O Homem Na Multidão PDF

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Homem da multido e o flneur no conto O homem da

multido de Edgar Allan Poe

Srgio Roberto Massagli (UNESP)

RESUMO: Este artigo analisa, atravs da leitura de Walter Benjamin, a diferena entre o flanur e o
homem da multido, no conto O Homem da Multido, de Edgar Allan Poe, bem como a constituio
do flanur como observador privilegiado da vida moderna e a flanurie como meio de apreenso e
representao desse novo espao.
PALAVRAS-CHAVES: Modernidade. Esttica urbana. Flanur. Espao.

1. A cidade como espao par excellence da Flanurie e o surgimento de uma nova


esttica.

Em seus ensaios sobre a obra do poeta francs Charles Baudelaire, Benjamin cha-
ma a ateno para a figura do flanur que, com um prazer quase voyeurstico, com-
prazia-se em observar refletidamente os moradores da cidade em suas atividades
dirias. Dessa paixo do flanur pela cidade e a multido, decorre a flanurie como
ato de apreenso e representao do panorama urbano.
A expanso sem precedncia da economia industrial e a conseqente exploso
demogrfica das cidades, em especial Londres e Paris, acarretaram no surgimento
do ambiente urbano moderno, possibilitando novas formas de experimentar e per-
ceber. Isso, por sua vez, requeria um novo modo de olhar para o mundo e novas pro-
postas estticas.
Benjamin procura explicitar essas transformaes, ao investigar como tais mudan-
as foram registradas na literatura daquela poca. Baudelaire torna-se a figura cen-
tral em suas investigaes. Para ele, os textos de Baudelaire constituem os fragran-

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Terra roxa e outras terras Revista de Estudos Literrios


Volume 12 (Jun. 2008) 1-170. ISSN 1678-2054
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tes mais precisos e intensos da vida social parisiense do sculo XIX, revelando as mais
finas e sutis articulaes do indivduo moderno com o cenrio urbano.
Benjamim afirma que a cidade o autntico cho sagrado da flanurie (1994:
191), e que o fenmeno da banalizao do espao constitui-se em experincia fun-
damental para o flanur (1994: 188). Baudelaire achava a cidade sedutora, principal-
mente em seus mauvais lieux, por onde se deixava levar em suas andanas errticas.
As ruas labirnticas da cidade constituem, para o perfeito divagador, observador
apaixonado, o fascnio da multiplicidade e do efmero, o gosto pelo movimento on-
dulante da multido. Segundo o poeta francs, o flanur inebriado pelo prazer de
se achar em uma multido, o que, para Benjamin, seria uma expresso misteriosa do
gozo pela multiplicao do nmero (1994: 54).
Para Baudelaire, h a beleza duradoura nos fenmenos, que permanecem atra-
vs de diferentes pocas, e h a beleza do acidental, do instantneo. Essa ltima
beleza, a da modernidade, para ser digna de se tornar antiguidade, deve ser extrada
pelo artista com todo o mistrio que a vida humana coloca nela involuntariamente
(Baudelaire 2001: 110). Esse trabalho, o de dar forma esttica ao moderno, cabe aos
artistas como Constantin Guys.
Um desses , sem dvida, Edgar Allan Poe, que, antes de Baudelaire, seu primeiro
tradutor para o francs, j havia explorado, em seu conto O Homem da Multido,
o tema da paisagem e da massa urbana. Nesse conto, Poe revela alguns traos no-
tveis, e basta apenas segui-los para encontrar instncias sociais to poderosas, to
ocultas, que poderiam ser includas entre as nicas capazes de exercer, por meios
vrios, uma influncia to profunda quanto sutil sobre a criao artstica (Baudelaire
2001: 119).
A cidade o templo do flanur, o espao sagrado de suas perambulaes. Nela
ele se depara com sua contradio: unidade na multiplicidade, tenso na indiferena,
sentir-se sozinho em meio a seus semelhantes.
Ao errar entre as galerias e bulevares, ao passear pelos mercados, o flanur o ser
que v o mundo de uma maneira particular, sem a pretenso de explicar, mas com a
inteno de mostrar, levando a vida para cada lugar que v. Sua paixo a exteriori-
dade, na rua encontra o seu refgio, desvincula-se da esfera privada, buscando sua
identificao com a sociedade na qual convive. Ocorre, porm, que essa identificao
resulta em grande parte complicada pela natureza complexa da sociedade moderna.
Nas ruas das metrpoles, o flanur constata que o homem moderno vitimado pelas
agresses das mercadorias e anulado pela multido, estando condenado a vagar pela
cidade como um embriagado em estado de abandono. essa angstia que o flanur
representou no sculo XIX.

