser
necessrio repetir o procedimento?
Para responder a essas perguntas estamos injetando clulas-tronco humanas
obtidas de diferentes fontes (tecido adiposo, cordo umbilical, polpa dentria)
em modelos animais que apresentam doenas neuromusculares. So esses animais
que nos daro as respostas a essas perguntas. E a boa notcia que estamos
aprendendo muito com eles. As nossas pesquisas sugerem que as clulas retiradas
de tecido humano seriam as melhores para regenerar (ou diminuir a degenerao
dos msculos) em pacientes afetados. Mostram tambm que injees sistmicas,
no locais, so mais indicadas; e que as clulas injetadas permanecem no msculo
dos animais receptores por cerca de seis meses. E o melhor: as clulas-tronco
mesenquimais no so rejeitadas, mesmo sem o uso de imunossupressores.
Acredito que no estamos longe de iniciar ensaios teraputicos em pacientes.
Mas repito: ensaios clnicos so pesquisas, no ainda tratamento.
Captulo 10
Captulo 10

Bancos de cordo umbilical para todos ou s para voc?

No faz muito tempo, uma menina de nove anos da cidade paulista de Ja


inaugurou o BrasilCord, a rede de bancos pblicos de clulas-tronco de sangue
de cordo umbilical, gerido pelo Instituto Nacional de Cncer (Inca).
Diagnosticada aos trs anos com leucemia linfoide aguda, doena caracterizada
pela produo maligna de linfcitos na medula ssea, Vanessa vivia internada.
No conseguia comer, ficava cansada logo, recordou-se em entrevista aos
jornais. Tudo mudou aps o transplante de clulas-tronco de uma doadora
annima armazenadas no banco. Hoje minha vida normal, como a de qualquer
garota. Vou escola, fao natao e jazz, disse na mesma entrevista. Esse
milagre pode ser creditado ao excelente sistema, inaugurado em 2001, para
aumentar a probabilidade de localizao de doadores para os pacientes que
necessitam de transplante de clulas-tronco para curar doenas da medula
ssea.
J um consenso que as clulas-tronco de sangue de cordo so uma
esperana de cura para vrias doenas hematolgicas, como leucemia, linfomas,
talassemia e anemias hereditrias, alm de deficincias do sistema imunolgico.
Assim, qualquer pessoa que tiver uma doena como a de Vanessa pode dispor
desse recurso, desde que tenha o sangue compatvel com o do doador. A prtica
consiste em repor as clulas doentes do sangue por outras obtidas de um doador
saudvel. At alguns anos atrs, isso s era possvel quando essas clulas eram
retiradas da medula ssea de um adulto. Hoje se sabe que o mesmo pode ser feito
com as clulas contidas no sangue do cordo umbilical, que tambm rico nesse
material. Com o benefcio extra que as clulas do cordo umbilical podem ser
recuperadas com mais facilidade, no envolvem nenhum procedimento invasivo
para que sejam obtidas e, por serem jovens, possuem maior plasticidade.
No caso das clulas da medula ssea, o doador, que deve ter entre 18 e 55
anos e dispor de boa sade, preenche um formulrio e se submete anlise de
uma amostra de sangue. A anlise serve para determinar as caractersticas
genticas necessrias a fim de garantir que haja compatibilidade. O sangue
doado precisa ter a mxima afinidade possvel com o do receptor, para que no
haja rejeio. Esses dados so armazenados em um sistema informatizado que faz
o cruzamento com os dados dos pacientes que precisam de transplante. No
necessrio mais nada: os doadores em potencial so cadastrados, mas s so
recrutados quando surge um paciente compatvel. A vantagem que no h
necessidade de se ter toda a infraestrutura laboratorial para armazenar o
material. A desvantagem que o doador pode no ser localizado ou no estar
disponvel no momento em que um transplante necessrio, ou at mesmo mudar
de ideia e desistir de doar a medula um procedimento que, embora simples,
exige internao hospitalar.
No caso dos bancos pblicos de cordo umbilical, o procedimento mais ou
menos o mesmo no que se refere ao questionrio para avaliar a compatibilidade
entre doador e receptor. A doao voluntria e confidencial. A diferena que
as amostras do cordo so coletadas e armazenadas de fato como nos bancos
de sangue. Aps o nascimento do beb, o cordo umbilical pinado e separado,
quando cortada a ligao com a placenta. O sangue que permanece no cordo
drenado para uma bolsa de coleta. A bolsa encaminhada para o laboratrio de
processamento onde as clulas-tronco so separadas e preparadas para o
congelamento. Depois de congeladas, essas clulas so guardadas por vrios anos
(existem notcias de clulas que ficam intactas durante vinte anos) no banco de
sangue de cordo umbilical onde ficaro disponveis para serem transplantadas.
Se uma pessoa precisar de transplante, como foi o caso de Vanessa, feita uma
busca de doador compatvel no sistema digitalizado do BrasilCord e no Registro
Nacional de Doadores de Medula ssea (Redome). Se no for encontrado
material no banco de cordo ou se no houver doador de medula disponvel, faz-
se a busca nos registros internacionais de solidariedade.
Mas essa possibilidade mais rara. A probabilidade de um brasileiro
localizar um doador em territrio nacional trinta vezes maior que a de
encontrar o mesmo doador no exterior, segundo o Redome. Isso se explica pelas
caractersticas genticas comuns populao brasileira. Estima-se que, se
tivermos cerca de 12 mil amostras em um banco pblico, a chance de se
encontrar uma compatvel com cada um de ns maior do que 90%. Justamente
por isso, a ampliao dos bancos pblicos tanto de medula como de cordo
umbilical precisa ser incentivada. O ideal seria estabelecer esses bancos em
diferentes regies do Brasil, a fim de aumentar as chances de incluir toda a nossa
variabilidade tnica. No caso dos bancos de cordo umbilical, esto em
funcionamento as unidades do Inca no Rio de Janeiro, do Hospital Albert
Einstein, do Hospital Srio-Libans e dos hemocentros da Unicamp e de Ribeiro
Preto, todos no estado de So Paulo. No restante do Brasil funcionam as
unidades de Braslia, Florianpolis, Fortaleza e Belm. Esperamos que haja
outras em futuro prximo, pois esse servio essencial para salvar vidas.
importante que se diga que a doao do cordo no feita por qualquer
me e em qualquer lugar. Segundo as regras internacionais, a gestante deve ter
entre 18 e 36 anos, ter feito no mnimo duas consultas de pr-natal e ser saudvel
(sem doenas hematolgicas, como anemias hereditrias, por exemplo). A coleta
realizada em maternidades credenciadas do programa da rede BrasilCord.
Existem alguns controles no momento da coleta do sangue do cordo, necessrios
para um bom aproveitamento do material. Portanto, no se trata de uma doao
universal, como ocorre com sangue, e que pode ser feita em qualquer hospital ou
por qualquer pessoa, sendo limitada aos centros que fazem parte do programa.

D para entender como complexo e bem planejado o sistema que levou a


histrias bem-sucedidas como a de Vanessa. O problema que, apesar de tudo o
que j se sabe sobre o benefcio inestimvel do transplante, o nmero de
amostras coletadas e armazenadas ainda muito pequeno. No por falta de
pessoas que queiram doar, mas sim porque existe um nmero insuficiente de
bancos pblicos com infraestrutura adequada. Recebo inmeros e-mails de
gestantes que querem doar o sangue do cordo de seu beb para bancos pblicos,
sem sucesso. Em consequncia, apenas um quarto dos pacientes que esto na fila
de transplante consegue tratamento. Cerca de 9 mil pessoas morrem por ano
esperando um doador, sendo 3 mil crianas. Esses dados se referem aos Estados
Unidos. No Brasil, por enquanto, dispomos de muito menos amostras do que seria
necessrio.

Enquanto isso, as promessas futuras de terapias que envolvem o uso de clulas-


tronco trouxeram como efeito indireto o surgimento de um negcio novo,
aparentemente elogiado, mas que desperta enorme polmica: os bancos privados
de armazenamento de sangue do cordo umbilical. Nesses bancos, os pais pagam
uma taxa (que no pequena) pela coleta e outra anual pelo congelamento do
sangue do cordo para um possvel uso futuro de seus familiares.
Isso vendido como uma garantia de sade. Quando assinam contrato com
essas empresas, os pais acreditam na promessa de que, no futuro, podero dispor
de um reservatrio de clulas para curar doenas, traumas da medula espinhal e
reconstruir rgos danificados. a mesma ideia que norteou uma histria de uma
novela da tv. No ltimo captulo, a protagonista, que ficou paraplgica depois de
um acidente, declara que iria armazenar o sangue do cordo umbilical de seus
filhos gmeos assim que nascessem a fim de que, no futuro, pudessem contribuir
para a sua recuperao. Parece louvvel, mas no existe ainda nada que
comprove essa possibilidade.
O sangue do cordo possui clulas-tronco que podem vir a ter vrias
utilidades no futuro, mas atualmente tm uma nica aplicao produzir
material para substituir o transplante de medula ssea. Isso porque quase todas
as clulas-tronco presentes nesse material so do tipo hematopoticas. Ningum
capaz de afirmar que, se o filho tiver um problema cardaco daqui a trinta ou
quarenta anos, poder utilizar o sangue de seu prprio cordo para obter clulas-
tronco e se salvar. No agora.
a mesma filosofia dos bancos de sangue. Ningum congela seu prprio
sangue pensando que pode, de repente, precisar de uma transfuso. Guardar o
sangue do cordo do beb em laboratrios particulares praticamente intil. A
possibilidade de usar as prprias clulas em caso de doenas hematolgicas,
principalmente as leucemias ou os linfomas, que venham a ser diagnosticadas no
futuro, muito pequena. Primeiro, porque essas doenas so relativamente raras
e muitas vezes so curadas com quimioterapia, sem necessidade de transplante.
Os estudos comprovam que a probabilidade de uma pessoa ter uma doena que
possa ser tratada com as prprias clulas durante seus primeiros vinte anos de
vida de 1 para 20 mil. Segundo, porque em caso de leucemia, por exemplo, no
se recomenda que se use o sangue da prpria pessoa, pois as clulas j podem ter
uma predisposio para desenvolver aquela doena.
No caso de Vanessa, o seu distrbio foi causado por um defeito gentico
presente em todas as clulas do corpo e, portanto, elas no poderiam ser
utilizadas. diferente, por exemplo, do caso dos irmos salvadores, que foi
relatado no Captulo 6. O sangue do irmo mais novo pode ser usado para salvar o
mais velho quando compatvel.
Interessante que, por uma resoluo da Agncia Nacional de Vigilncia
Sanitria (Anvisa), o sangue do cordo umbilical armazenado em um banco
privado deve servir apenas para a prpria pessoa e, no caso de um parente
compatvel, s pode ser utilizado mediante uma deciso judicial. Isso leva a
questes que ainda no foram discutidas. Por exemplo, se um casal tiver um filho
com diagnstico de leucemia e descobrir que existe um doador compatvel em um
banco privado, ser que a lei poderia exigir que ele fosse usado para salvar a vida
da criana? Ou valeria a mesma regra de transplante dos rgos, segundo a qual
no se pode obrigar ningum a autorizar a doao?
Por outro lado, h muito mais oportunidade de encontrar clulas
compatveis em um banco pblico, principalmente quando se trata de amostras
da mesma populao. Alm disso, se uma pessoa tiver doado o cordo do seu beb
para um banco pblico e descobrir que um parente prximo necessita desse
material e compatvel, ele poder ser recuperado se ainda estiver disponvel e
seu nmero armazenado no sistema. Mas o que considero mais importante que
o banco pblico, assim como os bancos de sangue, no visa o lucro. O seu objetivo
ajudar a quem precisa, e quanto mais amostras tiver armazenado, mais chances
de salvar uma vida.
diferente de um banco privado, que estabelece um comrcio de clulas e,
muitas vezes, apela para a propaganda enganosa utilizando frequentemente
atrizes e modelos famosas que servem como chamariz ao afirmar que esto
armazenando o sangue do cordo de seus filhos em bancos particulares.
As instituies srias de todo o mundo condenam essa prtica e restringem
sua comunicao. Em 2004, o comit de tica europeu declarou desnecessrio o
armazenamento do cordo umbilical dos filhos para uso prprio. A Frana proibiu
bancos privados de cordo umbilical por consider-los improdutivos. A Itlia e a
Blgica tomaram a mesma deciso. No Brasil, a Anvisa j manifestou sua
preocupao com os anncios que fazem promessas e marketing do tipo o seguro
biolgico do beb, um ato de amor para toda a vida, produzidos para convencer
as famlias num momento de fragilidade emocional, em que os pais querem o
melhor para os filhos.

