O Homem Na Multidão PDF
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RESUMO: Este artigo analisa, atravs da leitura de Walter Benjamin, a diferena entre o flanur e o
homem da multido, no conto O Homem da Multido, de Edgar Allan Poe, bem como a constituio
do flanur como observador privilegiado da vida moderna e a flanurie como meio de apreenso e
representao desse novo espao.
PALAVRAS-CHAVES: Modernidade. Esttica urbana. Flanur. Espao.
Em seus ensaios sobre a obra do poeta francs Charles Baudelaire, Benjamin cha-
ma a ateno para a figura do flanur que, com um prazer quase voyeurstico, com-
prazia-se em observar refletidamente os moradores da cidade em suas atividades
dirias. Dessa paixo do flanur pela cidade e a multido, decorre a flanurie como
ato de apreenso e representao do panorama urbano.
A expanso sem precedncia da economia industrial e a conseqente exploso
demogrfica das cidades, em especial Londres e Paris, acarretaram no surgimento
do ambiente urbano moderno, possibilitando novas formas de experimentar e per-
ceber. Isso, por sua vez, requeria um novo modo de olhar para o mundo e novas pro-
postas estticas.
Benjamin procura explicitar essas transformaes, ao investigar como tais mudan-
as foram registradas na literatura daquela poca. Baudelaire torna-se a figura cen-
tral em suas investigaes. Para ele, os textos de Baudelaire constituem os fragran-
tes mais precisos e intensos da vida social parisiense do sculo XIX, revelando as mais
finas e sutis articulaes do indivduo moderno com o cenrio urbano.
Benjamim afirma que a cidade o autntico cho sagrado da flanurie (1994:
191), e que o fenmeno da banalizao do espao constitui-se em experincia fun-
damental para o flanur (1994: 188). Baudelaire achava a cidade sedutora, principal-
mente em seus mauvais lieux, por onde se deixava levar em suas andanas errticas.
As ruas labirnticas da cidade constituem, para o perfeito divagador, observador
apaixonado, o fascnio da multiplicidade e do efmero, o gosto pelo movimento on-
dulante da multido. Segundo o poeta francs, o flanur inebriado pelo prazer de
se achar em uma multido, o que, para Benjamin, seria uma expresso misteriosa do
gozo pela multiplicao do nmero (1994: 54).
Para Baudelaire, h a beleza duradoura nos fenmenos, que permanecem atra-
vs de diferentes pocas, e h a beleza do acidental, do instantneo. Essa ltima
beleza, a da modernidade, para ser digna de se tornar antiguidade, deve ser extrada
pelo artista com todo o mistrio que a vida humana coloca nela involuntariamente
(Baudelaire 2001: 110). Esse trabalho, o de dar forma esttica ao moderno, cabe aos
artistas como Constantin Guys.
Um desses , sem dvida, Edgar Allan Poe, que, antes de Baudelaire, seu primeiro
tradutor para o francs, j havia explorado, em seu conto O Homem da Multido,
o tema da paisagem e da massa urbana. Nesse conto, Poe revela alguns traos no-
tveis, e basta apenas segui-los para encontrar instncias sociais to poderosas, to
ocultas, que poderiam ser includas entre as nicas capazes de exercer, por meios
vrios, uma influncia to profunda quanto sutil sobre a criao artstica (Baudelaire
2001: 119).
A cidade o templo do flanur, o espao sagrado de suas perambulaes. Nela
ele se depara com sua contradio: unidade na multiplicidade, tenso na indiferena,
sentir-se sozinho em meio a seus semelhantes.
Ao errar entre as galerias e bulevares, ao passear pelos mercados, o flanur o ser
que v o mundo de uma maneira particular, sem a pretenso de explicar, mas com a
inteno de mostrar, levando a vida para cada lugar que v. Sua paixo a exteriori-
dade, na rua encontra o seu refgio, desvincula-se da esfera privada, buscando sua
identificao com a sociedade na qual convive. Ocorre, porm, que essa identificao
resulta em grande parte complicada pela natureza complexa da sociedade moderna.
Nas ruas das metrpoles, o flanur constata que o homem moderno vitimado pelas
agresses das mercadorias e anulado pela multido, estando condenado a vagar pela
cidade como um embriagado em estado de abandono. essa angstia que o flanur
representou no sculo XIX.
O flanur aparece como a figura de um burgus que tem o tempo a sua disposio
e que pode dar-se ao luxo de desperdi-lo, para horror da sociedade capitalista de
sua poca. O flanur um burgus que leva uma vida sem objetivos definidos a no
ser buscar no complexo urbano rusgas, vos, becos por onde entrar em busca de
algum espetculo para os seus olhos sobre pernas.