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2. O flanur e a flanurie como modo de apreenso do espao na modernidade

O flanur aparece como a figura de um burgus que tem o tempo a sua disposio
e que pode dar-se ao luxo de desperdi-lo, para horror da sociedade capitalista de
sua poca. O flanur um burgus que leva uma vida sem objetivos definidos a no
ser buscar no complexo urbano rusgas, vos, becos por onde entrar em busca de
algum espetculo para os seus olhos sobre pernas.
Olhos e pernas so a essncia do flanur e da flanurie. Para isso, h que existir
um ambiente propcio ao seu flanar. Esse ambiente Paris, uma cidade feita para ser
vista pelo caminhante solitrio, pois somente a um passo ocioso pode-se apreender
toda a riqueza de seus ricos (mesmo velados) detalhes (White 1992: 43). Louis Se-
bastien Mercier, aps escrever o Tableau de Paris, escreveu: Eu andei tanto para es-
crever o Tableau de Paris que posso dizer que o fiz com minhas pernas, aprendendo a
ser gil, vido e vivaz no palmilhar o cho da capital. Esse o segredo para conseguir
ver tudo (White 1992: 44)
Outra caracterstica do flanur, que o distingue de um filsofo ou de um socilogo,
que ele procura por experincia e no por conhecimento. Para estes, grande parte
da experincia acaba sendo interpretada como e transformada em conhecimen-
to. J para aquele, a experincia permanece em certa medida pura, intil, em estado
bruto, fruto do olhar ingnuo, como o de uma criana, do tipo que Baudelaire atribui
a Constantin Guys.
Assim, forma-se um retrato dessa figura que, ao que parece, foi uma pessoa de
carne e osso, como mostra esta descrio de Paris, feita por volta de 1808, retirada
e resumida de um artigo de Elizabeth Wilson: o flanur um gentleman que passa
a maior parte de seu dia a vagar pelas ruas, observando o espetculo urbano as
modas, as lojas, as construes, as novidades e as atraes. Seus meios de vida so
invisveis, ficando a sugesto de uma riqueza particular, porm sem a presena da
responsabilidade familiar ou gerencial dessa riqueza. Seus interesses so primordial-
mente estticos e freqenta cafs e restaurantes onde atores, escritores e artistas se
encontram. Entretanto, parte do espetculo urbano lhe oferecido pelo comporta-
mento das classes baixas (vendedores, soldados, gente da rua). Ele uma figura mar-
ginal e tende a ser descrito como algum isolado daqueles a quem observa (Wilson
1992: 94-95).
O flanur, portanto, o leitor da cidade, bem como de seus habitantes, atravs de
cujas faces tenta decifrar os sentidos da vida urbana. De fato, atravs de suas andan-
as, ele transforma a cidade em um espao para ser lido, um objeto de investigao,
uma floresta de signos a serem decodificados em suma, um texto.
Ao semiotizar a cidade, o flanur, esse botnico do asfalto (Benjamin 1994: 34),
cria uma distino entre o observador e o observado. Mas, ao contrrio de criar, des-
se modo, uma posio privilegiada, estabelece com o seu objeto uma relao bas-
tante problemtica, uma vez que ele no apenas observa a multido a partir de um
standing point, mas se imiscui nela. Assim, sua leitura da cidade ocorre atravs de

