TMEPM VitorBarbosa
TMEPM VitorBarbosa
TMEPM VitorBarbosa
Universidade Aberta
2014
Departamento de Humanidades
Universidade Aberta
2014
Aos meus maiores Mestres, os meus pais, Jos e Teresa
AGRADECIMENTOS
Este trabalho s foi possvel com a ajuda, cooperao e gratido de muitas pessoas a quem deixo aqui o meu
profundo agradecimento:
Albino da Silva
Alexandre Magno
Ana Varela
Carlos Canatrio
Carlos Costa
Dulce Baro
Elisa Sousa
Jos Baltazar Tasi
Jos Antnio Almeida
Lus da Costa
Maria de Noronha
Mrcia Pinto
Nuno Vasco
Pedro Reis
Rogrio Pinto
Slvia Soares
A minha querida irm, Marta Barbosa, por todo o trabalho de aquisio e envio de bibliografia para Timor-Leste;
A minha querida companheira, Rute Miranda, pelo trabalho de reviso do texto e preciosas sugestes;
A minha estimada orientadora, a Professora Doutora Isabel Maria de Barros Dias, por todas as sugestes,
correces e indicaes, sem as quais eu no teria realizado e concludo este estudo.
vii
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RESUMO
Dentro da Literatura Oral Timorense os relatos fundacionais ocupam lugar distinto. Resultado de um imaginrio
ancestral, as narrativas orais multiplicam-se entre os diversos grupos tnicos timorenses. Narrativas pouco
divulgadas e conhecidas apenas internamente, da a necessidade de um estudo que as liberte desse
secretismo e que permita valorizar as suas simbologias e elementos mais recorrentes. este o objectivo mais
amplo a que se prope responder esta dissertao, que tratar de apresentar e de estudar mitos e lendas que
explicam a origem de aldeias, montanhas, da prpria ilha de Timor, mas tambm a ordem actual, a criao do
Universo como o conhecemos. Ordem csmica nestes relatos obra de deuses e seres dotados de artes
mgicas, mas tambm de heris humanos que enfrentam foras adversas, possibilitando uma nova ordem e o
despoletar de novas realidades. Timor, terra do Sol Nascente, entendido como o eixo central do Cosmos
onde ocorreram dilvios e cataclismos, terra sagrada porque local onde os deuses, os primeiros homens,
animais e plantas surgiram nos alvores do Mundo. So esses contos, enredos e protagonistas que
procuraremos analisar nas prximas pginas.
A Literatura Oral e o Imaginrio Timorense esto profundamente conectados com a Natureza e com o Sagrado,
da convocarmos para o nosso estudo, no apenas a Literatura, mas disciplinas como a Antropologia, a
Etnologia e a Histria, num trabalho de interdisciplinaridade que urgia desenvolver, vendo de que forma o
homem timorense se relaciona com o meio exterior, e como narrativiza os eventos que considera mais
marcantes como a criao de lugares, fenmenos e acontecimentos ocorridos in illo tempore. Os relatos e
rituais produzidos so ainda reveladores de uma identidade que se manifesta de diferentes formas nas
expresses artsticas e religiosas, como veremos.
Os relatos fundacionais aqui estudados foram recolhidos, transcritos e preservados por autores portugueses
como Ezequiel Pascoal, Artur S ou Jorge Duarte, conhecedores privilegiados do imaginrio timorense. Para
alm destes textos, reformos a nossa investigao procurando narrativas noutras publicaes e recolhendo
textos que, at ao presente momento, ainda no tinham sido passados para o papel.
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ABSTRACT
Within the Timorese Oral Literature, the foundation narratives have a distinctive position. The oral narratives are
the result of an ancestral imaginary, and they multiply themselves among the different Timorese ethnical groups.
These are not very well disseminated narratives and are known only inside the country, hence the necessity of a
study that not only releases them from this secretiveness, but may also view their common symbolisms and
recurring elements. This is the broader objective that this study seeks to answer, that shall present and study
myths and legends that explain not only the origin of villages, mountains and of the Timor island, but also the
recent order, the creation of the Universe as we know it. The cosmic order in these narratives is the work of the
gods and beings, which possess magical arts, and also of human heroes, that face the adverse forces, allowing
a new order and the beginning of new realities. Timor, land of the Rising Sun, is understood as the central pillar
of the Cosmos, where floods and terrific storms took place, sacred land, for it is a place where gods, the first
men, animals and plants first appeared in the beginning of the World. These are the tales, the plot and the
actors that we will analyse in the next pages.
The Timorese Oral Literature and the Timorese Imaginary are deeply connected to Nature and with the Sacred,
hence we call for our study not only Literature, but also disciplines like Anthropology, Ethnology and History, in
an interdisciplinary work that was urgently required, as we witness how the Timorese man connects with the
outside world and how he narrates the key events, as the creation of places, phenomena and events in illo
tempore. The produced narrative and rituals also reveal an identity that expresses itself through different artistic
and religious expressions, as we shall see.
The narrative creations analysed in this study, were collected, transcribed and preserved by Portuguese
authors, like Ezequiel Pascoal, Artur S or Jorge Duarte, connoisseurs of the Timorese imaginary. Apart from
these texts, ZHYHUHLQIRUFHGRXUUHVHDUFKE\VHDUFKLQJIRUQDUUDWLYHVLQRWKHUSXEOLFDWLRQs and collecting texts
that, until the present moment, have not yet been published.
xi
xii
NDICE
AGRADECIMENTOS ................................................................................................................................................. vii
RESUMO................................................................................................................................................................. ix
ABSTRACT .............................................................................................................................................................. xi
NDICE .................................................................................................................................................................. xiii
CAPTULO I
PORQU ESTUDAR LENDAS E MITOS FUNDACIONAIS EM PLENO SCULO XXI................................................................ 17
CAPTULO II
A LITERATURA ORAL TIMORENSE BREVE OLHAR ..................................................................................................... 23
CAPTULO III
O CROCODILO, AV ANCESTRAL, QUE SE TRANSFORMOU EM TERRA PTRIA ................................................................ 33
CAPTULO IV
ANIMAIS PROTAGONISTAS, ALIADOS DO HOMEM E CATALISADORES DE MUDANA ...................................................... 43
CAPTULO V
TIMOR EIXO CENTRAL ONDE NASCEU A ORDEM CSMICA ACTUAL ............................................................................. 59
CAPTULO VI
NO TEMPO EM QUE A TERRA E O CU ESTAVAM LIGADOS ........................................................................................... 65
CAPTULO VII
O SOL, A LUA E AS ESTRELAS DEUSES E PROGENITORES DOS TIMORENSES ............................................................. 71
CAPTULO VIII
A LUA ELEMENTO MUTVEL TECEDOR DO TEMPO ................................................................................................... 83
CAPTULO IX
DO MNU-CCO AO GNESIS - APROXIMAES DAS LENDAS MITOLGICAS TIMORENSES A OUTROS TEXTOS SAGRADOS 87
CAPTULO X
DE LAUTEM AO TATA-MAI-LAU ONDE TUDO COMEOU IN ILLO TEMPORE ................................................................... 95
CAPTULO XI
FORAS TERRESTRES COMBATEM FORAS AQUTICAS: O NASCIMENTO DE UMA NOVA ORDEM .................................... 101
xiii
CAPTULO XII
GUA FONTE DE NOVA VIDA E NOVA ORDEM TAMBM AO NVEL DOS MICRO-COSMOS OU RECRIAO DO ACONTECIMENTO
PRIMORDIAL ETERNO RETORNO .......................................................................................................................... 105
CAPTULO XIII
A SAGRADA FAMLIA: FOGO, RVORE E PEDRA ........................................................................................................113
CAPTULO XIV
A RVORE SAGRADA - RAZES E TRONCOS DOS POVOS TIMORENSES ........................................................................ 125
CAPTULO XV
SIMBOLOGIA E IDENTIDADE................................................................................................................................... 135
CAPTULO XVI
O TAIS QUADRO MULTICOLOR DO IMAGINRIO TIMORENSE .................................................................................... 139
CAPTULO XVII
ESPADAS, AZAGAIAS E PUNHAIS CONSTRUTORES DA NAO MAUBERE ..................................................................... 143
CAPTULO XVI
AS KEKE (PULSEIRAS GROSSAS) E A ORIGEM DO TOPNIMO VIQUEQUE .................................................................... 151
CAPTULO XVIII
OS BELAK E KAIBAUK OU A UNIO DO SOL COM A LUA .............................................................................................. 153
CAPTULO XIX
CONCLUSES FINAIS ........................................................................................................................................... 157
BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................................................... 159
ANEXOS
ANEXO 1 ............................................................................................................................................................ 169
ANEXO 2 ............................................................................................................................................................ 181
xiv
O velho entre os velhos, liurai entre os liurais, acocorado sobre os calcanhares, embrulhado em panos como se vestisse um turbante
da testa aos ps, levanta a sua voz suja e frgil diante da tribo. No para ela que ele fala. Melhor dizendo, atravs do corpo
presente dos que o rodeiam, e do escuro que os envolve, que o velho se comunica com esses outros que, estando presentes algures
ali -, deixaram h sculos de ter corpo, escutando (como esta noite), na memria dos seus muitos descendentes, as senhas que os
resgatam do olvido. aos antepassados que o velho se dirige, acordando os nomes da sua prpria linhagem por cima dos cumes
VDJUDGRV GD FRUGLOKHLUD GR 5DPHODX 1yV VRPRV RV ILOKRV GR 6RO 1yV VRPRV RV ILOKRV GDV HVWUHODV 6RPRV RV ILOKRV GD /XD
proclama o velho em lngua mambae.
Na ausncia de expresses escritas, so sobretudo as tradies orais que perduram e se transformam ao longo do tempo,
enriquecendo-se e perdendo-se em simultneo.
Kay Rala Xanana Gusmo, husi bei ala TIMOR SIRA NIA LIMAN FROM THE HANDS OF OUR ANCESTORS (s/d: 11)
Amanh talvez j seja tarde para reunir o valioso tesouro de lendas timorenses, filhas da imaginao de homens de outros tempos,
anteriores queles em que a estas remotas praias aproaram as naus que traziam o fermento de profundas transformaes...
xv
xvi
CAPTULO I
O homem timorense possui explicaes muito prprias para a origem do cosmos, da sua ilha ou
da sua aldeia. O seu imaginrio ancestral, preservado de gerao em gerao, representado
nas suas mltiplas manifestaes culturais e religiosas, encerra tesouros escondidos sob a
forma de lendas ou mitos. So esses tesouros que pretendemos estudar, alguns j passados do
oral ao escrito, outros ainda na Memria colectiva ou individual, ela, sim, a tecedeira de tempos
e imagens que surgem representados por smbolos e signos que ultrapassam o domnio
estritamente lingustico, muitas das vezes ancestralmente enraizados na cultura e tidos como
sagrados, fazendo parte da identidade, j que so elementos diferenciadores:
O smbolo pode fornecer-nos novos modos de conceber a realidade, mas s tomando o conceito como
ponto de partida, podemos reconhecer o excesso de sentido a presente. O smbolo possui uma dimenso
semntica, passvel de significao e interpretao, e uma dimenso no semntica, impossvel de traduzir
FRQFHSWXDOPHQWH5LFRHXU
Para responder a essa impossibilidade, o homem ancestral recorre a uma linguagem metafrica,
frequente na literatura oral timorense quer se trate de lendas, cnticos ou oraes. Metfora e
Mito possibilitam formas de estabelecimento de analogias entre entidades aparentemente to
distantes (como corpo humano, casa e cosmos, a ttulo de exemplo), num jogo semntico de
procura de alargamento das curtas fronteiras da significao literal, conseguindo que a palavra
ganhe contornos de consagrao, j que ligada ao religioso, sacralizao de lugares, objectos,
animais, plantas ou pessoas. Os investigadores americanos Lakoff e Johnson destacaram-se no
estudo da metfora, com a sua reconhecida obra Metaphors We Live By (2003). O seu foco
incidiu sobre o uso e poder da linguagem metafrica no quotidiano humano, no seu imaginrio e
pensamento:
Imagination, in one of its many aspects, involves seeing one kind of thing in terms of another kind of thing
what we have called metaphorical thought. Metaphor is thus imaginative rationality. Since the categories of
our everyday thought are largely metaphorical and our everyday reasoning involves metaphorical
17
entailments and inferences, ordinary rationality is therefore imaginative by its very nature. (Lakoff and
Johnson, 2003: 193)
Nas sociedades ancestrais como o caso da timorense, Metfora e Mito, surgem como
mecanismos e processos de associao, de analogia entre realidades aparentemente distintas,
de armas da imaginao enquanto construes lingusticas assentes em unidades simblicas,
mecanismos criativos que, muitas vezes, procuram a explicao verbal de fenmenos e
realidades. Mircea Eliade em Aspectos do Mito afirma:
O homem das sociedades em que o mito uma coisa viva, vive num mundo aberto, embora cifrado e
misterioso. O Mundo fala ao homem e, para compreender essa linguagem, basta conhecer os mitos e
decifrar os smbolos. Atravs dos mitos e dos smbolos da Lua, o homem compreende a misteriosa
solidariedade entre temporalidade, nascimento, morte e ressurreio, sexualidade, fertilidade, chuva,
vegetao, etc. O Mundo j no uma massa opaca de objectos arbitrariamente dispersos, mas um
cosmos vivo, articulado e significativo. Em ltima anlise, o Mundo revela-se enquanto linguagem. Ele fala
ao homem atravs da sua prpria maneira de ser, atravs das suas estruturas e dos seus ritmos.
A existncia do Mundo o resultado de um acto divino de criao, as suas estruturas e os seus ritmos so
consequncia de acontecimentos que ocorreram no incio do Tempo. (Eliade, 2000: 120-121)
Em Timor-Leste as narraes orais, sob a forma de mitos ou lendas, que explicam esses
acontecimentos - que ocorreram no incio do tempo existem em grande nmero espalhadas
um pouco por todo o territrio e continuam bem vivas no imaginrio individual e colectivo. Este
nosso estudo no pretende, no entanto, fazer uma compilao de lendas ou mitos embora o
material potencial para o fazer exista em elevado nmero, assim o queiram os estudiosos. O
nosso foco dirige-se ao imaginrio timorense, partindo da sua ancestralidade, ligando-o ao
quotidiano presente, observando de que forma os elementos presentes nas narrativas se foram
tornando simbologias representativas de uma cultura e identidade diferenciadas e singulares.
Entre as muitas narrativas optamos pelas lendas e pelos mitos que explicam a origem de
lugares, da ilha ou do Mundo, j que so, no nosso entender, aqueles onde esses elementos
simblicos mais facilmente so identificados e, talvez, as que mais perduraram no imaginrio
colectivo, dada a sua fora expressiva e simblica, basta pensarmos, a ttulo de exemplo, na
lenda/mito do crocodilo, a narrativa mais conhecida e da qual existem mais verses e registos.
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Haveria certamente mltiplas formas de erigir a nossa obra, indo directamente s fontes,
conversando com os OLDQDin, recolhendo os relatos orais da boca de emissores privilegiados, ou
ento ir coligindo registos orais e escritos ao longo de determinado tempo. No entanto, esse tipo
de pesquisa exigiria muito tempo e disponibilidade da nossa parte, com a agravante de no ser
fcil a obteno de material de estudo j que, muitas vezes, o timorense olha para o malae
(estrangeiro) com certa desconfiana, como algum capaz de perturbar a sua paz e ordem
natural, como contaminador colonialista capaz de violar o seu espao e a sua cultura ancestrais.
O padre Jorge Barros Duarte revela bem o secretismo existente volta das manifestaes
artsticas e religiosas timorenses. Apresentamos de seguida uma das suas confisses, mas
podamos dar outros exemplos de antroplogos ou etnlogos que, s depois de muita
convivncia e de enraizamento nas comunidades locais, puderam concretizar com sucesso as
suas investigaes:
Este instinto de defesa das suas crenas to profundo no indgena que o meu principal informador
convertido ao catolicismo em 1959, e estando ao meu servio desde ento, s volvidos sete anos, e depois
de me haver iludido umas trinta vezes sobre o mesmo assunto, se decidiu a revelar-me os nomes das
divindades ataros L-Kli e Mimtu!... E, quando chegou ao conhecimento de outros indgenas, tambm j
convertidos ao catolicismo, que aquele meu informador me havia revelado muitos segredos da sua religio
primitiva, no se coibiram de manifestar a sua reprovao, mesmo na minha frente. (Duarte, 1984: 07)
Optamos, por isso, por partir dos registos j publicados, principalmente os de padres
portugueses, em particular os de Ezequiel Pascoal, Artur Baslio de S e Jorge Barros Duarte,
que viveram em Timor-Leste, nos anos 40, 50 e 60 do sculo passado, os quais, dada a sua
proximidade com as comunidades onde estavam inseridos, puderam fazer um trabalho de
recolha de grande profundidade e diversidade. Os seus trabalhos seriam por si s suficientes
para responder aos nossos objectivos, fruto da qualidade e rigor dos mesmos, e tambm porque
os elementos que pretendemos analisar enquanto unidades simblicas esto a bem presentes.
Procuramos, contudo, recolher na medida das nossas possibilidades outros registos, que
servissem os nossos intentos e que possibilitassem uma viso mais alargada do imaginrio
timorense, mais concretamente da sua literatura oral e dos seus relatos fundacionais, recolha o
mais abrangente possvel, ou seja, representativa do maior nmero de comunidades locais e das
suas especificidades e marcas culturais particulares.
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Mas porqu estudar relatos fundacionais da literatura oral timorense quando esto to
esquecidos e guardados nas montanhas e vales timorenses? Justifica-se fazer uma dissertao
de mestrado sobre o imaginrio timorense, nos nossos dias, em que estas matrias no
interessam maioria dos mortais? A riqueza da literatura oral timorense seria per si razo mais
do que suficiente para um estudo desta natureza, mas so de vria ordem os motivos pelos
quais nos aventuramos nesta caminhada. Primeiro, quando aqui chegamos, em Setembro de
2000, ficamos fascinados com a quantidade e qualidade dos relatos orais, passados para o
papel por professores e alunos, que a nosso pedido iam desfilando lendas, contos ou fbulas,
muitos deles explicando a origem de um lugar, aldeia, montanha, nascente e at da prpria ilha.
O padre Ezequiel Pascoal que compreendeu bem o imaginrio timorense diz-nos:
O meu empenho incidiu sobretudo, na procura de lendas, contos e fbulas, porque a meu ver, o ficcionismo
uma das mais caractersticas manifestaes da alma timorense. , at certo ponto, mais do que a arte, a
sua expresso documental. Surpreende, de perto, os meandros da sua psicologia. Talvez de nenhum outro
ngulo se abarque melhor a sua mentalidade. (Pascoal, 1967: 14)
A diversidade e riqueza desse patrimnio singular merecem, no nosso atender, uma maior
ateno, sob pena de muito se perder, pois se no passado esses registos iam passando de
gerao em gerao, nos tempos que correm os mais jovens esto mais atentos a outras
questes e interesses. , por isso, imperioso que as autoridades timorenses, os estudiosos de
reas como a Antropologia, a Literatura, a Etnologia e a Sociologia ou as associaes culturais
comunitrias faam pesquisa, recolha e estudos desses tesouros ancestrais. Pela nossa parte
esperamos que a nossa humilde contribuio possa despertar o interesse por estas matrias em
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outros e que o imaginrio timorense, nas suas mais diversas manifestaes tenha a ateno
devida, sendo tambm mais divulgado alm fronteiras.
21
22
CAPTULO II
A origem da ilha de Timor e dos seus povos primitivos esteve durante muitos anos envolta em mistrio.
Escavaes levadas a cabo por estudiosos portugueses nas dcadas de 50 e 60, do sculo passado,
encontraram vestgios que colocam os primeiros habitantes dentro dos perodos Mesoltico e Paleoltico:
Breuil declarou, em 1959 (numa conferncia realizada na Academia das Cincias de Lisboa), ser muito provvel que os mais
primitivos representantes da Humanidade teriam estado na ilha de Timor e possivelmente desembarcado na costa nordeste,
facto que demonstrado pela abundncia e variedade dos materiais arqueolgicos ali descobertos.
J em 1963, Antnio de Almeida colheu, na gruta de Lne Hra, 32 pequenas peas de pedra lascada, que classificou como
pertencentes ao Mesoltico [...] Entretanto, os investigadores portugueses da Misso Antropolgica haviam j publicado, em
1964, um novo estudo sobre 81 peas paleolticas (sendo 74 da estao de Laga, 6 de Maliana e 1 de Suai). (Almeida, 1994:
237)
A par da sua ancestralidade, estamos perante uma cultura extremamente diversificada do ponto de vista
etnolingustico estudo de Antnio Almeida, de 1955, d conta de 31 grupos etnolingusticos. (cf. tabela em
Almeida, 1994: 36) Gunn (2001: 21) afirma que esses 31 grupos etno-lingusticos se foram reduzindo a sete
grupos lingusticos1 principais, a saber: Vaiqueno, Makua, Fataluku, Makassai, Ttum-Galoli-Waimaha e
Mambai-Tokodede-Kemak. Sendo estes os principais grupos, representantes privilegiados do imaginrio
timorense, procuraremos, na medida do possvel, apresentar relatos fundacionais das suas literaturas orais,
para assim darmos uma imagem aproximada das suas diversas tonalidades. Este tecido social e cultural de
diversas cores curioso que em Timor o tais2 (tecido de mltiplas funes, desde vesturio a presente de
festas de casamento ou objecto de decorao) diferente, nas cores e motivos (com figuras geomtricas e
animais como galos, bfalos, serpentes), entre os diferentes grupos etno-lingusticos que compem o territrio
actual - o que prova que estamos perante um povo (ou povos) com manifestaes bem vincadas das suas
razes.
1 Sete grupos lingusticos que segundo Hull & Eccles (2005: xv) falam 16 lnguas, pois cada grupo lingustico apresenta diferentes
lnguas locais.
2 Tais a quem daremos ateno num captulo subordinado ao tema Simbologia e Identidade.
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Tambm na tradio oral vemos expresses similares e distintas ao longo da ilha. Se por um lado encontramos
relatos a tratar os mesmos temas, seja a origem de terras e nascentes, de montanhas ou ribeiras, por outro
lado os protagonistas, a roupagem e mesmo o desfecho muitas vezes diverso, dependendo de quem conta,
em que circunstncias o faz e de quem o interlocutor.
Outro ponto comum surge na presena dos personagens desses mitos e lendas, j que animais como o
crocodilo, o macaco, a enguia, o bfalo ou o porco, e elementos naturais como guas, pedras, montanhas e
rvores preenchem e destacam-se em grande parte desses relatos, sendo que cada comunidade possui os
seus elementos predilectos, muitos com carcter totem ou sagrado (llik)3 , elementos esses que merecero a
observao da nossa lente e que analisaremos em diferentes narrativas, tentando ver de que forma se
relacionam e quais as interpretaes que podemos fazer das suas simbologias.
A componente religiosa elemento intrnseco cultura ancestral timorense, sagrado e profano misturam-se,
pois se os seus povos foram maioritariamente gentios durante muitos sculos, isso no significa que vivessem
afastados do sagrado. Pelo contrrio, em Timor tudo ou quase tudo pode ser llik, desde simples pedras at
SHTXHQRV REMHFWRV GR TXRWLGLDQR $ SDUWLU GD PDLV HOHPHQWDU hierofania por exemplo, a manifestao do
sagrado num objecto qualquer, uma pedra ou uma rvore [...] toda a Natureza susceptvel de revelar-se como
VDFUDOLGDGHFyVPLFD(OLDGH-26), e em Timor isso continua bem presente. Esta religiosidade foi e
vivida intensamente e, h muitos timorenses que ao domingo de manh vo missa, enquanto tarde
participam em cerimnia animista (por exemplo, na inaugurao de uma casa sagrada ou uma llik) sem que
isso constitua qualquer tipo de constrangimento. O Deus sempre o mesmo, designado em Ttum por
Maromak o Deus nico, o Ser Brilhante e Supremo Criador do Universo, aquele a quem os agricultores pedem
boas colheitas e a quem os Lia Nain (senhores da palavra, verdadeiras enciclopdias vivas de literatura oral e
seus guardies) exortam nas suas oraes de agradecimento e de splica (pedindo chuva, por exemplo):
O espao e a vida da sociedade tradicional timorense encontravam-se impregnados pelo sagrado. Assim, existiam terras
sagradas (rai-llik), rvores sagradas (ai-llik), pedras sagradas (fatuc-llik), fontes sagradas (b-llik), montes sagrados
(foho-llik), casas sagradas (uma-llik), os donos do sagrado (llik na'in), etc. A realizao de festas e ritos religiosos visavam
3 Este conceito Llik merece uma explicao cuidada da nossa parte. Trata-se de um vocbulo de raio de significao alargada,
podendo significar a fora vital ou poder mgico de ndole positiva, exercido por determinado objecto, animal ou planta, no
dependendo estes do seu volume, estrutura ou antiguidade, antes do valor simblico que lhe do os seus fiis adoradores. Deste
modo, uma pequena pedra ou medalha podem ser considerados llik por determinada pessoa. Esta primeira nota de extrema
importncia para se perceber adiante determinadas caractersticas dos elementos presentes nos relatos orais intimamente conotadas
com este conceito. Para um melhor entendimento do mesmo confronte-se Menezes, 2006: 97-99.
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fazer o sagrado ou fazer o estilo (halo-llik). Por isso, havia estilos das chuvas, das casas, das hortas, dos mortos, etc.
(Figueiredo, 2004: 103)
Como observamos anteriormente, existe uma profunda e mesclada ligao entre o quotidiano dos timorenses,
a sua cultura e a sua natureza, numa procura de conexo com o sagrado, tendo por objectivo ordenar e
conseguir explicar o caos csmico e os seus diversos constituintes (terra, sol, cu, lua, natureza e seus
fenmenos). Foi essa procura de ordenao e de tentativa de explicao da origem do Homem, do Mundo,
seus lugares e criaturas que esteve na gnese desses relatos orais, que foram passando de gerao em
gerao at aos nossos dias. Qualquer relato inclui na sua estrutura uma relao estreita do mundo animal e
vegetal com o homem, assumindo, por vezes aqueles caractersticas deste e vice-versa.
No podemos tambm esquecer que a escrita foi introduzida pelos portugueses no sculo XVI, mas grande
parte dos timorenses no frequentou a escola, pois s em meados da dcada de 70 do sculo passado que o
ensino se universalizou. Assim, a sua formao cultural e religiosa fazia-se no seu pequeno cosmos (aldeia) e
a, os fenmenos naturais (personificados no Rai-1Din, senhor da terra, esprito do mal, que preciso acalmar)
e as explicaes cientficas orais dos mesmos passavam de gerao em gerao, sendo fechadas aos que no
pertenciam ao grupo e aos malae (estrangeiros). Alis, parece-nos que esse secretismo est na base de to
grande longevidade, ancestralidade e no contaminao da cultura timorense muitos mitos e rituais no so
revelados, ou so-no em parte, levando esse mistrio e essas diferentes formas de contar a um prolongamento
histrico em constante devir e reactualizao. Diz-se at que se um OLD QDin (dono da palavra) contar algum
desses segredos pode at perder a vida, vtima desse facto:
Espcie de livros vivos e preciosos, os OLD QDin so alvo de todas as atenes dos maiorais e do vulgo. So para a turma
pag, em relao s suas crenas, o motivo supremo de credibilidade. O seu testemunho faz f absoluta. Cabe-lhes lugar
parte na hierarquia do cl. Depositrios de tesouros sagrados materiais e espirituais crem que lhes abreviada a vida se
os revelam a estranhos ou a profanos. (Pascoal, 1967: 15)
H elementos comuns entre as explicaes mitolgicas timorenses e outras das culturas vizinhas (veja-se ilhas
indonsias como Celebes ou Flores) ou mais longnquas (culturas hebraica ou egpcia, a ttulo de exemplo),
pois encontramos similaridades, seja a partir de smbolos, seja atravs de registos de dilvios (muito presentes
nos registos orais da regio manbae, mais especificamente da zona de Maubisse e associados cordilheira do
Ramelau, local de grande carga simblica porque conotado com a origem da ilha e do prprio Mundo), ou com
elementos do cosmos e da sua (des) ordem como o cu, o sol, a lua, a gua, as montanhas. Embora
possamos estabelecer ligaes entre elementos simblicos presentes no imaginrio timorense e outros de
latitudes diversas, devemos focar a nossa ateno na singularidade da cultura e identidade mauberes, que se
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foi formando ao longo de sculos, em contacto com povos de outras regies certo, mas que foi adquirindo
caractersticas muito prprias, distintas mesmo dentro das prprias fronteiras, j que so muitas, como vimos,
as etnias presentes no territrio que vai de Oecussi a Lautem, as quais exibem manifestaes culturais e
literrias variadas. Podamos pois optar por estudar a literatura oral de uma regio especfica. No o fizemos
dada a inexistncia de um estudo abrangente, que encerre os pontos em comum e as respectivas
singularidades e que d uma viso geral desse patrimnio oral, no respeitante aos relatos fundacionais.
Mas que tipo de Literatura a popular timorense? Que tipologias apresenta? Quais as suas caractersticas?
Literatura resultante da relao do homem timorense com a Natureza, seus elementos e fenmenos como
vimos em cima, relao que assume um carcter sagrado de que so prova o animismo e seus rituais, bem
como as diferentes manifestaes culturais do quotidiano, sejam as danas do makikit (guia, milhafre) ou da
samean (cobra), as esculturas de madeira de crocodilos, barcos e figuras antropomrficas ou a pintura de
quadros onde surgem galos, chifres de bfalo, casas e rvores llik (sagradas).
Literatura oral definida por Lus Filipe Thomaz como verncula (embora recentemente alguns textos recolhidos
por missionrios e outros curiosos tenham sido publicados em colectneas, ou avulsos, em peridicos). Textos
conservados de memria pelos lia-nain (senhores da palavra), que so ao mesmo tempo os oradores oficiais
das cerimnias tradicionais e, por vezes guardies do llik (sagrado). Registos que revestem duas formas
principais: ai-cnanoic (memrias) em prosa ou em verso, que narram as origens do mundo, das instituies e
das coisas da natureza, episdios histricos mais ou menos deturpados e fbulas diversas; e ai-cnannuc
(canes), em verso, destinadas a ser cantadas e de carcter geralmente lrico. (cf. Thomaz, 1998: 601) Artur
Baslio de S fala tambm em composies em prosa e verso, sendo as primeiras ai-knanoik ou ai-kanoik e,
simplesmente, knanoik ou kanoik, conto, lenda, fbula, histria, e lia-tuan, contos antigos, nomes
que designam as composies em prosa; enquanto os termos ai-knananuk ou ai-kananuk e tambm knananuk
ou kananuk, cantiga, loa, dadoulik, estrofes, versos, e EDLWRa, cnticos fnebres, so nomes para
classificar as composies em verso. (cf. S, 1961: 07)
Existem infelizmente poucas publicaes de autores timorenses, com raras excepes como o caso da de
gio Pereira, The Book of the Story Teller (1995), conjunto de textos recolhidos e publicados, em lngua ttum,
em Sidney, Austrlia, junto da comunidade timorense a residente. Compilao que conta com fbulas, contos e
lendas. Destaque-se tambm o Padre Francisco Fernandes que publicou, em Macau, a obra Radiografia de
Timor Lorosae (2011), importante para se conhecer usos, tradies e mitos do povo timorense. Paulo Quinto,
que trabalhara como tradutor e ajudante de campo do padre portugus Artur Baslio de S, tambm escreveu
um conjunto de cantigas e poesias, publicadas, postumamente, em 1999, pela sua famlia, com o ttulo de
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Knananuk. Publicaes, que dada a sua originalidade e qualidade, mereciam, em nosso entender, uma melhor
divulgao. Outra obra a que recorremos, enquanto fonte de relatos orais, foi a dissertao de mestrado de
Nuno Gomes, A Literatura Popular de Tradio Oral em Timor-Leste: Caracterizao, Recolha e Modos de
Escolarizao (2008).
De autores portugueses, para alm dos enunciados em cima, merece um registo a compilao da editora
LIDEL, Lendas e Fbulas de Timor-Leste, fruto do trabalho da Universidade Aberta em parceria com o Centro
de Ensino Distncia, em Dli, que contou com a direco da Professora Helena Dias e com a colaborao de
vrios professores timorenses, compilao editada em 2009. Tambm a Professora Maria Cristiana Casimiro
(2007), na regio de Baucau, reuniu junto dos seus formandos um conjunto de lendas, contos e fbulas. Por
ltimo, assinale-se a edio de Timor Histrias com lendas, da Professora Ana Luz, docente da Universidade
de Aveiro e que conta com cinco lendas, adaptadas, em 2002, das obras Textos da Literatura Timorense, do
padre Artur Baslio de S (1961), e A Alma de Timor vista na sua Fantasia, do padre Ezequiel Enes Pascoal
(1967).
Os estudos do patrimnio cultural timorense, mais concretamente da sua literatura, so como dissemos
escassos, havendo outros de natureza histrica, antropolgica, etnolgica ou sociolgica que por vezes a ela
se referem. No conhecemos, no entanto, nenhum que faa uma interpretao aprofundada dos seus
infindveis relatos orais. Estudos aqueles importantssimos para as nossas anlises, j que s atravs deles e
usando uma metodologia interdisciplinar poder ser possvel uma anlise do imaginrio e dos seus relatos
fundacionais. Existem tambm investigaes destacadas de teor antropolgico e etnolgico de autores que
viveram no territrio timorense, aquando da administrao portuguesa como Correia de Campos (1973) que
publicou Os mitos e a imaginao contista no estudo das origens do povo timorense, Alberto Osrio de Castro
que lanou o ttulo A Ilha Verde e Vermelha de Timor (1 edio em 1943) ou Jos Rodrigues com o seu
famoso O Rei de Nri (1962), s para citarmos alguns a ttulo de exemplo. Ruy Cinatti merece uma referncia
especial pela qualidade dos seus trabalhos, pela incessante busca de divulgao de muita da riqueza cultural
timorense. So seus os estudos mais aprofundados da arquitectura tradicional, dos elementos e motivos
presentes nas diferentes manifestaes artsticas e respectivas simbologias. A sua poesia reflecte tambm
aquilo que foi vendo e experienciando, aquando da sua prolongada estadia no territrio, poesia que a sua
objectiva grande angular a dar conta dos hbitos, costumes e diversidade cultural das gentes timorenses. Mas
no apenas a poesia de Cinatti que reflecte a viso mitolgica e naturalista do imaginrio timorense, tambm
outros poetas e romancistas contemporneos como Xanana Gusmo, Pedro Rosa Mendes ou Lus Cardoso
WUDQVSRUWDP SDUD RV VHXV WH[WRV XPD JUDQGH FDUJD GH IDQWiVWLFR H PLWROyJLFR &RP XP PDJQtILFR IXQGR GH
27
magia, e um universo fantstico, povoado de mitos e rituais, a poesia oral/tradicional manifesta-se a cada
SDVVRQDOLWHUDWXUDFRQWHPSRUkQHDWLPRUHQVH$QWXQHV
J os padres portugueses a que aludimos em cima fizeram compilaes de relatos orais. Merecem nota de
destaque as obras Textos em Teto da Literatura Oral Timorense, de Artur Baslio de S, que data de 1961, e A
Alma de Timor vista na sua Fantasia lendas, fbulas e contos, de Ezequiel Enes Pascoal, publicada em 1967.
Na primeira, o autor reuniu sete lendas, apresentando-as em lngua ttum, com a respectiva traduo em
lngua portuguesa, assim como notas lingusticas explicativas que enquadram as temticas e elementos
presentes em cada uma delas. Apresenta ainda apontamentos de cariz antropolgico e etnogrfico
fundamentais para uma melhor compreenso daquelas. A Alma de Timor vista na sua Fantasia talvez a obra
que melhor resume e retrata o imaginrio timorense, reflectindo a sua riqueza e diversidade, contendo nove
lendas mitolgicas (importantes para o nosso estudo), lendas totmicas, contos mestios, fbulas e outras
lendas e contos. No final de cada narrativa, o autor faz pertinentes anotaes, apresentando ainda valioso
glossrio. No total so mais de trezentas pginas que mereciam uma cuidada ateno e divulgao. Obra que
dada a sua fortuna foi a nossa maior fonte. A propsito de lendas mitolgicas nosso terreno privilegiado -
escreve o padre Ezequiel Pascoal:
Encontram-se em Timor, um pouco por toda a parte, uma espcie de cosmogonia sui generis que vem, com certeza, de
recuadas eras. Nela figuram homens e animais, dotados de recursos e poderes inconcebveis com os quais dominam as
foras da natureza desencadeadas em propores ciclpicas. (Pascoal, 1967: 23)
Curioso o facto destes catequizadores, destes padres portugueses que trouxeram a palavra de Cristo, serem
os maiores divulgadores do imaginrio ancestral timorense, carregado de lendrio ficcional, de narrativas
conectadas com uma religio tradicional considerada animista. Este lendrio foi recolhido e passado para o
papel primeiramente por eles, mas no deixando de procurar uma aproximao entre os textos nativos e as
sagradas escrituras. Aproximaes dos dois textos resultantes da sua condio de sacerdotes catlicos,
conhecedores dos textos bblicos, investigadores atentos, certo, do universo cultural maubere, mas oriundos
e formados na potncia colonizadora, e com um objectivo de vida e uma viso do mundo filha de Vieira, da sua
ideia do Quinto Imprio e da ideologia Lusada, que passava por aculturar uma cultura nativa considerada
inferior, que era preciso modernizar com uma educao que teria por base a catequizao do maubere inculto
primitivo. Da tambm a sua necessidade de estabelecer relaes, de conectar narrativas de hemisfrios
diferentes, mas com elementos comuns, dilvios e cataclismos, onde o universo resulta da obra de Deus e de
foras telricas.
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H, alis, narrativas recolhidas por estes clrigos, uma intitulada Curiosa Lenda (Pascoal, 1967: 223-225) e
duas de S, O Primeiro Missionrio entra em Timor e Entra em Timor o primeiro sacerdote (S, 1961: 90-103),
lendas que so verses do mesmo conto, em que esta perspectiva aculturadora e imperialista claramente
percepcionada, sendo os protagonistas das narrativas os primeiros missionrios a pisar solo timorense, os
enviados por Deus para salvar os mauberes das trevas e do obscurantismo. As estrias resumem-se em duas
ou trs linhas: chegados a Timor numa embarcao e recebidos pelos povos nativos, depressa pedem para
aportar, pedido recusado pelos chefes tribais. Insistem dizendo que necessitam de gua, pedindo para que lhes
seja dada permisso para que alguns dos nautas possam sair numa pequena embarcao para recolherem
gua. Entretanto, o chefe tribal fica fascinado com a figura de um sacerdote missionrio, a quem apelida de QDi
llik (senhor sagrado), no sem antes se ajoelhar aos seus ps. Lendas nas diferentes verses que so
tambm uma forma de justificar a evangelizao de Timor por sacerdotes portugueses e os laos de
fraternidade entre os seus povos.
Tendo voltado todos a casa, aquele homem vestido de batina, vendo que todos se retiravam e o local ficava deserto, ordenou
aos marinheiros que fossem buscar gua e enterrassem bem a ncora do barco na fonte, esticando quanto pudessem a
corrente da mesma [...] o chefe ordenou ento ao intrprete que gritasse para o barco e perguntasse ao capito: Por que
razo vieram eles mergulhar a ncora na fonte e dar trabalho a ele e sua gente? Que pretendem eles mostrar com isto?
No barco todos se calaram; apenas o senhor vestido de batina preta respondeu: Ns fizemos isto para rebocar a vossa terra
para Portugal, porque no quereis receber os mandamentos de Deus, a Sua Revelao, trazida por ns de longes terras,
para vos comunicar, para vos distribuir. (S, 1961: 96-98)
O chefe tribal no ficando convencido desafiou o clrigo portugus e ps em causa as suas palavras: Aqui
estou eu a desafiar-te. Sempre quero ver como que vocs vo rebocar a nossa terra para Portugal. O
FOpULJRRXYLQGRRFKHIHWULEDOVXELXjSRQWHGDSURDGHmodo a que todos vissem bem a sua atitude inspirada;
depois ajoelhou, ps as mos, ergueu os olhos para o cu durante algum tempo [...] O barco comeou a
deslizar; de repente, todos sentiram como que um terramoto, um cataclismo que fazia a terra deslizar tDPEpP
Estava consumado o milagre e os chefes tribais e as suas gentes no tinham alternativa que no fosse aceitar
o desembarque e a palavra evangelizadora daqueles missionrios sob pena de serem rebocados at Portugal.
A fantasia popular e o imaginrio das gentes timorenses e dos missionrios portugueses justificam assim a
chegada de to ousados marinheiros e missionrios, vindos de alm mar, enviados por Deus para lhes dar a
conhecer o Seu Verbo. Marinheiros apelidados de senhores dos oceanos, senhores das ondas, filhos do mar
(cf. S, 1961: 110) e missionrios chamados de nain llik (senhor sagrado), no fossem estes relatos prprios
de uma ideologia imperialista, que via os portugueses como povo eleito por Deus para evangelizar o mundo
novo. O facto de o padre Artur Baslio de S apresentar duas verses da mesma lenda, recolhidas pelos seus
ajudantes de campo e mestres de ttum, na sua colectnea Textos em Teto da Literatura Oral Timorense,
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colectnea que inclui apenas sete narrativas, mostra bem que o clrigo portugus at na divulgao e
preservao do patrimnio oral timorense no esquecia o seu trabalho de evangelizao. A este propsito, o
clrigo portugus refere nessa mesma colectnea:
A documentao at hoje reunida, omissa quanto a este facto inicial da evangelizao da ilha, apesar de certas descries
pseudo-histricas, fruto da fantasia, deixa subentender, desde os primeiros contactos, uma recepo acolhedora e entusiasta
aos arautos do Evangelho, em desacordo com o contexto da lenda, que descreve, com notvel vivacidade, a desfavorvel
agitao que se levantou no indgena ao saber da chegada de tais inesperados emissrios de Deus. (S, 1961: 88)
Estar a lenda mais prxima da realidade dos factos? Ou fazendo f nos relatos de Pigafetta teriam os
primeiros portugueses chegados a Timor sido bem recebidos? Vicente Paulino, comentando aquela Curiosa
Lenda GR SDGUH (]HTXLHO 3DVFRDO UHIHUH ,PSRUWD VXEOLQKDU DLQGD TXH D KLVWyULD GD FRQYHUVmR GRV UHLV
timorenses e seus respectivos povos ao Cristianismo tambm foi contada de uma forma parcial, pois foram
FDUDFWHUL]DGRV FRPR SRYRV LQFLYLOL]DGRV TXH HQFRQWUDUDP D OX] GH &ULVWR 3DXOLQR $OLiV R ILQDO
desta Curiosa Lenda mais parece um texto apologtico de profeta sado da pena do padre AQWyQLR 9LHLUD$
nau cortou ento a amarra e fez-se ao largo. A ncora, porm, ficou presa nas entranhas desta terra e presa
FRQWLQXD3RU'HXVDHQWHUUDUDP-DPDLVDSRGHUiDOJXpPDUUDQFDU3DXOLQRFRQFOXLDVXDOHLWXUDDSHOLGDQGR
HVWDYLVmRGHGLVFXUVRPLVVLRQiULRFRORQLDOLVWDRTXHQmRGHL[DGHVHUYHUGDGHVHREVHUYDUPRVHVWHGLVFXUVR
e estas narrativas lendrias numa perspectiva de aculturador e de aculturado, prprias de sistemas coloniais,
de que foi exemplo paradigmtico o do antigo regime. Alis, foi, talvez, Salazar aquele que melhor cumpriu as
ideias de Vieira, servindo-se da Igreja para impor um Imprio, de papel certo, mas que ia do Minho a Timor -,
iderio contrrio e muito distante do preconizado pelas correntes neomodernistas mais respeitadoras das
culturas ancestrais enquanto culturas diferentes e nicas (da a sua riqueza) e no por critrios de
superioridade/inferioridade, em que o europeu considerado o mais culto, aquele que traz a palavra de Deus, a
salvao e a civilizao ao nativo selvagem:
Os conquistadores espanhis e portugueses tomavam posse em nome de Jesus Cristo dos territrios que haviam
descoberto e conquistado. A ereco da Cruz equivalia consagrao da regio, portanto, de certo modo, a um novo
nascimento. Porque, pelo Cristo, as coisas velhas passaram; eis que todas as coisas se tornaram novas (II Corntios, 5,
17). A terra recentemente descoberta era renovada, recriada pela Cruz. (Eliade, 46: 2002)
A cultura timorense possui caractersticas invulgares, resultantes da sua multiplicidade e da sua beleza
ancestral. Cultura que assenta numa tradio oral - que passa de gerao em gerao -, verdadeira guardi de
tesouros escondidos, que apesar de toda a aculturao e contaminao preserva toda a sua originalidade, e
tem nos lia nain (senhores da palavra) os seus emissores privilegiados. So eles os filhos da Lua, do Sol e das
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Estrelas que fazem viver mitos, lendas e rituais que se perdem no tempo, mas que continuam bem presentes
no quotidiano dos timorenses das montanhas llik (sagradas).
No imaginrio timorense existem tambm explicaes lendrias ou mitolgicas para o surgimento de lugares,
de nascentes ou de montanhas. Ser que os elementos desencadeadores dessas mudanas, desse devir, so
coincidentes nos diferentes relatos? Ser que os elementos catalisadores de mudana possuem a mesma
simbologia nesses contos? Quais as unidades simblicas predominantes? Quais as que tm carcter sagrado?
Quais as que fazem parte do patrimnio identitrio timorense?
Uma to grande empresa requer que convoquemos estudos de natureza literria, mas tambm sociolgica,
psicanaltica e, sobretudo, antropolgica, porque ao Homem enquanto ser total, capaz das mais nobres
criaes e manifestaes, mas frgil defronte do Cosmos, do Maromak (Deus, Ser Luminoso) e do Rai Nain
(Senhor da Terra) que pretendemos chegar, mesmo que se trate de labirinto obscuro. Durand no seu brilhante
As Estruturas Antropolgicas do Imaginrio afirma:
Gostaramos, sobretudo, de nos libertar definitivamente da querela que, periodicamente, pe uns contra os outros,
culturalistas e psiclogos, e tentar apaziguar, colocando-nos num ponto de vista antropolgico para o qual nada de humano
deve ser estranho. Para tal, precisamos nos colocar deliberadamente no que chamaremos o trajecto antropolgico, ou seja, a
incessante troca que existe ao nvel do imaginrio entre as pulses subjectivas e assimiladoras e as intimaes objectivas
que emanam do meio csmico e social. (Durand, 2002: 40-41)
Neste labirinto surgem as lendas e mitos como explicaes primeiras para a origem do Cosmos, do Homem e
das suas relaes com a Natureza e com os seus vrios fenmenos. Em Timor so muitos esses relatos
fundacionais que, apesar de conhecidos e presentes em algumas publicaes, no foram ainda objecto de um
estudo aprofundado enquanto todo. Para que no caiam no olvido e para os colocar no lugar de destaque que
merecem, fizemos a anlise de alguns dos j publicados, assim como recolhemos e estudmos outros ainda
desconhecidos e que esto no imaginrio dos mauberes da pequena, mas colorida de simbologia ilha do
crocodilo.
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CAPTULO III
Proliferam os relatos fundacionais entre os diversos grupos tnicos e lingusticos que fundamentam a origem
da ilha de Timor. Entre todos a lenda/mito do crocodilo ocupa lugar destacado no imaginrio timorense e na sua
literatura oral, que sua primeira expresso. Podemos mesmo afirmar que, dada a sua importncia e
reconhecimento, estamos perante um relato considerado como nacional, sendo conhecido por grande nmero
de timorenses. Relato que galgou fronteiras e at motivo de publicao noutros pases e continentes,
nomeadamente em colectneas de contos representativos da lusofonia. O que estar na base dessa
relevncia? Ser o facto de o territrio de Timor possuir formas que se podem assemelhar com as de um
crocodilo? Ser por existirem mltiplas verses dessa lenda ou mito? Ser que a presena do crocodilo nas
mais variadas manifestaes artsticas desde a escultura, passando pela tecelagem ou pela pintura, contribui
para o seu enraizamento, para o tornar elemento assimilado e inculcado no imaginrio colectivo? Ou ser que
o facto de ser smbolo totmico e llik (sagrado) e motivo de rituais dentro de algumas etnias e comunidades o
consagrou como elemento distinto? Estamos em crer que as questes enumeradas tm todas uma resposta
afirmativa e esto na gnese da elevao da lenda condio de mito, porque imagem simblica em que a
maioria se rev, narrativa que foi ganhando contornos de histria sagrada, logo identitria e distintiva.
Nas prximas linhas procuraremos responder s questes em cima apresentadas, tentando encontrar pistas
interpretativas para o complexo labirntico traado por relatos e rituais em que o crocodilo ou jacar timorense
protagonista e heri. O nosso ponto de partida ser a lenda/mito do crocodilo, narrativa bastante divulgada
entre as gentes timorenses. Dadas as mltiplas verses desta lenda/mito 1, optamos pela do padre Artur Baslio
de S, publicada primeiramente no Seara, boletim eclesistico da diocese de Dli, e mais tarde na colectnea
Textos em Teto da Literatura Oral Timorense, em 1961, entre as pginas 12 e 23, a que ns recorremos para
este estudo. As razes da nossa escolha prendem-se com o facto de o autor desta verso apresentar
explicitaes de conceitos e simbologias presentes no mito que nos parecem bastante pertinentes.
1 Existe uma verso romanceada e de diferentes matizes do escritor timorense Lus Cardoso que tem por protagonista, no um
UDSD]PDVXPDUDSDULJD>@8PDYR]VXUJLXGRDLQGD crocodilo quase terra: - Sou velho e vou morrer. Tu s linda e habitars este
corpo onde foram enterrados os teus pais. Brevemente chegaro os estrangeiros. Uns prncipes em busca da tua beleza, e outros,
PHUFDGRUHVGHVkQGDOR>@&RQIURQWH-se suplemento da Revista Viso, n 480, de 16 de Maio de 2002.
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O mito comea por apresentar o protagonista da estria, o velho crocodilo, em dificuldades para obter alimento:
(P WHPSRV LGRV Oi SDUD DV WHUUDV GH 0DFDoDU XP GHVRODGR FURFRGLOR VDLX GR VHX FRLWR FRP D PLUD GH VH
DOLPHQWDU2VROLDMiDOWRHRYHOKRFURFRGLORQmRFRQVHJXLDYROWDUjIR]GDULEHLUDYDOHX-lhe um rapaz que por
DOL SDVVDYD H TXH R DUUDVWRX SDUD D iJXD2 LQIHOL] FURFRGLOR JHPLD H FRQWRUFLD-se, sentindo que a morte se
aproximava. A sua angstia era imensa! Um rapazito, que por acaso passava perto, a tomar o seu banho, ouviu
aqueles gemidos lancinantes [...] Ao ver o pobre animal prestes a morrer, disse para consigo: Coitado deste
netinho crocodilo, uns minutos mais e morrerias! Tentou depois levant-lo e, vendo que no pesava muito,
transportou-RSDUDDiJXDComea aqui a estabelecer-se uma relao fraternal entre o velho crocodilo - que
surge adjectivado com caractersticas tipicamente humanas, personificao humanizante caracterstica dos
UHODWRVRUDLVXPGHVRODGRFURFRGLOR>@DVXDDQJ~VWLDHUDLPHQVD- e o bondoso rapaz que o salva da morte
certa. O velho crocodilo fica, deste modo, em dvida para com o seu salvador, facto que marcar o seu
FRPSRUWDPHQWRHGHVWLQRIXWXURV2FURFRGLORDRVHQWLU-se de novo dentro da gua, recobrou nimo, exultando
de satisfao, sem saber como agradecer ao seu benfeitor. Mas, passados os primeiros momentos, disse,
movido de gratido: De hoje em diante seremos grandes amigos. Ai do crocodilo que ousar molestar-te! [...]
Desejando passear pelas ribeiras ou pelos mares, basta que me chames e digas: amigo, lembra-te do bem que
te fiz; e eu virei logo oferecer-WH R PHX GRUVR SDUD YLDMDUHV SRU RQGH WH DSURXYHU >@$ UHODomR GRV QRYRV
amigos foi-se fortalecendo, levando o velho crocodilo o rapaz a passear por ribeiras e mares, at que, num
desses passeios, o crocoGLORVHQWLXRGHVHMRDQLPDOHVFRGHFRPHURUDSD]0DVXPGLDRFURFRGLORGHVOL]RX
com o amigo para o alto mar, e a o seu instinto sentiu grande tentao. Teve ganas de tragar o seu amigo. Mas
UHVLVWLXDWmRIHLDWHQWDomR2PLWRFRPSRUWDXPDIRUWHFDUJD moralizadora, pois confronta razo com emoo -
um crocodilo que salvo por um rapaz, mas que mais tarde se esquece e tem um momento de fraqueza
animalesca, olvido resultante do seu instinto, tentao animal, algo que tambm intrnseco condio
humana, sempre no dilema de seguir corao (emoes e sentimentos) ou razo (moral e tica). O
comportamento do crocodilo oscila aqui entre a sua condio natural de animal e, por isso, predador, e a de
amigo do rapaz, logo tendo assimiladas caractersticas tipicamente humanas, num processo de metamorfose
que transforma um dos mais terrveis predadores animal dos mais ancestrais que a terra conhece num ser
capaz de compaixo e gratido, de capacidade em reconhecer o bem e at de bondade para com o homem.
O velho crocodilo resolveu aconselhar-se com outros animais para averiguar se devia ou no comer o rapaz.
Todos foram unnimes em repreender-lhe os instintos, aconselhando-o a tratar bem aquele que o salvara da
PRUWH5HVROYHXDFRQVHOKDU-se francamente com os peixes do mar e, por fim, tambm com um cachalote: A
uma pessoa que nos valeu devemos fazer bem ou mal? Todos responderam que devemos fazer bem [...]
