Vitor Manuel de Aguiar e Silva - Teoria Da Literatura
Vitor Manuel de Aguiar e Silva - Teoria Da Literatura
Vitor Manuel de Aguiar e Silva - Teoria Da Literatura
II – Funções da Literatura
2. (...)
Os conhecidos versos de Horácio que assinalam com finalidade da poesia aut
prodesse aut delectare, não implicam um conceito de poesia autônoma, de uma poesia
exclusivamente fiel a valores poéticos, ao lado de uma poesia pedagógica. O prazer, o
dulce referido por Horácio e mencionado por uma longa tradição literária européia de raiz
horaciana, conduz antes a uma concepção hedonista da poesia, o que constitui ainda um
meio de tornar dependente, e quantas vezes de subalternizar lastimavelmente, a obra
poética.
De feito, até meados do século XVIII, confere-se à literatura, quase sem exceção, ou
uma finalidade hedonista ou uma finalidade pedagógico-moralista. E dizemos quase sem
exceção, porque alguns casos se podem mencionar nos quais se patenteia com maior ou
menor acuidade a consciência da autonomia da literatura. Calímaco, por exemplo,
característico representante da cultura helenística, procura e cultiva uma poesia original,
rica de belos efeitos sonoros, de ritmos novos e gráceis, alheia a motivações morais.
Séculos mais tarde, alguns trovadores provençais transformaram a sua atividade poética
numa autêntica religião da arte, consagrando-se de modo total à criação do poema e ao seu
aperfeiçoamento formal, excluindo dos seus propósitos qualquer intenção utilitária. Um
fino conhecedor da literatura medieval, o Prof. Antonio Viscardi, escreve a este respeito:
“O que conta é a fé nova da arte, em que todos observam e praticam com devoção sincera”.
Desta fé nasce o sentido trovadoresco da arte que é o fim de si mesma. A arte pela arte é
descoberta dos trovadores”.
4. Já atrás nos referimos, acerca das doutrinas da arte pela arte, a uma importante
finalidade freqüentemente assinalada à literatura: a evasão. Em termos genéricos, a evasão
significa sempre a fuga do eu a determinadas condições da vida e do mundo, de um mundo
imaginário, diverso daquele de que se foge, e que funciona como sedativo, como ideal
compensação, como objetivação de sonhos e de aspirações.
A evasão, como fenômeno literário, é verificável quer no escritor quer no leitor.
Deixando para ulterior e breve análise o caso deste último, examinemos primeiramente os
principais aspectos da evasão no plano do criador literário.
Na origem da necessidade que o escritor experimenta de se evadir, podem atuar
diversos motivos. Entre os mais relevantes, contam-se os seguintes:
a) Conflito com a sociedade: o escritor sente a mediocridade, a vileza e a injustiça
da sociedade que o rodeia e, numa atitude de amargura e de desprezo, foge a
essa sociedade e refugia-se na literatura. Este problema da incompreensão e do
conflito entre o escritor e a sociedade agravou-se singularmente a partir do pré-
romantismo, em virtude sobretudo das doutrinas de Rousseau acerca da
corrupção imposta ao homem pela sociedade, e atingiu com o romantismo uma
tensão exasperada. Nesta oposição em que se defrontam o escritor e a sociedade,
desempenha primacial papel o sentimento de unicidade que existe em todo
artista autêntico.
b) Problemas e sofrimentos íntimos que torturam a alma do escritor e aos quais este
foge pelo caminho da evasão. A inquietação e o desespero dos românticos – o
mal du siècle – estão na origem da fuga ao circunstante e do anélito por uma
realidade desconhecida. (...) O tédio, o sentimento de abandono e de solidão, a
angústia de um destino frustrado constituem outros tantos motivos que abrem
aporta da evasão.
c) Recusa de um universo finito, absurdo e radicalmente imperfeito. Geralmente,
esta recusa envolve um sentido metafísico, pois implica uma tomada de posição
perante os problemas da existência de Deus, da finalidade do mundo, do
significado do destino humano, etc. Lembremos a revolta dos românticos ante o
mundo finito, ou a fuga dos surrealistas de um mundo falsificado pela razão.