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olhares fragmentrios e momentneos, no lhe sendo permitido o olhar contempla-


tivo e eqidistante, capaz de lhe oferecer a totalidade de seu objeto.
O flanur, prottipo do sujeito moderno, por estar no meio do que tenta descrever
e no ter neutralidade e distanciamento na sua observao (se que isso alguma vez
foi possvel), limita-se a apontar as transformaes do cenrio urbano e a revelar sua
historicidade.
Alm disso, o olhar do flanur se caracteriza por uma peculiaridade: trata-se de
um olhar distrado. Ao passar, o flanur captura a paisagem em um estado de distra-
o, caracterizado por sucessivos e cambiantes pontos de vista. Nessa distrao, ou
melhor, nessa embriaguez anamnstica em que vagueia, no importam apenas os
fenmenos que, sensorialmente lhe atingem o olhar. Nesse estado, ele tambm se
apossa do simples saber, cuja transmisso se d, sobretudo, por noticias orais, que
para Benjamim, se compe de dados mortos, como de algo experimentado e vivido.
(1994: 186).

3. A Londres de Edgar Allan Poe

Na Inglaterra, bero da Revoluo Industrial, aconteceram profundas transforma-


es na vida econmica, social e poltica a partir da segunda metade do sculo XVIII,
que, ao lado de inegveis benefcios (principalmente para a burguesia ascendente),
trouxeram problemas sociais muito graves, aos quais no ficaro indiferentes os es-
critores desse perodo. Em uma poca em que a filosofia, as letras e as artes se guia-
vam pela Razo, alguns pensadores viam as mazelas dessa nova ordem como resul-
tados de uma viso de mundo cerebral da vida e do prprio ser humano. Isto muito
visvel em Blake quando condena a incipiente indstria do sculo XVIII como dark
satanic mills, tingindo as cidades inglesas com o cinza de sua fuligem.
A Londres vista por Blake, com suas ruas comoditizadas pela presena do primeiro
avano do capitalismo, onde perambulam, cobertos de cinzas e famintos, os limpa-
dores de chamin, um esboo daquela Londres metrpole, super-povoada e injus-
ta, descrita, com certa repugnncia, por Friederich Engels, devido condio de seus
habitantes. Uma cidade como Londres, onde se pode caminhar horas a fio sem se
chegar sequer ao incio de um fim impunha aos seus 2,5 milhes de habitantes, se-
gundo ele, para erigir-se em principal capital comercial e industrial, o sacrifcio da
melhor parte de sua humanidade (Engels 1985: 68).
Em The Condition of the Working Class in England, Engels ressalta a indiferena en-
tre todos. A nica conveno entre as pessoas na cidade era o acordo tcito segundo
o qual cada um mantinha a sua direita na calada, a fim de que as duas correntes
de multido que se cruzavam no se empatassem mutuamente. Em Londres, dizia
ele, ningum atentava para o outro. Transitando pelas ruas, os habitantes da capital
mostravam uma indiferena brutal para com o que se passava ao seu arredor, cul-
tivando apenas os interesses pessoais voltados para um desavergonhado egosmo

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mesquinho, lembrando a descrio da sociedade feita h muito tempo por Hobbes


a de que a sociedade nada mais era do que o produto de uma guerra social, a
guerra de todos contra todos (Engels 1985: 36). E acrescentava que o que valia para
Londres, valia para todas as grandes cidades da Europa.