Olhos e pernas so a essncia do flanur e da flanurie. Para isso, h que existir
um ambiente propcio ao seu flanar. Esse ambiente Paris, uma cidade feita para ser
vista pelo caminhante solitrio, pois somente a um passo ocioso pode-se apreender
toda a riqueza de seus ricos (mesmo velados) detalhes (White 1992: 43). Louis Se-
bastien Mercier, aps escrever o Tableau de Paris, escreveu: Eu andei tanto para es-
crever o Tableau de Paris que posso dizer que o fiz com minhas pernas, aprendendo a
ser gil, vido e vivaz no palmilhar o cho da capital. Esse o segredo para conseguir
ver tudo (White 1992: 44)
Outra caracterstica do flanur, que o distingue de um filsofo ou de um socilogo,
que ele procura por experincia e no por conhecimento. Para estes, grande parte
da experincia acaba sendo interpretada como e transformada em conhecimen-
to. J para aquele, a experincia permanece em certa medida pura, intil, em estado
bruto, fruto do olhar ingnuo, como o de uma criana, do tipo que Baudelaire atribui
a Constantin Guys.
Assim, forma-se um retrato dessa figura que, ao que parece, foi uma pessoa de
carne e osso, como mostra esta descrio de Paris, feita por volta de 1808, retirada
e resumida de um artigo de Elizabeth Wilson: o flanur um gentleman que passa
a maior parte de seu dia a vagar pelas ruas, observando o espetculo urbano as
modas, as lojas, as construes, as novidades e as atraes. Seus meios de vida so
invisveis, ficando a sugesto de uma riqueza particular, porm sem a presena da
responsabilidade familiar ou gerencial dessa riqueza. Seus interesses so primordial-
mente estticos e freqenta cafs e restaurantes onde atores, escritores e artistas se
encontram. Entretanto, parte do espetculo urbano lhe oferecido pelo comporta-
mento das classes baixas (vendedores, soldados, gente da rua). Ele uma figura mar-
ginal e tende a ser descrito como algum isolado daqueles a quem observa (Wilson
1992: 94-95).
O flanur, portanto, o leitor da cidade, bem como de seus habitantes, atravs de
cujas faces tenta decifrar os sentidos da vida urbana. De fato, atravs de suas andan-
as, ele transforma a cidade em um espao para ser lido, um objeto de investigao,
uma floresta de signos a serem decodificados em suma, um texto.
Ao semiotizar a cidade, o flanur, esse botnico do asfalto (Benjamin 1994: 34),
cria uma distino entre o observador e o observado. Mas, ao contrrio de criar, des-
se modo, uma posio privilegiada, estabelece com o seu objeto uma relao bas-
tante problemtica, uma vez que ele no apenas observa a multido a partir de um
standing point, mas se imiscui nela. Assim, sua leitura da cidade ocorre atravs de
O narrador de Poe pode ser considerado uma verso londrina do flanur parisien-
se de Baudelaire. Londres e Paris eram duas grandes capitais, mas Londres, j por
volta de 1844, quando o conto escrito, encontra-se mais marcada pela industriali-
zao e por todas as conseqncias da revoluo taylorista nas formas de produo
do capital. Nesse ambiente, de se esperar que o flanur no existisse ou j nascesse
fadado a desaparecer. Como diz Benjamin, citando Georges Friedmann, A obsesso
de Taylor, de seus colaboradores e sucessores, a guerra flanurie (Friedmann
1936: 76)
Em comparao, a Paris de Baudelaire ainda guardava traos dos velhos bons tem-
pos. Na Paris de Baudelaire, a situao era diferente, ainda se apreciavam as ga-
lerias, onde o flanur se subtraa da vista dos veculos... Havia o transeunte, que se
enfia na multido... Mas havia tambm o flanur, que precisa de espao livre e no
quer perder sua privacidade Ao contrrio do homem da multido, do conto de Poe,
o flanur um ocioso, a caminhar como uma personalidade que rejeita a diviso
de trabalho e a industriosidade da sociedade de ento. Benjamim diz que era de
bom-tom levar tartarugas para passear pelas galerias, como uma forma de protes-
tar contra o ritmo imposto pelo capital (1994: 50-51).