Finalmente, deseja saber a opinio do macaco [...] que lhe prega esta reprimenda mestra: Tu no tens
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vergonha?! Tu, a quem, um dia, estando prestes a morrer, torreira do sol, este jovem desconhecido ergueu e
transportou para o mar; tu queres agora, em paga, devor-lo?!
O macaco ganha aqui contornos de voz de orculo, de espcie de coro do teatro trgico grego, de elemento
simblico dotado de razo que condena os instintos animalescos do crocodilo, fazendo com que ele perceba
racional e moralmente o comportamento correcto a seguir, tratar bem quem o tanto ajudara.
Reconhecendo que a morte se aproximava e grato por tudo o que o rapaz por si fizera, o velho crocodilo
ofereceu-VHSDUDROHYDUSDUD2ULHQWHHPGLUHFomRDR6RO0DVOHYDQGR-o, um dia, em direco ao oriente, e
entrando no mar de Timor, disse-lhe reconhecido: Meu bom amigo, o favor que me fizeste jamais o poderei
pagar. Dentro em breve eu devo morrer; deves voltar para terra, tu, os teus filhos, todos os teus descendentes,
e comer a minha carne em paga do bem que me fizeste.
O crocodilo imerge2 na gua3 do mar, fonte de purificao, local onde expia o seu pecado (pensar em comer o
rapaz) e onde paga com a morte e consequente transformao em terra (ilha) o favor inicial que o rapaz lhe
prestou. gua elemento primordial, presente na maioria das narrativas mitolgicas (sejam europeias,
americanas, africanas ou asiticas), onde existe acto criativo, origem de novos cosmos, de dilvios fundadores
de uma nova ordem, e neste caso caminho condutor por onde o crocodilo se dirigiu e local onde se transformou
em terra me (Timor). Crocodilo que imerge e morre, mas com o seu sacrifcio ou metamorfose origina o
nascimento, a emerso, o levantar da terra. do choque, confronto ou fuso entre estes dois elementos, gua
e terra, que resulta, muitas vezes, o brotar de novas realidades, o aparecimento de outros cosmos ou
microcosmos, como confirmaremos mais frente, quando nos debruarmos na anlise de outros relatos.
3 Mais adiante analisaremos a simbologia da gua, elemento destacado nos relatos orais timorenses.
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perto do sol. Ainda hoje, os liurais (nobres locais) de Timor o usam. O valor simblico do Sol 4 merece tambm
ser realado, j que Timor conhecido por Timor /RUR 6De (Sol Nascente), local para o qual o crocodilo se
dirigiu, fonte de nova vida, de criao sagrada, de fundao de uma nova realidade, ou refundao do cosmos.
O Sol, que est presente em muitos dos relatos orais, fonte de vida, de luz que permite a sada das trevas, da
obscuridade da noite, que possibilita o acesso ao fogo e, com isso, a criao de ferramentas, a possibilidade do
trabalho agrcola. Sol que elemento esttico, ao contrrio da Lua, mas que dado o seu renascer dirio e
permanente, ganha estatuto de Deus, a grande Estrela, de quem muitos timorenses se dizem descendentes:
Na Indonsia e na pennsula de Malaca, o culto solar espordico [...] A ilha de Timor e os arquiplagos vizinhos so os
nicos que representam excepo. Se bem que a vida religiosa nela seja dominada, como de resto em toda a Indonsia, pelo
culto dos mortos e dos espritos da Natureza, o deus solar conserva ali uma posio importante. Em Timor Usi-Neno, o
Senhor Sol o esposo da Senhora Terra Usi-Afu, e o mundo inteiro nasceu da sua unio. (Eliade, 2004: 178-179)
Sol que neste mito dada a fora do seu calor transforma o velho crocodilo em ilha, milagre s ao alcance de
Deuses, processo que desencadeia a criao primordial, a origem de Timor e do seu primeiro habitante. H,
alis, uma dana guerreira timorense, cuja letra foi recolhida pelo padre Jorge Barros Duarte e em que os
YHQFHGRUHV FDQWDYDP 6REUH QyV UDLRX R VRO-homem, / Brilhou sobre as nossas cabeas / Em vs poisou o
sol-mulher, / Sobre vs tombou. / Por isso neste dia, / Nesta data / Devastmos vossas terras / decepmos
YRVVDV FDEHoDV 0HQH]HV Sol-Homem aqui como fonte e fora protectora (llik) que permitiu
desde sempre a vitria dos guerrilheiros seus filhos.
O crocodilo sacrificando-se pagava a sua dvida para com o rapaz, dando lugar a uma nova ordem, a um novo
Cosmos, a sua morte fonte de uma nova realidade que resulta no nascimento do cl timorense, o qual lhe
concede honras de av. o processo de transformao em terra, numa ilha com as suas formas, que garante
ao crocodilo o seu estatuto totmico singular dentro do imaginrio colectivo timorense, da tambm ser o motivo
artstico mais representado na tecelagem, na pintura ou na escultura:
Baseados nesta lenda, os velhos afirmam que a ilha de Timor, principiando em Lautm e acabando em Cupo, esguia como
o corpo dum crocodilo, e a parte central assemelha-se barriga.
Timor quer dizer Oriente; muitos timorenses chamam ao crocodilo antepassado ou av. (S, 1961: 20)
Hoje falamos em Ilha do Crocodilo porque uma simples narrativa se foi consolidando ao longo de sculos em
Mito, enraizou-se no imaginrio colectivo como nenhuma outra, seja entre os povos do litoral de Baucau,
Manatuto ou Lospalos, seja entre as povoaes das regies montanhosas de Maubisse ou Ermera. Tambm o
4 Tambm o elemento Sol ter direito a ateno especial da nossa parte num outro captulo.
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rapaz passa por um processo de metamorfose que o leva idade adulta. A viagem ou travessia em cima do
velho crocodilo o seu rito inicitico, a sua demonstrao de coragem, tal como acontece com os rapazes de
algumas comunidades africanas que so sujeitos a duras provas at serem considerados verdadeiros homens,
tambm aqui o labarik mane (rapaz) se transforma em chefe, em liurai que passa a ostentar o blak disco em
ouro em forma de sol ao pescoo. Rapaz que se separa aparente e definitivamente do velho crocodilo, mas que
nunca mais o perde do seu imaginrio, passando a design-lo por be nain (senhor da gua), tornando-o
totem, presenteando-o com narrativas, pinturas, esculturas e rituais.
O padre Artur Baslio de S conhecedor mpar da literatura oral timorense e, concomitantemente, redactor de
uma das verses desta lenda/mito observou bem as caractersticas desta narrativa, as razes do seu
enraizamento e prestgio entre as gentes timorenses:
Esta lenda uma pura fico do esprito imaginativo do homem timorense, para explicar a si prprio os motivos da crena
supersticiosa que venera o crocodilo como um ente ancestral, a quem chama av ou antepassado [...] E quando as lendas
provm dos confins do mito, quem poder desvend-las ou contradiz-las? [...] Ora nesta lenda timorense do crocodilo
vislumbram-se, com certa nitidez, caractersticas essenciais do mito: a ideia do tempo inicial, na locuo adverbial houri uluk;
as gestas transcendentes dos heris, na travessia fantstica dos mares; o facto da revelao, no enredo mirabolante, que
leva ao povoamento da ilha; o fenmeno religioso, no culto totmico prestado ao crocodilo. (S, 1961: 9-10)
Lenda porque comporta todas as qualidades de um relato ficcional que passou de gerao em gerao, o que
a leva a ser conhecida no s pelos lia nain (senhores ou donos da palavra), mas por novos e velhos,
tornando-a mais inculcada no imaginrio timorense. Lenda onde o fantstico e a metamorfose se conjugam e
OKH FRQIHUHP WRQDOLGDGHV GH LUUHDOLGDGH HQFDQWDGRUD R FURFRGLOR DQGRX DQGRX DQGRX ([DXVWR SDURX SRU
fim, sob o cu turquesa, e oh! prodgio transformou-se em terra e terra foi para todo R VHPSUH $V
imprecises temporal (Hourik uluk que o padre Baslio traduz por Em tempos idosHHVSDFLDOOiSDUDWHUUDV
GH0DFDoDU) so tambm caractersticas ficcionais que ornamentam a narrativa, tipicamente lendrias, que a
embelezam e a tornam mais atractiva. Lenda epopeica em que o crocodilo a embarcao sacrificial
transportadora do heri, o rapaz que possibilitar o povoamento da ilha, o seu fundador. O enredo e desenlace
do relato traduzem-se num encontro ocasional entre crocodilo, velho e esfomeado, e um rapaz que o ajuda na
sua aflio por encontrar comida e gua. Encontro que possibilita a viagem para Timor Timor, o Oriente do
Oriente, onde se funda uma nova terra, fruto da metamorfose do crocodilo. Fico de enredo prodigioso que se
aproxima da Histria na medida em que justifica o momento primordial, uma viagem inicial que permite a
criao, a origem de vida, a fundao de uma nova realidade, e aqui estamos j perante o Mito, a explicao
ancestral para um fenmeno que aconteceu in illo tempore.
37
Durand entende o mito como um esboo de racionalizao, pois utiliza o fio do discurso, no qual os smbolos
se resolvem em palavras e os arqutipos em ideias, mito enquanto explicao primeira que ganha contornos
religiosos e histricos. (cf. Durand, 2002: 63) O mito do crocodilo resulta de uma fabulao, de uma narrativa
lendria, de um processo de racionalizao acerca da origem da ilha e do aparecimento do seu primeiro
habitante, que se enraizou e se solidificou no imaginrio das gentes timorenses. Mas a sua elevao
condio de mito nacional deve-se tambm s imagens simblicas que o representam e so suas expresses
artsticas, formas de o manter vivo e de o actualizar permanentemente. Da a expresso os mitos no morrem.
No morrem porque o imaginrio popular no os deixa morrer. As suas figuraes so tambm formas de o
tornar verosmil, presente no quotidiano ainda que representado por imagens, esculturas, bandeiras, porta-
chaves e outros objectos decorativos. O av crocodilo permanece assim bem vivo como se o acto originrio se
tornasse intemporal, porque permanentemente revelado. Algumas povoaes continuam a prestar-lhe
homenagem atravs de rituais ancestrais, como a comunidade de Sal, que lhe faz oferendas em forma de
tributo:
[...] o povo de Sal rene-se uma vez por ano no stio de Boro-Uai e a abate, em honra do av Liba Mau, um co e um
carneiro [...] os animais so depois retalhados, cozinhados com arroz e molho, e distribudos em pratos de folhas entranadas
de aquediro, que se alinham ao longo da praia, a cerca de quatro metros da babugem.
Atrado pelo fumo das fogueiras, um jacar, que costuma rondar as proximidades, vagueando para c e para l, enquanto o
dono do lulic, que se posta de ccoras junto das oferendas, redobra nos apelos:
- Dada Lai Liba, mau; seu ere; nua! Av Lai Liba, vem c; a carne est aqui; come! (S, 1961: 209-210)
Ritual marca visvel de uma lenda, segundo a qual o nativo Lai Liba apareceu, aps uns dias do seu
falecimento, ao seu irmo sob a forma de um crocodilo, tendo-lhe atirado uma pedra e pedido um co como
RIHUHQGD 7RGD D JHQWH GD DOGHLD DFRUUHX j SUDLD SDUD DVVLVWLU j VDWLVIDomR GRV GHVHMRV GR UpSWLO TXH QmR
tardou a aparecer. Finda a ingesto das viandas do cachorro, o crocodilo atirou nova pedra para o litoral,
RUGHQDQGR TXH SDUD R IXWXUR R LUPmR ILFDYD REULJDGR D FHOHEUDU DQXDOPHQWH XP HVWLOR $OPHLGD
497)
Tambm da regio montanhosa de Ainaro nos surgem relatos e rituais em que possvel observar a
proximidade existente entre crocodilo e homem e, simultaneamente, verificar que o imaginrio timorense coloca
a metamorfose homem/animal como geradora de novas realidades, fundadoras de espaos delimitados e
diferenciados, que se sacralizam a partir desses contos e rituais. Conta a lenda5 que os heris Bato-Bere e
Sir-Bere procuravam escoar as guas que cobriam toda a terra, com excepo do Tata-Mai-/DX%DWR-Bere
5 Lenda Cai-Bti em Pascoal, 1967: 111-112
38
cavava e Sir-%HUH LD DIDVWDQGR D WHUUD FDYDGD $V iJXDV OLEHUWDV DUUDVWDUDP 6~LU-Bere at Se-Dato-Rain-
Man, zona litoral, tendo ele a se instalado, vivendo da pesca. Certo dia, uma jovem, de nome Cai-Bti,
adormeceu junto fonte Bo-Tua, na zona montanhosa de Ramelau. As guas da fonte e as da ribeira B-Luli
arrastaram os seus cabelos at praia onde Sir-Bere pescava, tendo aqueles ficado presos nas suas redes.
Intrigado e espantado com o estranho mistrio, Sir-Bere resolveu enrolar os cabelos ribeira acima, a fim de
descobrir a quem pertenciam. Quando chegou junto de Cai-Bti, Sir-Bere transformou-se num FURFRGLOR)RL
subindo, subindo sempre, at que, ao chegar ao p de Cai-Bti, se transformou em crocodilo de que ela teve
PXLWR PHGR PDVGHTXHQmRS{GHIXJLUSRUHVWDUSUHVDSHORVFDEHORV2QRVVRFRQWRWHUPLQDFRPXPILQDO
feliz, Sir-Bere volta condio humana e casa com Cai-%~WL(QWUHWDQWR6~LU-Bere, certo de que ela cumpriria
a promessa, deixou-a e afastou-se. Passado algum tempo, voltou, com quanta gente pde reunir em Se-Dato-
Rai-Man, de que era liurai, a fim de a levar para l, com grande aparato, na sua companhia, e l com ela se
FDVRX
Pascoal refere ainda um ritual conotado com o conto apresentado, e em que alguns habitantes de origem
nobre, de povoaes de Ainaro (Htu-Udo, Nnu-Mogue e Htu-Mera-Be-Tua) se dizem descendentes deste
heri Sir-Bere, comunidades que consideram o crocodilo como totem. Crocodilo ancestral ligado s casas llik
dessas povoaes:
por isso que os representantes dessas famlias se associam, anualmente, no ms de Fevereiro, ao estlu que a gente de
Se-Dato-Rai-Man faz aos crocodilos do coilo ou lagoa da aldeia de Loro. Loro tambm o nome dumas das casas llics da
aldeia. Enquanto o estlu dura, nela que se hospedam os liurais de Ainaro, Nnu-Mogue e Hat-Mera-Bo-Tua. Chama-se
Babeno a outra casa llic. Reservam-na, durante o estilu, para os liurais do litoral. Cabe a uma mulher de cada uma dessas
casas o cuidado dos crocodilos. As que so designadas para isso no se podem casar. (Pascoal, 1967: 114)
Antnio de Almeida apresenta vrias lendas6 das regies de Manatuto, Baucau e Lautem em que o crocodilo
heri, sendo tambm, por isso, considerado figura totmica para estes povos, ancestral fundador de onde
EURWRX D SUySULD LOKD )LJXUD FRPR SURWDJRQLVWD SULQFLSDO HP PXLWRV PLWRV OHQGDV H IiEXODV UHJLRQDis,
atribuindo-lhe origem martima; a prpria ilha de Timor tomada por alguns naturais como gigantesco jacar
SHWULILFDGRTXHHPWHPSRVLPHPRULDLVHPHUJLXGRIXQGRGRRFHDQR$OPHLGD
Almeida faz, nestas pginas, aluso existncia de diversas verses de um mito da regio de Viqueque,
segundo o qual o primeiro habitante chegou ilha de Timor num crocodilo voador, acompanhado pela ave
protectora, no imaginrio timorense prottipo de todas as aves, o manu aman (o galo). Outras verses do mito
6 Confronte-se Almeida, 1994: 494-508
39
apresentam o crocodilo como vindo e transportando os primeiros habitantes das entranhas da Terra, do mundo
das trevas, sua primeira morada, e a sua ascenso seria catalisadora de vida na terra como hoje a
conhecemos, da o seu estatuto de mito cosmognico. A escultura timorense, nomeadamente a da regio de
Viqueque, faz o registo desse mito em peas construdas a partir de chifre de bfalo ou de madeira 7. Peas que
representam esse crocodilo voador transportando no seu dorso os primeiros habitantes de Timor, um homem e
um galo.
Na regio de Fohorem, distrito de Covalima, na inaugurao da casa sagrada (uma llik), h uma cerimnia
chamada Tatek Meda. Nesta cerimnia, as pessoas enfeitam a mesa com arroz misturado com carne de porco,
que se parece com um crocodilo a nadar. Ao comer, os cls de classe social mais alta comem na parte da
cabea. (cf. Gomes, 2008: 147-148)
Crocodilos ou jacars que funcionavam, aquando da administrao portuguesa, como verdadeiros juzes em
casos de difcil resoluo, particularmente quando havia mais do que um suspeito de determinado crime.
Nestes casos, os rus ou suspeitos eram colocados dentro ou junto de ribeiras e os anfbios tratavam de tragar
RYHUGDGHLURFXOSDGR'H/DXWHPpFLWDGRXPRUGiOLRFXULRVRFRPTXH o rgulo da regio resolvia as
justias da sua gente. Os indivduos em litgio eram levados at margem de uma lagoa infestada de
FURFRGLORVHDWLUDGRVjiJXDRTXHIRVVHGHYRUDGRHUDRTXHQmRWLQKDUD]mR&LQDWWL
Os exemplos enunciados mostram bem da importncia que o crocodilo tem entre as gentes de Timor, e os
motivos porque ganhou estatuto totmico e sagrado. Acontece tambm que quando alguma pessoa morre
vtima da sua ferocidade, frequente justificar-se o ataque com questes de moralidade, dizendo que a vtima
tinha praticado o mal ou tinha sido cruel para com o animal:
Diz-se em Manatuto, e quase toda a gente o sabe, que um japons, durante a guerra, roubou na praia um pano Timor. O
dono amaldioou-o, dizendo que o jacar lhe faria mal. E assim sucedeu: um dia esse japons andava na pesca do camaro
e desapareceu na ribeira. (S, 1961: 225)
Nos dias de hoje, continuamos a ouvir este tipo de narrativas, justificando-se a crueldade dos crocodilos com o
comportamento anterior das vtimas. Vemos tambm que, se muitas comunidades lhe do caa como na regio
de Viqueque, outras h que no o fazem com medo de represlias e porque o consideram sagrado, seu
antepassado, logo intocvel. Se um crocodilo devora algum, porque, dizem, este lhe fez ou disse algo de
mal. Ou quando uma pessoa apanhada por aquele, costuma gritar: Antepassado ou av! Maldio! Maldio!
7 Veja-se exemplo dessa escultura em Almeida, 1994: 421. Leia-se tambm a propsito Menezes, 2006: 242.
40
Quando entram ou passam uma ribeira onde haja crocodilos, costumam atar uma fita verde de folha de
palmeira na cabea, numa perna e, algumas vezes, tambm na mo e chamam para junto de si o co. Assim, o
crocodilo sabe, e no os morde. (cf. S, 1961: 20-22) Em muitos locais da ilha h ainda vrios rituais dirigidos a
este animal, alguns chegam a fazer festividades, onde oferecem carne e outras oferendas para o satisfazer, em
jeito de homenagem e de culto da sua sacralidade. Na regio de Manatuto muitas pessoas tm o apelido Lulai,
o qual diz-se tem origem nas geraes descendentes do primeiro habitante que chegou no dorso do crocodilo.
(cf. S, 1961: 225)
muito provvel que alguns dos primeiros habitantes da ilha de Timor sejam oriundos da regio das Celebes,
mais precisamente de Macassar. O imaginrio ancestral tambm coloca o crocodilo e o menino como
provenientes dessa zona, o que comprova que a fantasia do povo remete muitas vezes para um fundo de
verdade, que a cincia dos laboratrios demonstra mais tarde. falta destes e de documentos escritos, o
homem timorense tratou de criar narrativas que explicassem a origem dos seus antepassados e do momento
primordial, ab initioDSDUWLUGRTXDOSRGHFRQVWUXLUHGHVILDUDVXDKLVWyULD2PLWRFRQWDXPDKLVWyULDVDJUDGD
quer dizer um acontecimento primordial que teve lugar no comeo do Tempo, ab initio(OLDGH0LWR
de origem este do crocodilo e do rapaz porque os situa num espao determinado, construindo a partir da uma
explicao fabulosa que determina como tudo aconteceu:
Mito de origem, porque nomeia Macassar como stio de naturalidade do antepassado mtico dos habitantes de Timor de
facto possvel timo relacionado com a etnia Macassae do concelho de Baucau e, sem dvida alguma, com a denominao
Pante Macassar dada sede de concelho de Ocussi. Alegoricamente, o mito comprova-se ainda pelas inmeras relaes
havidas entre Macassar e Timor, de natureza migratria, militar e econmica, a partir do sculo XVI. Os reis de Tolo, na
Celbes, consideravam-se soberanos de Timor... (Cinatti, 1987, 156).
O crocodilo personagem viva que representa metaforicamente essas primeiras embarcaes provenientes da
regio de Macassar e que trouxeram as ancestrais vagas migratrias para a ilha de Timor. Curiosamente, na
regio de Lautem, existem casas tradicionais (da comunidade dagad) que tm a forma de um barco invertido.
Casas que dada a sua relevncia e beleza, aparecem, muitas vezes, na imagtica e nas artes, pintura,
ourivesaria e outras formas artesanais como a escultura em madeira, e que so vendidas depois aos turistas
nas lojas e mercados, constituindo uma recordao da ilha muito apreciada.
Em jeito de sntese, procuramos, nas linhas anteriores, desfiar, a partir do imaginrio timorense, os motivos e
razes que originam uma relevncia extrema atribuda ao crocodilo pelas gentes timorenses de diferentes
regies. A relao existente entre o timorense e estes animais pode parecer estranha ao visitante ou
estrangeiro desconhecedor de relatos ou rituais que provam uma ntima e ancestral ligao. Pascoal (1967)
41
apresenta o mito Lqui-Tai e Lauai-Tai, irmos do reino de B-Hli, que em busca de terra para se fixar
encontram um ameaador crocodilo. Atendamos a este pedao narrativo, retirado desse mito, que justifica bem
a remota e cordial unio entre homem timorense e o terrvel predador:
Ao v-los em seus domnios, um crocodilo, de nome Mali-Quere, arremessou-se contra eles para os tragar. Espavoridos e
no sabendo que fazer, os dois bateram no mar. O mar ficou, imediatamente, quase seco. Sem gua suficiente em que
pudesse viver e certo, por isso, de morte iminente, o crocodilo disse-lhes:
- O melhor sermos to amigos daqui em diante que nem eu vos mate nem vocs a mim.
Satisfeitos com a proposta, Lauai-Tai e Namo-Tec bateram, de novo, na pouca gua que restava. O mar voltou a encher-se
e o crocodilo trouxe-os para terra. (Pascoal, 1967: 252-253)
Filiao assumida e vivenciada que faz com que lendas/mitos passem de estrias ou espcie de bandas
desenhadas a histrias intrnsecas, verdadeiras porque comunitariamente aceites, como que nos querendo
GL]HU HVWDV QDUUDWLYDV VmR Iabulaes inventadas e obra do imaginrio fantasioso, mas delas que
GHVFHQGHPRVeHVVDDIRUoDGRPLWRRKRPHPDRHULJL-lo por etapas vai consolidando-o de tal forma no seu
imaginrio que, a dada altura, o assume como real. tambm esse o poder da literatura oral, o de fazer
acreditar, o de criar novas realidades e de as justificar com a mais nobre e fantstica criao humana, a
palavra.
42
CAPTULO IV
No Mundo Ocidental, a relao Homem/Animal manifesta-se de diferentes formas, seja nas romarias de midos
e grados Disneyland, em Paris, na adopo de animais para smbolos de clubes desportivos veja-se
clubes da guia, do leo ou do drago ou de partidos polticos, como o caso dos E.U.A., onde os partidos
democrata e republicano recorreram ao burro e ao elefante para os representar. Frequente na publicidade, no
imaginrio infantil, mas tambm no mundo acadmico, basta ver importncia do mocho, a imagtica animal tem
no quotidianRKXPDQRXPDFDUJDVLPEyOLFDVLQJXODUDRSRQWRGH'XUDQGDILUPDU'HWRGDVDVLPDJHQVFRP
efeito, so as imagens animais as mais frequentes e comuns. Podemos dizer que nada nos mais familiar,
GHVGHDLQIkQFLDTXHDVUHSUHVHQWDo}HVDQLPDLV'XUDQG2002: 69)
O Homem relaciona-se com os animais no seu dia-a-dia, relao de predador/presa, na alimentao e na caa,
mas tambm de forma ldica, afectiva ou agressiva, basta vermos o caso das corridas de cavalos, os rituais do
mundo tauromquico ou a simpatia por gatos e ces. Esta relao amistosa ou de fidelidade, esta tentativa
ancestral de domesticao (nem sempre bem sucedida) do mundo animal vem de longe, pois conhecemos o
Frum Romano como local de espectculo e de luta entre gladiadores e feras antecedentes do circo que, tal
como as touradas so rituais de domnio e domesticao. Tambm sabemos da ligao religiosa entre homens
e animais seja no sacrifcio de animais, no cordeiro sacrificial, na anlise das entranhas de aves ou no seu voo
anunciador de fortuna ou de tragdia. Por outro lado, constatamos o temor humano para com serpentes,
escorpies ou aranhas e, notamos, concomitantemente, a crena e a superstio associada a morcegos, gatos
pretos e corujas. No mundo acadmico, o mocho est conotado com a sabedoria, enquanto a cultura popular
v o macaco associado esperteza e o burro estupidez, a ttulo de exemplo. Conhecemos tambm mltiplos
relatos orais, onde surgem animais como protagonistas, sendo, em Portugal, a Lenda do Galo de Barcelos,
talvez, o mais conhecido e divulgado1.
1 Em 2002, ficamos surpreendidos quando almoamos, em Kuala Lumpur, num restaurante de nome Nandos, cadeia internacional,
possivelmente, de proprietrios com razes portuguesas, e observamos nas paredes do restaurante a Lenda do Galo de Barcelos
traduzida para lngua inglesa.
43
O fascnio ocidental pelos animais e a sua relevncia nos contos tradicionais ancestral. Na herldica 2
europeia so frequentes as figuras animais, sejam em brases com lees ou guias, at a estandartes que
incluem animais representativos de exrcitos invencveis como o romano, o napolenico ou o alemo, s para
citarmos alguns.
Tambm no Oriente, o mundo animal parte integrante das diferentes culturas, religies e actividades
quotidianas. No zodaco chins, falamos em ano do rato, do bfalo ou do porco, a religio hindu tem como
heris e deuses diferentes animais ou seres misto de homens e animais. Alis, nas culturas orientais como
veremos no caso particular da literatura oral timorense so frequentes as antropomorfizaes e as
metamorfoses de animais em homens e vice-versa.
Em Timor, os povos ancestrais sempre reverenciaram a Me Natureza, reverncia que, como vimos, se traduz
numa busca de proximidade com os seus elementos animais ou vegetais, seres a que recorrem nas suas
actividades dirias, tratando-se da sua prpria sobrevivncia (alimentao, lazer), mas, tambm aquando das
suas expresses religiosas e artsticas. Seres que pelas suas caractersticas ou virtudes 3 ajudaram e
continuam a ajudar na luta pela sobrevivncia humana, exercendo influncias vrias, sejam medicinais, ldicas,
alimentares e at no domnio do supersticioso, do esotrico ou da feitiaria dos buan4 e matandok5, basta ver
as crenas volta de gatos pretos, milhafres, lacraus, morcegos e outros animais. Se observarmos as pinturas
rupestres da regio de Tutuala, leste de Timor alis como as de Foz Ca, no noroeste de Portugal
encontramos diferentes cenas com animais. Em Timor no temos uma herldica europeia, com emblemas,
brases ou estandartes, mas encontramos facilmente figuras zoomrficas presentes em casas sagradas, em
habitaes tradicionais ou em portas de madeira, imagens de crocodilos, galos, bfalos ou guias, animais
2 A propsito de herldica europeia confronte-se os estudos de Michel Pastoreau, nomeadamente em 7UDLWpGhraldique (1979), ou
Figures de lhraldique (1996).
3 Virtude - H seres que, segundo crem muitos timorenses, exercem a seu favor determinada influncia a que chamam beretude
corrupo da palavra portuguesa virtude. Ao ser que a exerce, seja insecto, animal, ave ou planta, chamam, igualmente, beretude.
4 Buan (s.) Feiticeiro; bruxa. // Indivduo que, servindo-se de meios sortlegos, mata o seu semelhante, comendo-lhe a alma. (Costa,
2000: 61-62.
5 Matandk (s.) Curandeiro; feiticeiro; adivinho; vidente; mdium (lit. olho longe). // O curandeiro, geralmente homem, conhecedor
de muitas plantas medicinais. Tambm significa aquele que denuncia ou confirma a acusao que fazem do buan, depois de consultar
as vsceras de animais. (Costa, 2000: 244) Para uma melhor compreenso dos conceitos buan e matandk veja-se Menezes, 2006:
100-103.
44
totem e llik porque lhes atribuem poderes mgicos e favorveis, capazes de bom augrio e de bonana e,
tambm, por isso, representantes ancestrais de cls ou reinos. Os rituais animistas reflectem essa imagtica e
DGRUDomR KDYHQGR VHPSUH VDFULItFLR GH JDORV FDEULWRV SRUFRV RX E~IDORV 2V TXDWUR FRQFRUGaram mas,
afinal, s lhes entregaram um bfalo que foi logo morto no estlu feito a Le-0DX3DVFRDO
A literatura oral, sendo tambm uma manifestao artstica ancestral, revela, muitas vezes, este encantamento
e proximidade entre o Homem e os elementos naturais. O povo timorense, praticante de cultos animistas e
vivendo em permanente comunho com a natureza, sente grande atraco e fascnio pelo mundo animal. No
surpreende pois que, na literatura oral timorense proliferem contos, lendas e fbulas em que frequente
encontrarmos a presena de diferentes animais.
Vimos em cima o que representa o crocodilo, antepassado e, por isso, chamado de av entre os timorenses, ao
ponto da ilha de Timor ser conhecida por Ilha do Crocodilo. Mas, apesar do crocodilo ocupar lugar destacado,
no o nico a ter ateno especial entre os povos de Timor. Outros animais so protagonistas, verdadeiros
seres llik (sagrados) ou totem como veremos nos relatos fundacionais que analisaremos.
A imaginao fantasiosa dos povos timorenses coloca mesmo pequenos animais, como a codorniz ou o rato, a
ajudar o Homem nas guerras contra invases primeiras de guas marinhas, no se preocupando com essa
irrealidade que ver animais de tamanho reduzido a enfrentar tamanhos cataclismos:
O mar invadira a terra e cobrira, por completo, at os montes mais altos. O pouco que ainda restava do Tata-Mai-Lau o
maior de todos ficaria tambm submerso na imensido das ondas que, de todos os lados, bramiam, revoltas, se Queo
uma codorniz e Laho um rato no tivessem arremetido contra elas, obrigando-as a retroceder. (Pascoal, 1967: 54)
Durand cita Bachelard para dizer que os smbolos no podem ser vistos na perspectiva da sua forma, antes da
sua fora. (cf. Durand, 2002: 47) O ancestral timorense v os animais mesmo os mais pequenos - como seus
aliados nesses combates contra os invasores da terra, recorrendo a eles e chamando a si muitas das suas
caractersticas como a fora, a velocidade, a destreza ou a argcia, s assim conseguindo equilibrar contendas
partida perdidas. A ajuda desses aliados pois determinante e crucial para o homem combater e repelir
essas foras ciclpicas avassaladoras. A aliana homem/animal equilibra o jogo e salva a Terra dos primeiros
cataclismos e dilvios. Reconhecido por esses favores, o homem timorense chega a ornamentar o corpo com
plos de carneiro ou de co e penas de galo, de forma a atrair para si as qualidades desses animais:
As ondas no cediam. Arremessaram contra elas dois pssaros e um mocho chamado Maca-Leto-Paca-Lor a ver se assim as
venciam. Contra elas aularam, tambm, o co Maca-Tni e a cadela Dua-L que os tinham acompanhado na fuga. S ento
45
as ondas comearam, finalmente, a ceder, enquanto os homens e as mulheres pulavam e gritavam, os ces ladravam, os
dois pssaros e o mocho piavam.
Os homens tinham amarrado, nos tornozelos, plos da cauda dos ces e, na cabea, levavam penachos de penas de que
no se tinham esquecido na fuga. (Pascoal, 1967: 65-66)
Tratando-se de contos, lendas ou mitos imergimos no domnio do fantasioso e, por isso, tudo possvel. Ainda
assim, nos nossos dias, vemos nas festas tradicionais, nas recepes de pessoas importantes, nas danas
tradicionais, homens com penachos de penas de galo e plos de cabrito presos aos tornozelos. Ser essa
ornamentao consequncia desses acontecimentos primordiais?
O homem timorense, observador atento das caractersticas desses animais, transporta-as para as suas
narrativas, associa-se a elas, adoptando-as para si, num processo de metaforizao que pode estabelecer
paralelos entre as relaes humanas e as dos animais, como nos mostra este fragmento:
E no tardou muito tempo que o Mau-Berek visse o prncipe transformado num grande crocodilo malhado, vagueando
repousadamente no meio da ribeira.
Depois, o real crocodilo ordenou ao Mau-Berek que se metesse na gua e desse s mos e pernas, como ele fizera. Pouco a
pouco o Mau-Berek foi-se transformando, por sua vez, num lagarto. Ao homem a quem isto aconteceu chamam-lhe uns
lafaek rai maram: outros, laku-taru, e outros mau-berek. (S, 1961: 40)
Ter o termo maubere referente a cidado timorense origem no vocbulo Mau-Berek? Ver o ancestral
timorense nesta relao de vassalagem do lagarto para com o crocodilo, similitudes entre o homem maubere e
os povos colonizadores, os avs ancestrais (os crocodilos vindos de outras paragens)? Durante o perodo
colonial portugus, maubere tinha uma conotao pejorativa, associado a primitivo, selvagem ou gentio, para
depois, no perodo revolucionrio e anticolonial, representar o nacionalismo imergente, a luta contra o
colonialismo e, por isso, sendo sinnimo de identidade nacional que era necessrio assumir como elemento
diferenciador. Por outro lado, no perodo colonial, o regime poltico, administrativo, social e jurdico assentava
num sistema de classes sociais de natureza aristocrtica, com pessoas de origem nobre (liurais) aqui
simbolizados pelo crocodilo e escravos (ata), representados pela personagem do lagarto Mau-Berek:
46
Ora o lagarto, em relao ao crocodilo, mau-berek, porque dada a sua nfima espcie de rptil matroco, no passa dum
escravo daquele.
Esta ideia de relao entre sbditos e senhores, escravos e soberanos, atas e liurais, expressa pelo indgena por smbolos
vrios, colhidos na sua flora, na sua fauna, na sua toponmia, constitui o dogma supremo da sua mentalidade e a linha mestra
da sua conduta. (S, 1961: 34)
Christopher Tilley (1999), em Metaphor and Material Culture, resume bem estas analogias e similitudes entre as
relaes humanas comparativamente s animais, em que muitas das vezes o Homem se observa a partir do
mundo animal, espcie de espelho capaz de reflectir sensaes, condutas ou pensamentos prprios do ser
humano, quando afirma:
It would seem to be quite inappropriate to posit any universal cultural principle as regards the directionality of the symbolism,
ZKHWKHU KXPDQ EHLQJV WXUQ QDWXUDOO\ WR HDFK RWKHU WR GHULYH DQDORJLHV ZLWK DQLPDO VSHFLHV RU XVH DQLPDO VSHFLHV WR
understand themselves. By far the most significant point is that the construction of principles of metaphoric analogy between
the domains of humans and the domains of animals forms a fundamental basis for self-understanding and the construction of
meaning in all known societies. Animals are key source domains and target domains of metaphors through which culture is
constituted. (Tilley, 1999: 49-50)
Os relatos fantasiosos comportam assim algo de mental, que se traduz em metforas e analogias, resultantes
da observao de fenmenos naturais, de aces do quotidiano, da relao do ser humano com o meio
circundante, com as suas espcies vegetais e animais. O homem busca no mundo natural explicaes para o
seu comportamento, maneiras de ser e de estar, estabelecendo simetrias e paralelos, que se expressam depois
em linguagem simblica, em metaforizaes, linguagem ancestral, desde sempre usada pelo Homem, de que
exemplo o fragmento acima transcrito relativo ao crocodilo e ao lagarto.
Na literatura oral timorense, o imaginrio fantstico pode at colocar uma simples enguia a bater com a sua
cauda e a provocar um terramoto, capaz de abrir fendas na terra e a originar as ilhas de Ataro, Alor, Veter e
Lirang:
Conseguiram, assim, que as guas descessem. Alor, Vter, Lirang e mais ilhas que se vem de Ataro estavam-lhe unidas.
Eis, porm, que um estremeo da cauda de uma enguia, que estava no cimo do Mnu-Cco e que ainda l est!
provocou tremendo terramoto e todas essas terras se separaram. (Pascoal, 1967: 45)
Animal sagrado para muitas comunidades timorenses, casos de Ataro ou Loihuno/Viqueque, onde a enguia
alvo de venerao e culto. Este fascnio e venerao pelo mundo animal relaciona-se tambm com a
proximidade das comunidades com determinados animais. Ou melhor, naturalmente que o ataro,
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profundamente ligado ao mar, v nos seus seres, enguia, golfinho, tubaro, tartaruga, polvo ou caranguejo
motivo de adorao. Seres aquticos que, como constatamos neste excerto do romance Crnica de uma
Travessia, do escritor timorense Lus Cardoso, so objecto de temor e respeito:
De manh, acordava-me na altura em que se dirigia fonte e levava consigo ovos que recolhera na vspera para dar de
oferenda enguia que vivia na fonte e protegia o caudal mantendo os aquferos limpos. Anos mais tarde, um parente
destemido viria a ficar imobilizado do lado esquerdo por ter ousado matar a enguia, impedindo desta forma o escorrer das
guas e secando a fonte. (Cardoso, 2010: 41-42)
Animal aqufero singular, a enguia tem pela sua morfologia afinidades simblicas com a serpente e, no universo
timorense, proximidades com o crocodilo, tambm EpQDin6 (dono das guas) sendo objecto, como vimos, de
ULWXDLVHWHPRU'DGRTXHDVHQJXLDVH[LVWHPWDPEpPHPORFDLVRQGHDiJXDQXQFDVHFDLJXDOPHQWHMXOJDP
RV WLPRUHQVHV TXH HVWH SHL[H SRVVXL D PHVPD YLUWXGH GR FURFRGLOR &DPSRV 1973: 68) O desrespeito de
normas h muito estabelecidas pode pagar-se, na crena destes povos, com a prpria vida, ou com sofrimento
e tragdias vrias. Enguia que considerada llik (sagrada) ou totem em algumas comunidades, como nos
revela esta passagem de uma narrativa, da regio de Lautem:
Ao alvorecer o jovem retirou-se e, sem que ningum o visse, saltou para a nascente de Comi-Lafa: Pois ele era uma enguia
que se havia transformado em homem [...] Desde ento os seus descendentes jamais comeram enguias, sempre as
venerando como tei. (Gomes, 1972: 64)
Este relato mostra bem do carcter totmico e sagrado (em fataluku, tei) da enguia, animal capaz de se
personificar, de adquirir faculdades humanas e nobilirquicas. Os povos timorenses vem os animais dotados,
muitas vezes, de foras misteriosas e secretas, pequenos deuses, a reencarnao de espritos antepassados,
o que perceptvel em muitos dos contos e lendas, quando animais se metamorfoseiam em homens ou
mulheres e vice-versa:
A pequena Li-Li (avezinha) aparecia, pois, todos os dias na horta de Pik-Rssi, onde sempre encontrava amendoim em
abundncia para o seu sustento dirio. Um dia, Pik-Rssi converteu-a em mulher e tomou-a por esposa, dando-lhe o domnio
da Terra, reservando para si o governo alto. A nova divindade passou a ter o nome de Bi-Tru (senhora de baixo). (Duarte,
1984: 103)
6 A este animal, geralmente a enguia, so atribudos poderes sagrados, sendo considerado o protector da nascente. (cf. Costa, 2000:
53)
48
Outros contos apresentam aves de grande porte, por exemplo, milhafres (makikit, em ttum) como capazes das
mais terrveis tragdias, reencarnando, por vezes, em feiticeiros (buan, em lngua ttum) ou vice-versa:
(PERUDRVVHXVFDGiYHUHVWLYHVVHPVLGRHQWHUUDGRVHP/HEH-Tuto, na encosta dum monte a leste de Tuga-
Rema, os dois feiticeiros e respectivos sequazes transformaram-se em milhafres e fugiram para Bobonaro, Ai-
$oDH6DQtULQ3DVFRDO2XQHVWHH[FHUWRHPTXHRVPLOKDIUHVVHWUDQVIRUPDPHPKRPHQVFRPR
LQWXLWR GH URXEDU 4XDQGR YROWDUDP Mi RV PLOKDIUHV WLQKDP OHYDGR SHORV DUHV DV GXDV FULDQoDV TXH VH
chamavam Bui e Lale [...] Se encontravam milho ou arroz, transformavam-VH HP JHQWH SDUD RV URXEDU
(Pascoal, 1967: 249)
Ave ligada a pressgios7, augrios e desgraas, o milhafre tem para o timorense, por exemplo, da regio
manbae, conotaes negativas porque ligadas a roubos de almas de defuntos, como nota o Padre Pascoal:
Ainda hoje, quando algum milhafre de qualquer das trs espcies que existem em Timor e a que, em manbe chamam,
respectivamente, Nau-Fai, Loco-Mo e U-Nir ronda sobre as aldeias que conhecem a lenda, os gentios, donos das casas
onde h doentes, colocam porta um laftic (aafate achatado) com comestveis, dispostos de certa maneira, a fim de que
tais aves aziagas devolvam, em troca desse repasto deixado ao seu dispor, a alma dessas pessoas que comearam a
devorar. (Pascoal, 1967: 62-63)
Certos contos associam tambm o milhafre ou a guia (smbolo areo ligado ao Sol e ao Cu) serpente
VtPEROR WHUUHVWUH H GR PXQGR VXEWHUUkQHR H VHQKRUD GDV iJXDV 8PD RXWUD H[SUHVVmR GD GXDOLGDGH FpX-
terra aparece com a oposio guia-serpente, mencionada nos Vedas: com o pssaro mtico Garuda, que ,
originariamente, uma guia. Pssaro solar [...] Garuda nagari LQLPLJR GDV VHUSHQWHV &KHYDOLHU HW
Gheerbrant, 1994: 47)
Um conto do padre Pascoal coloca milhafres como inimigos de uma jibia de quatro patas (e que, por isso,
poder ser associada imagem do drago), dotada de faculdades humanas, querendo comer os filhos,
entretanto raptados e adoptados por aqueles:
7 Tambm na cultura da Grcia Antiga, o milhafre estava associado a pressgios e associado ao Deus Apolo. Quando o Olimpo foi
atacado por Tfon, foi em milhafre que Apolo se transformou. O milhafre, voando alto no cu e com uma vista penetrante, observado
pelos augrios nas suas evolues significativas, e normalmente ligado a Apolo como smbolo da clarividncia. (Chevalier et
Gheerbrandt, 1994: 452)
49
A jibia subiu para umas pedras e abriu a boca. Os milhafres despejaram-lhe dentro uma panela de gua e cera, misturadas
com farelo a ferver. A jibia caiu e fugiu... (Pascoal, 1967: 250)
Cobra profundamente ligada terra, mulher e vida, tambm no imaginrio ancestral timorense, onde a
cobra verde (samodopWDOYH]DPDLVWHPLGDGDGRDVXDSLFDGDVHUPXLWDVYH]HVPRUWDO4XDQGRHVSHUDYD
um filho e com que alegria, apesar de ser um filho do acaso dera luz uma samodo a mais venenosa de
WRGDVDVFREUDV3DVFRDO
Cobra ou serpente tambm capaz de criar dentro de si, de dotar de fora e nobreza como nos mostra esta
SDVVDJHP&RQWD-se que em Lautem havia um rapazinho de compleio dbil, que um dia a grande serpente
GHYRURX $R ILP GH VHWH GLDV IRL YRPLWDGR PDV Mi IHLWR KRPHP IRUWH H FRP WRGRV RV DWULEXWRV GD FKHILD
(Cinatti, 1987: 146)
Da regio de Viqueque chegou-nos s mos um belssimo texto com o ttulo A Lenda do Homem-Cobra8 que
narra a estria do velho Leki que vivia com as suas sete filhas. Certo dia a sua nica vizinha, a velha Hare,
tendo ido buscar lenha ao mato encontrou uma grande cobra que lhe pediu encarecidamente que a levasse
para sua casa. A velha, primeiro amedrontada, anuiu e levou a cobra para sua casa. Cobra que se transformou
num belo e forte jovem, o qual cuidou, agradecido, com esmero da horta da velha Hera. Jovem que viu as filhas
do velho Leki, tendo pedido sua hospedeira que intercedesse junto do velho para que ele permitisse o
casamento com uma dessas filhas. Claro que o velho Leki no aceitou a proposta, sentindo-se at ofendido,
pois era de classe superior. No entanto, uma das suas filhas, de nome Bui Iku resolveu indagar quem era o
jovem pretendente, vindo depois a apaixonar-se por ele. O jovem trabalhou ainda mais e foi ganhando o
respeito de todos, tendo at viajado para conseguir roupas e outras necessidades para o seu futuro filho. No
entanto, as irms de Bui Iku tudo fizeram para a prejudicar e acabar com o enlace. Uma das irms, chamada
Kassa, chegou at a aconselhar a sua irm a deixar o seu marido, pois ele fora uma cobra e podia a qualquer
momento voltar a s-lo. Vendo que Bui Iku continuava firme na inteno de manter o seu casamento, Kassa
resolveu aproveitar o momento em que tomava banho com a sua irm para a afogar. Bui Iku, no entanto,
apenas perdeu os sentidos e conseguiu salvar-se, tendo depois vivido com o seu marido e filho. Este seguiu o
exemplo do pai e viria a tornar-se o FKHIH GD DOGHLD 3RU DTXHOHV WHPSRV R MRYHP Mi WLQKD D IDPD HQWUH DV
pessoas da aldeia. Todas o admiravam porque era trabalhador, muito inteligente, gostava de ajudar as
pessoas, dava sempre o que lhe restava aos necessitados e, sobretudo, nunca foi ambicioso de ter mais do
que o suficiente para o sustento da famlia. A sua fama levou-o a ser escolhido como chefe da aldeia quando o
YHOKRFKHIHPRUUHX
8 Lenda recolhida, redigida e gentilmente cedida pela senhora Slvia Soares (confronte-se apndice).
50
Dada a extenso do conto procuramos resumi-lo, transcrevendo algumas das suas partes fundamentais,
aproveitando ainda para dizer que o jovem exerceu com justia a administrao da aldeia, transmitindo os seus
conhecimentos de medicina tradicional e sendo at adivinho do clima que iria fazer, tendo assim o povo boas
colheitas. Dizia-se at que a sua sabedoria lhe provinha do facto de ter ascendncia de cobra. Chegada a hora
da morte do seu velho pai, este chamou-o e disse-OKH6LQWRDPLQKDKRUDDFKHJDUpRPHXLQVWLQWRGHFREUD
que mo diz. a lei da natureza e nenhum animal e nenhum homem o pode evitar [...] Mais tarde, conta-se que
a sua descendncia governou aquela terra durante geraes e sempre havia prosperidade porque os chefes e
RSRYRHVWLPDYDPHFXLGDYDPGDQDWXUH]DTXHVHPSUHOKHVGDYDRQHFHVViULRSDUDYLYHUHP
Conto fabuloso este que explica a justia, o respeito, o amor pela natureza e consequente prosperidade, na
existncia de um encontro casual de uma mulher com uma cobra9. Cobra que se transforma no ascendente de
toda uma terra e de uma comunidade, que possibilita uma refundao ao transformar-se em homem e ao casar
com Bui Ikun, podendo ser conotada com a fertilidade, quer da mulher quer dos campos de cultivo. Cobra
intimamente ligada sexualidade veja-se mito cristo de Ado e Eva pois aqui o casamento do rapaz
cobra com Bui Ikun que permite a descendncia, o florescimento de uma comunidade onde viviam, apenas,
dois velhos, Hare e Leki (com as suas sete filhas), logo impedidos de procriar:
A serpente , com efeito, smbolo de fecundidade. Fecundidade totalizante e hbrida uma vez que ao mesmo tempo animal
feminino, dado que lunar, e tambm masculino, porque a sua forma oblonga e o seu caminhar sugerem a virilidade do pnis:
a psicanlise freudiana vem aqui completar mais uma vez a histria das religies. (Durand, 2002: 318)
Encontramos um relato que sintetiza bem esta simbologia da serpente, a morte, mas tambm a vida, a
capacidade de metamorfose10 e a sua ntima relao com a mulher: Um gigante recolhe ao seu leito nupcial,
tendo a sua noiva recolhido mais tarde. Esta assusta-se quando v na cama e entre os dois uma jibia gigante,
pegando numa catana de guerra do marido e matando a jibia, vendo, mais tarde, que acabara de matar
tambm o seu noivo. (cf. Campos, 1973: 85)
9 Confronte-se contos tradicionais europeu em que animal noivo (ave, cobra ou outros) protagonista. Ter havido contgio dos
contos tradicionais timorenses por influncia europeia?
10 (VWD FDSDFLGDGH GH PHWDPRUIRVH H GH HWHUQR UHWRUQR UHPHWH SDUD D VLPERORJLD GH 8UXERUR VHUSHQWH TXH PRUGH D FDXGD H
simboliza um ciclo de evoluo fechada sobre si prpria. Este smbolo encerra ao mesmo tempo as ideias de movimento, de
FRQWLQXLGDGHGHDXWRIHFXQGDomRHHPFRQVHTXrQFLDGHHWHUQRUHWRUQRFI&KHYDOLHUHW*KHHUEUDQW
51
Um outro conto, recolhido por Correia de Campos (1973) explica a origem das sementeiras, como sendo obra
de um combate travado entre um prncipe e o seu periquito - talvez se tratasse de um lorico, ave de enorme
carga simblica em Timor-Leste - com os pais de uma princesa, desejada pelo prncipe, que era guardada por
uma cobra de sete cabeas:
Porm a princesa, furtando-se ao encanto do maravilhoso enlevo, exclama, cheia de pavor: - Foge, prncipe, salva a tua
vida, que os meus pais no tardaro! Mal acabara de proferir estas palavras, ouve-se um trovo reboando pelas quebradas
das serranias [...] E depois de meter os dois no papo, voa acto contnuo em direco a Timor.
Logo em seguida, dando a serpente das sete cabeas por falta da princesa, abana furiosamente a rvore [...] O combate
terrvel em breve se iniciou. (Campos, 1973: 106-108)
O relato termina com a anuncia dos pais da princesa em casar a filha com o prncipe, desde que a partir da
se fizessem as sementeiras logo que aparecessem, em cada ano, os primeiros troves, relmpagos e chuvas.
Cobra ou serpente que Durand (2002) FRQVLGHUD FRPR XP GRV VtPERORV PDLV LPSRUWDQWHV GD LPDJLQDomR
KXPDQD -i %DFKHODUG VDOLHQWD D VXD FDSDFLGDGH HP VH UHJHQHUDU HP VH PHWDPRUIRVHDU VHQGR VtPEROR
bipolar porque pode representar a dialctica da vida e da morte. (cf. Durand, 2002: 316) Serpente que participa
nos relatos fundacionais timorenses, aquando dos dilvios primeiros, como observamos num mito da regio de
Lautem, onde depois do cataclismo, os nicos sobreviventes, dois irmos, ao descer das rvores salvadoras,
HQFRQWUDPXPDPRQWRDGRGHVHUSHQWHV&RQWD-se tambm, em Lautem, que, quando as guas se retiraram e
os dois irmos rapaz e rapariga remanescentes desceram do coqueiro e da arequeira, onde se tinham
refugiado, s viram carcaas de serpentes empilhadas como se fossem os montes de Mua-3LWLQH &LQDWWL
1987: 146)
Se a cobra claramente um smbolo lunar e terreno que goza de grande simpatia e culto no imaginrio
timorense, a guia, animal real em diferentes culturas e latitudes, tem, tambm, entre os povos timorenses
atenes especiais, j que profundamente conotada com os cus e os astros, da a sua sacralidade e nobreza:
Vrios cls adoram, por exemplo, a constelao Rahu ou Ra (rion, Pliades ou Ursa Maior). No tempo das chuvas, os
Ktiratu costumam sacrificar-lhe nove cabras e um porco. Para estes, uma das sete estrelas da constelao personifica a
guia. (Gomes, 1972: 65)
Os povos da regio de Lautem viram na guia faculdades de terrfico predador, de ave de grande porte, animal
singular nico a voar a altitudes extremas motivos mais do que suficientes para lhe prestar grandes
devoes, ao ponto de o tornarem seu ascendente, conseguindo, assim, chamar a si as suas qualidades e
52
LQVWLQWRJXHUUHLUR(ORJRGHVFHXGRFpXXPDiJXLDTXHOKH ligou a cabea ao tronco e, batendo as asas, lhe
FRPXQLFRXRVRSURGDYLGD*RPHV
Alis os povos timorenses, conhecidos ancestralmente pela sua fora, bravura e coragem, admiram e colocam
no seu panteo de predilectos, os animais que reflectem esse esprito blico como o galo, o co, o bfalo ou a
guia. Em cima j fizemos referncia ao facto dos homens timorenses, nas festas tradicionais, ornamentarem,
ainda nos nossos dias, o corpo com penas ou plos de galos ou cabritos. No perodo da guerrilha contra o
invasor indonsio temos registo11 de que os guerrilheiros bebiam sangue de galo, para assim ficarem dotados
da fora e da coragem dos mesmos. Francisco Gomes apresenta na sua tese (1972) a descrio de um cntico
e ritual da regio de Lautem chamado Seemai 6HHPDL p FkQWLFR GDQoD H ULWR GH FDUDFWHUtVWLFDV DVVD]
macabras com que os guerreiros Fataluku coroavam uma vitria sobre RLQLPLJR*RPHV Gomes
avana ainda com a hiptese do vocbulo mai (guia) estar na origem de Seemai, e isso parece-nos muito
SURYiYHOVHWLYHUPRVHPFRQWDRVVHJXLQWHVYHUVRVGRFkQWLFR(XVRXFRPRDiJXLDVRXFRPRDiJXLD9RHL
HPTXHGDVREUHDHQFRVWDGRPRQWHHIXOPLQHLRJDORPDWDGRU*RPHV
guia enquanto representante solar que aparece muitas vezes ligada serpente, smbolo terrestre por
excelncia. Descobrimos um relato fundacional fataluku que justifica a descendncia de todos os seres do
universo como tendo origem numa guia e numa jibia:
no princpio, uma guia e uma gibia teriam surgido sobre a massa inerte do Universo. A primeira ps sete ninhadas de sete
ovos cada uma, e a segunda t-los-ia, depois, chocado. Da primeira ninhada nasceram seis rapazes e uma rapariga. De cada
uma das outras teriam nascido cada uma das vrias espcies de entes que povoam o mundo: aves, peixes, rpteis,
mamferos, insectos e plantas. E os elementos de cada grupo de sete diferiam entre si em certos pormenores, dando origem
s famlias da mesma espcie.
de frisar que, por fora do culto prestado guia, a lenda refere que da ninhada incubadora dos seres alados nasceram
sete qualidades de guias. (Gomes, 1972: 47)
Grandes predadores, dotados de caractersticas mpares, a guia e a jibia representam a unio entre cu e
terra, so os seus reais representantes, surgindo como protagonistas de contos, quer do mundo ocidental, quer
entre as civilizaes orientais. Animais ancestrais que congregam caractersticas como a velocidade, a
coragem, a fora, a imponncia, mas tambm a crueldade, a esperteza ou a determinao. Faculdades que
levam o ancestral timorense a fabular e a ver a criao primeira, a origem do mundo como o conhecemos,
11 Vimos no Arquivo e Museu da Resistncia Timorense um documentrio, de 1996, Arquivo RTP, em que o comandante David Alex
e os seus homens bebem sangue de galo antes de enfrentar o inimigo indonsio, numa emboscada na regio montanhosa entre
Baucau e Viqueque, a fim de comemorarem o dia das FALINTIL.