Dito isso, preciso acrescentar que uma pesquisa realizada no laboratrio do


Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de So Paulo mostrou
que apenas 10% das amostras de sangue de cordo possuem as clulas-tronco
chamadas mesenquimais aquelas que comprovadamente tm maior
capacidade de se diferenciar em clulas no sanguneas, como ossos, cartilagem
e msculos, enquanto o tecido dos cordes (aquele tubo por onde passa o sangue
da me para o beb) muito rico nessas clulas. Mas esses cordes so jogados
no lixo! isso mesmo, o que se faz guardar o sangue e descartar o cordo e a
placenta.
Se o cordo possui clulas-tronco com um potencial muito maior e
diversificado para formar tecidos do que o sangue, guard-lo para uso futuro
pode ser muito promissor. O uso dessas clulas-tronco para tratamento clnico
ainda deve demorar, mas, se as pesquisas derem resultados positivos, fcil
imaginar inmeros usos para as clulas-tronco mesenquimais derivadas do cordo
umbilical. Entre eles, regenerao ssea no caso de uma fratura, regenerao de
dente, de tecido muscular, cartilagem ou de outros tecidos, e uso cosmtico em
cirurgia plstica. Ento, sim, guardar o cordo pode ser uma aposta para o
futuro, mas depende, claro, dos resultados das pesquisas atuais. Por outro lado,
quem no guardou o cordo de seu beb no precisa se preocupar. Existem vrias
outras fontes de clulas-tronco, como a polpa de dente de leite, o tecido adiposo
(retirado de lipoaspirao) e o sangue menstrual, que so normalmente
descartados. O Centro de Estudos do Genoma Humano tem recebido muitas
solicitaes de pessoas querendo guardar as clulas-tronco da polpa dentria de
seus filhos em um banco, graas a nossas pesquisas em doenas genticas e
terapia celular.
J criamos um banco de dentes de leite no Centro, mas alertamos os pais
que doam esse material que, por enquanto, s para pesquisas. Embora o
potencial dessas clulas seja bastante promissor, no estamos prometendo
nenhum tratamento. E mais, podem tranquilizar as crianas que no estamos
concorrendo com a fadinha do dente: s queremos a polpa, ou a parte interna; e
devolvemos o dentinho! Quem sabe, no futuro, eles serviro para ajudar pessoas
que no conseguiram encontrar doadores compatveis de outras fontes?
Captulo 11
Captulo 11

Testes de dna na farmcia ou com aconselhamento gentico?

Nos pases europeus e nos Estados Unidos, os testes genticos esto se tornando
um produto acessvel e, o pior de tudo, banal. Laboratrios oferecem a qualquer
pessoa a possibilidade de investigar a propenso a doenas futuras, como cncer
de intestino e de mama, problemas cardacos, diabete e at mesmo a expectativa
de viver mais de cem anos, como foi anunciado recentemente em pesquisa que
sugere que a longevidade tem componentes genticos. Alguns oferecem testes
para analisar caractersticas to irrelevantes que as chamei de genes fteis.
Entre elas esto a cor dos olhos, a cor e a textura do cabelo (crespo ou liso), a
presena ou no de sardas, a reao de espirrar com a luz do sol. Existem outras
que chegam a ser at ridculas, por exemplo, se voc tem tendncia a ter cera
mida ou seca no ouvido (deve ser importante para escolher que cotonete usar,
imagino) ou se voc sensvel ou no ao cheiro de uma substncia liberada na
urina quando come aspargos.
As anlises de dna ganharam espao, pois novas empresas criadas no boom
dos avanos da tecnologia digital conseguiram aumentar em dez anos mais de 50
mil vezes a eficincia dos testes, com uma queda espetacular de custos. Isso
representou uma exploso de demanda e um enorme mercado fcil de contentar.
Os testes so realizados a partir da saliva dos clientes que recebem o kit em casa
e podem checar os resultados nos sites. Algumas tambm oferecem informaes
sobre a origem geogrfica e as caractersticas tnicas dos antepassados mais
remotos. Provavelmente vo acabar desvendando vrios casos de falsa
paternidade, um problema que, como j vimos, aparece com frequncia quando
realizamos testes genticos em famlias com afetados.
H at a possibilidade de compartilhar as identidades genticas com amigos,
como se estivesse em um site de relacionamento do tipo Facebook. A moda se
espalhou tanto que, em 2010, a rede americana de farmcia Walgreens chegou a
anunciar seu plano de vender kits de testes genticos personalizados. Mas teve
que voltar atrs quando o Food and Drug Administration (fda), a agncia que
regula o setor de medicamentos, alertou que os testes precisavam de aprovao
antes de serem comercializados. Valeu tambm a constatao de que, sem
regulamentao, cada laboratrio tinha seu prprio mtodo de anlise de
controle de qualidade dos procedimentos, oferecendo resultados s vezes
conflitantes para a mesma pessoa.
Qual a reao dos mdicos e geneticistas ao boom dos testes sem orientao?
fcil imaginar. Pense qual o efeito de saber que voc tem propenso para uma
doena grave, ou sem cura, como o mal de Alzheimer, por exemplo, e no pode
fazer nada para evitar. Alm disso, podem se descobrir algumas mutaes que
tm implicaes reprodutivas, isto , que voc tem um risco aumentado de
transmitir certas doenas para seus filhos. Como lidar com essas informaes?
Como interpretar esses testes sem o conhecimento suficiente para entender o
que significam? Para a populao no especializada, eles no podem ser
considerados profetas da sade ou da doena?

