Genetica - Mayana Zatz PDF
Genetica - Mayana Zatz PDF
Genetica - Mayana Zatz PDF
Sobre a obra:
Sobre ns:
Mayana Zatz
Gentica
Escolhas que nossos avs no faziam
prefcios:
Jorge Forbes
Adriana Diafria
Crdito
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edio pode ser
utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou forma, seja mecnico ou
eletrnico, fotocpia, gravao etc. nem apropriada ou estocada em
sistema de bancos de dados, sem a expressa autorizao da editora.
1 Edio de 2012
Zatz, Mayana
Gentica : escolhas que nossos avs no
faziam / Mayana Zatz ;
Bibliografia
isbn 978-85-250-5286-5
691kb; ePUB
I. Clonagem 2. Comportamento 3.
Sociedade 4. DNA
1. Forbes, Jorge. 11. Diafria, Adriana. 111. Ttulo.
Agradecimentos
Folha de Rosto
Crdito
Dedicatria
Agradecimento
Um futuro que j presente
Direito em um mundo em transformao
Introduao
Captulo 1
Captulo 2
Captulo 3
Captulo 4
Captulo 5
Captulo 6
Captulo 7
Captulo 8
Captulo 9
Captulo 10
Captulo 11
Captulo 12
Captulo 13
Este livro a base de uma medicina do futuro, do que vai nos acontecer, no do
que nos aconteceu.
Este livro uma bomba em todas as certezas acomodadas; ele coloca
problemas, pgina a pgina, frente aos quais nossas bulas de bem viver entram em
parafuso. A gentica est para o sculo xxi assim como a fsica esteve para o
sculo xx. Os avanos da gentica deixam para trs uma forma de viver e geram
problemas de ordem tica que no podem ser resolvidos geneticamente. o que
faz Mayana Zatz em seu texto. Em linguagem simples, clara, precisa, instigante e
at mesmo divertida, ela vai implacavelmente apertando o torniquete nos
crebros dos leitores, convidando docemente a responder questes impossveis,
nas quais ela, sempre na primeira pessoa com a qual escreve, incita o leitor a
participar. Como recusar to perigoso e ao mesmo tempo inevitvel convite?
Impossvel. No s pela gentileza enrgica da autora, mas, e principalmente,
porque no h como escapar s perguntas que ela coloca. As histrias relatadas
na mincia de suas particularidades so as histrias de todo mundo, promovendo
um encontro marcado com um futuro que j presente.
Este livro uma decepo para aqueles que vivem correndo atrs de reduzir
a experincia humana a uma tabela de genes onde tudo estaria previsto, como se
houvera um maktub, um estava escrito cientfico. Os que veem os geneticistas
como astrlogos autorizados pela Academia, com ttulo de doutor, vo sofrer
nessas linhas, vo ficar embaraados. Por outro lado, um blsamo aos que
compreendem que o mais essencial da humanidade ser criativo, a saber, onde
falta a determinao biolgica, porque somos seres incompletos, podemos criar,
inventar, mudar. Uma vaca sempre uma vaca, um homem... nem sempre.
Este livro um incmodo a uma parte da imprensa que adora publicar
pesquisas, a maioria merecedora do Prmio IgNobel, como se a vida se reduzisse
a estatsticas. Achava que a gentica iria ser a soluo mais perfeita, por pensar
que pesquisas escapam opinio pessoal, sempre vista com desconfiana. Qual o
qu! s mostrar seus exames a dois mdicos diferentes que voc vai ver que as
pesquisas sempre levam a marca de quem as interpreta. Por outro lado,
animador, pois chama responsabilidade de cada um frente imensido das
possibilidades atuais.
Este livro uma provocao aos juristas, que tero que reinventar o Direito,
que h muito j tropea no obsoleto e que agora, aqui, cai de vez em
contradies evidentes. Tambm os psicanalistas tero que refazer suas ideias
perseguidas de que a gentica sua inimiga, por desconsiderar o sujeito. O
nmero brutal de informaes genticas que ser disponibilizado, a partir de
agora, clamar pelos especialistas em interpretao.
Este livro, enfim, para voc encher sua bagagem de ideias sobre a vida
humana neste sculo xxi e embarcar entusiasmado nessa viagem. Bom voo!
Jorge Forbes
Psicanalista e mdico psiquiatra
Direito em um mundo em transformao
Introduo
Este livro dedicado gerao que nasceu ou vai nascer nesta era revolucionria
da gentica. tambm um livro para profissionais geneticistas, mdicos,
pesquisadores, psicanalistas, antroplogos, advogados, juzes que certamente
se confrontaro com decises difceis na interseco entre os avanos da
gentica e da tecnologia reprodutiva e os dramas pessoais das famlias daqueles
afetados por doenas com essa origem. Por outro lado, este livro tambm
dedicado s inmeras pessoas que, felizmente, no tiveram contato direto com
esses dramas, mas pertencem a uma sociedade que tem a oportunidade de
discutir, de refletir e de se posicionar sobre as implicaes dos avanos
cientficos. O conhecimento do genoma humano e o desenvolvimento de novas
tcnicas tais como reproduo assistida, diagnstico pr-natal, diagnstico
pr-implantao, seleo de embries, clulas-tronco, clonagem, terapia gnica,
manipulao de genes tero desdobramentos que se estendem a domnios que
extrapolam o contedo objetivo das descobertas.
Por se tratar de questes difceis de ser explicadas para quem no vive o
drama de perto ou no cientista, a evoluo da gentica costuma passar
despercebida da maioria das pessoas. At que uma manchete extraordinria nos
jornais desperte a ateno e desafie a imaginao. O fato que a cincia do
sculo xxi, que j est revolucionando a medicina e o que temos de mais
importante o conhecimento do nosso genoma , avana a passos rpidos
demais. Quando me apaixonei pela gentica, ainda adolescente, quase ningum
sabia o significado dessa palavra. Naquela poca, poucos se davam conta de que
esse ramo da biologia estava destinado a se tornar to vital com tantas
aplicaes na vida humana. Hoje, mesmo quem no est familiarizado com as
tcnicas por trs desses avanos sabe o quanto eles so importantes at por meio
de filmes, livros e novelas de tv. Mas no o bastante. Como voc vai perceber
no desenrolar deste livro, a gentica no envolve apenas cincia e tcnica, mas
dramas humanos, filosficos, ticos e morais.
Ao me defrontar com a cincia e o sofrimento de famlias atingidas por
doenas genticas, tive a sorte de contar com excelentes mentores. No posso
deixar de mencionar o professor Oswaldo Frota-Pessoa, uma inteligncia
brilhante e uma pessoa extraordinria, extremamente amoroso com as famlias
dos pacientes que o procuravam, e muito rigoroso com seus alunos no
questionamento cientfico. Foi um lder inesquecvel. Aprendi com ele que, para
compreender algo de fato, temos que nos envolver. Ainda na faculdade, o
professor Frota-Pessoa me abriu as portas de um mundo alm dos livros e
laboratrios ao me convidar para fazer parte do servio de aconselhamento de
famlias com portadores de doenas genticas. Foi quando percebi que, ao entrar
no campo da gentica mdica, eu poderia fazer pesquisa cientfica e ao mesmo
tempo ajudar aqueles que sofriam com essas doenas. Comecei a me interessar
pelas doenas neuromusculares, que atingem uma em cada mil pessoas,
originando uma perda da musculatura e uma fraqueza progressiva. Muitos me
perguntam por que, j que felizmente eu no tinha nenhum parente afetado. Foi
um desses acasos determinantes na vida das pessoas.
Na dcada de 1970, ainda iniciante nesse trabalho, conheci uma moa muito
jovem que procurava aconselhamento gentico porque sua irm tinha trs filhos
afetados por distrofia muscular de Duchenne, uma doena degenerativa letal que
causa perda progressiva da musculatura, para a qual ainda no existe cura. Ela ia
se casar e no queria que os filhos que viesse a conceber estivessem destinados a
desenvolver a doena. Foi muito frustrante saber que eu no poderia fazer nada
por aquela moa a no ser recitar estatsticas sem sentido para quem vivia o
drama to de perto. Naquele momento, decidi que gostaria de fazer mais para
ajud-la e a outras como ela, e assim estabeleci que aquele grupo de doenas
seria o foco das minhas pesquisas.
A era da medicina molecular estava apenas comeando e meu trabalho tambm.
Enquanto fazia pesquisas laboratoriais e tentava aprender mais sobre as
distrofias, iniciei o servio que hoje est consagrado como aconselhamento
gentico. Trata-se de uma expresso que abrange um leque amplo de
procedimentos, comeando pelo diagnstico (que se inicia com um exame clnico
e diferentes exames moleculares). Uma vez confirmado o diagnstico, possvel
saber se h ou no chance de repetio daquela doena e se existem outros
familiares em risco. durante o aconselhamento gentico que se discute qual a
probabilidade de desenvolver ou transmitir uma doena e as opes para evitar ou
prevenir o mal. O que significa, na maioria das vezes, um alvio para quem vive sob
a ameaa de doenas s vezes pouco conhecidas e enfrenta questes emergentes
relacionadas reproduo, experincias teraputicas e tratamentos ainda no
reconhecidos que frequentemente s visam ao lucro.
Naquela poca, sentia cada vez mais a necessidade de esclarecer e informar
cuidadosamente as famlias com afetados sobre o que eram as alteraes
genticas responsveis pela doena que estava presente naquela famlia, quais os
prognsticos, quais os riscos de terem outros filhos com o problema, e o que
poderia ser feito para melhorar a qualidade de vida de todos que viviam com
distrofias e outros males. Foi um perodo rico em que, a cada dia, surgiam mais
informaes e os desdobramentos da gentica avanavam. Iniciei um laboratrio
independente em 1978, quando voltei dos Estados Unidos depois de meu ps-
doutorado na Universidade da Califrnia. Com a colaborao das minhas alunas
Maria Rita Passos-Bueno e Mariz Vainzof, hoje professoras da Universidade de
So Paulo, as pesquisas avanaram. Fomos pioneiras na introduo das tcnicas
de biologia molecular para o estudo de genes humanos no Brasil. Formamos uma
equipe capacitada para estudar os pacientes desde o gene at as protenas
musculares que, quando ausentes ou defeituosas, eram responsveis por aquelas
doenas. Nesse perodo, conseguimos identificar vrios genes novos responsveis
por doenas genticas, principalmente neuromusculares. Foi o incio da nossa
contribuio ao projeto internacional que estava se desenrolando naquele
momento. Descobrir os genes que causam doenas nos permite entender qual a
funo deles que o objetivo maior do to falado Projeto Genoma Humano.
Foi tambm nessa poca que passei a revisitar os parentes de afetados que
eu havia conhecido no incio dos meus estudos, para avaliar se o aconselhamento
gentico havia tido algum impacto na vida reprodutiva das famlias com alto risco
gentico. Tive a boa notcia ao saber que nasceram poucas crianas afetadas
naquelas famlias que havamos atendido. A grande maioria tinha compreendido a
natureza gentica da doena que acometia seus filhos e o risco de vir a ter outros
com o mesmo problema, tomando medidas contraceptivas eficientes. Por outro
lado, me confrontei com uma triste realidade: o total abandono das crianas mais
velhas que j haviam nascido antes do aconselhamento gentico, na poca em
que eu havia iniciado meus estudos. Meninos que no tinham cadeira de rodas,
acesso escola, fisioterapia ou a alguma atividade recreativa. Crianas
excludas da vida social.
Foi quando decidi que ser s cientista era muito pouco. Precisava fazer mais
por eles. Fundei, em 1981, a Associao Brasileira de Distrofia Muscular, que
presido at hoje. Graas a uma equipe multidisciplinar que trabalha em contato
direto com a equipe cientfica, a expectativa de vida dos pacientes com distrofia
de Duchenne, que dificilmente passava dos vinte anos, j ultrapassa os trinta e
at quarenta anos. Recentemente um grupo de pesquisadores dinamarqueses
entrevistou pacientes com distrofia que haviam ultrapassado os quarenta anos.
Apesar de estarem todos em cadeira de rodas e dependentes para todas as
atividades, mais de 80% deles declararam-se muito felizes. Essa porcentagem
bastante superior quela encontrada na populao saudvel dessa faixa etria,
conforme declararam os pesquisadores surpresos. Isso nos d um enorme nimo e
refora que no podemos medir esforos quando se trata de melhorar e
aumentar a expectativa de vida desses pacientes.
