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VERGLIO FERREIRA
ORALIDADE E LEITURA
1. Propomos-te a leitura de um conto de Verglio Ferreira intitulado A
palavra mgica. O que ser uma palavra mgica?
2. medida que ls o texto, procura responder mentalmente s
perguntas que o acompanham para, no final, trocares impresses
com os teus colegas sobre as respostas que deste.
A palavra mgica
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Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ningum. Se s vezes guerreava,
com palavras azedas para c e para l, era apenas com os fundos da prpria
conscincia. Vivo, sem filhos, dono de umas leiras 1 herdadas, o que mais parecia
1 Leiras: terras.
inquiet-lo era a maneira de alijar 2 bem depressa o dinheiro das rendas.
Semeava
2 Alijar: aliviar,
to facilmente as economias, que ningum via naquilo um sintoma derecusar.
pena ou de
3
Espora:
justia mesmo da velha , mas apenas um desejo urgente de comodidade. espigo
Dar
usado nas botas dos
aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa dele derret-locavaleiros
em vinho,
para
acelerar
a marcha
dos
que o Carmelo no comprava nada livros ou cadernos ao filho que
andava
na
Por que razo
ser to
animais. reforar
importante
instruo primria. Silvestre encolhia os ombros, no tinha nada com isso. As
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Quebreiras
que
o Silvestre de
boa
moedas rolavam-lhe para dentro da algibeira e com o mesmo impulso
pessoa?
cabea: fatal
preocupaes.
rolavam para fora, deixando-lhe, no stio, a paz.
Ora um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colrica
com o Ramos da Loja. Fora o caso que ao falar-se, no correr da conversa, em
trabalhadores e salrios, Silvestre deixou cair que, no seu entender, dada a
carestia da vida, o trabalho de um homem de enxada no era de forma alguma
bem pago. Mas disse-o sem um desejo de discrdia, facilmente, abertamente, com
a mesma fatalidade clara de quem inspira e expira. Todavia o Ramos,
ferido de
Consideras que a
3
reao do Ramos se
espora , atacou de cabea baixa:
justifica?
Que autoridade tem voc para falar? Quem lhe encomendou o sermo?
Homem! clamava o Silvestre, de mo pacfica no ar. Calma a, se faz
favor. Falei por falar.
E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importncia. Sabe l voc o que a
vida, sabe l nada. No tem filhos em casa, no tem quebreiras de cabea 4. Assim,
tambm eu.
Fao o que posso desabafou o outro.
E eu a ligar-lhe. Realmente voc um pobre-diabo, Silvestre.
Quem parvo quem o ouve. Voc um bom, afinal. Anda no mundo por ver
andar os outros. Quem voc, Silvestre amigo? Um incuo, no fim de contas. Um
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cultos, o juiz pedia a verso da injria em linguagem correta, sendo essa verso
que instrua os autos.
Chamou-me noque.
Absolutamente. Mas que queria ele dizer na sua?
Pois queria dizer que eu era ladro.
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E escrevia-se ladro. Pelo mesmo motivo, gravava-se a ofensa, de outras
vezes, nos termos de assassino, devasso ou bbedo.
Ora um dia foi o prprio Bernardino da Fbrica que moveu um processo ao
guarda-livros pela injria de incuo. Metida a questo nos trilhos legais, o
Bernardino procurou o juiz, para ver se podia ajustar, previamente, uma bordoada
125 firme no agressor. Mas a, o juiz atirou uma palmada coxa curta, clamou:
Homem! Agora entendo eu. Noque era incuo!
E admitindo que o vocbulo contivesse um veneno insuspeito, pegou num
dicionrio recente, o ltimo modelo de ortografia e significados. Ento pasmou de
assombro, perante o escuro mistrio que carregara de plvora o termo mais
130 benigno da lngua: incuo significava apenas que no faz dano, inofensivo.
E ps o dicionrio aberto diante da ofensa de Bernardino. O industrial carregou a
luneta, e longo tempo, colrico, exigiu do livro insultos que l no estavam.
Nada feito repetia o juiz. O homem chamou-lhe, corretamente, pessoa
incapaz de fazer mal a algum.
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Mas h a inteno ops o advogado, mais tarde, quando se voltou ao
assunto. H o sentido que toda a gente liga palavra.
Nada feito insistia o juiz. Incuo inofensivo, at nova ordem.
Ento o advogado desabafou. Tambm ele sabia, como toda a gente culta, que
incuo era um pobre-diabo de um termo que no fazia mal a ningum. Sabia-o,
140 com um saber analtico, desde as aulas de Latim do seu padre-mestre. Mas no
ignorava tambm que o dio humano nem sempre conseguia razes para se
justificar. E nesse caso, qualquer palavra, mesmo inofensiva, era um pendo 27
desfraldado no pau alto do dio. Bernardino fora ofendido. Mas podia amanh
querer ofender e as razes serem curtas para o seu rancor. Uma palavra informe,
145 soprada de todos os furores, seria ento a melhor arma. Despir o mastro da
bandeira seria desnudar-se na dureza brbara do pau. Incuo era uma maravilha
para a ltima defesa da racionalidade humana, pelos ocos esconderijos onde
podiam ocultar-se todos os rancores e maldies. Incuo era um benefcio
social. No havia que emendar-se a vida pelo dicionrio. Havia que forar-se o
150 dicionrio a meter a vida na pele.
Cultive-se o incuo. Salvemo-lo, para nos salvarmos.
Desgraadamente, porm, os receios do advogado eram vos 28. A vida, de
facto, emendara o dicionrio. Como bola de neve, incuo rolara do dio alto
dos homens e longo tempo levaria a derreter ao calor da compreenso e da justia.