4. O flanur e o homem da multido no conto de Poe

O narrador de Poe pode ser considerado uma verso londrina do flanur parisien-
se de Baudelaire. Londres e Paris eram duas grandes capitais, mas Londres, j por
volta de 1844, quando o conto escrito, encontra-se mais marcada pela industriali-
zao e por todas as conseqncias da revoluo taylorista nas formas de produo
do capital. Nesse ambiente, de se esperar que o flanur no existisse ou j nascesse
fadado a desaparecer. Como diz Benjamin, citando Georges Friedmann, A obsesso
de Taylor, de seus colaboradores e sucessores, a guerra flanurie (Friedmann
1936: 76)
Em comparao, a Paris de Baudelaire ainda guardava traos dos velhos bons tem-
pos. Na Paris de Baudelaire, a situao era diferente, ainda se apreciavam as ga-
lerias, onde o flanur se subtraa da vista dos veculos... Havia o transeunte, que se
enfia na multido... Mas havia tambm o flanur, que precisa de espao livre e no
quer perder sua privacidade Ao contrrio do homem da multido, do conto de Poe,
o flanur um ocioso, a caminhar como uma personalidade que rejeita a diviso
de trabalho e a industriosidade da sociedade de ento. Benjamim diz que era de
bom-tom levar tartarugas para passear pelas galerias, como uma forma de protes-
tar contra o ritmo imposto pelo capital (1994: 50-51).
Poe descreve Londres como possuindo algo de brbaro que a disciplina mal con-
segue sujeitar. A industrializao e suas benesses isolam os seus beneficirios e
os aproxima da mecanizao. Segundo Benjamin, O texto de Poe torna inteligvel
a verdadeira relao entre selvageria e disciplina. Seus transeuntes se comportam
como se, adaptados automatizao, s conseguissem se expressar de forma auto-
mtica. Seu comportamento uma reao a choques (1994: 126). a viso desses
autmatos em suas mars humanas no anoitecer que enche o narrador de Poe com
uma emoo demasiadamente nova e o faz desinteressar-se pelo que passava no
salo do Caf onde se encontra, para se absorver na contemplao da cena l de
fora (1990: 164)
H no observador de Poe aquela mesma ateno que encontramos na descrio
de Constantine Guys feita por Baudelaire, aquela sensao de estar sempre, espi-
ritualmente, no estado de convalescena (2001: 196). Depreendemos, contudo,
segundo o prprio narrador do conto, que esse estado no lhe ocorria sempre;
antes, entendemos tratar-se de um estado raro, incomum. Assim ele descreve seu
estado naquela tarde:

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H no muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante


a grande janela do Caf D. . . em Londres. Por vrios meses andara enfermo,
mas j me encontrava em franca convalescena e, com a volta da sade, sentia-
me num daqueles felizes estados de esprito que so exatamente o oposto do
ennui; estado de esprito da mais aguda apetncia, no qual os olhos da mente
se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condio diria tanto
quanto a vvida, posto que cndida, razo de Leibniz ultrapassa a doida e dbil
retrica de Grgias. (Poe 1990: 164)