Desde o incio, j fazamos testes para identificar se as irms dos pacientes
de distrofia de Duchenne tambm tinham o gene com a mutao responsvel
pela doena. Essas meninas, identificadas como possveis portadoras, no
desenvolveriam seus sintomas, mas eram informadas que tinham alto risco de
gerarem filhos doentes. Embora isso seja raro nos dias de hoje, naquela poca era
comum educar as meninas apenas para o casamento e para a procriao. Quando
descobramos que uma menina era portadora, orientvamos os pais a incentiv-la
a estudar e a ter uma realizao profissional, e no almejar casar e ter filhos
como objetivo nico na vida. A experincia mostrou que, embora a notcia de que
eram portadoras de uma mutao capaz de produzir uma doena grave pudesse
representar um impacto emocional, muitas delas, hoje adultas, nos procuram
mais preparadas para tomar decises reprodutivas e prevenir o nascimento de
crianas afetadas. E importante lembrar que os testes genticos baseados em
anlise de dna so hoje muito mais precisos que os testes bioqumicos de ento.
Alm disso, tecnologias modernas, como o diagnstico pr-natal no primeiro
trimestre, bem como o diagnstico pr-implantao, que veremos mais adiante,
no existiam naquela poca.
Essas pessoas e suas histrias de vida, dilemas e grandezas me ensinaram
muito e me comovem at hoje. Elas nos levam a repensar e redimensionar nossos
problemas constantemente. E, ao contrrio do que muitos pensam, o retorno que
recebemos dessas famlias, os seus exemplos, os seus ensinamentos, as suas lies
de vida so infinitamente maiores do que qualquer ajuda que acreditamos estar
lhes dando. So elas que nos motivam a lutar, a pesquisar, a no desanimar com
os obstculos. Lembro-me sempre de um pai tentando consolar uma me que
estava desesperada. Acabara de saber que seu filho tinha uma doena progressiva
e incurvel. Ele olhou para ela e disse: Voc ainda no percebeu. Ns somos
muito especiais. Ns fomos escolhidos para cuidar dessa criana. E o mais
admirvel que esse pai no havia sido escolhido. Ele havia decidido adotar uma
criana com distrofia muscular.
Culminando esse trabalho, em 2000, inauguramos o Centro de Estudos do
Genoma Humano (cegh), ligado ao Instituto de Biocincias da Universidade de
So Paulo, que hoje o maior centro de estudos de doenas genticas da
Amrica Latina e, desde a sua criao, j atendeu mais de 50 mil famlias
interessadas em se submeter a aconselhamento gentico. O cegh tem quatro
misses: pesquisa bsica sobre o genoma humano e as doenas genticas,
atendimento gentico s famlias com afetados (diagnstico clnico e
laboratorial de portadores, orientao e aconselhamento gentico), ensino e
divulgao.
Ao longo dos anos, enquanto continuvamos com os estudos, mapeando novos
genes, tentando compreender o seu papel no processo das doenas, atendamos
as famlias de afetados, possibilitando-lhes o acesso tecnologia de ponta e aos
resultados mais recentes das nossas pesquisas. Esse envolvimento direto com as
famlias permitiu selecionar ocasionalmente pacientes que poderiam contribuir
para novas descobertas, em uma estrada de mo dupla: os pacientes permitindo
avanos nas pesquisas e as pesquisas ajudando os pacientes. Isso porque famlias
grandes, com vrios afetados, so preciosas para mapear novos genes. Toda vez
que identificvamos genealogias como essas, l amos ns, Brasil afora, em busca
de todos os parentes. Visitar essas pessoas em lugares distantes, muitas vezes de
difcil acesso, conhecer as suas histrias, a sua cultura, as suas crenas, foram
experincias inesquecveis. ramos sempre recebidos com muito carinho. Foram
essas famlias que nos permitiram identificar novos genes, entender quais eram as
suas funes, o que havia de errado neles, por que causavam doenas. E, de posse
dessas informaes, podamos dar um retorno nessa via de mo dupla: identificar
nessas famlias quem tinha ou no risco de gerar novos afetados e como prevenir
que isso acontecesse. Assim, os avanos na tecnologia molecular permitiram
aprimorar o diagnstico e a identificao de casais com risco de terem seus
filhos afetados.
Esse conhecimento e a experincia do aconselhamento gentico trouxeram
novos e inmeros questionamentos, no apenas para ns, mas para todas as
pessoas que, em outras partes do mundo, se dedicavam a esse trabalho. Definiu-
se que a procura de testes genticos para diagnstico ou identificao de casais
em risco deveria ser voluntria. A exceo o rastreamento de recm-nascidos
para algumas condies que possam benefici-los com tratamento precoce, tais
como fenilcetonria (doena causada pelo defeito ou ausncia de uma enzima,
acarretando danos cerebrais) e hipotireoidismo congnito (quando a glndula
tireoide do recm-nascido no capaz de produzir a quantidade adequada de
hormnios). Essas e outras doenas, como anemia falciforme e fibrose cstica,
podem ser detectadas pelo teste do pezinho, obrigatrio por lei em todo o Brasil
e parte do Programa Nacional de Triagem Neonatal realizado pelo Sistema
nico de Sade (sus).
Fora esses casos, a privacidade de um indivduo deve ser protegida de
terceiros institucionais, tais como empregadores, seguradoras, escolas, entidades
comerciais e rgos governamentais. O diagnstico pr-natal deve ser feito
apenas para detectar condies genticas e malformaes fetais.
Estabeleceu-se tambm que, apesar do termo aconselhamento gentico, o
geneticista no aconselha. Ele deve apenas cuidar para que as possibilidades de
escolha de seus pacientes sejam informadas e esclarecidas, sem emitir suas
opinies. As decises sobre o que fazer com as informaes contidas nos genes
so exclusivamente dos interessados. Ouo frequentemente consulentes
perguntarem: O que voc faria se estivesse no meu lugar?. No podemos opinar.
A percepo do risco gentico, da gravidade da doena, de quanto isso ir
influenciar na vida pessoal uma questo totalmente subjetiva. Mas sempre me
pergunto se, na prtica, no acabamos transmitindo a nossa opinio ou nossos
sentimentos involuntariamente por meio de um gesto, de um olhar.
Fomos percebendo claramente que, ao mesmo tempo que o aconselhamento
gentico permite prevenir o nascimento de novos afetados ou melhorar a
qualidade de vida, tambm cria uma srie de questionamentos ticos. Esses
questionamentos no se referem apenas aos avanos mais recentes da medicina,
ou biotica de fronteira, mas tambm a dilemas cotidianos, tomando
emprestadas as palavras de Giovanni Berlinguer, referindo-se s novas formas de
nascer, viver e morrer em um mundo tecnicamente avanado, mas pleno de
contradies. Estudiosos do tema, como Berlinguer e outros, se dedicaram
biotica, nascida na dcada de 1970, para alertar os pesquisadores, em particular
os da rea biomdica, quanto ao eventual uso eticamente inadequado dos
avanos da biologia molecular. No tenho a pretenso de ser uma profunda
conhecedora dessa cincia, embora aprecie muito essas discusses. No entanto,
o servio de aconselhamento gentico ao longo desses anos me permitiu reunir
uma srie de histrias que desafiam esse conhecimento, quando baseado numa
padronizao de valores.
So histrias que reuni e chamo a ateno para elas neste livro porque
resvalam em conflitos, em dilemas pessoais para muitos dos quais no tenho
respostas. No so consideraes tericas. So histrias reais, histrias do
genoma, ou da constituio gentica de pacientes e famlias atendidos ao longo
dos anos, cujos nomes, evidentemente, foram alterados. So questes que pem
prova vrios princpios, como a confidencialidade, por exemplo, cuja garantia
um dos pilares do aconselhamento gentico e uma das medidas tomadas para
proteger os portadores de doenas ou seus descendentes. um princpio muito
justo, uma vez que o risco da quebra da confidencialidade pode resultar na
discriminao decorrente de usos indevidos que possam ser feitos da informao
gentica. Mas a prtica j demonstrou que as situaes inesperadas resultantes
dos avanos cientficos extrapolam as respostas bvias. O que fazer, por exemplo,
quando h alto risco de srio dano para os familiares e a informao pode ser
utilizada para evitar esse dano? Podemos interferir? Os casos relatados nos
captulos 1 e 2 e o impacto que as informaes teriam sobre a vida das suas
famlias ilustram bem esses dilemas.
Os avanos nas tcnicas de diagnstico pr-natal permitem a deteco de
um nmero crescente de doenas genticas no incio da gravidez. Trata-se de um
grande avano incorporado, aos poucos, rotina dos exames que asseguram a
sade do feto e a tranquilidade do casal. Mas se de um lado esses exames trazem
segurana e uma gestao serena, por outro podem ter impactos descritos a
partir do captulo 3 que dificilmente algum imaginaria h alguns anos.
E o que dizer dos testes preditivos, que permitem em algumas situaes
determinar em um recm-nascido se ele ir desenvolver uma doena trinta,
quarenta, cinquenta anos mais tarde? Decidimos h alguns anos no testar
crianas que poderiam ser portadoras assintomticas de doenas que s iriam se
manifestar na vida adulta e para as quais no existe tratamento, apesar da
insistncia de alguns pais que queriam ter seus filhos testados. No h benefcios
nessa descoberta. Ao fazer esses testes, voc acaba tirando da criana a opo
de decidir no futuro se ela deseja ou no saber se possui esse gene patognico.
Nossa experincia mostra que os jovens adultos preferem no ser testados ao
compreender que nada pode ser feito para ajud-los se o resultado do teste
mostrar que eles tero a doena. Coletar uma amostra de sangue ou de saliva
para um exame gentico muito fcil. Mas a lista de questes que uma pessoa
precisa considerar antes de decidir fazer esses testes cresce a cada dia. Para que
problema ela est sendo testada? Quais as implicaes de um resultado positivo?
Ou negativo? O que possvel fazer em cada um desses casos?
Com o desenvolvimento de novas tecnologias e a possibilidade de analisar o nosso
genoma a um custo cada vez mais acessvel, novas questes inesperadas tomam
corpo a cada dia. Os dilemas e os questionamentos ticos, que eram, no incio,
restritos a famlias com afetados por doenas genticas, esto tomando
propores maiores. Menino ou menina: o que voc faria se pudesse escolher?
Quantos filhos voc est determinado a ter ao recorrer fertilizao assistida?
tico selecionar embries de determinado sexo? Ou para tentar salvar um irmo
afetado por uma doena letal, os chamados irmos salvadores? E se no futuro
essa tecnologia for usada para escolher embries com determinadas
caractersticas, tais como cor de olhos, estatura, habilidade para esportes ou
outros motivos fteis? No se trata de uma nova eugenia? Quais so os limites?
o que procurei relatar nos captulos 4 e 8.
Outro assunto polmico: as clulas-tronco, que em passado recente
motivaram tanta controvrsia. Estamos preparados para iniciar os primeiros
testes clnicos? Por um lado, devemos sempre agir com cuidado nessas
circunstncias; por outro, as possibilidades so to surpreendentes que a cautela
exagerada pode resultar em no salvar vidas. Mal comparando, imagine um
motorista de ambulncia. Apesar de a regra ser o extremo cuidado e a cautela, o
que fazer quando se est transportando um paciente beira da morte? A ordem
no correr mais e dar o alerta para que os outros carros abram passagem? E os
bancos de cordo umbilical: pblicos ou privados? tico cobrar por uma
promessa ainda sem fundamento? So assuntos polmicos que discuto nos
captulos 9 e 10.
Testes de dna j esto sendo oferecidos em farmcias. Algumas das
variantes genticas so totalmente fteis: cera mida ou seca no ouvido,
capacidade de sentir ou no alguns odores so exemplos do que chamei de genes
da futilidade. Mas e os testes que prometem determinar se temos risco
aumentado para algumas doenas como cncer, mal de Alzheimer ou outros
problemas genticos? Saber desses riscos vai nos ajudar ou simplesmente nos
angustiar? No estamos contribuindo para aumentar o nmero de
hipocondracos? E o mais importante: quem ir interpretar os resultados? Testes
de dna mexem com probabilidades de doenas que podem assustar os portadores
se no tiverem acompanhamento adequado e explicaes minuciosas sobre o que
se pode fazer a respeito. Mas qual o impacto que esses testes tm na vida das
pessoas que j esto se submetendo a eles? Ser que to significativo?
Bancos de dna so outra questo polmica. As amostras devem ser
decodificadas para garantir o anonimato ou o registro de cada amostra deve ser
mantido em confidencialidade? Quais so os prs e os contras de cada uma
dessas condutas? o que discutimos nos captulos 11 e 12. E se, por um lado, a
tica anda sempre na rabeira dos avanos cientficos, os interesses comerciais
esto sempre na dianteira. A gentica no exceo, como veremos.
E finalmente a clonagem reprodutiva humana. Hoje um risco biolgico
inaceitvel. Mas e se amanh essa tcnica puder ser realizada de maneira
segura? tico ou no? Quem deveria ser clonado? Quem deveria decidir?