Coletar uma amostra de sangue ou de saliva para um teste de dna muito fcil.
Mas fundamental que, antes de se submeter a exames genticos, a pessoa saiba
por que est sendo testada e qual o benefcio que ter se o resultado for positivo.
Ou negativo. Ter predisposio a determinadas doenas no significa que se v
desenvolv-las. Sua incidncia depende de outros fatores, como os hbitos e o
estilo de vida. por isso que causou sensao o artigo na revista New England
Journal of Medicine do geneticista David B. Goldstein, da Universidade de Duke. Em
meio ao sucesso dos testes, Goldstein afirmou que, com algumas poucas
excees, o que as empresas esto fazendo nesse momento no passa de
genmica recreativa. A informao fornecida por elas tem pequena, ou, em
muitos casos, nenhuma relevncia.
Concordo com ele. O sequenciamento do genoma humano foi, e continua
sendo, muito importante para servir de parmetro e identificar possveis
diferenas entre os genomas dos pacientes saudveis e doentes. Mas sabemos
hoje que os mecanismos que causam doenas so muito mais complexos e
dependem geralmente da interao de fatores genticos, epigenticos
(alteraes na expresso dos genes) e ambientais. Embora possam ser
mensurveis, as diferenas observadas em alguns genes testados por essas
companhias no so suficientes para predizer os riscos de inmeras doenas
comuns. Por outro lado, no caso de doenas graves, os testes genticos podem
ser extremamente teis para o diagnstico e a preveno dessas condies. O
Centro de Estudos do Genoma Humano uma prova do que possvel fazer para
evitar a transmisso de mutaes que causam doenas para os descendentes.
Mas explicar o significado das informaes genmicas associadas a problemas
mdicos requer especialistas altamente treinados e dispostos a passar s vezes
horas com os consulentes. O processo de aconselhamento gentico inclui exames
para confirmar o diagnstico, testes para saber se h risco de repetio para
futuros filhos ou parentes prximos, orientao em relao doena e ao risco
gentico.
Isso tudo requer uma equipe multidisciplinar de profissionais de sade,
incluindo mdicos, geneticistas, bioeticistas e psicanalistas. Alm das anlises
clnicas e genticas, a parte mais difcil explicar aos consulentes o que
significam os resultados, o que a doena, o prognstico, o que pode ser feito,
como evitar ter descendentes afetados. preciso ainda altas doses de psicologia,
pacincia e habilidade para dar notcias nem sempre agradveis. Uma das
realidades mais duras que esses especialistas so obrigados a enfrentar quando
precisam explicar aos consulentes que no h nenhum tratamento ainda
disponvel para aquela doena. E mesmo assim, como relatei nos captulos
anteriores, as reaes podem ser totalmente inesperadas. Como fazer para
ajudar algum a entender o que significam as informaes, a partir de um simples
teste de saliva na farmcia ou via internet?
Mas existem ainda outras questes importantes a serem consideradas.
Diferentemente das doenas raras causadas por mutaes em um ou poucos
genes, males muito comuns como cncer e diabetes esto relacionados a uma
srie de variaes genticas que ocorrem no organismo de cada pessoa. Mais de
cem estudos envolvendo milhares de pacientes em diferentes pases esto sendo
realizados visando encontrar variaes comuns para essas doenas. Mas em
quase todos os casos, estimar um risco muito difcil.
Veja, por exemplo, o caso do cncer de mama. Eu at gostaria de saber se
tenho propenso a essa doena porque ela tratvel e pode ser prevenida. Como
j vimos em outro captulo, existem pelo menos dois genes, brca1 e brca2, que so
responsveis pelas formas hereditrias do cncer de mama. Mulheres portadoras
de mutaes nesses genes tm um risco de cerca de 80% de desenvolver a
doena e um risco aumentado para cncer de ovrio. A questo tica se esses
testes devem ser feitos na populao feminina em geral. O risco global de uma
mulher, sem histrico familiar, ter um cncer de mama ao longo da vida da
ordem de 10%, enquanto o cncer hereditrio constitui apenas 1% a 2% dos
casos. Assim, dez vezes mais provvel que, se uma mulher vier a ter o tumor, ele
no esteja relacionado a mutaes nos genes brca1 e brca2.
Mas ser que uma mulher cujo teste no revelou mutaes nesses genes
sabe disso? Ou ela vai deixar de se prevenir, achando que est livre de desenvolver
um tumor? Alm disso, como existem centenas de mutaes patolgicas ao longo
desses genes e se torna invivel testar todas elas, os laboratrios testam apenas
as mais comuns, o que levanta outra questo: sabemos exatamente o que est
sendo testado? E qual vai ser a reao se o teste revelar a presena de mutao?
Por outro lado, a percepo de risco varivel entre as pessoas. Nos
Estados Unidos, 20% das mulheres que descobrem a mutao em um dos dois
genes relacionados ao cncer de mama decidem fazer cirurgia preventiva de
extirpao total dos seios. Mesmo aps os mdicos esclarecerem que a cirurgia
no significa que o tumor no aparecer ou que a alterao em um dos genes
pode no significar que a paciente v desenvolver a doena. Mas o mais chocante
foi uma histria que ouvi recentemente e que me foi relatada por uma
geneticista que trabalha em um centro de estudos nos Estados Unidos.
Tratava-se de uma famlia com vrios casos de cncer de mama precoce. O
estudo gentico comprovou que as mulheres afetadas tinham realmente uma
mutao no gene brca1, o que levou as parentas ainda assintomticas a se
submeterem a testes nesse sentido. Uma delas, em particular, vivia apavorada
com a possibilidade de vir a ter cncer de mama. Pois bem, o teste de dna revelou
que ela no possua a mutao, ou seja, no tinha um risco aumentado de vir a ter
cncer de mama. Seu risco era igual ao da populao feminina em geral, explicou
a geneticista aps o exame. Foi em vo. No houve exame que a convencesse, e a
moa se submeteu assim mesmo a uma mastectomia bilateral. O seu pavor era
maior do que o resultado de qualquer teste gentico.
interessante tambm notar que a percepo da magnitude de risco varia
entre homens e mulheres. Por exemplo, quando falamos a um casal que o risco de
vir a ter uma criana afetada por uma doena gentica de 25%,
frequentemente a mulher afirma que se trata de um risco muito alto, enquanto
para o marido ele pequeno. Ser que isso ocorre porque a mulher que carrega
o peso da gravidez?
No s a percepo, mas tambm as consequncias psicolgicas so muito
variveis. Posso contar minha experincia pessoal relacionada fibrose cstica.
Trata-se de uma doena gentica grave caracterizada por infeces pulmonares
recorrentes e com mltiplos sintomas, incluindo diminuio do crescimento,
esterilidade e disfuno pancretica. causada por mutaes ou erros genticos
(j foram descritos mais de 1.500 casos) em um gene chamado cftr que regula o
transporte de sdio, as secrees pancreticas e a formao de muco. A herana
autossmica recessiva, isto , a doena s se manifesta se a criana herdar
duas mutaes, uma de sua me e outra de seu pai. Se uma pessoa tiver uma s
mutao, ela ser heterozigota ou portadora assintomtica. Uma mutao s no
causa nada. Se os dois pais forem portadores, a probabilidade de vir a ter um
descendente afetado de uma em quatro.

H alguns anos, resolvemos investigar a incidncia de fibrose cstica na


populao brasileira. Sabamos que uma em cada 25 pessoas de origem europeia
portadora de uma mutao nesse gene, mas no sabamos qual era a frequncia
entre ns. Coletamos sangue de colegas, professores, funcionrios e alunos. Todo
mundo participou. At eu. Um belo dia, a estudante que era responsvel por esse
projeto entrou na minha sala e disse: Identificamos duas portadoras novas. Ela
fez uma pausa embaraada e continuou: Uma delas Sandra, uma estudante de
doutorado que trabalha no andar de cima. E a outra?, perguntei. A outra
voc, disse, olhando-me atentamente espera de minha reao. Eu? , repeti a
pergunta. Sim, voc.
Como eu j tinha dois filhos saudveis, no me preocupei muito. Alis,
descobri que, para uma geneticista que trabalha com aconselhamento gentico,
essa informao muito til. Toda vez que converso com um casal e sinto que
eles se sentem diferentes ou diminudos quando ficam sabendo que so
portadores de uma mutao que transmitiram a um filho, j aviso logo: Eu
tambm sou, todos ns somos, e no me sinto nada diminuda por isso. Pelo
sorriso cmplice, noto que o impacto positivo costuma ser imediato. Fazemos
parte do mesmo clube.
Surpreendentemente, embora tivesse bons conhecimentos de gentica,
Sandra ficou muito angustiada. Sentia-se diminuda, estigmatizada. Tivemos
longas conversas sobre isso. Mesmo sabendo que a mutao no iria lhe causar
nada e que seu risco de vir a ter filhos afetados era pequeno, ela demorou a
digerir e lidar bem com essa informao. Se mesmo trabalhando em um centro de
gentica algumas pessoas tm dificuldades de assimilar uma informao como
essa, imaginem como ser com testes de farmcia.

Muito mais complexo detectar se temos um risco gentico aumentado para


uma doena grave e incurvel que poder aparecer dez, vinte ou quarenta anos
aps sermos testados. Refiro-me, por exemplo, ao mal de Alzheimer, que leva
perda progressiva da memria e da capacidade cognitiva. Existem formas da
doena causadas por variantes em pelo menos trs genes j identificados, cujo
incio precoce. Felizmente so formas raras e correspondem a menos de 10%
dos casos. A maioria das formas de Alzheimer tem incio tardio (aps os sessenta
anos) e obedecem a uma herana mais complexa, dita multifatorial, ou seja, pela
interao de genes de suscetibilidade com fatores ambientais. Esses genes, por
sua vez, aumentam o risco, mas no determinam que uma pessoa ir desenvolver a
doena.
Para que isso ocorra, deve haver interao com outros genes de risco e
fatores ambientais. Um desses genes de suscetibilidade j identificado o apo4.
Pessoas que tm uma mutao nesse gene sabem que, ao chegar velhice, tero
trs vezes mais risco de desenvolver essa terrvel doena. Mas h muita gente que
possui essa variante e pode nunca ter Alzheimer, enquanto h quem no a tenha
e, ainda assim, acabe desenvolvendo esse mal. Na verdade, no h um diagnstico
certeiro mesmo para pacientes que j esto com a demncia, pois h inmeras
outras causas que podem provocar esses sintomas. O Alzheimer apenas uma
delas.
Eu pessoalmente j afirmei dezenas de vezes que no tenho nenhum
interesse em fazer um teste para detectar se tenho risco aumentado para
desenvolver Alzheimer. Minha opinio no isolada. Diante da incerteza sobre o
resultado, a Associao Alzheimer que ajuda os doentes nos Estados Unidos
advoga contra os testes, dizendo que ainda no h nada que se possa fazer para
prevenir ou curar a doena. Mas h quem pense diferente. At mesmo mdicos
afirmam que gostariam de saber. Muitas vezes conversei sobre esse assunto com
o neurologista e geneticista David Schlesinger, pesquisador da rea de
neurogentica do envelhecimento, demncia e medicina personalizada. Ele me
revelou que, em sua opinio, mesmo no havendo cura, possvel adiar as
manifestaes da doena. Explicou que muitos pacientes que tm Alzheimer
apresentam tambm uma combinao de pequenos derrames. Ele defende que
esse risco para derrames modificvel com medicaes e comportamentos
saudveis (dieta do Mediterrneo, ingesto de vinho, exerccio fsico regular,
exerccio mental regular etc.). Assim, as pessoas que souberem que possuem um
risco aumentado, tero um estmulo maior para prevenir o declnio cognitivo.
Alm disso, aquelas com risco aumentado podero se planejar adequadamente do
ponto de vista financeiro e de sade, obtendo planos/seguros que cubram
cuidadores especializados etc.
Schlesinger, que representa uma parte dos pesquisadores que travam uma
batalha diria contra essa doena, disse o seguinte: Se o resultado do meu teste
sugerisse risco diminudo para Alzheimer, ficaria mais tranquilo e investiria meus
cuidados em outras doenas para as quais posso ter maior predisposio. Se, por
outro lado, viesse com risco aumentado, direcionaria meu comportamento na
preveno de demncias associadas, obteria um seguro-sade mais focado e
prepararia minha famlia para minhas eventuais limitaes. Alm disso,
procuraria participar de estudos experimentais de preveno, contribuindo assim
com o tratamento de futuras geraes.
Por tudo isso, possvel perceber como essa questo delicada e depende
da maneira como as pessoas reagem a doenas e da proximidade que elas tm dos
riscos. H quem argumente que saber de antemo que pode vir a ter Alzheimer
aceleraria o aparecimento dos sintomas. Por exemplo, todos ns esquecemos
coisas o tempo todo e no damos muita bola para isso. Mas, se soubermos que
temos propenso a ter a doena de Alzheimer, poderemos interpretar o primeiro
esquecimento como o incio da doena e corremos o risco de nos autoexcluirmos
da vida antes do tempo.
Lembro-me de um jornalista que veio me entrevistar h alguns anos
querendo saber minha opinio sobre testes genticos. Quando lhe falei que
normalmente no valorizamos pequenos esquecimentos, que acontecem o tempo
todo, se no soubermos que temos um risco aumentado de vir a ter a doena de
Alzheimer, ele me disse: mesmo, isso nunca havia me ocorrido. Continuamos a
conversa, que estava sendo gravada, e por fim ele foi embora dizendo que iria
pensar melhor a respeito. Qual no foi a minha surpresa quando olho em cima da
mesa e vejo que ele havia esquecido o microfone. Corri atrs dele e consegui
alcan-lo no corredor. Ao lhe devolver o objeto, afirmei sorrindo: Voc entende
agora por que melhor no saber?.
Seja como for, necessrio que a pessoa que fizer o teste procure
esclarecimento sobre o resultado. Em todos os casos, a pergunta de quem
oferece o teste e de quem se submete a ele o que a pessoa pode fazer com essa
informao. Ela vai lhe trazer algum benefcio importante?
Captulo 12
Captulo 12