Poe descreve Londres como possuindo algo de brbaro que a disciplina mal con-
segue sujeitar. A industrializao e suas benesses isolam os seus beneficirios e
os aproxima da mecanizao. Segundo Benjamin, O texto de Poe torna inteligvel
a verdadeira relao entre selvageria e disciplina. Seus transeuntes se comportam
como se, adaptados automatizao, s conseguissem se expressar de forma auto-
mtica. Seu comportamento uma reao a choques (1994: 126). a viso desses
autmatos em suas mars humanas no anoitecer que enche o narrador de Poe com
uma emoo demasiadamente nova e o faz desinteressar-se pelo que passava no
salo do Caf onde se encontra, para se absorver na contemplao da cena l de
fora (1990: 164)
H no observador de Poe aquela mesma ateno que encontramos na descrio
de Constantine Guys feita por Baudelaire, aquela sensao de estar sempre, espi-
ritualmente, no estado de convalescena (2001: 196). Depreendemos, contudo,
segundo o prprio narrador do conto, que esse estado no lhe ocorria sempre;
antes, entendemos tratar-se de um estado raro, incomum. Assim ele descreve seu
estado naquela tarde:
quanto mais particular o evento, mais a marca do tempo deixar nele o seu carim-
bo, como a moda, campo sobre o qual refletiu Baudelaire. Ainda, segundo ele, essa
mesma observao se aplica s profisses, porque cada uma extrai sua beleza inte-
rior das leis morais a que est submetida. Em algumas essa beleza ser marcada pela
energia; em outras carregar os sinais visveis da ociosidade. como o emblema do
carter, a estampilha da fatalidade (Baudelaire 2001: 114).
Ao olhar os transeuntes em suas relaes coletivas, depois de uma observao
abstrata e generalizadora, o narrador do Poe desce aos pormenores e comea a ob-
servar com interesse penetrante a variedade da multido. H entre o narrador do
conto e a multido que observa, aquela dialtica da flanurie em que temos, de um
lado, aquele que est na posio de ver a todos e, de outro, o que se encontra invi-
svel, escondido na multiplicidade dos rostos. Essa dialtica se interioriza no flanur
como uma ambigidade. Se ele se concentra na observao, sua atitude adquire
contornos detetivescos. (Benjamin 1994: 69) ; se estagnar na estupefao, o flanur
pode se tornar um basbaque. Obviamente o flanur no um detetive e muito me-
nos um basbaque. Contudo essa tenso que sua personalidade pode engendrar
encontrada no conto de Poe.
inegvel que, no conto de Poe, apesar das diferenas existentes entre esses
dois plos, podemos dizer que tanto o narrador, como o misterioso personagem,
compartilham caractersticas do flanur. O velho demnio encarna, num extremo,
a erraticidade, a voracidade voyeurstica, a solido urbana. Vemos, porm, tratar-se
de uma personalidade amortecida pela recepo de choque, um embasbacado, uma
marionete agitada pelo ritmo da produo capitalista e pelo frenesi do consumo. Pa-
rodiando Baudelaire, assemelha-se a um caleidoscpio desprovido de conscincia.
J o narrador tem a fome da experincia, somada perplexidade e ao assombro. Sua
perambulao acompanha os fluxos da cidade e os passos do homem da multido,
buscando, entretanto, fixar, como fantasmagoria, suas impresses.
Essa inteno do registro aguada pela conscincia do mistrio que envolve os
fenmenos urbanos, mesmo os mais triviais. Esse senso do mistrio aquele de estar
o tempo todo no equvoco, nos aspectos duplos, mltiplos, na suspeio do aspecto
(imagens dentro de imagens), formas do devir que sero, segundo o esprito do
observador.
Se Deus imprimiu o destino de cada homem na sua fisionomia, como disse Bal-
zac (Benjamin 1994: 212)., basta ento observ-lo cuidadosamente, para ler, em seus
sinais exteriores, a sua profisso, os seus vcios e tudo o mais que marca cada dobra
de sua pele. Ou ento, basta escutar uma palavra de algum que passa para, atravs
do tom de sua voz, ligar o nome de um pecado a ele.