53
constitudo por seres vivos de diferentes espcies, como resultantes da aco destes seres distintos, capazes
de gerar o ovo reprodutor da Natureza. Curiosamente, encontramos no Dicionrio dos Smbolos a seguinte
transcrio:
Assim, o Cdice de Dresna apresenta a ave de rapina enfiando as suas garras no corpo da serpente para dela tirar o sangue
destinado a formar o homem civilizado: o deus (serpente) vira aqui contra si mesmo o seu atributo de fora celeste, de ave
solar, para fecundar a terra dos homens... (Chevalier et Gheerbrandt, 1994: 596)
O ancestral timorense concebe tambm o mundo animal como capaz de influir na marcao do tempo, sendo a
determinao em um dia e uma noite obra de uma assembleia de animais, os quais depois de muito discutir e
ponderar chegam sbia deciso:
Havia um grupo de animais que desejava que a um dia se seguisse uma noite e assim sucessivamente. Mas havia outro
grupo que preferia a diviso do tempo em sete dias consecutivos, seguidos de sete noites [...] Assim, resolveram ter uma
reunio geral [...] Aquele aglomerado de animais, em coro unssono, juntou-se ao NDNRak e gritou num ritmo bem marcado e
decisivo:
- Um dia, uma noite!... Um dia, uma noite!... Um dia, uma noite!... Um dia, uma noite!...
Este grito to forte, to compacto, to firme e to decidido estendeu-se pelas florestas densas, ecoou pelos montes e vales,
fez estremecer a Terra e abalou o Firmamento. A Natureza ouviu e acedeu. O Sol, a Lua, as Estrelas anuram. Saiu ento o
veredicto que havia de prevalecer pelos tempos fora: Um dia e uma noite. (Dias, 2009: 21-24)
Narrativa fantstica esta que coloca a definio do tempo em um dia e uma noite, resultantes de uma acalorada
assembleia do mundo animal, e a sua voz e deliberao a serem ouvidas e acatadas pela Natureza e pelos
Astros, dada a sua justeza e razoabilidade, diramos ns. Esta personalizao do mundo animal, este dotar os
animais de faculdades humanas tambm muito frequente e particular da literatura oral timorense.
Um outro conto atribui ao galo, esse mensageiro temporal ancestral, a responsabilidade pela diviso da noite
em partes:
H uma lenda que documenta a diviso da noite em partes. Segundo esta, haveria um galo no cimo do monte Paitchau
chamado Krutchu-Malai, haveria outro no monte Kelicai chamado Tchairu-Malai, e outro no Ramelau de nome No-Malai.
Quando canta Krutchu-Malai, responde Tchairu-Malai e, seguidamente, No-Malai. Depois, todos cantam sete vezes
intervaladas at ao amanhecer. (Gomes, 1972: 200-201)
A ideia ocidental de que os galos cantam apenas ao nascer do Sol, no Oriente, no tem qualquer
fundamentao, alis, como comprovamos todas as noites que passamos em Timor e como bem assinala o
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perodo transcrito em cima. Galos12 que em Timor-Leste so alvo de grande ateno e estima pelos seus
donos, pois na sua grande maioria trata-se de galos de combate. Verdadeiro desporto nacional, a luta de galos
um grande espectculo, com assistncia de centenas de pessoas e onde se fazem grandes apostas em
dinheiro.
Existem tambm muitas lendas que explicam a origem de topnimos e em que animais como o bfalo 13 ou o
co tm papel preponderante. A ttulo de exemplo veja-se os topnimos Uatocarbau, subdistrito da zona leste
do distrito de Viqueque, explicado com base numa narrativa que coloca um bfalo (karau) a transformar-se em
pedra (uato, na grafia actual fatuk). Bfalos que esto entre os animais predilectos dos povos timorenses que
os associam capacidade de trabalho, fora e riqueza. Por isso, surgem lendas e mitos em que o bfalo
surge misteriosamente da gua ou debaixo da terra:
O bfalo personagem altamente qualificada no folclore local. Os timorenses animistas atribuem-lhe origem sobrenatural: no
parecer de alguns da costa meridional da ilha, chegaram ali, aps terem surgido, miraculosamente, no mar de Timor; para
outros, estes animais nasceram em poo, nascente de gua doce ou depsito de gua salgada; finalmente, h naturais que
crem terem os bfalos aparecido de covas subterrneas. (Almeida, 1994: 490)
Bfalos usados em grande nmero de sacrifcios, animal dos mais queridos e de alto valor, seja pelo seu labor
e fora nas actividades agrcolas, enquanto objecto de troca simblica de prendas, em alianas de casamento
(onde os de maiores chifres surgem como mais preciosos). Aquando dos sacrifcios de animais como o bfalo
ou o porco, h normas rituais pr-definidas que so cumpridas de forma estrita. A carne comida nessas
ocasies distribuda consoante o papel social e religioso de cada membro da comunidade ou cl, sendo que
os de classe mais alta comem normalmente a parte da cabea ou do fgado, a ttulo de exemplo 14.
12 Cinatti diz-QRVTXHRJDORTXDQGRGHVWLQDGRDFRPEDWHpHQWUHRVWLPRUHQVHVTXDVHXPDOWHU-ego, companheiro indispensvel
na casa em que faz poleiro ou, debaixo do brao, a caminho do bazar. Os timorenses infantes consideram-no como prova de
maturidade que todo o homem deve aspirar. Possuir um galo , como a circunciso, um rito de passagem que confere ao dono
DWULEXWRVGHIRUoDFRUDJHPHIHUWLOLGDGH
13 Em Timor-Leste ter muitos bfalos sinnimo de riqueza e prestgio. frequente observarmos chifres de bfalos espetados em
paus e colocados em cemitrios ou outros lugares sagrados. Nos dotes de casamentos so pedidas cabeas de bfalo de acordo
FRP D QREUH]D GD QRLYD 7RGDV DV FDEHoDV GH E~IDORV DEDWLGRV Vero espetadas num pau e colocadas cabeceira da sepultura.
Quanto mais elevado for o nmero delas, mais palpvel o indcio do prestgio do morto. Crem que a alma desses animais
acompanharo e transportaro para o Alm a alma do morto. E, no outro mundRSDVWDUmRVRERVHXROKDU*RPHV
14 Veja-se a propsito Tilley (1999: 52) em que o autor apresenta uma imagem de um bfalo onde cada parte do animal corresponde
a um grupo social da comunidade Dinka, sendo que no sacrifcio da besta a parte da cabea cabe s pessoas mais velhas da aldeia.
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Quanto ao co, a sua destreza e sagacidade fazem com que o homem fabule a seu respeito e o veja como seu
aliado nas actividades do dia-a-dia, principalmente com as de ar livre, ligadas caa ou defesa do lar. No
imaginrio timorense, o co aparece tambm como animal dotado de inteligncia capaz de ajudar o homem na
obteno de melhores condies de vida. u-Lau15, na regio de Ermera, como conta a lenda com o mesmo
nome, segundo a qual uns ces foram responsveis pela descoberta do capim, enquanto material de
construo de casas, tendo os homens como forma de agradecimento colocado o nome de u-Lau ao local
onde tudo aconteceu:
Foram encontr-los entre capim to alto e to espesso que, por debaixo deles, nos stios em que estavam tombados, se
mantinham inteiramente secas, por muito que chovesse, largas manchas do cho.
Da em diante, os habitantes de u-Lau passaram a fazer palhotas cobertas de capim em vez de cabanas de barro.
(Pascoal, 1967: 139)
Ces neste caso a assumir o papel de heris civilizadores, de condutores de desenvolvimento, levando o
homem a criar novas tcnicas de construo de casas, depois da visualizao de determinado comportamento
animal (neste caso de ces). Interessante este relato na forma como o imaginrio ancestral timorense fabula
volta do acto criativo, no o vendo como obra unicamente humana, antes fabricao oriunda de mimetismo, de
capacidade de aprendizagem a partir do meio natural envolvente.
Concluindo, pretendemos neste captulo no fazer uma anlise exaustiva e pormenorizada do contributo de
cada um dos animais presentes na literatura oral timorense, antes destacar o seu protagonismo enquanto
elementos desencadeadores de mudana, foras que, independentemente do seu tamanho ou fora, so
determinantes porque auxiliadoras do Homem nas mais diversificadas situaes de cataclismo. Animais que
possibilitam a sobrevivncia e o ciclo da vida, animais que possuem muitas caractersticas comuns ao ser
humano, fazendo com que este fantasie em processos de metaforizao ou de analogia. Animais senhores da
Natureza dado o seu poder e ferocidade, a sua ancestralidade e sacralidade, sendo, por isso, alvo de temor e
reverncia humanas:
15 oX-Lau A uns doze quilmetros a sudoeste da sede da circunscrio administrativa de Ermera, encontra-se Ftu-Besse,
plantao de caf de muitos milhares de hectares. Uma das numerosas feitorias em que a mesma se divide chama-se u-Lau,
topnimo que se poder traduzir em portugus por Cabeo dos Ces (lau-alto ou cabeo u-co). Como toda a regio volta, a
feitoria de u-/DXpFRQVWLWXtGDSRUH[WHQVDiUHDPRQWDQKRVD3DVFRDO
56
As Pythons no so veneradas, se bem que temidas, mas as gentes de Lautem, do extremo leste, adora umas pequenas
cobras escuras, a que chama Rai-nin, senhoras da terra [...] Estes macacos maiores, me conta, no podem ser caados e
comidos como os pequenos, porque so llic. Aparecem raramente, erguem-se em posio vertical ao defrontar-se com o
homem, e por ordem deles, que so reis dos macacos pequenos, Rai-nin, Senhores da terra, vo os sbditos devastar as
plantaes, roubar os frutos das aldeias da gente. (Castro, 1996: 129-130)
Animais que povoam o imaginrio ancestral dada a estreita relao com o Homem, a dependncia que um tem
do outro e as suas similitudes comportamentais e existenciais, as quais originam muita da produo artstica
humana seja na literatura oral, na escultura ou na pintura. Mundo animal que muitas vezes a chave para a
compreenso de determinados fenmenos nas mais diversas reas veja-se caso da cincia que a ele recorre
para encontrar a soluo de muitos dos problemas humanos, havendo experincias com ratos, smios e ces
(de que exemplo a experincia dos estmulos/reaco de Pavlov).
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58
CAPTULO V
TIMOR EIXO CENTRAL ONDE NASCEU A ORDEM CSMICA ACTUAL
Em todas as civilizaes ancestrais foram os Astros motivo de adorao e fascnio, seja nas ocidentais casos
da Greco/Romana, Maia ou Inca, ou nas orientais de que so exemplo a Indiana ou a Chinesa. O homem
ancestral na procura de harmonia, de compreenso dos fenmenos naturais, foi estudando e adorando os
Astros, tratando-os como deuses que permitiram a sua origem e sobrevivncia. Na Europa Ocidental conta o
mito que os Olmpicos derrotaram os Tits, ficando Zeus a chefiar o universo e os deuses. Zeus que significa a
luz do dia em lngua ttum Deus diz-se Maromak, que se pode traduzir por o mais luminoso. Conta tambm o
mito que a Terra, Geia, gerou um filho, rano (o Cu) e fez dele seu marido. So os seus doze filhos, os Tits,
que combatem e so derrotados pelos Olmpicos. daqui tambm que resulta o Mito de Prometeu, Tit que
rouba o fogo aos deuses para servir os homens, sendo, por isso, castigado e eternamente agrilhoado. deste
Caos que nascer o Cosmos, onde Zeus impe a sua ordem e a sua lei, a Harmonia to necessria a deuses e
a homens.
H tambm no prodigioso imaginrio ancestral timorense, mais especificamente entre a etnia galolen, um mito
cosmognico que coloca Timor no centro do universo, explicando como se formaram e organizaram os seus
diversos constituintes. O mito retirado do livro Radiografia de Timor Lorosae, do padre Francisco M.
Fernandes, timorense falecido em Macau, em 2005, tendo o livro sido editado postumamente em 2011. Mito
TXHRSDGUHLQWLWXODGH$OHQGDGR Uran Uki ou Grande Panela $OHQGDGH2ULJHPGR0XQGRSS-85).
Segundo este relato fundacional - contado pelos lia-nains da regio de Lacl, de onde o padre Fernandes e
sua famlia so oriundos - no incio dos tempos, Timor era o centro do Universo, estando o Cu e a Terra a
unidos, assemelhando-se Timor a uma panela gigantesca (uran-wake, em lngua galolen). Era em Timor que
viviam todas as criaturas, homens, animais, campos e montanhas. O cu era o tecto ou tampa dessa grande
panela e era suportado pelas montanhas Cri e Maneo (do Reino de Lacl), Maubere (do Reino de Laclbar),
Matebian (do Reino de Baguia), Ramelau (do Reino de Same) e Mano Coco (do Reino de Ataro).
Neste mundo, Deus colocou a reinar o casal Lacoloik e Cololoik, que devia manter um clima de paz e
harmonia. Para tal, Deus ordenou-lhes que cada habitante devia comer apenas um gro de arroz por dia, para
alm das frutas disponveis, sendo que o arroz devia ser descascado mo, mas no em grandes
quantidades, a fim de ser preservado para os dias seguintes. Havia uma velha cozinheira do Liurai Amak,
chamada Birbi, a qual tinha muitos familiares que alimentava diariamente. Como o descasque do arroz se
tornou um trabalho penoso, a velha Birbi resolveu arranjar forma de o facilitar. Foi ao mato e cortou um tronco
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delgado, do qual fez um pilo (alo) e um almofariz (nessun), onde colocou grande quantidade de arroz que
comeou a pilar. Ao levantar o pilo, Birbi atingiu o cu, a tampa da panela. E eis que um simples acto
quebrou a harmonia do Universo e foi responsvel pelo desprendimento do cu, o qual se separou para
sempre da terra. A lua resulta do buraco feito pela ponta do pilo de Birbi. O sol uma antiga fogueira que
servia para transmitir mensagens entre os habitantes e as estrelas so os gros de arroz sados do almofariz
da velha cozinheira, os quais se espalharam pelo firmamento. Gros de arroz que com a pancada dada pelo
pilo foram arrastados pela tampa da panela (o cu), que provocou tambm a desordem, o desequilbrio do
universo, j que muitas montanhas foram deslocadas do seu lugar original, como foram os casos do Matebian
que foi para Lorosae (nascente) e do Ramelau que se transferiu para Loromonu (poente). Apenas os montes
Maubere, Cri e Maneo permaneceram nos seus locais originais, nas regies de Laclubar e Lacl, tendo o
Manu Coco ido formar a ilha de Ataro. A Grande Panela ao tombar ficou com a boca dirigida para Loromonu.
Panela que ao partir-se em vrios bocados deu origem a Timor Loromonu (do Sol Poente), o bocado maior, a
Timor Lorosae (do Sol Nascente), pedao menor, tendo os bocados mais pequenos originado as ilhas de
Ataro, Alor, Kissar, Weter, Dalahito e as outras ilhas do mundo. Ser por isso que muitos habitantes das ilhas
de Ataro, Kissar e Dalahito ainda hoje falam a lngua galolen?
Nas zonas de Manatuto e Laclubar, de onde surgiu e se enraizou este mito e onde se fala galolen, as suas
gentes so especialistas em cermica, fazendo ainda hoje grandes panelas e outras peas de loia. Ser o
mito uma narrativa construda e moldada pelos primeiros artesos? Ou resultar o conto desse mundo de
fabricao, onde o barro escuro se transforma em panelas gigantes e onde se erigiu um novo cosmos e
homens primeiros?
Ainda segundo a lenda os barcos estrangeiros que aportavam a Timor entravam pelo Subo (desfiladeiro da
costa norte, situado entre Manatuto e We-hauk):
O topnimo Subo etimologicamente deriva da palavra suban que, em lngua galolen, pode significar esconder-se e
esconderijo ou impedir algum de ver alguma coisa (a ideia de matan-helik). Da que os barcos sados de Dli com destino ao
estrangeiro acabassem todos por regressar a Timor, entrando pelo Suban para retornarem ao interior timorense. (Fernandes,
2011: 84)
Este mito vem colocar mais uma vez Timor no centro do Universo, lugar onde tudo comeou h muitos milhes
de anos. Mito fantstico dado o seu enredo, a forma pormenorizada como aponta explicaes para uma nova
harmonia, para a criao do Universo, para a origem das estrelas, da lua, do sol ou das diferentes ilhas que se
vem das montanhas de Laclubar e de Lacl, lugares mticos e sagrados, pois foi a que se deu o
acontecimento primordial, lugares que permaneceram inalterveis, mesmo depois do Cu se desprender da
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Terra, mesmo depois da Grande Panela ter tombado. Mito belssimo porque atribui a um simples acto do
quotidiano de uma velha mulher o despoletar de uma nova ordem. A velha Birbi, que ao pilar o arroz
desobedece a Deus e s suas leis, provocando com o seu pecado, com a sua falta o caos, mas tambm uma
nova ordem, um novo e maravilhoso cosmos cheio de gros de arroz no Cu. Mito, explicao cientfica dos
velhos lia nain de Lacl, a sua teoria fantstica do Big Ban, o seu conto original que foram transmitindo at aos
nossos dias, e que o padre Fernandes em boa hora publicou, se bem que sejam poucos, infelizmente, os que
conhecem este maravilhoso, a todos os nveis, relato.
Mito que semelhana de outros acontece num lar, numa casa, lugar central da vida timorense, onde se
desenvolvem as actividades dirias, que passam pelo cultivo de plantas e criao de animais, actividades
ligadas alimentao e sobrevivncia. Casa enquanto microcosmos, universo singular, metfora e imagem do
mundo, sendo a sua cobertura associada ao cu e o seu pilar central espcie de eixo do mundo, como bem
notou Ruy Cinatti:
Na estrutura da habitao revela-se o simbolismo csmico: a casa a imagem do mundo, a sua cobertura o Cu, o pilar ou
poste principal assimilado ao eixo do mundo que sustenta o tecto celeste e desempenha um papel ritual importante: na
sua base que tm lugar os sacrifcios em honra do ser supremo, Marmac. (Cinatti et al, 1987: 34)
61
A casa tem entre os timorenses um valor simblico tremendo, basta ver que em praticamente todas as aldeias
h uma chamada uma llik1 (casa sagrada). Nestas acontecem os encontros dos membros do cl, aquando
das cerimnias religiosas nativas, os rituais ligados agricultura, aos nascimentos ou morte, a ttulo de
exemplo. H entre os grupos tnicos timorenses uma grande preocupao em manter as tradies, em
defender o passado da sua linhagem e os seus smbolos, objectos que adquiriram valor llik. No admira, pois,
que muitos mitos e lendas tenham por espao privilegiado a casa e os seus componentes. Como vimos em
cima, a casa representa o universo, lugar fundacional de uma nova ordem e de um novo tempo, mas tambm
eixo central que liga o mundo terreno ao mundo do alto. Casa enquanto espao teatral onde confluem e se
misturam sagrado e profano:
Na sua dimenso mais esotrica, (as casas) ligam concepes da origem do mundo, dos seres e da humanidade [...] casa
est associado o primeiro campo que foi objecto de cultivo e tambm era o local por onde se podia aceder ao cu onde se
encontrava o domnio do Sol e da Lua. (Sousa, 2007: 198-210)
Constatamos esta relao metafrica das casas com o cosmos entre as etnias ttum e atoni. O lar corpo
representativo do homem e do cosmos, meio de passagem do mundo inferior ao espao celeste do alto:
Os Ttum possuem tambm uma arquitectura sagrada, plasmada nas casas que simbolizam o cosmos e que surgem noutros
povos do sudeste asitico e, inclusive, na Colmbia, e entre as comunidades da Amaznia. Para os Atoni o cu est
representado nas suas casas pelo tecto em forma de cpula que alberga simbolicamente os astros do firmamento. Segundo o
DQWURSyORJR 'DYLG +LFNV DV FDVDV FyVPLFDV GD ORFDOLGDGH GH 9LNHNH RQGH KDELWDP RV 7pWXP WrP IRUPD UHFWDQJXODU H
simbolizam vrios membros do corpo humano como olhos, ossos, cabea, ps e pernas (Hicks, 1973). A Antropologia
FRQFHGHHPJHUDOTXHHVWDVFDVDVWUDGX]HPXPPLFURFRVPRVDPHWDGHGROXJDUpIrPHDHVLPEROL]DRPXQGRVDJUDGR
VXEWHUUkQHRDRXWUDPHWDGHpPDFKRHUHSUHVHQWDRPXQGRFHOHVWH)HUQDQGHVHW0DXVR-90)
Seguindo esta linha interpretadora, esta dinmica simblica, teramos a casa enquanto unidade representativa
do universo e do corpo humano. Este esquema conceptual tripartido em corpo/casa/universo, esta bipolaridade
entre mundo subterrneo, ligado fertilidade feminina, e mundo celeste, conotado com o universo masculino,
muito caracterstica do imaginrio e da imagtica timorenses. Este confronto entre animus e anima que depois
transparece nas formas artsticas e literrias e se traduz em diversas unidades simblicas. Dualismo que
transferido para a representao que o timorense faz do mundo e, por isso, normal que ele busque uma
aproximao entre essas realidades aparentemente to distantes. Assim, no seu quotidiano h um contacto ou
imerso com o sagrado, com o celeste ou csmico, resultante de uma necessidade intrnseca de diminuio
1 Veja-se a propsito estudo de Rui Centeno e Ivo Sousa (2001) Uma Lulik Timur Casa Sagrada de Oriente. Porto: Faculdade de
Letras da Universidade do Porto.
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das distncias. Atravs da simbologia csmica dada ao seu lar, o timorense vive, permanentemente, entre os
deuses, entre os astros, procura o seu favorecimento, para que lhes conceda fortuna, revestindo-se,
concomitantemente, de sacralidade, em estreita simbiose com os seus antepassados:
A disposio da casa tem uma significao mitolgica: a casa um microcosmos, em que o sto corresponde morada dos
antepassados, a parte residencial ao mundo dos vivos e a parte inferior ao dos espritos infernais. (Thomaz, 2008: 268)
David Hicks confirma esta perspectiva quando refere que os antepassados comeam no mundo inferior (rai
husar umbigo da terra) e ascendem ao mundo superior e masculino controlado por Maromak. Daqui esto
destinados a regressar ao mundo inferior novamente. (cf. Hicks, 1987) A casa o lugar de passagem, o
elemento de ligao, a ponte entre esses dois mundos. Lugar onde o homem faz as suas actividades dirias,
em regime diurno ligado fertilidade, agricultura e criao de animais, recolhendo-se, noite, sua lareira,
ao interior, ao mundo do fogo mstico, regime nocturno onde a lua protagonista.
O pilo, o almofariz e a panela, objectos de uso domstico e protagonistas da lenda do Uran Uki, podem,
tambm, ser conotados como utenslios ligados fertilidade, produo, representativos desse dualismo
sexual, o primeiro associado ao campo masculino, enquanto os segundos em relao com o elemento
feminino. Alis, a mulher (veja-se o caso de Birbi) , muitas vezes, personagem principal de muitos mitos e
lendas de origem a mulher e os seus pertences ou ferramentas so, neste caso, personagens catalisadoras
de mudana, de nascimentos, seja na transformao dos gros do milho em farinha, ou neste caso na
metamorfose dos gros de arroz em estrelas. O pilo que na sua ascenso desencadeia o deslocamento do
cu, originando com a sua pancada o nascimento da lua, tambm ela smbolo intimamente ligado fertilidade e
mulher.
Por ltimo, uma referncia aos gros de arroz, alimento basilar da gastronomia timorense. Ruy Cinatti (1974:
93-95) WHP XP SRHPD LQWLWXODGR 0LWR GR $UUR], transpondo para verso o mito do nascimento do arroz,
processo que s o seu talento singular de poeta antroplogo poderia consubstanciar. O Mito comea por
DQXQFLDU8PSUtQFLSHQDVFHXDSRQWDQGRGHVHJXLGDRORFDOGHVVHQDVFLPHQWR7HUUDVGR Suai [...] reino de
B-+DOLFRPSUHHQGHQGRROHLWRUPDLVDEDL[RTXHPpHVVHQREUHVHU8PSUtncipe nasceu, / cresceu e todos
OKH FKDPDUDP ILOKR GR 6RO >@ 5RPSHX R DUUR] $UUR] SUtQFLSH ILOKR GR 6RO TXH KDELWD R TXRWLGLDQR
timorense desde Loro Sae (Sol Nascente) at Loro Monu (Sol Poente) e est espalhado sob a forma de
estrelas no lmpido cu de Timor.
63
64
CAPTULO VI
No deixa de ser interessante e misterioso o facto de as diferentes etnias que compe o territrio de Timor
terem todas uma explicao mitolgica para a origem do mundo, onde o seu lugar surge como primordial,
sagrado porque primeiro, de onde tudo partiu. Mistrio que pode ser entendido se pensarmos no isolamento em
que estes povos (cls) viviam, guerreando-se muitas vezes, mas tambm celebrando alianas entre si (veja-se
casos dos cls fataluku da regio actual de Lautem). Estudo de Gomes (1972) apresenta narrativas onde
vemos claramente esses conflitos ou unies entre povos primitivos que povoaram a zona leste da ilha. H
certamente contactos que provocaram contaminaes culturais, sociais e que passaram para os relatos orais
que explicam o nascimento do mundo, do homem e da ilha. No deixa, porm, de ser evidente esta procura
incessante pela origem primeira, colocando o seu lugar como porto onde aportaram ou nasceram os seus avs,
lugar onde tudo aconteceu ab initio, lugar onde teceram e moldaram mitos e lendas singulares que
sacralizaram a sua terra, a sua montanha ou a sua lagoa. No mito do Uran Uki vimos que o universo se
assemelhava, inicialmente, a uma grande panela, sendo que as montanhas timorenses suportavam o tecto ou
cu. No imaginrio ancestral timorense e nos seus relatos fundacionais frequente esta proximidade entre Cu
e Terra. Apesar de o Cu estar normalmente associado a Deus (Maromak), vemos lendas e mitos a descrever
uma relao entre estes astros at de natureza sexual, o primeiro ligado ao sexo masculino (ao animus) e o
segundo ao lado feminino (ao anima):
1
Conta uma muito intrigante lenda que Maromak baixou terra para copular com Rai Lolon e voltou aos cus antes que o seu
filho nascesse dentro de uma cratera. Este ser humano primognito, Rubi Rika, Lera Tiluk ou ainda Cassa Sonek, foi aquele
que deu origem aos habitantes da povoao de Vikeke. Os Ttum imaginam o interior da Terra como um grande tero, um
PXQGRVXEWHUUkQHRIRQWHGHYLGDGRQGHRVVHXVSURJHQLWRUHVHPHUJLUDP3RULVVRFRQVLGHUDPDH[LVWrQFLDGD0mH7HUUD
ou seja, uma entidade feminina associada s foras telricas. J entre os Atoni que habitam o sector ocidental da ilha
predominam os deuses masculinos, como o Senhor do Cu (uis neno), e o Senhor da Terra (uis pah). (Fernandes et Mauso,
2006: 89)
1 A cpula de Maromak com a deusa Rai Lolon (Terra) que originou o ser humano primognito, Rubi Rika, tem curiosa parecena com
o nascimento de Dionsio, tambm ele filho de uma relao ocasional e adltera de Zeus com a princesa Semele. Se Maromak voltou
aos cus antes que o seu filho nascesse, tambm Zeus foi obrigado a esconder e a criar na prpria coxa Dionsio sob pena da sua
esposa (Hera) descobrir a sua traio, o que viria a acontecer mais tarde.
65
Mas, no s o grupo ttum que se diz descendente da Terra, de um grande tero subterrneo, tambm entre
a etnia katiratu, oriunda do distrito de Lautem, mais precisamente na zona de Tutuala, encontramos mitos que
nos mostram essa ascendncia da Terra Me sobre os seus progenitores. Francisco Gomes na sua tese de
licenciatura Os Fataluku (1972) apresenta a Lenda Pairara que narra a origem da etnia com o mesmo nome, e
onde e como se processou o nascimento da Terra Me. Segundo a lenda, no princpio havia cu e mar, donde
HPHUJLDXPDSHTXHQDH[WHQVmRGHWHUUDRFHQWURGRXQLYHUVRGHQRPLQDGRGH0XD-ulu-PXDRXcabea da
terra. Aqui, moravam os primeiros habitantes Paunu, Navar-Lonu e Mau-Lonu, homens primeiros que no
tinham pernas nem braos. Os katiratu (povo autctone) acreditam que a me terra cria os filhos sua imagem
e semelhana e que aps a sua morte os engole. No princpio do mundo surgiu, tambm, Shilafai, o relmpago,
que com sucessivas descargas cortou e afastou as guas do mar para que a terra aparecesse em toda a sua
extenso. A terra assemelhava-se a um ser humano, falava, barafustava e at mexia uns braos rudimentares,
pelo que Shilafai ordenou que se fixasse a terra com mutaes de pedra. Os katiratu puderam, ento, espalhar-
se por toda a terra (ilha), denominada agora de Lau-Tchenu. Resolveram partir e ver os limites palpveis do
mundo e subir por eles acima at ao Cu. Subiram e tiveram muitos filhos, mas quando voltaram encontram a
terra submersa pelo mar. Imploraram novamente a Shilafai, que, com sucessivos golpes separou o mar em dois
(Livore e Lavore), agora chamados de Tahi-Tupuru, mar-mulher, e Tahi-Tchalu, mar-av. Shilafai fulminou,
simultaneamente, um grande mamfero aqutico de nome Rai-Rai-Lolo, animal em que a terra se tinha
transformado e, com essas descargas, cortou-lhe a cabea (ilhu de Jaco), amputou com essa descarga,
tambm, as orelhas aos jacars que por l andavam, seres que ficaram com o nome de Telu-Vali-Furu (seres
VHPRUHOKDV5DVJRXLJXDOPHQWHULEHLUDVHYDOHV6KLODIDLH[FODPRXHQWmR- $7HUUDHVWiIL[D0DVD7HUUD
teve ainda uma manifestao de vida e gerou um filho, chamado de Miki-Maka, hoje ainda venerado por vrios
cls. Shilafai cortou-lhe a cabea e arremessou-a contra a prpria me, ficando esta para sempre inerte. E foi-
lhe arrancado o rabo, a ilha de Ataro. E Shilafai concluiu:- A Terra est fixa! E nela entrou, ento, toda a
criao! (cf. Gomes, 1972: 10-12)
Mas voltando a essa proximidade entre a Terra e o Cu, h vrios relatos de diferentes grupos tnicos que
falam de uma trepadeira ou gondoeiro que ligava os dois astros e que permitia o rpido acesso ao mundo do
Alto. O poeta Joo Pedro Msseder, pseudnimo usado pelo professor da Escola Superior de Educao do
Porto, Jos Pedro Gomes, escreveu um poema com o ttulo Cu e Terra (Msseder, 2009: 99), certamente
inspirado nestes mitos, onde vemos a trepadeira (kalik, em lnguDWpWXPDID]HUHVVDXQLmR&RPRHVWDYDP
SHUWR QHVVH WHPSR &pX H 7HUUD 3DUD WRFDU R D]XO EDVWDYD HVFDODU D WUHSDGHLUD 1RV YHUVRV VHJXLQWHV
encontramos a explicao para a forma como se processou o desprendimento do Cu em relao Terra,
desprendimento mais uma vez resultante do pecado de uma mulher, a qual provoca a ira de seu marido, pois
tendo ido buscar lenha ao cu, por l se demora. Demora da mulher l no alto que deixa o homem beira de
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um ataque de nervos, ao ponto de cortar a trepadeiUD(QmRWrPFRQWD as vezes que a mulher, / em busca de
lenha, subiu pela calic. / Uma tarde porm o azul reteve / por mais tempo o seu olhar, e no descera / ainda,
quando o homem, de esperar, / se embraveceu e cortou a trepadeira. / De amarras soltas, logo o Cu se
despenhou / nas alturas, apartando-VHGD7HUUD
Como dissemos anteriormente, existem mltiplos relatos de diferentes origens, que narram a existncia de uma
rvore, que possibilitava o acesso ao mundo do alto, tal a proximidade em relao terra. O poeta conseguiu
VLQWHWL]DUEHPHVVHIDFWRQHVWHVYHUVRV0DVDUDL]GDcalic ainda mora / na montanha de Darolau. Para os /
do sul, h uma pedra, uma pedra / em Ria-Tu, repousando no lugar / da trepadeira. Tudo se passou / em
Quelicai os de Mateban reclamam - / onde a raiz se encontra vista. E os de leste: / era em Mua-Pitini, isso
VLPTXHDR&pXVHSRGLDVXELU2SRHWDUHPDWDFRPDFRQFOXVmRGHTXHQDTXHOHWHPSR&pXH7HUUDHVWDYDP
SUy[LPRVDRFRQWUiULRGRVGLDVGHKRMHCerto que, naquele / tempo, estavam perto Cu e Terra. / E j no
HVWmR (VFODUHoD-se que Darolau pertence ao distrito de Aileu, enquanto Quelicai fica situado na encosta da
montanha do Matebian, dentro do distrito de Baucau. J Mua-Pitini est na zona geogrfica do distrito de
Lautem. Falamos de zonas geogrficas bem distantes e fazendo parte de grupos tnicos distintos. Como
explicar ento este estranho fenmeno, o da existncia de uma trepadeira a ligar cu e terra? E por que motivo
reclamam diferentes povos a origem dessa rvore sagrada? Curiosas estas aproximaes de imaginrios
diversos, que procuram chamar a si o tempo primeiro, o nascimento da ordem universal actual. Ter havido
contaminao? Ou o facto justifica-se pela necessidade do homem ancestral procurar uma explicao, um
relato original que fundamente a sua existncia, o seu tempo e o seu espao?
Este estranho fenmeno HVWi WDPEpP EHP GRFXPHQWDGR QXP PLWR PDUDYLOKRVR LQWLWXODGR 2 3UtQFLSH 0DX
/HORFI'LDV-28), que relata de forma sui generis como o universo actual se formou. Tambm aqui
vemos a existncia de uma trepadeira a ligar o Cu e a Terra, pertencendo o governo desses mundos ao
3UtQFLSH 0DX /HOR 6RO (P WHPSRV UHPRWRV FRQWD-se que o Cu e a Terra estavam ligados por uma
trepadeira, chamada Kaleik Talin. S o Prncipe Mau Lelo sabia da sua existncia e podia subir e descer para
YLVLWDURVVHXVSRYRVWDQWRQD7HUUDFRPRQR&pX
O Prncipe Mau Lelo reinava no Cu, onde desposara a Princesa Dau Hula (Lua) e na Terra, vivendo
maritalmente com Dau Rai, Princesa da Terra. Apesar de muito respeitado nos dois reinos, o Prncipe no
FRQWDYDFRPDVLPSDWLDGRVGRLVSRYRVGDGRTXHFREUDYDPXLWRVLPSRVWRVVREDIRUPDGHRXURHJpQHURV2
Prncipe Mau Lelo era muito respeitado e governava os seus povos com justia, embora sem grande
DIDELOLGDGH
67
Para visitar as duas princesas, o prncipe utilizava a trepadeira, por ele apenas conhecida, subindo e descendo
consoante o caso. Os povos e as princesas dos dois reinos no se conheciam e desconheciam, como
dissemos, a existncia da trepadeira. Ora, certo dia, o prncipe foi visto por pastores, durante a noite, a subir a
WUHSDGHLUDRVTXDLVDFKDQGRWXGRPXLWRHVWUDQKRIRUDPFRQWDUjVXDSULQFHVD)RLHQWmRTXHYLUDPR3UtQFLSH
subir a trepadeira como se esta tivesse degraus e fosse uma escada que se ia sumir no cu azulado. Como
DFKDUDPDTXLORPXLWRHVWUDQKRIRUDPFRQWDUj3ULQFHVD'DX5DLRTXHWLQKDPYLVWR$3ULQFHVDPDQGRXORJR
trs valentes homens investigar o que fazia o Prncipe Mau Lelo, indagando o que fazia ele l no alto. Os
corajosos homens subiram a trepadeira e puderam assistir a uma festa, no reino do Cu, ouviram msica e
viram que o Prncipe Mau Lelo danava com uma bela princesa. Rapidamente desceram e foram contar a
novidade sua princesa. Esta convocou o seu conselho de ancios, que foi unnime na tomada de deciso, a
qual passava pelo corte da trepadeira e pelo fim da relao com o Prncipe Mau Lelo, pondo fim s suas
maldades, a traio Princesa Dau Rai e os exagerados impostos tributados aos habitantes terrenos. O corte
GDWUHSDGHLUDOHYRXDRDIDVWDPHQWRGR&pXHPUHODomRj7HUUD7RGRVDFKDUDPTXHDWUHSDGHLUDGHYHULDVHU
cortada. Assim o Prncipe no poderia voltar Terra e o povo poderia ficar livre dos impostos pesados que
pagava. A Princesa mandou ento cortar a trepadeira [...] Quando os homens cortaram a trepadeira, sentiu-se
um forte estico seguido de uma descida vertiginosa. Foi o momento em que o Cu se separou da Terra! A
partir de ento o reino de Dau Hula (Lua) ficou para sempre separado do reino Dau Rai (Terra) e o Prncipe
Mau Lelo (Sol) divorciou-VHGDVGXDVSULQFHVDV
Belssimo e fabuloso este mito, fantasiando e atribuindo ao pecado, bigamia de Mau Lelo, o afastamento das
suas princesas, pois a sua traio provoca o cime da Princesa Dau Rai (Terra) e o consequente clmax
consumado no corte da trepadeira que d lugar a uma nova ordem, a um Cosmos distinto. A harmonia
aparente, suportada pelo segredo do Prncipe, quebrada com a sua revelao. O cime, to presente nas
tragdias clssicas e nos romances de corte, est tambm aqui na origem do terrvel cataclismo, na sentena
da Princesa e na sua consequente emancipao.
Correia de Campos apresenta uma outra verso do mito da trepadeira, em que neste caso um filho que
LUULWDGR SHOD PmH VH WHU GHPRUDGR QR FpX RQGH WLQKD LGR EXVFDU R IRJR FRUWD D WUHSDGHLUD &HUWD YHOKD
costumava todos os dias ir ao cu buscar o fogo. Um seu filho, de mau gnio, irritado por se ter demorado mais
do que era hbito, cortou a trepadeira por onde a sua me subira. Isto deu em resultado que o cu, at ali
seguro pela trepadeira e mantido desta forma num nvel mais baixo, se soltou e foi ocupar o lugar que hoje tem,
VXELQGRQRHVSDoR&DPSRV
68
Do imaginrio dos tachailoru (regio actual de Lautem) nasceu a Lenda Tchailoru (cf. Gomes, 1972: 25-32),
onde tambm h referncia a uma trepadeira ou corda a ligar a terra ao cu. Segundo este relato, Tchailoru-
Ratu, conhecido tambm por Noipi-Tchai, o duplo de Noipi o planeta Vnus. Este ao chegar a Timor
provoca o afastamento do mar e fez surgir a terra de suas entranhas. Tchailoru-Ratu subiu ao cu com todos os
seus bfalos e outros animais domsticos, por uma corda, trepadeira, chamada Mumina-Nailu. No entanto, os
sbditos de Tchailoru-Ratu cortaram-lhe, sua revelia, a corda sagrada. Ele regressa terra, amaldioa-os a
todos e divide-os em vrios cls, voltando, novamente, ao cu. Mais tarde, Tchailoru-Ratu volta terra em
forma de estrela para fecundar uma filha de Latuloo-Ratu, de nome Loi-Assa. Vendo a sua filha grvida, apesar
de fortemente vigiada, Latuloo-Ratu castiga-a e coloca-a numa gruta. Tchailoru-Ratu dirigiu-se gruta e
apontou o dedo indicador l para dentro e, na extremidade deste surgiu uma estrela. Loi-Assa veio cair-lhe nos
braos. Depois dirigiu-se a Latuloo-Ratu e admoestou-o, dizendo-lhe que Loi-Assa iria dar luz um filho seu.
Loi-Assa deu luz Rissa-Soru, que trazia na testa o Sol, a Lua no peito e estrelas nas costas.
69
70
CAPTULO VII
O SOL, A LUA E AS ESTRELAS DEUSES E PROGENITORES DOS TIMORENSES
Rissa-Soru, filho dos astros, tal como seu irmo Pere-Soru, que se lhe veio juntar depois de Latuloo-Rotu ter
assassinado Rissa-Soru, acto trgico que no s provocou a ressurreio deste como o nascimento de seu
irmo, que trazia tambm os astros a decorar-lhe o corpo. Curiosamente, como veremos mais em baixo, na ilha
de Ataro, muitos sacerdotes de religio tradicional ornamentam o corpo com tatuagens de astros.
Apolo entre a civilizao da Grcia Antiga o deus da luz, sendo por isso objecto de cultos vrios, at entre os
artistas que lhe pedem inspirao. Em lngua ttum, dia diz-se loron, enquanto sol referido por loro, forma de
aproximao lingustica e semntica, associao entre o astro e a luz do dia. Maromak ou Marmac, Deus,
como vimos o Ser mais luminoso e, pode, por isso, ser associado ao Sol. Entre a etnia macassae Deus diz-se
Uruuato (Uru Lua e Uato Sol), enquanto os fataluku se lhe referem pelo vocbulo Uruvtchu que tem o
mesmo sentido do primeiro. Os povos das regies vizinhas, que falam as lnguas uaim, nauti e midic do a
Deus o nome de Laraula (Lara Sol e Ula Lua). O padre Ezequiel Pascoal refere que a estes astros que
os timorenses suplicam boas sementeiras, fazendo para tal rituais e dizendo frmulas mgicas ao p de fontes,
pedindo chuva em abundncia (cf. Pascoal, 1967: 352). No surpreende pois que entre os timorenses estes
astros tenham o estatuto de deuses, de onde at, segundo mitos e lendas, saram os primeiros habitantes de
muitas das etnias, por exemplo a manbae.
Em Timor, os Astros foram ao longo dos tempos foco de ateno e questionamento, razo de culto e rituais,
havendo no imaginrio fantasioso timorense mltiplas explicaes para a sua origem e poder. O exemplo mais
paradigmtico o da pequena ilha de Ataro, situada a apenas uma hora de barco de Dli. Habitada por uma
comunidade piscatria e, tambm por isso, dedicada ao culto dos Astros, sendo estes os condutores dos seus
corajosos pescadores nas suas lides nocturnas, realizadas em pequenas embarcaes tradicionais e
rudimentares chamadas de beiros. Entre os ataros, o Sol, a Lua e as Estrelas so objecto de temor, adorao
HFXOWRRDWD~URMXUDWDPEpPSHOR6ROHSHOD/XDFXMDVYLQJDQoDVWHPHVHKiTXHEUDGHMXUDPHQWR'XDUWH
1984: 182)
A mitologia timorense espelha esse temor, essa reverncia, mas tambm uma adorao consubstanciada em
rituais e oraes dedicadas a esses fabulosos e enigmticos astros que preciso conhecer e adorar, sob pena
de castigos e tragdias de que o homem ser vtima, dada a sua pequenez quando comparado com aqueles
gigantes enigmticos e poderosos. Conhecimento e proximidade que so mais visveis entre as comunidades
71
piscatrias da ilha de Ataro e das montanhas do Ramelau. Por acaso, j fomos afortunados com a visibilidade
estonteante dos cus nocturnos das duas, e podemos afirmar que no nos espanta de forma alguma o fascnio
e influncia que o espao csmico - povoado de estrelas que mais parecem luzes de uma rvore de Natal de
dimenses infinitas - exerce sobre essas comunidades:
As conexes dos mitos timorenses com o mundo celeste e extraterrestre reflectem-se no conhecimento que eles demonstram
sobre os corpos astronmicos. Os Ataros acreditam numa influncia sobrenatural exercida pelos astros sobre as suas vidas,
especialmente por parte do Sol (Lea), de Hula (Lua) e de Vnus (Ku-Mak). em nome do Sol e da Lua que os ataros
fazem muitos dos seus juramentos. Em contrapartida, Ku-Mak, o planeta Vnus invocado por ocasio de pragas e
maldies, j que surge associado a eventos mal afortunados. (Fernandes et Mauso, 2006: 91-92)
[...] os homens que se salvaram do dilvio que esteve prestes a tragar ou pelo menos a submergir inteiramente o Tata-Mai-
Lau estabeleceram, numa das suas encostas, aquilo a que poderamos chamar um observatrio astronmico. De l seguiam
o andamento do Sol, da Lua e das estrelas. O local ficou a chamar-se Bl-Htu-Bl-Llo, lugar sagrado [...] (Pascoal, 1967:
353)
Foi para Bl-Htu-Bl-Llo (em lngua manbae, Bl observar Htu estrela Llo sol) que transportaram o
cadver do heri Le-Mau, que combateu, bravamente, ao servio da Terra contra as guas invasoras do mar,
saindo vitorioso, como vimos no mito Lhu-M. J no mito Loro-Laca e Tai-Laca, o grande general Le-Mau
morre vtima de um inoportuno enxame de abelhas, que provoca a sua queda numa ravina e consequente
morte. Heri que nestas epopeias fundacionais se assemelha a Aquiles1 tal a sua valentia e triste fortuna. Foi
tambm neste local que se construiu a primeira casa depois do terrvel cataclismo:
Foi para Bl-Htu-Bl-Lelo que levaram Le-Mau o mais importante chefe desse tempo depois da sua morte [...] Foi em
Bl-Htu-Bl-Lelo que se levantou a primeira casa depois do cataclismo. O prprio Abo-S um dos principais sobreviventes
de quem partiu a iniciativa levou para o local o prumo do canto virado para o Oriente.
So oito os prumos das casas llics. Ri mane (prumos homens - os mais altos), quatro. Ri hine (prumos mulheres - os
mais baixos), quatro. (Pascoal, 1967: 85-86)
1 Aquiles tinha no seu escudo representados a Terra, a Lua, o Sol, o Mar e as Constelaes Oron e Pliades, smbolos da sua nobre
origem e do seu poder e fora.
72
O padre Jorge Barros Duarte em Timor Ritos e Mitos Ataros (1984) refere que os habitantes de Ataro tm
entre os motivos mais frequentes na tatuagem do seu corpo desenhos da Lua em quarto crescente, na base do
lado esquerdo do peito, acrescentando, sob a Lua, duas estrelas, uma grande chamada Ku-mak-nia
(equivalente ao planeta Vnus) e outra mais pequena. Destaca ainda que um dos principais sacerdotes
animistas (mata-blolo), Koba-Kila, da povoao de Massi-Lhu, ostentava um grande conjunto de tatuagens,
onde sobressaiam uma serpente, um crescente e uma estrela, um peixe e uma rvore, elementos naturais
msticos de extrema simbologia para o nativo ataro.
Esta grande relevncia do mundo csmico entre o ataro tambm muito comum nas comunidades polinsias,
donde saram desde tempos remotos grandes navegadores.
O prprio nome pelo qual era conhecido Timor-Leste era o de Timor Loro Sae, ou seja Timor do Sol Nascente,
verificando-VHORJRDTXLXPDUHODomRGHLQWLPLGDGHFRPRUHLGRVDVWURVDTXHOHTXHSHUPLWHDYLGDQDWHUUDQD
ilha de Timor, alguns chefes intitulam-se, de resto, os Filhos do Sol e pretendem descender directamente do
GHXVVRODU(OLDGH$OLiVHP7LPRUD]RQDOHVWHpUHIHUHQFLDGDFRPR loro sae (do sol nascente)
enquanto a zona oeste chamada de loro monu (do sol poente).
Num livro de Pedro Rosa Mendes, Madre Cacau, que tem por base o quotidiano e o imaginrio timorenses, o
autor relata uma cerimnia de inaugurao de uma casa sagrada (uma llik), na zona de Letefoho (Ermera),
onde ouviu da boca de um lia nain DV VHJXLQWHV SDODYUDV 1yV VRPRV RV ILOKRV GR VRO H GD OXD 0HQGHV
2004: 39) Inaugurao da casa que um novo comeo, um acontecimento primordial que o lia nain quer
aproximar ao nascimento primeiro do cosmos, num transpor para o tempo dos avs que vieram do Sol e da
Lua, num dotar de sacralidade desse mundo novo que a casa, morada dos descendentes dos astros reis.
Casa situada numa regio montanhosa (com vista para o Tata-Mai-Lau, o av primeiro), espao tambm por
isso privilegiado porque mais prximo do mundo do alto. A comunidade Bunaq, originria da regio de
Bobonaro, tambm se diz filha do Sol e da Lua:
O primeiro jardim que surge no mito recitado em pblico chamado de kintal Laq Lawar. A sua localizao no corresponde a
nenhum local referencivel, mas parece situar-se at ento no mundo do Alto, onde se encontram ainda antepassados dos
Bunaq, frequentemente designados atravs da expresso os filhos da sua me sol e do seu pai lua. (Friedberg, 2011: 53)
Entre esta comunidade (Bunak) h um mito, intitulado O Cu e a Terra (cf. Gomes, 2008: 85), onde tambm
expressa essa filiao deste povo em relao ao astro-rei. Segundo o relato, em tempos idos, os primeiros seis
habitantes habitavam juntos numa montanha chamada Bekalai Annola. Ora como viviam miseravelmente, no
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tendo luz e gua para sobreviver, subiram ao cu para pedir ajuda a Hot Gol (Filho do Sol), o qual lhe deu trs
feixes de lanas para lutarem contra o mar. Curioso que tambm no mito Bagnut, que analisamos no captulo
relativo simbologia da gua, observamos que do Sol que saem estas armas de guerra, estes martelos
(Bagnut) e estas espadas ou lanas (que tm tambm grande valor afectivo e simblico entre os timorenses)
to decisivas depois nos combates que se travam contra os cataclismos da natureza, as foras caticaV+RW
Gol ofereceu-lhe mais sete feixes de lanas. Levou-os para combater, o dono do mar, e finalmente o mar
FRPHoRXDDFDOPDUHOHVJDQKDUDPDEDWDOKD*RPHV&RPRFRQWLQXDYDPDYLYHUQDPLVpULDIRUDP
novamente pedir a Hot Gol para lhes oferecer a luz do dia e passaram a ter noite e dia. Como s tinham uma
fonte de gua e como o cu e a terra estavam demasiado perto, Sesu Mau e Dudu Mau empurraram o cu e,
assim, o cu separou-se da terra.
Hot Gol que com o seu calor leva origem do fogo, que depois permite a feitura de armas de ferro, com as
quais os primeiros homens derrotaram o Caos e as Trevas. Hot Gol, me dos primeiros homens e do Cosmos
actual, geradora de luz, fonte de vida e de fertilidade.
Ainda na dissertao de mestrado de Gomes (2008), o autor faz tambm referncia a esta descendncia
fantasiosa, neste caso em relao aos habitantes da zona de Fohorem, oeste da ilha de Timor, mas falantes de
ttum terik:
Por exemplo, a lenda Manumatadador a histria do surgimento do cl ou suco, Uma Metan Fohorem que reside h muito
tempo na zona de Fohorem. Os habitantes deste suco acreditam que so descendentes do Loro Oan (Filho do Sol). A
comunidade acredita que Loro Oan o embrio do Rei (liurai) [...] Esta lenda considerada como uma forma de contos muito
sria, porque tem a ver com a realidade histrica cujo apresentador recebe o poder mgico de um antepassado. (Gomes,
2008: 70-71)
Interessante o facto de, tambm na Europa Absolutista, dos sculos XVII e XVIII, os reis se considerarem
descendentes de Deus e serem conhecidos por Rei-Sol2, como foi o caso de Lus XIV em Frana. Tambm os
faras do Egipto se diziam descendentes do Sol.