Bancos de dna ou a histria particular ao alcance dos outros

Pela delicadeza e confidencialidade das informaes que armazenam, os bancos


de dna ligados a pesquisas cientficas costumam ser controlados por um esquema
muito rgido de sigilo. Os projetos que necessitam de material gentico devem ser
obrigatoriamente aprovados por um comit de tica em pesquisa antes de sua
execuo. Devem conter todas as informaes necessrias para a plena
compreenso da finalidade, dos procedimentos, do modo de armazenamento e,
especialmente, das questes referentes preservao da identidade dos
participantes. J contei o caso relatado pela geneticista e especialista em tica
Dbora Diniz, da Universidade de Braslia, de um centro pblico de doao de
sangue, que realizava testes laboratoriais para anemia falciforme sem o
consentimento dos doadores. Aps a denncia de Dbora, o centro de sade
mudou o protocolo, que agora traz a informao sobre os exames e realiza o
aconselhamento mantendo a confidencialidade.
Isso nos remete a outro assunto muito polmico: a quem pertencem as
informaes contidas no nosso dna? Sim, porque ns o deixamos em toda parte:
na xcara do cafezinho, nos talheres do restaurante, nas cutculas que tiramos
quando fazemos as unhas, no leno de papel quando espirramos, na ponta do
cigarro descartada. E junto com esse material gentico esto disponveis
informaes que podem dar origem a problemas legais ou desvendar que temos
um risco aumentado a desenvolver certas doenas. Informaes genticas so
potencialmente promotoras da quebra de privacidade e do estabelecimento de
polticas de excluso. Por isso, j existem leis proibindo o seu uso sem
autorizao, garantindo que a confidencialidade dos testes genticos deve ser
assegurada e protegida de terceiros.
Nos Estados Unidos, a liberao de dados s ocorre com consentimento
escrito e apenas para fins de interesse mdico. Evita-se, assim, o assdio das
seguradoras e dos planos de sade que gostariam muito de ter essas informaes
para incluir restries a seus clientes, cobrar taxas mais elevadas ou at se negar
a fazer contratos de sade com pessoas que tenham predisposio a doenas que
requerem procedimentos mdicos mais caros. Ou de empresas interessadas em
descobrir algum problema na sade dos funcionrios.
Alm disso, as amostras de dna costumam no ser identificadas,
diferentemente do que ocorre no Brasil. Quais so os prs e contras de cada uma
dessas polticas? No caso de amostras annimas, no h possibilidade de que
dados genticos, capazes de prejudicar seus doadores, possam ser revelados. Por
exemplo, risco aumentado para certas doenas que poderiam interessar a
companhias de seguro-sade ou empregadores. Uma vez sem identificao, no
h como descobrir a quem pertence aquela amostra. Por outro lado, a vantagem
de manuteno da identidade est na possibilidade de contatar o doador da
amostra se for descoberto por acaso algo que possa ser de seu interesse.
Vejam uma situao que vivemos muitos anos atrs, antes do
estabelecimento dessas regras. Descobrimos em uma amostra do banco de dna
de nossos controles uma mutao que determinava que seu portador tinha um
risco aumentado de vir a ter uma criana com uma doena neurodegenerativa. A
quem pertencia aquele dna? Essa foi a nossa primeira questo. Descobrimos que
se tratava de uma jovem em idade reprodutiva. Mas o problema que ela no
sabia que havia sido testada e muito menos que corria aquele risco. Debatemos
durante horas. Devamos ou no procur-la e contar o que havamos achado?
Decidimos que valeria a pena, por um simples motivo: havia algo a ser feito
evitar o nascimento de uma criana com uma doena grave e sem tratamento. E
foi o que fizemos. Ela nos agradeceu muito, pois, a partir dessa informao, pde
planejar a sua vida reprodutiva e prevenir tambm outros familiares em risco.
Com o avano da tecnologia e a possibilidade crescente de analisar milhares
de genes ao mesmo tempo, a descoberta sem estudos premeditados de mutaes
que conferem risco a doenas vai se tornar cada vez mais frequente. Como lidar
com essas informaes? Quando a pessoa em risco deve ser contatada? Ao
assinar o termo de consentimento antes de fornecer seu dna para um banco
pblico, algumas pessoas declaram que s querem ser notificadas se for
encontrada alguma mutao relacionada a doenas que podem ser tratadas. E se
o doador da amostra falecer e for descoberta uma mutao responsvel por uma
doena hereditria, por exemplo, coreia de Huntington, deve-se contatar os
familiares em risco? Trata-se de um assunto complexo, que vai ser objeto de
muitas discusses.

H ainda outra questo a ser considerada. Nos ltimos anos, o estudo do dna
permitiu que a cincia resolvesse inmeros casos de identificao de pessoas
desaparecidas e at de crimes. Conhecido como exame forense, esse tipo de
identificao pode ser realizado em diversos materiais, como ossadas, dentes,
manchas de material biolgico, fios de cabelo, pelos, unhas, saliva, secreo
vaginal, cordo umbilical, lquido seminal. Esses materiais podem ser coletados
nos mais diversos lugares e objetos, como canudinhos de plstico, chicletes
mascados, sangue ou suor em peas de roupas. O sucesso da anlise vai depender
do estado de conservao da amostra. Quando isso possvel, as informaes
genticas contidas nos materiais so uma importante fonte de elucidao de
crimes.
Porm, para que esse objetivo seja cumprido, fundamental que os governos
e a sociedade iniciem uma discusso sobre as vantagens e desvantagens dos
bancos de dna. Por enquanto, a lei no autoriza a coleta contra a vontade ou sem
autorizao expressa da pessoa. Mas a polcia pode usar alguns estratagemas
para obter o material. Nos Estados Unidos, Inglaterra e dezenas de outros pases,
por exemplo, j existem bancos de dna de criminosos e amostras de cenas de
crime, alm de casos relacionados a tragdias naturais, como terremotos, e a
atos de terrorismo. Em princpio, parece uma boa ideia, mas controvertida.
Argumenta-se, por exemplo, que, se depois da anlise a pessoa inocentada,
nada garante que sua impresso gentica seja retirada desses bancos. Alm disso,
os textos legais no determinam nenhum limite de idade para os alvos da coleta.
bom lembrar que um convnio entre o governo brasileiro e o Federal
Bureau of Investigation (fbi) dos Estados Unidos permite que a polcia federal
tenha acesso ao Combined dna Index System (Codis), o maior banco de dados de
dna do mundo, capaz de relacionar as caractersticas genticas de um suspeito
com dados coletados em trinta pases. E muitas vezes esses bancos no se
referem apenas a pessoas suspeitas de algum crime. Na onda xenofbica que
atinge o continente europeu, muitos governos levantam a possibilidade de montar
um banco de dna compulsrio de imigrantes ilegais. Com isso, querem impedir
que eles cometam fraudes ao requerer, para seu cnjuge e filhos, visto de estadia
no pas europeu onde residem, mesmo que a medida v de encontro ao direito
individual dos imigrantes privacidade de seus genes.
Por mais que a legislao possa vir a estipular em detalhe os limites de
aplicao desses testes, o que est em jogo o direito individual de determinar
at que ponto informaes pessoais podem ser utilizadas por terceiros. Por
exemplo, ningum nega a utilidade dos bancos de dna no auxlio localizao de
pessoas desaparecidas. Em So Paulo, funciona um projeto de identificao de
pais e irmos de crianas desaparecidas que permite a avaliao do vnculo
gentico daquelas que forem localizadas.
Recentemente se props que todos os recm-nascidos tivessem uma amostra
de dna coletada (a partir do sangue do cordo umbilical) para se obter um perfil
gentico de cada um e assim evitar a troca de crianas em maternidade.
Entretanto, como essa coleta pode ser feita em qualquer idade, qual a
necessidade de ter amostras retiradas de recm-nascidos? Por outro lado,
preciso haver um controle rgido para garantir que amostras de sangue do cordo
umbilical, armazenadas em bancos pblicos, que so extremamente importantes
para o transplante em caso de doenas hematolgicas, no sejam usadas
ilegalmente para fornecer dados genticos dos doadores.
Bancos de dna tambm esto tendo um papel fundamental na identificao
das vtimas do atentado s torres gmeas nos Estados Unidos, das vtimas da
guerra na antiga Iugoslvia, das pessoas mortas pela ditadura no Chile e na
Argentina, das vtimas da guerrilha na Colmbia e das ossadas dos desaparecidos
no Brasil. Mas qual a orientao em casos nos quais as pessoas no querem
tornar pblico um assunto familiar privado relacionado a crimes cometidos no
passado? E se as pessoas interessadas se recusarem a ser testadas? E o direito de
no querer saber? Foi o caso, pelo que acompanhei nos jornais, dos filhos
adotivos da proprietria de um grupo jornalstico na Argentina. Suspeitava-se que
haviam sido sequestrados depois que seus pais foram assassinados pelos militares
durante a ditadura. Os filhos adotivos no aceitaram passar pelo teste e
argumentaram que sua situao particular ganhou conotaes polticas alm da
questo familiar e emocional. Depois se soube que seus pais biolgicos no
constavam da lista de jovens mortos nas prises da ditadura argentina.
No Brasil, tambm tivemos uma questo polmica h alguns anos. Todos
devem se lembrar da histria de Pedrinho, um menino que havia sido sequestrado
na maternidade. O exame de dna revelou que ele no era filho biolgico de Vilma,
a mulher suspeita do sequestro e que havia criado o menino como seu filho
biolgico. Pedrinho, ainda adolescente, quando soube da verdade, preferiu morar
com seus verdadeiros pais. Mas, na mesma poca, suspeitou-se que Roberta, sua
suposta irm, que j tinha 23 anos, tambm pudesse ter sido sequestrada por
Vilma. Mas, ao ser confrontada com a suspeita, ela declarou enfaticamente que
no queria saber. Considerava como me aquela mulher que a havia criado.
Porm, ao prestar depoimento na polcia, Roberta, inadvertidamente, descartou
restos de cigarro. Foi o suficiente. A partir da anlise daquele material foi
possvel fazer um exame de dna e confirmar que ela tambm no era filha
biolgica de Vilma. Por um lado, tratava-se de um novo crime, e a me de
Roberta, que havia perdido sua filha na maternidade e era a maior prejudicada,
tinha o direito de ver a histria esclarecida. Mas, por outro lado, a vontade de
Roberta havia sido violada. E o direito de no saber? A questo : o dna pode ser
usado sem o consentimento do doador?