A evasão do escritor pode realizar-se, no plano da criação literária, de diferentes
modos:
1. Transformando a literatura numa autêntica religião, numa atividade tiranicamente
absorvente no seio da qual o artista, empolgado pelas torturas e pelos êxtases da sua
criação, esquece o mundo e a vida. Flaubert e Henry James são dois altíssimos
exemplos desta evasão através do culto fanático da arte.
2. Evasão no tempo, buscando em épocas remotas a beleza, a grandiosidade e o encanto
que o presente é incapaz de oferecer. Assim os românticos cultivaram freqüentemente,
pelo mero gosto da evasão, os temas medievais, tal como os poetas da arte pela arte,
como vimos, se deleitaram com a antigüidade greco-latina. (...)
3. Evasão no espaço, manifestando-se pelo gosto de paisagens, de figuras e de costumes
exóticos. O Oriente constituiu em todos os tempos copiosa fonte de exotismo, mas não
devemos esquecer outras regiões igualmente importantes sob este aspecto, como a
Espanha e a Itália para os românticos (Gautier, Mérimée, Stendhal) e as vastas regiões
americanas para alguns autores pré-românticos e românticos (Prévost, Saint-Pierre,
Chateubriand, escritores indianistas do romantismo brasileiro, etc.)
(...)
4. A infância constitui um domínio privilegiado da evasão literária. Perante os tormentos,
as desilusões e as derrocadas da idade adulta, o escritor evoca sonhadoramente o tempo
perdido da infância, paraíso distante onde vivem a pureza, a inocência, a promessa e os
mitos fascinantes. (...)
5. A criação de personagens constitui outro processo freqüentemente utilizado pelo
escritor, particularmente pelo romancista, para se evadir. A personagem, plasmada
segundo os mais secretos desejos e desígnios do artista, apresenta as qualidades e vive
as aventuras que o escritor para si baldadamente apetecera. (...)
6. O sonho, os paraísos artificiais provocados pelas drogas e pelas bebidas, a orgia, etc.,
representam outros processos de evasão com larga projeção na literatura. A literatura
romântica e simbolista oferece muitos exemplos destas formas de evasão.
(...)
um modo de conhecimento; se bem um conhecimento que não seja ordenado ao discurso ou ao raciocínio mas
à simples fruição poética. Eis uma verdade que ninguém poderia negar, a menos que pretendesse tapar o sol
com peneira e esquecer a mensagem poética profunda de um Baudelaire, Rimbaud e tantos outros.
[...] a poesia é hoje um modo de conhecimento, afetivo embora, conatural embora, ainda que
imperfeito e fazendo mesmo dessa imperfeição a sua grandeza, e por mais paradoxal que pareça, a sua
perfeição mesma” (Obra completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1958, vol. I, p. 67).
10
V., por exemplo, Lino Granieri, Estética pura, Bari, Edizioni Nerio, 1962, p.226.
11
Wilbur Marshall Urban, Lenguage y realidad, México, Fondo de Cultura Econômica, 1952, pp. 394-395.
12
Marcel Proust, A la recherche du temps perdu, Paris, Gallimard, (Bibliothèque de la Pléiade), 1956, t. III, p.
885. Sobre a finalidade cognitiva atribuída por Marcel Proust à arte, v. Henri Bonnet, L’eudémonisme
esthétique de Proust, Paris, Vrin, 1949, e Jacques J. Zéphir, La personalité humaine dans l’oeuvre de Marcel
Proust, Paris, Minard, 1959, pp. 240 ss.
13
Jules Laforgue, Poésis, Paris, Colin, 1959, p.234.
Link catarse: (pg. 113-114)
IV. O Romance
[...]
O tempo da diegese está delimitado e caracterizado por indicações estritamente
cronológicas relativas ao calendário do ano civil – anos, meses, dias, horas -, por
informações ligadas ainda a este calendário, mas apresentando sobretudo um significado
cósmico – ritmo das estações, ritmo dos dias e das noites -, por dados concernentes a uma
determinada época histórica, etc.