27 Pendo:155
bandeira.
Foi assim que o filho do Gomes, depois de ter encontrado a correspondncia
28 Vos: inteis.
verncula da injria do pagnon, tentou reabilitar a palavra excomungada 29.
Esbaforido, foi com o dicionrio aberto no stio maldito, da me para o pai, do pai
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30 Antema:
maldio.
31Quetzal,
Nefando:
malvado,
Contos,
2009
abominvel.
Nunca o Silvestre tinha tido uma pega com ningum. (linhas 1 a 11)
3. Identifica duas caractersticas do Silvestre evidenciadas no primeiro
pargrafo do texto (linhas 1 a 11).
3.1. Refere dois exemplos de atitudes da personagem que as
comprovem.
3.2. Segundo o narrador, Ningum via naquilo um sintoma de pena
ou de justia (linhas 5-6). Como so ento justificadas as
atitudes do Silvestre?
Personagens e
situao
Significado da
palavra
1.a
O Ramos chama
incuo
ao Silvestre e dois
homens espalham a
notcia.
lombeiro, vadio
ESCRITA
1. So muitas as situaes sobre as quais podemos contar uma
histria. Escreve uma narrativa at 300 palavras que possa ser
divulgada no jornal da escola, num blogue ou num livro de contos da
turma.
Define os elementos seguintes:
assunto da histria que vais contar e quem vai l-la;
objetivos da tua narrativa (emocionar, divertir);
ambiente recriado (misterioso, assustador, alegre, divertido,
fantstico...);
sequncia dos acontecimentos;
personagens (animais, pessoas, coisas...) e suas caractersticas;
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tempo e espao;
caractersticas do narrador (participante ou no participante).
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Oralidade e leitura
3. e 3.1. O seu carter pacfico (nunca discutira com ningum) e a sua
predisposio para dar tudo o que possua (entregava aos outros
todas as economias).
3.2. O facto de Silvestre semear todas as economias era entendido como
uma ao purificadora, cmoda, que o libertava de quaisquer culpas e lhe
dava uma paz desejada.
4. Esta expresso introduz um acontecimento pontual, que se afasta, por
isso, da situao habitual apresentada no primeiro pargrafo e reforada
pelo advrbio Nunca.
4.1. Neste pargrafo, relata-se um acontecimento uma discusso entre
personagens que ocorreu num determinado espao e num determinado
tempo; os verbos que indicam aes encontram-se predominantemente
no pretrito perfeito.
4.2. Um domingo, o Silvestre arranja, sem querer, uma discusso com o
Ramos da Loja, ao afirmar que o trabalho do campo era mal pago. O
Ramos, que defende que o Silvestre no tem legitimidade para falar sobre
isso, porque nunca teve preocupaes nem filhos para sustentar, enervase e, sem conhecer o significado da palavra, mas usando-a como uma
ofensa, chama incuo ao Silvestre. Este reage provocao e devolvelhe a ofensa tal como a entendeu Inoque ser voc.
4.3. Porque a ouve como uma ofensa, apesar de no saber o que significa.
4.4. O Silvestre no conhecia o sentido nem o som da palavra e pronunciou-a
como a ouviu.
4.5.
a) Refora a simplicidade e o carter pacfico do Silvestre, que nada fez para
comear a briga.
b) Refora o efeito ofensivo que as palavras do Silvestre tm no Ramos, que
as ouve como uma provocao.
5. A palavra incuo e as suas variantes fonticas: inoque, noque.
5.1. Proposta de correo na Aula Digital.
5.2. A palavra desconhecida servia para todas as situaes em que era
necessrio recorrer ofensa e, de certa forma, absorvia todo o dio da
populao.
5.3. A agressividade com que a palavra era utilizada reflete-se nas
expresses relacionadas com armas que a caracterizavam, como por
exemplo: moca grossa de ferro, seteada de puas; arma terrvel;
cartucheira de insultos.
6. Depois de andar vrios meses afastada, a palavra regressa aldeia pela
boca de um caldeireiro e usada como ofensa pelo seu ajudante e por um
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Cenrios de resposta
fregus que no gostou da forma como estava a ser tratado, passando a
significar homossexual e parricida.
6.1. O Ramos percebeu que a palavra crescera na sua maldio e encerrava
sentidos ainda mais terrveis, os quais se acrescentavam aos anteriores.
6.2. Os habitantes reagem com temor e preocupao.
6.3. O filho do Gomes tinha alguma instruo e, ao ser insultado com a
palavra, procura o seu significado no dicionrio, mas no a encontra,
porque a forma como era pronunciada no correspondia a nenhuma
palavra escrita.
7. Porque as formas usadas no correspondiam palavra dicionarizada.
7.1. Nas queixas, registou-se o sentido com que a palavra foi proferida.
7.2. Quando o Bernardino Soares procura o juiz para avanar com uma
queixa, usa o termo incuo, permitindo finalmente o seu
reconhecimento. Depois de consultar o dicionrio para dissipar qualquer
dvida, o juiz confirma que incuo das palavras mais inofensivas que
existem.
7.3. No, porque a malvadez das intenes com que era usada sobrepe-se
ao seu verdadeiro sentido.
8. A palavra adquire o sentido que a vida lhe d e esvazia-se do seu sentido
original.
8.1. O filho do Gomes, apesar de j conhecer o verdadeiro sentido da palavra
incuo, continuava a sentir-se ofendido por ela.
8.2. O dio com que a palavra era pronunciada era mais forte do que um
dicionrio. A perfrase contribui para desvalorizar o dicionrio (simples
livro impresso) perante a realidade.
9. As palavras s ganham vida atravs do uso que lhes damos.
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