Segundo alguns juristas, o dna descartado no nos pertence mais e,


portanto, no houve violao no caso de Roberta. Se isso verdade, quem nos
garante que as companhias de seguro-sade ou nossos empregadores tambm
no usaro essa estratgia para saber se temos risco aumentado para certas
doenas de alto custo ou incapacitantes?
Por outro lado, dois casos de recusa em fornecer o dna para testes
reacenderam na mdia questes ticas sobre as informaes contidas no nosso
dna. No primeiro deles, o goleiro Bruno, acusado do assassinato de sua ex-
namorada, se recusou a fornecer material para testes que poderiam elucidar sua
participao no crime. O segundo caso do ex-vice-presidente Jos Alencar, que
se recusou a fazer o teste para comprovar uma suspeita de paternidade.
Segundo a lei brasileira, se um suspeito de paternidade se recusar a fornecer
material para teste de dna, considerado o pai biolgico da criana. Mas, e no
caso do goleiro Bruno, acusado de um crime hediondo, que se recusa a fornecer
seu dna sob a alegao de que isso pode ser usado contra ele? A acusao contra
ele gravssima. O fato de o goleiro se recusar a fornecer espontaneamente
material para exame de dna impede que este, se obtido sem a sua permisso, seja
usado como prova jurdica? Por outro lado, no caso de comprovao de
paternidade, o pai que est sendo acusado obrigado a fornecer material
gentico. Aparentemente, a lei entende que para proteger a criana. Mas para
proteger a sociedade de um criminoso em potencial no existe a obrigatoriedade?
So boas questes para os criminalistas.

Finalmente, h outras situaes sobre a pesquisa do cdigo gentico que


envolvem contribuies no apenas de indivduos, mas tambm de coletividades. E
at mesmo de pases inteiros. Uma histria conhecida ocorreu na Islndia.
Relativamente isolados por razes geogrficas, os islandeses formam uma
populao homognea, o que fez com que seu pas fosse considerado o lugar ideal
para uma pesquisa sobre a contribuio gentica de algumas doenas. Em troca
dos resultados futuros, que ficariam disponveis populao, o Parlamento
permitiu que uma companhia farmacutica armazenasse os dados mdicos dos
islandeses, alm das rvores genealgicas.
Aps vrias denncias e aes na Justia, o programa foi considerado
inconstitucional porque os indivduos que dele participaram no haviam fornecido
um consentimento explcito para uso de suas informaes, que, segundo o acordo,
faziam parte de um pacote de dna coletivo. Apesar disso, a empresa
farmacutica voltou a coletar material gentico de voluntrios na Islndia e usou
as informaes para a produo de medicamentos ainda em experimentao
clnica.
Algumas populaes isoladas se negam a fornecer dados para um banco de
dna coletivo, mesmo que o anonimato seja garantido. No Brasil, houve muito
debate entre cientistas e antroplogos sobre o armazenamento de dna dos
indgenas e suas possveis repercusses comerciais e tambm sobre o significado
cultural desse armazenamento para esses povos. Argumentavam os crticos desses
bancos que o consentimento informado nem sempre era bem entendido pelos
ndios e, por isso mesmo, pressionadas pela Justia, algumas universidades j
tiveram que devolver amostras de sangue coletadas das tribos h dezenas de anos.
Enquanto a controvrsia no resolvida, os cientistas que trabalham com
gentica populacional e histria das migraes hoje preferem utilizar dados j
relatados na literatura.
Captulo 13
Captulo 13