O tempo diegético pode ser muito extenso – como n’Os Buddenbrook de Thomas
Mann – ou relativamente curto como em Luto no Paraíso de Juan Goytisolo. Quer seja
extenso, quer seja curto, é possível, em geral, medir com suficiente rigor o tempo diegético.
Pelo contrário, o tempo da narrativa, ou do discurso, é de difícil medição. Poder-se-
á medir este tempo por meio da paginação? Mas a página é uma unidade variável, em
função da mancha tipográfica e em função do tipo de letra; a página pode estar
compactamente ocupada com frases ou pode apresentar numerosos espaços em branco.
Poder-se-á fazer coincidir o tempo da narrativa com o tempo que é necessário dispender
para a sua leitura? O tempo exigido pela leitura de um texto, porém, é igualmente um
critério variável e aleatório. A velocidade da leitura modifica-se de leitor para leitor, e nem
sequer é constante no mesmo leitor, de modo que é impossível estabelecer um padrão ideal
suscetível de normalizar, digamos assim, essa velocidade de leitura.
As relações entre o tempo diegético e o tempo narrativo assumem uma importância
capital na organização do romance.
A coincidência perfeita entre o desenvolvimento cronológico da diegese e a
sucessão, no discurso, dos acontecimentos diegéticos, não se encontra possivelmente em
nenhum romance. Aos desencontros entre a ordem dos acontecimentos no plano da diegese
e a ordem por que aparecem narrados no discurso, daremos a designação de anacronias.
A tradição épica greco-latina oferece um exemplo famoso de anacronia, ao
preceituar que o poema épico deve ser iniciado in media res. Deste modo, o começo do
discurso corresponde a um momento já adiantado da diegese, obrigando tal técnica, como é
óbvio, a narrar depois no discurso o que acontecera antes na diegese.
O começo da narrativa in media res é freqüente no romance. Pode mesmo acontecer
que o romancista principie o discurso in ultimas res, digamos assim, de maneira que as
páginas iniciais narram, eventualmente com ligeiras modulações, a situação com que se
encerra a sintagmática diegética. (...) O romance policial adota, nas suas linhas
fundamentais, este tipo de abertura narrativa -, mas que também, e um pouco
paradoxalmente, informa logo ab initio o leitor do destino final da personagem.
Tanto o início da narrativa in media res como in ultimas res obriga o romancista a
narrar posteriormente os antecedentes diegéticos dos episódios e das situações que figuram
na abertura do romance. Quer dizer, em relação à temporalidade do segmento diegético
primeiramente narrado, o romancista institui uma temporalidade segunda, dando assim
lugar a um anacronia. No caso de início in media res, a anacronia depois de ocupar uma
extensão maior ou menor da sintagmática do discurso, é reabsorvida pela primeira
narrativa, que continua a desenvolver-se após aquela interrupção; no caso do início in
ultimas res, a anacronia apresenta-se como a narrativa de base, ocupando a quase totalidade
do discurso.
A esta espécie de anacronias, constituídas por recuos no tempo, dá-se em geral a
designação de flash-back e daremos nós, seguindo a mencionada terminologia de Gérard
Genette, a denominação de analepse.
A analepse é um recurso de que os romancistas se servem com freqüência, porque
permite comodamente esclarecer o narratório sobre os antecedentes de uma determinada
situação – sobretudo quando essa situação se encontra no início da narrativa – e sobre uma
personagem introduzida pela primeira vez no discurso ou neste reintroduzida, após
disparição mais ou menos prolongada. A narrativa analéptica desempenha uma função
muito relevante no romance naturalista, em estreita interdependência com a concepção
positivista do mundo que rege este romance. Após a apresentação das personagens
principais, o romancista naturalista recorre logicamente a analepses mais ou menos
extensas para analisar, segundo a ótica positivista, as forças determinantes –
hereditariedade, influência do meio, constituição fisiológica e temperamental – que
modelam aquelas personagens.
A analepse constitui uma técnica utilizada pelo romance de todas as épocas – no
século XVIII, Sterne escreveu essa obra-prima da narrativa analéptica que é Tristam
Shandy -, não podendo de modo nenhum ser considerada uma descoberta do romance do
século XX, fundado em especial na capacidade retrospectiva da memória.