Estamos vivendo em uma era invejvel em termos de cincia. Novas
descobertas so anunciadas a cada dia a uma velocidade comparvel gua que
jorra de uma mangueira de bombeiro. Aos poucos, elas interferem na vida de
cada um. No h como escapar. O que h de mais fascinante que nesse mundo
da gentica, que tantos julgam determinista, o que menos h so certezas. A
informao gentica abala alguns dos nossos valores mais importantes, toma
rumos inesperados e traz tona reaes contraditrias. o que pretendi mostrar
neste livro em que conto alguns dos muitos conflitos a que fui exposta ao longo
desses anos. No existe regra de conduta ainda. Cada caso um caso. No
tenho respostas para a maioria deles, mas convido voc, leitor, a refletir junto e
se posicionar ou a concluir quo difcil isso pode ser em algumas situaes. Cabe
sociedade discutir, refletir e decidir: O que tico? Quais so os limites?
Estamos preparados para lidar com a avalanche desses novos conhecimentos?
Captulo 1
Captulo 1
Depois que Joo saiu, descobrimos por acaso que ele fizera parte daqueles
procedimentos que haviam sido testados no passado, quando ainda no tnhamos
decidido que crianas no deveriam se submeter a esses testes. E que,
felizmente, ele no era portador da mutao. Decidimos cham-lo de novo para
explicar o que havia acontecido e dar-lhe a boa notcia. Quando ele entrou na
minha sala, e antes que eu abrisse a boca, ele exclamou imediatamente: Voc
tinha razo, no estou pronto para ser testado. Mas eu no podia mais guardar
aquele segredo. Impossvel descrever a emoo quando Joo soube por que o
havamos convocado. Choramos juntos. Muitos anos depois, eu soube que ele fora
entrevistado por uma jornalista e dissera que no sabia se era portador ou no.
Fiquei surpresa. Ser que havia esquecido? Ele depois nos contou que havia
preferido negar que sabia estar livre da doena para proteger os irmos que no
tinham sido testados e ainda corriam o risco de ter a mutao, mas nada podiam
fazer, por se tratar de uma doena incurvel.
Casais que j tiveram filhos ou parentes afetados por uma doena gentica
podem saber se correm o risco de vir a ter crianas com o mesmo problema e
planejar a sua prole. No caso de uma doena gentica severa, encontram-se
perante delicadas escolhas reprodutivas: no ter filhos biolgicos, optar pela
doao de vulos ou espermatozoides de pessoas no aparentadas, confiar na
sorte e arriscar uma gravidez ou submeter-se ao diagnstico pr-natal. Se o feto
for portador da mutao, vem outro dilema: seguir em frente ou interromper a
gravidez? Outra possibilidade, embora muito mais difcil tecnicamente, e muito
menos conhecida, fazer o diagnstico pr-implantao. Qual a diferena
entre esses dois procedimentos?
Pode-se imaginar o que a seleo do sexo, se for praticada em larga escala, pode
representar. Lembro de um caso que chegou a meu conhecimento. Tratava-se de
um casal proveniente de um pas asitico. Eles explicaram que, pela legislao
daquele pas, o filho mais velho herda todo o dinheiro do pai desde que tenha um
descendente do sexo masculino. Entretanto, o casal tinha duas filhas e queria
indicao de uma clnica para fazer o diagnstico pr-implantao (dpi).
Queriam um descendente de sexo masculino a todo custo. Pagariam qualquer
preo por isso.
Explicamos ao casal que, no Brasil, a Resoluo 1.358/92 do Conselho
Federal de Medicina probe que mdicos atendam a vontade de escolha do sexo
do beb por outro motivo que no seja o risco de doena gentica que s afeta o
sexo masculino, como, por exemplo, em famlias que tm casos de hemofilia ou
distrofia de Duchenne. O marido no se deixou convencer. Disse que, se no
fizessem o dpi, a mulher iria engravidar e, se com o resultado da ultrassonografia
descobrisse que era uma menina, iria fazer o aborto. E mais: disse que tentaria de
novo at ter um filho homem. Isto , a clnica, ao recusar-se a fazer o dpi,
tornava-se indiretamente responsvel pelo aborto de fetos do sexo feminino.
No difcil entender por que esse homem achava tal prtica possvel. Em
alguns pases, a escolha do sexo do beb praticada por vazio legal ou como
experimento. A essas prticas recorrem casais que podem viajar grandes
distncias ou gastar fortunas para gerar seus filhos. E os motivos para a escolha
do sexo do futuro beb so os mais variados. A empresa americana que
desenvolveu o MicroSort, por exemplo, anuncia que os clientes s podem usar a
tecnologia para fins de equilbrio familiar, ou seja, aqueles casais com mais
filhos do que filhas podem escolher ter uma menina, ou vice-versa. Mas no h
como saber se essa regra est sendo seguida. E tambm no d para entender
por que, na cultura ocidental, esse equilbrio familiar de gnero considerado
to significativo a ponto de merecer uma referncia especial. O fato que, em
alguns pases, a escolha do sexo do beb praticada at mesmo margem da lei.
Nos Estados Unidos, no existem leis sobre seleo de bebs, embora muitas
pessoas defendam que as tcnicas de reproduo como a dpi deveriam ter algum
tipo de regulao.
Sou a favor do diagnstico pr-implantao para evitar doenas genticas,
mas no por motivos fteis, como a escolha do sexo. Alis, fico imaginando aquele
adolescente que hoje provoca os pais dizendo eu no pedi para nascer,
vociferando eu no queria ser menina, queria ser homem ou vice-versa. Na
Inglaterra, o rumo dessa discusso tornou-se interessante. Um questionrio foi
enviado em 1993 a um grupo de 2.300 grvidas perguntando se elas preferiam
menino, menina ou se a escolha do gnero era indiferente. A anlise dos
resultados mostrou que, se a populao pudesse escolher o sexo de seus futuros
filhos,isso no causaria um desequilbrio de gnero. A natureza sbia tambm
nesse quesito: dos bebs que nascem no mundo, em mdia, 51% so meninos e
49%, meninas. Mas morrem mais meninos no nascimento, resultando num
equilbrio geral.
Uma pesquisa semelhante, realizada na Alemanha, deu praticamente o
mesmo resultado; o que mostra que no existe uma preocupao to grande pela
escolha do sexo dos futuros filhos entre os ocidentais. Quando existe esse tipo de
preocupao, em 95% dos casos, so famlias que j tm um grande nmero de
crianas do mesmo sexo e querem garantir que o prximo seja diferente. Em
Israel, depois de muito debate, chegou-se seguinte deciso: se um casal tiver
quatro filhos do mesmo sexo, e quiser uma quinta criana, permite-se que utilize
o dpi.
O problema maior ocorre em pases como ndia e China, onde determinados
valores culturais e religiosos, bem como a economia, levaram a uma preferncia
declarada por filhos homens. Em algumas regies pobres da ndia, a proporo de
homens para mulheres de 130 para 100. A preferncia por homens advm em
muitos casos da necessidade de dote, mesmo em famlias de menor poder
aquisitivo, o que torna as mulheres uma desvantagem econmica. Na China,
especialmente, cresce o nmero de nascimento de homens devido ao aborto
seletivo, que, embora seja proibido por lei, praticado em larga escala, j que a
Poltica do Filho nico, estabelecida para barrar o aumento da populao, prev
que os casais s tenham um filho, e a preferncia por menino, sendo essa uma
exigncia cultural ainda profundamente arraigada no povo chins. Se, por acaso,
o beb menina, surge para o casal um gravssimo problema tico e cultural: se
ficar com ela, no pode mais ter o filho homem. A triste realidade normalmente
a morte ou o abandono da menina recm-nascida.
Nos dois pases, a lei probe o uso de ultrassonografia para determinao do
sexo, por receio de que os fetos de sexo feminino sejam abortados. Mas isso no
significa que no acontea. Em 1990, o prmio Nobel de Economia, Amartya Sen,
estimou que havia cerca de 100 milhes de mulheres vivas a menos na sociedade
indiana. Embora outros tenham considerado esse dado superestimado, existe a
preocupao nesse pas de que o desequilbrio de gnero possa significar, em um
futuro prximo, que um grande nmero de homens no vai encontrar mulheres
com quem constituir famlia.
Por outro lado, muito interessante observar que a escolha de um sexo ou
do outro pode mudar em funo de fatores que nada tm a ver com as
preferncias familiares. No Japo, por exemplo, a opo por descendentes
masculinos, que era gritante h 25 anos, mudou radicalmente. Uma pesquisa
realizada em 1999 revelou que 75% dos casais escolheriam uma menina se
tivessem uma s criana. Aparentemente, isso se deve a mudanas na economia e
maior presso social sofrida pelos homens.
O filme Uma prova de amor, baseado no livro My sisters keeper da americana Jodi
Picoult, conta a histria de Anna, uma menina de treze anos que processa os pais
para obter emancipao mdica e os direitos sobre seu prprio corpo. Anna foi
concebida por meio de fertilizao in vitro para ser geneticamente compatvel
com sua irm mais velha, Kate, que sofre de um tipo de leucemia mieloide aguda.
Apesar de ser uma menina saudvel, durante toda a sua vida Anna frequentou
consultrios mdicos, fez cirurgias e transfuses para que sua irm pudesse viver.
At o momento em que, ao completar quinze anos, Kate comea a sofrer de
insuficincia renal e Anna descobre que ser obrigada a doar um de seus rins
para a irm.
Essa uma histria de fico. Mas poderia ocorrer nesse mundo em que j
possvel escolher irmos salvadores gerados por fertilizao assistida. Por essa
tcnica, casais podem selecionar embries imunologicamente compatveis para
serem implantados de modo que, ao nascer, doem o sangue do cordo umbilical
ou da medula ssea para salvar um irmo ou irm. Por exemplo, pacientes
afetados por leucemia, talassemia ou algumas formas de anemias hereditrias
para os quais um transplante a nica salvao. Por isso so chamados de
irmos salvadores.
De minha parte, acho impossvel no ficar emocionada com dramas como esses.
O primeiro de que tive conhecimento foi o caso de Molly. Era um beb
aparentemente normal, mas nos primeiros meses de vida comeou a apresentar
uma grave anemia. Depois de vrios exames, foi diagnosticada anemia de
Fanconi, uma doena gentica (de herana autossmica recessiva ver Para
entender melhor), que faz com que a medula ssea perca aos poucos as suas
funes. A falncia da medula leva no apenas anemia, mas a distrbios
hemorrgicos. A causa mais frequente de morte a leucemia. Era o caso de
Molly, que estava piorando progressivamente. S havia uma soluo para salv-la:
um transplante de clulas-tronco de medula ssea ou de cordo umbilical.
Molly, porm, no tinha doador compatvel. Seus pais decidiram ento ter
outra criana que doaria seu cordo umbilical para a menina, na poca com
cinco anos. Mas existia um agravante: esse futuro irmozinho, alm de no ser
portador da anemia de Fanconi, tambm teria que ter o sangue compatvel. No
era possvel jogar com a sorte. No havia tempo para arriscar. A nica maneira
de garantir isso seria fazer uma fertilizao in vitro, selecionar um embrio
compatvel e implant-lo no tero da me.
Ocorre que isso se deu na dcada de 1990 e, na poca, tal procedimento
nunca havia sido feito. At ento o diagnstico pr-implantao (dpi) s havia
sido oferecido para selecionar embries que no fossem portadores de uma
mutao responsvel por uma doena gentica grave. Nunca se havia pensado em
escolher um embrio que tambm deveria ser compatvel para doar seu cordo
umbilical. Comearam ento os debates envolvendo filsofos, geneticistas,
bioeticistas. tico ou no tico? No havia consenso. Como se sentiria essa
criana gerada para salvar sua irm? Isso no seria injusto com ela? Eram
ponderaes levantadas em torno da discusso.
O resto da histria me foi relatado pelo prprio mdico de Molly e pioneiro
da tcnica de dpi, Mark Hughes. Ele conta que, um belo dia, o pai da criana
entrou no seu laboratrio. Estava desesperado e tinha o rosto transtornado. Com
um murro na mesa, comeou a esbravejar: Enquanto vocs ficam tentando
decidir o que certo ou errado, a minha filha est morrendo. As pessoas querem
ter filhos pelas mais diferentes razes. Porque se sentem ss, por causa de uma
herana, porque querem algum para cuidar deles durante a velhice, at para
tentar salvar um casamento. Por que no podemos ter uma criana para salvar
nossa filha que est morrendo? Vamos am-la do mesmo modo que amamos
Molly!.
Foi nesse momento, conta o dr. Hughes, que ele se decidiu. Sabia que no
seria fcil, mas iria ajudar aquele casal. Fizeram uma primeira tentativa de
selecionar um embrio compatvel com Molly, mas a me no ficou grvida. Na
segunda tentativa, ela engravidou, porm teve um aborto depois de dois meses. A
terceira tentativa foi bem-sucedida. Hoje, Molly uma moa saudvel com a vida
pela frente. Seu melhor amigo? Adam, seu irmo mais novo.