Em Timor-Leste, os seus chefes, conhecidos por rgulos ou liurais, ostentaram desde sempre uma corrente ao
pescoo, de onde pende um blak, medalho GRXUDGRRXGHSUDWDHPIRUPDGHOXDFKHLDpIUHTXHQWHPHQWH
oferecido pela noiva ao noivo, visto a forma circular do medalho lembrar a lua cheia que embeleza as noites e
2 Veja- VHDHVWHSURSyVLWRXPDSLQWXUD/RXLV;,9HQKDELWVRODLUH%DOOHWUR\DOGHODQXLWIpYULHU%LEOLRWKqTXH1DWLRQDOe,
Paris (cf. Dubois, 2009: 375).
74
VLPEROL]DU D EHOH]D IHPLQLQD &RVWD, 2000: 53) Segundo o mito do crocodilo, o jovem transportado por este
seria o primeiro habitante de Timor. Desde o primeiro dia passou a ostentar esse blak, presente possivelmente
oferecido pelo Deus Sol, dada a sua coragem e valentia por ter viajado no velho crocodilo em direco ao Sol
Nascente, ao Oriente, terra abenoada pela luz e, por isso, morada dos deuses. Tambm entre os hebreus, os
VHXVVDFHUGRWHVXVDYDPXPGLVFRGHRXURDRSHLWRpSUHFLVRDFUHVFHQWDUDLQGDTXHR6XPR6DFHUGRWHGRV
Hebreus usDYDVREUHRSHLWRXPGLVFRGHRXURVtPERORGRVROGLYLQR&KHYDOLHUHW*KHHUEUDQW
Durand sintetiza e caracteriza bem esse simbolismo solar, sinnimo de imperialismo e de realeza, de justia e
de fecundidade, presente em vrias culturas e civilizaes de diferentes tempos histricos:
a ascenso luminosa que valoriza positivamente o sol [...] no Oriente que se situa o Paraso terrestre e l que o salmista
coloca a Ascenso de Cristo e S. Mateus o regresso de Cristo [...] o Oriente designa a aurora e possui o sentido de origem,
de acordar, na ordem mstica Oriente significa iluminao [...] Assim aparecem ligados num impressionante isomorfismo o
Sol, o leste e o znite, as cores da aurora, o pssaro e o heri guerreiro que se levantou contra as potncias nocturnas [...] ao
simbolismo solar liga-se, por fim, o da coroa solar, da coroa de raios, atributo de Mitra-Hlios, que aparece nas moedas
romanas desde que Csar adopta o ttulo comes solis invicti, e culmina na iconografia do nosso Rei-Sol. (Durand, 2002: 150-
151)
H na mitologia timorense, mais precisamente na regio de Fohorem, um relato denominado Fini (Semente)
em que possvel ver o Sol, a Terra e a rvore Sagrada associados fertilidade e s guas das chuvas,
normalmente, mais conotadas com a simbologia lunar.
Segundo o mito, os habitantes de Fohorem pediam comida ao seu av Loro Oan (Filho do Sol) porque no
tinham sementes para semear, o que originava carncia de alimentos. Dois dos seus habitantes, Suri e Mauk
resolveram apostar a ver quem era o primeiro a pedir semente a Loro Oan. Suri foi o primeiro a pedir, tendo
subido sete vezes ao cu, mas Loro Oan deu-lhe apenas arroz cozido, que ele no podia, obviamente, semear.
Mauk tentou tambm ser bem sucedido, mas aconteceu-lhe o mesmo que a Suri. Mauk tentou vrias vezes
roubar as sementes (de milho, arroz, feijo e paino), at que conseguiu, escondendo-as depois na cova do
brao. Conseguidas as sementes, faltavam agora as guas das chuvas. Suri voltou a subir ao Cu, pediu a
LRUR2DQ PDV HVWH QmROKH VDWLVIH] D YRQWDGH$Wp TXH 0DXN VXELX DR FpX HQRUHJUHVVR FRQWRX D 6XUL +i
algum inteligente / h algum com olhar crtico, / inteligente para ceifar a rvore / inteligente para cortar a
rvore, / ceifar a rvore cheio de lgrimas / cortar a rvore cheio de lgrimas / as lgrimas da rvore molharam
D WHUUD DV OiJULPDV GD iUYRUH KXPHGHFHUDP R FKmR (VWH ULWXDO QmR GHX UHVXOWDGR SHOR TXH 0DXN UHFLWRX
QRYDVHSRGHURVDVSDODYUDVGLULJLGDVDRVHX'HXV/RUR2DQ3DOPHLUDGHORngo cuidado / Palmeira de longa
cautela. / Cortar o cordo e cortar a escada / sofremos em conjunto. Depois disto, Mauk apanhou sete pedras
75
fininhas, colocou uma a uma e disse: s We Sei / s We Hali / s dono do We Sei / s o senhor de We Hali, /
s o dono do mar / s o senhor do oceano, / s o dono da gua / s o senhor de todos os lquidos / s o dono
dos nevoeiros / s o senhor das nuvens / (venham!) por este e oeste / norte e sul / (passar) pelo topo da ribeira
/ no fundo do mar / Pelo mar mulher / pelo mar homem / nevoeiro do sul / nevoeiro do norte, /Agarrar uns aos
outros / Pegar com os outros. / Estas so as verdadeiras lgrimas / este o choro verdadeiro. Depois de ter
falado assim, deu um pontap no cho e disse: s a mulher com sede / s o homem com muita sede. Faz cair
as tuas lgrimas na terra. Depois disto, caiu muita chuva, as sementes germinaram e os Homens nunca mais
IRUDPWHUFRPR/RUR2DQSDUDSHGLUDFRPLGD*RPHV-94)
Mito representativo da imagtica timorense, pois congrega elementos simblicos como o sol, a gua, a terra e a
iUYRUH VDJUDGD :HVHL H:H +DOL p R SDOiFLR GR LPSpULR:HKDOL /LWHUDOPHQWH ZH p iJXD H KDOL JRQGRHLUR
3RUWDQWRZHKDOLpDIRQWHGHiJXDTXHVHHQFRQWUDGHEDL[RGRJRQGRHLUR*RPHV 2008: 92-94) We Hali foi
um dos primeiros e mais poderosos reinos de Timor, que conseguiu subjugar pelo seu poderio muitos dos seus
povos. H portanto aqui uma alegoria que transpe para este reino a fora e o privilgio de conseguir obter a
gua atravs do gondoeiro, rvore sagrada, que num processo mstico e com a conivncia do Deus Loro Oan
(Sol) e da sua Me Terra fazem cair as guas das chuvas, to importantes para o desenvolvimento das
sementeiras e consequente fonte de vida e subsistncia humanas. Mito que comporta tambm hamulak,
oraes narrativas, ainda hoje usadas em rituais animistas para pedir o favor dos Deuses na ddiva da chuva.
Embora o nosso objecto de estudo no sejam os rituais, no podemos deixar de fazer referncia a alguns
deles, intimamente conectados com a astrologia. Francisco Gomes (1972) destaca alguns ligados aos eclipses
do sol e da lua e a tremores de terra. Entre os fataluku, o eclipse do sol sinnimo de algo trgico, j que
associa o sol vida. Quando tal acontece, o fataluku julga tratar-se de uma artimanha da lua que o persuade
de que j no existe gente na terra. Ento, o sol resolve apagar-se para no gastar os seus raios. neste
momento que a lua se aproveita para descer sobre as copas das rvores e devorar as almas de algumas
pessoas, voltando depois para o alto. Os fataluku estabelecem assim profunda relao entre a morte, a lua e
este estranho fenmeno do eclipse solar. Enquanto dura o eclipse, batem ruidosamente em tambores para que
o sol os oia e no se esquea da sua existrQFLD*ULWDPWDPEpPGHVHVSHUDGRV- Estamos vivos! Estamos
YLYRV&RQWLQXDPFRPRVFkQWLFRVDWpTXHVXUMDRVRO
J o eclipse da lua conotado com a ira do sol, zangado com os seus actos de crueldade nocturna. Outros h
que explicam o eclipse da lua com a sua queda num charco profundo de nome Pilimou. Existe uma lenda
recolhida pelo padre Ezequiel Pascoal (1967: 359) que narra ao pormenor como se processou esta queda e
como pode a lua depois ocupar, novamente, o seu lugar. Segundo o relato Hul-Mou-Rema (plancie-rema-lua-
76
hul-caiu-mouFHUWRGLDD/XDFDLXHP+XO-Mou-Rema e transformou-se num colossal bfalo branco. Todos os
animais tiveram medo e trataram de rep-OD QR VHX OXJDU 6y DV DYHV VH SRGHULDP LQFXPELU GHVVD PLVVmR
Depois de vrias tentativas infrutferas protagonizadas por milhafres, corvos e outras aves, os pardais (mnu-
liin) juntaram-se aos milhares e conseguiram recolocar a Lua no seu lugar. Como prmio pelo seu trabalho
KHUF~OHR H[LJLUDP XPD UHFRPSHQVD GRV RXWURV DQLPDLV 6H FRPHP desde ento, nas vrzeas, quanto nele
DUUR]FRPFDVFDOKHVDSHWHFHQDGDPDLVID]HPGRTXHXVDUGHXPGLUHLWRFRQTXLVWDGRKRQHVWDPHQWH
Pascoal (1967: 360) refere, ainda, que so vrias as terras que chamam para si esta estranha queda da Lua.
Por exemplo, em Maubara, h um lugar chamado Ula-Manho (a Lua-ula-caiu-manho). Na regio de Maliana
existe um local apelidado de Rema Boot que suportou a queda da Lua. J as gentes de Ainaro tm um
SURYpUELR TXH UH]D DVVLP %yFR OLy VLR KXODL boco li-passarinhos-sio-levam-hulai-D /XD 3URYpUELR TXH VH
SRGHWUDGX]LUSRURFKHIHUpJXORVR]LQKRVHPDDMXGDGHWRGRVRXGHPXLWRVQDGDSRGHID]HU
Quanto aos tremores de terra, ainda hoje presenciamos - quando eles se verificam, e so muitas as vezes, j
que Timor est situado numa zona altamente ssmica (entre duas placas) o ritual dos timorenses baterem
FRPSDXVRXSHGUDVHPREMHFWRVRXSRVWHVGHIHUURGHIRUPDDDFRUGDURVGHXVHVGL]HQGRHVWDPRVYLYRV
alis um pouco semelhana do que acontece com o ritual fataluku quando h eclipses do sol.
Vimos em cima que o imaginrio galolen atribui a origem das estrelas ao tombar da Uran Uaki, ou Grande
Panela, que provocou o espalhamento dos gros de arroz no espao. As Estrelas tm tambm valor simblico
significativo nos imaginrios dos diferentes cls. Vnus apelidada de Noipi, entre os fataluku, tendo estado,
como vimos em cima, na origem do cl Tchailoru:
Os tchailoru afirmam que o primeiro ser a surgir em Timor foi Tchailoru-Ratu, o qual teria vindo de alm-mar por uma estrada
milagrosamente aberta entre as alterosas vagas do mar. Trazia uma coruscante estrela na testa, patenteando a sua ndole
divina.
Tchailoru-Ratu, tambm denominado Noipi-Tchai, o duplo de Noipi (No, antigo, sagrado, tipi, estrela), o planeta Vnus. Ao
chegar ao local onde actualmente est Timor, o mar afastou-se, submisso, a um gesto seu. E a terra surgiu de suas
entranhas. (Gomes, 1972: 25-26)
Vnus ocupa lugar destacado no s entre os cls da regio de Lautem, j que tambm na ilha de Ataro, ou
na regio central de Timor, dominada pela cordilheira do Ramelau, encontramos mitos e ritos intimamente
ligados a esta Estrela. ela que surge nas tatuagens de muitos sacerdotes animistas de Ataro ou no corpo de
SUtQFLSHV GH/DXWHP /oi-Assa deu luz Rissa-Soru, que trazia o Sol na testa, a lua no peito e estrelas nas
FRVWDV*RPHV
77
Se nos detivermos num dicionrio de smbolos e procurarmos a as diferentes representaes de Vnus,
conclumos do seu carcter trgico ligado morte e s tempestades, mas tambm motivo de renascimento, j
TXHDFRPSDQKDRPRYLPHQWRGR6ROHSRGHVHUYLVWDSHODPDQKmHDRILPGDWDUGH$DVVRFLDomRGH9pQXV
com o Sol, pelo facto de serem semelhantes as suas trajectrias diurnas, faz por vezes deste astro divinizado
XP PHQVDJHLURGR6ROXPLQWHUFHVVRUHQWUHHVWH~OWLPRHRVKRPHQV&KHYDOLHUHW*KHHUEUDQW
Talvez advenha da o seu culto e a sua natureza divina entre os timorenses.
Na mitologia egpcia h um mito belssimo que conta a histria de Osris, o Sol, que no seu Poente lutou contra
Set, deus das Trevas, tendo este vencido o combate, partindo o grande astro em bocados, originando assim as
estrelas colocadas na abbada celeste situada nos confins do Nilo. sis no se conforma com o destino do seu
amado Osris e rene os bocados espalhados, formando com o seu gesto um novo Sol que surge a nascente
(Hrus), sendo o dia o reflexo, a repetio desse gesto de manh aparece Hrus, ao meio-dia surge na sua
magnitude, enquanto ao entardecer Osris enfraquece e luta com Set. Segundo Gomes (1972) o mito de Rissa-
Soru e seu irmo Pere-Soru a que j aludimos em cima - assemelha-se ao conto egpcio. Pere-Soru morre,
mergulhando na Terra, acontecimento que pode ser confundido com o desaparecimento de Vnus (Noipi) ao
anoitecer. Destaque-se o facto de Rissa-Soru ter sido enterrado em Nofitu (no-sagrado; fitu-sete, em fataluku,
pois em ttum fitu significa estrela) no momento em que Vnus surge no horizonte. Alis, os Tachailoru
enterram os seus mortos de madrugada. Para este povo Vnus poente Mau-Raka e Noipi quando surge pela
manh, o que corresponde a Hrus nascente e a Osris Poente. Entre o povo aborgene australiano (Austrlia
setentrional) Yolngu, h um ritual que consiste numa reunio de pessoas depois do pr do Sol para esperar
pelo aparecimento de Vnus, que eles denominam de Barnumbirr. Quando este se aproxima, nas primeiras
horas antes de o amanhecer, traa atrs de si uma corda de luz ligada Terra, e os Yolngu acreditam que
podem comunicar com os seus antepassados atravs dessa corda.
Osris desfeito por Set, e depois reanimado por sis, corresponde a Pere-Soru decapitado, a quem uma guia
descendo do cu, reuniu a cabea ao tronco, fazendo renascer, deste modo, este divino ser que trazia no seu
corpo o sol, a lua e as estrelas, elementos presentes na lenda egpcia. Os Tchailoru tm um hino de vitria que
representa metaforicamente essa desforra de sis contra Set, representante das trevas, que este e outros povos
timorenses WDPEpPFRQRWDPFRP PDXVHIXQHVWRVHVStULWRV&RPRIROKDGHDFDGLUR/iHVWiHOHDEULOKDU
Como folha de acadiro! Ei-ORDEULOKDUFI*RPHV
Haver aqui uma ligao entre o numeral sete (fitu, em fataluku) e a constelao rion, as Pliades, a Ursa
Maior ou outra que comporte sete estrelas? Estrelas que representam os sete primeiros avs dos povos
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fataluku (No-antigo-fitu-sete), correspondncia directa entre os seus ascendentes e as estrelas, forma
mitolgica de divinizar a sua gnese. Como vimos estrela em ttum diz-se fitu, enquanto hitu designa o nmero
sete, fazendo com que o Sete-Estrelo, nome popular para Pliades, seja apelidado de Liurai-Hitu, os sete
chefes ou rgulos. H aqui muitas similitudes e contaminaes curiosas entre diferentes imaginrios e
correspondentes lnguas, numa estreita unio entre signo e smbolo, uma ntima conexo entre o numeral sete
e as constelaes com esse nmero de estrelas, carregando-os de sacralidade e de poder majestoso, fuso
entre terreno e sobre-humano.
Correia de Campos (1973) recolheu o mito A espada ou catana de guerra que cortou a cabea s estrelas, em
que vemos foras divinas, as estrelas, a guerrearem homens que afrontam Deus:
Deus, por seu lado, deu ordem s estrelas, que eram reis, para combaterem os homens com todas as foras de que
dispusessem. Essas foras eram todos os animais da criao [...] Destrudos desta maneira os animais inimigos dos homens,
os quatro heris, Berloi, Carloique, Beicolicteri e Beibercoli, comandando as suas inmeras hostes, subitamente apareceram
no cu e cortaram a cabea s estrelas. Desde ento, quando a noite surge, o sangue borbota daqueles corpos decapitados
a reluzirem no firmamento. (Campos, 1973: 89-91)
Deus no se vingara daquele corte de cabeas, antes, voltando-se para os heris, serenamente, disse-lhes: -
Vs, que fostes mais fortes que as estrelas, levai para a Terra essas colunas e pedras redondas (figuras 1 e
2DXWRUDSUHVHQWDLPDJHQVGHVDFHUGRWHVQDWLYRVUHVSRQViYHLVSHODJXDUGDHFonservao dessas pedras
sagradas e tambm da espada que cortou a cabea s estrelas. Correia de Campos exibe ainda uma imagem
(fig. 3, p. 95) da suposta trepadeira que ligava o cu terra, e da qual a velha se servia para ir buscar o fogo ao
cu.
Mais uma vez a ousadia e coragem humanas levam ao confronto com Deus. Homens que cortam a cabea s
estrelas e com isso conseguem a luminosidade nocturna. Tal como Prometeu ousou roubar o fogo aos Deuses,
dando-o, em seguida, aos homens, tambm aqui os quatro heris Berloi, Carloique, Beicolicteri e Beibercoli
conseguem decapitar os soldados de Deus e, assim, derrotar as Trevas e iluminar noite aps noite a Terra. Luz
que no ddiva divina, antes esforo, sacrifcio e coragem de homens de carne e osso que lutaram
incessantemente para conseguir o Cosmos actual, agora preservado por ancios timorenses, que na nsia de
perpetuar os feitos de seus avs guardam as provas (espadas, pedras e trepadeira) desses combates
ancestrais.
Ezequiel Pascoal, na sua fantstica colectnea de lendas e mitos, verdadeira enciclopdia do imaginrio
ancestral timorense, apresenta um conjunto de contos que explica a origem de muitas das estrelas. Contos de
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um lirismo encantador, colocando as estrelas como sendo de origem humana, resultantes da metamorfose de
crianas, de que exemplo o relato +XQUin(UDPVHWHLUPmRV>@ Se forem, tambm eu vou. No quero
ficar sozinha. Os irmos responderam-lhe: - No venhas. Estaremos, brevemente, de regresso mas se
voltarmos e tiveres, um dia, um filho, manda que olhe para o cu. Se vir l sete estrelas juntas, somos ns.
Como os sete irmos nunca mais voltassem, Bui-Mac disse, um dia, ao nico filho que, entretanto, tivera,
que olhasse para o cu. Ele olhou e apontou, precisamente, para o Sete Estrelo, as Pliades, os Sete Liurais.
So os teus tios disse-OKHDPmH3DVFRDO7: 363)
Se no caso de alguns cls de Lautem h uma assumida descendncia astrolgica, aqui vemos as estrelas a ter
origem numa briga de crianas que depois viajam para o mundo celeste. Crianas estrelas que num processo
inverso sero depois os avs dos povos de Timor. Lirismo pueril e fascinante este, que explica o aparecimento
de corpos celestes, como fazendo parte de um fenmeno do quotidiano LQIDQWLO(UDPVHWHLUPmRV1Di-Buro, o
mais novo, trabalhava de sol a sol. Os outros nada faziDPHDWpRPDOWUDWDYDP>@1Di-Buro resolveu ir s para
uma terra distante, tentar fortuna. Por muito mal que l se desse, sempre estaria melhor do que entre os
irmos. Ao terem conhecimento deste seu intento, os irmos quiseram acompanh-lo, viva fora, talvez por
FRPSDL[mRRXUHPRUVR3DVFRDO7: 363)
O desfecho j o apresentmos em cima, a compaL[mR H UHPRUVR GRV LUPmRV GH 1Di-Buro leva-os a
acompanh-lo nesta viagem sem regresso, numa epopeia csmica que os torna combatentes das trevas,
GHXVHVQRFWXUQRVHSDLVHWLRVGDVFULDQoDVWLPRUHQVHV- So os teus tios disse-OKHDPmH
Um outro conto, Bua-id, (Pascoal, 1967: 362) coloca tambm a origem de trs estrelas num conflito de trs
crianas com os seus pais. Na base desta zanga est a fome das crianas, depois de o seu pai ter comido o
cunbli VR]LQKR&HUWDYH]DRPHLRGLDRSDLDUUDQFRXcunbli para assar. Depois de assado, comeu-o sozinho,
sem nada dizer aos filhos. Antes de o comer todo, ficou inteiramente preto. Os filhos disseram: - O pai comeu,
s, o cunbli e ficou preto. Deixemo-ORHYROWHPRVSDUDFDVD9ROWDUDPSDUDFDVDPDVDPmHQmROKHVPDWRXD
IRPH -Estamos com fome. Queremos comer. A me nada lhes quis dar [...] O vosso pai quem trata do
porco. Quando vier, peam-lhe. Tristes e zangados, os trs irmos treparam e subiram a uma arequeira e
puseram-VH D FDQWDUDVVLP %XDLG EXDLGDUHTXHLUD DUHTXHLUD PQDUR VDHODa! (sobe para o ar!) / Tugo
LQDWXJRDPD3HGLPRVjPmHSHGLPRVDRSDL%DQp$PDQL'LVVHTXHHUDGHOH1mRTXLVGDU
Foram cantando esta cantiga at que nona vez a arequeira tocava j o cu e os trs pequenos se
WUDQVIRUPDUDPHPHVWUHODV$DUHTXHLUDIRL-se elevando, elevando sempre. Ao ser a cantiga repetida pela nona
vez, j a arequeira tocava no cu, mas to longe dos trs pequenos que os pais nunca mais os tornaram a ver,
80
HPERUD VH WHQKDP PXGDGR WDPEpP HP HVWUHODV$ TXH HVWUHODV FRUUHVSRQGHUmR" 6HUmR as Trs Marias que
integram a Constelao rion?
A fome est tambm na base do enredo de mais um conto de Pascoal, Quh-li (1967: 356-357), onde, mais
uma vez, a mngua provoca um desfecho trgico e inslito, quando dois irmos, Mabe-Mau e Cua-Mau,
esfomeados comem a pouca comida que suas mes lhes deixaram antes de irem para a horta, matando, em
VHJXLGD RV VHXV GRLV LUPmRV PDLV QRYRV 2V GRLV ILOKRV FR]LQKDUDP-nas, de facto, mas eles prprios as
comeram, de esfomeados que andavam. A seguir, mataram os dois irmos mais pequeninos, Mau-Cua e Bi-
&XD2KHGLRQGRFULPHILFRXFRQVXPDGRGHSRLVGHGHFHSDUHPHHVTXDUWHMDUHPRVFRUSRVGHVHXVLUPmRVH
terem colocado a carne no cesto que os pais destinavam comida diria. Quando os pais voltaram da horta
acabaUDPSRUFR]LQKDUDRHQJDQRDFDUQHGRVSUySULRVILOKRVTXHGHSRLVFRPHUDP2VSDLVFR]LQKDUDP-na e
comeram-na. No fim, a me disse a Mabe-Mau e a Cua-Mau que lhes levassem os dois irmozinhos para os
amamentar. J foi de cima de uma trepadeira, por onde iam fugindo, que os dois rapazes lhe responderam
assim: - Foram os pais que os mandaram cozinhar. Acabaram de os comer e agora perguntam por eles?
&RQWLQXDUDPDVXELUGLDQWHGRHVSDQWRGRVSDLVTXHQmRVDELDPRTXHID]HU2VLUPmRVFRQWLQXDUDPDVXELUH
no pararam nem quando Cua-0DXILFRXFDQVDGRHRVHXLUPmRRWHYHGHFDUUHJDUjVFRVWDV4XDQGR&XD-
Mau, de cansado, estava na disposio de parar, Mabe-Mau p-lo s costas quh e continuaram, assim,
at ao cu. Desde ento, noite, l est Mabe-Mau, transformado em estrela, com o irmo s costas, mudado
HP HVWUHOD WDPEpP 6HUmR HVWDV HVWUHODV $OID H %HWD SHUJXQWD SHUWLQHQWHPHQWH 3DVFRDO (VWi HVWH
canibalesco conto na origem do topnimo Htu-Ria, onde estava a raiz da trepadeira por onde subiram os dois
pequenos, aldeia das estrelas, pois tambm os seus pais se transformaram em estrelas.
O ltimo conto da colectnea de Pascoal, chamado de Ldun (Pascoal, 1967: 364-365), uma narrativa
fabulosa, atribuindo tambm a uma birra de crianas a origem das Pliades. Apesar de a me desejar que os
ILOKRV WUDEDOKDVVHP QD KRUWD HVWHV WHLPDYDP HP EULQFDU DR MRJR GR SLmR 'LDQWH GD PmH QXQFD ID]LDP D
mnima referncia horta [...] Semelhante silncio levou-a a suspeitar que os filhos talvez no andassem
ocupados nela [...] Viu, depressa, confirmado o seu receio. J no tinha dvidas sobre o modo como os filhos
RFXSDYDPRVHXWHPSR3DVVDYDPKRUDVDILRHQWUHWLGRVFRPRVVHXVSL}HV)XULRVDDPmHQmRVySDUWLXRV
pies como os colocou nos pratos de refeio dos seus filhos. Estes retiraram-se zangados para o lugar onde
jogavam ao pio e falta deste comearam a danar o tbe (dana tradicional timorense). A sua dana, que
consistia em bater com os ps (tbe) no cho levou a que a terra seca se transformasse em lama e mais tarde
HP iJXD TXH IRL FUHVFHQGR DFRPSDQKDQGR R FUHVFHQWH PRYLPHQWR GD GDQoD 'H iJXD TXH LD EURWDQGR
debaixo dos seus ps e crescia, crescia sem arrefecer o ardor desse tbe inslito que, iniciado de dia, entrara
SHODQRLWHGHQWUR1HPmesmo quando apareceu a sua irm que lhe rogou que voltassem para casa, a pedido
81
GHVXDPmHRVUDSD]HVSDUDUDPFRPDVXDGDQoD'HL[D-nos e volta para trs. Quando nos vires aparecer no
cu, juntos como estamos, para os lados do Oriente, chegou o tempo dH ID]HUHV D KRUWD 3DJDYDP GHVWH
modo o seu pecado, a sua preguia, o facto de passarem o tempo a jogar pio, longe da horta, pecado que era
agora reparado com a sua apario nos cus, apario indicadora do momento de semear a horta. O relato
termina com um remate potico e enternecedor, com a aluso a Bere-Loic, tan, escravo da famlia, a quem a
me pediu que fosse procura de seus filhos. Este na nsia de os apanhar, de recuperar os seus meninos, de
cumprir o seu papel de amo, atirou-se gua e tambP HOH VH WUDQVIRUPRX HP HVWUHOD%HUH-Loic j no os
encontrou no local onde tinham estado mas s gua, muita gua, para a qual se atirou, na mira de os chamar
ou de os seguir. Nunca mais ningum o viu a no ser no cu, ao p dos sete irmos, transformado, tambm,
em estrela como o bambu que levava. L continua, atrs do Ldun o dedicado tua tan Bere-Loic-Laleva-1DX
Fitun ludun traduz-se em lngua ttum por constelao denominada Pliades, Sete-Estrelo. (cf. Costa, 2000:
234)
82
CAPTULO VIII
A Lua exerceu ao longo dos tempos e entre todas as civilizaes e povos grande fascnio, seja pela sua
mutabilidade desencadeadora de novos e estranhos fenmenos naturais, seja pela sua beleza e luminosidade
na noite, motivo, por isso, de culto entre poetas e apaixonados. Se o Sol sinnimo de fora e poder real, a
Lua tem ntima relao com a paixo e o amor, com a mulher e a terra e os seus perodos mais ou menos
frteis.
Lua que com a sua inconstncia permitiu ao homem primitivo guiar-se nas suas actividades quotidianas, j que,
se o Sol no seu movimento dirio imutvel permitia a contagem das horas, a Lua com os seus quatro diferentes
estdios contnuos possibilitou a contagem das semanas e dos meses:
o Fataluku divide o ano em luas, correspondendo a cada uma um ms. E os seus nomes so assaz elucidativos. Assim, por
exemplo, Metchi-Uru (lua do metchi) e que corresponde ao ms de Maro. No se fazia a diviso em horas, mas sim em sol
nascente, sol do meio dia e sol poente. (Gomes, 1972: 200)
Lua tambm associada ao misticismo e s energias, ao interior e sentimento humanos, fonte inspiradora de
artistas e poetas mais ou menos romnticos.
Na fantstica mitologia fataluku, de que j apresentamos alguns mitos, encontramos um belssimo exemplo de
um relato revelador desse fascnio e dessa mutabilidade lunar, da sua conexo com a fertilidade e com o
tempo. A narrativa, retirada de uma colectnea de textos de literatura oral do universo lusfono, reunidos por
Maria Soares e Maria Tojal (2003: 136-138), comea por expressar essa ausncia de devir e de vida: 1R
SULQFtSLRGRPXQGRQDGDQDVFLDWXGRHUDLPXWiYHOVHPFRQVFLrQFLDGHRULJHPHVHPSHUFHSomRDVSHVVRDV
montanhas e rios permaneciam estticos. Esta imutabilidade, esta falta de praxis levava a ausncia de
SHQVDPHQWRDXPQLLOLVPRFRQVWUDQJHGRUDXPDH[LVWrQFLDLQFRQVFLHQWHHVHPUD]mRGHVHU$VSHVVRDVQmR
VDELDP>@1HPVHHUDERPRXQmRRHVWDUDVVLPQXPWHPSRSDUDGR
Eis que surge a Lua, elemento catalisador de tempo e de vida, de mudana no cosmos. Curioso que em lngua
ttum (lngua nacional), o vocbulo fulan serve para designar lua e ms, caracterizando simultaneamente o
astro e o tempo, fundindo-os, pois as fases da Lua coincidem mais ou menos com o tempo de um ms:
83
A lua aparece, com efeito, como a primeira medida do tempo. A etimologia da lua , nas lnguas indo-europeias e semitas,
uma srie de variaes sobre as razes lingusticas significativas da medida [...] o homem pr-histrico teve de contar o tempo
unicamente por lunaes [...] a lua sugere um processo de repetio, e por ela e pelos cultos lunares que um to grande
UHOHYRpGDGRjDULWPRORJLDQDKLVWyULDGDVUHOLJL}HVHGRVPLWRV'XUDQG-287)
/XD TXH ID]LD VLQDLV TXH QXQFD HUDP RV PHVPRV /XD TXH PDUFD RV WHPSRV GH FROKHLWDV GH SDUWRV GH
sementeiras, de melhores ou piores momentos, consoante a sua cara, o seu desenho. E as pessoas de Lautem
FRORFDUDPDSULPHLUDTXHVWmR2TXHpDTXLOR"SUREOHPDWL]DUDPHFRPLVVRQDsceu a capacidade de agir e
de provocar alteraes no cosmos. O devir dos dias e das noites, o tempo que envelhecia e trazia a morte era
RPHVPRGRQDVFLPHQWRGDVFULDQoDV(VWHHWHUQRUHWRUQRjVVXDVIRUPDVLQLFLDLVHVWDSHULRGLFLGDGHVHPILP
fazem com que a Lua seja, por excelncia, o astro dos ritmos da vida [...] As fases da Lua revelaram ao homem
RWHPSRFRQFUHWRGLVWLQWRGRWHPSRDVWURQyPLFRTXHVySRVWHULRUPHQWHIRLGHVFREHUWR(OLDGH2004: 205)
Os Homens saram de um paraso de ausncia temporal, de um quadro de imagens estticas, para um cosmos
PXOWLGLPHQVLRQDOJHUDGRUGHYLGDHSHUFHEHUDPTXHLVVRHUDERPSRLVJDQKDUDPDFDSDFLGDGHGHSHQVDU
de fazer, de amar e de rir, entraram num novo paraso.
O facto de este mito fundacional se passar em Lautem deve tambm ser analisado de uma forma
antropolgica, isto , importa perceber onde fica Lautem, qual a sua histria, quais as caractersticas das suas
terras e das suas gentes, questes importantes para contextualizarmos o contedo deste relato. Lautem o
distrito mais a leste de Timor, a sua forma geomtrica, diz a lenda (veja-se mito do crocodilo), tem a forma da
cabea de um crocodilo, por analogia, a cabea da nao, e em alguns mitos fundacionais, como vimos,
tambm cabea da terra, lugar mtico de resistncia contra a ocupao indonsia e, em tempos longnquos
lugar de vida paleoltica, onde chegaram os primeiros povos vindos de alm mar - as casas tpicas de alguns
dos seus cls tm at a forma de um barco invertido. neste lugar, mais precisamente na regio de Tutuala,
subdistrito de Lautem, que encontramos as famosas grutas de Ili Kre Kre e de Lne Hra, grutas que
encerram no seu interior imagens rupestres de tempos ancestrais e, por isso, motivo de sacralidade (llik) e de
guarda e culto permanente pelos seus sacerdotes (lia nain):
Ili Kre Kre Nesta escarpa encontraram-se igualmente sinais de celebrao de cerimnias: muros de pedra solta, e um
pequeno altar. Prximo, surgem pinturas de figuras humanas estilizadas, em dana guerreira [...] Lne Hra Nesta gruta
esto representados um peixe, quatro crescentes lunares. (Almeida, 1994: 38)
84
Antnio de Almeida refere um facto significativo: desde tempos remotos, ningum ousava tocar nas pinturas,
com receio de adoecer e morrer, o que mostra com eloquncia o forte poder mgico investido a essas pinturas
pela populao autctone. (cf. Almeida, 1994: 239)
2QRVVRPLWR$6DtGDGR3DUDtVRpIDEULFDGRQHVWHDPELHQWHPiJLFRHPtVWLFRQXPDWHUUDHOHLWDSDUDOXJDU
fundador (cabea da terra), sagrado pelas marcas naturais e humanas. Mito que termina com a
consciencializao humana do devir temporal, do envelhecimento dos seres vivos, da ideia de movimento, da
PRUWHHGDYLGD>@QDVFHXRWHPSRHDYLGDHHQWHQGHUDPR PRYLPHQWR Saam do paraso. As pessoas j
envelheciam e, por outro lado, nasciam crianas. As mulheres e os homens notaram as suas diferenas e
VRXEHUDP TXH LVVR HUD ERP 1DVFLD R DPRU ( ULDP 9HPRV DTXL WDPEpP FODUDPHQWH D /XD DVVRFLDGD j
sexualidade e ao amor, com os homens e as mulheres a aperceberem-se das suas diferenas morfolgicas:
VRXEHUDPTXHLVVRHUDERP$LQGDKRMHRSHUtRGRIpUWLOGDPXOKHUHVWiDVVRFLDGRjFRQWDJHPGRWHPSROXQDU
alis, tambm o tempo de gestao do feto se pode contar por luas.
85
86
CAPTULO IX
No princpio, quando Deus criou os cus e a terra, a terra era informe e vazia, as trevas cobriam o abismo e o esprito de Deus
movia-se sobre a superfcie das guas [...] Deus disse: Renam-se as guas que esto debaixo dos cus, num nico lugar, a
fim de aparecer a terra seca. E assim aconteceu. Deus chamou terra parte slida, e mar, ao conjunto das guas. E Deus viu
que isto era bom. (Bblia. Gnesis, 2009: 24)
O SENHOR disse, depois a No: Entra na arca tu e toda a tua famlia, porque s a ti reconheci como justo nesta gerao [...]
porque dentro de sete dias, vou mandar chuva sobre a Terra, durante quarenta dias e quarenta noites, e exterminarei na
superfcie de toda a Terra todos os seres que Eu criei. [...] Ao cabo de sete dias, as guas do dilvio submergiram a Terra.
(Bblia. Gnesis, 2009: 33)
Os exemplos em cima apresentados retirados da Bblia parecem-nos representativos da fora e simbologia das
guas nos textos bblicos. As guas so entre os cristos elemento natural primordial, dotado de capacidades
curativas, regeneradoras e mgicas, como bem provam as guas baptismais que permitem a entrada no
mundo do Senhor, veculo de acesso Igreja de Deus, sendo, por isso, condio para a vida eterna no Reino
dos Cus isto perdura ainda na convico relativamente ao poder e virtudes de determinadas guas,
frequentemente associadas a locais de devoo mariana veja-se gua de Ftima ou gua de Lourdes. As
guas podem tambm ser um elemento purificador capaz de lavar as almas e os corpos do Homem, pecador e
impuro por natureza. Nos relatos orais timorenses h tambm passagens onde podemos observar esse papel
purificador da guas, onde a simples imerso significa uma redeno, um dotar de sacralidade, logo de fora e
LPXQLGDGH 6H TXHUHV TXH QDGD DFRQWHoD QHP D WL QHP DR WHX ILOKR GHYHV LU EDQKDU-WH QD IRQWH 3DVFRDO
1967: 274) guas que precedem tudo, at a prpria Terra, guas na origem da criao do Mundo, matria onde
tudo possvel, j que fonte de vida, fora que antecede a prpria criao, mundo subterrneo, mas fora
imergente e emergente, onde se d a criao, a purificao e o fortalecimento, da a sua sacralidade. guas
que assolam a terra tambm como castigo divino, podendo neste caso ser sinnimo de morte e de tragicidade,
como vemos no texto referente a No ou nos relatos orais timorenses, onde a aco penalizadora da fora de
5DL 1Din GHXV DQLPLVWD VHQKRU QDin) da terra (rai) se faz sentir. Curiosamente esta simbologia e fora das
guas comum a todas as civilizaes, culturas e religies, pois no s na cultura e religio crists que as
guas so matria nuclear, tambm nos mundos hebraico, rabe, hindu ou nas civilizaes da Roma e da
Grcia Antiga as guas eram e continuam a ser matria primordial, elemento vital de forte carga simblica
porque na base da origem do Mundo e da sua permanente renovao, fonte de todas as possibilidades $
87
tradio das guas primordiais, onde os mundos tiveram a sua origem, encontra-se um grande nmero de
YDULDQWHVQDVFRVPRJRQLDVDUFDLFDVHSULPLWLYDV(OLDGH
No lendrio popular timorense as guas diluvianas possuem tambm forte carga simblica, muito similar s de
outras latitudes e culturas, nomeadamente a crist ocidental, dada a influncia colonial portuguesa - se bem
que j antes dessa colonizao a presena do elemento natural gua na sua literatura oral popular,
particularmente nas narraes que explicam a origem do mundo (cosmogonias) e da ilha, fosse j muito
frequente. Mas ser que podemos relacionar como sugere o ttulo em cima - os relatos orais timorenses com
textos de outras culturas ou religies? Poder existir uma aproximao entre o paganismo animista timorense e
os textos da Bblia? Ou houve aqui uma contaminao dos textos bblicos na literatura oral timorense, motivada
pela influncia evangelizadora dos missionrios portugueses, particularmente daqueles que se dedicaram a
estudos de natureza literria, etnolgica e lingustica? Sinteticamente, responderamos afirmativamente a estas
questes, mas como mostraremos de seguida, partindo da recolha e anlise que fizemos, parecem-nos muitas
as similitudes, salvaguardando claro todas as diferenas ambientais, conjunturais e contextuais. Alis o
paganismo nativo timorense s o na perspectiva de outras religies, particularmente da catlica, ou melhor, o
missionrio portugus ao trazer a boa nova encontrou a oposio de outro mundo sagrado, apelidando-o de
pago ou de gentio, mas como temos vindo a notar, o imaginrio e o dia-a-dia do maubere est carregado de
llik, de aproximao e imerso no sagrado. Assim, em vez de paganismo animista timorense, devemos falar
antes de uma religio primitiva, que podemos caracterizar como animista, tremendamente carregada de fora
natural, j que na Natureza e nos seus elementos que surge a sua gnese e concretizao. Religio
ancestral, dado seu enraizamento, a sua perpetuidade, a sua presena no quotidiano, mesmo depois de
quinhentos anos de evangelizao catlica. Foi-nos at contado por um timorense (senhor Lus da Costa) que
os nativos de Viqueque, de onde natural, faziam os seus cultos animistas s escondidas das autoridades
portuguesas. Este contacto multissecular provocou at fenmenos interessantes de mesclagem entre religies,
como bem provam os chifres de bfalo que vimos entrada da igreja de Maubisse ou nos cemitrios de
Lautem, fenmenos perfeitamente inculcados e que os locais entendem como naturais. Pretendemos, assim,
neste ponto tratar dessas aproximaes, dessa intertextualidade entre narrativas to distantes na latitude e na
essncia, mas que, como veremos, se podem cruzar dada a quantidade de pontos em comum, principalmente
no respeitante s unidades simblicas, neste caso na simbologia das guas, pois atravs dessa simbologia
que poderemos entender a sua fora e significao:
Em qualquer conjunto religioso que as encontremos, as guas conservam invariavelmente a sua funo: desintegram,
abolem as formas, lavam os pecados, purificadoras, e, simultaneamente, regeneradoras. O seu destino preceder a Criao
e reabsorv-la [...] Tudo o que forma se manifesta por cima das guas, destacando-se das guas. Um trao essencial
88
aqui: que a sacralidade das guas e a estrutura das cosmogonias e dos apocalipses aquticos no poderiam ser reveladas
integralmente seno atravs do simbolismo aqutico, que o nico sistema capaz de integrar todas as revelaes
particulares das inumerveis hierofanias. (Eliade, 2002: 141)
Passando anlise dos casos de intertextualidade que vimos apontando, e procurando observar essas
inumerveis hierofanias no imaginrio ancestral timorense, chamou-nos ateno um mito recolhido pelo padre
Ezequiel Pascoal, na ilha de $WD~URTXHRFOpULJRGHL[RXSDUDDSRVWHULGDGHFRPRVXJHVWLYRQRPH'R0kQX
&RFRDR*pQHVLVWDODDSUR[LPDomRTXHYLXHQWUHHVWHUHODWRHRWH[WREtEOLFR
Haver reminiscncias das primeiras pginas do Gnesis na narrao desconexa feita por homens duma ilha praticamente
isolada da Civilizao h muitas centenas talvez milhares de anos? Servir ela para melhor garantir a autenticidade do
dilvio universal esse de que nos fala o Gnesis; esse de que falam as tradies dos mais antigos povos histricos e a que
no se ope a cincia? Ser, simplesmente, a lembrana diluda, esfumada, lendria, dum acontecimento positivamente certo
pavorosas convulses vulcnicas que ergueram acima das ondas esta ilha (de Ataro) em cujo topo h vestgios
incontestveis de ter sido, um dia, um pedao do fundo do oceano? (Pascoal, 1967: 45-46)
Ter certamente razo o clrigo portugus em observar algumas similitudes (o dilvio que quase tudo
consome, os poucos sobreviventes, os seres humanos acompanhados de animais na fuga aos cataclismos) e
as questes que coloca so de todo pertinentes, estando a fantasia popular carregada de artefactos ficcionais,
no deixa tambm de surgir imbuda de fundos de verdade. H, no entanto, uma questo que podemos colocar
e que passa pela antiguidade dos dois textos, ou melhor, ser que podemos afirmar o Gnesis como anterior
ao mito ataro? No ser tambm para o ataro este mito correspondente ao incio do Mundo, aquilo que
aconteceu in illo tempore, a sua explicao da origem, a sua verdade? O padre situa o Gnesis como texto
fundador, explicao verdadeira, palavra do Seu Deus, e o mito do Mnu-Cco como uma verso nativo
timorense, rudimentar e desconexa, que a ele se assemelha, que refora e confirma a sua veracidade na
medida em que dele se aproxima. A viso do clrigo no coloca os dois textos em p de igualdade, esquece
que os dois textos so fundadores, e como mitos de origem que so, no podem ser catalogados numa
perspectiva histrica, antes como acontecimentos e fenmenos atemporais porque sagrados. As semelhanas
e os paralelos podem ser estabelecidos como podiam ser feitos com outras narrativas de outras religies e
culturas - j que quer num caso quer no outro observamos guas diluvianas a ameaar a vida, o Cosmos e, por
isso, a gerar o Caos, sendo poucos os sobreviventes de tamanhos cataclismos. Afortunados que passam por
muitas privaes e s acontecimentos milagrosos ou mgicos, do domnio do sobrenatural ou do divino,
SHUPLWHPHVVDVDOYDomR1RSULQFtSLRHUDWXGRPDU. S existia o cimo do Mnu-Cco [...] Choveu, choveu sem
parar. Toda a gente fugiu para o Mnu-&yFRPDVVyOiFKHJDUDPWUrVLUPmRV3DVFRDO-45)
89
No caso do texto bblico referente a No, Deus quem ameaa e cumpre a promessa de fazer submergir a
terra com chuvas torrenciais, fazendo com que s a Arca de No se salve, arca que transportava apenas No,
seus familiares e uns poucos exemplares das espcies animais.
3DXOLQR FLWD$QWyQLR &DUYDOKR6HDUD DQR Q SDUD GL]HU2 SUimeiro homem que segundo a
tradio, desceu nestas terras de encanto no trazia espada [...] Fomos conquistados pela gua e pelo sal
dizem ainda hoje os timorenses DVJXHUUDVHVVDVYLHUDPGHSRLV3DXOLQR
J aqui fizemos referncia ao facto da lenda referir que o primeiro missionrio portugus mandou colocar a
ncora do barco onde viajava numa fonte ou num poo (consoante a verso), de forma a arrastar a ilha de
Timor para Portugal, conseguindo desta forma quebrar a resistncia dos nativos timorenses sua entrada.
)RPRVFRQTXLVWDGRVSHODiJXDHSHORVDOGL]HPDLQGDKRMHRVWLPRUHQVHV0DVTXHiJXDHUDHVWD"$iJXD
baptismal que originava um novo nascimento, onde muitos chefes nativos, homens cultos e funcionrios
pblicos se deixaram baptizar depois de catequizados. A gua purificadora capaz de operar milagres e
cataclismos, capaz de unir povos com culturas to distantes e to diferentes, elemento agregador, onde todos
se revem e de que todos necessitam. gua fonte de uma nova ordem, mesmo que colonizadora, geradora de
novas e lendrias histrias, de mitos que se perpetuaram no imaginrio ancestral. gua que muito antes da
chegada dos portugueses j povoava o imaginrio popular timorense, como o de outras civilizaes ou
culturas. gua enquanto matria vital e original, donde descendem todas as criaturas, elemento primeiro,
donde brotou toda a criao dos Deuses, seja o Deus cristo, sejam os Deuses hindus. Numa pesquisa rpida
por um dicionrio dos smbolos podemos constatar isso mesmo de forma sinttica:
As significaes simblicas da gua podem reduzir-se a trs temas dominantes: fonte de vida, meio de purificao, centro de
regenerescncia. Estes trs temas encontram-se nas tradies mais antigas e formam as combinaes imaginrias mais
dspares, ao mesmo tempo que mais coerentes.
As guas, massa indiferenciada, representam a infinidade dos possveis, contm todo o virtual, o informal, o germe dos
germes, todas as promessas de desenvolvimento, mas tambm todas as ameaas de reabsoro. (...) A gua a matria-
prima, a Pakriti: Tudo era gua, dizem os textos hindus; as vastas guas no tinham margens... diz um texto taoista.
Brahmanda, o Ovo do mundo, chocado na superfcie das guas. De igual modo, o Sopro ou Esprito de Deus, no Gnesis,
pairava sobre as guas. A gua Wou-ki, dizem os chineses, o Sem-Topo, o caos, a indistino primeira [...] A noo de
guas primordiais, de oceano das origens, quase universal. Encontramo-la at na Polinsia, e a maior parte dos povos
austro-asiticos coloca na gua o poder csmico. (Chevalier et Gheerbrant, 1994: 41-42)
No imaginrio timorense e no seu lendrio tambm frequente a presena do elemento natural gua, tido
como primordial j que na base da origem da ilha, de muitos dos seus lugares, da sua orografia e dos seus
mltiplos cursos aquticos. So muitas as narrativas que associam o nascimento da ilha a chuvas diluvianas e
90
montanha do Ramelau, zona onde tudo comeou h muitos milhares de anos. Zona de cataclismos, de
dilvios e onde se travaram violentos combates entre foras opostas. Curiosamente nestas narrativas tal
como o episdio bblico de No tambm vemos a subida das guas dos mares, o quase aniquilamento da
espcie humana e o nascimento de uma nova ordem, s possvel depois da acalmia das guas. semelhana
dos textos bblicos vemos tambm nos relatos fundacionais timorenses a aco de Deus (Maromak, em lngua
ttum) a colocar o Homem na Terra, a qual se relaciona com o elemento gua, como veremos, nem sempre de
forma pacfica. Veja-se, a ttulo de exemplo, estes fragmentos, o primeiro retirado da lenda 1iL-Hric7RGDD
terra estava inteiramente submersa. No se via seno gua. Deus mandou um seu filho, de nome 1iL-Hric,
pescar nesse grande mar com um anzol e uma rede3DVFRDO2VHJXQGRGDOHQGDDo Mnu-Cco
ao Gnesis: 1RSULQFtSLRHUDWXGRPDU6y H[LVWLDRFLPRGR 0kQX-Cco [...] Veio Deus e disse-lhe: - Plantei
aqui um gondo. Dava sombra. Quem o fez desaparecer? Dito isto, Deus feriu o porco e pendurou-o no tronco
GRJRQGmR3DVFRDO
Correia de Campos apresenta, em sntese, na sua obra Os Mitos e a Imaginao Contista no Estudo das
Origens do Povo TimorenseXP0LWRGD)RUPDomRGDJXDHGR6DQJXHQDUUDWLYDTXHH[SOLFDFRPRVXUJLX
primeiramente a gua na Terra. Deus desce terra para convidar Maliloique a governar os homens. Tudo corria
pelo melhor at que surge uma desordem e uma consequente guerra entre os homens. Maliloique fica
indignado e pede explicaes a Deus, julgando ser Ele o causador da perturbao: - Sim, senhor: bonita
coisa! Pedir-me que governasse os homens, para depois me pregar a partida de ter semeado a desordem no
mundo... (Campos, 1973: 73) Como Deus nega ser ele o causador de tal desordem, Maliloique exclama: -
Mas h uma maneira fcil de saber a verdade: se teu filho se ferir com um golpe que lhe vou dar, porque eu
tenho razo; caso contrrio, s tu quem a tem. Subitamente, sem que Deus o pudesse evitar, saca da espada
(catana), aponta-a ao pescoo do divino filho, e decepa-OKHDFWRFRQWtQXRDFDEHoD&DPSRV
Maliloique depois deste acto tremendamente violento e ousado (que supera at a afronta de Prometeu que
rouba o fogo aos Deuses, sendo depois agrilhoado ad eternum), ainda desafia Deus, dizendo-lhe, com ares
triunfantes, que tinha razo. Deus responde-lhe: J que cortaste a cabea do meu filho, leva-a para a Terra
juntamente com esta pedra. E uma agradvel surpresa irs ter, se procederes como te vou indicar: pe no
cho, em frente da tua casa, a pedra, e em cima dela, nunca no cho, a cabea do meu filho. Maliloique
seguiu as indicaes dadas por Deus e para seu espanto surgiu na terra um enorme lago. Admirado com o que
sucedera foi contar a novidade a Deus que lhe disse: Bebe daquela gua, que sangue de meu filho, em
seguida divide-a por todo o mundo para que os homens a tenham! (Campos, 1973: 74)
91
Mito sui generis este, pois no conhecemos no imaginrio timorense nenhum que se lhe equipare, seja na
ousadia do homem a afrontar Deus e a trat-lo como igual (mais parece um texto nietzschiano), e em que ao
invs de ser castigado, como acontece, por exemplo, no Mito de Prometeu, recebe como prmio pela sua
ousadia a gua para distribuir pelos homens, seja na explicao para o surgimento da gua enquanto
resultante do sangue do filho de Deus, possibilidade dada por este ao homem para que pudesse aceder
tambm a um lquido divino ( semelhana do que acontece com o vinho e o sangue nas Sagradas Escrituras,
vinho bebido pelos sacerdotes na Eucaristia que o sangue do Filho). Deus sacrifica aqui o seu filho para dar a
iJXD DRV KRPHQV H FRP HOD D FDSDFLGDGH GH IHUWLOL]DU H FXOWLYDU GH FULDU H VREUHYLYHU 1D WUDGLomR FULVWm
heterodoxa, h uma lenda um tanto semelhante, relatada no Evangelho de Nicodemos, que a Igreja considera
apcrifo. Jos de Arimateia recolhera num vaso ou clix o sangue e a gua que escorreram da lana de
/RQJLQRTXDQGRHVSHWDUDRODGRGH&ULVWRSDUDVHFHUWLILFDUGDPRUWHGH-HVXVFI&DPSRV
Relato nico tambm por no revelar cataclismos de origem martima ou pluvial, mas antes por explicar a
origem da gua numa desavena entre o lder dos homens e Deus. gua que surge como prmio dado ao
homem pela sua ousadia, pela sua coragem em afrontar Deus. O acto cruel corte da cabea do Filho de
Deus compensado com a atribuio de um lago ao homem para sua surpresa, mas note-se que Deus
obriga tambm o homem a colocar a cabea de Seu Filho em cima de uma pedra e nunca no cho, como
forma de coroao, como marca que o homem ter de carregar para se lembrar da sua crueldade e violncia,
para no esquecer que a gua foi ddiva divina, gua onde o homem se pode purificar e renascer, ver o seu
corpo e alma limpos de pecado. Numa leitura actual e, aproximando este relato da teologia crist, diramos que
Deus infinitamente bom est aqui, mais uma vez, a perdoar a crueldade humana, deixando sacrificar o Seu
Filho, oferecendo a possibilidade de vida terrena ao homem atravs da gua, semente fortificadora donde tudo
nasce. Eliade no seu maravilhoso estudo do fenmeno religioso, que O Sagrado e o Profano, chama a
ateno para um pormenor poucas vezes destacado, o das religies ancestrais serem grosseiras e estarem
carregadas de violncia1, como bem notrio em passagens da Bblia ou do Alcoro:
Respondendo a Lafitau e inspirando-se em Hume, Ch. de Brosses considera que se sups erradamente que os povos
tiveram de Deus, inicialmente, uma concepo pura, que fora degenerando pelos tempos fora; pelo contrrio, visto que o
esprito humano se eleva por graus do inferior para o superior, a primeira forma religiosa s pde ser grosseira. (Eliade, 2002:
16)
1 A propsito de violncia nas religies vejam-se estudos de Ren Girard, particularmente La violence et le sacr (1972) e La Bouc
missaire (1982).