Clonagem ou o que nos reserva o futuro

Todo mundo lembra da histria de Dolly, aquela famosa ovelha britnica clonada
a partir de uma clula da glndula mamria de sua me, em 1997. Para conseguir
esse feito, os pesquisadores escoceses Keith Campbell e Ian Wilmut transferiram
o ncleo de uma clula j diferenciada para um vulo sem ncleo. Este foi ento
inserido em um tero de outra ovelha, transformada em barriga de aluguel, e
originou o primeiro clone de um mamfero. Depois dele, outros clones de animais
se seguiram, incluindo de rato, gato, cachorro, porco, bezerro e cavalo. No Brasil,
fizemos vrios clones animais com o objetivo de preservar linhagens nacionais de
gado e produzir remdios no leite. Nesses anos todos, porm, o que se tem visto
que o processo de clonagem muito difcil e pouco eficiente. Menos de 10% dos
embries clonados que so transferidos para o tero geram um animal saudvel.
E, mesmo depois de vrias experincias, o ndice de sucesso muito baixo. No
caso de Dolly, foram necessrias 276 tentativas at se conseguir um animal
clonado.
Mesmo assim, a histria do clone de ovelha despertou a imaginao das
pessoas sobre a possibilidade de fazer a clonagem de humanos. Nos anos
seguintes ao nascimento da ovelha, o tema chegou a ser at enredo de novela de
tv, para no dizer de filmes de terror e fico cientfica. Isso porque,
teoricamente, poderamos gerar clones de pessoas vivas ou mortas, apenas
retirando o ncleo de uma clula diferenciada, que poderia ser de qualquer
tecido, de uma criana ou adulto. Depois, seria preciso inserir esse ncleo em um
vulo para implant-lo no tero de uma mulher, que funcionaria como barriga de
aluguel. Se o vulo se desenvolvesse, seria criado um novo ser, com as mesmas
caractersticas fsicas da criana ou do adulto de quem havia sido retirada a
clula diferenciada. Seria como um gmeo idntico, mas nascido posteriormente.
Na poca de Dolly, a comunidade cientfica de todo o mundo se posicionou
contra essa possibilidade. E no apenas os cientistas. Nos Estados Unidos, a
Comisso Nacional de Biotica definiu, alguns meses depois do anncio de
nascimento da ovelha, que toda pesquisa voltada para a clonagem humana seria
banida naquele pas e no seriam fornecidas verbas federais para esse tipo de
estudo. Muitos outros pases adotaram medidas semelhantes. Mas isso no
impediu que comeassem a aparecer notcias sensacionalistas. Um mdico
italiano, Severino Antinori, nos anos seguintes, dizia ter conseguido engravidar
mulheres que gerariam clones humanos. Defendia a aplicao dessa tcnica para
casais infrteis. Um grupo de religiosos intitulados raelianos anunciou que havia
conseguido fazer o primeiro clone humano do mundo, com o sugestivo nome de
Eva. Sabamos que tudo isso no passava de um blefe, e o tempo demonstrou que
as profecias e os anncios de seitas no se realizaram.
Na realidade, Dolly revolucionou as pesquisas com clulas-tronco. Antes do
nascimento da ovelha, no se acreditava ser possvel fazer com que uma clula de
mamfero, j diferenciada, pudesse ser reprogramada ao estgio inicial, de modo
que se comportasse como um vulo recm-fecundado por um espermatozoide. A
ovelha, que morreu aos seis anos de uma doena pulmonar incurvel, demonstrou
que uma clula adulta poderia ser reprogramada para voltar ao estgio de
clula totipotente, isto , capaz de originar um ser completo, se inserida em
tero. O mais importante foi a descoberta que essa mesma clula
reprogramada poderia ser o incio de qualquer tecido em laboratrio, o que
desencadeou as pesquisas com clulas-tronco que podero revolucionar a
medicina regenerativa.
Outra ideia a clonagem teraputica, que at hoje no se mostrou bem-
sucedida em seres humanos acabou levando ao uso dessa mesma tecnologia
para gerar linhagens celulares. A clonagem, nesses casos, no seria para
desenvolver gmeos em srie ou criar rplicas aperfeioadas de indivduos. Em
vez de usar clulas embrionrias armazenadas em clnicas de reproduo
assistida, a ideia seria produzi-las a partir de clulas retiradas do paciente,
transferir o ncleo dessas clulas para um vulo sem ncleo, cultiv-las e
multiplic-las em laboratrio. Depois, induzir a diferenciao em tecidos
especficos de acordo com as necessidades.
Teoricamente, se o paciente tivesse sofrido queimaduras, por exemplo,
seriam feitas clulas de pele; se estivesse com mal de Parkinson, virariam
neurnios; na cirrose, se transformariam em clulas de fgado; e assim por diante.
Se essa tcnica fosse dominada, no futuro, cada pessoa poderia criar
preventivamente suas linhagens particulares de clulas-tronco com potencial
embrionrio. Ao longo da vida, caso essa pessoa precisasse de transplante, essas
clulas seriam descongeladas, multiplicadas e induzidas a se diferenciar. Quando
transplantadas, poderiam regenerar o tecido ou o rgo danificado sem o risco
de rejeio. nisso que apostam, por exemplo, os defensores dos bancos de
sangue de cordo umbilical privados, esquecendo-se de que uma promessa
distante, enquanto os bancos pblicos j podem ser benficos no tratamento de
doenas hoje.
No Brasil, a mesma Lei de Biossegurana de 2005, que permitiu a utilizao
de clulas-tronco de embries congelados obtidos em clnicas de fertilizao
para pesquisas, proibiu a clonagem teraputica. Isso vai abrir caminho para a
clonagem reprodutiva, diziam na poca os opositores, entre os quais grupos
religiosos. Vai gerar comrcio de vulos. Meus argumentos de que a pesquisa
poderia ser controlada e regulamentada no surtiram efeito. At hoje, a
discusso sobre a clonagem teraputica continua a ser levada sem a
profundidade tica que merece. Veja, por exemplo, o que ocorre com as clulas
iPS (do ingls induced pluripotent stem-cells) desenvolvidas pelo pesquisador japons
Shinya Yamanaka, em 2007, e consideradas a soluo por todos aqueles que se
opem s pesquisas com clulas embrionrias obtidas de embries congelados ou
derivadas de clonagem teraputica.
Clulas iPS so clulas adultas maduras, retiradas do nosso corpo ou de um
animal, que foram reprogramadas para se transformar em clulas-tronco
pluripotentes aquelas que tm a capacidade de dar origem a todos os tecidos,
da o seu nome. Para que isso acontea necessrio expressar genes que esto
ativos no incio da embriognese e que so silenciados quando as clulas j esto
diferenciadas em tecidos. Por exemplo, uma clula de pele pode ser
reprogramada e voltar a ser uma clula semelhante quela encontrada no
embrio. Pesquisas muito recentes tm mostrado que as clulas reprogramadas
iPS no so idnticas s embrionrias e que elas guardam a memria de onde
foram retiradas. Para mim isso no surpresa. Mas as clulas iPS foram
saudadas pelos grupos religiosos como a soluo, pois se as pesquisas
avanarem, no ser mais preciso obter clulas-tronco de embries, que, segundo
eles, estariam sendo sacrificados.
No sou contra as iPS, pelo contrrio. No sabemos se algum dia elas
serviro para terapia celular ou para a substituio de tecidos.
Independentemente da polmica, para os cientistas como ns que esto
interessados em utilizar clulas-tronco a fim descobrir os mecanismos que
causam doenas genticas, essas clulas so uma grande esperana e uma
ferramenta preciosa. Elas abrem portas para novas pesquisas que podem ser
muito promissoras. Mas, do ponto de vista de quem teme a possibilidade de
produzir um clone humano, a tcnica deveria ser questionada, pois representa um
passo a mais nessa direo. Cientistas chineses j conseguiram clonar
camundongos, reprogramando uma clula adulta para que adquirisse
caractersticas de uma clula embrionria. Para isso, bastou inserir um vrus
incuo e ativar alguns genes, essenciais para que a clula adquira as propriedades
de uma clula embrionria. A clula reprogramada, colocada em tero, gerou
animais viveis e frteis, confirmando que essas clulas poderiam ser totipotentes
sem a utilizao de vulos, pelo menos em camundongos.
Em tese, seria possvel gerar um clone humano muito mais facilmente. A
diferena que, na clonagem teraputica, a clula adulta (ou melhor, o ncleo
da clula onde est quase todo o dna) inserida em um vulo sem ncleo. J no
caso das clulas iPS, no preciso vulo algum. As clulas adultas so
reprogramadas para se comportarem como embrionrias. O que h de comum
nos dois casos que a clula reprogramada precisa ser inserida em um tero para
gerar um clone ou cpia de um animal. O inventor da tcnica, Shinya Yamanaka,
prevendo essa possibilidade, props uma regulamentao ao governo japons, e o
Ministrio da Cincia do Japo enviou a todas as universidades e agncias que
subsidiam pesquisas cientficas uma notificao proibindo a implantao de
embries feitos com clulas iPS em teros (humanos ou de animais), a produo
de qualquer indivduo a partir de clulas iPS ou a produo de clulas
germinativas (que do origem aos vulos e aos espermatozoides) derivadas dessas
clulas.
Mas quem garante que no h malucos por a tentando gerar clones
humanos s escondidas? Sem a necessidade de vulos humanos, muito mais fcil
tentar reprogramar uma clula adulta para que se comporte como embrionria.
E inseri-la em um tero, que no precisa necessariamente ser humano. Pode ser
de qualquer animal. assustador, no?
Agora, o outro lado da questo. Em seu livro Genetic dilemmas, a geneticista Dena
S. Davis relata a situao hipottica de um casal Lorna e Jim Garcia que se
encontrou, se apaixonou e se casou quando ambos tinham mais de quarenta anos.
Nessa idade, eles queriam ter um filho, mas descobriram que seria difcil porque
a menopausa de Lorna estava chegando e Jim j tinha problemas de infertilidade.
Contra todas as expectativas, Lorna conseguiu engravidar e teve uma menina que
ela chamou de Espera. Mas, quando a pequenina tinha dois anos, a famlia toda
sofreu um acidente de automvel causado por um motorista bbado. Jim morreu
na hora; Lorna, felizmente, salvou-se sem muitas sequelas. A beb Espera foi
levada ainda com vida para o hospital, mas teve morte cerebral no dia seguinte.
Lorna, desesperada para ter uma outra criana que a lembrasse daqueles
momentos de felicidade com Jim, pediu para os mdicos conservarem algumas
das clulas da menina. Esperava que um dia pudesse clon-las e ter outro beb
geneticamente ligado a ela e ao marido.
Por que a geneticista conta essa histria? Ela mesma explica: Para trazer
alguns aspectos ticos discusso sobre clonagem antes que ela seja possvel.
Dena considera que, medida que a cincia avana, a possibilidade de gerar
irmos gmeos com diferentes idades ser concretizada at porque as tcnicas
atuais de fertilizao assistida so muito arriscadas e custosas para os casais. No
caso da clonagem, o doador pode ser um irmo, o pai, um amigo, uma amiga ou
pessoa famosa ou at mesmo algum que j tenha morrido, cujas clulas foram
preservadas, como no caso relatado acima. A autora chega a dizer que a tcnica
seria muito bem-vinda no caso de mulheres homossexuais que desejassem ter um
filho e no quisessem se submeter a receber a doao de estranhos e ter
problemas legais relativos ao pai de aluguel.
Por outro lado, ela chama a ateno para o fato de que muitas pessoas
fantasiam que um clone deve ser exatamente igual ao original, uma motivao
que no tem nenhum sentido. Primeiro porque, no caso de uma pessoa famosa,
imagina-se que o clone ser uma cpia do adulto admirado. Ela lembra que, aps
a morte da princesa Diana, o sentimento de perda foi expresso por um de seus
sditos que portava um cartaz no Central Park de Londres, com essas palavras:
Clonem outra Diana. Como se isso fosse possvel.
Nenhuma criana, mesmo geneticamente idntica a outra, seria igual a ela
porque sua vida, ambiente, condies sero diferentes. Ou, como j foi dito,
clone no fotocpia. Mesmo levando em conta as caractersticas fsicas e
deixando de lado as psicolgicas, hbitos, alimentao, ocupao, exposio a
doenas e ao sol etc. fariam com que fosse se diferenciando medida que
envelhecesse. Do ponto de vista psicolgico ento, nem se fala. Clones de Madre
Teresa de Calcut, se existissem, no teriam o seu esprito de dedicao.
Poderiam ser at o oposto. J imaginaram uma mulher com a aparncia dela e
danando como a Madonna? Ou o clone de Einstein cuja maior ambio seria
tornar-se alpinista? Da mesma forma que clones de Hitler no teriam o seu
carter e personalidade destrutiva, at porque o determinismo gentico que ele
tanto quis provar no existe (vocs devem se lembrar do livro Os meninos do Brasil,
de Ira Levin, em que um cientista maluco cria meninos que deveriam ter o mesmo
perfil psicolgico do ditador).
Mas, provoca Dena Davis, embora reprove a maioria dos argumentos em
defesa da clonagem reprodutiva, e que so os mesmos que levam as pessoas a
escolher o sexo dos filhos ou a seleo de caractersticas determinadas, no
existiriam situaes excepcionais em que a aplicao da tcnica seria
compreensvel ou aceitvel, como no caso da tragdia de Lorna Garcia? Se
algumas formas de clonagem podem ser aceitas em determinadas situaes, no
seria o caso de iniciar uma discusso tica em vez de banir essa possibilidade
totalmente? Ela lembra que, quando Louise Brown, o primeiro beb de proveta,
nasceu na Inglaterra, em 1978, falou-se em escndalo, e houve especulaes de
todo tipo sobre a nova sociedade que dali sairia. O mundo, no entanto, continuou
andando da mesma maneira, e existem inmeras pessoas que nasceram graas s
tcnicas de fertilizao assistida.
Eu no tenho resposta para essas questes, mas concordo pelo menos em um
aspecto com a autora. Em todos os casos relatados neste livro que levamos ao
conhecimento do leitor, quis mostrar que a cincia avanou depressa demais e
no houve tempo para que uma discusso tica acompanhasse a sua evoluo. Em
vez de questionar questes ticas depois dos anncios cientficos, nesse caso da
clonagem, podemos debater o que vem pela frente antes que ocorra. So
assuntos que nos dizem respeito agora e no futuro e que no podem ficar
restritos aos meios acadmicos. Devem ser amplamente discutidos por toda a
sociedade.
Para entender melhor