Quem poderia condenar casais que recorrem a essa tecnologia para salvar um
filho? Nos Estados Unidos, atualmente, depois da divulgao de casos como esse,
a prtica j est estabelecida. Mas as questes ticas a ela associadas, e que
levaram ao filme e ao livro de Jodi Picoult, preocupam especialistas de outros
pases. Na Inglaterra, pas pioneiro na fertilizao in vitro desde o nascimento da
primeira criana, Louise Brown, em 1978, e onde, no por coincidncia, as
discusses ticas sobre temas correspondentes esto mais adiantadas, essa
prtica legal, mas s com aprovao da autoridade mdica, como ficou
estabelecido no Human Fertilisation Embryology Act (hfea).
Essa aprovao, no entanto, no concedida se for constatado que a
criana foi gerada no porque os pais desejassem mais um filho, mas s para
tentar salvar um irmo doente ou condenado. Foi o que levou a resultados
diferentes os dois casos que relato a seguir.
No primeiro, o casal Raj e Shahana Hashmi tinha um filho de trs anos, Zain,
portador de talassemia, uma doena gentica caracterizada pela impossibilidade
de fabricar hemoglobina. O paciente obrigado a receber transfuses
sanguneas frequentes at que a nica soluo para mant-lo vivo um
transplante de medula de doador compatvel. O pai e a me de Zain eram
portadores da mutao que causa a doena, o que significava que havia uma
chance de 25% de que um outro filho tambm a tivesse. Mesmo assim, Raj e
Shahana queriam ter mais filhos. Tiveram Haris, concebido de forma natural, e
que felizmente no tinha talassemia, mas cujo sangue no era imunologicamente
compatvel com o do irmo mais velho.
Sem poder receber o transplante do irmo, a sade de Zain se deteriorava
rpido. Os Hashmi procuraram desesperadamente um doador nos bancos de
medula e cordo umbilical, mas nada encontraram. Como o casal queria ter mais
filhos, resolveram que o prximo beb, alm de saudvel, deveria ajudar a salvar
Zain. A histria teve um final feliz: a autoridade mdica deu permisso para que
fosse realizada a fertilizao in vitro e para o diagnstico pr-implantao, com o
objetivo de selecionar um embrio que no tivesse as mutaes para talassemia e
que fosse tambm compatvel. E assim o menino primognito foi salvo.
No segundo caso, o desfecho foi diferente. Michelle e Jayson Whitaker j
tinham uma criana de trs anos, Charlie, que sofria de uma doena rara
chamada anemia de Blackfan-Diamond (dba), na qual a medula ssea produz
pouqussimas clulas vermelhas (hemoglobina). Isso obriga a criana a fazer um
esforo incrvel para que o corao bata regularmente e o oxignio possa circular
pelo organismo. A doena pode levar fadiga e ao cansao crnicos, alm de
irritabilidade, fazendo com que a pessoa se sujeite a uma vida de transfuses
dirias e remdios.
Nesses casos, o transplante de uma medula ssea compatvel pode ajudar. A
busca, no entanto, resultou infrutfera. Foi quando o casal constatou que, se
tivesse outro filho imunologicamente compatvel, haveria 90% de chance de fazer
com que Charlie pudesse ter uma vida igual de outras crianas de sua idade.
Mas havia uma diferena em relao situao do menino Zain: apesar de
representar um grande sofrimento, a dba no uma doena mortal. Charlie no
corria o risco de morrer jovem. Mesmo assim, como no caso dos Hashmi, os
Whitaker requereram autorizao do Departamento de Sade ingls para fazer
fertilizao e dpi, afirmando que desejavam ter um outro filho de qualquer jeito
e, portanto, essa no seria uma criana nascida apenas para salvar o irmo. A
questo foi submetida ao hfea.
Apesar de os dois casos serem parecidos, havia uma diferena sutil. Para a
autoridade mdica britnica, o procedimento, no caso dos Hashmi, era do
interesse tanto do futuro beb como de Zain, ou seja, o dpi era necessrio para
garantir que ele no teria talassemia e, portanto, nasceria saudvel. E, j que
seria selecionado um embrio livre da doena, por que no acrescentar mais um
fator, a compatibilidade sangunea, para que o futuro beb servisse como doador?
Porm, no caso dos Whitaker, o entendimento foi diferente. A anemia de
Charlie no era hereditria e, alm disso, era muito rara. Isso significava que a
chance de que seus pais tivessem outro filho com a doena no era maior do que
na populao em geral (cinco a sete em 1 milho) e, portanto, um embrio
concebido de forma natural dificilmente teria o mesmo problema. No
entendimento da lei britnica, somente embries com risco de ter a mesma
doena podem ser selecionados por dpi. A solicitao foi rejeitada.
Ser que essa deciso no foi rigorosa demais? Estamos preparados para
decidir questes to ntimas de cada casal? Temos esse direito? No sei qual foi o
seguimento desse caso, mas, nos Estados Unidos, por exemplo, pais de filhos com
leucemia ou com anemia podem selecionar embries para que os futuros bebs
doem clulas do cordo umbilical para seus irmos doentes, se assim o desejarem.
A escolha fica por conta dos pais, que, afinal de contas, so as pessoas que devem
saber melhor por que querem ter filhos. Essa deciso, no entanto, deve ser
tomada aps orientao dos geneticistas para que o casal tenha plena
conscincia dos prs e contras da atitude que tomou.
Alan Handyside, especialista em reproduo assistida, assina um artigo na
revista Nature no qual faz um balano dos vinte anos desde o primeiro dpi: como
comeou, o que possvel hoje e as perspectivas futuras. No artigo, intitulado
Let parents decide [Deixem os pais decidirem], ele defende que genitores
quando bem informados so geralmente melhores juzes do que a obedincia a
uma lei padronizada, quando o objetivo decidir sobre o uso dessa tecnologia.
Devo dizer que concordo com ele: no caso de doenas genticas, quem
convive com elas sabe melhor do que ningum se quer ou no que elas sejam
transmitidas. Mas a questo bem mais delicada, principalmente no caso de
doenas dominantes (risco de 50% de transmitir o gene defeituoso para a
descendncia), nas quais um dos cnjuges afetado. Se for a prpria pessoa que
tem a doena gentica, e que decide no querer ter filhos afetados, no h o que
discutir. Ela, melhor do que ningum, sabe as dificuldades que tm com aquele
problema. Por outro lado, as pessoas aceitam e lidam com seus problemas de
maneiras diferentes. Lembro-me de um dia no qual, por coincidncia, atendi duas
consulentes afetadas pela mesma doena neuromuscular. Uma era dentista e a
outra psicloga. Ambas estavam na casa dos trinta anos e eram casadas. A
dentista j tinha uma filha e queria engravidar de novo. No se incomodava muito
com o risco gentico. No considerava a doena um grande empecilho na sua
vida. J a psicloga se recusava terminantemente a colocar filhos no mundo com
aquele problema.
Mas h situaes nas quais o marido o afetado e a mulher declara que no
quer ter filhos com aquela doena, ou vice-versa. Fico sempre incomodada nesses
casos. Como se sente o cnjuge doente quando ouve isso? Ser que o recado que
recebe do seu parceiro(a) : voc no deveria ter nascido?
Concordo que estabelecer limites para a realizao do dpi ainda vai dar muito o
que falar nas prximas dcadas. Acho importante que, nos pases onde a tcnica
est evoluindo rapidamente, como na Inglaterra, essas questes sejam discutidas
e haja legislao a respeito. Pode ser que, no futuro, casos como o de Charlie
ou mesmo aquele relatado no filme venham a ser um problema ou no. Por
outro lado, como garantir a um casal, ou a uma famlia, que no haver
problemas aps o nascimento? Que no haver dificuldades de relacionamento
entre irmos ou paise filhos? No Brasil, onde a situao ja serviu ate de tema de
novela, sabemos de casos esporadicos de irmaos que nasceram com essa
incumbencia, mas nao acompa nhamos suas vidas. Seria interessante saber como
evoluf ram essas hist6rias.
Captulo 7
Captulo 7
A cada vez que olhamos o genoma humano descobrimos mais perguntas sobre a
nossa intrincada biologia. Mesmo agora, ainda existem regies no sequenciadas
do genoma e genes a serem descobertos. Descobrimos tambm que temos um
nmero muito menor de genes do que imaginvamos algo como 21 a 22 mil. E
que estes possuem inmeros mecanismos para produzir protenas diferentes, o
que explica por que no precisamos de um nmero to grande deles como se
imaginava antes do sequenciamento executado pelo Projeto Genoma Humano.
Descobrimos ainda que o rna, que se supunha ser um mero transportador de
informaes, pode influenciar o comportamento de nossos genes de muitas
maneiras. E, mais importante ainda, descobrimos que tanto quanto existe uma
diversidade infinita de espcies do mundo vivo, existe tambm uma diversidade
enorme entre indivduos no seio da mesma espcie. Alis, o prprio Craig Venter
se encarregou de comprovar essa tese. Ele foi o primeiro ser humano, antes
mesmo de James Watson, a ter todo o seu genoma descrito, o que permitiu
comparar os resultados obtidos com um banco de dados de referncia do Projeto
Genoma Humano, demonstrando que havia muitas variaes entre os dois mapas.
Isso mostra que somos substancialmente mais diferentes uns dos outros do
que especulvamos, e isso uma boa notcia para a humanidade, afirmou Craig
Venter na poca. Eu gostaria de acrescentar: nem poderia ser diferente. essa
variedade de aptides fsicas e mentais que confere s populaes humanas suas
possibilidades de responder aos desafios do ambiente, suas ferramentas para
progredir em sociedade, desenvolver culturas ricas, criar e ter comportamentos
diferentes. isso que faz com que a espcie humana tenha modelos de beleza
como Gisele Bndchen, atletas e medalhistas olmpicos como os nadadores Ian
Thorpe ou Cesar Cielo, msicos da estirpe de Miles Davis e tantos outros.
Portanto, todo tipo de homogeneizao, destinada a contribuir para a criao de
indivduos iguais ou normais, ideais ou perfeitos, s tende a empobrecer a todos
ns.
No h genes timos ou normais, mas apenas colees de genes que nos
permitem viver e reproduzir com sucesso hoje e, principalmente, que podem ser
diferentes dos considerados normais de amanh.
Embora essas riqueza e variao sejam to importantes, elas tornam a cura das
doenas mais difcil. Se tudo fosse uniforme, o Projeto Genoma Humano teria
desvendado a causa e alcanado a cura de doenas graves, como diabetes e
cncer. No teriam sido nenhum exagero as promessas feitas na poca. O
resultado do trabalho seria de fato um manual, o livro da vida. O mdico leria o
dna do paciente e procuraria por algum gene ou mutao diferente
potencialmente responsvel por aquela doena. Se encontrasse alguma alterao
conhecida, prescreveria um tratamento que atuasse direto naquele gene. E tudo
estaria acertado.
Mas as coisas no so assim to simples. Da a demora de apresentar
resultados concretos, o que tambm uma queixa dos crticos do Projeto
Genoma Humano. Alis, para entender melhor essa demora, preciso explicar
que esse projeto teve duas fases. Da primeira, ou seja, do sequenciamento dos
bilhes de unidades qumicas que formam a populao humana, o Brasil
participou pouco. Concentramos nossos esforos em desenvolver conhecimento
nessa rea, fazendo o sequenciamento completo de uma espcie menor a
Xylella fastidiosa, a praga do amarelinho. A proposta inicial era aumentar o nmero
de laboratrios e de pesquisadores na rea de biologia molecular e de
bioinformtica e aprender a trabalhar em conjunto para conhecer o genoma
utilizando dados obtidos pelos sequenciadores. Depois de muitas discusses, foi
escolhida a Xylella, por ter um tamanho possvel de ser sequenciado em dois anos
naquela poca e pelo seu interesse econmico. Os resultados foram muito
alm da expectativa. Reunimos quase duzentos cientistas em 34 laboratrios.
Conseguimos sequenciar o primeiro patgeno de plantas no mundo, demos um
salto no desenvolvimento da bioinformtica e fomos capa da prestigiosa revista
cientfica Nature em 2000. O Brasil deixou de ser conhecido internacionalmente
apenas como o pas do carnaval, das praias e do futebol. Mostramos ao mundo
que dominvamos a tecnologia de ponta do sequenciamento de dna. O ento
governador de So Paulo, Mario Covas, quis comemorar a nossa conquista
reunindo todos os participantes em um evento na Sala So Paulo. Nunca esqueci
a emoo daquele momento. No caminho havia faixas dizendo: So Paulo tem
orgulho de seus cientistas. Eu me senti como um jogador de futebol voltando ao
Brasil aps ganhar a Copa. Depois disso, nosso conhecimento continuou a evoluir,
com o desenvolvimento de uma tcnica que permitiu resultados muito mais
rpidos, ao sequenciar a rea central dos genes, utilizada para entender melhor
alguns tipos de cncer de estmago, boca, colo de tero, que no eram o objetivo
de muitas pesquisas no exterior.