92
O mito em cima apresentado um exemplo dessa religiosidade primeira, de uma concepo religiosa grosseira
e violenta, que alm de colocar, mesmo que por momentos, o homem num plano de igualdade em relao ao
seu Deus criador, d conta de um acto da mais violenta crueldade, um acto difcil de conceber e imaginar, de
acordo com a ideia comum de religiosidade. Mas se Deus pode encarnar a condio humana, enquanto Filho,
no pode tambm o homem aspirar a ser Deus, nem que seja por um momento, nem que fique para sempre
agrilhoado como Prometeu ou lhe queimem as asas como a caro? No o homem tambm Filho de Deus?
Existiria Deus sem o homem?
93
94
CAPTULO X
As tradies de dilvios ligam-se quase todas ideia de reabsoro da humanidade na gua e instaurao de uma nova
poca, com uma nova humanidade. Elas denunciam uma concepo cclica do cosmos e da histria: uma poca abolida pela
catstrofe e uma nova era comea, dominada por homens novos. (Eliade, 2004: 268)
O Ramelau a maior cordilheira montanhosa da ilha de Timor, a sua zona de influncia atinge os distritos de
Ainaro e Ermera, sendo vrios os montes que a constituem. Ramelau que tambm dada a sua imponncia e
importncia um caso singular no imaginrio e na identidade timorense. Local de culto religioso, seja nas
romarias catlicas, de que exemplo uma das maiores procisses a Nossa Senhora que se realiza todos os
anos, em incios de Outubro -, e em que milhares de fiis percorrem a p toda a encosta do monte para prestar
culto sua imagem colocada l bem no cume do Tata-Mai-Lau, seja entre a religio animista, onde llik
(sagrado) porque lugar mtico, particularmente este seu monte mais alto o Tata-Mai-Lau, o Av dos Avs ou
Av Primeiro.
Mas porqu falar da maior montanha de Timor nestas linhas, onde o nosso foco incide nas simbologias da
gua. No podia ser de outra maneira, se pensarmos que o elemento gua surge na maior parte dos casos
associado ao elemento terra, e a sua fuso ou conflito origina, a maior parte das vezes, o surgimento de uma
nova ordem, um novo cosmos, uma renascena. Durand DILUPD PHVPR TXH $V iJXDV HQFRQWUDU-se-iam no
princpio e no fim dos acontecimentos csmicos, enquanto a terra estaria na origem e no fim de qualquer vida.
As guas seriam, assim, as mes do mundo, enquanto a terra seria a me dos seres vivos e dos homeQV
(Durand, 2002: 230)
da relao destes dois primeiros elementos (gua e terra) e da sua fuso que nasce o Primeiro Homem nos
imaginrios fataluku e PDFXD, da regio de Lautem. Segundo o mito 1, no princpio a terra era uma grande
extenso de lamaal, vazia e inabitada. Deus colocou o primeiro homem sobre esta terra, mas num local seco.
Tendo-lhe ordenado que permanecesse neste lugar, Deus deixou-lhe apenas um copo de gua para ele beber
durante sete dias. O homem ficou satisfeito, mas quando Deus o visitou, depois de sete dias, pediu-lhe que
cobrisse a terra com montes, montanhas e rvores, e que a terra e o mar se enchessem de seres vivos. O
homem passou a habitar uma caverna numa montanha. Depois deste segundo encontro, Deus voltou aos cus,
1 Mito recolhido, redigido e gentilmente cedido por Albino da Silva. Veja-se apndice.
95
deixando ao homem, como da primeira vez, um simples copo de gua. O homem vendo-se s no mundo,
resolveu pedir a Deus que lhe desse companhia, ou seja outros homens parecidos consigo. Passados sete
dias, Deus apareceu e feito o pedido do homem, desceram a um lugDU FKDPDGR /RUL TXH VLJQLILFD HP
fataluku, pntano ou lagoa. Neste local, Deus ordenou ao homem que fizesse lama e amassando-a construsse
sete bonecos semelhantes a si. Concludo o trabalho, Deus mandou-o colocar os bonecos dentro de uma mala
feita a partir de um tronco. Depois, subiram montanha e Deus disse-lhe que regressaria ao fim de sete dias,
deixando-lhe, como de costume, um copo de gua. Passados sete dias voltou Deus como prometera e junto
com o homem desceu a montanha, a fim de abrirem a mala e verem os bonecos. O homem abriu a mala e viu
que aqueles se articulavam como lombrigas (latu-poro, na verso fataluku). Deus ordenou-lhe que fechasse a
mala e, depois de subirem a montanha, deixou-lhe um copo de gua e disse-lhe que voltaria ao fim de sete
dias. Voltou, novamente, Deus e ordenou ao homem que abrisse a mala para que visse que os bonecos se
tinham transformado em crianas do sexo masculino. O homem deixou a mala aberta, a pedido de Deus e
voltou para o cimo da montanha, tendo Deus, como de costume, deixado um copo de gua e dito que
regressaria ao fim de sete dias. Por fim, regressou Deus e fez ver ao homem que as crianas eram agora seres
humanos perfeitos. O homem ficou contente, mas fez ver a Deus que no havendo forma de comunicarem,
seria difcil o entendimento entre eles. Deus compreendeu o pedido e deu ao homem a fala, de forma a
puderem comunicar entre si. Essa fala ou lngua tem o nome de 0DFXD e ainda hoje falada por muitos
habitantes da regio. Vendo que tudo estava bem, Deus voltou para os cus.
Uma nova ordem estava estabelecida, estava consumada a criao humana, o Caos dava lugar ao Cosmos,
tendo Deus satisfeito todos os pedidos do homem. Homem que habitava agora a montanha, lugar mais prximo
de Deus e do Sagrado, e como vimos no captulo dedicado ao binmio Terra/Cu, lugar sagrado e de culto por
excelncia.
Curiosa tambm a similitude, relativa ao nmero sete, entre o mito em cima apresentado e o texto bblico que
narra a epopeia de No. Antes disso, o Gnesis, fala em criao do mundo em sete dias, e ao fim de cada
criao diria, o relato enaltece as criaes divinas fruto de um processo que se prolongou por esse nmero
bem-fadado. No mito timorense, Deus voltava sempre ao fim de sete dias para falar com o Primeiro Homem,
HQTXDQWRQRHSLVyGLREtEOLFRUHODWLYRD1RpOHPRV$RFDERGHVHWHGLDVDViJXDVGRGLO~YLRVXEPHUJLUDPD
7HUUD (Bblia. Genesis, 2009: 33) Alis h na literatura oral timorense mltiplas passagens narrativas em que o
nmero sete est presente. Nmero sete que associa o divino (ligado ao nmero trs) ao terreno (associado ao
Q~PHUR TXDWUR 6LPEROL]D D WRWDOLGDGH GR HVSDoR H D WRWDOLGDGH GR WHPSR -XQWDQGR R Q~PHUR TXDWUR TXH
simboliza a terra e o nmero trs, que simboliza o cu, sete representa a totalidade do universo em movimento
[...] Nos contos e nas lendas, este nmero exprime os sete estados da matria, os sete graus da conscincia,
96
DVVHWHHWDSDVGDHYROXomR&KHYDOLHUHW*KHHUEUDQW-606) Nmero sete associado normalmente
perfeio, plenitude, nmero muito presente em textos das mais variadas culturas e religies, sejam a
budista, a crist ou a hindu.
Este tipo de narrativas, muito populares entre os falantes de 0DFXa, mostra bem da importncia da gua entre
os homens primitivos, primeiro enquanto alimento, forma nica de sobrevivncia (de que exemplo o copo de
gua deixado por Deus ao homem), depois na unio, no casamento com a terra a dar origem lama, de onde
surgem os companheiros do primeiro homem, moldados por si sua semelhana com a anuncia de Deus. As
semelhanas entre este relato e os textos bblicos so tambm muitas, a comear com a forma como surgiu a
terra, o mar e as suas criaturas e tambm na concepo dos primeiros homens, pois se no mito timorense o
homem feito a partir da lama, na Bblia lemos que o homem foi concebido do p (barro) da terra:
Quando o SENHOR Deus fez a Terra e os cus, e ainda no havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta
germinara ainda, porque o SENHOR Deus ainda no tinha feito chover sobre a terra, e no havia homem para a cultivar, e da
terra brotava uma nascente que regava toda a superfcie, ento o SENHOR Deus formou o homem do p da terra e insuflou-
lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. (Bblia. Genesis, 2009: 26)
Os fataluku so um povo orgulhoso da sua cultura, origens e costumes. Dizem-se descendentes dos primeiros
homens e possuem lugares mticos e ancestrais como as grutas de Irakerekere, onde se encontraram vestgios
de vida humana com mais de 35 mil anos (veja-se gravuras rupestres0DFXa seria a lngua primitiva, falada
SHORV SULPHLURV KDELWDQWHV GD UHJLmR OHVWH GD LOKD TXH VH FKDPD 0XD-7[DX RX D cabea da terra. nesta
lngua que surgem os primeiros relatos fundacionais, muitos, como vimos, a associar a origem da ilha com a
origem do mundo. Ainda em relao lngua, diga-se que o fataluku uma lngua mais recente, e que significa
a lngua/fala correcta (fata=correcta, luku=lngua), por oposio ao PDFXD, lngua primitiva, imperfeita porque
incapaz de expressar um novo e crescente mundo. A propsito de lnguas timorenses (lnguas nativas), lnguas
rituais para falar com os antepassados, lnguas locais (familiares), lnguas de trabalho, e falando da diversidade
lingustica e dos contextos em que ela notria, escreve Paulo Castro Seixas:
97
+iXPRXWURUHODWRUHFROKLGRSHORSDGUH(]HTXLHO3DVFRDO2'LO~YLRQDWUDGLomRGH/DXWpPHPTXHYHPRV
associada a origem do mundo a este local e que apresentamos em resumo: O mundo estava envolto em
trevas. Quando se dissiparam s se via um mar de lama. Deus moldou um homem a partir da lama. Desse
homem surgiram outros homens e mulheres. Horrorosa tempestade aniquilou por completo a nascente
humanidade. Deus povoou a terra com pigmeus. Outro dilvio tratou de os destruir. Salvaram-se apenas dois
irmos. Ele foi salvo por um coqueiro, ela refugiou-se numa arequeira. Tiveram sete filhos, responsveis pelo
repovoamento da Terra. Deles descendem os habitantes da Terra dos Gemidos, em Lautem. (cf. Pascoal, 1967:
50-51)
Tambm aqui assistimos ao facto de Deus moldar um homem primeiro a partir da lama. Tambm aqui existem
cataclismos, o caos a dar origem a um mar de lama (fuso de terra e gua), e s a partir daqui h a
possibilidade criadora de uma nova ordem, de gerar a vida humana. Tambm aqui h a presena do nmero
sete, com sete homens a repovoar a Terra. Terra que tem origem num cataclismo que acontece, mais uma vez,
na regio de Lautem, na cabea da Terra, lugar privilegiado por Deus, que ouve as splicas e os gemidos dos
homens e acalma a fria da natureza, permitindo a vida humana e o povoamento da terra.
No imaginrio timorense, principalmente entre a etnia manbae, a terra tem no monte Tata-Mai-Lau, com os
seus quase trs mil metros de altitude, o seu smbolo mais poderoso e o mais impregnado na sua literatura
oral. aqui que chegam, normalmente, os povos vindos de outras paragens em embarcaes, que tal como
No vagueiam perdidos nas tempestuosas guas, sob chuvas torrenciais: (P WHPSRV LGRV FKRYHX WDQWR
tanto, que todas as terras ficaram imersas sob imenso lenol de gua. Era tudo um mar sem praias.
Sobreviventes de tamanha tragdia, metidos num barco, vogando ao deus-dar, impelido por violentas e
opostas correntes, chegaram a Timor [...] Levados ao sabor da corrente tiveram a dita de LUGDUDR5DPHODX
(Pascoal, 1967: 37-38); aqui que se travam grandes combates 2 HQWUH IRUoDV WHUUHVWUHV H PDUtWLPDV 7iFL-
Rada expulsou de B-Malai os homens da terra com o auxlio das ondas do mar [...] Le-Mau e a sua gente s
pararam no Tata-Mai-Lau. Neste ltimo reduto, dispostos a tudo [...] Le-Mau serviu-se, ento, da azagaia que
herdara do pai e com um s golpe degolou Tci-5DGD3DVFRDOpDTXLTXHRVVREUHYLYHQWHV de
FDWDFOLVPRVVHVDOYDPPLODJURVDPHQWH'HFLPDGR7DWD-Mai-Lau no se via seno gua em toda a volta [...]
Nessas circunstncias, convencidos de que no lhes restava esperana alguma de se salvarem, taparam os
olhos para no verem as ondas que continuavam a avanar em turbilho. Era intil fugir mais. Precisamente
2 Foi tambm aqui que os guerrilheiros das FALINTIL combateram as foras indonsias. Xanana Gusmo conta um episdio passado
consigo nesta montanha, onde quase foi morto por soldados indonsios a este propsito veja-se documentrio de Diana Andringa
(2004) Timor-Leste: O Sonho do Crocodilo e a Resistncia Timorense. Lisboa: Fundao Mrio Soares, Fado Filmes e Revista
Viso (DVD e CD-ROM).
98
quando contavam com uma morte certa, caram-lhes, aos ps, vindos do sol, um bloco de ferro e um bagnut...
(Pascoal, 1967: 65)
99
100
CAPTULO XI
H tambm no lendrio timorense e na sua cosmogonia mtica explicaes para a origem de terras, montanhas
e lugares, onde o elemento gua desempenha papel fundamental enquanto veculo gerador de caos, mas
simultaneamente possibilitador de uma nova ordem, j que catalisador de vida humana e animal. Vimos em
cima a forma fantasiosa como surge uma nova ordem, a origem de nova vida, resultante de estranhos
fenmenos, envolvendo seres que se transformam para dar lugar ascenso do elemento gua, fruto vital para
qualquer ser vivo. guas que no surgem muitas vezes sozinhas, nessa nova ordem reflectida nas narrativas
lendrias, onde tal como nos exemplos em cima apresentados vemos foras antagnicas (que se
metamorfoseiam muitas das vezes) em combate, foras animalescas e/ou humanas que povoam o imaginrio,
e que nos surgem tambm no caso timorense sob a forma de feiticeiros, homens, animais e plantas dotados de
especiais poderes. Estes feiticeiros, em lngua ttum designados por buan ou buak, so representantes das
foras malficas e destruidoras, de certos espritos maus:
No tardou, porm, que desabasse nova desgraa sobre a terra que acabara de livrar-se das guas calamitosas que a
tinham invadido. Viu-se infestada por uma verdadeira praga de feiticeiros da pior espcie. Os mais temveis eram Toro-Lhi e
Leo-Dci a quem todos obedeciam. De peixes que eram, antes, tinham-se transformado em homens, dotados de poderes
malficos. (Pascoal, 1967: 55)
Imaginrio que capaz de colocar simples e pequenos animais, como uma codorniz ou um rato, a empurrar a
fora tempestuosa dos mares:
2PDULQYDGLUD D WHUUD H FREULUD SRU FRPSOHWR DWp RV PRQWHVPDLV DOWRV 2 SRXFR TXH DLQGD UHVWDYD GR7DWD-Mai-Lau o
maior de todos ficaria tambm submerso na imensido das ondas que, de todos os lados, bramiam, revoltas, se Quo
uma codorniz e Laho um rato no tivessem arremetido contra elas, obrigando-DVDUHWURFHGHU3DVFRDO
Se nos textos bblicos vemos a aco de Deus a impor a sua lei e a fazer uso das guas enquanto sua criao,
lugar onde No sofreu para garantir a continuidade da espcie humana, nos relatos fundacionais timorenses
so frequentes os combates entre foras opostas sob os comandos de 5DL 1DLQ VHUHV LQYLVtYHLV que
dominam os fenmenos da natureza, como senhores (QDLQ da terra (rai). Susceptveis de forma palpvel,
tanto se podem manifestar sob a aparncia humana como a de um bicho ou animal qualquer. O timorense teme
os UDLQDLQ e, para os tornar propcios, oferece-OKHVVDFULItFLRV3DVFRDO([LVWHPPXLWDVQDUUDWLYDV
101
que colocam frente a frente foras terrestres e marinhas. Apresentamos em baixo trs exemplos que nos
parecem paradigmticos. O primeiro relato com o ttulo Lhu-M:
O mar invadira a terra e cobrira, por completo, at os montes mais altos. O pouco que ainda restava do Tata-Mai-Lau o
maior de todos ficaria tambm submerso na imensido das ondas que, de todos os lados, bramiam, revoltas, se Quo
uma codorniz e Laho um rato no tivessem arremetido contra elas, obrigando-as a retroceder [...] No tardou, porm,
que desabasse nova desgraa sobre a terra que acabara de livrar-se das guas calamitosas que a tinham invadido. Viu-se
infestada por uma verdadeira praga de feiticeiros da pior espcie. Os mais temveis eram Toro-Lhi e Leo-Dci a quem todos
obedeciam. De peixes que eram, antes, tinham-se transformado em homens, dotados de poderes malficos. (Pascoal, 1967:
54-55)
Neste caso so dois pequenos animais aqueles que primeiro enfrentam a fora das guas e as obrigam a
retroceder. Vemos depois as foras aquticas, peixes que se transformam em terrveis feiticeiros a tomarem o
FRPDQGRGDVRSHUDo}HVHDSURYRFDUJUDQGHVEDL[DVHQWUHDVIRUoDVWHUUHVWUHV7RUR-Lhi, Leo-Dci e os seus
sequazes espalharam-se por Dru-Bti, Si-Lsso, Rai-Lau, Olo-Fana, Sau-Ria e Ho-Hul. Comiam a alma dos
VHXV KDELWDQWHV TXH PRUULDP XQV DSyV RXWURV VHP TXH QDGD RV VDOYDVVH 3DVFRDO 6y D
perspiccia e audcia de um homem e de uma mulher que convidam estes terrveis feiticeiros para uma festa
(estilu DQXDO H RV HPEHEHGDP FRQVHJXH S{U ILP D WDPDQKD GHVJUDoD /HR-Dci, que no estava menos
ErEDGRWDPEpPIRLGHJRODGRVHPSHUGDGHWHPSR3DVFRDO
Nessas circunstncias, convencidos de que no lhes restava esperana alguma de se salvarem, taparam os olhos para no
verem as ondas que continuavam a avanar em turbilho [...] Armados deste modo, investiram contra as ondas. Como se
estas fossem inimigos de carne e osso, enterravam-lhes as espadas mas verificaram, com terror, que era em vo. As ondas
no cediam. Arremessaram contra elas dois pssaros e um mocho chamado Maca-Leto-Paca-Lor a ver se assim as venciam.
Contra elas aularam, tambm, o co Maca-Tni e a cadela Dua-L que os tinham acompanhado na fuga. S ento as ondas
comearam, finalmente, a ceder, enquanto os homens e as mulheres pulavam e gritavam, os ces ladravam, os dois
pssaros e o mocho piavam. (Pascoal, 1967: 65-66)
Neste fragmento vemos um grupo de homens e mulheres, sobreviventes da subida dos mares, a combater as
gigantes ondas, armados de nove espadas, investindo contra elas como se tratasse de inimigos de carne e
osso. Combate infrutfero, j que as nove espadas nada podiam face fora das guas. S quando
arremessaram contra elas animais como um co, uma cadela, dois pssaros e um mocho, as guas
comearam, finalmente, a ceder. Os homens juntaram-se-lhes no combate servindo-se de enfeites de animais,
com os quais ornamentavam os corpos, enfeites que acreditavam (e ainda acreditam) lhes davam especiais
102
SRGHUHVFRPRDFRUDJHPRXGHVWUH]DGRFmRHGRVSiVVDURV2VKRPHQVWLQKDPDPDUUDGRQRVWRUQR]HORV
plos da cauda dos ces e, na cabea, levavam penachos de penas de que no se tinham esquecido na fuga.
As montanhas submersas em redor foram emergindo, pouco a pouco, at que as guas se detiveram l muito
HPEDL[R3DVFRDO
Ica-Dato-Baluba era filho do primeiro homem de Timor e ficou preto por ter desobedecido ao pai. Este deu-lhe um machado e
pecolos de bananeira. Deu-lhe, tambm, papel e lpis. Depois de os ter recebido, Ica-Dato-Baluba foi para o mar [...] Tci-
Rada expulsou de B-Malai os homens da terra com o auxlio das ondas do mar [...] Sempre em retirada, chegaram ao Daro-
Lau onde acamparam espera dos homens do mar que os perseguiam. A sua demora no foi muita porque no puderam, de
novo, resistir ao mpeto dos homens do mar ajudados pelas ondas. Tiveram que refugiar-se em Lau-bi onde, no se
sentindo seguros, se retiraram, mais uma vez, diante dos homens do mar que lhes foram no encalo apoiados, como sempre,
pelas ondas. Le-Mau e a sua gente s pararam no Tata-Mai-Lau. (Pascoal, 1967: 75-76)
Neste ltimo exemplo apresentado, observamos foras terrestres sob o comando de Le-Mau em guerra com o
exrcito martimo, encabeado por Taci-Rada FRPEDWH TXH FRQKHFH YiULDV HWDSDV Tci-Rada expulsou de
B-Malai os homens da terra com R DX[tOLRGDV RQGDV GR PDU /yH-Mau refugia-se no Ramelau, para reunir
foras a fim de voltar a enfrentar Tci-Rada. Apesar dos seus esforos e das armas reunidas, foi-lhes
impossvel aguentar os mpetos das ondas e os homens de Tci-Rada, tendo que refugiar-se mais do que uma
YH] $ VXD GHPRUD Dt QmR IRL PXLWD SRUTXH QmR SXGHUDP GH QRYR UHVLVWLU DR tPSHWR GRV KRPHQV GR PDU
DMXGDGRVSHODVRQGDV6yDD]DJDLDGHLe-Mau, herdada de seu pai, Ica-Dato-Baluba, foi capaz de pr fim
YLROHQWD JXHUUDLe-Mau serviu-se, ento, da azagaia que herdara do pai e com um s golpe degolou Tci-
Rada/yH-Mau mais parece um heri homrico, um Ulisses encurralado a derrotar o Ciclope, a fora humana
terrestre com a beneplcito dos Deuses a derrotar as foras do mal, responsveis pelo Caos instalado.
O imaginrio timorense tambm v nesta narrativa a explicao para o facto de existirem nas regies da costa
sul de Timor duas pocas das chuvas, enquanto as do litoral norte tm apenas uma. Com efeito, na regio sul
(que comporta, principalmente, os distritos de Lautem, Viqueque, Manufahi e Covalima) banhada pelo Taci-
Mane (Mar-Homem) h duas pocas pluviais, a primeira de Novembro a Maio e a segunda de Julho a
Setembro. Alis este Taci-Mane, este mar-homem, ficou com o nome (Taci) do heri guerreiro e turbulento,
adquiriu-lhe as qualidades. A justificao para este estranho fenmeno encontra-o o imaginrio timorense no
facto de Le-Mau e os seus irmos, seguindo um ritual dos guerrilheiros DVXDin (guerreiro; o que j cortou
alguma cabea na guerra), terem levado a cabea do inimigo degolado, Tci-Rada, para uma gruta e a terem
FRORFDGR YLUDGD SDUD VXO Le-Mau e os irmos apoderaram-se da cabea do inimigo vencido e puseram-na
103
numa caverna, em R-Ulun (Barco-Cabea), com a cara virada para o sul. Desde ento, os povos que vivem
do lado do mar-homem passaram a ter duas pocas de chuva, duas sementeiras e duas colheitas. Le-Mau
e os seus descendentes, que foram viver para os lados do mar-mulher, continuaram a ter uma s poca de
FKXYDVXPDVyVHPHQWHLUDHXPDVyFROKHLWD3DVFRDO-76)
Em conversa com o senhor Alexandre, natural de Hato-Builico, sop do Tata-Mai-Lau, compreendemos que
ainda hoje, cada cl ou uma-llik (casa sagrada) tem um estilu (ritual) que consiste em buscar gua da sua
fonte para depois durante esse estilu a oferecer aos seus Deuses, pedindo-lhes boas colheitas. tambm do
Tata-Mai-Lau, segundo as lendas mitolgicas, de onde partiram os primeiros homens para povoar a ilha.
neste lugar mgico e sagrado que as almas se transformam em passarinhos, almas que vo para o mar, sendo
as que regressam chamadas de malai mutin (estrangeiros brancos):
Foi no Tata-Mai-Lau segundo as lendas mitolgicas de que ele o centro que irradiaram para toda a ilha, ainda desertam,
os primeiros homens fundadores de aldeias e tronco de genealogias (lian). Depois de se lavarem nas fontes de Era-Bissa,
em Uro-B, ou de Er-Crito, para os lados do Htu-Bui-Lico, ambas prximas do Tata-Mai-Lau, as almas so recebidas,
segundo uns, por um velho e uma velha chamados Mau-Cuca e Bi-Cuca ou, segundo outros, por dois velhos de nome Loro-
Tai e Ai-Tai. Uma vez no Tata-Mai-Lau, as almas transformam-se em passarinhos. Todas as vezes que se realiza em sua
honra alguma das festas usuais da pragmtica pag, o cuco vai l busc-las, trazendo-as pelo mesmo caminho por onde
foram. Depois da festa de taa rate, que a ltima, as almas vo para o mar, donde as que regressam como malai mtin
que voltam [...] Como quer que seja, h para eles no mar donde teriam vindo seus avs, em sucessivas migraes algo
de misterioso e indefinvel. Nesse mar que lutou com a terra e se prolonga, sem que saibam como nem at onde, para alm
do horizonte visual. ainda de ter em conta que os timorenses admitem, dum modo ou doutro, a metempsicose. (Pascoal,
1967: 78)
Esta passagem do clrigo portugus elucidativa do carcter mtico do Tata-Mai-Lau, mas tambm das suas
fontes, onde se purificam as almas, onde vo os lia nain buscar gua para nos seus estilus a oferecer aos
Deuses, procurando, assim, obter destes a fortuna das chuvas e das colheitas favorveis. Curiosa tambm a
explicao para o facto de as almas irem para o mar e de l voltarem enquanto novos seres, os malai mutin.
104
CAPTULO XII
GUA FONTE DE NOVA VIDA E NOVA ORDEM TAMBM AO NVEL DOS MICRO-COSMOS OU RECRIAO DO
ACONTECIMENTO PRIMORDIAL ETERNO RETORNO
A gua est presente em grande parte dos relatos fundacionais timorenses. gua que se assume como
elemento de primordial importncia, geradora de nova vida, grmen de fertilidade no s de um novo cosmos
(como vimos em cima), de origem e criao do Mundo, mas tambm de microcosmos (nascimento de uma
aldeia, fonte ou nascente), de devir para uma nova realidade. gua bem presente no quotidiano timorense, seja
a do mar que rodeia a ilha, seja a de muitas fontes, ribeiras, lagoas ou cascatas espalhadas um pouco por todo
o territrio. Veja-se a ttulo de exemplo o caso da lagoa B-Malai (gua Estrangeira, numa traduo literal),
topnimo resultante de uma narrativa com o mesmo nome que apresentamos em baixo de forma sumria:
Loho-Rai, natural de B-Hali e casado com Nona-Bica, filha do liurai, de Cova, estabeleceu-se na regio onde , hoje, B-
Malai [...] No teve outro remdio seno fazer uma horta onde cultivava, de preferncia, areca e btel, devido abundncia
de gua que havia no local [...] Vai faz um beiro (barco). Quando estiver pronto e escondido de modo que ningum o veja,
vem dizer-me [...] Ao amanhecer j estavam todos na praia, dentro da gua transformados em crocodilos, excepto Bli-Loba,
que foi levado por uma ordenana da rainha, tambm crocodilo como ela. Chegados Les (a maior ribeira de Timor),
subiram-na e, depois, a B-Bai at confluncia da mesma com as guas da fonte Cor-Lli-Bau-Sai [...] Se a jovem que
trouxeres for, de facto, a tua filha, a gua da fonte, ao senti-la perto, h-de erguer-se em altos caches de espuma. Se no
for, continuar a correr na mesma [...] Recebida, com agrado, pela rainha e seu squito, Ba tirou, em mais de um stio, gua
da fonte. A corrente continuou a deslizar, fresca e lmpida, sem que a encrespasse um s floco de espuma [...] A rainha disse,
ento, a Bili-Loba: - J te podes vingar dos teus irmos. Toma esta cabaa cheia de gua dotada de novo poder. Bili-Loba
recebeu-a com respeito e dirigiu-se, com ela, para a aldeia dos irmos. Em Ctu-Baba, tropeou ao p do imenso capinzal
sagrado de Dam-Lara. Vasta lagoa se espraiou, num momento, no stio em que da cabaa, caiu uma gota de gua. Foi com
surpresa que os irmos o viram chegar aldeia. A surpresa foi maior quando, mostrando-lhes a gua da cabaa, lhes disse: -
Daqui em diante, nem no rigor do vero voltar a haver falta de gua. Vai aparecer uma fonte grande e nova que nunca se
h-de secar. preciso que faam, primeiro, uma festa em que todos tomem parte e dure dias. (Pascoal, 1967: 132-135).
A lenda termina com a vingana de Bili-Loba que magoado com o mal que seus irmos lhe fizeram, cumpriu
risca o plano traado e conseguiu escapar no seu barco ao cataclismo desencadeado:
Pendurou dum lado a cabaa com a gua que trouxera de Cor-Lli-Bau-Sai. Do outro, ossos de bfalos abatidos. J era a
stima noite da festa, que estava no auge. Como Bli-Loba previra, os ces atiraram-se aos ossos, disputando-os, com fria,
em ruidoso tumulto. A cabaa caiu. Derramou-se a gua, por completo. A terra tremeu. Rasgou-se, numa grande extenso,
com tremendo estampido. As ondas do mar invadiram, em tropel, a fenda imensa. (Pascoal, 1967: 136)
105
Milhares de pessoas morreram, salvando-se o heri desta histria Bili-Loba e o irmo que no lhe fizera mal,
Ica-Bi, juntos conseguiram escapar ao cataclismo atravs de seu pequeno beiro, dirigindo-se para a ribeira de
Les e estabelecendo-se na actual regio de Hatolia, onde as pessoas ainda hoje consideram esta narrativa
FRPRDPDLVYHUtGLFDGDVKLVWyULDV
Os pedaos narrativos que transcrevemos, so exemplo tpico do imaginrio timorense e do seu lendrio, onde
no faltam heris e viles, metamorfose de pessoas em animais, crueldade e vingana e, onde notrio mais
uma vez o poder e fora das guas, origem de uma nova ordem, elemento primordial na base de grandes
mudanas e transformaes, explicao popular para fenmenos naturais doutra forma no entendidos,
mesmo contendo roupagens e simbologias do domnio imagtico. Vemos tambm o motivo por trs do
topnimo, no caso B-Malai, a gua vinda de fora, gua estrangeira. Este tipo de relatos surge frequentemente
entre a religio animista, enquanto explicao primeira para a origem de lugares, montanhas, lagoas e
nascentes. A festa pag de que fala a lenda ainda hoje celebrada, vindo pessoas de outras paragens
comemorar na lagoa, realizando grande pescaria, festejando ao som de batuques e comendo e bebendo
durante sete dias. Cerimonial que tambm a recriao, o renascimento anual do fenmeno primordial, o
agradecimento humano pela ddiva divina, tempo de baptismo, de imerso no sagrado:
Todos os anos, no pino do vero, realiza-se uma grande pescaria em B-Malai em cujas guas, fartas de peixe e camaro, se
alapardam crocodilos. Depois de espectacular estlu (ritual animista), feito na margem, em que se abate um bfalo e um porco
e que se evoca uma das lendas tecidas volta da lagoa, invade-a grande nmero de beiros e de gente vinda das regies
vizinhas, munida de garrafas, de cestos e de varapaus [...] As lendas de B-Malai, ou em que a lagoa figura, dizem at que
ponto ela impressionou, sempre, a imaginao popular. B-Malai gua estrangeira. Quem sabe se este nome no mais do
que um vestgio, que o tempo no diluiu, de pegadas de estranhos, de todo irreconhecveis mas, como quer que seja,
impressas, de facto, um dia, volta daquelas guas? (Pascoal, 1967: 79-80)
Pegadas de estranhos vindos de outras paragens talvez a explicao para uma das muitas migraes que a
ilha acolheu - que permaneceram no imaginrio ancestral, passando de gerao em gerao, fixando-se de
forma irreversvel e indiscutvel, e que ainda hoje so evocadas, continuando hoje em dia a festejar-se esta
tradio, mesmo que estes topnimos surjam nos mapas da ilha sem que algum questione o porqu de to
estranhos nomes.
gua elemento simblico no imaginrio timorense associado origem, purificao, a um novo tempo, a uma
nova vida ou cosmos, ao devir catalisador de nova ordem. Em Tratado de Histria das Religies podemos ler:
106
Numa frmula sumria, poder-se-ia dizer que as guas simbolizam a totalidade das virtualidades; elas so fons et origo, a
matriz de todas as possibilidades de existncia! [...] Na cosmogonia, no mito, no ritual, na iconografia, as guas
desempenham a mesma funo, qualquer que seja a estrutura dos conjuntos culturais nos quais se encontram: elas
precedem qualquer forma e qualquer criao [...] A criao inteira nasce de um receptculo e apoia-se nele. Em outras
variantes, Vishnu, na sua terceira reincarnao (um gigantesco javali) desce ao fundo das guas primordiais e tira a Terra do
abismo. Este mito, de origem e de estrutura ocenica, tambm se manteve no folclore europeu. A cosmogonia babilnica
tambm conhece o caos aqutico, o oceano primordial, Aps e Tiamat: o primeiro personificava o oceano de gua doce no
qual, mais tarde, flutuar a Terra; Tiamat o mar salgado e amargo povoado de monstros. (Eliade, 2004: 243-247)
Vemos tambm no imaginrio timorense simples narrativas que explicam a origem de fontes e nascentes como
pRFDVRGH$OHQGDGDQDVFHQWH/LND-/DOH (Dias, 2009), relato de um homem idoso, chamado Keri Loi, que ao
procurar gua, depois de muito andar, ouve uma rvore dizer-lhe o que fazer para encontrar gua para a sua
aldeia, que tinha problemas de seca prolongada:
4XDQGR Oi FKHJRX IH] FRPR D YR] GD iUYRUH OKH WLQKD GLWR EDWHX FRP D EHQJDOD QR FKmR DWp ID]HU Xm pequeno buraco,
deitou para l a gua que levava dentro do bambu e disse: - Neste lugar aparecer uma grande fonte de gua cristalina [...]
Mas, muito antes de l chegar, viu, com enorme espanto, que a gua corria num caudal cada vez maior no meio daquela terra
que, na vspera, era ainda to seca! [...] Assim apareceu a nascente de Lika-Lale que ainda hoje existe e alimenta toda a
SRSXODomRGDDOGHLD'LDV-33)
Relatos como este existem um pouco por todo o territrio para explicar a origem, para desvendar como se
processou a criao de algo novo, para explicitar como tudo aconteceu, no faltando pormenores, as
personagens participantes e o enredo na base dos factos. Existem at relatos que nos mostram como surgiram
vales, fendas ou estradas. disso exemplo a lenda Bi Sore, que narra como surgiu a estrada que liga Dli a
Taci-Tolu, Liquia, Ermera, percurso com o nome curioso de Rai-kotu (terra dividida). Segundo a lenda, tudo
comeou quando o chefe de Kasait constatou a enorme carncia de gua de mais de 1000 famlias que viviam
naquela aldeia. Sentindo-se na obrigao de resolver este grave problema, vivia amargurado na procura de
uma soluo, at que um dia lhe apareceu em sonhos o 5DL1Din. Este prometeu-lhe resolver o problema da
gua, fazendo nascer uma fonte ali perto, caso o chefe da aldeia lhe desse a mo da sua bonita filha Lia em
casamento:
O chefe do suco pediu sua filha que se sentasse de ccoras e comeasse a escavar na areia para fazer uma nascente e
que enchesse a bilha com a gua que encontrasse. A menina, na sua inocncia, obedeceu fazendo o que o pai lhe pedia.
Sentou-se, ps a bilha ao lado e comeou a escavar com a mo fazendo um pequeno buraco na areia... Mas, eis que de
repente brotou gua e jorrou com tanta fora que mais parecia um enorme repuxo cobrindo a menina e a bilha. Ningum mais
viu a menina, mas as pessoas, cheias de alegria, danaram em volta da nascente durante sete dias e sete noites [...] A
nascente ainda hoje existe e o povo continua a ir l buscar gua na mar baixa. (Dias, 2009: 34-36)
107
Estava consumado o milagre, provocado pela fora de Rai-1Din, fruto do sacrifcio da bela Lia, vemos o
nascimento de uma nova ordem, de um pequeno cosmos, uma repetio do que aconteceu no incio dos
tempos. Ainda segundo esta lenda, a estrada que liga Dli a Taci-Tolu, Liquia e Ermera ter origem numa
zanga do Rai-1Din, que descontente com o facto de o chefe da aldeia no concordar com o casamento do seu
neto com a filha de seu irmo mais novo, ter enxotado manadas e rebanhos para norte, os quais na sua fuga
seriam responsveis pela abertura dessa estrada, onde antes s havia montanhas e planaltos.
No admira pois que os timorenses se preocupem com os humores deste Rai-1Din, senhor da terra e da
natureza, esprito das trevas, e tudo faam para o acalmar, oferecendo-lhe estilus rituais animistas, que
consistem na maioria dos casos em oferendas de animais, como porcos ou bfalos, ou suas partes, variando
de regio para regio (havendo casos em que estes ou outros animais so totem) e do objectivo que se
pretende alcanar, pois os timorenses vem no Rai-1Din o responsvel por esses fenmenos da natureza,
sejam secas ou chuvadas prolongadas. A propsito de estilus, o padre Ezequiel Pascoal fala de um dedicado
gua, o chamado Ai hlun. Ouamos o clrigo:
A gua elemento tanto ou mais essencial do que a luz no podia deixar de merecer dos primeiros homens ateno muito
particular. Ao ver diminuir o caudal das fontes nos derradeiros meses da poca seca, o receio de que se extinguisse t-los-ia
levado a pedir, ao p delas, ao 5DL1Din que mandasse chuva a fim de aumentar o seu volume. Deste modo ter nascido o
estilu da fonte que se foi popularizando e se repete, agora, em todas as aldeias principais... (Pascoal, 1967: 91)
Ainda segundo Pascoal este estilu WHUi WLGRRULJHP QXP PLWR /RUR-Loca e Tai-/DFD GD ]RQD GH 0DXELVVH
segundo o qual Loro-Loca e Tai-Laca encontraram-se em Bl-Htu-Bl-Lelo com Le-Mau, Dada-Mau e outros
companheiros, que como vimos noutra narrativa tinham combatido e repelido as guas do mar que tinham
invadido a terra. Le-Mau morre, depois de tentar tirar um enxame de abelhas de uma rvore, caindo de uma
zona muito alta. O cadver de Le-Mau foi conduzido a um local distante a que passaram a designar, desde
esse dia, por Htu-Le-Mau. Cadver que viria a ser homenageado com estilus HIHVWDV(PIDFHGLVVR/RUR-
Laca e Tai-Laca fizeram a mesma proposta a Mau-Bisse e Mau-Loco, Si-Dau e La-Coda, datos (senhores
nobres) de Selate-Tu-Dada-Rema. Davam-lhes arroz por bfalos e cabritos. Os quatro concordaram mas,
afinal, s lhes entregaram um bfalo que foi logo morto no estilu feito a Le-0DX3DVFRDO2UHODWR
termina com a referncia a Mau-Bisse e a Mau-Loco como sendo os primeiros a fazer a festa das nascentes
ai hlun.
H tambm lendas a associar a gua a outros seres ou a utenslios de actividades domsticas ligadas a
gneros alimentcios como o milho, caso da lenda Bia-Laku, Bia-Oro, Bia-Alu, sendo que Bia significa gua;
108
Laku uma casa tradicional na regio de Maubisse, podendo tambm significar (em ttum) um pequeno animal
mamfero parecido a uma raposa; Oro um tronco escavado para pilar, tronco para bebedouro ou comedouro;
Alu o pau do pilo. Conta a lenda que na regio de Aituto, perto da montanha Loe-Laku, no distrito de
Bobonaro, um jovem nativo casou com uma rapariga da parte sul da ilha. Certo dia, tendo ficado sozinha em
casa, dada a sada de todos para a horta, a rapariga, decidida a preparar o almoo para os seus, viu com
espanto que tinha apenas para o fazer alguns gros deixados pela sua sogra. No estando satisfeita com
tamanha mngua, resolveu subir ao cimo da laku (casa tradicional) para tirar milho para pilar. Procurou o pilo
(oro) e o pau do pilo (alu). No exacto momento em que comeava a pilar, reparou que a cerca da casa se
abrira e que a laku, o oro e o alu escorregaram, descendo a um local chamado Gunili, tendo-se transformado
em trs fontes de gua profunda. Uma tomou a forma de laku (casa); a outra a forma de oro (pilo) e a terceira
a forma de um alu (pau de pilo). Conta a lenda que estas trs fontes surgiram quando aconteceu este acidente
e as pessoas residentes na regio continuam a chamar as fontes de bia-laku, bia-oro e bia-alu. (cf. Dias, 2009:
41-42)
8PD RXWUD OHQGD GD UHJLmR GH %DXFDX %HH 0DWDQ :DLOLD 1 (Olhos de gua), associa o nascimento de uma
fonte morte de um velho pastor, que andava com as suas cabras na regio, acompanhado de seu co. Certo
dia, tendo-se esquecido de levar gua, ficou cheio de sede. O seu co descobriu uma pequena nascente, onde
bebeu. O seu dono teve pior sorte, pois quando tentava saciar a sede, escorregou e caiu no buraco da
nascente. Apesar dos esforos da sua velha esposa para o retirar com vida do local, o velho pastor viria a
falecer. Foi neste local que surgiu uma grande fonte que abastece at hoje a cidade de Baucau de gua lmpida
e fresca. Fonte resultante da metamorfose ou transfigurao desse velho pastor, da sua imerso baptismal. O
velho pastor morre para dar lugar a uma nova realidade, fecha-se um ciclo, mas abre-se um novo. Os seus
olhos iluminam agora com gua essa fonte vital para aquela povoao. Estes so mais dois exemplos da
prodigiosa fantasia popular timorense, incansvel na forma como encontra explicao para o surgimento de
novas realidades.
O imaginrio popular timorense v no formato de lagoas e fontes, muitas vezes, a imagem de outros seres ou
objectos, estabelecendo os devidos paralelismos e desfiando as narrativas de como tudo aconteceu ab initio,
no deixando escapar pormenores, tecendo certo esses relatos com roupagem ficcional. No entanto, no
podemos esquecer que esses topnimos se perpetuaram no tempo at aos nossos dias e ao traduzi-los
constatamos essas similitudes e associaes.
1 Lenda recolhida, redigida e gentilmente cedida por Jos Baltazar Tasi. Confronte-se apndice.
109
+i WDPEpP UHODWRV FRP QRPHV VLQJXODUHV FRPR $ RULJHP GH B-Dois JXD TXH FKHLUD PDO QRPH GDGR D
uma fonte da regio de Caimauc. Local mstico, numa zona deserta, e que provoca terror nas gentes da regio,
pois dizem habit-lo os espritos de Rai-Nin. Foi neste local que o imaginrio ancestral, dotado de tremenda
capacidade inventiva, teceu uma singular lenda que associa o nascimento desta ftida fonte a milhafres, duas
crianas e a uma jibia esfomeada. Dois milhafres da regio de Cai-Cassa, perto de Turiscain pretendiam a
todo o custo adoptar duas crianas. Procuraram muito e encontraram-nas na regio de Venilale. Puseram-lhes
os nomes de Bui e Lale e levaram-nas para o cimo de uma rvore. Para as alimentar procuravam milho e arroz,
transformando-se em gente para os roubar. Eis que surge uma grande jibia, que se apoiava em quatro patas e
tinha uma cabea humana e falava. A jibia esfomeada pediu s crianas que descessem da rvore. Estas
temendo a fria da jibia puseram-se a chorar, valendo-lhes um vespo que avisou os milhafres. O vespo e os
milhafres urdiram um plano maquiavlico que passava pela feitura de um lquido contendo gua fervida, cera e
farelo de milho. Chegados ao local pediram jibia para abrir a boca para receber as duas crianas e
despejaram o poderoso veneno, composto de gua a ferver, misturada com farelo e cera. A jibia caiu e fugiu, e
no percurso percorrido foi deixando cair as suas patas que se transformaram em fontes de gua:
A jibia caiu e fugiu, passando por Nau-Bote, Ai-Luli, Fatu-Cassa at que lhe caiu uma das patas em Au-Tu, onde brotou,
logo, uma fonte de gua quente. Continuou a fugir a caminho de Mali-Bar. Subiu pela nascente de Lacl at Ba-Luca-Htin.
Como no pudesse trepar mais, l lhe ficou outra pata e, nesse mesmo lugar, irrompeu, do cho, outra fonte. Desceu, ento,
no sentido da ribeira, at Da-Iri, onde perdeu a terceira pata e surgiu outra fonte. Num supremo esforo, galgou Bai-B-Coa e
Tuu-Coa. Derivou para Nau-Lolo. Ao desprender-se-lhe, a, uma coxa, comeou a borbulhar nova fonte. J sem rumo,
desesperada, precipitou-se por um riacho at Bere-Meta-Mate e Mali-Det. Escalou Ai-Leto e, rolando, foi dar a Lua-Nin,
onde apodreceu. A B-Dois, a maior das fontes. (Pascoal, 1967: 250)
Fantstica lenda esta, carregada de fantasia e prodigioso enredo capaz de explicar o que est na origem do
mau cheiro da gua de B-Dois. Neste caso vemos os milhafres a transformarem-se em pessoas (por vezes
acontece o contrrio), em mais uma transmutao entre mundo animal e seres humanos, muito frequente no
imaginrio animista timorense. Assistimos tambm criao de uma estranha jibia de quatro patas,
responsveis pelo nascimento das quatro fontes e o apodrecimento do seu corpo a levar ao mau cheiro da
gua (B-Dois). Jibia normalmente a simbolizar uma fora malfica, ameaadora da ordem estabelecida,
alis, Deus castigou a jibia ou cobra, colocando-DDUDVWHMDU3RUWHUHVIHLWRLVWRVHUiVPDOGLWDHQWUHWRGRVRV
animais domsticos e entre os animais selvagens. Rastejars sobre o teu ventre, alimentar-te-s de terra todos
RV GLDV GD WXD YLGD %tEOLD. Genesis, 2009: 28-29) Jibia aqui com cabea humana e com faculdades
humanas, personificao muito frequente neste tipo de relatos, como vimos no captulo relativo simbologia
animal.
110
Do imaginrio ataro chega-nos o mito -Bua (cf. Duarte, 1984: 123) que associa o nascimento de uma fonte a
um polvo. Segundo o relato, Mau-Bua e Rita (polvo), naturais de Beloi, Ataro, foram, certo dia, povoao de
Makli, onde Mau-Bua viria a falecer. Sua mulher, Rita, mascou umas folhas e bagos de btel e uma noz de
areca, em jeito de ritual fnebre, tendo depois colocado essa masca na boca do defunto, antes de o sepultar.
Passados sete dias nasceram cabeceira da sepultura um p de btel e uma arequeira, qual surgiu
amarrado um ODu (em ttum conhecido por lku, pequeno mamfero que se assemelha a uma raposa). Um
sacerdote tradicional (mata-blolo), surpreendido por o animal falar, perguntou-lhe o que desejava. O ODu
respondeu que era a encarnao de Mau-Bua e, enquanto seu mensageiro, vinha dizer aos habitantes daquele
lugar, que o mesmo devia passar a chamar-se de -Bua (gua+areca) e que, a partir daquele momento, se
devia usar mlus (btel) e bua (areca) em todos os rituais.
Mito carregado de fantasioso, apontando aco de um polvo animal totem e sagrado entre as populaes
de Ataro a origem, por artes mgicas, de uma fonte. A aco de Rita, ao colocar btel e areca na boca do
seu defunto marido, faz brotar, tambm, uma rvore de areca e um p de btel. Smbolos de vida e de
festividade, tremendamente inculcados no quotidiano e imaginrio timorenses, a areca e o btel so objecto de
culto, j que presentes em praticamente todos os rituais, cerimnias tradicionais e actos festivos. A gua e
rvore intimamente ligados neste mito, assim como noutros relatos, fazem parte do imaginrio e imagtica
timorenses como formas de possibilitar a criao, o nascimento ou renascimento de uma nova ordem ou
realidade. Registe-se ainda o facto de todos os anos se festejar um ritual (rito da chuva) em honra de Rita,
divindade protectora da fonte de -Bua.
Concluindo, vimos neste captulo a simbologia das guas em diferentes relatos, guas associadas origem e
criao, que resultam, primeiramente, de um tempo de caos, um tempo de desordem, com foras antagnicas
em conflito. Simbologias das guas e suas hierofanias presentes no s nos relatos fundacionais timorenses,
mas em todos os textos sagrados das variadas culturas e religies, observando-se muitas similitudes, o que
nos levou a uma aproximao intertextual que nos parece de assinalar. guas matria primordial, fermento
criador e sagrado, porque obra dos deuses, na base da origem do universo, de uma ilha, lugar ou nascente.
guas em permanente contacto com o elemento terra, resultando dessa unio ou conflito uma nova ordem, um
novo nascimento. guas onde preciso imergir para se nascer ou renascer, para se purificar e obter novos e
mgicos poderes.
111
112
CAPTULO XIII
A descoberta do fogo foi, seguramente, uma das maiores proezas da histria da Humanidade. Basta
pensarmos que a partir da um mundo novo foi possvel, com novas e grandiosas descobertas e toda uma
imensido de ferramentas em ferro que possibilitaram um trabalho agrcola mais produtivo numa primeira fase
e, muito mais tarde, a produo industrial, com o desenvolvimento da combusto e do motor.
Antes de descobrir como podia obter o fogo, o Homem vivia mergulhado nas trevas, era um entre muitos
animais, uma besta que lutava por sobreviver entre feras, alimentando-se do que a Natureza lhe oferecia.
Nesta perspectiva podemos afirmar que a descoberta do fogo foi a grande alavanca do progresso humano, foi
o clique que permitiu a elevao do HRPHPDVXDHPDQFLSDomRGRPXQGRSULPLWLYRHDQLPDOHVFR2HPSUHJR
GRIRJRPDUFDFRPHIHLWRDHWDSDPDLVLPSRUWDQWHGDLQWHOHFWXDOL]DomRGRFRVPRVHDIDVWDFDGDYH]PDLVR
KRPHPGDFRQGLomRDQLPDO'XUDQG1R0XQGR2FLGHQWDODSRVVLELOLdade de o Homem aceder ao
fogo est associada ao pecado de Prometeu, tit que teve a ousadia de o roubar aos Deuses, pagando a sua
desfaatez com o agrilhoamento perptuo, sendo amarrado a uma rocha por toda a eternidade, enquanto uma
grande guia lhe comia durante o dia o fgado, o qual lhe crescia durante a noite para no dia seguinte ser
novamente devorado. O Homem Ocidental, consciente da enormidade cometida pelo Tit, dedicou-lhe grandes
obras literrias e artsticas, elevou-o a mito eterno, recompensa mais do que justa para gratificar quem tanto
ousou e sofreu.
A literatura oral timorense tambm reflecte a importncia da descoberta do fogo e as suas diversas valncias.
Neste captulo pretendemos dar conta da simbologia do fogo no imaginrio timorense, observando nas
narrativas a forma como o homem timorense descreve essa descoberta, associada, na maior parte dos casos,
como veremos, rvore. Durand (2002) FKHJD D GL]HU TXH R IRJR p ILOKR GD iUYRUH H GHVVH )LOKR SRU
excelncia que o fogo. Toda rvore e toda a madeira, enquanto servem para confeccionar uma roda ou uma
FUX]VHUYHPHP~OWLPDDQiOLVHSDUDSURGX]LURIRJRLUUHYHUVtYHO'XUDQG5HJLVWH-se o facto de
em lngua ttum se usar o vocbulo ai para designar rvore, enquanto fogo, lume, fogueira e luz se expressa
por ahi, o que representa, por certo, afinidades de carcter lingustico e semntico. Procuraremos,
concomitantemente, assinalar as relaes do fogo com outros elementos simblicos, nomeadamente a rvore e
a pedra. Estas ligaes justificam-se porque se inserem numa religiosidade fundamentada na Natureza, que
tem por templos rvores como o gondoeiro (hli, em lngua ttum) e pedras onde se procedem maioria de
113
rituais e sacrifcios. No imaginrio timorense, particularmente entre o grupo manbae, a rvore e a pedra
representam a unio suprema entre Cu e Terra, os elementos primordiais, smbolos da criao divina, logo os
que importa preservar e adorar:
Once having ordered the realm, their ancestors simply grow old and weary; they sit down to look after the rock and watch over
the tree, retaining their ritual function. Mambai ritual authorities who claim precedence as the original sovereigns are
categorically associated the inside, the sphere of rock and tree. As old mother/old father ritual leaders evoke the cosmic
couple, whose union they ritually secure, while their relative age also evokes the silent rocks and trees, whose immobility and
fixity they share. (Traube, 2011: 123-125)
Por outro lado a pedra pode ser conotada com solidez, imutabilidade, eternidade, propriedades que o homem
associa ao sagrado, aos Deuses imortais. Eliade fala mesmo em pedras sagradas (hierofanias), seres
absolutos que permanecem sempre iguais e que exercem enorme fascnio no homem primitivo:
Nada de mais imediato e mais autnomo na plenitude da sua fora, nada de mais nobre e de mais terrificante do que o
majestoso rochedo, o bloco de granito audaciosamente erecto [...] O rochedo revela-lhe qualquer coisa que transcende a
precariedade da sua condio humana: um modo de ser absoluto. A sua resistncia, a sua inrcia, as suas propores, tal
como os seus contornos estranhos, no so humanos: eles atestam uma presena que fascina, aterroriza, atrai e ameaa.