(...)
A anacronia pode consistir, porém, numa antecipação, no plano do discurso, de um
fato ou de uma situação que, em obediência à cronologia diegética, só deviam ser narrados
mais tarde. A esta espécie de anacronia daremos a denominação de prolepse.
A prolepse é menos freqüente do que a analepse, sendo mesmo bastante rara a sua
ocorrência no romance do século XIX. O romance que mais fácil e logicamente acolhe
prolepses é o romance de narrador autodiegético, pois este narrador, que organiza a
narrativa segundo um modelo explicitamente retrospectivo, não tem dificuldade de, a
respeito de um acontecimento diegético, evocar um outro que lhe é cronologicamente
posterior. No romance contemporâneo, porém, as prolepses podem abundar mesmo sem a
existência de um narrador autodiegético, como comprova, por exemplo, Enseada amena de
Augusto Abelaira.
Além das anacronias, outra espécie de tensões e desencontros se institui entre o
tempo diegético e o tempo narrativo, dizendo respeito à duração dos acontecimentos na
sucessão diegética e à duração da sintagmática narrativa em que tais acontecimentos são
relatados.
A coincidência perfeita entre duração da diegese e do discurso será possível? Tal
isocronia só será de admitir num caso: quando o discurso reproduzir fielmente, sem
qualquer intervenção do narrador, um diálogo da diegese. No capítulo VII de Agulha no
palheiro de Camilo, após um diálogo entre Paulina e Eugenia, o narrador comenta: “Este
diálogo, que parece estirado, correu em menos de quatro minutos”. Qualquer leitor que leia
em voz alta, sem pressas nem demoras, o citado diálogo e registre o tempo de sua leitura,
verificará que esta dura um pouco mais de três minutos, coincidindo portanto esta duração
com a temporalidade diegética indicada pelo narrador.
Todavia, nem em tal caso se pode rigorosamente falar de absoluta igualdade entre o
segmento diegético e o segmento narrativo, pois que, como observa pertinentemente Gérard
Genette, o discurso não reproduz “a velocidade com a qual aquelas palavras foram
pronunciadas, nem os eventuais tempos mortos da conversação”. De qualquer modo, é nos
segmentos do discurso constituídos exclusiva, ou predominantemente, por diálogos –
segmentos que a crítica anglo-americana, na esteira de Henry James e Percy Lubbock,
chama cenas (scenes) – que se verifica uma isocronia relativa – uma tendência para ela –
entre o tempo diegético e o tempo narrativo. Pondo de lado estes casos, o que o romance
apresenta são anisocronias, diferenças de duração, entre esses dois tempos.
O narrador pode relatar velozmente, através de fragmentos do discurso que
denominaremos resumos (na crítica de língua inglesa, summaires), acontecimentos
diegéticos ocorridos em longos períodos de tempo. Fernando Namora condensa nesta meia
dúzia de linhas sucessos que se desenrolaram durante grande parte da noite: “Tinham
perdido a noite na ceifa dos tojos e a segurar a burra sobre as labaredas da fogueira. Aquilo
acabara numa gritaria dos diabos, quando Alice, presa à garupa do animal, viu que o pai e o
compadre não escolhiam os meios de manter a besta amarrada ao sacrifício. Berrando uns
com os outros, lambidos pelo fogo, como danados, pareciam demônios fugidos do
inferno”14. O resumo pode ser mais condensado ainda, bastando escassas palavras para
referir uma temporalidade diegética muito dilatada: “E nesse ano passou. Gente nasceu,
gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam. Outros anos passaram.”15
Tais resumos extremamente condensados avizinham-se das elipses, anisocronias
resultantes do fato de o narrador excluir do discurso determinados acontecimentos
diegéticos, dando assim origem a mais ou menos extensos vazios narrativos. A elipse é um
processo fundamental da técnica narrativa, pois nenhum narrador pode relatar com estrita
fidelidade todos os pormenores da diegese. Umas vezes, o narrador informa explicitamente
o leitor de que eliminou da narrativa um certo número de fatos, por irrelevantes,
monótonos, maçadores, escabrosos, etc.; outras vezes, porém, a elipse não é assinalada
especificamente no texto, devendo o leitor identificá-la pela análise das sintagmáticas
diegética e narrativa. Estas elipses implícitas desempenham uma função muito importante
no romance contemporâneo: já não se trata de aliviar o texto de pormenores diegéticos
destituídos de interesse ou chocantes para o leitor, mas de elidir intencionalmente do
discurso elementos diegéticos fundamentais, que o leitor terá de reconstituir, baseando-se
nas informações fragmentárias que o texto lhe oferece.