Vrias pessoas me perguntam se participamos diretamente no Projeto
Genoma Humano. Na realidade, nosso grupo no esteve envolvido de forma
direta no processo de sequenciamento, ou na identificao das letrinhas, as
famosas atgc. Mas tivemos e continuamos a ter um papel importante no
chamado Genoma Funcional, que , na realidade, a segunda fase do projeto e seu
objetivo maior: entender a funo dos genes. Nossa atuao se deve ao fato de se
tratar da continuao do trabalho que j executvamos no Centro de Estudos do
Genoma Humano.
A natureza de nossas pesquisas fazer o mapeamento de genes responsveis
por vrias doenas e descobrir quais so as suas funes a partir do estudo de
genealogias com doenas genticas. Se constatamos que h vrias pessoas
afetadas em uma mesma famlia, esse um sinal da existncia de um gene
defeituoso (s vezes mais de um), que pode estar causando aquela doena.
Quando procuramos esse gene desconhecido, o primeiro passo o mapeamento,
isto , saber em que regio, dentre os 23 pares de cromosso a mutao ou erro
gentico que est sendo transmitido naquela famlia de modo a causar aquela
patologia.
Mal comparando, como achar uma casa onde h um vazamento de gua,
na cidade de So Paulo, sem endereo. o que chamamos de mapear. Uma vez
achada a casa, precisamos descobrir por que est havendo o vazamento. Cano
furado? Encaixe malfeito? O terceiro passo tentar entender qual a funo
daquele gene, qual o seu papel no organismo. Isto , quem mora naquela casa e
o que eles fazem. Entender a funo do gene fundamental para saber como ele
funciona normalmente e por que ele responsvel por uma doena gentica
quando existe uma mutao. A partir da, a ideia desenhar estratgias para
corrigir seu mau funcionamento.
No incio, antes do Projeto Genoma Humano, achar um gene novo, ou a tal
casinha sem endereo em uma cidade como So Paulo, era um trabalho
gigantesco. Representava uma aventura que podia levar anos. Hoje, com o
desenvolvimento da tecnologia de sequenciamento e as informaes do Projeto
Genoma Humano armazenadas em bancos de dados, podemos fazer isso bem mais
rapidamente, s vezes em dias. D para entender agora o meu entusiasmo com o
projeto?
Mas, de novo, preciso enfatizar que essas pesquisas no so simples. s
vezes, os genes esto ligados diretamente a determinadas doenas. Um nico
defeito em determinado gene suficiente para causar uma patologia. Mas, na
maioria dos casos, achar mutaes patognicas e saber o que elas fazem pode ser
uma tarefa rdua. O Centro de Estudos do Genoma Humano tem contribudo
com uma participao importante nessa rea. Identificamos cerca de vinte genes
novos, descobrimos a funo de vrios deles e hoje estamos pesquisando novas
estratgias para corrigir o defeito pelo qual so responsveis.
O estudo do genoma tambm tem permitido descobrir que, para algumas
doenas, pessoas portadoras da mesma mutao podem ter um quadro clnico
discordante, variando desde uma forma grave at ausncia de sintomas. Isso
demonstra que muitas mutaes ditas patognicas podem no ser
determinantes por si s de uma patologia e que outros fatores interferem na
expresso dos genes. A identificao desses fatores que protegem algumas
pessoas dos efeitos deletrios de determinado gene abre um leque enorme para
futuros tratamentos. E mais uma evidncia de que no h determinismo
gentico.
Por outro lado, a resposta individual aos medicamentos, isto , por que um
mesmo remdio pode ser benfico, incuo ou prejudicial para diferentes pessoas,
tambm depende em grande parte de nossos genes. Por exemplo, a velocidade
com a qual metabolizamos uma droga depende de nosso perfil gentico. Se
formos metabolizadores rpidos, precisamos de doses maiores porque a droga
ser rapidamente eliminada do organismo. Mas, se formos metabolizadores
lentos, uma mesma droga, que pode ser benfica para uma pessoa, poder ter
efeitos txicos e se acumular no nosso organismo. De fato, milhares de pessoas
morrem todos os anos por causa dos efeitos adversos de drogas.
Outras situaes ainda mais complexas, que vo dar margem a muitas discusses,
comeam a aparecer. Ningum pode se opor s terapias genticas destinadas a
diminuir ou atrasar a degenerao progressiva da distrofia muscular, certo? Mas
e se essa mesma terapia fosse usada para melhorar o desempenho dos atletas?
Pois foi estudando o problema da degenerao muscular da distrofia e de
idosos que o geneticista H. Lee Sweeney, da Universidade de Pensilvnia,
descobriu genes que controlam o mecanismo de crescimento das clulas dos
msculos. Sweeney isolou esses genes e os introduziu num vrus aparentemente
incuo. Depois injetou o vrus na musculatura de camundongos. Deu certo: os
camundongos com os genes modificados tiveram um aumento de 15% a 20% da
massa muscular e, quando submetidos a exerccios fsicos, se tornaram 50% mais
fortes. A linhagem de animais com essas caractersticas foi apelidada de ratos
Schwarzenegger e representou na poca uma das esperanas de tratamento
futuro para os portadores da distrofia muscular.
S que, assim que a pesquisa se tornou conhecida, Sweeney comeou a
receber telefonemas de treinadores e atletas perguntando se esse mesmo
aumento de musculao poderia ser obtido em humanos. E se houvesse a
possibilidade de obter um medicamento desse tipo, qual seria a probabilidade de
rastrear a sua presena no organismo em testes antidoping? O alerta foi dado no
comit olmpico e o caso foi levado a srio a tal ponto que a Agncia Mundial
Antidoping incluiu o doping gentico na lista de procedimentos proibidos, antes
mesmo de ele existir.
Mas suponha que seja possvel introduzir fatores de crescimento dos
msculos na seleo de embries com determinadas caractersticas. Se voc
tivesse a opo de escolher, e fosse apaixonado por esportes, no ficaria tentado
a fazer com que seus filhos tivessem o fsico ou a habilidade de um jogador de
futebol? Ou de um atleta de olimpada? Se ele nascesse com essas
caractersticas, em vez de competir em igualdade de condies, j estaria
geneticamente em vantagem. Seria tico ou no?
E a beleza ento? Um corpo e rosto bonitos no abririam todas as portas
para quem sonha com uma filha artista de cinema ou vencedora de um concurso
de miss?
E o que dizer daqueles que recorrem ao dpi porque querem selecionar embries
que sejam semelhantes a eles, como no caso da surdez, que j mencionamos? Nos
Estados Unidos, embora a questo seja controvertida, algumas clnicas oferecem
essa opo. O argumento dos pais que a surdez no um defeito, mas uma
cultura lingustica a ser preservada. Defendem que seus filhos tm o direito ao
silncio. Por um lado, muito reconfortante saber que pessoas sem audio
esto to bem adaptadas que no achem que passar essa caracterstica a seus
filhos possa prejudic-los. Outra coisa usar o dpi para ter certeza que no iro
gerar descendentes com audio normal.
O direito ao silncio? Concordo que todos ns gostaramos de ser surdos s
vezes. Mas isso tem que acontecer por opo nossa, e no por uma imposio
irreversvel. No h dvidas de que, por mais bem adaptada que seja, uma pessoa
que no ouve tem mais dificuldades em vrias situaes, como falar ao telefone,
prevenir alguns perigos, aprender outra lngua ou viver em outro pas. Alm disso,
justo privar uma pessoa das emoes da msica, de ouvir o rudo do mar, o
choro do beb? justo que os pais determinem que a comunicao dos seus filhos
com o ncleo familiar seja mais importante que a sua comunicao com o
mundo?
Ser que esquecemos que nossos filhos no so nossos? Sobre isso, gostaria
de relembrar as palavras do clebre pensador libans Khalil Gibran: Seus filhos
no so seus filhos. So os filhos e filhas da vida desejando a si mesma. Eles vm
atravs de vocs, mas no de vocs. E, embora estejam com vocs, no lhes
pertencem. Vocs podem lhes dar amor, mas no seus pensamentos, pois eles tm
seus prprios pensamentos. Vocs podem lutar para ser como eles, mas no
procurem torn-los iguais a vocs. Vocs so o arco de onde seus filhos so
lanados como flechas vivas.
Captulo 9
Captulo 9
H muito o que fazer ainda e um longo caminho a ser percorrido. Na atual fase,
no sabemos como controlar as clulas-tronco embrionrias para fazer
exclusivamente o que queremos, isto , diferenciar-se apenas em um tecido
especfico para que cresam somente o necessrio, alm de descobrir o melhor
mtodo para transplant-las. Muitas vezes, como uma criana malcriada, elas se
comportam de modo independente, sem nos obedecer. Assim, imagine que a
nossa inteno utiliz-las para formar clulas nervosas, fundamentais para
tratar inmeras doenas, como o mal de Parkinson, doenas neuromusculares ou
neurolgicas ou pessoas que se tornaram paraplgicas ou tetraplgicas por
acidente. S que, ao injetar as clulas na medula de uma pessoa, perdemos o
controle e elas decidem que, em vez de neurnio, vo formar osso. Imagine o
desastre. Outras questes esto sendo investigadas. Ainda no temos certeza, por
exemplo, de que as clulas-tronco vo chegar ou permanecer no rgo-alvo. E
no sabemos qual o risco de formao de tumores, ou seja, a sua replicao
indefinidamente.
Tudo isso leva tempo. Novas ideias precisam ser testadas como estamos
fazendo: primeiro no laboratrio, em culturas de clulas, e depois em modelo
animal. s vezes,o que parece promissor no laboratrio no funciona em modelo
animal. E, s vezes, o que funciona em animais no funciona em humanos. Se um
novo tratamento no for planejado com cuidado, provvel que no tenha o
efeito desejado. E o mais preocupante: ele pode at piorar a doena ou causar
efeitos colaterais perigosos. S depois de aprendermos tudo isso e tivermos
segurana de que no estamos colocando em risco a vida de pessoas que ser
possvel oferecer tratamento.
Explicado isso, h duas questes ticas que eu gostaria de ver em discusso.
A primeira diz respeito ao rigor com que os comits de tica tratam as questes
de pesquisa mdica. Em pesquisas clnicas realizadas com responsabilidade,
necessrio primeiro que se tenham dados pr-clnicos, em modelos animais,
confirmando que o tratamento seguro e potencialmente eficiente. O estudo
precisa ser desenhado de modo a responder s questes especficas e sempre
comparado com um grupo controle no submetido ao tratamento. O
financiamento feito por companhias que esto desenvolvendo o tratamento
(por exemplo, novos medicamentos) ou agncias de pesquisas. Antes de ser
iniciado, o protocolo precisa ser revisto por um comit independente para a
proteo dos direitos dos pacientes. Em muitos pases, existe uma agncia
regulatria nacional como a European Medicines Agency (ema) na Comunidade
Europeia, e o Food and Drug Administration(fda) nos Estados Unidos. No Brasil,
as pesquisas so reguladas pela Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria
(Anvisa), alm dos comits locais do Conselho Nacional de tica em Pesquisas
(Conep).
Concordo que preciso total e completa segurana antes de tratar pessoas
que se tornaram paraplgicas ou tetraplgicas devido a acidentes, ou crianas
acometidas por paralisia cerebral. Essas crianas possuem deficincias que
fazem com que tenham a vida dificultada, dependendo de suas limitaes e
daquelas impostas pela sociedade, mas no correm risco de morrer. Podem
esperar at que as pesquisas se tornem mais seguras. Mas o que dizer de casos de
doenas rapidamente progressivas e letais, como a esclerose lateral amiotrfica
(ela), que afeta as clulas nervosas responsveis pelo controle dos msculos? Um
ano de espera e pode ser tarde demais.
Nesses casos, defendo que poderamos ousar mais. No estou falando,
claro, que devemos fazer alguma loucura. Falo em testar drogas que esto sendo
descobertas o tempo todo ou novas fontes de clulas-tronco. Nos Estados
Unidos, as primeiras experincias teraputicas em seres humanos esto
comeando. E o melhor que diferentes pesquisas clnicas esto sendo testadas
no que se refere segurana do procedimento, de modo que sua eficincia
poder ser comparada.