Na sua grandeza e na sua dureza, na sua forma ou na sua cor, o homem encontra uma realidade e uma fora que pertencem
a um mundo diferente do mundo profano de que ele faz parte. (Eliade, 2004: 227)
Nos relatos fundacionais timorenses observamos essa centralidade da pedra, a sua fora protectora, a sua
simbologia como objecto de culto ou de recompensa, lugar sagrado onde se reza antes ou depois do combate,
trofu recebido depois de grandes faanhas ou amuleto 1 (bru) usado como escudo protector aquando de
combates:
1 Os timorenses acreditam ainda hoje nestes amuletos. Durante a ocupao indonsia, os guerrilheiros das FALINTIL usavam-nos,
pois confiavam na sua proteco, referindo mesmo que com estes amuletos ficavam imunes ao fogo inimigo. Pascoal faz referncia a
estes bru que podem ser pedras, razes, medalhas ou qualquer outro objecto considerado sagrado, numa nota explicativa relativa
lenda Bru-Hassouro-Mnu-MetaBru o nome dado, em ttum e outros dialectos, a um amuleto constitudo, geralmente por uma
pequena pedra. Atribuem-lhe o poder de tornar invulnerveis os que, na guerra os levam consigo. Possui, ainda, a virtude de os livrar
114
Era uma vez dois homens, um chamado Dasi Tae Lorok e outro Dasi Suri Lorok. Os dois moravam num lugar chamado Fatuk
Fohorem. Um dia, Deus visitou-os e disse-OKHV9RFrVGRLVYmo ter uma guerra contrD7DVL1DLQH0HWL1Din (o dono do mar)
[...] Depois de ganharem a batalha, Bei Betok e Bei Lamusu transformaram-se em duas pedrinhas. Dasi Suri Lorok e Dasi Tae
Lorok apanharam estas duas pedrinhas, uma lana e uma espada de guerra. Estes materiais ainda se conservam como
objectos de guerra. (Gomes, 2008: 111-112)
Os templos da grande maioria das religies so construdos em pedra, sejam igrejas, dlmenes ou menires. A
prpria Igreja Catlica foi erigida a partir de uma primeira Pedra na pessoa do discpulo Pedro. Os altares onde
se procedem a rituais so tambm, muitas vezes, erigidos em pedra, quer se tratem de cristos ou animistas.
Petrificao conotada intimamente com o sagrado, com o sair do tempo humano, a eternizao de heris ou de
santos para que os seus feitos perdurem na memria colectiva para alm do seu tempo de vida terrena.
Tambm em muitas religies so colocadas pedras2 sobre os corpos dos mortos, como que a erigir uma nova
casa SDUDDVVXDVDOPDVQmRDQGDUHPHUUDQWHV$SHGUDIXQHUiria torna-se assim num instrumento protector
GD YLGD FRQWUD D PRUWH $ DOPD KDELWD D SHGUD (OLDGH 0XLWRV GRV UHODWRV RUDLV WLPRUHQVHV
sejam lendas, contos (ai knanoik) ou hamulac (oraes narrativas) manifestam a importncia da pedra no
universo imaginrio dos timorenses. Alis, muita da toponmia est profundamente conotada com essa
profunda ligao do ancestral timorense com as suas montanhas e pedras. Cinnatti resume bem a religiosidade
timorense assente em trs nveis csmicos, representados simbolicamente pela rvore e pela pedra3:
GRXWURVPDOHItFLRVHSHULJRV3DVFRDO2DXWRUUHIHUHDLQGDTXHRJUDQGHHGHVWHPLGR'$OHL[R&RUWH-Real, conhecido
pela corajosa resistncia ocupao japonesa, de que viria a ser vtima, no ia para combate sem levar o seu bru.
2 Pascoal apresenta um mito em que a cabea cortada de um heri (Toro-Lhi) se transforma em pedra sagrada, colocando em nota
de rodap a seguinte explicao: Na vasta regio de Timor onde se fala manbe e noutras, quando morre algum, o OLDQiin (cuco,
em manbe) coloca uma pedra aos ps do defunto, mediante certo ritual. Feito o enterro, essa pedra conserva-se em casa do
falecido. Quando algum membro da famlia adoece, oferecem ao morto com intuitos propiciatrios comestveis, areca, btel e
raspas de uma moeda, ou ento, dedicam-lhe, de tempos a tempos, cerimnias fnebres [...] a ltima das quais realizada, s vezes,
dezenas de anos depois da morte a do taca rate (fechar a sepultura). Ao termin-la vo deitar a pedra em cima da sepultura, para
que a fique de vez, e deitam fora certos objectos que pertenceram ao morto e estavam guardados com ela. Estes nativos admitem
[...] que existe uma relao qualquer entre o defunto e a pedra que o personifica. Vero nela um smbolo da durabilidade inerente ao
morto alm-tmulo?3DVFRDO: 62)
3 Para uma melhor percepo destes templos religiosos vejam-se belssimas fotografias de Ruy Cinatti (1987: 30-57), em Motivos
Artsticos Timorenses e sua Integrao.
115
O pequeno mundo timorense, a aldeia, est organizado num sistema inteligvel: o lugar, sacralizado, provocou uma rotura na
homogeneidade do espao tornando possvel assim a comunicao dos trs nveis Csmicos entre si: Cu, Terra e regies
inferiores, atravs de uma abertura, casa cultual, altar ou poste (eixo do mundo). Tal eixo csmico situa-se no prprio centro
do Universo porque a totalidade do mundo habitvel estende-VHjYROWDGHOH2VDL-DUDEDXGLX grandes postes de seis e sete
PHWURV TXH VH HQFRQWUDP QDV DOGHLDV PDPEDL GDV PRQWDQKDV VmR FRORFDGRV HP VtWLRV GRPLQDQWHV DVVHQWHV VREUH
enormes sacos de pedra, em grupos de dois e trs, ornamentados com numerosos chifres de bfalos abatidos quando da
morte de personagens importantes, testemunhando o seu prestgio social.
Estes postes assumem, em alguns casos, feies antropomrficas mais acentuadas, mas podem, tambm, reduzir-se a um
simples tronco de rvore ou a um esteio de pedra. A permuta destes elementos ou a sua coexistncia sobre o mesmo altar,
no oferece dificuldades mentalidade Timorense porque qualquer deles simboliza a unio entre os vivos e os mortos
ilustres. (Cinatti, 1987: 31)
(QFRQWUDPRV QD OHQGD 2 JRQGRHLUR VDJUDGR D VtQWHVH SHUfeita do que representam a rvore e a pedra no
imaginrio e na religiosidade timorenses, elementos que possuem alma, espritos detentores de fora mgica e
smbolos de fertilidade a que recorrem ciclicamente e em horas de aflio. A narrativa diz-nos que, certo dia,
tendo um velho parado debaixo de um gondoeiro para descansar lhe apareceu um vulto. Vulto ou anjo que
depois de bater com um bambu no tronco do gondoeiro, logo surgiram alimentos com que presenteou o velho
cansado, o qual recuperou assim as suas foras. Mas o favor daquele vulto no terminara aqui, pois depois de
o velho lhe agradecer, deu-lhe ainda uma pedra, dizendo:
- Espero que o caminho seja mais fcil agora e que encontres os teus filhos em casa e com sade. Quando sentires fome ou
sede fala com esta pedra. Ela responder-te- e far o que for preciso. Deves conservar esta pedra sempre contigo e, quando
estiveres para morrer, entrega-a ao teu filho mais velho ou a algum de quem gostes muito e que seja da tua inteira
confiana. (Dias, 2009: 49)
Cinatti fala de regies inferiores da Terra, de onde surgem em muitas narrativas os primeiros habitantes do
mundo terreno, de que exemplo este pedao de um mito manbae:
Foi em Lo-Rema-Dlssu-Hti, no corao do Soro montanha situada entre o Cablac e o Suro-Lau, mas de menor altitude
e de pendores mais suaves, ainda que eriada, aqui e alm, de enormes rochedos ou cortada de alcantis abruptos que
surgiram, do interior da terra, os seguintes homens Bato-Bere, Sir-Bere, Rai-Brec, Baa-Brec, Sera-Brec e Sia-Brec e
uma irm deles de nome Dau-Brec. (Pascoal, 1967: 116)
116
Terreno montanhoso o timorense por excelncia, sendo, por isso, objecto de grandes fabulaes volta de
grutas4, de rochedos, pedras de grandes dimenses, antropomorfizadas e zoomorfizadas, j que em muitos
dos relatos orais vemos heris, humanos ou animais, a transformarem-se em pedras que depois se consideram
como llik (sagradas), sendo preciosamente guardadas e veneradas:
Pouco depois de chegar ao stio a que chamam, hoje, Bandeira-Hum, subiu a um gondo que ali havia. Como no voltasse a
descer, alguns dos seus homens treparam rvore, sua procura. Apenas encontraram uma pedra em que ele se
transformou. Deram-lhe o nome de Bau-Meta e continua, ainda hoje, nessa localidade, guardada numa casa llic onde a
adoram. um dos maiores llics de Aileu. (Pascoal, 1967: 237)
Pedras em que personagens humanas de narrativas se transformam, s vezes, tambm como castigo de
violao do espao sagrado (llik). Petrificao aqui enquanto castigo, colocao fora do tempo,
impossibilidade de avanar, de desenvolver, ficar em suspenso, forma de esterilidade. Pecado e profanao
que originam uma nova ordem, mas tambm um novo espao de adorao personificado nessas pedras 5, para
as quais o homem timorense tem uma explicao de quando e como surgiram:
Comeram e beberam. Puseram ento o cesto e o bambu de lado e preparavam-se para o coito. Mas, neste instante,
transformaram-se em esttuas de pedra, que ainda hoje l se podem ver, junto ao cesto e ao bambu, igualmente petrificados.
E isto sucedeu, porque, inadvertidamente, profanaram um local que era sagrado.
Os descendentes abeiram-se das ditas esttuas para fazer imolaes e oferecer as primcias das colheitas. (Gomes, 1972:
69)
Pedra com a qual tambm o homem timorense constri as suas casas e lareiras, onde passa o seu tempo
nocturno, onde cozinha os alimentos e faz os seus sacrifcios de animais, recorrendo para isso ao fogo.
Homem timorense que atribui grande importncia s lareiras construdas em pedra dentro das suas habitaes,
4 Grutas nas montanhas que serviram tambm de abrigo aos guerrilheiros das FALINTIL durante a ocupao indonsia. A montanha
de Matebian (mate = morto; bian = esprito) mitificou-se por ser lugar onde morreram muitos timorenses em combate: Vale dos
Cados, por deciso da Direco. A maior parte dos elementos escapou. O Generalssimo, porm, ficou para trs. A runa da gruta
entalou-o entre duas massas de rocha. No o matou. Prendeu-lhe o brao e parte do tronco. Para libertar o Generalssimo, s abrindo
um corte no Matebian e, se acontecer um dia, s a Natureza ou Marmak tm fora para tanto. De certa forma, vejamos, o
Generalssimo foi absorvido pela montanha. O corpo dele faz parte do corpo do Matebian. As feridas do tronco fecharam na carne da
URFKD0HQGHV1HVWe trecho transparece bem o valor das montanhas no imaginrio timorense que v na fuso do corpo
humano com a pedra a eternidade conseguida, a concretizao do solo como seu, a luta pela libertao da Ptria faz-se na
sacralizao da pedra onde tombaram os heris.
5 3HGUDVTXHSRGHPWHUYDORUVDJUDGRSRUTXHSHUVRQLILFDPRVDQFHVWUDLV(PERUDUDUDVKiQRHQWDQWRSHGUDVSHUVRQLILFDQGRRV
DYyVPDVHPTXHSHORPHQRVDSDUHQWHPHQWHVHQRWDPHQRVRODERUGRKRPHP*RPHV
117
onde as coloca em lugar destacado. l que acende o fogo purificador, l que sacrifica animais ao 5DL1Din
6HQKRU GD 7HUUD H p Oi TXH FRPXQLFD H DOLPHQWD RV VHXV DQWHSDVVDGRV (OHV SRUpP VXVWHQWDP RV seus
finados quer no sepulcro quer em casa, deitando petiscos dentro do leu (cesto do finado) colocado na lareira
VDJUDGD*RPHV
Mas nem sempre foi assim, como nos relatam contos e mitos, pois o ancestral timorense faz referncia ao
tempo em que no conhecia o fogo, em que comia os alimentos crus:
Os quatro fixaram-se perto de Ftu-cun, sobre o Lan-Bau, um dos muitos montes dessa regio. Era local muito frio mas
ainda mais frio lhes parecia por no terem fogo para cozinhar e para se aquecerem. Comiam tudo cru, at a carne que lhes
dava a caa a que se dedicavam, diariamente, com o auxlio de Tado e de Dau-Hulo, casal de ces trazidos de B-Hli.
(Pascoal, 1967: 251)
na pedra ou bigorna onde o homem timorense consegue o milagre da produo de ferro, e onde interagem
rvore e pedra, como nos mostra o padre Ezequiel Pascoal que descreve com pormenor o fole do ferreiro
timorense:
Toha, em manbe, e tathe em ttum, o fole de ferreiro timorense, velho de sculos, constitudo por dois grossos bambus,
colocados verticalmente, um ao p do outro, dentro dos quais giram dois mbolos, feitos de penas de galinha. De um orifcio,
na base de cada um deles, parte um faflu (bambu delgado) que leva o ar comprimido s brasas. As duas varas a que, numa
das pontas, esto presos os mbolos, so movidas por um homem. Uma pedra rija serve de bigorna. (Pascoal, 1967: 67)
Na mitologia timorense podemos percepcionar a filiao do fogo em relao rvore, destacada por Durand
(2002), j que as personagens de muitos relatos conseguem obter o fogo atravs da frico de dois bambus:
2FRUUHX-lhes a ideia de friccion-lo com outro bambu, tambm seco, a ver se levantavam chamas. Foram bem
VXFHGLGRV3DVFRDO
Este movimento de frico de dois paus que origina o fogo pode ser observado numa dimenso sexual e de
fertilidade. Filsofos, mitlogos e psicanalistas como Bachelard6, Jung, Eliade ou Durand vem na frico de
dois paus a imagem do acto sexual:
A tecnologia do fuzil permite-nos ligar o movimento circular ao vaivm primitivo. Ora, esse esquema do vaivm to importante
para o futuro tcnico da humanidade, dado que o pai do fogo, no tem um prottipo no microcosmo do corpo humano, no
6 Bachelard dedica dois teros da sua Psicanlise do fogo a destacar as ligaes psicolgicas e poticas do fogo elementar e da
sexualidade. (cf. Durand, 2002: 334)
118
gesto sexual? O fogo, como o aran ou o seu emblema, a cruz, no a direta ilustrao desse gesto orgnico que o ato
sexual dos mamferos? (Durand, 2002: 333)
Noutros casos vemos a rvore a permitir o acesso ao mundo do alto, num tempo em que a Terra estava
prxima do Cu e do Sol, funcionando como veculo para a obteno do fogo. As personagens de muitas
narrativas tinham apenas que subir por uma trepadeira que ligava os dois mundos para conseguir l em cima o
fogo, que traziam depois para as suas actividades dirias, cozinhar os alimentos, a ttulo de exemplo:
So os fundadores das casas de Biss-Mau e Dci-Cli, as segundas em importncia na hierarquia real do Suro. Mal se viram
superfcie, os seis irmos precisaram de fogo.
Incumbiram a irm de o ir buscar ao sol, ainda muito perto da terra, nesse tempo, e a que se subia, sem esforo, por uma
trepadeira... (Pascoal, 1967: 116)
Encontramos um relato que nos mostra como foi desvendado esse segredo de obteno do fogo e que tem,
tambm, como protagonista uma pedra sagrada, altar ou templo, onde so feitos sacrifcios, sendo, por isso,
local disputado por diferentes povos. Segundo a lenda, o povo Bulerek sabia j como conseguir o fogo e exigiu
aos seus vizinhos Kairui centenas de bfalos como contrapartida por to valiosa revelao:
H uma lenda, sobremaneira eloquente, que nos relata a entrega de tal segredo pelos povos Bulerek aos povos de Kairui
(no Fataluku). Estes comprometiam-se a pagar to preciosa revelao por centenas de bfalos, mas os de Bulerek no
estavam pelos ajustes. Estes, para o efeito, reclamavam aos de Kairui a devoluo dos seus antigos domnios, onde se
encontrava a pedra sagrada denominada Hatu. A esta pedra iam fazer sacrifcios povos de vrias partes da ilha, tendo, certa
ocasio, um dos bfalos, que ia ser-lhe sacrificando, fugido para o meio duns arrozais. O agricultor lesado, desconhecendo
TXHVHWUDWDYDGXPDQLPDOGHVWLQDGRDRWHLFRUWRX-lhe a cauda. Ora ainda hoje se podem ver, numa concavidade da pedra,
caudas esculpidas.
Os de Kairui aceitaram a proposta. Ento os de Bulerek deram-lhes um pedao de ferro e um seixo vermelho bastante rijo. E
HQVLQDUDPTXHVHIULFFLRQDVVHPYHOR]PHQWHHVWHVVREUHDSDUDVGHJDPXWLREWHULDPRGHVHMDGR*RPHV-195)
A descoberta do fogo que entre os povos ataros revelada pela Lenda de Pikassa. Segundo o relato Kera-Kia
e Kri-Kosse, pescadores oriundos de Makddi e Makli, respectivamente, trabalhavam em sociedade, mas no
se entendiam na repartio do pescado. Certo dia, encontraram o caador Pikassa, o qual passou a funcionar
como rbitro, ajudando os novos amigos a dividir os peixes pescados. Peixe que era comido cru, pois no
conheciam ainda a forma de obter fogo, at que Pikassa notou na existncia de uma pedra vermelha e num
bocado de ferro:
Aproximou-se e, inadvertidamente, deu com o p no ferro que, no impacto com a pedra, feriu lume!... Isto despertou em
Pikassa uma ideia luminosa. Experimentou tirar gamute da gamuteira e coloc-la sobre a pedra, com uma das mos,
119
enquanto, com a outra, segurava o ferro e com ele percutia a pedra [...] Pikassa acabara de descobrir uma maravilha: o fogo!
(Duarte, 1984: 221-222)
Segredo que pode ser revelado em sonhos, ddiva de Deus ou do Grande Veles, Deus primeiro de alguns dos
povos de Lautem. Conta um mito que depois de grande cataclismo, apenas ficaram na Terra os descendentes
de Titilri-Ratu, os irmos Mau-Ona e Pui-Ona. Estes depois de se deslocarem at Nri resolveram a pernoitar.
Foi nesta terra sagrada que Mau-Ona sonhou como havia de fazer fogo e, quando acordou, resolveu contar a
grDQGHQRYLGDGHDRLUPmR- Olha, o grande Veles mandou que fosse buscar dois bambus secos e friccionasse
XPQRRXWURSDUDREWHUIRJRFI*RPHV
O imaginrio timorense, tremendamente criativo, coloca mesmo animais como a vespa, a abelha ou a mosca
varejeira a serem decisivos e a ajudarem o Homem nesse processo complexo e difcil de obteno do Fogo:
Certa manh, Dau-Tec e Namo-Tec viram uma varejeira voar, com tamanha rapidez, roda dum ai rbic que este, s
tantas, se incendiou. Elas sopraram, imediatamente, as chamas que se atearam mas estas foram de pouca durao. O fogo
apagou-se de todo. Da a pouco, a mesma varejeira tornou a esvoaar, do mesmo modo, volta do arbusto. O fogo
reacendeu-se com maior intensidade [...] No tardou que se casassem e passasse desde ento a aproveitar aos quatro o
fogo que nunca mais se apagou, de vez, em Laclbar. (Pascoal, 1967: 251)
Fogo eterno de Laclbar, regio central e montanhosa, que tem grande carga simblica para os timorenses,
pois vem-no como chama e esprito que nunca se apagou, representando, por isso, a luta pela independncia,
a identidade maubere que ali, nas grandes montanhas, se inflamou e se propagou. Cada etnia timorense
fabrica, como temos vindo a observar, relatos orais em que o seu lugar surge destacado numa procura de
centralidade, lugar primordial onde aconteceram factos de extrema relevncia para a humanidade ou para
determinada comunidade e, por isso, objecto de culto e de devoo. Os habitantes de Laclubar reclamam para
si a origem do mundo, da que considerem a sua terra llik (sagrada). Essa sacralidade expressa-se por rituais
e pela adopo de uma linguagem metafrica que compara a terra a um corpo humano, sendo aqui umbigo
referente a Laclubar, o centro desse corpo, dessa terra, surgindo tambm metaforizaes como tronco,
conectando a rvore, enquanto ser especial primeiro, criao humana:
People in Laclubar create a sense of centrality through various idioms. Some house groups express this through the common
Austronesian boWDQLFDOPHWDSKRURIOLNHQLQJWKHLUDQFHVWUDORULJLQKRXVHWRDEDQ\DQWUHHZKRVHDQFHVWRUV DUHWKHWUXQNRU
EDVH,GDWpXXQDQGZKRVHGHVFHQGDQWVDUHWKHWLSVRUIORZHUVRIWKHWUHH,GDWpKXQDQFI5HXWHU7KHVHQVHof
centrality is alsRH[SUHVVHGWKURXJKERGLO\PHWDSKRUVDFFRUGLQJWRZKLFK/DFOXEDULVWKHQDYHORIWKHODQGWKHOLYHURIWKHODQG
(larek usar, larek nau). The west of Timor-Leste represents the tail of the land (Idat: hiak) and the east the head (Idat: ulun).
The navel land, called Balulin, refers to a hole in the ground, which is situated at the bottom of Mount Maubere near Laclubar
120
Centre. This lulic site represents the place where the original ancestors of Laclubar were buried and it is thought to be the
entrance to the world of underground spirits. The claim to be the navel of the world is a way of expressing that Laclubar is the
origin place of humanity. (Bovensiepen, 2011: 50-51)
Tambm os Kemak chamam para si a origem do mundo e interpretam como lugar central a montanha de
Darlau. Montanha onde os primeiros homens tero obtido o fogo primeiro e onde estavam as rvores sagradas,
usadas agora na construo de casas, ritual de reactualizao permanente do mito:
Darlau is also claimed as the site of origin for all sacred trees that, ordinarily, were not allowed to be cut clown. In the
ceremonial context of building origin houses, however, these trees are specifically utilised: ua, ora, taha buci and goru trees. In
the myth of the origin of fire, the ancestor brings fire from the top of Darlau with a taha branch. Identification with Darlau is thus
a significant aspect of Atsabe Kemak identity and a means by which they distinguish themselves in relation to other groups.
(Molnar, 2011: 87)
Fogo tambm associado pedra, elementos decisivos ab initio, aquando da formao da Terra, surgindo como
aliados do homem timorense na conteno do avano das guas, importantes no estancar do cataclismo
primeiro. Conta um mito da regio de Lautem que no princpio no havia fogo e que por isso a terra continuava
molhada7, ento os avs Latuloo e Notchau fizeram um buraco num bambu seco e deitaram para l raspas de
gamuti e com outro bambu friccionaram at que as aparas se tornaram incandescentes. Em seguida, de forma
a que o mar no invadisse a terra, os dois avs adoraram duas pedras distantes entre si, as quais se
transformaram nos montes Paitchau-Ili (pai = porco + tchau = cabea + ili = monte) e Ili e Ilimaku, tendo, desta
forma, impedido o avano do mar. (cf. Gomes, 1972: 36)
Outros mitos explicam como o homem pode conter a fora ciclpica das guas, usando para tal espadas feitas
DSDUWLUGHIHUURYLQGRGR6ROOXJDUGHRQGHVHREWHYHRIRJRSULPRUGLDO3UHFLVDPHQWHTXDQGRFRQWDYDPFRP
uma morte certa, caram-lhes aos ps, vindos do sol, um bloco de ferro e um bagnut (martelo) [...] com que
fizeram espadas e puderam HQIUHQWDUDI~ULDGDVRQGDV(Pascoal, 1967: 65) Mitos que referem a inexistncia
de luz, um tempo de trevas e de cataclismos primeiros, que obrigaram o homem a uma luta desigual e a
consequentes pedidos de ajuda ao Deus Sol. Mitos que demonstram que o homem desconhecia como fazer
fogo, logo impedido de fabricar armas, conseguidas aqui com ajuda divina:
7 Pascoal apresenta um outro mito da ilha de Ataro onde Deus d fogo e uma forja aos protagonistas para que estes pudessem
VHFDUDViJXDVGRPDU'HXVPDQGRX-lhe que ficasse na terra. Passados cinco dias, ela deu luz dois filhos Bui e Mau. Quando
estes cresceram, Deus deu-OKHVIRJRHXPDIRUMDFXMRFDORUHEULOKRIRUDPVHFDQGRRPDU3DVFRDO
121
Naqueles tempos idos, quando o mar ainda era bravo, s havia seis pessoas. Bui Sirak e Mau Sirak, Bui Guzu, Sesu Mau e
Dudu Mau moravam juntos numa montanha chamada Bekalai Annola. Eles viviam miseravelmente, porque ainda no havia
luz, a terra era seca s existia aquela montanha, e no havia gua para beber. Por isso, Mau Sirak subiu ao cu para pedir
ajuda ao Hot Gol (Filho do Sol), que lhes deu trs feixes de lanas para resistirem ao dono do mar. (Gomes, 2008: 85)
Inferimos tambm o fogo enquanto agente regenerador, conotado com a moral, a tica e o comportamento
humanos. Fogo na religio catlica associado ao Inferno, elemento purificador das almas veja-se, a ttulo de
exemplo, aco do Tribunal do Santo Ofcio que usava, no imprio portugus, durante os sculos XVII e XVIII,
a fogueira como local de punio daqueles que no trilhavam os caminhos de Deus ou eram considerados
infiis. Jorge Barros Duarte (1984) apresenta um juramento sui generis entre os povos ataros, onde usado
fogo aqui conotado com a divindade Tmu-Koma-Ria. Para concretizar este solene juramento, o ataro retira
da lareira um tio que segura numa mo e profere ento a promessa. Entre os ataros, o fogo tem papel
purificador, mas tambm associado a prticas mgicas e de feitiaria:
Porm o juramento mais solene , sem dvida, o do fogo (ihmri). A divindade tutelar deste juramento Tmu-Koma-Ria. Os
dois primeiros elementos deste composto antroponmico so implicativos de um vnculo ou parentesco que liga os que
juram deidade a que chamam av. O elemento final Ria significa vnculo, lao, e refora a ideia de compromisso tomado,
ou que se vai tomar.
Tmu-Koma-Ria divindade antropomrfica, armada de unhas muito compridas nas mos e nos ps, e de uma lngua
flamejante. nesta que se concentra toda a virtude vindicativa de Tmu-Koma-Ria que, na prtica, identificado pelo
indgena com o prprio fogo. (Duarte, 1984: 181)
Tmu-Koma-Ria personifica o fogo diablico que castiga aqueles que no praticam o bem e, por isso, pode
tambm metamorfosear-se e aparecer como morcego (QLi), em gato bravo (memamo) e em ODu (pequeno
mamfero semelhante a uma raposa). No surpreende que os ataros confundam este Diabo com o ihmri-Li
(feiticeiro) que eles receiam poder surgir em certas rvores. Certos pecadores recorrem ao mata-blobo
(sacerdote animista, adivinho, bruxo) para que este os ajude a expulsar estes maus espritos personificados
pelo Tmu-Koma-Ria, o que s conseguido atravs do fogo purificador e regenerador:
Para algum se libertar do pecado de perjrio, ter que recorrer a um mata-blolo que, para afastar o castigo merecido pelo
perjuro, levar umas folhas de knia, para as queimar em casa do pecador, j arrependido. Enquanto as folhas de knia
esto a arder, o mata-blolo dirige divindade a seguinte prece: Av, no nos castigues a ns que confessamos o pecado da
nossa boca. Permite que regresse ao nosso corpo a nossa alma. [...] Quando o fogo em que queimaram as folhas de knia se
apaga completamente, sinal de que Tmu-Koma-Ria se retirou j aplacado. (Duarte, 1984: 182)
Profundamente enraizados nas prticas religiosas e mgicas, os povos ancestrais timorenses viram no fogo e
na pedra elementos dotados de propriedades capazes de lhes causar fortuna ou infortnio. Os feiticeiros
122
ataros, os ihmri-Li, recorrem a eles nas suas actividades prestidigitadoras. O prprio vocbulo ihmri-Li
resulta de um composto de fogo + corpo, o que comprova que o ataro usou um processo de metaforizao em
que coloca o feiticeiro como um corpo quente, algum dotado de especiais poderes, capaz, tal como o fogo, de
queimar. Duarte refere mesmo um ritual de bruxaria conhecido por htu-buissole SHGUDIHLWLoR7UDWD-se de
XPDSHTXHQDSHGUDIDFHWDGDjTXDOVHDWULEXHPYLUWXGHVVHFUHWDV'XDUWH
Concluindo, pretendemos nestas pginas no apenas destacar as formas como os ancestrais timorenses viram
o processo de descoberta do fogo e as suas simbologias, mas tambm salientar as suas ntimas conexes com
a pedra e a rvore, j que estamos na presena de trs componentes maiores do imaginrio ancestral
timorense, nos quais assenta grande parte dos rituais religiosos tradicionais, mas tambm bastante inculcados
na sua literatura oral, da os qualificarmos de Sagrada Famlia.
123
124
CAPTULO XIV
O ancestral timorense percepcionou bem as mltiplas faculdades da rvore e, vivendo em perfeita comunho
com a Natureza, no admira que a coloque no panteo dos seus elementos simblicos mais destacados.
dela que retira o seu sustento dirio, os frutos de sabor tropical, as folhas e flores com propriedades
teraputicas, a lenha com que cozinha ou combate as madrugadas friorentas nas montanhas, a madeira com
que constri as casas e os barcos tradicionais (beiros) e esculpe as esttuas antropomrficas representativas
dos seus avs.
Existem em Timor mltiplas espcies arbreas, umas de onde se colhem suculentos frutos, outras de onde se
retiram belssimas flores, havendo at algumas como o caso da madre cacau (do grupo das casuarinas) que
funcionam como protectoras, por exemplo das plantas de caf. Transcrevemos de A Ilha Verde e Vermelha de
Timor estas palavras de Alberto Osrio de Castro, ilustradoras do fascnio que a esplndida e diversificada
flora timorense exerce nos malai (estrangeiros) que visitam pela primeira vez a ilha, neste caso a cidade de
Dli, mas podia ser de qualquer outro local:
Castro apresenta na passagem acima transcrita diversas espcies de rvores e plantas1, muitas delas
tambm presentes na literatura oral timorense, de que exemplo este fragmento da lenda O Prncipe
Tamarindo $V VHLV UDSDULJDV TXH RXYLUDP D FRQYHUVD SHUJXQWDUDP D %, &RP TXHP HVWiV D IDODU" %,
respondeu: Hoje eu no recolhi camaro, apenas um tamarindo entrou na minha rede. Agora, ele
1 Lus Costa no seu Dicionrio Ttum-Portugus refere que existem em Timor mais de mil plantas com caractersticas medicinais.
(cf. Costa, 2000: 35)
125
transformou-VHQXPKRPHP$VVHWHUDSDULJDVTXHULDPFDVDUFRPR3UtQFLSHWDPDULQGR*RPHV
106)
Vimos em cima que a trepadeira personagem habitual de narrativas de diversos grupos, funcionando como
canal de ligao entre mundo terreno e mundo do alto, mas tambm lugar de socorro aquando dos dilvios
primordiais:
Nunutchno, nome de trepadeira que parece significar local onde se agarrou e est numa pequena elevao dominando a
plancie que lhe fica vizinha. Neste lugar, segundo a tradio, refugiaram-se os nicos sobreviventes do Dilvio Universal,
que depois repovoaram a Terra; existem l, ainda, sepulturas da famlia do rei e a nica arequeira da regio, rvore sagrada
que todos veneram. (Rodrigues, 1962: 37-38)
Este registo de O Rei de Nri, obra do sacerdote salesiano Jos Rodrigues, reflecte bem a importncia da
rvore a arequeira, a trepadeira, o coqueiro, o sndalo2 e muitas outras espcies da rica flora timorense -
dentro do imaginrio dos povos de Timor. Ainda neste livro encontramos um mito similar ao de Ado e Eva, em
que o fruto proibido no a ma, antes o fruto de uma capulai e, onde algumas verses atribuem a
responsabilidade pelo pecado do homem a uma serpente, chamada Aca, enquanto noutros a Lua que o
persuade a comer o fruto. Como castigo Deus deu ao homem uma catana para trabalhar e o fruto ingerido
ficou-lhe atravessado na garganta entre ns, ma de Ado, para os habitantes de Nri fruto da capulai,
designado por cocol-cfu, capul-cfu ou rau-mana-cfu. O pecado do homem leva a que a trepadeira
(Ceitru), que ligava o cu terra, se parta, o que inviabiliza a comunicao entre terra e cu. (cf. Rodrigues,
1962: 41-43) Haver aqui tambm uma mesclagem entre os contos primeiros e os mitos bblicos? O prprio
Jos Rodrigues recolhe um mito do Dilvio, em que o Rei de Nri se diz descendente de No, no deixando
2 Segundo um documento de Tom Pires, Suma Oriental, (1 edio: Malaca-Goa, 1514-1515), os mercadores malaios diziam que
Deus fizera a ilha de Timor a partir de sndalos (cf. Loureiro, 1995: 76)
126
GHTXHVWLRQDU6HUiXPDWUDGLomRUHFHELGDGHPLVVLRQiULRVTXHDSRUWDUDPDHVWDLlha h quatrocentos anos?
,JQRUR5RGULJXHV
Fazendo uma leitura cuidada de O Rei de Nri, vemos que se trata de uma narrao da histria de vida do rei
e da sua famlia, do povoado, dos seus costumes e rituais, mas uma histria em que o autor protagonista
GDGDDVXDDSUR[LPDomRLQWHUHVVDGDHTXHSDVVDSRUFRQYHUWHUDRFULVWLDQLVPRRVKDELWDQWHVGH1iUL$OJXQV
dos filhos e netos so j cristos e, como parece simpatizar com a nossa doutrina, no deve estar longe o dia
em que ele abrace o CrLVWLDQLVPR 5RGULJXHV ( PDLV DGLDQWH QmR GHL[D G~YLGDV TXDQWR DR VHX
objectivo principal - FRQYHUWHU R 5HL GH 1iUL 1D PLQKD LPDJLQDomR YLD XPD VHSXOWXUD SDUD R 3HUHFRUR
diferente da dos outros por ser encimada pela Cruz em vez das cabeas de bfalo. A minha alma esperava
que ele, antes de morrer, encontrasse o caminho redentor da F Crist. (Rodrigues, 1962: 233) Cruz que se
pode aproximar da rvore enquanto madeiro cravado no cho com braos a representar os ramos.
Conta o mito que depois da chegada a Timor de quatro tribos foram plantadas trs rvores. Essas rvores
foram guardadas por trs ulun ou cabeas, todos irmos que as haviam trazido de Malaca e conservado
religiosamente durante todas as peripcias da jornada e, depois plantado no local onde a tribo respectiva
primeiro acampou. A do mais idoso dos comandantes era um gondo (na lngua ttum, ai-hali) e ficou no meio
de uma larga plancie de terra fecunda e suaves dobras. A de outro era um ai-bico, a qual foi posta a oeste
daquela, e a do mais novo, que levou a sua gente para o norte, era um ai-timo ou catimo. Assim se
constituram os reinos de Uai Hali, Uai Hico e Uai Timo cuja existncia, sobrevivendo atravs de variadas
formas, se prolongou at aos nossos dias. Quanto aos homens da quarta tribo, esses, foram instalar-se numa
montanha, beira e a norte de Uai Hali, e vieram depois de receber como liurai uma das vergnteas do mais
velho dos trs irmos, com o qual se foram concentrar em Fato-Aruin, onde fundaram um novo e poderoso
reino. (cf. Cinatti et al, 1987: 180-181)
O mito apresenta os povos timorenses como descendentes dessas primeiras tribos, desses primeiros troncos,
dessa primeira rvore genealgica. Esta ascendncia da rvore nos timorenses foi-se enraizando ao longo
dos tempos, pois tal como o homem, tambm a rvore um elemento ascendente e vertical, de
amadurecimento progressivo e duradouro. Mito que tem como fundo de verdade o facto de muitos dos grupos
tnicos timorenses serem oriundos da regio da pennsula de Malaca, a norte de Java, o que pode ser
comprovado com similitudes lingusticas, tnicas e raciais. No esquecer tambm que o reino de Uai-Hali foi
dominador de outros reinos e o seu poderio estendeu-VHDJUDQGHSDUWHGRWHUULWyULRGDLOKDGH7LPRU&RPR
decorrer do tempo o reino de Uai Hali veio a alcanar grande prestgio e hegemonia entre os povos vizinhos.
127
Aos seus reis, que se intitulavam Filhos de Deus (Maromac-Oan) atribuam-se poderes sobrenaturais; a eles
GLULJLDPRVSRYRVDVVXDVSUHFHV&LQDWWLHWDl, 1987: 12)
Gondo (ai-hali) que tambm protagonista de mitos e de lendas da regio de Ainaro, e tambm aqui, a
partir da sua plantao que se organiza, se funda e se enraza uma nova comunidade:
Com medo de que a lhe roubassem as jias, enterrou-as e sobre elas plantou um gondo que levara do Suro-Lau. Este
pegou e cresceu. Ainda hoje existe e chama-se Hli-Suro. llic [...] a gente de N-lu acompanhou Mali-Suro at Nam-
Tu-Lau e levou material suficiente para lhe fazer a casa nesse stio a casa a que, depois de pronta, deram o nome de Pu-
Cli-Sarim. Foi Mali-Suro quem plantou o enorme gondo que ainda hoje se v ao p dela. (Pascoal, 1967: 93-94)
Esse protagonismo do gondo consubstancia-se depois no dia a dia timorense, quando as suas gentes
buscam a sua sombra para descansar ou para fazer reunies comunitrias e, tratando-se de rvore sagrada,
debaixo dela que se fazem muitos dos sacrifcios e oferendas a Rai Nain (o Senhor da Terra). Sacrifcios e
rituais que so tambm extenses do mito, a sua permanente actualizao e perpetuao.
A rvore est tambm conotada com o poder terreno, pois ter muitos ps de coqueiro, de arequeira, de teca
ou de outra qualquer rvore sinnimo de domnio e riqueza. Ainda antes da restaurao da independncia
(2002) em que o sistema poltico, administrativo e religioso seguia uma ordem tradicional e aristocrtica,
assente em reinos, os senhores (rgulos ou liurais) impunham a sua ordem e poder tambm porque possuam
muitas cabeas de gado e grandes extenses de terra, muitas vezes dotadas de diversas espcies vegetais.
Alguns destes liurais guardavam uma espcie de ceptro, que no tempo colonial portugus lhes era atribudo
pelo governador portugus, havendo at uma festa para esse fim, basto conhecido por rota3, pau de madeira
intimamente conectado com a rvore, como podemos comprovar neste excerto da Lenda Katiratu:
3 A propsito de Rota (basto) usado por liurais e reglos e sua relao com poder/vassalagem, veja-se ensaio de Ricardo Roque,
Jos Celestino da Silva e o Relatrio sobre os usos e costumes de Timor, in Colquio Timor: Misses Cientficas e Antropologia
Colonial, AHU, 24 e 25 de maio de 2011, pp. 01-10.
128
Fantstica esta passagem referente a um nobre pastor, que por ter uma pequena deficincia fica incumbido de
cuidar do pastoreio do gado e que, depois de andar perdido nos mares, volta ao seu lar dotado de poder e de
riquezas, colhidas a SDUWLUGDSODQWDomRGRVHXVLPSOHVFDMDGRDVXDURWDRFHSWURUHDOFRPTXHLPS}HXPD
QRYDRUGHPMiTXHVyHOHSRGHDFHGHUDHVVDVPDUDYLOKDVDRRXURGDiUYRUHQDVFLGDGHXPVLPSOHVSDX
O ancestral timorense assimilou bem as propriedades da rvore, compreendeu que nela encontrava tudo o
que necessitava para sobreviver, e num processo de metamorfose nela se filiou. Ainda na Lenda Katiratu
podemos antever essa associao homem/planta, nascendo a vegetao a partir de carne humana, num
processo imagtico singular:
Corroborando ainda a sua supremacia, os katiratu alegam que, alm de terras, foram distribudas a tais povos carnes de
dois membros do seu prprio cl: Mau-Tchalu e Maka-Tchalu, para as semear em suas hortas e delas nasceram milharais
[...] Lanando as carnes terra, os povos constataram, maravilhados, que no s nasceu milho, mas tambm toda a
espcie de vegetao. E assim explicam e especificam a criao do mundo vegetal: as veias e as tripas transformaram-se
em aboboreiras e feijoeiros, RV RVVRV HP WXDTXHLUDV RV FDEHORV HP JDPXWL D FDEHoD HP FRFR RV RVVRV GLJLWDLV HP
EDPEXV DV UyWXODV HPVHL IUXWR SDUHFLGR FRP D FDVWDQKD RItJDGR HP FRJXPHORV D SHOH HP SLMHLUDV D EtOLV HPIHLMmR
bravo, os testculos em amendoins... (Gomes, 1972: 22)
No mundo ocidental falamos em rvore genealgica para enquadrar os nossos ascendentes e descendentes,
um tronco comum com seus ramos sempre em extenso, com novos nascimentos, mas tambm com a queda
de suas folhas, a morte inevitvel, num processo de contnua renovao. Em Timor, os seus habitantes
recorrem tambm a troncos de rvore para representar a linha ancestral, para se ligarem rvore da vida, a
uma raiz comum, como observamos at nos seus objectos simblicos com que ornamentam o corpo, de que
SURYD XPD LPDJHP GH 5X\ &LQDWWL RQGH VH SRGH OHU 5DSDULJD GH 6XDL QD FRVWD VXO HP WUDMH GH IHVWD 2
GLDGHPD UHSUHVHQWD D iUYRUHGD YLGD VtPERORUHOLJLRVRTXH SDUD RV7LPRUHQVHV HVWDEHOHFH FRPXQLFDomR
entre os trs mundos que compem o UniYHUVRFI&LQDWWLHWDO 1987: 131)
Esse enraizamento facilmente perceptvel at na organizao social das comunidades que se agrupam
PXLWDV YH]HV DR UHGRU GD iUYRUH VDJUDGD 2 SRYRDPHQWR GLVSHUVR SUHGRPLQD (P GHWHUPLQDGRV VXFRV
porm, as casas agrupam-se em densos aldeamentos e distribuem-se ao longo de caminhos de p posto que
FRQYHUJHP LUUHJXODUPHQWH SDUD RHVERoR GH FHQWUR VRFLDOGHILQLGR SHOD iUYRUH VDJUDGD&LQDWWL HW DO
55) Este fragmento de Arquitectura Timorense refere-se ao distrito de Bobonaro e os autores apresentam mais
frente (idem: 66) uma imagem da povoao de Loro-B, onde vemos claramente o ajuntamento das casas e
a presena da rvore sagrada em lugar destacado. Mas, no s no distrito de Bobonaro que a rvore
129
sagrada funciona como eixo central, volta da qual a vida comunitria, social e religiosa, se organiza. Na
maioria dos distritos, aquando da construo das habitaes vemos que os pilares centrais so colocados
com extremo cuidado, e depois at de alguns sacrifcios ou rituais, pois o timorense percepciona aqui mais do
que uma simples tarefa de sobrevivncia, antes uma forma de ligao com o sagrado, com o seu
antepassado, com o mundo do alto. Por isso, a escolha da madeira no aleatria, antes de rvores
previamente seleccionadas.
Alm destes pilares interiores das habitaes tradicionais timorenses, observamos em muitas regies paus
antropomrficos4, colocados no exterior de casas, em matas, lagoas ou em cemitrios, muitas vezes
ornamentados com chifres de bfalo. Sero estas escadas que o ligam aos seus ancestrais e aos seus
deuses? Representaes das trepadeiras de que falam os mitos? Sero certamente forma de perpetuao da
ancestralidade, forma de comunicao com o mundo do alto, com os seus antepassados.
A rvore, tal como a casa, tem entre o timorense um valor sagrado incomensurvel. eixo central csmico
que sintetiza bem a ordem natural que o homem busca incessantemente:
O tronco da rvore simboliza o gondoeiro sagrado que se erguia no centro da aldeia afundada [...] o esteio que, a meio da
lagoa, irrompe verticalmente das guas. a extremidade superior, dizem os timorenses locais, do porte principal da casa
sagrada que, outrora, se situava no centro da aldeia, moradia da comunidade e, tambm, segundo eles, eixo do mundo.
(Cinatti et al, 1987: 08-09)
Esse lugar destacado da rvore tambm facilmente perceptvel em diversas passagens de relatos
fundacionais, em que a mesma funciona como tampo, e em que os heris do combate travado entre foras
terrestres e martimas, depois do dilvio inicial devastador, ficam com a misso de plantar rvores no litoral,
fronteira entre terra e mar, a fim de estancar futuros cataclismos, de que exemplo este fragmento do mito
que tem por ttulo Bagnut3DUDTXHRPar no voltasse a invadir a Terra, Tai Leu e Mnu-Ler, Usso-Meta, e
4 Veja-se a respeito de paus antropomrficos tese de licenciatura de Francisco Gomes, Os Fataluku, 1972, pp. 60. O autor faz
referncia a estes paus, considerados objectos sagrados e chamados de eteurua, sikua e saka, objectos feitos a partir de madeira e
smbolos de longevidade, fertilidade, fora e proteco contra calamidades.
Confronte-se tambm Nordholt, The Political System of the Atoni of Timor, 1971, p. 144. O autor apresenta duas imagens de paus
antropomrficos. Numa das imagens pode ler-VH 7KH PDVFXOLQH SRVW RQ WKLV SKRWR LV WKUHH-forked, its prongs having the
aprpropriate length, though there are more WKDQWKUHHVWRQHVDWLWVEDVH
Tambm em Ruy Cinatti et al, (1987: 36)VHOr1DVKRUWDVHFXOWLYRVpYXOJDURVDJULFXOWRUHVFRORFDUHPRVai-ts, que so troncos
de madeira em forma antropomrfica e simbolizam os antepassados de linhagem. Estes cips assentam em socos de pedra soltas
VREUHRVTXDLVDQWHVGDVFROKHLWDVVHGLVS}HPDVHVSLJDVGHPLOKRRXGHDUUR]
130
Lelo-Meta, Olo-Bono e Le-Bono foram incumbidos de plantar palmeiras, piteiras e acadiros ao longo do
OLWRUDO3DVFRDO
Escarmentados, Le-Mau e os irmos resolveram separar, para sempre, a terra do mar, vedando o caminho s ondas. Para
esse fim plantaram palmeiras e fau ao longo das praias do mar-homem e do mar-mulher. Deram a essas plantas os
seguintes nomes Colo-Mau-Colo-Tanti e Balo-Mau-Balo-Ornai. Recomendaram-lhes que sussurrassem sempre que
ouvissem as ondas sussurrar. (Pascoal, 1967: 76)
Belssimo este segundo excerto, revelador da prodigiosa imaginao timorense de que Pascoal porta-voz, e
que mais parecem versos sados das penas de Sophia, Cames ou Pessoa (confronte-VHSRHPD''LQLV
de A Mensagem), pois tambm inclui figuras como a personificao ou a aliterao de forma a estabelecer
uma conexo entre mar e rvore, como se a sua intimidade fosse sinnimo de acalmia e harmonia que o
homem se esforava por manter.
A religiosidade ancestral timorense tem, normalmente, como palco uma rvore sagrada e um altar de pedra,
smbolos da criao primeira, da unio e confronto entre Terra e Cu, da regenerao perptua conotada com
a rvore e da imutabilidade e durabilidade prprias da pedra, como bem nota Elizabeth Traube:
In ritual speech, the primordial union of Heaven and Earth is evocated by the image of a mutilating collision between a rock
and a tree [...] The cosmic union redistributes the cosmos and transforms the relationship of the deities into one of
complementary opposition. Out of their union are born the parents of trees, rocks, and grasses. The ancestral trees and
grasses leave their seeds for future progeny and donate their bodies to Heaven and Earth, who use them to build the first
house. (Traube, 1986: 37)
Aquando de dilvios e invases martimas, cataclismos primeiros ab initio, rvore que recorrem as
personagens humanas dessas narrativas fundacionais, na procura de salvao de uma morte que anteviam
como certa, como observamos nesta passagem de O Dilvio na tradio de Lautm:
Outro dilvio se encarregou de os destruir. Apenas um irmo e uma irm se conseguiram salvar. Trepando, de rvore em
rvore, no mais denso das florestas, viveram longas horas de angstia, a roar com a morte que subia em seu encalo, no
tumulto das guas que cresciam. Ele refugiou-se, por fim, na copa de altssimo coqueiro. Ela segurou-se, ao lado, entre as
folhas duma esguia arequeira. As guas redemoinhavam por baixo, cada vez mais perto. A certa altura, viram, com
indescritvel espanto, duas colossais massas de gua precipitarem-se, ruidosamente, em sua direco. Gritaram, transidos
de medo, como se o seu grito pudesse despertar a compaixo dos elementos: - Agora estamos perdidos! Mas longe de se
131
submergirem, o coqueiro e a arequeira foram subindo medida que se avolumavam, numa ascenso clere, as duas ondas
gigantescas que se fundiram, numa s, sob vastssimo vu de refervente espuma. (Pascoal, 1967: 51)
Perdidos e amedrontados, os dois irmos salvam-se depois do afortunado encontro com o coqueiro e a
arequeira, rvores que nem o dilvio primordial foi capaz de destruir, antes cataclismo que realou a sua fora,
a sua ascenso milagrosa defronte das gigantes ondas.