As anisocronias podem resultar, porém, do fato de uma temporalidade narrativa
longa. As descrições e as análises minuciosas de um fato, de uma ação, de um gesto, de um
estado de alma, podem gerar um tempo do discurso superior ao tempo da diegese,
determinando, com as suas pausas, um ritmo vagaroso da narrativa. Igual conseqüência
dimana das digressões que o narrador pode inserir no discurso e que suspendem a
progressão da diegese. A principal causa, porém, de alongamento da temporalidade
narrativa em relação à temporalidade diegética consiste na possibilidade que o narrador
detém de instaurar uma espécie de narrativa segunda que se vem enxertar na diegese
primária – ou, talvez melhor, que nasce desta diegese primária e que se desenvolve, por
vezes, dentro dela como uma espécie de metástase diegética -, explorando as virtualidades
da memória e da retrospecção e devassando o enredado mundo interior das personagens. A
utilização de tais técnicas narrativas permitiu a Claude Mauriac escrever um romance de
duas centenas de páginas, L’Agrandissement, cuja diegese primária, digamos assim, tem
como limites cronológicos os breves minutos em que perdura uma luz vermelha dos sinais
de trânsito. A um tempo objetivo tão escasso corresponde portanto um tempo psicológico,
existencial, bastante dilatado. A extensão do tempo do discurso é gerada pela dimensão
deste tempo psicológico.
O monólogo interior constitui uma das técnicas mais utilizadas pelos romancistas
contemporâneos a fim de representarem os meandros e as complicações da corrente de
consciência de uma personagem e assim poderem analisar a urdidura do tempo interior.
A técnica do monólogo interior foi inventada por Édouard Dujardin (1861-1949),
obscuro escritor francês que publicou, em 1887, um romance em que o monólogo interior
era abundantemente utilizado – Les lauriers sont coupés. James Joyce reconheceu em
Dujardin o inspirador da técnica dos monólogos interiores de Ulisses, arrancando assim do
olvido o romancista gaulês.
Num livrinho com o título de Le monologue intéieur, publicado em 1931, Dujardin
caracterizou assim o monólogo interior: “o monólogo interior, como qualquer monólogo, é
14
Fernando Namora, O trigo e o joio, 8ª ed., Lisboa. Publicações Europa-América, 1972, p. 317.
15
Eça de Queiróz, Os maias, p.689.
um discurso da personagem posta em cena e tem como objetivos introduzir-nos diretamente
na vida interior dessa personagem sem que o autor intervenha com explicações ou
comentários, e, como qualquer monólogo, é um discurso sem auditor e um discurso não
pronunciado; mas diferencia-se do monólogo tradicional pelo seguinte: quanto à sua
matéria, é uma expressão do pensamento mais íntimo, mais próximo do inconsciente;
quanto ao seu espírito, é um discurso anterior a qualquer organização lógica, reproduzindo
esse pensamento no seu estado nascente e com aspecto de recém-vindo; quanto à sua
forma, realiza-se em frases diretas reduzidas ao mínimo de sintaxe”. Esta definição de
Dujardin pode ser com razão criticada nalguns pontos, mas oferece uma noção aceitável
dos caracteres fundamentais do monólogo interior: é um monólogo não pronunciado, que se
desenrola na interioridade da personagem – e há determinados estados psicofisiológicos
particularmente favoráveis à eclosão do monólogo interior: rêverie, insônias, cansaço, etc.-,
que não tem outro auditor que não seja a própria personagem e que se apresenta sob uma
forma desordenada e até caótica – sintaxe extremamente frouxa, pontuação escassa ou nula,
grande liberdade, sob todos os pontos de vista, no uso do léxico, etc. -, sem qualquer
intervenção do narrador e fluindo à medida que as idéias e as imagens, ora insólitas ora
triviais, ora incongruentes ora verossímeis, vão aparecendo, se vão atraindo ou repelindo na
consciência da personagem. O monólogo interior é, pois, uma técnica adequada à
representação dos conteúdos e processos da consciência – e não apenas dos conteúdos mais
próximos do inconsciente, como afirma Dujardin -, diferenciando-se do monólogo
tradicional, direto ou indireto, pelo fato de captar os conteúdos psíquicos no seu estado
incoativo, na confusão e na desordem que caracterizam o fluxo da consciência, sem a
intervenção disciplinadora e esclarecedora do narrador.