Quando leio sobre isso, costumo me lembrar da histria do primeiro
transplante de corao humano. Em 3 de dezembro de 1967, o cirurgio sul-
africano Christiaan Barnard tomou a deciso corajosa de tentar salvar a vida de
um paciente por meio dessa tcnica arriscada, considerando que no havia outra
alternativa. Esse primeiro paciente s sobreviveu dezoito dias, mas muitos
milhares de pessoas foram salvas desde ento, e o procedimento tornou-se
relativamente comum hoje. No seria o caso de tomar a mesma atitude agora?
interessante observar as discusses entre cientistas e mdicos. Enquanto os
primeiros querem entender todos os mecanismos envolvidos para se sentirem
seguros quanto aos procedimentos, os mdicos esto vendo seus pacientes
morrerem. Onde est o ponto de equilbrio? Temos que dirigir de modo seguro,
mas e quando estamos em uma ambulncia com um paciente correndo risco de
morrer se no chegar logo ao hospital?
Essa primeira discusso remete segunda questo tica que tambm gostaria
que fosse aprofundada. Ser que no a nossa excessiva cautela na aceitao de
novos procedimentos que atrasa a sua definio e acaba se tornando a
responsvel pela ida de pacientes desesperados a clnicas no credenciadas,
geralmente em pases distantes, que oferecem tratamentos carssimos e sem
comprovao cientfica? Sem falar dos custos financeiros, que podem arruinar os
pacientes e suas famlias, a probabilidade de haver algum benefcio muito baixa,
e existem riscos de complicaes imediatas ou a longo prazo que podem ser
perigosas. Alm disso, a prtica no traz nenhum retorno para a cincia. Tais
procedimentos envoltos em mistrio no tm protocolo de pesquisa, no sabemos
o que utilizado, no h acompanhamento dos pacientes e nem comparao dos
resultados. Mas os sites que os oferecem mostram vdeos ou depoimentos de
pessoas que declaram ter melhorado aps o tratamento. Desconfie de clnicas
que fazem propaganda dos seus resultados utilizando depoimentos de pacientes.
So pessoas que ganham para fazer isso ou realmente acreditam ter se
beneficiado?
Elas podem at no estar sendo movidas por m-f. Muitas pessoas talvez se
sintam aparentemente melhor depois de um tratamento que julgam ser capaz de
salv-las. Por exemplo, podem se confundir quando seguem ao mesmo tempo
outros tratamentos convencionais que so realizados com mais rigor juntamente
com a aplicao das clulas-tronco, como fisioterapia, hidroterapia, estimulao.
H tambm a flutuao natural da doena existem dias em que nos sentimos
melhor e em outros, pior. Talvez o mais importante seja o desejo intenso ou a
crena de que vo melhorar. o efeito placebo, que pode ter resultados
positivos, independentemente do tratamento. Por isso, uma terapia s
considerada benfica em experincias com controles no tratados. Isto , um
grupo recebe injees com clulas-tronco, o outro no. Nem o paciente e nem
quem avalia os resultados sabe quem est recebendo este ou aquele tratamento.
Esses ensaios so chamados de duplo-cegos.
Mas voltando aos supostos tratamentos experimentais: clulas-tronco de
embries, de fetos abortados, de cordo umbilical, gordura, sangue, medula
ssea, o que utilizado? Ningum sabe. Tomei conhecimento de vrios casos de
pessoas desesperadas que resolveram fazer um suposto tratamento com clulas-
tronco oferecido na China a um alto custo de 20 mil a 50 mil dlares. Quando
me perguntam a respeito, respondo que se trata, literalmente, de um negcio da
China. Para esses chineses claro, que enriquecem a olhos vistos, no para os
pacientes. Milhares de pacientes j foram para l desembolsando muito dinheiro
para o tratamento, sem falar dos custos da viagem e hospedagem. O tratamento
para leses da medula, no Xishan Hospital, em Pequim, coordenado pelo mdico
que todos chamam dr. Huang, supostamente se vale de clulas do trato olfativo
de fetos abortados, mas isso nunca foi mostrado em congressos cientficos. O
mdico tambm afirma que seus pacientes melhoram, em geral, trs dias aps o
procedimento, o que completamente contrrio ao que costuma ocorrer nos
animais em experimentos de laboratrio e vai contra o senso comum (demora
algum tempo para as clulas chegarem a seu destino, se dividirem e repovoarem a
rea lesada).
O dr. Huang no relata o que acontece com seus pacientes a longo prazo.
Os pacientes recebem alta logo depois das injees e no so acompanhados por
essa equipe chinesa. O que acontece depois de um ou dois anos? Nesse sentido,
extremamente importante ler o artigo cientfico de trs especialistas americanos
(Bruce Dobkin, Armin Curt e James Guest) que conseguiram avaliar sete
pacientes com leso de medula, submetidos ao tratamento chins. O trabalho foi
publicado na revista Neurorehabilitation and Neural Repair. assustador. Trs deles
tiveram meningite e dois tiveram febre que precisou ser tratada com antibitico.
E o pior de tudo: nenhum deles apresentou melhora funcional.
Lembro de outro caso noticiado nos jornais sobre um jovem israelense de
dezessete anos, vtima de uma forma rara de ataxia, que desenvolveu tumores
aps transplante de clulas-tronco. No se tratava de uma pesquisa teraputica,
feita por cientistas respeitados, que no deu certo. Muito pelo contrrio. A
equipe mdica israelense que acompanhava o jovem desaconselhou o
procedimento. As injees foram feitas em uma clnica em Moscou sem qualquer
credenciamento. Apesar dos alertas, desesperada com a gravidade da doena, a
famlia insistiu e foi adiante. Aparentemente, o rapaz recebeu clulas-tronco
neurais obtidas de fetos. No se sabe qual a origem das amostras e como as
clulas foram isoladas. Nesses casos, h risco de contaminao em cultura por
bactrias ou vrus patognicos, entre outros problemas. O prprio processo de
retirada e injeo de clulas-tronco tambm envolve riscos. A anlise dos
tumores mostrou que havia clulas de pelo menos dois doadores, um deles do sexo
feminino. O que no quer dizer que foram s dois. Podem ter sido mais. Ou seja,
ele recebeu um coquetel de injees com clulas no caracterizadas. O que
torna impossvel qualquer concluso cientfica at para aprender com os erros do
tratamento.
Nos pases europeus e nos Estados Unidos, os testes genticos esto se tornando
um produto acessvel e, o pior de tudo, banal. Laboratrios oferecem a qualquer
pessoa a possibilidade de investigar a propenso a doenas futuras, como cncer
de intestino e de mama, problemas cardacos, diabete e at mesmo a expectativa
de viver mais de cem anos, como foi anunciado recentemente em pesquisa que
sugere que a longevidade tem componentes genticos. Alguns oferecem testes
para analisar caractersticas to irrelevantes que as chamei de genes fteis.
Entre elas esto a cor dos olhos, a cor e a textura do cabelo (crespo ou liso), a
presena ou no de sardas, a reao de espirrar com a luz do sol. Existem outras
que chegam a ser at ridculas, por exemplo, se voc tem tendncia a ter cera
mida ou seca no ouvido (deve ser importante para escolher que cotonete usar,
imagino) ou se voc sensvel ou no ao cheiro de uma substncia liberada na
urina quando come aspargos.
As anlises de dna ganharam espao, pois novas empresas criadas no boom
dos avanos da tecnologia digital conseguiram aumentar em dez anos mais de 50
mil vezes a eficincia dos testes, com uma queda espetacular de custos. Isso
representou uma exploso de demanda e um enorme mercado fcil de contentar.
Os testes so realizados a partir da saliva dos clientes que recebem o kit em casa
e podem checar os resultados nos sites. Algumas tambm oferecem informaes
sobre a origem geogrfica e as caractersticas tnicas dos antepassados mais
remotos. Provavelmente vo acabar desvendando vrios casos de falsa
paternidade, um problema que, como j vimos, aparece com frequncia quando
realizamos testes genticos em famlias com afetados.
H at a possibilidade de compartilhar as identidades genticas com amigos,
como se estivesse em um site de relacionamento do tipo Facebook. A moda se
espalhou tanto que, em 2010, a rede americana de farmcia Walgreens chegou a
anunciar seu plano de vender kits de testes genticos personalizados. Mas teve
que voltar atrs quando o Food and Drug Administration (fda), a agncia que
regula o setor de medicamentos, alertou que os testes precisavam de aprovao
antes de serem comercializados. Valeu tambm a constatao de que, sem
regulamentao, cada laboratrio tinha seu prprio mtodo de anlise de
controle de qualidade dos procedimentos, oferecendo resultados s vezes
conflitantes para a mesma pessoa.
Qual a reao dos mdicos e geneticistas ao boom dos testes sem orientao?
fcil imaginar. Pense qual o efeito de saber que voc tem propenso para uma
doena grave, ou sem cura, como o mal de Alzheimer, por exemplo, e no pode
fazer nada para evitar. Alm disso, podem se descobrir algumas mutaes que
tm implicaes reprodutivas, isto , que voc tem um risco aumentado de
transmitir certas doenas para seus filhos. Como lidar com essas informaes?
Como interpretar esses testes sem o conhecimento suficiente para entender o
que significam? Para a populao no especializada, eles no podem ser
considerados profetas da sade ou da doena?
Coletar uma amostra de sangue ou de saliva para um teste de dna muito fcil.
Mas fundamental que, antes de se submeter a exames genticos, a pessoa saiba
por que est sendo testada e qual o benefcio que ter se o resultado for positivo.
Ou negativo. Ter predisposio a determinadas doenas no significa que se v
desenvolv-las. Sua incidncia depende de outros fatores, como os hbitos e o
estilo de vida. por isso que causou sensao o artigo na revista New England
Journal of Medicine do geneticista David B. Goldstein, da Universidade de Duke. Em
meio ao sucesso dos testes, Goldstein afirmou que, com algumas poucas
excees, o que as empresas esto fazendo nesse momento no passa de
genmica recreativa. A informao fornecida por elas tem pequena, ou, em
muitos casos, nenhuma relevncia.
Concordo com ele. O sequenciamento do genoma humano foi, e continua
sendo, muito importante para servir de parmetro e identificar possveis
diferenas entre os genomas dos pacientes saudveis e doentes. Mas sabemos
hoje que os mecanismos que causam doenas so muito mais complexos e
dependem geralmente da interao de fatores genticos, epigenticos
(alteraes na expresso dos genes) e ambientais. Embora possam ser
mensurveis, as diferenas observadas em alguns genes testados por essas
companhias no so suficientes para predizer os riscos de inmeras doenas
comuns. Por outro lado, no caso de doenas graves, os testes genticos podem
ser extremamente teis para o diagnstico e a preveno dessas condies. O
Centro de Estudos do Genoma Humano uma prova do que possvel fazer para
evitar a transmisso de mutaes que causam doenas para os descendentes.
Mas explicar o significado das informaes genmicas associadas a problemas
mdicos requer especialistas altamente treinados e dispostos a passar s vezes
horas com os consulentes. O processo de aconselhamento gentico inclui exames
para confirmar o diagnstico, testes para saber se h risco de repetio para
futuros filhos ou parentes prximos, orientao em relao doena e ao risco
gentico.
Isso tudo requer uma equipe multidisciplinar de profissionais de sade,
incluindo mdicos, geneticistas, bioeticistas e psicanalistas. Alm das anlises
clnicas e genticas, a parte mais difcil explicar aos consulentes o que
significam os resultados, o que a doena, o prognstico, o que pode ser feito,
como evitar ter descendentes afetados. preciso ainda altas doses de psicologia,
pacincia e habilidade para dar notcias nem sempre agradveis. Uma das
realidades mais duras que esses especialistas so obrigados a enfrentar quando
precisam explicar aos consulentes que no h nenhum tratamento ainda
disponvel para aquela doena. E mesmo assim, como relatei nos captulos
anteriores, as reaes podem ser totalmente inesperadas. Como fazer para
ajudar algum a entender o que significam as informaes, a partir de um simples
teste de saliva na farmcia ou via internet?
Mas existem ainda outras questes importantes a serem consideradas.
Diferentemente das doenas raras causadas por mutaes em um ou poucos
genes, males muito comuns como cncer e diabetes esto relacionados a uma
srie de variaes genticas que ocorrem no organismo de cada pessoa. Mais de
cem estudos envolvendo milhares de pacientes em diferentes pases esto sendo
realizados visando encontrar variaes comuns para essas doenas. Mas em
quase todos os casos, estimar um risco muito difcil.
Veja, por exemplo, o caso do cncer de mama. Eu at gostaria de saber se
tenho propenso a essa doena porque ela tratvel e pode ser prevenida. Como
j vimos em outro captulo, existem pelo menos dois genes, brca1 e brca2, que so
responsveis pelas formas hereditrias do cncer de mama. Mulheres portadoras
de mutaes nesses genes tm um risco de cerca de 80% de desenvolver a
doena e um risco aumentado para cncer de ovrio. A questo tica se esses
testes devem ser feitos na populao feminina em geral. O risco global de uma
mulher, sem histrico familiar, ter um cncer de mama ao longo da vida da
ordem de 10%, enquanto o cncer hereditrio constitui apenas 1% a 2% dos
casos. Assim, dez vezes mais provvel que, se uma mulher vier a ter o tumor, ele
no esteja relacionado a mutaes nos genes brca1 e brca2.