nesse estado de percepo aguada, com o intelecto eletrificado, que o narra-


dor de Poe, esse flanur em meio a um turbilho de choques, vai encontrar na multi-
do o mistrio do anonimato e o milagre da multiplicao do nmero. esse espri-
to que ele aplica s coisas. Com sensao de prazer no simples ato de respirar, capaz
inclusive de extrair inegvel bem-estar de muitas das mais legtimas fontes de aflio
e com um calmo, mas inquisitivo, interesse por tudo.
Assim que o annimo narrador de O Homem da Multido comea a descrever sua
experincia pessoal em um caf de Londres, ele mostra total confiana em sua habi-
lidade de ler a multido com base em sinais exteriores. interessante notar que Poe,
ao alternar as aes de seu narrador entre ler o jornal e contemplar a multido, esta-
belece um paralelo entre as duas atividades e sugere suas similaridades: Com o cha-
ruto entre os lbios e o jornal sobre os joelhos, divertira-me durante grande parte da
tarde, ora a meditar os anncios, ora observando a companhia promscua reunidas na
sala, ou ainda a espreitar a rua atravs das vidraas enfumaadas (Poe 1990: 164)
Como se v nessa passagem, h um deslocamento oscilante entre os anncios
do jornal, a sala e a rua, que fica explicitado pelas conjunes ora e ou. Trata-se de
um transitar entre diferentes espaos, desde o mais privado e recolhido da leitura
do jornal at o espao pblico da rua. Essa dialtica espacial entre o privado e o p-
blico, encontrada na base da flanurie, revela um aspecto interessante em relao
atitude do flanur: o reconhecimento de que o coletivo, como diz Benjamim, um
ser irrequieto e agitado que, nos espaos do labirinto urbano, reconhece e inventa
tanto quanto o indivduo trancafiado em seu quarto. E a rua a morada do coletivo.
(1994: 194).
De fato, nessa poca, a populao das grandes cidades estava se tornando alfabe-
tizada e os sinais urbanos comeavam invadir as ruas, tanto os verbais como os no-
verbais. O narrador de Poe deixa-nos ver que, ao observar as ruas tanto literalmente
como figurativamente, a cidade estava-se tornando um texto e, para express-la, a
linguagem escrita deveria assumir as qualidades da imagem.
Para tanto o observador deveria ter uma sensibilidade excitada, apta a captar os
fragrantes de um mundo em rpida mutao. Como o pintor da vida moderna, o nar-
rador de Poe busca flagrar na vida trivial das ruas aquele movimento rpido que
impe ao artista uma igual velocidade de execuo (Baudelaire 2001: 105).
Se cada sculo tem sua feio, sua graa pessoal, impressa pela passagem do
tempo, o mesmo se aplica a traos menores da histria; alis, podemos pensar que

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quanto mais particular o evento, mais a marca do tempo deixar nele o seu carim-
bo, como a moda, campo sobre o qual refletiu Baudelaire. Ainda, segundo ele, essa
mesma observao se aplica s profisses, porque cada uma extrai sua beleza inte-
rior das leis morais a que est submetida. Em algumas essa beleza ser marcada pela
energia; em outras carregar os sinais visveis da ociosidade. como o emblema do
carter, a estampilha da fatalidade (Baudelaire 2001: 114).
Ao olhar os transeuntes em suas relaes coletivas, depois de uma observao
abstrata e generalizadora, o narrador do Poe desce aos pormenores e comea a ob-
servar com interesse penetrante a variedade da multido. H entre o narrador do
conto e a multido que observa, aquela dialtica da flanurie em que temos, de um
lado, aquele que est na posio de ver a todos e, de outro, o que se encontra invi-
svel, escondido na multiplicidade dos rostos. Essa dialtica se interioriza no flanur
como uma ambigidade. Se ele se concentra na observao, sua atitude adquire
contornos detetivescos. (Benjamin 1994: 69) ; se estagnar na estupefao, o flanur
pode se tornar um basbaque. Obviamente o flanur no um detetive e muito me-
nos um basbaque. Contudo essa tenso que sua personalidade pode engendrar
encontrada no conto de Poe.
inegvel que, no conto de Poe, apesar das diferenas existentes entre esses
dois plos, podemos dizer que tanto o narrador, como o misterioso personagem,
compartilham caractersticas do flanur. O velho demnio encarna, num extremo,
a erraticidade, a voracidade voyeurstica, a solido urbana. Vemos, porm, tratar-se
de uma personalidade amortecida pela recepo de choque, um embasbacado, uma
marionete agitada pelo ritmo da produo capitalista e pelo frenesi do consumo. Pa-
rodiando Baudelaire, assemelha-se a um caleidoscpio desprovido de conscincia.
J o narrador tem a fome da experincia, somada perplexidade e ao assombro. Sua
perambulao acompanha os fluxos da cidade e os passos do homem da multido,
buscando, entretanto, fixar, como fantasmagoria, suas impresses.
Essa inteno do registro aguada pela conscincia do mistrio que envolve os
fenmenos urbanos, mesmo os mais triviais. Esse senso do mistrio aquele de estar
o tempo todo no equvoco, nos aspectos duplos, mltiplos, na suspeio do aspecto
(imagens dentro de imagens), formas do devir que sero, segundo o esprito do
observador.
Se Deus imprimiu o destino de cada homem na sua fisionomia, como disse Bal-
zac (Benjamin 1994: 212)., basta ento observ-lo cuidadosamente, para ler, em seus
sinais exteriores, a sua profisso, os seus vcios e tudo o mais que marca cada dobra
de sua pele. Ou ento, basta escutar uma palavra de algum que passa para, atravs
do tom de sua voz, ligar o nome de um pecado a ele.
A ndole detetivesca do narrador de Poe limita com o esprito curioso do flanur,
na medida em que ambos buscam estudar a aparncia fisionmica das pessoas, para
ler-lhes a nacionalidade e a posio, o carter e o destino, atravs de sinais aparentes,
tais como seu modo de andar, sua constituio corporal, sua mmica facial, como po-
demos notar nos excertos abaixo:

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A subdiviso dos funcionrios categorizados de firmas respeitveis era


inconfundvel. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calas pretas ou
castanhas, confortveis e prticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos
sapatos slidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabea
ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hbito de ali prenderem
a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mos para pr ou tirar o chapu
e que traziam relgios com curtas correntes de ouro macio, de modelo antigo.
A deles era a afetao da respeitabilidade, se que existe, verdadeiramente,
afetao to respeitvel. (Poe 1990: 168-169)

O surpreendente no conto de Poe esse jogo de adivinhao. o narrador, ao se


concentrar na figura enigmtica do velho, com quem se depara a certa altura no labi-
rinto londrino, no chega a uma soluo. Assim descrito o encontro com a estranha
figura que captura sua imaginao:

Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar


a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho
decrpito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de
imediato se imps fortemente minha ateno, dada a absoluta idiossincrasia
de sua expresso. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de
longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao v-lo, foi o de
que, tivesse-o conhecido Retzsch, e no haveria de querer outro modelo para
as suas encarnaes pictricas do Demnio.... Senti-me singularmente exaltado,
surpreso, fascinado. Que extraordinria histria, disse a mim mesmo, no
estar escrita naquele peito! Veio-me ento o imperioso desejo de manter o
homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o
sobretudo e, agarrando o chapu e a bengala, sa para a rua e abri caminho
por entre a turba em direo ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a
essa altura, ele j sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades,
consegui por fim divis-lo, aproximar-me dele e segui-lo de perto, embora com
cautela, de modo a no lhe atrair a ateno. (Poe 1990: 177-178)

Essa perseguio ocupar boa parte do conto. A investigao, com o fim de ler a
extraordinria histria que o narrador imaginou estar escrita naquele peito, en-
cerrar-se- ao cabo de um dia inteiro de andana errtica. Nas palavras do narrador-
personagem, ao cabo de um dia completo, exausto diante da infindvel caminhada
em ziguezague, sobreveio-lhe um aborrecimento mortal. Nesse momento pra em
frente do velho, olha-o fixamente no rosto, como se a mirada frontal lhe pudesse
revelar o que de maneira obliqua no conseguira. O velho simplesmente o ignora,
como se fosse um autmato, e prossegue em sua promenade folle et sans fin, como
um lobisomem irrequieto a vagar na selva social (Benjamin 1994: 187):

Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente


e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele no deu

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conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguio,


fiquei absorvido vendo-o afastar-se.
Este velho, disse comigo, por fim, o tipo e o gnio do crime profundo.
Recusa-se a estar s. o homem da multido. Ser escusado segui-lo: nada mais
saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel corao do
mundo livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercs
de Deus que es lsst sich nich lesn .( Poe, 1990, p.189-190)