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. Coimbra: Livraria
Almedina, 1983. 5ª ed. Vol. 1.
[o que está em cinza não está no site]
4. Gêneros Literários
(...)
O formalismo russo, cuja fundamentação anti-idealista e cujo “novo pathos de
positivismo científico” foram realçados por Eikhenbaum, atribuiu logicamente ao gênero,
quer na praxis da literatura, quer na metalinguagem da teoria, da crítica e da história
literárias, uma importância de primeiro plano. Com efeito, um princípio teorético essencial
do formalismo russo consiste na afirmação de que a “soledade” e a “singularidade” de cada
obra literária não existem, porque todo o texto “faz parte do sistema da literatura, entra em
correlação com este mediante o gênero [...]”. Como escreve Tomachevski num dos
capítulos da sua obra intitulada Teoria da literatura, o gênero define-se como um conjunto
sistêmico de processos construtivos, quer a nível técnico-formal, manifestando-se tais
caracteres do gênero como os processos dominantes na criação da obra literária.(...)
Rejeitando qualquer dogmatismo reducionista que originaria uma classificação
rígida e estática, os formalistas russos conceberam o gênero literário como um aentidade
evolutiva, cujas transformações adquirem sentido no quadro geral do sistema literário e na
correlação deste sistema com as mudanças operadas no sistema social, e por isso
advogaram uma classificação historicamente descritiva dos gêneros. (...)
(...)
Com a herança teórica e metodológica do formalismo russo se relaciona ainda a
caracterização dos gêneros literários proposta por Jakobson, baseada na função da
linguagem que exerce o papel de subdominante em cada gênero (o papel de função
dominante, de acordo com a concepção jakobsoniana da literariedade, é exercido pela
função poética): o gênero épico, concentrado sobre a terceira pessoa, põe em destaque a
função referencial; o gênero lírico, orientado para a primeira pessoa, está vinculado
estreitamente à função emotiva; o gênero dramático, “poesia da segunda pessoa”, apresenta
como subdominante a função conativa e “caracteriza-se como suplicatório ou exortativo
conforme a primeira pessoa esteja nele subordinado à segunda ou a segunda à primeira”.
Uma das mais ambiciosas e originais sínteses da problemática teorética dos gêneros
literários foi elaborada por Northrop Frye, na sua obra Anatomia da crítica (1957). Logo na
“Introdução polêmica” deste livro brilhante e, às vezes, paradoxal, Northrop Frye enumera
entre os problemas mais importantes da poética a delimitação e a caracterização das
“categorias primárias da literatura”, sublinhando enfaticamente: “Descobrimos que a teoria
crítica dos gêneros parou precisamente onde Aristóteles deixou-a”. Como outros
investigadores contemporâneos, Frye admira na Poética de Aristóteles o modelo
epistemológico e metodológico que a teoria da literatura do nosso tempo, orientada por
ideais de racionalidade científica, pode e deve utilizar na análise dos fatos e dos problemas
surgidos posteriormente a Aristóteles. (...)