Mas ser que uma mulher cujo teste no revelou mutaes nesses genes
sabe disso? Ou ela vai deixar de se prevenir, achando que est livre de desenvolver
um tumor? Alm disso, como existem centenas de mutaes patolgicas ao longo
desses genes e se torna invivel testar todas elas, os laboratrios testam apenas
as mais comuns, o que levanta outra questo: sabemos exatamente o que est
sendo testado? E qual vai ser a reao se o teste revelar a presena de mutao?
Por outro lado, a percepo de risco varivel entre as pessoas. Nos
Estados Unidos, 20% das mulheres que descobrem a mutao em um dos dois
genes relacionados ao cncer de mama decidem fazer cirurgia preventiva de
extirpao total dos seios. Mesmo aps os mdicos esclarecerem que a cirurgia
no significa que o tumor no aparecer ou que a alterao em um dos genes
pode no significar que a paciente v desenvolver a doena. Mas o mais chocante
foi uma histria que ouvi recentemente e que me foi relatada por uma
geneticista que trabalha em um centro de estudos nos Estados Unidos.
Tratava-se de uma famlia com vrios casos de cncer de mama precoce. O
estudo gentico comprovou que as mulheres afetadas tinham realmente uma
mutao no gene brca1, o que levou as parentas ainda assintomticas a se
submeterem a testes nesse sentido. Uma delas, em particular, vivia apavorada
com a possibilidade de vir a ter cncer de mama. Pois bem, o teste de dna revelou
que ela no possua a mutao, ou seja, no tinha um risco aumentado de vir a ter
cncer de mama. Seu risco era igual ao da populao feminina em geral, explicou
a geneticista aps o exame. Foi em vo. No houve exame que a convencesse, e a
moa se submeteu assim mesmo a uma mastectomia bilateral. O seu pavor era
maior do que o resultado de qualquer teste gentico.
interessante tambm notar que a percepo da magnitude de risco varia
entre homens e mulheres. Por exemplo, quando falamos a um casal que o risco de
vir a ter uma criana afetada por uma doena gentica de 25%,
frequentemente a mulher afirma que se trata de um risco muito alto, enquanto
para o marido ele pequeno. Ser que isso ocorre porque a mulher que carrega
o peso da gravidez?
No s a percepo, mas tambm as consequncias psicolgicas so muito
variveis. Posso contar minha experincia pessoal relacionada fibrose cstica.
Trata-se de uma doena gentica grave caracterizada por infeces pulmonares
recorrentes e com mltiplos sintomas, incluindo diminuio do crescimento,
esterilidade e disfuno pancretica. causada por mutaes ou erros genticos
(j foram descritos mais de 1.500 casos) em um gene chamado cftr que regula o
transporte de sdio, as secrees pancreticas e a formao de muco. A herana
autossmica recessiva, isto , a doena s se manifesta se a criana herdar
duas mutaes, uma de sua me e outra de seu pai. Se uma pessoa tiver uma s
mutao, ela ser heterozigota ou portadora assintomtica. Uma mutao s no
causa nada. Se os dois pais forem portadores, a probabilidade de vir a ter um
descendente afetado de uma em quatro.
H ainda outra questo a ser considerada. Nos ltimos anos, o estudo do dna
permitiu que a cincia resolvesse inmeros casos de identificao de pessoas
desaparecidas e at de crimes. Conhecido como exame forense, esse tipo de
identificao pode ser realizado em diversos materiais, como ossadas, dentes,
manchas de material biolgico, fios de cabelo, pelos, unhas, saliva, secreo
vaginal, cordo umbilical, lquido seminal. Esses materiais podem ser coletados
nos mais diversos lugares e objetos, como canudinhos de plstico, chicletes
mascados, sangue ou suor em peas de roupas. O sucesso da anlise vai depender
do estado de conservao da amostra. Quando isso possvel, as informaes
genticas contidas nos materiais so uma importante fonte de elucidao de
crimes.
Porm, para que esse objetivo seja cumprido, fundamental que os governos
e a sociedade iniciem uma discusso sobre as vantagens e desvantagens dos
bancos de dna. Por enquanto, a lei no autoriza a coleta contra a vontade ou sem
autorizao expressa da pessoa. Mas a polcia pode usar alguns estratagemas
para obter o material. Nos Estados Unidos, Inglaterra e dezenas de outros pases,
por exemplo, j existem bancos de dna de criminosos e amostras de cenas de
crime, alm de casos relacionados a tragdias naturais, como terremotos, e a
atos de terrorismo. Em princpio, parece uma boa ideia, mas controvertida.
Argumenta-se, por exemplo, que, se depois da anlise a pessoa inocentada,
nada garante que sua impresso gentica seja retirada desses bancos. Alm disso,
os textos legais no determinam nenhum limite de idade para os alvos da coleta.
bom lembrar que um convnio entre o governo brasileiro e o Federal
Bureau of Investigation (fbi) dos Estados Unidos permite que a polcia federal
tenha acesso ao Combined dna Index System (Codis), o maior banco de dados de
dna do mundo, capaz de relacionar as caractersticas genticas de um suspeito
com dados coletados em trinta pases. E muitas vezes esses bancos no se
referem apenas a pessoas suspeitas de algum crime. Na onda xenofbica que
atinge o continente europeu, muitos governos levantam a possibilidade de montar
um banco de dna compulsrio de imigrantes ilegais. Com isso, querem impedir
que eles cometam fraudes ao requerer, para seu cnjuge e filhos, visto de estadia
no pas europeu onde residem, mesmo que a medida v de encontro ao direito
individual dos imigrantes privacidade de seus genes.
Por mais que a legislao possa vir a estipular em detalhe os limites de
aplicao desses testes, o que est em jogo o direito individual de determinar
at que ponto informaes pessoais podem ser utilizadas por terceiros. Por
exemplo, ningum nega a utilidade dos bancos de dna no auxlio localizao de
pessoas desaparecidas. Em So Paulo, funciona um projeto de identificao de
pais e irmos de crianas desaparecidas que permite a avaliao do vnculo
gentico daquelas que forem localizadas.
Recentemente se props que todos os recm-nascidos tivessem uma amostra
de dna coletada (a partir do sangue do cordo umbilical) para se obter um perfil
gentico de cada um e assim evitar a troca de crianas em maternidade.
Entretanto, como essa coleta pode ser feita em qualquer idade, qual a
necessidade de ter amostras retiradas de recm-nascidos? Por outro lado,
preciso haver um controle rgido para garantir que amostras de sangue do cordo
umbilical, armazenadas em bancos pblicos, que so extremamente importantes
para o transplante em caso de doenas hematolgicas, no sejam usadas
ilegalmente para fornecer dados genticos dos doadores.
Bancos de dna tambm esto tendo um papel fundamental na identificao
das vtimas do atentado s torres gmeas nos Estados Unidos, das vtimas da
guerra na antiga Iugoslvia, das pessoas mortas pela ditadura no Chile e na
Argentina, das vtimas da guerrilha na Colmbia e das ossadas dos desaparecidos
no Brasil. Mas qual a orientao em casos nos quais as pessoas no querem
tornar pblico um assunto familiar privado relacionado a crimes cometidos no
passado? E se as pessoas interessadas se recusarem a ser testadas? E o direito de
no querer saber? Foi o caso, pelo que acompanhei nos jornais, dos filhos
adotivos da proprietria de um grupo jornalstico na Argentina. Suspeitava-se que
haviam sido sequestrados depois que seus pais foram assassinados pelos militares
durante a ditadura. Os filhos adotivos no aceitaram passar pelo teste e
argumentaram que sua situao particular ganhou conotaes polticas alm da
questo familiar e emocional. Depois se soube que seus pais biolgicos no
constavam da lista de jovens mortos nas prises da ditadura argentina.
No Brasil, tambm tivemos uma questo polmica h alguns anos. Todos
devem se lembrar da histria de Pedrinho, um menino que havia sido sequestrado
na maternidade. O exame de dna revelou que ele no era filho biolgico de Vilma,
a mulher suspeita do sequestro e que havia criado o menino como seu filho
biolgico. Pedrinho, ainda adolescente, quando soube da verdade, preferiu morar
com seus verdadeiros pais. Mas, na mesma poca, suspeitou-se que Roberta, sua
suposta irm, que j tinha 23 anos, tambm pudesse ter sido sequestrada por
Vilma. Mas, ao ser confrontada com a suspeita, ela declarou enfaticamente que
no queria saber. Considerava como me aquela mulher que a havia criado.
Porm, ao prestar depoimento na polcia, Roberta, inadvertidamente, descartou
restos de cigarro. Foi o suficiente. A partir da anlise daquele material foi
possvel fazer um exame de dna e confirmar que ela tambm no era filha
biolgica de Vilma. Por um lado, tratava-se de um novo crime, e a me de
Roberta, que havia perdido sua filha na maternidade e era a maior prejudicada,
tinha o direito de ver a histria esclarecida. Mas, por outro lado, a vontade de
Roberta havia sido violada. E o direito de no saber? A questo : o dna pode ser
usado sem o consentimento do doador?
Todo mundo lembra da histria de Dolly, aquela famosa ovelha britnica clonada
a partir de uma clula da glndula mamria de sua me, em 1997. Para conseguir
esse feito, os pesquisadores escoceses Keith Campbell e Ian Wilmut transferiram
o ncleo de uma clula j diferenciada para um vulo sem ncleo. Este foi ento
inserido em um tero de outra ovelha, transformada em barriga de aluguel, e
originou o primeiro clone de um mamfero. Depois dele, outros clones de animais
se seguiram, incluindo de rato, gato, cachorro, porco, bezerro e cavalo. No Brasil,
fizemos vrios clones animais com o objetivo de preservar linhagens nacionais de
gado e produzir remdios no leite. Nesses anos todos, porm, o que se tem visto
que o processo de clonagem muito difcil e pouco eficiente. Menos de 10% dos
embries clonados que so transferidos para o tero geram um animal saudvel.
E, mesmo depois de vrias experincias, o ndice de sucesso muito baixo. No
caso de Dolly, foram necessrias 276 tentativas at se conseguir um animal
clonado.
Mesmo assim, a histria do clone de ovelha despertou a imaginao das
pessoas sobre a possibilidade de fazer a clonagem de humanos. Nos anos
seguintes ao nascimento da ovelha, o tema chegou a ser at enredo de novela de
tv, para no dizer de filmes de terror e fico cientfica. Isso porque,
teoricamente, poderamos gerar clones de pessoas vivas ou mortas, apenas
retirando o ncleo de uma clula diferenciada, que poderia ser de qualquer
tecido, de uma criana ou adulto. Depois, seria preciso inserir esse ncleo em um
vulo para implant-lo no tero de uma mulher, que funcionaria como barriga de
aluguel. Se o vulo se desenvolvesse, seria criado um novo ser, com as mesmas
caractersticas fsicas da criana ou do adulto de quem havia sido retirada a
clula diferenciada. Seria como um gmeo idntico, mas nascido posteriormente.
Na poca de Dolly, a comunidade cientfica de todo o mundo se posicionou
contra essa possibilidade. E no apenas os cientistas. Nos Estados Unidos, a
Comisso Nacional de Biotica definiu, alguns meses depois do anncio de
nascimento da ovelha, que toda pesquisa voltada para a clonagem humana seria
banida naquele pas e no seriam fornecidas verbas federais para esse tipo de
estudo. Muitos outros pases adotaram medidas semelhantes. Mas isso no
impediu que comeassem a aparecer notcias sensacionalistas. Um mdico
italiano, Severino Antinori, nos anos seguintes, dizia ter conseguido engravidar
mulheres que gerariam clones humanos. Defendia a aplicao dessa tcnica para
casais infrteis. Um grupo de religiosos intitulados raelianos anunciou que havia
conseguido fazer o primeiro clone humano do mundo, com o sugestivo nome de
Eva. Sabamos que tudo isso no passava de um blefe, e o tempo demonstrou que
as profecias e os anncios de seitas no se realizaram.
Na realidade, Dolly revolucionou as pesquisas com clulas-tronco. Antes do
nascimento da ovelha, no se acreditava ser possvel fazer com que uma clula de
mamfero, j diferenciada, pudesse ser reprogramada ao estgio inicial, de modo
que se comportasse como um vulo recm-fecundado por um espermatozoide. A
ovelha, que morreu aos seis anos de uma doena pulmonar incurvel, demonstrou
que uma clula adulta poderia ser reprogramada para voltar ao estgio de
clula totipotente, isto , capaz de originar um ser completo, se inserida em
tero. O mais importante foi a descoberta que essa mesma clula
reprogramada poderia ser o incio de qualquer tecido em laboratrio, o que
desencadeou as pesquisas com clulas-tronco que podero revolucionar a
medicina regenerativa.