Dessa maneira, o conto se fecha, com a frase em alemo que, no primeiro par-
grafo do conto, utilizada para introduzir a tese de que h coisas que no se deixam
ler. Em outras palavras, h segredos que no podem ser ditos porque no se deixam
ler. Assim, o conto se fecha dentro de uma estrutura circular, conferindo-lhe certo
hermetismo que lhe acentua a atmosfera de mistrio.
No obstante essa atmosfera de mistrio que deixa no ar ao final, o conto se re-
laciona claramente com a crtica de Benjamin tese convencional, mas insensata,
que racionaliza a conduta do flanur e que a base inconteste de muita literatura a
seu respeito. Muito mais do que ler na fisionomia dos transeuntes o seu carter ou
a sua profisso, o flanur busca perder-se (ou encontrar-se?) na anonimia da vida na
grande cidade. A City a realizao do antigo sonho do labirinto e, segundo Ben-
jamin, o flanur, sem o saber, persegue essa realidade. Busca intil, essa do narrador
de Poe? O saber que o flanur procura seria vizinho cincia oculta da conjuntura?
(Benjamin 1994: 199). Talvez... afinal, essa irresoluo pode ser entendida como o
resultado do desenvolvimento de um processo que nasce da euforia e de uma gran-
de apetncia no incio da narrativa (daquele estado de convalescena) e termina no
aborrecimento mortal da dvida. Assim, da mesma maneira que a espera parece ser
o estado prprio do observador impassvel (Benjamin 1994: 197), a dvida seria a
condio final do processo investigativo do flanur.

5. Concluso

O que podemos notar, no conto de Poe, que ele antecipa uma questo bsica
que est na essncia da Modernit. Seu narrador representa o prottipo do escritor
moderno, ocupado em capturar a beleza do efmero e do transitrio, e, para conse-
gui-lo, ele deve emergir na experincia de sua condio enquanto elemento integran-
te dessa nova sociedade.
Na flanurie, isto , no deambular desprovido de propsitos, o flanur nos oferece
a imagem movente, resultado da apreenso de uma fugidia profuso de imagens ins-
tantneas, cuja essncia reside nas fantasmagorias de um cotidiano vivido nos sub-
solos do consciente. Na psicologia do flanur opera a memria ressureicionista, que
faz com que as cenas impagveis que todos ns podemos rever fechando os olhos,
no sejam aquelas que contemplamos com um guia nas mos, ou seja, aquelas para
as quais dirigimos nossa ateno segundo propsitos ou interesses despertos; antes,

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so aquelas a que no prestamos ateno, que atravessamos pensando noutra coi-


sa, num pecado, num namorico ou num dissabor pueril (Benjamin 1994: 213-214).
Essa a psicologia do flanur, que encontra seu correspondente, hoje, em uma
forma de percepo representada pela experincia ps-moderna do indivduo que,
seja no shopping, seja encapsulado em seu carro, ou defronte a uma tela de TV ou
computador, depara-se com a velocidade e a fragmentao dos fenmenos num
nvel que Margareth Morse em seu artigo Ontology of Distraction, chama de semi-
fico, se,elhante experincia da multido, que o flanur urbano vivenciava nas
ruas, avenidas, nas passagens, nos palcios de cristal de fins do sc. XIX e incio do
sc. XX.
Morse investiga como a televiso similar a outros modos de transporte e troca
da vida cotidiana. Ela compara a televiso com os shopping-centers e as freeways.
Para ela, os trs, de modo anlogo, conceituam-se como um nexo interdependente
de formas culturais, bi e tridimensionais, que no apenas se assemelham, mas obser-
vam princpios semelhantes de construo e operao. O mundo deles d origem a
um efeito atenuado de fico, isto , uma perda de contato com o aqui e o agora, que
ela chama de distrao. A respeito deste efeito sobre a percepo, ela diz:

This semifiction effect is akin to but not identical with split beliefknowing a
representation is not real, but nevertheless momentarily closing off the here
and now and sinking into another worldpromoted within the apparatuses of
the theater, the cinema, and the novel. Its difference lies primarily in that it
involves two or more objects and levels of attention and the co presence of two
or more different, even contradictory, meta-psychological effects. Ultimately,
distraction is related to the expression of two planes of language represented
simultaneously or alternately, the plane of the subject in a here and now, or
discourse, and the plane of an absent or nonperson in another time, elsewhere,
or story. (Morse 1990: 99)

Assim, nesse deslocamento entre dois planos de linguagem, em relao a dois


tempos e dois espaos, muitos aspectos da distrao so deixados para a imaginao
ou para um tratamento posterior: uma espcie de reviso de um rico campo da ico-
nografia que promove esse estado mental dividido, ao qual ela chama de a fantas-
magoria do interior. No s a televiso, mas outros meios eletrnicos constituem-se
em aparatos que incluem o espectador em um discurso atravs de modos de repre-
sentaes que alteram constantemente campos de referncia e relaes subjetivas
atravs de vrios nveis ontolgicos,. Esse dualismo de passagem e segmentao na
base operacional desses meios, Morse o trata em termos de uma relao entre dis-
curso (discourse) e relato (story).
Para desenvolver teoricamente essa relao, ela se inspira na obra The Practice of
Everyday Life de Michel de Certeau (1984) como premissa bsica da intercambialidade
entre signos e objetos. A sua viso de liberao da determinao formal, da vigilncia
e do controle baseia-se na distino entre linguagem e sociedade, enquanto sistemas

Terra roxa e outras terras Revista de Estudos Literrios


Volume 12 (Jun. 2008) ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa
[55-65]
Srgio Roberto Massagli (Unesp) 65
Homem da multido e o flneur no conto O homem da multido de Edgar Allan Poe

formais versus linguagem do modo como enunciada, ou uma forma social como
realizada na prtica.
Essa distino expressa espacialmente como a diferena entre lugar e espao,
sendo o primeiro uma localizao estvel e definida, enquanto o segundo seria com-
posto de interseces de elementos mveis, que levam em conta vetores de direo,
velocidade e tempo variveis. Para Morse, o espao um lugar co-praticado, o qual,
como propunha Benjamin com relao cidade moderna e seus flanurs, apropria-
do e redefinido por uma prtica enunciativa prpria da flanurie.

Referncias bibliogrficas

BAUDELAIRE, Charles. O pintor da vida moderna. Sobre a modernidade. So Paulo:


Paz e Terra, 2001.
BENJAMIN, Walter . Obras escolhidas III: Charles Baudelaire um lrico no auge do capita-
lismo. 3a. ed. So Paulo: Brasiliense, 1994.
ENGELS, F. A situao da classe trabalhadora na Inglaterra. Rio de Janeiro: Global,
1985.
FRIEDMANN, G. La crise du progrs, Paris, 1936.
MORSE, Margaret. An ontology of everyday distraction: The freeway, the mall, and
television. Patricia Mellencamp, ed. Logics of television: Essays in cultural criticism.
Bloomington: Indiana University Press, 1998. 193-221.
POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. Trad. Oscar Mendes e Milton
Amado. 3. ed. So Paulo: Globo, 1999.
WHITE, Edmund. O Flanur. So Paulo: Companhia das Letras, 2002.
WILSON, Elizabeth. The Invisible Flanur. New Left Review 191 (Feb 1992).

THE MAN OF THE CROWD AND THE FLANUR IN: EDGAR ALLAN POES SHORT-STORY THE MAN OF
THE CROWD

ABSTRACT: This paper analyses, through the reading of Walter Benjamin, the differences between the
flanur and the man of the crowd in Edgar Allan Poes short story The man of the Crowd, as well as
the constitution of the flanur as a privileged observer of that society and flanurie as a means of ap-
prehension and representation of that new space.
KEYWORDS: Modernity. Urban aesthetics. Flanur. Space.

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Volume 12 (Jun. 2008) ISSN 1678-2054
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