Em primeiro lugar, Frye estabelece uma teoria dos modos ficcionais, inspirando-se
na caracterização aristotélica dos caracteres das ficções poéticas, os quais podem ser
melhores, iguais ou piores “do que nós somos”. Tal classificação dos modos ficcionais, que
não apresenta quaisquer implicações moralísticas, é ideada em função da capacidade de
ação do herói das obras de ficção e da sua relação com os outros homens e com o meio. (...)
Por outro lado, Northrop Frye estabelece a existência de quatro categorias
narrativas mais amplas do que os gêneros literários geralmente admitidos e logicamente
anteriores a eles. Estas categorias, que Frye mythoi, fundam-se na oposição e na interação
do ideal com o atual, do mundo da inocência com o mundo da experiência: o “romance” é o
mythos do mundo da inocência e do desejo; a ironia ou a sátira enraízam-se no mundo
defectivo do real e da experiência; a tragédia representa o movimento da inocência, através
da hamartia ou falta, até à catástrofe; a comédia caracteriza-se pelo movimento ascensional
do mundo da experiência, através de complicações ameaçadoras. (...)
Finalmente, Northrop Frye constrói uma teoria dos gêneros, partindo do princípio de
que as distinções genéricas em literatura têm como fundamento o radical de apresentação:
as palavras podem ser representadas, como se em ação, perante o espectador; podem ser
recitadas ante um ouvinte; podem ser cantadas ou entoadas; podem, enfim, ser escritas para
um leitor. (...)
O epos constitui aquele gênero literário em que o autor ou um recitador narram
oralmente, dizem os textos, peranteum auditório postado à sua frente. (...)
O gênero lírico caracteriza-se pelo ocultamento, pela separação do auditório em
relação ao poeta. O poeta lírico pretende em geral falar consigo mesmo ou com um
particular interlocutor. (...)
O gênero dramático caracteriza-se pelo ocultamento, pela separação do autor em
relação ao seu auditório, cabendo aos caracteres internos da história representada dirigirem-
se diretamente a este mesmo auditório.
Ao gênero literário cujo radical de apresentação “é a palavra impressa ou escrita”,
tal como acontece nos romances e nos ensaios, concede Frye a designação de ficção,
embora reconhecendo que se trata de uma escolha arbitrária. Na ficção, ao contrário do que
acontece no epos, tende a dominar a prosa, porque o ritmo contínuo desta adequa-se melhor
à “forma contínua do livro”.
(...)
Numerosos e importantes estudos sobre os gêneros literários se têm ficado a dever,
nas últimas décadas, a investigadores que se inserem na grande tradição do idealismo e do
historicismo germânico. Entre esses estudos, avulta a obra de Emil Staiger intitulada
Grundbegriffe der Poetik [Conceitos fundamentais da Poética]. Condenando uma poética
apriorística e anti-histórica, Staiger acentua a necessidade de a poética se apoiar firmemente
na história, na tradição formal concreta e histórica da literatura, já que a essência do homem
reside na sua temporalidade. Retomando a tradicional tripartição de lírica, épica e drama,
reformulou-a profundamente, substituindo estas formas substantivas e substancialistas pelas
designações adjetivais e pelos conceitos estilísticos de lírico, épico e dramático. O que
permite fundamentar a existência destes conceitos básicos da poética? A própria realidade
do ser humano, pois “os conceitos do lírico, do épico e do dramático são termos da ciência
literária para representar possibilidades fundamentais da existência humana em geral; e
existe uma lírica, uma épica e uma dramática, porque as esferas do emocional, do intuitivo
e do lógico constituem em última instância a própria essência do homem, tanto na sua
unidade como na sua sucessão, tal como aparecem refletidas na infância, na juventude e na
maturidade”. Staiger caracteriza o lírico como recordação, o épico como observação e o
dramático como expectativa. Tais caracteres distintivos conexionam–se obviamente como a
tridimencionalidade do tempo existencial: a recordação implica o passado, a observação
situa-se no presente, a expectativa no futuro. Deste modo, a poética alia-se intimamente à
ontologia e à antropologia e a análise dos gêneros literários volve-se em reflexão sobre a
problemática existencial do homem, sobre a problemática do “ser e do tempo”.