Outra ideia a clonagem teraputica, que at hoje no se mostrou bem-
sucedida em seres humanos acabou levando ao uso dessa mesma tecnologia
para gerar linhagens celulares. A clonagem, nesses casos, no seria para
desenvolver gmeos em srie ou criar rplicas aperfeioadas de indivduos. Em
vez de usar clulas embrionrias armazenadas em clnicas de reproduo
assistida, a ideia seria produzi-las a partir de clulas retiradas do paciente,
transferir o ncleo dessas clulas para um vulo sem ncleo, cultiv-las e
multiplic-las em laboratrio. Depois, induzir a diferenciao em tecidos
especficos de acordo com as necessidades.
Teoricamente, se o paciente tivesse sofrido queimaduras, por exemplo,
seriam feitas clulas de pele; se estivesse com mal de Parkinson, virariam
neurnios; na cirrose, se transformariam em clulas de fgado; e assim por diante.
Se essa tcnica fosse dominada, no futuro, cada pessoa poderia criar
preventivamente suas linhagens particulares de clulas-tronco com potencial
embrionrio. Ao longo da vida, caso essa pessoa precisasse de transplante, essas
clulas seriam descongeladas, multiplicadas e induzidas a se diferenciar. Quando
transplantadas, poderiam regenerar o tecido ou o rgo danificado sem o risco
de rejeio. nisso que apostam, por exemplo, os defensores dos bancos de
sangue de cordo umbilical privados, esquecendo-se de que uma promessa
distante, enquanto os bancos pblicos j podem ser benficos no tratamento de
doenas hoje.
No Brasil, a mesma Lei de Biossegurana de 2005, que permitiu a utilizao
de clulas-tronco de embries congelados obtidos em clnicas de fertilizao
para pesquisas, proibiu a clonagem teraputica. Isso vai abrir caminho para a
clonagem reprodutiva, diziam na poca os opositores, entre os quais grupos
religiosos. Vai gerar comrcio de vulos. Meus argumentos de que a pesquisa
poderia ser controlada e regulamentada no surtiram efeito. At hoje, a
discusso sobre a clonagem teraputica continua a ser levada sem a
profundidade tica que merece. Veja, por exemplo, o que ocorre com as clulas
iPS (do ingls induced pluripotent stem-cells) desenvolvidas pelo pesquisador japons
Shinya Yamanaka, em 2007, e consideradas a soluo por todos aqueles que se
opem s pesquisas com clulas embrionrias obtidas de embries congelados ou
derivadas de clonagem teraputica.
Clulas iPS so clulas adultas maduras, retiradas do nosso corpo ou de um
animal, que foram reprogramadas para se transformar em clulas-tronco
pluripotentes aquelas que tm a capacidade de dar origem a todos os tecidos,
da o seu nome. Para que isso acontea necessrio expressar genes que esto
ativos no incio da embriognese e que so silenciados quando as clulas j esto
diferenciadas em tecidos. Por exemplo, uma clula de pele pode ser
reprogramada e voltar a ser uma clula semelhante quela encontrada no
embrio. Pesquisas muito recentes tm mostrado que as clulas reprogramadas
iPS no so idnticas s embrionrias e que elas guardam a memria de onde
foram retiradas. Para mim isso no surpresa. Mas as clulas iPS foram
saudadas pelos grupos religiosos como a soluo, pois se as pesquisas
avanarem, no ser mais preciso obter clulas-tronco de embries, que, segundo
eles, estariam sendo sacrificados.
No sou contra as iPS, pelo contrrio. No sabemos se algum dia elas
serviro para terapia celular ou para a substituio de tecidos.
Independentemente da polmica, para os cientistas como ns que esto
interessados em utilizar clulas-tronco a fim descobrir os mecanismos que
causam doenas genticas, essas clulas so uma grande esperana e uma
ferramenta preciosa. Elas abrem portas para novas pesquisas que podem ser
muito promissoras. Mas, do ponto de vista de quem teme a possibilidade de
produzir um clone humano, a tcnica deveria ser questionada, pois representa um
passo a mais nessa direo. Cientistas chineses j conseguiram clonar
camundongos, reprogramando uma clula adulta para que adquirisse
caractersticas de uma clula embrionria. Para isso, bastou inserir um vrus
incuo e ativar alguns genes, essenciais para que a clula adquira as propriedades
de uma clula embrionria. A clula reprogramada, colocada em tero, gerou
animais viveis e frteis, confirmando que essas clulas poderiam ser totipotentes
sem a utilizao de vulos, pelo menos em camundongos.
Em tese, seria possvel gerar um clone humano muito mais facilmente. A
diferena que, na clonagem teraputica, a clula adulta (ou melhor, o ncleo
da clula onde est quase todo o dna) inserida em um vulo sem ncleo. J no
caso das clulas iPS, no preciso vulo algum. As clulas adultas so
reprogramadas para se comportarem como embrionrias. O que h de comum
nos dois casos que a clula reprogramada precisa ser inserida em um tero para
gerar um clone ou cpia de um animal. O inventor da tcnica, Shinya Yamanaka,
prevendo essa possibilidade, props uma regulamentao ao governo japons, e o
Ministrio da Cincia do Japo enviou a todas as universidades e agncias que
subsidiam pesquisas cientficas uma notificao proibindo a implantao de
embries feitos com clulas iPS em teros (humanos ou de animais), a produo
de qualquer indivduo a partir de clulas iPS ou a produo de clulas
germinativas (que do origem aos vulos e aos espermatozoides) derivadas dessas
clulas.
Mas quem garante que no h malucos por a tentando gerar clones
humanos s escondidas? Sem a necessidade de vulos humanos, muito mais fcil
tentar reprogramar uma clula adulta para que se comporte como embrionria.
E inseri-la em um tero, que no precisa necessariamente ser humano. Pode ser
de qualquer animal. assustador, no?
Agora, o outro lado da questo. Em seu livro Genetic dilemmas, a geneticista Dena
S. Davis relata a situao hipottica de um casal Lorna e Jim Garcia que se
encontrou, se apaixonou e se casou quando ambos tinham mais de quarenta anos.
Nessa idade, eles queriam ter um filho, mas descobriram que seria difcil porque
a menopausa de Lorna estava chegando e Jim j tinha problemas de infertilidade.
Contra todas as expectativas, Lorna conseguiu engravidar e teve uma menina que
ela chamou de Espera. Mas, quando a pequenina tinha dois anos, a famlia toda
sofreu um acidente de automvel causado por um motorista bbado. Jim morreu
na hora; Lorna, felizmente, salvou-se sem muitas sequelas. A beb Espera foi
levada ainda com vida para o hospital, mas teve morte cerebral no dia seguinte.
Lorna, desesperada para ter uma outra criana que a lembrasse daqueles
momentos de felicidade com Jim, pediu para os mdicos conservarem algumas
das clulas da menina. Esperava que um dia pudesse clon-las e ter outro beb
geneticamente ligado a ela e ao marido.
Por que a geneticista conta essa histria? Ela mesma explica: Para trazer
alguns aspectos ticos discusso sobre clonagem antes que ela seja possvel.
Dena considera que, medida que a cincia avana, a possibilidade de gerar
irmos gmeos com diferentes idades ser concretizada at porque as tcnicas
atuais de fertilizao assistida so muito arriscadas e custosas para os casais. No
caso da clonagem, o doador pode ser um irmo, o pai, um amigo, uma amiga ou
pessoa famosa ou at mesmo algum que j tenha morrido, cujas clulas foram
preservadas, como no caso relatado acima. A autora chega a dizer que a tcnica
seria muito bem-vinda no caso de mulheres homossexuais que desejassem ter um
filho e no quisessem se submeter a receber a doao de estranhos e ter
problemas legais relativos ao pai de aluguel.
Por outro lado, ela chama a ateno para o fato de que muitas pessoas
fantasiam que um clone deve ser exatamente igual ao original, uma motivao
que no tem nenhum sentido. Primeiro porque, no caso de uma pessoa famosa,
imagina-se que o clone ser uma cpia do adulto admirado. Ela lembra que, aps
a morte da princesa Diana, o sentimento de perda foi expresso por um de seus
sditos que portava um cartaz no Central Park de Londres, com essas palavras:
Clonem outra Diana. Como se isso fosse possvel.
Nenhuma criana, mesmo geneticamente idntica a outra, seria igual a ela
porque sua vida, ambiente, condies sero diferentes. Ou, como j foi dito,
clone no fotocpia. Mesmo levando em conta as caractersticas fsicas e
deixando de lado as psicolgicas, hbitos, alimentao, ocupao, exposio a
doenas e ao sol etc. fariam com que fosse se diferenciando medida que
envelhecesse. Do ponto de vista psicolgico ento, nem se fala. Clones de Madre
Teresa de Calcut, se existissem, no teriam o seu esprito de dedicao.
Poderiam ser at o oposto. J imaginaram uma mulher com a aparncia dela e
danando como a Madonna? Ou o clone de Einstein cuja maior ambio seria
tornar-se alpinista? Da mesma forma que clones de Hitler no teriam o seu
carter e personalidade destrutiva, at porque o determinismo gentico que ele
tanto quis provar no existe (vocs devem se lembrar do livro Os meninos do Brasil,
de Ira Levin, em que um cientista maluco cria meninos que deveriam ter o mesmo
perfil psicolgico do ditador).
Mas, provoca Dena Davis, embora reprove a maioria dos argumentos em
defesa da clonagem reprodutiva, e que so os mesmos que levam as pessoas a
escolher o sexo dos filhos ou a seleo de caractersticas determinadas, no
existiriam situaes excepcionais em que a aplicao da tcnica seria
compreensvel ou aceitvel, como no caso da tragdia de Lorna Garcia? Se
algumas formas de clonagem podem ser aceitas em determinadas situaes, no
seria o caso de iniciar uma discusso tica em vez de banir essa possibilidade
totalmente? Ela lembra que, quando Louise Brown, o primeiro beb de proveta,
nasceu na Inglaterra, em 1978, falou-se em escndalo, e houve especulaes de
todo tipo sobre a nova sociedade que dali sairia. O mundo, no entanto, continuou
andando da mesma maneira, e existem inmeras pessoas que nasceram graas s
tcnicas de fertilizao assistida.
Eu no tenho resposta para essas questes, mas concordo pelo menos em um
aspecto com a autora. Em todos os casos relatados neste livro que levamos ao
conhecimento do leitor, quis mostrar que a cincia avanou depressa demais e
no houve tempo para que uma discusso tica acompanhasse a sua evoluo. Em
vez de questionar questes ticas depois dos anncios cientficos, nesse caso da
clonagem, podemos debater o que vem pela frente antes que ocorra. So
assuntos que nos dizem respeito agora e no futuro e que no podem ficar
restritos aos meios acadmicos. Devem ser amplamente discutidos por toda a
sociedade.
Para entender melhor
Li, M. et alii. Widespread rna and dna sequence differences in the human
transcriptome. Science, 19 maio 2011.
Nishimura, A; Oliveira, J. R. & Zatz, M. The human serotonin transporter gene
explains why some populations are more optimistic?. Molecular Psychiatry.
14(9):828, setembro 2009.
Picoult, Jodi. My sisters keeper. Nova York: Atria Books, 2004.
Plotz, David. The genius factory: the curious history of the Nobel
Prize Sperm Bank. Nova York: Ramdom House, 2005.
Rifkin, Jeremy. O sculo da biotecnologia. So Paulo: Makron, 1999.
Secco, M. et alii. Multipotent stem cells from umbilical cord: cord is richer
than blood!. Stem Cells. 26(1):146-50, janeiro 2008.
Secco, M. et alii. Mesenchymal stem cells from umbilical cord: do not discard
the cord!. Neurom. Disord. 18:17-18, 2008.
Secco, M. et alii. Gene expression profile of mesenchymal stem cells from
paired umbilical cord units: cord is different from blood. Stem Cell Rev.
5(4):387-401, dezembro 2009.
Segre, Marcos & Cohen, Cludio. Biotica. 3a ed. So Paulo:
Edusp, 2002.
Silver, Lee. De volta ao den. So Paulo: Mercuryo, 2001. Sweeney, H. Lee.
Gene doping. Scientific American, 21 de julho
2004.
Takahashi, Kazutoshi & Yamanashi, Shinya. Induction of pluripotent stem cells
from mouse embryonic and adult fibroblast culture by defined facts. Cell,
24 de abril 2006.
Vieira, N. M. et alii. Human multipotent adipose derived stem
cells restore dystrophin expression of Duchenne skeletal muscle cells in vitro.
Biol Cell. 100(4):231-41, abril 2008.
Vieira, N. M. et alii. Dystrophic mice express large amount of human muscle
proteins following systemic delivery of human adipose-derived stem cells
without immunosupression. Stem Cells. 26 de junho 2008.
Rede BrasilCord
<http://www1.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=2627>