O coqueiro e a arequeira no so, contudo, apenas simples elementos naturais presentes nos relatos
fundacionais, esto tambm fortemente inculcados no quotidiano timorense. O primeiro talvez a espcie
mais frequente nas vastas plancies, sendo dele que as crianas, jovens e idosos colhem os cocos para matar
a sede. Cocos que servem para fins medicinais e para a indstria da copra, de onde se extrai leos e que tem
depois diferentes fins (culinrios, estticos). J a arequeira pertence ao grupo das rvores sagradas, pois
dela que o nativo timorense colhe a areca (bua), fruto com o qual prepara uma masca, a que junta cal e uma
folha (malus), que leva depois boca para mascar durante praticamente todos os rituais, sacrifcios,
cerimnias importantes ou no dia a dia dos mercados e dos campos: A seguir, sobre um bgus altar circular
de pedra solta -, se h algum por perto, ou, no havendo, na base dum gondo, oferecido um sacrifcio de
areca, btel, arrR] RX PLOKR H FDUQH GXPD UpV DEDWLGD DQWHV 3DVFRDO $UHFD TXH VXUJH PXLWDV
vezes associada a btel, como podemos constatar em muitas passagens de lendas e mitos como vimos em
cima no mito -Bua sendo tambm motivo de oferta na recepo de ILJXUDV LPSRUWDQWHV (P WDPDQKD
aflio, partiram de Tuga-Rema um homem e uma mulher levando, cada qual, um cesto com uma casca de
bambu, cortada em forma de lua, e areca e btel. Tratava-se duma oferta destinada a Toro-Lhi e Leo-Dci, de
quem iam procXUDDILPGHRVDSD]LJXDU(Pascoal, 1967: 55)
Este hbito da masca est bem descrito na j referida obra A Ilha Verde e Vermelha de Timor, de Alberto
Osrio de Castro:
Homens e mulheres limam os dentes com uma pedra dura. E como os Malaios, mais que os Hindus, mascam quase
constantemente a saborosa folha picante da pimenteira Betle (Chavica betle ou Piper betle, em malaio sri, em ttum
mluss), embrulhando na folha no s, como na ndia, a cal apagada de conchas de ostras e a noz de arequeira (bu, em
ttum) seca em verde, e no como na ndia o cardamomo, o cravo, o almscar, o cate da accia arbica, mas folhas secas
de tabaco. E no se engole o sumo como na ndia. Cospe-se por onde calha. Tambm como na ndia se oferece o betle s
visitas. (Castro, 1996: 168-169)
A rvore est, como vimos, associada a muitos dos rituais ancestrais timorenses, referentes, por exemplo,
splica por boas colheitas:
132
Em Manufahi [...] durante a sementeira do milho, se oferecem ao esprito da terra (rai-lulic) alimentos que se colocam junto
da rvore ou da pedra sagrada existente na horta [...] em Viqueque espargem as culturas de milho e arroz com uma mistura
de sangue de frango e gua e depem, perante a rvore secular ou junto dos pertences dos antepassados, um pouco de
milho ou de arroz para que a colheita seja boa e os espritos dos antepassados os ajudem. (Cinatti et al, 1987: 45)
7DPEpP DTXDQGR GR QDVFLPHQWR GH EHEpVGH FODVVH QREUH H[LVWHP FRVWXPHV OLJDGRVj iUYRUH VDJUDGD$
me arranjou sete meninas de sete anos, o pai pendurou o cordo umbilical do pequeno na rvore sagrada
destinada a estes fins e uma irm do Perecoro, velhota de mais de sessenta anos, mandou apanhar um coco
SDUDDFHULPyQLD5RGULJXHVUYRUHWDPEpPUHODFLRQDGDFRPDPRUWHHRHQWHUURpQRVVHXV
ramos que ainda hoje em determinados locais, como Fatu-Makereke, se dependuram os corpos dos falecidos
DQWHV GR VHX HQWHUUDPHQWR GHILQLWLYR &LQDWWL et al, 1987: 162) Ou em Ataro, onde os mortos jazem em
IROKDVGHDFDGLUR'XUDQWH todo o tempo que esto na ruma-SHUDik o morto jaz deitado numa esteira tecida
GHIROKDVGHDFDGLURQmRSRGHVHUGHRXWURPDWHULDOFRPRVSpVSDUDRSRHQWH'XDUWH
Outra rvore llik para os timores o bambu, rvore com mltiplas utilidades, seja para fazer fogo a partir da
IULFomRGHGRLVSDXV1mRVHHQJDQDUDPSRUTXHGDtDLQVWDQWHVYLUDPXPEDPEXVHFRTXHKDYLDSHUWR>@
Ocorreu-lhes a ideia de friccion-lo com outro bambu, tambm seco, a ver se levantavam chamas. Foram bem
sucedidos. Assaram, logo, o cunbli 3DVFRDO %DPEX que surge, tambm, como oferenda de
'HXVDR+RPHPSDUDTXHVHFDVVHDWHUUDDTXDQGRGRVSULPHLURVGLO~YLRV'HXVGHX-lhe casca de btun, de
bambu bravo, de bambu manso e de faflu para fazer um laftic destinado a receber terra do cu para secar a
iJXD3DVFRDO
Encontramos em Timor Ritos e Mitos Ataros, de Jorge Barros Duarte (1984), um mito ligado ao topnimo
Luli, referente a um dos montes da montanha Manu-Coco. Segundo o mito, trs irmos (Makddi, Manrni e
Makli) mataram, quando faziam uma caada, um ODu (pequeno mamfero semelhante a uma raposa). Para o
cozinhar cortaram um bambu, tendo ficado surpreendidos quando encontraram dentro deste uma criana que
lhes disse que aquele bambu cortado era llik (sagrado) e que, por isso, no deveria ser cortado. Manrni, no
entanto, no se importou com essa admoestao da criana de nome Tmu-Koma e continuou a cortar
bambu. Ento a criana voltou a aparecer aos irmos, dizendo-OKHVUma vez que vs destrustes minha me
HPHXSDLWHQKRTXHPHLUHPERUDGDTXL9ROWRSDUDGRQGHYLP'XDUWH'RPLWRUHVWDRIDFWRGR
monte em que se encontrava o bambual (ainda hoje existente) se chamar llik (sagrado) e um rito expiatrio
para aqueles que como Manrni ousarem cortar a bambu. Duarte associa o facto de o lugar ser hoje
SUDWLFDPHQWH GHVDELWDGR D HVVH SHFDGR 2 IDFWR GH D QDUUDWLYD OHQGiULD DWULEXLU D 0DQU{QL R VDFULOpJLR GH
133
haver cortado bambus do bambual sagrado afigura-se ser um processo mental, para explicar a quase extino
do outrora suco de ManrQLKRMHSUDWLFDPHQWHUHGX]LGRDXPDLQVLJQLILFDQWHSRYRDomR'XDUWH
Mais uma vez fica provado que o pecado do homem, a quebra de interditos, a violao de normas da
Natureza resulta numa nova ordem, num estabelecer de novas regras, despoletando o nascimento do llik
(sagrado). Desrespeito neste caso para com a rvore de bambu, pai do menino e ascendente das gentes do
suco de Manrni e que passa assim classe de totem e de llik. O homem timorense na sua nsia de
explicao, que se traduz na sua interpretao mtica dos fenmenos da natureza, busca permanentemente
uma imerso no sagrado, procurando assim o favor dos deuses e um enquadramento harmonioso no cosmos
que o rodeia.
Podemos concluir este captulo, dizendo que a sacralidade da rvore entre os povos timorenses resulta no
s das suas mltiplas finalidades, mas tambm do facto do maubere ver nela um smbolo ascensional
privilegiado, de conexo entre os trs mundos que ela consegue ocupar com suas razes, (o mundo
subterrneo), e com seu tronco e ramos sempre em crescimento fazendo a ligao entre mundo terreno e
mundo do alto (veja-se trepadeira). Para alm destas caractersticas, no esquecer que a rvore consegue
concomitantemente renovar-se, mas dada a sua durabilidade, o homem timorense v nela o nico elemento
capaz de representar o seu tronco ancestral e, por isso, trata de a antropomorfizar, seja nos pilares das casas,
seja nos ai-ts, onde faz os seus sacrifcios e rituais. No admira assim, que seja expressamente proibido
FRUWDUUDPRVRXWURQFRVGHVWDViUYRUHVVDJUDGDVVRESHQDGHVHVRIUHUDLUDGRVGHXVHV$ViUYRUHVQHVWD
colina, que chamam llik (sagrada) (fig. 5), morrem de velhice. Apenas para poderem abrir um pequeno
carreiro que os leve ao templozinho, lcito aos nativos desviar com cuidado os ramos do arvoredo e as
trepadeiras, evitando parti-ORV&DPSRV$UHOLJLRVLGDGHDQFHVWUDOWLPRUHQVHWHPQDiUYRUHDVVLP
como na pedra, os seus smbolos mais fecundos.
com eles que o timorense constri os seus templos, espaos de ritual, de imerso no sagrado, de
comunicao com o mundo extraterreno5.
5 Veja-se em Timor Ritos e Mitos Ataros, de Jorge Barros Duarte (1984), a respeito destes santurios o seguinte comentrio:
$EULUDSRUta expresso ritual que quer dizer entrar em comunicao com o mundo extraterreno. Note-se que se chama porta
ao intervalo entre duas rvores de grande porte, que se erguem entrada do recinto sagrado de Mau-Lele. por essa porta que
nele se penetra (Fig. 7).
134
CAPTULO XV
SIMBOLOGIA E IDENTIDADE
A identidade de um povo, antes de ser construo poltica permanentemente inacabada, sobretudo reflexo da
sua cultura, do seu imaginrio e das suas manifestaes sociais, culturais e religiosas que fazem com que
determinado povo e cultura se distingam dos demais. No caso de Timor-Leste essa identidade1 consubstancia-
se e enraza-se numa cultura ancestral marcada por uma grande multiplicidade de formas regionais, levando
alguns at feliz expresso de mosaico2 cultural. Da ser prefervel, talvez, falar em culturas e imaginrios dos
variados grupos tnicos que se expressam numa grande diversidade e riqueza de expresses artsticas. No
procuraremos destacar essas diferenas, antes encontrar elementos comuns que se traduzem, certo, em
vrias razes que desaguam num nico tronco, em formas artsticas que representam a identidade nacional
timorense.
1R GLVFXUVR GH WRPDGD GH SRVVH HP GH 0DLR GH ;DQDQD *XVPmR DILUPD 4XLVHPRV VHU QyV
mesmos, quisemos orgulhar-nos de ser ns prprios, um Povo e uma Nao. Hoje somos efectivamente o que
quisemos seU(VVHRUJXOKRpVHQWLGRYLYLGRHHVSHOKDGRQXPDFXOWXUDDQFHVWUDOTXHIRLVHQGRSUHVHUYDGD
em continuum atravs de um secretismo mantido tambm como forma de fechamento, de procura de
eternizao, de defesa para que no houvesse contaminao externa. S assim foi possvel manter rituais,
costumes e artes to antigos que se perdem no tempo, que mantm a sua originalidade e pureza, j que,
mesmo sofrendo mais de quatrocentos anos de colonizao, estes povos foram defendendo as suas razes
ancestrais, o seu territrio, as suas montanhas, as suas grutas que escondem pinturas rupestres dos seus
primeiros avs, as suas rvores genealgicas, as suas oraes, cnticos guerreiros, lendas e mitos. Foi esta
preservao, este cuidar das razes ancestrais, este culto e orgulho de pertena a determinado grupo que
erigiu tambm a identidade timorense.
1 So poucos os estudos sobre a identidade timorense e a interessante temtica merecia j um trabalho mais aprofundado e
abrangente. Veja-se a propsito o ensaio de Jos Mattoso (2001) 6REUH D ,GHQWLGDGH GH7LPRU /RURVDH Cames Revista de
Letras e Culturas Lusfonas, n 14. Jul-Set 2001. Lisboa: Instituto Cames. Confronte-se tambm trabalho de Geoffrey Gunn (2001)
/tQJXD H &XOWXUD QD &RQVWUXomR GD ,GHQWLGDGH GH 7LPRU-/HVWH Cames Revista de Letras e Culturas Lusfonas, n 14, Jul-Set
2001. Lisboa: Instituto Cames.
135
Nestas linhas buscaremos encontrar elementos de conexo entre as formas artsticas identitrias timorenses, o
seu artesanato, pintura, escultura ou ourivesaria3 com a sua literatura oral. Trata-se de perceber o que est na
gnese das expresses artsticas, do patrimnio cultural material, de compreender a sacralidade que
determinados objectos tm entre os timorenses. Para atingirmos os nossos propsitos recorremos ao
patrimnio imaterial, ou melhor, imergimos no extenso ba da literatura timorense, particularmente nas lendas e
mitos, tentando encontrar a a chave dessa sacralidade, desse mundo llik, pois entendemos que as
representaes artsticas timorenses nascem num imaginrio ancestral de que a literatura oral retrato
privilegiado, como bem notou Cinatti:
E assim por diante, numa sucesso cognitiva, em que a linguagem visual se transforma em linguagem de signos e smbolos.
O artfice timorense funciona como repositrio e veculo de uma cultura especificamente afeioada ao esquema mental do
grupo a que pertence. (Cinatti, 1987: 66)
Se fizermos uma incurso num mercado tradicional de artesanato veremos esteiras, tais (panos tradicionais),
surik (espadas), belak (espcie de grande medalho em forma de lua), kaibauk (diadema em forma de
crescente lunar) keke (pulseira grossa), entre outros. Estes objectos tradicionais so tambm usados no
chamado barlaque4- troca de presentes entre as famlias dos noivos.
Tambm as uma llik (casas sagradas) guardam objectos llik espadas, objectos em ouro ou prata, pedras,
tais que foram sendo preservados de gerao em gerao e que representam determinado cl ou famlia, so
forma material identitria, expresso que garante o perpetuar da cultura dos avs, no os deixando morrer:
A uma lulic uma das casas mais importantes de qualquer localidade de Timor. Os objectos nela depositados so os
testemunhos materiais da memria histrica do local e dos seus habitantes e na qual se entrelaa a proteco espiritual.
(Oliveira, 2003: 46)
Alis h famlias de origem aristocrtica que possuem, tambm, este gnero de relquias antigas, muitas vezes,
extremamente valiosas, pois, no passado, possui-las era sinnimo de poder, riqueza e nobrezD8P KRPHP
nobre, bem como um guerreiro, deviam exibir esse estatuto atravs das jias usadas no corpo. Na cabea
usaria um kaebauk, um diadema em forma de crescente, no peito um ou mais belak, um disco metlico, nos
3 Em 1522, o italiano Antnio Francisco Antnio Pigafetta, cronista da Armada de Ferno Magalhes, descreveu o encontro com os
chefes nativos de Amaban e Balib (Timor Ocidental), referindo que as mulheres andavam nuas e que possuam adornos e amuletos
de ouro e bronze e que os homens exibiam ainda mais jias de ouro que as mulheres. (cf. Carlos Ximenes Belo, 2013, Os Antigos
Reinos de Timor-Leste, Porto: Porto Editora).
4 Veja-VHDHVWHUHVSHLWRDUWLJRGH9LFHQWH3DXOLQR'DFRPSRVLomRPXOWLpWQLFDGH7LPRU-/HVWH
136
braos braceletes e manilhas de prata2OLYHLUD1RHQWDQWRPXLWRGHVWHLPSRUWDQWHSDWULPyQLRIRL
adquirido por militares e funcionrios portugueses, indonsios e australianos 5. Cinatti afirma que, em 1962:
a Casa de Timor exibia um variado mostrurio: panos de Ocussi, cestaria (as disputadas cigarreiras), objectos em corno de
bfalo e em lato (o crocodilo voador de Viquque, as figurinhas de Lolotoi), ourivesaria de Atsabe e de Suai, barcos de
tartaruga e madeira made in Tutuala e Atauro, pentes-diadema de Bazar Tete. (Cinatti, 1987: 15)
Muitas destas peas de artesanato podem, agora, ser vistas nos Museus do Oriente, em Lisboa, das
Civilizaes Asiticas, em Singapura, em museus australianos ou em lojas de antiguidades indonsias.
Haver alguma relao entre essa panplia de objectos ancestrais e alguns elementos das narrativas orais? As
lendas e contos timorenses apresentam, muitas vezes, alguns desses objectos por exemplo, espadas - como
protagonistas de batalhas ancestrais, enquanto aliadas do homem na sua luta pela sobrevivncia, no seu
combate contra cataclismos, mas, tambm elementos figurativos ou decorativos veja-se casos de penas de
galo ou plos de animais, cabritos ou ces, a ttulo de exemplo. Importa pois perceber essa ntima relao, j
que essa conexo no surgir do acaso, antes fruto de um imaginrio sempre procura de explicaes para a
origem das coisas, pronto a fantasiar e a revelar o porqu de certos fenmenos ou acontecimentos. Estaremos
perante um processo de simbiose, de articulao harmnica entre as artes ourivesaria, escultura, pintura e
literatura - que agrega toda essa simbologia, que expresso e resultado de um imaginrio que pode ser
delimitado e marcado enquanto timorense? Ou sero a pintura e a escultura artes retrato de uma literatura oral
primeira onde surgem as estrias, as narraes que tm como protagonistas esses seres, paisagens e objectos
llik? Ou como destacou Paulino, no seu resumo da comunicao apresentada na Universidade de Timor
/RURVDHHP$JRVWRGH:
neste sentido que, todos os objectos lulic, os artesanatos e paisagem timorenses foram baptizados como artes ou obras de
artes. No entanto, haver uma escultura, que merece este nome, caracterizadamente timorense? No pode hesitar a dizer
que sim, e aceita controvrsia serena se algum, mais entendido, pretende convencer o contrrio, por isso, no se pode
entender apenas a imaginria que comanda a escultura timorense, nem ossatura das obras que a evidenciam, sem se
conhecerem os lulic que influenciam a alma timorense, a intensidade passional das crenas populares e os seus ritos
agrrios e fnebres. (Paulino, 2014, Agosto)
5 Confronte-se magnfica edio de Joanna Barrkman (s/d), Husi bei ala Timor sira nia liman From the hands of our ancestors Arte
no artesanatu Timor-Leste The art and craft of Timor-Leste. Museum and Art Gallery Northern Territory, Austrlia, in partership with
Direco Nacional da Cultura, Repblica Democrtica de Timor-Leste, onde podem ser vistas imagens das artes e artesanato
timorenses.
137
Elementos que so a porta que deve ser aberta para se compreender a cultura e identidade timorenses.
Elementos que no tm apenas um carcter sagrado, sendo, tambm objectos de uso prtico e frequente,
ID]HQGR SDUWH GR TXRWLGLDQR GRV WLPRUHQVHV H GDV VXDV DFWLYLGDGHV GRPpVWLFDV DJUtFRODV H O~GLFDV RV
timorenses so artistas artfices e a sua arte no meramente decorativa, mas uma aplicao que tem uma
IXQomR SUiWLFD &LQDWWL 7UDWDUHPRV GH DSUHVHQWDU DOJXQV GHVVHV HOHPHQWRV ID]HQGR D VXD
contextualizao social, analisando o seu impacto cultural, tendo por alicerces os relatos orais onde eles esto
presentes. No fundo h aqui um imaginrio comum que o grande alimentador da produo artstica traduzida
em imagens de astros, rvores, crocodilos, bfalos ou aves na tecelagem, ourivesaria, pintura ou escultura e
que, concomitantemente, desfia lendas e mitos que agregam tambm esses mesmos elementos ou motivos
como personagens. Narrativas e objectos que pretendem, mais do que deixar na memria dos vivos as
tradies dos antepassados, criar uma corrente que ligue ininterruptamente esses dois mundos:
Mas a memria oral do passado distante complementada por memrias fsicas, objectos que relembram a presena
constante dos espritos antepassados na comunidade. Estes denominam-se objectos lulic que, numa traduo simples,
podemos designar como sagrado, algo em contacto com o outro mundo, mas que pode influenciar decisivamente a vida no
mundo real. (Oliveira, 2003: 45)
A Memria individual e colectiva permanentemente alimentada por esse imaginrio ancestral, que se
reactualiza quotidianamente, recorrendo, para tal, a expresses literrias e artsticas, veculos simblicos
privilegiados, imagens identitrias de determinada comunidade ou cl. Memria que tem nas artes plsticas, no
artesanato e na literatura oral os seus guardies, imagtica carregada de animais como o galo, o bfalo ou o
crocodilo, de rvores llik ou de astros, elementos figurativos presentes em peas de artes como a ourivesaria,
a escultura ou a pintura, elementos que o homem timorense usa no vesturio, na decorao, na arquitectura ou
aquando de rituais ligados ao sagrado, mas tambm na dana ou em actos cerimoniais. Objectos ou peas de
ornamentao reveladores de um orgulho muito prprio em pertencer a determinado grupo, em descender da
Lua e do Sol, da guia, do crocodilo, ou do gondo. Objectos a que daremos especial ateno nas prximas
linhas. Objectos, marcas materiais, como o blak, o kaibauk, as espadas ou o tais, que encontramos tambm
no lendrio fundacional, havendo assim uma confluncia de elementos simblicos que podemos considerar,
deste modo, marcadamente, identitrios.
138
CAPTULO XVI
O tais um tecido tradicional timorense feito a partir de fios de algodo de variadas cores e que comporta
diferentes elementos (bfalos, galos, crocodilos, rvores, figuras antropomrficas, entre outros), sendo
fabricado de forma manual por mulheres, que recorrem a um tosco tear, para levar a cabo uma tarefa que se
pode prolongar durante um ms. Os timorenses apreciam muitssimo estes panos com cerca de dois metros de
comprimento, pois consideram-nos como marca identitria quer se trate de tais enquanto vestimenta masculina
ou feminina, ou elemento decorativo de mesas e de paredes. Tais aqui enquanto objecto usual a que se recorre
no dia a dia, mas que tambm pano quadro que passa de gerao em gerao, muitas vezes guardado
religiosamente, onde o timorense escreve a sua Histria1 e traa os fios da sua identidade, ou nas palavras de
6HL[DVpDSHOH dos antepassados que continuamente se tece para cobrir os vivos, para os ligar em aliana,
HDWpSDUDID]HUDYH]GHOHV6HL[DV, 2006: 15)
Conta a lenda2 que a filha Makasae3 foi a primeira mulher a ter conhecimento de como fazer tais. Esta
conheceu e casou com um rapaz da tribo de Samalau4. O casal teve trs filhos, duas filhas e um filho e viveu
feliz. A me fazia os tais de forma tradicional, colocando flores de algodo numa caarola e proibiu as filhas de
a observarem enquanto trabalhava. Ora, certo dia, a filha mais velha, no resistindo curiosidade de ver o que
fazia, s escondidas, a sua me, espreitou por um buraco e desvendou o segredo. A me, tendo conhecimento
do pecado da filha, entregou-OKH XPD FDL[D GH WHFLGRV QXPD FDL[D 'DUH$VVD H GLVVH-OKH - Filha, tu no
1 Em A Peregrinao de Enmanuel Jhesus SRGHPRVOHU$FROHFomRGHWDLV os panos tradicionais timorenses no tinha apenas
um valor museolgico incalculvel. A coleco era, tambm, o registo mecanogrfico do genocdio: milhares de tais, com milhares de
nomes, metodicamente escritos, alinhados, acumulados, salvos do esquecimento.
Durante duas dcadas, as nossas mulheres receberam ordens da liderana para fazer algo mais do que chorar: a instruo era para
WHFHUHPRQRPHGRVHXFKRURHVFUHYHQGRQRWHDUDUHGDFomRGRVHXOXWR0HQGHV
2 Confronte-se Lendas e outras histrias de Timor (recolha e organizao de Maria Cristiana Casimiro (2007) (lenda recolhida por
Irfed, 2001/2002)
3 O vocbulo makasae diz respeito ao grupo tnico e sua lngua localizado geograficamente nos distritos de Baucau e Viqueque,
regio leste da ilha de Timor.
4 No texto publicado surge o nome Samalalu. No entanto, em conversa com os nossos formandos da regio de Baucau, foi-nos dito
que este topnimo no existe, devendo, possivelmente, tratar-se de Samalale.
139
respeitaste as minhas palavras. Por isso, durante 1000 anos, levar sempre muito tempo para tecer um Tais. O
processo tornar-vos- loucas de dor e de pena: as vossas ndegas sofrero demais, as vossas mos fortes
ficaro cansadssimas. A filha que tomar conta do meu nome ser capaz de fabricar Tais, a outra no poder.
O filho s poder encomendar ou comprar Tais. Depois, vocs podero fazer o que eu fiz: trabalhar muito para
fabricar Tais FRPDVPmRV1RILQDOHODGHL[RXDVILOKDVHRILOKRHWRUQRX-se a Deusa dos Tais. Ainda hoje, os
descendentes de Samalau acreditam nessa deusa. Quando fazem um Tais, eles agradecem deusa, com
sacrifcio de animais: um frango e uma galinha de cor branca ou vermelha.
O pedao narrativo apresentado revela-nos a origem do processo de fabricao dos tais entre o universo
imaginrio makasae. Paralelamente, constatamos um secretismo volta de um processo que interrompido
por uma filha que no resiste curiosidade, pecando e violando um segredo, um espao sagrado. Mas essa
falta, essa revelao e consequente quebra de interdito motivar muito sofrimento para si e para aquelas que
ousam aventurar-se na longa e tormentosa viagem que fazer um tais. Aferimos tambm que a feitura do tais
s poder ser executada por mulheres que respeitem esse segredo, essa tcnica ancestral, esse ritual que
dever ser preservado pelas descendentes da Deusa Makasae.
Os turistas estrangeiros5 que compram tais nos mercados de Dli desconhecem por certo esta narrativa, este
relato que desvenda um segredo milenar de como conseguir essa preciosidade, esse tesouro maubere que o
tais. Mas este conto abre uma janela para o imaginrio timorense e, concomitantemente, explica o motivo pelo
qual os timorenses consideram o tais como seu maior representante identitrio cultural, a sua marca distintiva
de que muito se orgulham e que tudo fazem para manter, quer no processo de elaborao quer nas cores e
motivos. Tambm por isso gostam de os oferecer aos estrangeiros como prova de considerao, respeito ou
agradecimento. Tambm por isso o usam no barlaque como smbolo valioso de determinado cl ou famlia,
oferecido pela famlia da noiva famlia do noivo, corrente ou elemento de ligao de uma nova famlia que se
IRUPDFRPRFDVDPHQWRRtis constitui um objecto obrigatrio da prenda com que a famlia da noiva retribui o
GRWHGDGRSHODIDPtOLDGRQRLYR3DXOLQR2IHUHQGDRXULWXDOTXHHQJUDQGHFHHYDORUL]DR tais, que
deixa de ser apenas um simples pano ou tecido, para se cobrir e enriquecer de valor simblico que marca uma
data especial, o dia em que duas famlias ou cls se uniram, o dia em que se fundou um novo ramo, em que se
estendeu a rvore genealgica ancestral. Tais usados tambm em rituais ligados ao nascimento e morte,
elemento sempre presente no quotidiano dos timorenses seja nas actividades mais domsticas onde so
5 Os tais VmRXPSURGXWRGHDUWHVDQDWRTXHRVWXULVWDVJRVWDPGHFRPSUDUFRPRUHFRUGDomRGDVXDSDVVDJHPSHORWHUULWyULRRWDLV
um produto nacional de Timor-/HVWH TXH DFWXDOPHQWH HVWi QD PRGD SDUD DTXHOHV TXH SHOD SULPHLUD YH] YLVLWDP R WHUULWyULR
(Paulino, 2013: 124)
140
usados os panos de menos valor, seja em actos cerimoniais em que actuam os tais melhor confeccionados e
mais estimados:
A produo de panos (tt.: tais) uma actividade econmica relevante no contexto familiar, a grande maioria da produo
posta a circular no mercado em troca de outros bens necessrios, outra parte guardada, sendo considerada como
patrimnio da linhagem necessrio para as trocas rituais em cerimnias de aliana, casamento, nascimento e morte. S os
panos mais gastos e mais pobres artisticamente so usados no quotidiano. Nas zonas rurais, cada timorense guardava os
seus panos favoritos para as ocasies solenes e tambm para a sua mortalha, pois no era conveniente surgir mal vestido
diante dos antepassados. (Oliveira, 2003: 51)
Tais que congregam nos seus motivos animais como galos, crocodilos, bfalos, rvores, tambm eles smbolos
representativos do imaginrio timorense, elementos que, como vimos, so personagens e protagonistas dos
relatos orais. Tais diferentes em cada um dos grupos tnicos que povoam o territrio, a funcionar como marcos
diferenciadores, painis ou quadros onde o timorense pintou e continua a pintar a sua histria e identidade.
A origem do topnimo Lautem6 poder, tambm, ser a chave para se perceber como surgiram os tais entre os
povos timorenses. Segundo o mito, alguns dos povos que primeiro chegaram zona leste de Timor, os
Notcharu assim como os Naija quando aportaram, encontraram uma terra hmida e enlameada, resultado
de dilvios e cataclismos. Como estavam cansados da longa viagem empreendida, os avs estenderam e
sentaram-se numa esteira, que teria secado a terra molhada, da a explicao para o topnimo Lautchenu (lau,
pano + tchenu, rvore de onde se extraem fibras). Ainda segundo a lenda esses povos construram as
primeiras povoaes (casas) na regio costeira da ponta leste da ilha onde aportaram e se deu o milagre.
Lautchenu que por corrupo portuguesa d origem ao topnimo actual Lautem, nome por que conhecido o
distrito mais a leste de Timor e que resulta da evoluo lexical e semntica do vocbulo
(Lautchenu>Lauteinu>Lautei).
Antnio de Almeida7 sugere, tambm, que o topnimo Lautem ter origem nos vocbulos lau (pano) e tei
(sagrado), o pano em que se sentaram os primeiros avs e que conseguiu secar a terra da a sua sacralidade
de que nos fala o mito enunciado.
6 Confronte-se Gomes, 1972: 169-172
7 2V 1RWFKiUX FRQVWLWXtDP XP GRV FOmV TXH HP WHPSRV UHPRWRV GHVHPEDUFRX HP 2co Rei Rei aps os barcos que os
transportavam se terem despedaado contra os rochedos do litoral. Foram salvos e deram a volta ilha de Timor, montados num
jacar; esta gente diz ter sido a primeira a chegar a Lautem quando a terra surgiu do mar e ainda estava lamacenta. Ao aportarem,
graas a mltiplas e fervorosas oraes que recitaram, o terreno em que se sentaram sobre pano sagrado, secou, ficando firme como
DJRUD$OPHLGD
141
Curiosamente, encontramos vrios topnimos dessa regio a partir do termo Lau, como Lau-Sepu, Naija-Lau,
Serelau ou Lautara tambm conhecido por Laurara (lau, terra + ara, origem), povoao do antigo reino
sagrado, porque primeiro, de Nri.
Essa esteira primeira onde se sentaram os avs, e que imps o nome terra por ela tocado, que est na
origem da confeco dos panos tradicionais, pois no tendo conhecimento de como fiar algodo, os povos
primitivos faziam os seus panos a partir da rvore tchenu, de onde extraiam fibras8. Era comum homens e
mulheres usarem trajes feitos a partir de cascas de rvores, j que a tecelagem considerada uma actividade
recente:
Ainda hoje os povos timorenses usam estas esteiras para se sentar, dormir, fazer inmeros rituais, comer
iguarias e at fazendo delas mortalhas com que embrulham os mortos.
8 Encontramos no j referenciado livro Husi bei ala Timor sira nia liman From the hands of our ancestors, 2007, pgina 68, um
exemplar de tais feto (vestimenta tradicional de mulher). A acompanhar esse exemplar da regio de Com, Lautem, est a seguinte
LQVFULomR7KHSURFHVVRIPDNLQJEDUNFORWKRFFXUUHGQHDUa natural water source. The bark was cut and stripped from the felled tree
and then soaked. Once softened, the bark was hand-beaten repeatedly until the fibres were pliable.This rare bark tubeskirt consists of
four bark panels made from the para wele tree, stiched together with handspun string. From Lautem, this tais para wele (Fataluku
language) is the only surviving textile-like object from the pr-independence era in the National Collection of Timor.
142
CAPTULO XVII
Abundam as referncias ao carcter belicoso dos timorenses. Vrios registos escritos mostram-nos uma
ocupao portuguesa da ilha feita revelia de muitos chefes nativos, sendo muitas as revoltas de que so
prova a Guerra dos Doidos1 ou a Guerra de Manufahi2. Ocupao e administrao que s foi possvel com um
sistema de alianas com muitos dos chefes (liurais e datos) locais, os quais obtinham em troca de fidelidade ao
rei portugus o ttulo nobilirquico de Dom e as patentes militares de brigadeiro, coronel ou tenente-coronel:
No que diz respeito aos quatrocentos e tal anos de luta entre a Coroa e o reino, podemos dizer que os portugueses ficaram a
dever a posio conquistada sua habilidade para cimentar alianas e para impor um sentido de aliana partilhada entre
aliados inconstantes. As recompensas e a concesso de graus honorficos contriburam para criar uma identidade lusitana
imaginria [...] (Gunn, 2001: 21)
Guerras no s contra o ocupante portugus, mas na maioria dos casos entre reinos nativos que procuravam
estender os seus domnios e influncia. A pacificao da ilha nunca foi totalmente conseguida, se pensarmos
que, mesmo depois da sada dos militares japoneses, aquando do final da 2 Guerra Mundial, aconteceram
revoltas ou insurreies (veja-se caso da revolta ocorrida na regio de Viqueque, em 1959 3).
As casas sagradas (uma llik) conservam muitos trofus de guerra, sendo as espadas talvez o mais frequente.
Estas espadas representam, por vezes, o incio da formao de determinado cl ou, noutros casos, uma
aliana entre duas famlias, podendo tambm ser vestgio documental de uma batalha onde foram cortadas
1 Rebelio que ocorreu na regio de Viqueque, no reino de Luca, corria o ano de 1777. (cf. Belo, 2013: 236)
2 Rebelio encabeada por D. Boaventura, rgulo de Manufahi, nos anos de 1911-1912, o qual se revoltou contra a administrao
portuguesa por ter de pagar elevadas taxas (fintas). Revolta considerada um marco na Histria de Timor-Leste, j que assinalada
por muitos como o incio da revolta contra o colonialismo, etapa crucial no que considerado como o nascimento (embrio) dum
sentimento de identidade e de nacionalismo. A derrota de D. Boaventura e dos seus aliados s mos das autoridades portuguesas
(aliadas a alguns chefes timorenses) no deixou de o elevar condio de heri nacional pelas razes enunciadas. (cf. Belo, 2013:
203)
3 Veja-VH D SURSyVLWR HQVDLR GH *HRIIUH\ & *XQQ ([FDYDWLQJ the Future in East Timor Revisiting the Viqueque (East Timor)
5HEHOOLRQ RI LQ Diversidade Cultural na Construo da Nao e do Estado em Timor-Leste, Paulo Castro Seixas e Aone
Engelenhoven (orgs) Porto: Universidade Fernando Pessoa, 2006, pp. 27-53.
143
cabeas. Nestes casos as espadas s podem ser tocadas pelos O~OLNQDin (sacerdotes ou senhores sagrados),
os quais as usam em alguns dos rituais religiosos ligados s colheitas ou sementeiras:
S o llic-QDin lhes pode tocar. S ele ou o seu legtimo representante as usam na guerra. Nas vsperas da colheita do
milho, o O~OLF Qiin oferece s espadas as primeiras maarocas apanhadas na horta maarocas ligadas, ainda, s sete
hastes que o prprio O~OLFQiin arrancou sem as desfolhar ou partir a pancula. Carne, areca e btel completam a oferenda.
Antes desta cerimnia nenhum gentio se atreve a colher milho ou a com-lo. (Pascoal, 1967: 68)
Espadas aqui conotadas com a fertilidade, smbolo solar, em que a lmina usada para cortar e purificar,
estabelecer a criao de um novo tempo e poder. Encontramos uma lenda da ilha de Ataro em que a lmina
de uma espada apresenta um sulco longitudinal a marcar a diviso existente entre os povos Makddi e
Manrni. Segundo a Lenda dos Trs Irmos4, moravam, em tempos idos, na ilha de Ataro, os irmos Makddi,
Makli e Manrni. Este ltimo ter vendido uma parte da ilha (depois chamada de Beloi e Bikli) gente da ilha
de Lira, tendo recebido em troca um grande gongo5. O seu irmo ficou descontente com o negcio, mas nada
pode fazer para o desfazer. Resolveu, ento, comprar o gongo de seu irmo, dando-lhe em troca uma espada
sagrada (pi lelli). A lmina desta espada apresentava uma marca longitudinal, que simbolizava um veio de
gua a separar os povos dos sucos Makddi e Manrni, marcando a partir da uma diviso e antagonismo entre
esses povos. Povos que falavam a mesma lngua, passaram a falar idiomas distintos, deixando mesmo de
haver qualquer tipo de intercmbio e sendo proibidos os casamentos entre pessoas desses sucos. Como prova
deste relato resta a espada pi lelli, guardada religiosamente na casa sagrada de Mnroni, num lugar
chamado Pitau. Quanto ao gongo sagrado, pertencente a Makddi protegido na casa lelli de Rata.
O relato mostra a espada pi lelli enquanto elemento material justificativo de rivalidades ancestrais de sucos
vizinhos. Espada com lmina apresentando sulco longitudinal a assinalar essa fronteira, essa guerra entre
irmos originada pelo pecado e cobia de um deles. A troca do gongo pela espada entre Manrni e Makddi
marca tambm essa falta irreparvel (venda da terra nativa), registando o orgulho e honra feridos e o
despoletar de um conflito que se eterniza e se faz questo de sobrevalorizar eram irmos, faziam parte do
mesmo tronco, mas o pecado de um deles origina dois ramos, duas culturas e duas lnguas distintas.
4 Confronte-se Duarte, 1984: 215-216
5 2VJRQJRVVmRLQVWUXPHQWRLPSRUWDQWHGDP~VLFDHGDQoDWUDGLFLRQDLVWLPRUHQVHV2VLQVWUXPHQWRVPDLVYXOJDUHVVmRRVJRQJRV
(mais conhecidos em Timor por tants) e os tambores [...] As danas mais vulgares em todo o territrio so a tebe e o tebedai [...] O
tebedai , pelo contrrio, ritmado por gongos e tambRUHV7KRPD]-292)
144
Espadas smbolo ascensional, tal como a rvore e a montanha, o que as liga com o sagrado, com a subida ou
aproximao aos deuses. Espadas empunhadas por heris6 que caem sobre o inimigo originando a sua queda,
a sua destruio, por isso, smbolo de poder, de fora e de virilidade:
Os smbolos ascensionais aparecem-nos marcados pela preocupao da reconquista da potncia perdida, de um tnus
degradado pela queda. Essa reconquista pode manifestar-se de trs maneiras muito prximas, ligadas por numerosos
smbolos ambguos e intermedirios: pode ser ascenso ou ereco rumo a um espao metafsico, para alm do tempo, de
que a verticalidade da escada, dos btilos e das montanhas sagradas o smbolo mais corrente. (Durand, 2002: 145)
Espadas que se vulgarizaram e so agora vendidas aos turistas em diversos mercados da ilha e que
apresentam, muitas vezes, plos de cavalo RX GH RXWUR DQLPDO QR FDER 1R SXQKR GH DOJXPDV S}HP XPD
franja de crinas de cavalo, pintadas de YHUPHOKR3DVFRDO
Em alguns relatos orais encontramos referncias a espadas enquanto personagens protagonistas de combates
ancestrais, funcionando como aliadas especiais dos homens, das foras terrestres que se opunham ao avano
das ondas. Espadas tributo dos deus Sol que, ao ver o homem em apuros, lhe envia pedaos de ferro e um
martelo (bagnut, em lngua manbae) para que ele assim as pudesse fabricar:
Precisamente quando contavam com uma morte certa, caram-lhes, aos ps, vindos do sol, um bloco de ferro e um bagnut.
Voltou-lhes a coragem. Agora, podiam armar-se contra as ondas e obrig-las a recuar. Qui-S e Cli-S, que eram ferreiros,
tinham levado consigo um fole. Foi o que valeu, porque fizeram, mais depressa do que seria de esperar, as nove espadas
seguintes... (Pascoal, 1967: 65)
Espadas que personificam heris que tombaram em combate, adquirindo desta forma natureza sagrada, trofu
de guerra em que o novo possuidor se destacou, cabendo aos seus descendentes a sua preservao e
venerao. Nestes casos as espadas ganham o nome desses heris derrotados, heris decapitados agora
representados pela sua espada, nico documento ou prova dessa guerra ancestral:
6 1DPLWRORJLDDHVSDGDpIUHTXHQWHPHQWHDVVRFLDGDDRGHXV6ROHQDPLWRORJLDHXURSHLDDRGHXV$SROR1mRQRVHVSDQtaremos,
portanto, de ver a espada, na mitologia, revestir-VH VHPSUH GH XP VHQWLGR DSROtQHR 'XUDQG 6mRPXLWDV DV QDUUDWLYDV
que fazem referncia s espadas de heris famosos e intemporais como Aquiles, Teseu ou Ulisses. Confronte-se tambm as espadas
de alguns heris medievais que tm nomes prprios: Durindana de Rolando ou Tizona e Colada do Cid. Constatamos que na
mitologia timorense tambm surgem heris que empunharam espadas agora consideradas sagradas (lulic). Veja-se a propsito mito
$ HVSDGDRXFDWDQDGHJXHUUDTXHFRUWRXDFDEHoDjVHVWUHODVHLPDJHPGHVVDVXSRVWDHVSDGDUHOLJLRVDPHQWHJXDUGDGDGRKHUyL
Berloi, o qual se destacou na guerra contra as estrelas, sendo por isso presenteado por Deus. (cf. Campos, 1973: 87-100)
145
luz desta mentalidade blica, herana de sculos, que se pode compreender a venerao em que foram sempre tidas
pelos timorenses e ainda continuam a ser as espadas de guerra sric, em ttum. Cada espada tem um nome de homem ou
de mulher. Se era Le-Laco, o nome do primeiro inimigo cuja cabea uma espada decepou, Le-Laco se fica a chamar essa
espada. Se uma mulher de nobre estirpe, chamada Cassa-Lqui, foi levada, na guerra, pelos vencidos e remida, depois, por
uns e por outros, em troca de uma espada, essa espada passa a chamar-se Cassa-Lqui. Essas espadas guardam-se nas
casas llics. (Pascoal, 1967: 68)
Tambm os ataros tm em alta estima, como vimos, espadas, azagaias e punhais. Conta o mito 7 que L-Kli e
Mimtu seriam filhos dos deuses Nussa-bun e Rare-bun, e nascido num lugar considerado sagrado, Iddi.
L-Kli teria encarnado num homem e construdo um barco (beiro) com que se deslocou at ilha vizinha de
Lira. A se estabeleceu e fez amizades, tendo mais tarde regressado a Ataro para convencer seu irmo,
Mimtu, a fixar-se tambm em Lira. Os dois irmos a passaram a viver tendo contrado muitas dvidas que os
obrigaram a fugir para a sua terra natal. Os habitantes de Lira perseguiram-nos e invadiram Ataro, onde se
travou uma batalha num local chamado Ltu. L-Kli combateu armado de um punhal timor, mas depois de
abater um inimigo apoderou-se da sua baioneta (turi-dai) com a qual passou a pelejar, tendo oferecido o seu
punhal ao irmo. Este facto levou a que passassem a ser conhecidos pelos nomes de Tri-Dai e Tri-Tmur,
eptetos das armas que empunhavam aquando do combate e que se encontram na casa sagrada (ruma-lli) de
D-Hnoho.
Os povos de Ataro acreditam que L-Kali e Mimitu sero, concomitantemente, divindades implacveis e
temem a sua m influncia, evitando mesmo pronunciar os seus nomes, vendo a mau agoiro. Imaginam-nas
como aves de grande porte ou figura humana dotada de unhas e dentes muito compridos e com mos
cabeludas. L-Kli nome de uma ave da famlia das garas e Mimit deriva do verbo ataro rtu ou rtu que
significa partir XP ILR RX XPD FRUGD H VH SRGH WUDGX]LU SRU DTXHOH TXH FRUWD 8 QR LPDJLQiULR DWD~UR DV
YLGDVFI'XDUWH
L-Kli e Mimtu ou Tri-Dai (punhal + estrangeiro = baioneta) e Tri-Tmur (punhal timor), respectivamente,
guardados religiosamente e que simbolizam a natureza guerreira dos povos ataros, mas tambm carregados
de poder mgico e mstico, j que ningum ousa profanar a sua sacralidade e poder. Quem os ofender pode
7 Confronte-se Duarte, 1984: 169-172
8 Veja-se a propsito de fio da vida e seu corte (morte) as Parcas (Moiras, em grego), Nona, Dcima e Morta (esta responsvel pelo
corte do fio da vida), filhas das Trevas (rebo). Deusas da mitologia grega temidas porque traam o destino dos humanos. Tambm
chamadas de Fates, da os conceitos de fatalismo ou fado (destino, fortuna).
146
ver o fio da vida cortado, sendo que o pecador deve fazer um sacrifcio ou rito expiatrio na casa sagrada de
D-Hnoho para aplacar a sua ira. (cf. Duarte, 1984: 170-171)
Um outro mito9 da regio central e montanhosa de Timor tem como protagonistas a espada Duusta-Mau-Bci e
uma azagaia, hoje consideradas llik porque fundadoras de uma nova ordem, de uma nova casa, inaugurada
depois de duro combate, travado pelos heris Le-Mau e seus irmos, os quais conseguem derrotar Tci-
Rada, o heri das tropas marinhas. Espada e azagaia que ganham o nome de heris dessas guerras
ancestrais:
Depois de vencer Tci-Rada, Le-Mau e os irmos foram estabelecer-se em Fhi-Lia. Fizeram mais abaixo, em Rai-Bou, uma
casa llic para guardar a azagaia deixada por Ica-Dato-Baluba, a que deram o nome de Bere-Lame-Lau. Tambm l puseram
a espada Duusta-Mau-Bci. (Pascoal, 1967: 76)
Conta o mito que Ica-Dato-Baluba era filho do primeiro homem de Timor, e que foi castigado por ter
desobedecido ao pai, tendo ficado preto. O pai presenteia-o com um machado, pecolos de bananeira, papel e
um lpis. Depois de receber estes presentes e uma azagaia, Ica-Dato-Baluba foi para o mar. esta azagaia
que ao morrer Ica-Dato-Baluba deixa ao seu filho, tambm ele heri, Le-Mau. Azagaia Bere-Lame-Lau10
smbolo catalisador que erigiu uma nova terra, um pedao llik, ganho depois dos golpes da espada e da
azagaia, das suas ascenses triunfantes sobre as foras invasoras, protagonizadas pelo inimigo Tci-Rada,
general das tropas do mar (taci, em lngua ttum), que cai perante a fora destas poderosas e mticas armas,
originando a derrota das trevas por oposio ao triunfo do bem, personificado por essas armas de guerra.
No surpreende pois que os descendentes desses primeiros heris tenham em alta estima as espadas, e que
elas sejam sinnimo de prestgio, de nobreza e de bravura, sendo tambm objecto de oferta aquando de trocas
cerimoniais e de alianas entre linhagens:
As espadas rituais so uma pea fundamental na construo do prestgio simblico masculino. Ciosamente guardadas,
transmitidas de gerao em gerao, as culturas tradicionais timorenses acreditam que estas espadas esto providas de
poderes sobrenaturais e sagrados que pautam o destino das pessoas e das comunidades. Muito raramente utilizado para fins
9 Veja-se Pascoal (1967: 75-76)
10 Haver alguma relao entre o topnimo Ramelau, nome da maior cordilheira montanhosa de Timor - donde provm este mito - e
a azagaia Bere-Lame-/DX"3DVFRDODILUPD%HUHQRPHGHKRPHPWDOYH]VHUHILUDDDOJXPDGDVVXDVYtWLPDV/DPH-Lau o nome
DXWrQWLFRGDPRQWDQKDGHVLJQDGDYXOJDUPHQWHSRU5DPHODX3DVFRDO
147
blicos, o surik um objecto de aparato que se destaca nas trocas cerimoniais de casamentos e alianas entre linhagens. A
lmina dita da antiguidade da espada e o seu cabo organiza a simbolizao do prestgio. (Centeno et Sousa, 2001: 143)
Neste mito h, ainda, a destacar o facto de Ica-Dato-Baluba ter recebido de seu pai um papel e um lpis,
smbolos de instruo, de conhecimento e de progresso, necessrios para o combate contra as adversidades e
cataclismos. No imaginrio timorense so vrios os relatos que falam destes objectos (livros, papis, lpis,
anzol). Algumas narrativas apresentam at um dos irmos, normalmente o mais novo, como protagonista de
viagens para fora da ilha, como empreendedores de mudana, conseguida atravs dessa emigrao e
consequente regressar dotado de riquezas e conhecimentos, representados simbolicamente por elementos
como a rvore, o papel, o lpis, a caneta, o livro ou o ceptro:
H tambm, em Timor, as histrias sobre irmos (vrios, mas sempre com um mais velho e um mais novo como figuras
LPSRUWDQWHVVREUHDYLDJHPGHXPGHOHVHVREUHRTXHFKDPiPRVXPDUWHIDFWRGHWUDGXomRDQ]ROSHGUDWURQFRFDUWD
livro, cadeira, etc.), ou seja, algo que se vai buscar ou se leva para se trazer de novo mas j transformado. (Seixas, 2011: 73)
Algumas lendas e mitos apresentam o irmo mais novo a levar consigo ou a trazer de longa viagem um livro,
um lpis ou outro artefacto, smbolos de conhecimento, de novidade que possibilita o desenvolvimento e o
estabelecimento de uma nova ordem, ficando o irmo mais velho responsvel pelo poder espiritual, por guardar
as palavras, os rituais, a cultura e religio ancestrais da terra mater.
Encontramos at contos em que os portugueses surgem como descendentes dos timorenses, filhos que voltam
sua terra, depois de longas viagens, enviados dos deuses para o centro do mundo, para a terra sagrada:
2XWURUDRV7LPRUHQVHVQmRVHDSHUFHEHQGRGHTXHRV3RUWXJXHVHVHUDPDHQFDUQDomRGHVHXVUpJXORVRX
segundo outros, descendeQWHV GR EHQMDPLP LQFXPELGR GH FRUUHU R PXQGR D FROKHU D FLrQFLD GRV SRYRV
(Gomes, 1972: 162)
Sero estas narrativas prova de contgio entre culturas? Haver aqui uma mesclagem de contos11, uma
tecitura feita ao longo dos tempos por diferentes contadores, que o fizeram por razes vrias e em momentos
diversos? Aquilo que nos chega o relato escrito e ele certamente fruto de tudo isso, como o provam os
QRPHV H HOHPHQWRV QHOH LQFOXtGRV 1mR p GH HVWUDQKDU TXH GHYLGR DR FRQWDFWR GRV WLPRUHQVHV FRP QRYDV
FXOWXUDVWHQKDPVLGRDGLFLRQDGRVHVWHVQRYRVHOHPHQWRVjOHQGD3DVFRDO
11 Confronte-se a respeito de coQWiJLRVRHQVDLRGH6HL[DV0XQGRVH=RQDVGH&RQWDFWRGD7UDGXomR&XOWXUDOHP7LPRU-
/HVWHLQIta Maun Alin... O Livro do Irmo Mais Novo, pp. 63-86.
148
A literatura popular o repositrio desses pedaos narrativos, dessa arte de contar sem a qual o imaginrio
no floresce. Literatura que apresenta eixos ou vectores fundamentais que Seixas (2011: 74) traduz nas
VLPERORJLDVGH&DVDV1RPHVH,UPmRVHTXHRLPDJLQiULRWLPRUHQVHUHSURGX]HP PXLWDVGDVQDUUDWLYDV
povoadas de espadas, azagaias, figuras antropomrficas e zoomrficas que ganham forma metafrica,
fantasiada e construda a partir de imagens e arqutipos que se traduzem em relatos fundadores, provas
149
150
CAPTULO XVI
As Keke, pulseiras grossas em ouro, prata ou lato, esto entre os objectos decorativos mais destacados da
ourivesaria timorense. Muitas famlias aristocrticas conservam-nas religiosamente enquanto sinais de riqueza,
ostentao, poder, tradio e marca de ancestralidade. Em muitos casos essas pulseiras apresentam motivos
como pssaros, galos, cavalos ou espcie de guizos que emitem um som caracterstico, aquando de danas
tradicionais em que os bailarinos movimentam os braos onde as colocam.
O imaginrio dos povos de Viqueque apresenta variadas verses de uma lenda que explica a origem do
topnimo. Uma dessas verses1 aponta o nascimento do mesmo como tendo origem na Guerra dos Doidos, a
que j fizemos referncia em cima. Reza a lenda que os povos de Luca e de Bibi-Luto andavam em constantes
guerras. As suas foras eram muito semelhantes, mas, no ltimo combate de que h registo, as tropas de Bibi -
Luto entraram em fora na regio de Luca e destruram de forma violenta grande parte desse reino. Durante a
contenda, os soldados de Bibi-Luto cortaram um dos braos da princesa de Luca, chamada Hare Kmanek, e
levaram-no at regio que hoje conhecida por Viqueque. O exrcito de Luca perseguiu os invasores e
conseguiu chegar bem prximo deles e estes, no intuito de se afastarem mais rapidamente, atiraram com o
brao para cima de um gondoeiro. Ainda segundo a lenda, o brao da princesa tinha uma grossa pulseira
(keke). Os soldados de Luca ao v-la, levaram-na como recordao da grande desgraa que sobre eles se
tinha abatido. Conta-se ainda que, aquando da chegada dos portugueses, os de Luca lhes mostraram a ainda
ensanguentada pulseira, narrando-lhes a sua triste fortuna. Os portugueses iam passando de boca em boca o
WUiJLFR DFRQWHFLPHQWR GL]HQGR (X YL D keke2 'Dt UHVXOWDQGR D RULJHP Go topnimo Vikeke, grafado
actualmente na forma portuguesa como Viqueque, nome do distrito situado na costa sul, na ponta leste da ilha
de Timor.
Relatos deste gnero, que explicam a toponmia local e regional, existem um pouco por todo o territrio de
Timor, muitas vezes tendo por base conflitos ou rivalidades entre pequenos reinos. Foram essas contendas
catalisadoras de um tecido social, cultural e poltico diferenciado e multicolor que erigiu a actual estrutura
1 Confronte-VH $ RULJHP GR GLVWULWR GH 9LNHNHLQ Lendas e Fbulas de Timor-Leste, dir. de Helena Marques Dias. (2009). Lisboa:
LIDEL, pp. 51-52.
2 Tambm ns vimos uma keke em ouro e de origem nobre, actualmente na posse de uma famlia aristocrtica, com razes na regio
de Luca e Viqueque. Ter essa pulseira alguma ligao com a keke de que fala a narrativa?
151
identitria tecida ao longo de sculos nesses elementos distintos, mas que congregam, simultaneamente,
muitas similitudes.
152
CAPTULO XVIII
Aludimos j em cima ao facto de alguns dos grupos tnicos timorenses se dizerem descendentes do Sol e da
Lua. Vimos tambm que os povos Fataluku e Makasae se referem a Deus pelos nomes Uruvatchu (Uru, Lua +
Vtchu, Sol) e Uruuato (Uru, Lua + Uato, Sol), respectivamente. Na altura da criao do mundo esses filhos do
Sol e da Lua apareceram vindos do interior da Terra, segundo alguns povos Fataluku, na regio de Tutuala,
ponto mais a leste de Timor, e em linguagem metafrica do seu imaginrio considerada a cabea do corpo
7HUUD2V0DKRH$PDtUDILOKRVGRVROIRUDPRVREUHLURVGHVVHFDQDOTXHUHFHEHXRQRPHGH7elu-Mire. E,
vinda do ovrio da terra, a criao humana apareceu em Ili-.HUHNHUHMXQWRGRPRQWH5RVVLOL(Gomes, 1972:
44) Os povos Bunak tratam o Sol por Me e a Lua por Pai e alguns sacerdotes animistas de Ataro
ornamentavam o corpo com tatuagens de astros, exemplos enunciados que comprovam a filiao e venerao
prestada aos astros por estes povos.
Procurando uma aproximao e unio constantes aos seus pais, ao mundo do alto ou dos astros, os povos
timorenses expressam essa reverncia e esse fascnio de diferentes formas. Encontramos relatos que nos
denunciam isso mesmo, seja o Sol enquanto fornecedor de luz ou de fogo, seja a Lua marcadora do tempo, ou
os dois como responsveis pela fertilidade e boas colheitas. Tambm na msica, na pintura, na escultura ou na
dana vemos esses elementos como protagonistas.