A ndole detetivesca do narrador de Poe limita com o esprito curioso do flanur,
na medida em que ambos buscam estudar a aparncia fisionmica das pessoas, para
ler-lhes a nacionalidade e a posio, o carter e o destino, atravs de sinais aparentes,
tais como seu modo de andar, sua constituio corporal, sua mmica facial, como po-
demos notar nos excertos abaixo:
Essa perseguio ocupar boa parte do conto. A investigao, com o fim de ler a
extraordinria histria que o narrador imaginou estar escrita naquele peito, en-
cerrar-se- ao cabo de um dia inteiro de andana errtica. Nas palavras do narrador-
personagem, ao cabo de um dia completo, exausto diante da infindvel caminhada
em ziguezague, sobreveio-lhe um aborrecimento mortal. Nesse momento pra em
frente do velho, olha-o fixamente no rosto, como se a mirada frontal lhe pudesse
revelar o que de maneira obliqua no conseguira. O velho simplesmente o ignora,
como se fosse um autmato, e prossegue em sua promenade folle et sans fin, como
um lobisomem irrequieto a vagar na selva social (Benjamin 1994: 187):
Dessa maneira, o conto se fecha, com a frase em alemo que, no primeiro par-
grafo do conto, utilizada para introduzir a tese de que h coisas que no se deixam
ler. Em outras palavras, h segredos que no podem ser ditos porque no se deixam
ler. Assim, o conto se fecha dentro de uma estrutura circular, conferindo-lhe certo
hermetismo que lhe acentua a atmosfera de mistrio.
No obstante essa atmosfera de mistrio que deixa no ar ao final, o conto se re-
laciona claramente com a crtica de Benjamin tese convencional, mas insensata,
que racionaliza a conduta do flanur e que a base inconteste de muita literatura a
seu respeito. Muito mais do que ler na fisionomia dos transeuntes o seu carter ou
a sua profisso, o flanur busca perder-se (ou encontrar-se?) na anonimia da vida na
grande cidade. A City a realizao do antigo sonho do labirinto e, segundo Ben-
jamin, o flanur, sem o saber, persegue essa realidade. Busca intil, essa do narrador
de Poe? O saber que o flanur procura seria vizinho cincia oculta da conjuntura?
(Benjamin 1994: 199). Talvez... afinal, essa irresoluo pode ser entendida como o
resultado do desenvolvimento de um processo que nasce da euforia e de uma gran-
de apetncia no incio da narrativa (daquele estado de convalescena) e termina no
aborrecimento mortal da dvida. Assim, da mesma maneira que a espera parece ser
o estado prprio do observador impassvel (Benjamin 1994: 197), a dvida seria a
condio final do processo investigativo do flanur.
5. Concluso
O que podemos notar, no conto de Poe, que ele antecipa uma questo bsica
que est na essncia da Modernit. Seu narrador representa o prottipo do escritor
moderno, ocupado em capturar a beleza do efmero e do transitrio, e, para conse-
gui-lo, ele deve emergir na experincia de sua condio enquanto elemento integran-
te dessa nova sociedade.
Na flanurie, isto , no deambular desprovido de propsitos, o flanur nos oferece
a imagem movente, resultado da apreenso de uma fugidia profuso de imagens ins-
tantneas, cuja essncia reside nas fantasmagorias de um cotidiano vivido nos sub-
solos do consciente. Na psicologia do flanur opera a memria ressureicionista, que
faz com que as cenas impagveis que todos ns podemos rever fechando os olhos,
no sejam aquelas que contemplamos com um guia nas mos, ou seja, aquelas para
as quais dirigimos nossa ateno segundo propsitos ou interesses despertos; antes,
This semifiction effect is akin to but not identical with split beliefknowing a
representation is not real, but nevertheless momentarily closing off the here
and now and sinking into another worldpromoted within the apparatuses of
the theater, the cinema, and the novel. Its difference lies primarily in that it
involves two or more objects and levels of attention and the co presence of two
or more different, even contradictory, meta-psychological effects. Ultimately,
distraction is related to the expression of two planes of language represented
simultaneously or alternately, the plane of the subject in a here and now, or
discourse, and the plane of an absent or nonperson in another time, elsewhere,
or story. (Morse 1990: 99)
formais versus linguagem do modo como enunciada, ou uma forma social como
realizada na prtica.
Essa distino expressa espacialmente como a diferena entre lugar e espao,
sendo o primeiro uma localizao estvel e definida, enquanto o segundo seria com-
posto de interseces de elementos mveis, que levam em conta vetores de direo,
velocidade e tempo variveis. Para Morse, o espao um lugar co-praticado, o qual,
como propunha Benjamin com relao cidade moderna e seus flanurs, apropria-
do e redefinido por uma prtica enunciativa prpria da flanurie.
Referncias bibliogrficas
THE MAN OF THE CROWD AND THE FLANUR IN: EDGAR ALLAN POES SHORT-STORY THE MAN OF
THE CROWD
ABSTRACT: This paper analyses, through the reading of Walter Benjamin, the differences between the
flanur and the man of the crowd in Edgar Allan Poes short story The man of the Crowd, as well as
the constitution of the flanur as a privileged observer of that society and flanurie as a means of ap-
prehension and representation of that new space.
KEYWORDS: Modernity. Urban aesthetics. Flanur. Space.