Para entender melhor

Aconselhamento gentico Consulta que inclui vrios procedimentos, como


informaes sobre doenas genticas, diagnstico, prognstico,
estimativas de riscos de recorrncia de doenas, testes genticos para
pacientes e familiares em risco, orientao e apoio a fim de permitir que
as pessoas interessadas e suas famlias tomem decises relativas aos
procedimentos, tratamento e, principalmente, s chances de terem filhos
com doenas.
Alelo Cada uma das duas cpias de um mesmo gene (oriundas do pai e da
me) que ocupam determinada posio no cromossomo.
Anemia de Blackfan-Diamond (dba) Forma congnita (presente ao
nascimento) de anemia. Cerca de 30% a 40% dos pacientes tm outras
anomalias congnitas, principalmente dos membros superiores e regio
craniofacial. A maioria dos casos espordica, isto , no herdada, e cerca
de 10% a 25% dos casos so de famlias com herana autossmica
dominante (risco de 50% de transmisso entre geraes).
Anemia de Fanconi Doena gentica de herana autossmica recessiva que
afeta crianas e adultos de todos os grupos tnicos. Atinge a medula ssea
e est associada a malformaes cardacas, renais, dos membros e
alteraes na pigmentao da pele (ver: herana autossmica recessiva).
Anemia falciforme (ou depranocitose) Doena gentica, de herana
autossmica recessiva, que leva malformao das hemcias, que
assumem forma semelhante a foices (de onde vem o nome da doena), com
maior ou menor severidade. Os afetados apresentam deficincia do
transporte de oxignio. comum na frica, na Europa Mediterrnea, no
Oriente Mdio e regies da ndia (ver: herana autossmica recessiva).
Antgenos leucocitrios humanos (hla) Conjunto de
genes responsveis pela resposta imunolgica do organismo, transportando
antgenos (partcula ou molcula capazes de suscitar uma resposta do
sistema imunolgico) de dentro da clula para a sua superfcie.
Assintomtico (portador) Indivduo que possui uma ou mais mutaes
responsvel por determinada doena e no apresenta nenhum dos sintomas
clnicos, embora possa transmiti-la para a sua descendncia.
Ataxias A palavra remete perda de coordenao dos movimentos
musculares voluntrios, um sintoma de doenas que comprometem o
sistema nervoso. A perda de coordenao pode afetar os membros, a fala,
os movimentos dos olhos ou de outras regies do corpo. Os sintomas
geralmente decorrem de disfunes do cerebelo (parte do crebro
responsvel pela coordenao motora), leses na medula espinhal,
neuropatia perifrica ou de uma combinao desses fatores. As ataxias
hereditrias so causadas por uma mutao gentica e so tambm
conhecidas como ataxias progressivas porque os sintomas costumam se
agravar com o passar do tempo. Por se tratar de uma herana autossmica
dominante, os descendentes de indivduos portadores tm risco de 50% de
herd-la.
Bancos de dna Repositrios onde so armazenados o dna de pessoas
(afetadas por doenas ou normais) ou de outros organismos vivos.
Beb de proveta Beb gerado por fertilizao in vitro, isto ,
manipulada no laboratrio. O procedimento envolve coleta do vulo e do
espermatozoide. Aps a fecundao, o embrio inserido no tero
materno.
Biotica a parte da tica, ramo da filosofia, que enfoca as questes
referentes vida humana.
Biologia molecular o estudo da biologia em nvel molecular, com especial
foco na estrutura e na funo do material gentico e seus produtos de
expresso, as protenas. A biologia molecular investiga as interaes entre
os diversos sistemas celulares, incluindo a relao entre dna, rna e sntese
proteica.
Cncer uma doena caracterizada por uma populao de clulas que
cresce e se divide sem respeitar os limites normais, invadem e destroem
tecidos adjacentes e podem se espalhar para lugares distantes no corpo
por meio de um processo chamado metstase (ver: doena gentica,
leucemia, linfomas).
Clula Unidade bsica de todo organismo vivo, responsvel
pelos processos bioqumicos da vida.
Clulas hematopoticas Clulas que do origem ao sangue. Clulas
reprogramadas Clulas j diferenciadas que so
manipuladas por meio de engenharia gentica para adquirir caractersticas de
clulas-tronco. O termo comumente usado no caso de clulas que foram
reprogramadas para se comportarem como clulas-tronco embrionrias.
Clulas totipotentes Clulas que tm o potencial de originar todas as clulas
de um organismo, ou, eventualmente, um ser completo, se colocadas em
tero.
vrias linhagens celulares e tambm de se autorrenovar.
Clulas-tronco adultas Clulas-tronco que tm o potencial de originar vrias
linhagens celulares e que so encontradas no cordo umbilical e em vrios
tecidos do organismo, como medula sangunea, tecido adiposo, polpa de
dente de leite, entre outros.
Clulas-tronco embrionrias Clulas-tronco obtidas de embries com
algumas centenas de clulas e que tm o potencial de originar todos os
tecidos do organismo.
Clulas-tronco mesenquimais Clulas-tronco com potencial de se
autorreplicar e de se diferenciar em vrias linhagens, tais como clulas
musculares, sseas, adiposas e cartilaginosas.
Clonagem reprodutiva Procedimento que origina uma cpia idntica de um
organismo a partir de uma nica clula.
Clonagem teraputica (ou transferncia de ncleo) Procedimento no qual o
ncleo de uma clula transferido para um vulo sem ncleo e este
adquire as caractersticas de uma clula-tronco embrionria com
potencial de originar qualquer tecido.
Clone Palavra originada do grego klon, que quer dizer broto de
um vegetal, usada para identificar pessoas idnticas geneticamente. Nas
plantas, a clonagem uma forma de reproduo assexuada que existe
naturalmente. Nos animais e seres humanos ocorre em gmeos univitelinos.
A gerao de um novo animal a partir de outro preexistente s ocorre em
laboratrio. Nesse caso, os indivduos resultantes tm as mesmas
caractersticas genticas do doador.
Cdigo gentico A maneira pela qual as clulas traduzem um cdigo de
quatro letras formado pelas quatro bases nitrogenadas presentes no dna
(adenina, guanina, timina e citosina agtc) que corresponde aos vinte
aminocidos presentes nas protenas. Por exemplo, a sequncia tgc
corresponde ao aminocido cistena. O cdigo gentico o mesmo para
quase todos os seres vivos.
Congnita Qualquer alterao no feto presente no nascimento (diferente de
hereditrio). O trao congnito, defeituoso ou no, fsico ou bioqumico,
pode ser resultante de uma mutao gentica ou de um fator no
gentico, por exemplo, sndrome do lcool fetal causado pela ingesto
exagerada de lcool durante a gravidez.
Cordo umbilical Longo cordo constitudo por duas artrias e uma veia que
permite a troca de sangue, nutrientes e gases entre o feto e a me durante
a gravidez.
Coreia de Huntington Doena neurodegenerativa que afeta o sistema
nervoso central, em geral de incio tardio. causada por uma mutao em
um gene que codifica a protena huntingtina. Caracteriza-se por
movimentos involuntrios, perda progressiva da fora muscular e demncia.
A herana autossmica dominante e, portanto, os afetados tm um risco
de 50% de transmitir o gene defeituoso para sua descendncia.
Cromossomos Material hereditrio composto de dna e protenas, cuja
principal funo conservar, transmitir e expressar a informao gentica.
So eles que definem, por exemplo, a cor dos olhos e a ocorrncia de
algumas doenas ou sndromes, quando alterados numrica ou
estruturalmente. Na espcie humana, 46 cromossomos (22 pares e os
cromossomos sexuais X e Y) esto presentes em todos os 100 trilhes de
clulas do organismo, exceo das clulas sexuais (que s tm a metade)
e das hemcias (que no tm nenhum).
Diagnstico pr-implantao (dpi) Diagnstico realizado em uma ou mais
clulas de um embrio gerado por fertilizao in vitro antes de ser
implantado no tero. O dpi permite identificar alteraes nos
cromossomos e algumas mutaes genticas em famlias que j tiveram
indivduos afetados.
Diagnstico pr-natal (dpn) Diagnstico realizado durante a gestao. Pode
ser realizado em amostras de vilosidades corinicas (estruturas formadas
pela placenta que promovem a aderncia ao tero) retiradas por via
vaginal entre a 10a e a 14a semana de gravidez ou em lquido amnitico
(lquido que circunda o feto) ao redor da 14a 16a semana de gestao.
Distrofias musculares progressivas (dmp) Grupo de doenas genticas
caracterizado pela degenerao progressiva da musculatura devido
ausncia ou deficincia de uma protena essencial para o msculo.
Existem mais de trinta genes que, quando alterados, causam distrofias. A
herana pode ser autossmica dominante, recessiva ou ligada ao
cromossomo X.
dna (adn) Sigla em ingls para cido desoxirribonucleico, um complexo
filamento de substncias qumicas, em forma de hlice dupla, que se
encontra principalmente no ncleo das clulas. O dna a molcula que
traz a informao gentica responsvel pela estrutura e pela funo dos
organismos vivos e que permite a transmisso da informao gentica
atravs das geraes.
dna recombinante Combinao de molculas de dna de diferentes origens. A
tecnologia de dna recombinante, ou engenharia gentica, um meio de
produzir, por manipulao gentica, grande quantidade de protenas
teraputicas que, de outra maneira, seriam difceis de obter de seres
humanos ou de outras fontes. Os medicamentos recombinantes, que
incluem classes conhecidas como a insulina, so atualmente os pilares de
tratamentos de longo prazo para vrias doenas.
Doena gentica Distrbio resultante de falhas no funcionamento de um
gene (defeituoso ou ausente) ou de uma regio regulatria do dna. Doena
gentica no sinnimo de doena hereditria. Por exemplo, o cncer
uma doena gentica, mas que raramente hereditrio.
Doena hereditria Doena gentica causada pela falha no funcionamento
de um gene (defeituoso ou ausente) ou de uma regio regulatria do dna e
que pode ser transmitida para outras geraes. Toda doena hereditria
gentica, mas nem toda doena gentica hereditria.
Doena multifatorial Doena ou caracterstica causada pela interao
entre vrios genes (geralmente cada um com um efeito pequeno) e o
ambiente. Por exemplo, lbio leporino ou hipertenso.
Doena de Tay -Sachs Doena gentica neurodegenerativa de herana
autossmica recessiva, na qual h morte dos neurnios devido ausncia
da enzima hexosaminidase A. Os afetados tm uma deteriorao mental e
fsica, com incio por volta dos seis meses de idade, e a sobrevida
dificilmente ultrapassa os trs ou quatro anos. mais comum em judeus de
origem ashkenazis (Europa Central).
Efeito placebo como se denomina a ao de um medicamento ou
tratamento que s apresenta efeito teraputico devido aos efeitos
fisiolgicos da crena da pessoa de que est sendo tratada. O efeito
placebo usado para testar a validade de medicamentos ou tcnicas
verdadeiras. Consiste, por exemplo, no uso de algum produto incuo
administrado a um grupo de pessoas, comparando-se os resultados com
outro grupo ao qual foi administrado um medicamento ou procedimento
cujo efeito se pretende avaliar.
Embrio vulo fertilizado (ovo) nas fases mais iniciais de desenvolvimento,
da segunda stima semana depois da fecundao, etapa conhecida como
perodo embrionrio. O perodo embrionrio termina na oitava semana