Mas na joalharia e ourivesaria que o imaginrio timorense melhor retrata a sua atraco e associao aos
astros. O belac e o kaibauk representam o Sol e a Lua, respectivamente, e esto entre os adornos mais
caractersticos e distintivos da aristocracia timorense. Se olharmos para fotografias do perodo colonial ou se
assistirmos, nos nossos dias, a uma cerimnia oficial, a um dia festivo, encontraremos, certamente, estes dois
smbolos no peito e na testa de chefes nativos ou dos seus descendentes. Objectos ainda hoje vendidos a
turistas nos mercados tradicionais de Dli. Mas j no sculo XVII existem referncias a esses adornos por parte
de mercadores e missionrios que visitavam a ilha. Frei Agostinho de S. Pascal obrigado a aportar nas ilhas de
Flores e de Timor, descreve assim o vesturio dos povos nativos:
Alm disso, os chefes [...] atam ao pescoo uma lmina redonda de ouro redonda, a maior que puderem trazer; atam o
cabelo no cimo da cabea e a colocam um pente de bambu, geralmente com umas plumas de galo e outro adorno de flores
GH VHGD GH YDULDGDV FRUHV TXH YHP D VHU D PRGR GH SHQDFKR H GHSRLV HQFDVWHODP QD WHVWD XPD PHLD OXD GH RXUR GH
153
SRQWDV SDUD FLPD H QRV WRUQR]HORV WUD]HP XPD PDnilha, feita de palmeira, de quatro dedos de largura e por debaixo dos
joelhos, umas barbas de bode, que caem sobre as pernas; este o modo de trajar dos homens. (Menezes, 2006: 32)
Conta o Mito do Crocodilo, como vimos, que o menino transportado no dorso do anfbio, ao v-lo transformar-
se em terra por sobre ela caminha ornamentado com um blac ao pescoo, grande medalho que simboliza o
astro rei, seu pai, aquele que possibilitou a sua existncia e nobreza:
o belak um adorno exclusivamente masculino H DSHVDU GH WUDGLFLRQDOPHQWH VH GHVLJQDU HP SRUWXJXrV FRPR OXD
representa de facto o disco solar. Trata-se de um smbolo de prestgio e tambm de masculinidade, no havendo limites para
o nmero de discos que um timorense pode usar no peito. O mito indica que o primeiro timorense que veio no dorso do
crocodilo que se transformou na ilha recebeu um disco brilhante no mesmo momento em que a ilha se criou, sendo isto sinal
da sua passagem para a idade adulta. (Oliveira, 2003: 49)
Ainda hoje, mesmo em tempos de democracia e em que restam apenas vestgios da velha aristocracia, o blac
caracteriza, talvez, da melhor forma, a realeza, o poder do elemento masculino, a nobreza de quem o
transporta ao peito. Era e continua a ser objecto de prestgio e de oferta aquando de casamentos ou como
IRUPDGHDJUDGHFLPHQWRRXGHHOHYDGDFRQVLGHUDomR9HQGRTXHQmRHUDSRVVtYHOVXEMXJDU/DFO~EDU')pOL[
foi a Lifau queixar-se de Uci-Lqui-Tuc ao Governador. Levou-OKH GH SUHVHQWH XPD OXD GH RXUR 3DVFRDO
1967: 256) D. Aleixo Corte Real, rgulo de Suro, Ainaro, quando se deslocou a Portugal, por alturas da
Exposio Colonial do Porto, em 1934, levou a sua mais valiosa lua de ouro como adorno, a Pill-Solai (lua-
cobra). (cf. Pascoal, 1967: 119) Vemos ainda actualmente esses descendentes de chefes nativos a ostentar
essas preciosidades herdadas de tempos ancestrais. Em muitas danas e cerimnias tradicionais ou
comemorativas encontramos bailarinos ou figurantes com belc ao peito.
Intimamente conotado com a Lua est o kaebauk, adorno usado por homens e mulheres, enquanto elemento
ligado ao poder ancestral e a rituais mgico-religiosos. Em forma de crescente e muitas vezes com pedras
incrustadas ou motivos como crocodilos, pssaros, estrelas, estabelece no imaginrio timorense o par exemplar
do blac, j que os dois simbolizam os opostos feminino/masculino ou Lua/Sol, a unio perfeita, os deuses
progenitores dos povos timorenses:
O kaebauk um dos adornos mais caractersticos de Timor e comporta diversos significados mgico-religiosos. Um kaebauk
simples apresenta uma forma de crescente que se identifica com a Lua, em oposio ao belak no peito que representa o Sol,
em conjunto as duas peas simbolizam Deus, Maromak, identificado na cosmogonia timorense pelos pares opostos homem-
mulher, Sol-Lua. O kaebauk ainda identificado com a representao do barco dos antepassados originais. (Oliveira, 2003:
49-50)
154
Blac e kaibauk, elementos de forte carga identitria e cultural, que so os representantes maiores do poder de
determinado reino ou cl. Os seus portadores procuraram atravs deles distinguir-se dos demais e
impressionar quem os via com to belos ornamentos, prprios de figura real, marcando, claramente, poder e
nobreza, descendentes assumidos dos deuses celestes.
Concluindo, procuramos aproximar as artes timorenses aos relatos orais, escolhendo aqueles objectos ou
artefactos que nos parecem mais caractersticos e representativos1, constatando que, apesar das diferenas
entre os vrios grupos tnicos, h um imaginrio comum que se expressa nessas formas artsticas. Imaginrio
intimamente conectado com a identidade no fosse esta resultante das suas manifestaes diferenciadoras,
das suas formas materiais e imateriais. Constatamos ainda a existncia de uma srie de objectos de uso
quotidiano, mas, simultaneamente, podendo ganhar carcter llik, dado o seu percurso, a sua participao em
facto relevante (mito de origem, guerra geradora de nova ordem, fundao de cl). Objectos, por isso,
guardados por sacerdotes, de gerao em gerao, na uma llik, espao nuclear do imaginrio dos povos
timorenses, espao onde o tempo se funde e onde se comunica com o passado, com os ancestrais, num
continuum que faz perdurar oraes, rituais, genealogias, lendas e mitos, eles sim os verdadeiros pilares da
identidade timorense.
1
No certamente por acaso que na capa do livro Os Mitos e a Imaginao Contista no Estudo das Origens do Povo Timorense, de
Correia de Campos (1973), surja um chefe timorense vestido com tais, empunhando uma espada e tendo por adornos um belac ao
peito e um kaebauk na cabea.
155
156
CAPTULO XIX
CONCLUSES FINAIS
A Literatura Oral Timorense insere-se num Folclore tremendamente rico, carregado de rituais, costumes e
tradies ancestrais. Os relatos orais esto enraizados e inculcados nas comunidades locais e relacionam-se
intimamente com esse ritualismo. Jorge Barros Duarte (1984) denomina mesmo o seu magnfico estudo do
folclore ataro por Mitos e Ritos Ataros, onde o rito possui sempre uma justificao mitolgica. recorrendo
ao lendrio cosmognico que o ancestral timorense fundamenta a sua origem, procurando o momento
primordial no apenas de edificao do mundo, mas tambm do seu microcosmos, da sua aldeia, nascente ou
montanha. Narrativas preservadas e fechadas como verdadeiros tesouros ancestrais, como documentos vivos,
histria dos avs, fio de Ariadne que as geraes mais novas vo recebendo dos lia nain (os senhores da
palavra, os guardies do patrimnio oral).
Observamos ainda um regionalismo com razes ancestrais, motivado por uma histria feita de conflitos, de
confrontos com o reino vizinho, que se espelham depois num folclore local que tem nas uma llik os seus
museus. Museus que albergam tesouros de batalhas catalisadoras de mudana, de estabelecimento de nova
157
ordem, de nascimento de cl ou de reino, de um tronco familiar localizado e que possui um relato nico, uma
genealogia preservada e conhecida apenas por alguns. Patrimnio material espadas, pedras, objectos em
ouro ou prata, panos, estatuetas comum a todos os grupos tnicos, mas com tonalidades distintas o que
engrandece sobremaneira a cultura timorense. Objectos que tm, na maior parte dos casos, uma narrativa
fabulosa por trs que explica a sua origem e percurso.
O lendrio timorense tambm diferenciado entre os vrios grupos tnicos e o nosso estudo pretendeu dar a
conhecer essa singularidade, essa imagtica local. Apresentamos relatos de grupos tnicos como os ttum, os
manbae, os galole, os fataluku, os makasae ou os bunak, ilustrando assim um lendrio fundacional com
componentes comuns (fundao do mundo, de um microcosmos ou nova ordem), mas diverso no enredo, no
desfecho e no papel de cada um dos actores.
Desejamos que este simples estudo sirva de humilde fonte para o desenvolvimento de outros mais sistemticos
e aprofundados.
158
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166
ANEXOS
167
168
ANEXO 1
ESPAO (LOCAL DA
TTULO ENREDO (T RAMA) ELEMENTOS SIMBLICOS PERSONAGENS
ACO)
FUNDAO DE:
Em Macassar, um rapaz - crocodilo - crocodilo - Macassar (Celebes) - Ilha de Timor
encontra um crocodilo e, - gua - rapaz - Timor
vendo-o em dificuldades - sol
ajuda-o a voltar gua. O
crocodilo reconhecido do
favor que o rapaz lhe fizera,
promete ajud-lo no que
precisar e leva-o a passear
1. Timor pelos mares e ribeiras. Num
despontou desses passeios o crocodilo
como as folhas sente vontade de comer o
do btele, como rapaz. Antes de o tragar,
o caule da decide, porm, consultar os
arequeira (S, outros animais, os quais lhe
1961: 12-22) reprovam os instintos. Vendo
que errara, o velho crocodilo
convida o rapaz a ir com ele
para o Oriente, aonde nasce o
Sol. Velho e cansado de tanto
andar, o crocodilo transforma-
se em terra (ilha de Timor) e o
rapaz torna-se o chefe desse
territrio.
(UD WXGR XP PDU VHP - gua das chuvas - sobreviventes - Ramelau - Ilha de Timor
SUDLDV 6REUHYLYHQWHV GH - vespo metidos num barco;
tamanha tragdia, metidos - palmeira vespo; palmeira
QXP EDUFR FKHJDP j ]RQD - montanha do Ramelau
do Ramelau e so salvos por
um p milagroso feito a partir
2. O resto da
de um ninho de vespo. As
terra (Pascoal,
gua baixam e dois homens e
1967: 37-38)
duas mulheres lanam-se a
nado, um para norte e outro
para sul, empurrando as
guas com tbuas que se
transformam nas praias de
Timor.
1RSULQFtSLRHUDWXGRPDU6y - montanha do Mnu-Cco; - Deus; - Ilha de Ataro - Ilhas de Ataro, Alor,
3. Do Mnu-
existia o cimo do Mnu-Cco. - guas do mar; - Uma tonina; Vter e Lrang.
Cco ao
1HOH DSDUHFHX XP JRQGmR - guas das chuvas; - Um gondo
Gnesis
Uma tonina comeu-lhe os - fogo; (rvore);
(Pascoal, 1967:
frutos. O mar comea a secar. - enguia; - Um porco;
43-46)
A tonina transforma-se em - gondo. - Uma mulher e
169
porco. Deus feriu o porco e seus filhos Bui e
castigou-o. O Porco Mau;
transformou-se em mulher. A - Um polvo branco;
Mulher deu luz dois filhos. - Uma enguia;
Deus deu-lhes o fogo e uma - Trs
forja que secaram o mar. Os sobreviventes: Man-
peixes morreram, s se Dni, Ma-Quli e
salvando uma enguia e um Mac-Ddi
polvo. Veio um grande
castigo. Choveu, choveu sem
parar. Salvaram-se apenas
trs irmos. Com trs setas
conseguiram que as guas
descessem. A cauda da
enguia provocou um
terramoto que separou as
terras, dando lugar s ilhas de
Ataro, Alor, Vter e Lrang.
2 PXQGR HVWDYD HQYROWR HP - Mar de lama; - Deus; - Lautem - O mundo
WUHYDV 4XDQGR VH - O primeiro homem - Um homem
dissiparam s se via um mar - Tempestade de vento e chuva moldado por Deus
de lama. Deus moldou um (dilvios); - Pigmeus;
homem a partir da lama. - Um coqueiro; - Dois irmos e
Desse homem surgiram - Uma arequeira seus sete filhos
outros homens e mulheres. - Um coqueiro;
Horrorosa tempestade - Uma arequeira;
4. O Dilvio na aniquilou por completo a
tradio de nascente humanidade. Deus
Lautm povoou a terra com pigmeus.
(Pascoal, 1967: Outro dilvio tratou de os
50-51 destruir. Salvaram-se apenas
dois irmos. Ele foi salvou-se
por um coqueiro, ela refugiou-
se numa arequeira. Tiveram
sete filhos, responsveis pelo
repovoamento da Terra. Deles
descendem os habitantes da
Terra dos Gemidos, em
Lautem.
No princpio a terra era uma - primeiro homem; - Deus; - Lautem - O mundo
grande extenso de lamaal, - Lamaal; - O primeiro
vazia e inabitada. Deus - Copo de gua; homem;
colocou sobre esta terra num - Montanha; - Sete crianas;
5. O Primeiro stio seco o primeiro homem e - Pntano (lagoa);
Homem deixou-lhe um copo de gua. - Tronco de rvore;
Primitivo (Albino Nas visitas que foi fazendo a
da Silva) este primeiro homem, Deus
deu-lhe a seu pedido
montanhas, homens, rvores
e todas as espcies animais e
uma fala para comunicar.
170
Vendo que o homem estava
satisfeito, Deus voltou para os
cus.
2 PDU LQYDGLUD D WHUUD H - Monte Tata-Mai-Lau; - Uma codorniz; - Ramelau (Tata-Mai- - Ilha de Timor
cobrira, por completo, at os - guas do mar; - Um rato; Lau)
PRQWHV PDLV DOWRV 8PD - Um rato (laho); - Duas jovens
codorniz e um rato empurram - Uma codorniz (quo); (Sara-Bti e Sara-
as ondas, impedindo-as de - Peixes que se transformam Meta);
cobrir o pico do Tata-Mai-Lau. em feiticeiros; - Dois homens
Duas jovens (Sara-Bti e - Pedra llik (sagrada) (Htu-Tei e Mau-
Sara-Meta) empurram - Cesto com casca de bambu Tei);
tambm as guas ao som de em forma de lua, areca e btel - Dois homens (Le-
um gongo e um tamboril. Dois Mau e Dada-Mau);
6. Lhu-M ( homens (Htu-Tei e Mau-Tei) - Feiticeiros (Toro-
Pascoal, 1967: ajudam as mulheres a levar Lhi e Leo-Dci);
54-56) as guas at ao mar. Surgem - Dois homens
feiticeiros (que eram peixes) (Cli-Sala e Mau-
foras martimas que tudo Lico)
matam... organizado um
estilu (festa animista) para
embebedar os feiticeiros e
lhes cortar a cabea. Cabea
que se transforma em pedra
llik (sagrada). Os feiticeiros
mortos transformam-se em
milhafres...
D WHUUD H R FpX HVWDYDP - guas diluvianas; - Alguns casais de - Ramelau (Tata-Mai- - Ordem csmica
ligados por uma trepadeira [...] - Montanha; sobreviventes; Lau) actual.
De cima do Tata-Mai-Lau no - Trepadeira; - Dois pssaros e
se via seno gua a toda a - Bloco de ferro e martelo; um mocho;
YROWD 1HVVH UHVWR GH WHUUD - Dois pssaros; - Um co e uma
refugiaram-se alguns casais. - Um mocho; cadela
A trepadeira afundara-se nas - Um co e uma cadela;
guas, no deixando - Plos de ces e penachos de
esperana de sobrevivncia. penas de galos.
Mas, eis que lhes cai aos ps,
7. Bagnut vindos do Sol, um pedao de
(Pascoal, 1967: ferros e um bagnut (martelo).
65-66) Com estes fazem nove
espadas com as quais lutam
contra as ondas. Ondas que
no cedem e s a aco
conjunta de homens e animais
(ces, pssaros) faz com que
as guas acalmem. Os
sobreviventes de tamanho
cataclismo ficaram escuros,
dado o seu contacto com as
guas turvas...
8. Ica-Dato- Ica-Dato-Baluba ficou preto - guas; - Ica-Dato-Baluba e - Ramelau - pocas das chuvas
Baluba (Pascoal, por ter desobedecido ao pai. - Terra; Le-Mau, o mais
171
1967: 75-76) Este deu-lhe um machado, - Espada; velho dos seus
pecolos de bananeira, papel - Azagaia; cinco filhos;
e um lpis e uma azagaia - Palmeiras - Tci-Rada;
para a guerra. Ica-Dato- - Exrcitos de Le-
Baluba deu antes de morrer Mau (foras
esta azagaia ao seu filho Le- terrestres) e de
Mau. Certo dia aparece Tci- Tci-Rada (foras
Rada que pede em martimas)
casamento a sua filha Bui-
Cuco. Foi uma desavena
entre Bui-Cuco e seu pai que
provocou uma guerra entre as
foras do mar e da terra. S
com a azagaia que era de Ica-
Dato, e aps retiradas
estratgicas e rduos
combates, que Le-Mau
consegue derrotar Tci-Rada
e as suas foras. A cabea de
Tci-Rada foi colocada como
trofu numa gruta virada para
sul. por esta razo que
dizem que os povos do sul
tm duas pocas da chuva ao
contrrio da regio norte onde
h apenas uma.
Loro-Loca e Tai-Laca - Sete bambus; - Loro-Loca e Tai- - Ramelau, Aileu, - Festa das nascentes-
encontram-se com Le-Mau, - Enxame de abelhas; Laca; Maubisse ai hlun
Dada-Mau e seus homens - Bfalos e cabritos; - Le-Mau, Dada-
que repeliram as guas para o - Cobras e lagartixas; Mau e outros
mar. Le-Mau morre vtima de - Caules de bananeira e cabos homens que
um enxame de abelhas. Loro- de machado; repeliram as guas
Loca e Tai-Laca procuram - Relmpago e trovo; que invadiram a
fazer um enterro condigno a - Chuva e vento; terra;
Le-Mau, procurando reunir - Luz; - Mau-Quia e Mau-
mantimentos e outros bens - Galo e co; Cti;
necessrios para as - Lua, Sete-Estrelo e Sol; - Bti-Ao e Mit-
9. Loro-Loca e
cerimnias fnebres. Loro- Ao;
Tai-Laca
Loca e Tai-Laca mudam de - Abo-S;
(Pascoal, 1967:
lugar, mas vo procurar fazer - Mau-Bisse e Mau-
81-84)
estilus (rituais animistas) a Loco e Si-Dau e La-
Le-Mau. Aqueles que Coda;
ofereceram animais (bfalos e - Meta-Bau e Cai-
cabritos) para os estilus so Bau;
depois presenteados com a - Tti-Huno e Rai-
possibilidade de escolher um Huno;
lugar para reinar e de pedir - Seba-Huno e Mali-
XP SUHVHQWH - Queremos Huno;
caules de bananeira e cabos - Qui-S;
GH PDFKDGR - Queremos ir - Lqui-Dini e Bere-
para Lebo-Tuto-Cssi-Mi-Dei, Dni
172
em Maubisse. Pediram, ainda, - Lqui-Loco, irmo
que o relmpago e o trovo de Mau-Loco.
OKHV ILFDVVHP VXMHLWRV
4XHUHPRV (U-Hto, em Aileu
disseram. Pediram para
PDQGDUQDFKXYDHQRYHQWR
0DX-Bisse e Mau-Loco foram
os primeiros que fizeram a
festa das nascentes ai
K~OXQ
7RGD D WHUUD HVWDYD - Terra; - Deus; - Tata-Mai-Lau - Ilha de Timor;
LQWHLUDPHQWHVXEPHUVD'HXV - gua; - Um filho de Deus - Descoberta de fogo.
mandoX XP VHX ILOKR 1ii- - Bambu; 1ii-Hric);
Hric) pescar. No tendo por e - Uma balana; - Trs mulheres e
cozinhar o peixe, NL-Hric - Fogo. trs homens
recebe de Deus bambu e
10. 1ii-Hric terra para secar a gua do
(Pascoal, 1967: mar. Desceram do cu, pelo
70) Tata-Mai-Lau, trs homens e
trs mulheres encarregues de
lanar terra sobre o mar.
Friccionando o bambu
conseguiram fogo, com o qual
assaram o peixe e se
aqueceram.
H muito, muito tempo, - NDNRak (ave); - animais de todas - Uma plancie. - Definio do tempo
quando os animais falavam, - corvo as espcies: em um dia e uma noite
os dias e as noites no tinham bfalos, cavalos,
a definio actual, podendo veados, cabritos,
haver noites ou dias seguidos. ces, gatos, ratos,
Um grupo de animais estava rpteis, batrquios,
descontente com essa insectos, aves,
situao. Foi convocada uma raposas, macacos;
assembleia de animais. - .DNRak;
Foram apresentados os - Corvo.
argumentos daqueles que
defendiam sete noites
11. O dia e a
consecutivas, seguidos de
noite (Dias,
sete dias, e do grupo que
2009: 21-24)
defendia um dia seguido de
uma noite. O NDNRak, ave das
florestas timorenses, comeou
a cantar de forma rpida e
DJXGD -Cocau! Cocau! Um
GLD XPD QRLWH 2 FRUYR
opunha-se a esta posio,
mas o seu cantar era mais
pausado. Ento a grande
maioria dos animais comeou
a gritar e a acompanhar o
canto do NDNRak, e esse grito
173
foi to forte que fez
estremecer a Terra. A
Natureza e os Astros
concordaram com essa
definio do tempo em um dia
e uma noite.
Em tempos idos, dizia-se que - Trepadeira; - Prncipe Mau Lelo - Reino da Terra e - Ordem csmica
o Cu e a Terra estavam - Cu; (Sol); reino do Cu. actual.
ligados por uma trepadeira - Terra; - Princesa Dau Hula
chamada Kaleik Talin. Apenas - Lua; (Lua);
o Prncipe Mau Lelo sabia da - Sol. - Princesa Dau Rai
existncia dessa trepadeira (Terra);
que ele usava para visitar - Gurdas;
uma das suas esposas, a - Trepadeira Kaleik
princesa Dau Hula (Lua). Talin;
Acontece que o Prncipe vivia - Grupo de pastores
tambm com a princesa Dau
Rai (Terra). As princesas
desconheciam a existncia
uma da outra. O Prncipe era
muito respeitado pelos povos
12. O Prncipe
dos dois reinos, mas era
Mau Lelo (Sol)
considerado demasiado
(Dias, 2009: 25-
exigente, pois cobrava
28)
demasiados impostos e
gneros em ouro aos dois
povos. Certo dia, quando o
Prncipe subia pela trepadeira.
Foi visto por uns pastores que
logo foram contar a novidade
sua princesa. Esta
convocou o seu grupo de
conselheiros para decidir o
que fazer. Trada e
amargurada a princesa Dau
Rai decidiu cortar a trepadeira
que levou ao desprendimento
do Cu. Assim nasceu a
ordem csmica actual.
Conta a lenda que - rvore; - Velho Keri Loi; - aldeia Anise; - nascente Lika-Lale
antigamente a aldeia Anise - gua; - rvore; - nascente Lika-Lale
era rida e seca. Os - Bengala; - Nascente
habitantes da aldeia tinham - Bambu;
13. A lenda da que ir buscar gua longe dali. - Colina.
nascente Lika- Certo dia, o velho Keri Loi foi
Lale, (Dias, procurar gua longe dali,
2009: 29-33) tendo encontrado uma
nascente que formava um
lago. Como estava cansado
aproveitou para descansar
debaixo de uma rvore. Qual
174
no foi o seu espanto quando
ouviu uma voz do cimo da
iUYRUHTXHOKHGLVVH- meu
velho amigo Keri Loi, se
queres, de facto, gua para a
tua aldeia, pega no teu bambu
com a gua que levas, volta
para trs e sobe a colina.
Quando l chegares, pra.
Pega na tua bengala e bate
com ela no cho at fazer um
pequeno buraco. Deita l
dentro a gua que tiraste
desta nascente e que tens a
no teu bambu e diz: Neste
lugar vai aparecer uma
grande fonte de gua
FULVWDOLQD 2 YHOKR .HUL /RL
assim procedeu e assim
nasceu a nascente de Lika-
Lale.
Conta-se que um velho casal - Bfalos; - Bi Tasi; - arredores de Tasi - Passagem (local,
vivia nos arredores de Tasi - Cavalos; - Mau Tasi; Tolu. desfiladeiro) de Rai
Tolu com a sua nica filha, Bi - gua - Velho casal; Kotu
Tasi, a qual era muito bonita. - Liurai Tasi;
Um dia, tendo Bi Tasi ido - Cavalos;
buscar gua, encontrou um - Bfalos.
belo rapaz, pelo qual se
apaixonou. O rapaz chamava-
se Mau Tasi e era filho do
14. A lenda de Liurai Tasi. Os pais de Bi Tasi
Rai Kotu (Dias, pediram aos pais do noivo
2009: 38-40) cavalos e bfalos como dote.
Ento aconteceu algo
extraordinrio: os cavalos e
bfalos enviados eram tantos
que abriram um desfiladeiro
na montanha que separava as
duas terras. Essa passagem
ficou at aos dias de hoje com
o nome de Rai Kotu, e fica
entre Tasi Tolu e Komoro.
Conta a lenda que os povos - Pulseira; - Exrcitos de Luka - reino de Luka. - topnimo Vikeke
de Bibi-Luto e os povos de - Gondoeiro. e de Bibi-Luto;
Luca andavam em constantes - Rainha de Luka,
15. A origem do
guerras. Na ltima guerra de Hare Kmanek;
distrito de
que h memria, os povos de - Portugueses.
Vikeke (Dias,
Bibi-Luto atacaram
2009: 51-52)
violentamente Luca e
conseguiram cortar um dos
braos da sua rainha, Hare
175
Kmanek, levando-o em
direco regio que hoje
conhecida pelo nome de
Vikeke. O exrcito de Luca
perseguiu os invasores e,
estes, ao fugirem, atiraram
com o brao para cima de um
gondoeiro. Os de Luca
conseguiram recuperar uma
pulseira ainda ensanguentada
do brao da sua rainha.
Pulseira que mostraram aos
portugueses na altura da sua
chegada. Alguns deles
FRQWDYDP DRV FROHJDV (X YL
D NHNH 'Dt D RULJHP GR
topnimo Vikeke.
Deus desceu Terra e - gua; - Maliloique; - Terra; gua na Terra
convidou Maliloique a - Sangue; - Deus; - Cu.
governar os homens. Tudo - Espada. - Filho de Deus.
corria bem at que se deram
agitaes, desordens e
guerras entre os homens.
Maliloique indignado procura
Deus culpando-o pelo que
estava a acontecer na Terra.
Deus negou ser Ele o
causador da desordem na
Terra. Maliloique descontente
decide sacar da espada e
decepar a cabea do Filho de
16. O Mito da Deus, dizendo que a razo
Formao da HVWDYDGRODGRGHOH- Mas h
gua e do uma maneira fcil de saber a
Sangue verdade: se teu filho se ferir
(Campos, 1973: com um golpe que lhe vou
71-74) dar, porque eu tenho razo;
caso contrrio, s tu quem a
WHP 'HXV LQFUpGXOR REULJD
Maliloique a levar para cabea
de Seu Filho para a Terra e
obriga-o a coloc-la em cima
de uma pedra, em frente de
sua casa. Maliloique assim
procedeu e espantado ficou,
quando, de seguida, surgiu
um grande lago, tendo Deus
dito para ele beber gua
desse lago e para a espalhar
pelo mundo para os homens a
ela acederem.
176
Em tempos idos, habitava em - Lua; - Gigante Beilera; - Plancie de Quirs, - forma actual da Lua.
Timor um gigante de nome - Mulher; -Filho do gigante; Fatuberliu, distrito de
Beilera. Gigante que de to - Espada; -Mulher do gigante; Manufahi.
alto que era chegava com a - Gigante; - Jibia.
mo s estrelas. Certo dia, o - Banana;
filho do gigante, estando ao - Jibia.
colo do pai, estendeu o brao
e sujou a Lua com banana
17. O que assada e cinza. O gigante
originou a forma teve um fim trgico. Casou e
actual da Lua certa noite deitou-se antes da
(Campos, 1973: mulher. Esta quando foi para
83-86) a cama reparou que entre os
dois estava uma grande jibia.
A mulher aflita pegou na
espada de guerra do marido e
PDWRXDMLEyLD6yGHSRLVHMi
sem remdio, veio a
reconhecer que o gigante se
esvaa em sangue, morrendo
MXQWDPHQWHFRPDMLEyLD
Havia uma velha que - Espadas; - Beiduro, Berloi, - Cu e Terra. - brilho das estrelas.
costumava ir ao cu buscar - Estrelas; Carloique,
fogo. Certo dia, tendo a me - Pedras; Beicolicteri e
demorado mais do que o - Laranjas; Beibercoli;
normal, o seu filho cortou a - Trepadeira; - Deus;
trepadeira que fazia a ligao - Fogo; - Estrelas;
entre Terra e Cu, originando - Cu; - Animais;
a separao entre os dois. Em - Terra. - Velha e seu filho.
seguida, o rapaz queixou-se
ao seu tio Beiduro, dizendo
que aquela maldade fora obra
18. A espada ou de Deus. Indignado, o seu tio
catana de guerra Beiduro, convocou os heris
que cortou a Berloi, Carloique, Beicolicteri
cabea s e Beibercoli para com ele
estrelas declararem guerra ao cu.
(Campos, 1973: Deus deu ordem s estrelas
87-91) para combaterem os ousados
guerreiros terrenos. Depois de
recuarem por vrias vezes, os
homens chegam ao cu e
com as suas espadas
cortaram a cabea das
estrelas. Por esse motivo
que as estrelas brilham no
cu todas as noites. Deus,
rendido fora destes heris,
oferece-lhes colunas, pedras
e trs laranjas.
19. O Mito de - Mau-Bua e Rita (polvo) foram, - Polvo; - Mau-Bua e Rita; - Beloi, ilha de Ataro - Fonte de -Bua
177
Bua (Duarte, um dia, ter a Mau-Lku, suco - /Du; - /Du
1984: 123) de Makli, onde Mau-Bua veio - Areca e btel.
a morrer. Rita, a sua mulher,
mascou btel e areca e
meteu-os na boca do marido
defunto. Passados sete dias
do enterro, nasceram
cabeceira da sepultura um p
de btel e uma arequeira,
qual surgiu agarrado um ODu
(pequeno mamfero
semelhante a uma raposa).
Este ODu era a encarnao de
Mau-Bua e veio dizer aos
habitantes que aquele lugar
devia passar a chamar-se -
Bua (gua+areca) e que, dali
em diante, deviam usar, em
todos os rituais, btel e areca.
Rita transformou-se em polvo
e fez brotar uma fonte, hoje
conhecida por -Bua, onde
todos os anos se celebra um
rito da chuva.
Em tempos idos, existiam na - Cu e Terra; - Bui Sirak, Mau - Terra (montanha - Ordem csmica
terra apenas seis pessoas - Feixes de lanas; Sirak, Bui Guzu, Bekalai Annola); actual;
(Bui Sirak, Mau Sirak, Bui - Sol; Mau Guzu, Sesu - Cu. - Dia/noite.
Guzu, Mau Guzu, Sesu Mau e - Montanha. Mau e Dudu Mau;
Dudu Mau) que moravam na - Hot Gol;
montanha Bekalai Annola. - Foras marinhas.
Viviam na misria porque no
tinham gua nem luz. Certo
dia, Mau Sirak subiu ao cu
para pedir ajuda a Hot Gol
(Filho do Sol). Este deu-lhe
trs feixes de lanas para
20. O Cu e a lutar contra o mar bravo. Mas
Terra (Gomes, como essas armas foram
2008: 85-86) insuficientes, Hot Gol deu-lhe
mais sete feixes com as quais
os homens da terra
conseguiram derrotar as
foras marinhas. Bui Guzu e
Mau Guzu subiram ao cu
para pedir a luz, pois viviam
nas trevas. Puderam ento ter
dia e noite. O cu e a terra
estavam demasiado perto e,
por isso, Sesu Mau e Dudu
Mau empurraram o cu para
cima e separaram-no assim
178
da terra.
No princpio existia cu e mar, - Cu; - Paunu, Navar- - Timor; - Cosmos actual;
e deste emergia um pedao - Terra; Lonu e Mau-Lonu; - Cu; - Ilhas de Timor, Jaco e
de terra chamado de Mua-ulu- - Mar; - Nai-Leu-Vrinu e - Ilhu de Jaco. Ataro.
mua (cabea da terra), que - Luz (relmpago); Muka-Leu-Vrinu;
viria a ser o centro do mundo. - Grande peixe/mamfero - Shilafai;
Neste pedao de terra viviam aqutico. - Rai-Rai-Lolo.
Paunu, Navar-Lonu e Mau-
Lonu, os quais no tinham
pernas nem braos.
Apareceram mais tarde os
Pairara, Nai-Leu-Vrinu e
Muka-Leu-Vrinu. Estes
rogaram e surgiu, ento,
Shilafai, o deus relmpago,
que com sucessivas
descargas cortou e separou
as guas do mar para que a
terra surgisse em toda a sua
21. Lenda
dimenso e ficasse fixa.
Pairara (Gomes,
Ento o povo katiratu
1972: 10-12)
espalhou-se por toda a ilha,
chamada a partir desse
momento de Lau-Tchenu. Os
katiratu resolveram, depois,
subir ao cu e, quando
voltaram, j o mar invadira,
novamente, a ilha. Imploraram
a Shilafai e este com
repetidos golpes separou os
mares em dois (mar homem e
mar mulher). Fulminou
tambm um grande peixe ou
mamfero aqutico, Rai-Rai-
Lolo em que a terra se havia
transformado. Com novas
descargas cortou-lhe a
cabea, o que originou o ilhu
de Jaco...
Conta o mito que Timor era o - Cu; - Deus; - Timor. - Ordem csmica
centro do Universo e que Cu - Terra; - Lacoloik e actual.
22. A lenda do e Ter estavam ligados. Timor - Lua; Caloloik;
Uran Uki ou parecia uma Grande Panela - Estrelas; - Birbi.
Grande Panela (Uran-wake, em lngua - Arroz;
A lenda da galolen). O cu era o tecto ou - Pilo;
Origem do tampa dessa grande panela e - Almofariz;
Mundo era suportado pelas grandes - Panela;
(Fernandes, montanhas de Timor. Deus - Mulher.
2011: 80-84) colocou a reinar o casal
Lacoloik e Caloloik, os quais
deviam manter a paz e a
179
harmonia. Deus ordenou-lhes
que cada habitante devia
comer apenas um gro de
arroz e as frutas disponveis a
cada dia. Ora, certo dia, a
velha cozinheira Birbi, que
tinha muitos familiares para
alimentar, resolveu arranjar
forma de facilitar o processo
de descasque do arroz. Fez
um pilo de um tronco
delgado e um almofariz, onde
colocou grande quantidade de
arroz. Ao levantar o pilo,
Birbi atingiu o cu, a tampa
da panela, originando com
isso o desprendimento do cu
em relao terra. A lua
resultou do buraco feito pelo
pilo e as estrelas do arroz
espalhado pelo firmamento. A
Grande Panela tombou e
formaram-se vrios pedaos
que deram lugar a vrias
terras e ilhas.
180
ANEXO 2
Bee matan Wailia iha ninia istria furak ida, katak uluk rai Baucau ema bolu Wailia. Tamba sa mak sai naran
Baucau. Ida nee sei halo peskisa ida neeb especfiku. Naran Wailia iha lian Makasae, Wai katak bee, Lia
katak matan. Hanesan istria kona-ba bee matan Wailia haktuir katak:
Iha tempu uluk, iha av mane ida loroloron, b hein nia bibi iha bubur laran ida. Av mane nee lao ain ho nia
bibi sira, hamaluk ho nia asu aman ida. Too iha bubur laran, bibi sira b han duut. Av ho nia asu haree tuir.
Too loron manas av buka hamahan-an, iha ai-hun ida. Dadeer-saan atu sai av lori kedas fehuk ho ai-farina
maran. Bainhira bibi sira han duut, av tau ahi hodi tunu nia fehuk. Bainhira fehuk nee tasak, nia bolu nia asu.
$HHHH.DODNPDLKDQRQD$YyKDNLODUKRGLEROXDVXQHH$VXKDODLPDLKDQIHKXNAv foti nia bee ba hemu,
bee nee lori husi nia uma mai.
Hotu tiha av b haree bibi. Bibi sira deskansa iha ai-mahan. Asu b buka bee atu hemu. Haree loron atu tu
nona / monu, av lori nia bibi sira fila ba uma. La haluha lori ms duut matak ba bibi sira, hanesan ai-han ba
tempu kalan nian.
Loron ida, av haluha lori nia bee hemu. Hanesan babain, haree ninia bibi b han duut, av halo ai-suak ka
katana hun. Ida nee hanesan servisu kiik neeb av sempre halo, bainhira ema ruma husu ba nia.
Loron manas tebetebes, av lao ba haree bibi, asu aman nee ms tuir. Bibi sira han hela duut ho hakmatek.
Av ms sente hamlaha, tau ahi tiha, tunu ai-farina. Han hotu tiha ai-farina, nia hamrook tebetebes. Av la
hatene b buka bee iha neeb.
8KKRKLQKDXKDOXKDDWXORULEHH$JRUDKDPURRNORRV$YyGHKDQEDQLDDQ/DNOHXUDVXKDWHQX$XDX
DX
Av hamnasa, tamba nia halimar hela ho bibi oan sira. Lakleur asu lao ba fatin ida. Av foin sente hanrook, no
hanoin kona, katak bainhira asu lakon husi fatin nee, nia sempre fila ho ain bokon. Se nunee asu b hemu
bee.
Av tuir asu, tama too kuak boot ida. Iha kuak laran nakukun tebetebes, av hafuhu asu. Asu nee hemu hela
bee, hotu tiha fila ona. Av kontente tamba hetan bee atu hemu. Maib loron aat ba av. Nia la haree, katak rai
neeb nia sama, kois hela. Av kois, monu tama ba bee laran.
1DNXNXQKDXODKDUHHGDODQ$YyGHKDQEDQLDDQ
Av rona deit asu hatenu. Av hakilar husu tulun, maib ema ida la rona. Too ikus, av ms la rona asu nia
lian. Av lamas didin, buka dalan.
Lakleur, nia rona buat ida lian. Nia hanoin tuna karik. Derrepente, av rona lian ida. ,WDKDNDUDNWXLUEHHGDODQ
OHWHQ ND EHH GDODQ NUDLN" .DWXDV OD KDWiQ tamba nakukun. Nia sente katak nia liu husi bee dalan leten.
181
Durante loron hitu nia lao, han deit sapu kele no sipu oan. Se la hetan ona sipu no sapu oan, av han deit nia
faru neeb nia hatais hela.
Av nia famlia haree deit asu mak fila. Sira b bubur laran atu buka av. Asu lao uluk sira tuir deit. Ai-kuak no
fatuk-kuak, sira tama hotu tuir asu. Maib la hetan av tamba kole, sira fila b uma.
Too loron hitu av feto ba kuru bee. Nia hakdodak tebes haree av mane iha bee laran, ho oin kamutis, raan la
iha no la iha forsa atu hamriik.
6LPXOLSDQHHWDNDLVLQ$YyIHWRGHKDQ+DXODLKDIRUVDDYyKDWDQ+DXDMXGDKRGLODRDYyIHWRKDWDQ
Av feto lori av mane b uma.
Too ikus, av mane nee mate no sira hakoi besik bee matan Wailia. Sai bee nain Wailia too ikus nee. Bee
matan nee iha tanke ida. Bee moos no malirin loos, suli tun ba bee dalan too sidade Baucau too ohin loron.
A princpio, a terra era uma grande extenso de lamaal, vazia e inabitada. Deus colocou sobre esta terra, num
stio seco, o primeiro homem. Deus ordenou-lhe que ficasse nesse lugar e que s voltaria a visit-lo depois de
sete dias, deixando-lhe um copo de gua para que a bebesse durante esses sete dias.
O homem ficou satisfeito com o que aconteceu, mas observou que lhe faltava alguma coisa. Em seu redor via
TXHQDGDH[LVWLDHGHFLGLXHQWmRTXHLVWRVHUYLULDGHSHGLGRDRVHX2W[DZDQDSUy[LPDYLVLWD
Ao stimo dia Deus voltou a visit-lo como tinha prometido. O homem fez o seu pedido a Deus e, por
conseguinte, Deus ordenou que sobre a terra crescessem montes, montanhas e rvores de todas as espcies
e que a terra e o mar enchessem de seres vivos tambm de todas as espcies. O lugar onde foi colocado o
homem transformou-se numa montanha com cavernas que, ao mesmo tempo, lhe serviu de morada. Depois de
tudo isto, Deus voltou aos cus prometendo voltar depois de sete dias, deixando uma poro de gua como
tinha feito da primeira vez.
O homem observou que tudo era bom, mas sentia que estava completamente s, sem ningum sua
semelhana que servisse de companheiro. Faria este pedido a Deus na prxima visita, pensou ele.
Findos sete dias Deus apareceu de novo como lhe tinha prometido e o homem fez o seu pedido. Deus ouviu-o
e ordenou-lhe que ambos descessem a montanha para um lugar denomiQDGR/RULHPGLDOHFWRIDWDOXNX, que
TXHUGL]HUSkQWDQRRXODJRD1HVWHVtWLR'HXVRUGHQRXDRKRPHPTXHIL]HVVHGDODPDRXTXHDPDVVDVVH
da lama sete bonecos sua semelhana. Deus ordenou-lhe que os colocasse dentro de uma mala feita de
tronco e que a fechasse. Terminada esta tarefa subiram montanha. Deus voltaria depois de sete dias como de
costume.
182
Sete dias depois, Deus voltou como tinha prometido e ambos desceram da montanha para o stio onde tinham
posto os bonecos. Sob a ordem de Deus o homem abriu a mala e observou que os bonecos comearam a
articular-VH FRPR VH IRVVHP ORPEULJDV /DWX-3RUR, na verso fataluku. Depois deste acontecimento, Deus
ordenou que fechasse a mala e ambos subiram de novo a montanha. Deus prometeu-lhe voltar depois de sete
dias e deixou-lhe uma poro de gua como de costume.
Depois de sete dias, Deus apareceu como tinha prometido e ambos, mais uma vez, desceram da montanha
SDUD/RULRQGH estava a mala com os bonecos. O homem, sob as ordens de Deus, abriu a mala e viu que os
bonecos se tinham transformado em sete crianas muito tenras, todas de sexo masculino. Desta vez, Deus no
ordenou ao homem para fechar a mala, mas para a deixar aberta. Subiram ambos a montanha, ordenando-lhe
Deus que aguardasse mais sete dias at prxima visita, abastecendo-o com uma poro de gua.
Ao fim de sete dias, Deus apareceu para mais uma visita e ambos desceram ao stio de costume. Surpreendido
o homem ao verificar que as sete crianas se tinham transformado em seres humanos perfeitos, brincando,
juntamente, fora da mala. O homem ficou muito satisfeito por tudo estar completamente como o seu desejo. No
entanto, mais tarde, o homem sentiu que alguma coisa ainda lhe faltava, isto , como que viriam a entender-
se entre si se no havia nenhum meio de comunicao. Deus entendeu o que o homem desejava e deu-lhe a
fala, ou seja, uma lngua para comunicarem uns com os RXWURV/tQJXDTXHVHFKDPD0Dcua. O homem deu a
cada um deles um nome, uma identidade prpria. O homem subiu com eles para a montanha e ali
permaneceram.
Deus vendo que tudo estava bem, e vendo que o homem estava feliz, decidiu voltar aos cus.
A LENDA DO HOMEM-COBRA
Antigamente havia um velho chamado Leki, vivo, que vivia com as suas sete filhas. Viviam num lugar isolado,
tendo apenas como vizinha uma velha de nome Hare, que morava sozinha e era muito pobre.
Todas as tardes a velha Hare ia ao mato arranjar lenha para cozinhar noite e no dia seguinte pela manh,
antes de ir sua pequena horta, onde ela cultivava tudo o que podia para o seu sustento do dia-a-dia.
Um certo dia, depois de fazer um pequeno molho de ramos secos, atando-o com cordas, ela notou que era
pesado demais quando tentou p-lo na cabea. Pensando bem, comeou a desatar as cordas com a inteno
de retirar alguns ramos a fim de diminuir o peso do molho de lenha, mas qual no foi a sua admirao e receio,
quando viu uma grande cobra enroscada bem no centro do molho de lenha. A velha Hare cheia de medo,
quando a cobra ao ver-se descoberta lhe falou assim:
183
- Av, porque no me queres levar a tua casa? Vivo aqui no mato sem abrigo e passo fome. Peo-te que me
leves tua casa e me arranjes um cesto branco e limpo. Pe-me l dentro e pe o cesto num lugar bem alto
perto do tecto para eu poder descansar e recuperar as minhas foras.
Compadecida, j sem receio, a velha Hare assim fez, cuidando da cobra durante muito tempo.
Um dia, a grande cobra transformou-se num belo homem, jovem e forte. E para mostrar a sua gratido, cuidava
da velha Hare que j mal podia andar e muito menos cuidar da sua pequena horta. Passou a fazer todo o
trabalho e, a pouco e pouco, foi melhorando a condio de vida dos dois.
Certo dia, o jovem ao passar perto da casa do velho Leki, viu as suas filhas e notou que eram todas bonitas e
jovens. Voltando a casa pediu velha Hare que fosse pedir a mo de uma delas a seu pai, para se casar com
ela. A velha Hare logo se prontificou para tal trabalho, levando frutas, milho e carne como sinal de acordo, caso
o pedido fosse aceite pelo velho Leki e suas sete filhas.
Depois de ouvir as intenes da visita da velha Hare, o velho e as suas filhas sentiram-se ofendidas porque
achavam que a velha era de uma classe inferior a eles e muito pobre. Depois de muitos insultos, mandaram-na
embora. A velha como era teimosa, ia l sempre que podia repetir o seu pedido, embora o resultado fosse
sempre o mesmo, era humilhada e expulsa da casa. No entanto, a filha mais nova do velho, de nome Bui Iku,
muito curiosa pela teimosia da velha Hare, l foi espreitar a casa da velha a ver se descobria para quem era o
pedido, pois todos sabiam que a velha vivia sozinha, no tinha filhos nem parentes que se conhecessem. Ao
descobrir o jovem que era um belo rapaz, Bui Iku enamorou-se e, no stimo dia do pedido, ela aceitou, embora
o pai e as irms no concordassem.
A velha Hare, toda satisfeita, voltou para sua casa, levando consigo a Bui Iku, depois de entregar todo o
%DUODTXH (squito) a seu pai, conforme o costume exigia.
O jovem tambm ficou muito contente e resolveu construir uma nova casa e muito maior. Trabalhou com mais
afinco, aumentando a sua horta, criando animais, melhorando as suas vidas.
Depois de um ano, o jovem vendo a esposa j em estado de gravidez, resolveu ir a outras terras, alm mar e
procurar roupas e outras coisas para as necessidades do seu filho que iria nascer em breve.
Por esses tempos, as irms de Bui Iku, que a haviam desprezado, estavam muito interessadas porque ouviam
muitas histrias pela gente da aldeia acerca da irm e do marido que comeava a ser muito conhecido e
respeitado, porque era muito inteligente e trabalhador. Era amigo de toda a gente, embora fosse da origem de
cobra, como todos os seus antepassados que foram cobras, que se transformaram em homens.
As irms cheias de inveja procuravam maneira de destruir a famlia de Bui Iku. Uma das irms de nome Kassa,
aproveitando a ausncia do marido convidou Bui Iku a irem tomar banho na praia, no muito longe da sua
aldeia, na inteno de a afogar no mar. Pelo caminho da praia, Kassa no parava de aconselhar Bui Iku a
abandonar o marido, dizendo que ele fora cobra e podia voltar a ser cobra. Um dia, quando estiver farto de ti,
pode matar-te, mordendo como todas as cobras fazem.
184
Bui Iku como conhecia bem o marido que era muito leal e lhe tinha muita afeio no ligou muito conversa da
irm. Por muito ela ficou a pensar e a recordar se lembrava alguma vez ter notado algumas ms intenes ou
vcios do seu marido. Ele sempre foi bom trabalhador, leal e no era ambicioso como todos os homens
normais.
Kassa vendo sem resultado a sua primeira tentativa, resolveu afogar Bui Iku, quando estavam a tomar banho.
Assim fez, e no foi difcil, pois no estado de gravidez em que estava Bui Iku no se podia defender. Julgando
que a irm estava morta no fundo do mar, Kassa voltou para casa toda satisfeita para contar s irms como
conseguiu afog-la.
No entanto, Bui Iku apenas perdeu os sentidos e foi levada pelas ondas a uma ilha pequena e deserta no
longe da praia, onde s havia um coqueiro e um galo que todas as noites pernoitava ali. L ficou a Bui Iku
presa naquela ilha durante meses. Alimentava-se apenas de coco.
Certa manh, Bui Iku viu um barco aproximar-se na direco da praia da sua terra. Bui Iku, levantando a voz,
comeou a chorar, cantando assim:
$K$KFREUDFREUDFRPRVmRDPDUgas e salgadas as guas do mar!
No barco, ouvindo os lamentos ao longe, um dos marinheiros admirado disse ao jovem que algum naquela
ilha deserta estava a chamar por ele.
Realmente era o barco do marido de Bui Iku que voltava de alm-mar, mas ele no quis acreditar no marinheiro
porque no ouviu os lamentos de Bui Iku, apenas ouviu o cantar do galo.
Mas, medida que o barco se aproximava mais da ilha, os lamentos de Bui Iku foram mais fortes, e o marido,
reconhecendo a sua voz, desviou logo o barco para a ilha.
Depois de ouvir toda a histria da sua esposa, resolveram todos continuar a viagem para a sua terra e chegar a
casa o mais depressa possvel.
chegada do jovem e sua comitiva a casa, a irm de Bui Iku, a Kassa, foi logo a correr, toda curiosa a ver a
reaco do homem cobra no encontrando a sua mulher em casa. Qual no foi o seu espanto ao ver tambm a
Bui Iku com o marido, s e salva.
Muito irritada, cheia de inveja, procurou roubar e destruir todos os bens que o jovem trouxe de alm-mar
entrando na casa sem ningum a ver. Ela no teve sorte porque a Bui Iku, que naquele momento queria ver as
prendas que o marido comprou para o seu filho, apanhou-a ainda a mexer na arca das prendas e matou-a com
uma faca.
Bui Iku e o marido foram enterrar o corpo de Kassa no quintal da sua casa. Depois de um ano l nasceu e
cresceu uma planta de beringela, que sempre estendia seus espinhos e feria quem passasse por ali.
Entretanto o filho do casal nasceu e cresceu. Tornou-se um rapaz formoso e saudvel, mas sempre ia brincar
perto da beringela, esta o ameaava, dizendo:
- Sai daqui filho de cobra, se os meus espinhos te ferirem, tu PRUUHVLPHGLDWDPHQWH
185
O rapaz no sabia daquela histria e, um dia, foi lamentar-se aos pais, questionando o porqu do dio da
beringela.
Os pais, para no relembrarem mais um passado triste e para evitar novos perigos que pudessem ameaar o
seu nico filho, arrancaram a beringela pela raiz e deitaram-na ao fogo.
Por aqueles tempos o jovem j era famoso entre as pessoas da aldeia. Todas o admiravam porque era
trabalhador, muito inteligente, gostava de ajudar as pessoas, dava sempre o que lhe restava aos necessitados
e, sobretudo, nunca foi ambicioso de ter mais do que o suficiente para o sustento da famlia.
A sua fama levou-o a ser escolhido como chefe da aldeia, quando o velho chefe morreu. Foi escolhido pelos
katuas (ancios) da aldeia. Aprovado por muitas pessoas, embora houvesse tambm alguns que protestaram
por ele ser descendente de cobras.
Durante o seu reinado, todo o povo se sentia em paz e feliz e havia prosperidade. Com o tempo, a inveja fez
com que os seus inimigos tambm aumentassem, mas ningum ousava atac-lo ou desafi-lo frente-a-frente,
porque nunca ningum o viu cometer qualquer erro contra a lei ou contra as tradies da aldeia.
Ele resolvia as questes entre a populao e com justia. Ensinou o seu povo a fazer remdios e drogas a
partir de razes, cascas e folhas de rvores. Sabia adivinhar o tempo e o clima. As hortas e vrzeas da aldeia
sempre tiveram boas colheitas.
Levou o seu filho a viajar por muitas terras, transmitindo-lhe muito saber, preparando-o para lhe suceder mais
tarde, conforme o desejo da maioria do povo que muito estimava a sua famlia.
Dizia-se que muito do seu saber derivava da sua ascendncia de cobra, que conforme consta, conheciam
melhor a natureza e os seus segredos, mais do que qualquer homem porque os homens muitas vezes s
sabem aproveitar o que h sua frente e destruir aquilo que deviam cuidar.
Quando j muito velho, sentindo a hora da morte aproximar-se, chamou a sua esposa, Bui Iku, seu filho Mane
Mesak (Filho nico), juntamente com alguns dos seus fiis servidores, falou-lhes assim:
- Sinto a minha hora a aproximar-se, diz-me o meu instinto de cobra. a lei da natureza e nenhum animal nem
os homens a podem evitar. Agora ouam-me bem e cumpram o que vos vou pedir. Antes de morrer,
transformar-me-ei em cobra. Nesse momento vocs devem esfolar a minha pele e sec-la durante uns dias,
depois guardem a minha pele dentro da hoka (grande saco de arroz ainda com casca) para se no estragar, e
assim sempre tem com que se recordar de mim.
Entretanto o meu corpo voltar a transformar-se em corpo de homem e eu morrerei definitivamente. O meu
corpo deve ser enterrado num lugar alto, onde toda a gente o possa ver e testemunhar que eu fui homem, filho
de cobra e que morri como homem.
E assim, um ms depois, o homem cobra morreu. Os seus familiares e o povo cumpriram o seu ltimo desejo.
O seu filho Mane Mesak sucedeu-lhe como chefe da aldeia e governou to bem como o pai.
186
Mais tarde conta-se que a sua descendncia governou aquela terra durante geraes e sempre havia
prosperidade porque os chefes e o povo estimavam e cuidavam da natureza, que sempre lhes dava o
necessrio para viverem.
187