depois da fecundao, quando o produto da concepo passa a ser
denominado feto.
Embriognese Fases iniciais do desenvolvimento do embrio. Epigentica
Alterao na expresso ou funo de um gene sem
alterao na sequncia primria do dna.
Eritropoetina (epo) um hormnio secretado pelo rim que estimula a
medula ssea a elevar a produo de clulas vermelhas do sangue.
Esclerose lateral amiotrfica (ela) Doena neurodegenerativa progressiva
que se inicia na idade adulta. causada pela morte dos neurnios motores
localizados no crtex cerebral, no tronco enceflico e na medula espinhal.
O incio e o tempo de progresso variam, mas ocorre a perda de fora dos
membros superiores e/ou inferiores, o comprometimento da fala e da
deglutio, bem como da funo respiratria. Cerca de 90% dos casos so
espordicos, ou seja, no se observa recorrncia familiar da doena. Os
10% restantes podem apresentar padro de herana autossmica
dominante ou recessiva.
Eugenia O termo foi criado em 1883 por Francis Galton, que o definiu como
sendo bem-nascido. No sculo xix foi utilizado para o estudo das melhores
condies para a reproduo e o melhoramento da espcie humana. Mais
recentemente, seria a crena de que a substituio dos genes maus pelos
bons seria capaz de conceber uma humanidade nova e melhorada, livre do
sofrimento causado pelas doenas e pelas caractersticas fsicas e mentais
indesejveis.
Exames moleculares Testes genticos para avaliar alteraes no dna, na
expresso dos genes ou em seus produtos.
Fenilcetonria Doena de herana autossmica recessiva causada pela
ausncia da enzima fenilalanina e que causa retardo mental se no for
tratada. Pode ser diagnosticada no nascimento pelo teste do pezinho,
prevenindo-se o aparecimento dos sintomas por meio de uma dieta
adequada.
Feto Estgio de desenvolvimento intrauterino que tem incio aps oito
semanas de vida embrionria, quando j podem ser observados braos,
pernas, olhos, nariz e boca, e vai at o fim da gestao.
Fibrose cstica (mucoviscidose) uma das doenas genticas mais comuns e
tem origem autossmica recessiva. caracterizada por pneumonias de
repetio e pode haver insuficincia pancretica. Existem mais de 1.500
mutaes j descritas no gene da doena e a gravidade depende do tipo de
mutao.
Gene Unidade bsica do dna que ocupa um lugar especfico no cromossomo
e que responsvel pela produo de um produto funcional.
Gentica Cincia que estuda os genes, a herana, a variao e o conjunto de
fenmenos e problemas relativos descendncia. Ramo da biologia que
estuda a forma como se transmitem as caractersticas biolgicas de
gerao para gerao.
Genoma A sequncia completa do dna contendo toda a informao
gentica de um organismo ou de uma populao.
Genmica o campo da gentica que estuda o genoma.
Gentipo Constituio gentica de um indivduo, diferente de sua aparncia
fsica (fentipo). Conjunto de genes existentes em cada um dos ncleos
das clulas dos indivduos pertencentes a determinada espcie, responsvel
pelas caractersticas hereditrias desse indivduo em particular.
Hemocromatose Doena na qual ocorre depsito de ferro, principalmente
no fgado, pncreas, corao e hipfise, que podem perder,
progressivamente, suas funes. Pode ser hereditria, quando causada
por uma anomalia gentica, ou secundria, quando provocada por outra
doena.
Hemoglobina Molcula presente nas hemcias (clulas sanguneas)
responsvel pelo transporte de oxignio na circulao sangunea.
Herana autossmica dominante Herana na qual existe uma alterao em
uma das duas cpias de um gene em um dos cromossomos no sexuais. A
chance de transmitir a cpia para os descendentes de 50% em cada
gravidez (ver: coreia de Huntington).
Herana autossmica recessiva Herana na qual so necessrias alteraes
nas duas cpias de um gene, uma de origem paterna e outra de origem
materna. A probabilidade de um casal transmitir as duas cpias para os
descendentes de 25% em cada gravidez (ver: anemia de Fanconi, anemia
falciforme, doena de Tay-Sachs, fenilcetonria, fibrose cstica,
hipotireoidismo congnito, mucopolissacaridose, talassemia).
Hipotireoidismo congnito Doena gentica, geralmente de herana
autossmica recessiva, na qual os indivduos nascem com deficincia do
hormnio da tireoide. O diagnstico neonatal (teste do pezinho) muito
importante porque o tratamento com administrao de hormnio previne o
desenvolvimento de um retardo mental severo.
Imunossupressores Compostos que impedem (ou diminuem) a reao
imunolgica do organismo, por exemplo, no caso de transplante de rgos.
Incesto Relao sexual entre parentes prximos, como pai-filha, me-filho
ou irmos. Na maior parte dos pases, legalmente proibido, mesmo que
haja consentimento de ambas as partes. considerado um tabu em quase
todas as culturas humanas.
Leucemia um tipo de cncer das clulas brancas do sangue (leuccitos).
Esta doena comea na medula ssea e se espalha para outras partes.
Divide-se em leucemias linfocticas e mieloides (os dois principais grupos
de leuccitos) e pode se apresentar nas formas aguda ou crnica,
dependendo da velocidade com que aparecem os sintomas e como evolui.
Nos jovens, a forma mais comum a leucemia linfoctica aguda, e nos
adultos, a leucemia mieloide aguda e a linfoctica crnica.
Linfomas So um grupo de doenas que se originam nas clulas do sistema
linftico. Esse sistema constitudo de rgos e tecidos que produzem,
armazenam e distribuem os glbulos brancos do sangue que combatem as
infeces e outras doenas. O linfoma um tipo de cncer que surge
quando uma clula do sistema linftico normal se transforma em uma
clula maligna, crescendo descontroladamente e espalhando-se pelo
organismo.
Linhagens celulares Linhagens de determinado tipo de clulas cultivadas em
laboratrio.
Mal de Alzheimer Doena causada pela perda progressiva e pela
deteriorao da memria resultante do acmulo de placas senis no
crebro. Na maioria dos casos o mal de Alzheimer no hereditrio.
Mal de Parkinson Doena causada pela perda de neurnios dopaminrgicos
ou responsveis pela produo do neurotransmissor dopamina no sistema
nervoso central.
Marcador gentico Um gene ou outra poro identificvel do dna cuja
herana pode ser seguida (ver: cromossomos, dna, gene).
MicroSort uma tecnologia exclusiva desenvolvida para separar esperma
com maior probabilidade de gerar um menino ou uma menina.
Mucopolissacaridose (mps) Doena gentica, geralmente de herana
autossmica recessiva, causada por erros inatos do metabolismo. Os
afetados tm uma diminuio na atividade de certas enzimas, causando
acmulo de substncias em estruturas celulares chamadas lisossomos.
Pode ser causada por alteraes em vrios genes e o quadro clnico
bastante varivel.
Mutao Qualquer alterao hereditria permanente no dna
(ver: cromossomos, dna, gene).
Nanismo Condio caracterizada pela baixa estatura e que pode ser
causada por diferentes mutaes genticas.
vulo enucleado vulo do qual foi retirado o ncleo que contm quase todo
o dna.
Portadores ou heterozigotos Indivduos que possuem apenas uma mutao em
determinado gene. Como possumos duas cpias de cada gene, esses
indivduos so assintomticos para doenas recessivas (ver: mutao,
cromossomos, dna, gene).
Projeto Genoma Humano Foi lanado formalmente em 1990,
reuniu centros universitrios de dezoito pases, inclusive do Brasil, com o
objetivo de sequenciar todo o genoma e obter um catlogo completo de
cada gene. Os dados visam ampliar a compreenso da gentica humana e
desenvolver terapias mais eficazes para a cura de doenas (ver: gene,
gentica, genoma).
Protena Composto orgnico complexo que pode ser constitudo por
centenas ou milhares de aminocidos que so a unidade bsica das
protenas.
Reproduo assistida Reproduo realizada em clnicas de fertilizao.
Reprogramao celular (clulas iPS ou induced pluripotent stem-cells) Tcnica
pela qual clulas j diferenciadas podem ser reprogramadas para se
comportar como uma clula embrionria. A tcnica realizada por meio
da ativao de trs ou quatro genes fundamentais no incio da
embriognese (ver: clulas reprogramadas).
rna (arn) ou cido ribonucleico, normalmente o responsvel por levar as
instrues codificadas nos genes para sintetizar as protenas da clula.
Seleo de embries Escolha de embries produzidos por fertilizao
assistida a partir do diagnstico pr-implantao.
Sequenciamento a tcnica utilizada para determinar em que ordem as
bases, contidas no dna, se encontram. sua sequncia de bases que ir
determinar a sequncia de aminocidos de uma protena. H quatro tipos
de bases, ou letras qumicas: A (adenina), C (citosina), G (guanina) e T
(timina). O dna humano composto de 3,1 bilhes de pares de bases (ver:
dna, cdigo gentico).
Sntese do dna Duplicao do dna do ncleo de uma clula, no momento
anterior diviso celular, permitindo que cada uma das clulas-filhas
tenha genes idnticos em seu ncleo (ver: clula, dna, dna recombinante).
Surdez hereditria Surdez causada por mutaes genticas.
Existem mais de cinquenta genes responsveis pela surdez hereditria.
Talassemia Doena sangunea causada por alterao na cadeia da
hemoglobina. Geralmente tem herana autossmica recessiva. Pode ser de
vrios tipos, como talassemia beta, alfa etc.
Terapia gnica Tratamento de doenas por meio da alterao de genes.
Particularmente promissora nas doenas genticas, cuja causa primordial
o defeito em um gene. A terapia gnica , portanto, uma forma de
consertar um gene defeituoso. No futuro, permitir que os mdicos
intervenham diretamente nos segmentos anormais do dna responsveis por
doenas genticas e outras, como o diabetes.
Testes genticos Exames para avaliar alteraes no dna, na expresso dos
genes ou em seus produtos.
Testes preditivos Testes genticos, realizados em pessoas assintomticas
para avaliar a existncia de mutaes ou alteraes nos genes que podero
determinar ou estimar o risco de aparecimento de doenas no futuro.
Transferncia gentica Incorporao de novo dna s clulas de um
organismo, em geral por meio de um vetor como um vrus modificado.
utilizada em terapia gnica (ver: terapia gnica).
Transgnico Organismo produzido de forma experimental, no qual se
introduziu artificialmente dna de outra espcie. muito citado em plantas,
mas pode ser feito com animais.
Saiba mais
Saiba mais

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<http://www.tudosobreela.com.br/home/index.asp>

Associao Brasileira de Esclerose Mltipla


<http://www.abem.org.br/>

Associao de Diabetes Juvenil


<http://www.adj.org.br/site/default.asp>

Associao Nacional de Assistncia ao Diabtico


<http://www.anad.org.br/>

Blog Mayana Zatz


<http://veja.abril.com.br/blog/genetica/>

Centro de Estudos do Genoma Humano


<http://genoma.ib.usp.br/>

Instituto Nacional do Cncer Inca


<http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/inca/portal/home>
Registro Nacional de Doadores de Medula ssea
<http://www1.inca.gov.br/conteudo_view.asp?ID=677>

Rede BrasilCord
<http://www1.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=2627>

Sociedade Brasileira de Biotica


<http://www.sbbioetica.org.br/>

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