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Imagens so bvias ou astuciosas?

Lucia Santaella
Livre-docente pela Universidade de So Paulo
Professora do PPGCOM em
Comunicao e Semitica da PUC-SP
E-mail: [email protected]

A resposta imediata para a pergunta colocada no ttulo deste artigo : ambas. Imagens
podem ser tanto bvias quanto astuciosas.
Este ltimo adjetivo tem vrios significados
mais ou menos prximos, mas, para evitar
excesso de ambiguidade, ele ser aqui tomado no sentido daquilo que faz uso de truques, artimanhas, o antnimo de inocente.
Antes de tudo, preciso esclarecer que no
estarei aqui me referindo imagem sonora,
nem verbal, mas exclusivamente imagem
visual. E, mesmo na visual, no estarei me referindo imagem mental que pode emular
uma imagem visual, nem imagem onrica
que tem uma natureza estranhamente visual. Tambm no estarei colocando em cena
a imagem perceptiva que temos daquilo que
Gibson (1950, p. 26-29) chama de campo visual, quer dizer, daquilo que o mundo l fora
apresenta circunscrio do nosso olhar.
Limito-me, portanto, imagem representada, feita pelo ser humano, esta que existe
desde as cavernas, foi mudando seus suportes, materiais e meio de produo desenho,
pintura, gravura, fotografia at atingir seu
estado atual de animaes computacionais
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Lucia Santaella Imagens so bvias ou astuciosas?

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em 3D. Embora sejam tambm imagens, os


quadrinhos, cinema, vdeo e games, estes
no sero aqui tratados, pois trazem complicaes adicionais, aquelas da temporalidade,
da narrativa e, no caso dos games, as questes de usabilidade e jogabilidade. Os anncios publicitrios tambm no sero considerados. As imagens esto certamente neles
presentes, mas na interseco com o texto, o
que cria um contexto hbrido de texto e imagem que extrapola a questo especfica da
imagem que pretendo aqui focalizar. Passemos, assim, para a discusso do modo como
se apresentam as faces e facetas da imagem.
A obviedade da imagem

Comumente, imagens visuais nos apresentam figuras (objetos, compsito de objetos ou cenas) contra um fundo. Este
definido pela Gestalt como uma espcie de
segundo plano do qual emerge e se destaca
um motivo visual, a figura. Embora a figura tenha mais estabilidade do que o fundo,
nem sempre figura e fundo so absolutos,
pois podem ser reversveis. Quanto mais tecnicamente elaborada uma imagem, mais
aumenta a possibilidade de reverso entre
esses seus dois componentes substanciais.
Muitas vezes tambm, a figura se desdobra
em planos, primeiro, segundo, terceiro, o
que provoca um recuo do fundo para o ltimo plano. Para simplificar, pode-se afirmar
que a figura nos apresenta uma cena de que
o fundo pode ser concebido como cenrio.
Este pode tambm ser entendido como o
contexto situacional da figura.
A imagem tanto mais bvia quanto mais
tanto figura quanto fundo so imediatamente
reconhecveis pelo observador. Algo do mundo visual est ali replicado maneira de um
espelho. Essas so as imagens que chamo de
figurativas, a saber, formas referenciais ou
denotativas. Elas so reprodues de objetos
ou situaes visveis que apresentam uma
similaridade entre a aparncia do objeto representado e a percepo que temos daquele

tipo de objeto no mundo visvel. Nesse caso,


imagem e objeto nela representado formam
um par, um duplo, cabendo ao observador
apenas constatar o tipo de ligao que a imagem mantm com seu objeto (cf. Santaella,
2001, p. 226-232). No entanto, explorar o tipo
de ligao entre imagem e objeto implica explorar as tcnicas e os meios de representao
da imagem, suas formas de mediao, o que
extrapola o nvel de obviedade da imagem.
Portanto, bvio na imagem aquilo que
imediatamente reconhecvel na ligao que
ela estabelece com o mundo exterior. Ela se
apresenta como imagem. Toda imagem nos
encara, sem subterfgios, o que vemos, o que
nos olha, diz Didi-Huberman (2010). Ela est
l, diante de ns. E s podemos dela escapar
fechando os olhos. nela bvio o que nela
nos remete ao mundo visvel. Uma criana
por volta de dois anos j domina esse processo de reconhecimento com facilidade. Embora esse domnio seja mais acelerado quando a
criana est exposta a um bombardeio de desenhos, fotos e vdeos, pode-se dizer que esse
reconhecimento prescinde de aprendizado.
Isto porque, a imagem se assemelha ao que
ela intenta representar. Alm disso, ela indica
seus objetos, pois no seno uma duplificao existencial deles. Mais do que isso, para
representar seus objetos, a imagem obedece,
de uma forma ou de outra, as convenes de
representao. Nesse ponto, temos de abandonar o bvio e entrar no campo dos ardis.
Os ardis da imagem

Distintos da simplicidade daquilo que
bvio em uma imagem, seus ardis apresentam vrios nveis de complexidade. O primeiro nvel de complexidade diz respeito
ausncia de uma figura facilmente reconhecvel na imagem.
Imagens sem figuras reconhecveis

Nesse caso, a imagem se apresenta a si
mesma, nela dominando suas qualidades ele-

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mentares, sensorialmente perceptveis: cores,


linhas, formas, volumes, textura, escala, dimenso etc. Dondis (1976, p. 53-81) apresentou uma excelente explanao desses elementos, tambm sintetizados por Santaella
(2012, p. 34-39). A arte moderna est recheada de obras que tematizam visualmente a
natureza da imagem visual nela mesma, sem
qualquer inteno de representar quaisquer
coisas que esto fora dela (ver, por exemplo,
na Figura 1, uma obra em que Paul Klee coloca amorosa nfase na textura do material
utilizado para a criao da pintura).

A ideia musical, a ideia literria, a dialtica


do amor e as articulaes da luz, os modos
de exibio do som e do tato falam-nos,
possuem uma lgica prpria, sua coerncia, suas imbricaes, suas concordncias,
e aqui tambm as aparncias so o disfarce
de foras e leis desconhecidas. Simplesmente como o segredo em que se acham,
e de onde as tira a expresso literria fosse
seu modo de existncia; essas verdades no
esto apenas escondidas como uma realidade fsica que no soubemos descobrir,
invisvel de fato, que poderemos um dia
chegar a ver face a face, e que outros, melhor colocados, poderiam ver j agora, desde que se retire o anteparo que o dissimula.

A imagem como multiplicadora


de mundos

Figura 1: Paul Klee

O paradoxo das imagens da arte



Outro nvel de complexidade encontra-se
no jogo ambguo, presente em grande parte
das imagens da arte, entre mostrar-se e ocultar-se. A imagem se mostra, mas, ao mesmo
tempo, promete algo mais que no se deixa
ver. por isso que Peirce costumava afirmar
que, embora a arte visual apresente um conjunto integrado de elementos que se oferecem percepo sensvel, ela tambm funciona como uma promessa de entendimento.
Vem da tambm a afirmao de Didi-Huberman (2013, p. 9), de que a arte da imagem
traz a marca da perturbao, como uma evidncia que fosse obscura. O autor que levou
mais fundo a condio da arte entre o visvel
e o invisvel foi certamente Merleau-Ponty
(1992, p. 144-145):

Mais um nvel de complexidade ou astcia da imagem aquele que se deve sua existncia como duplicadora e multiplicadora de
mundos. No se trata aqui simplesmente da
natureza do duplo enquanto rplica figurativa de coisas visveis fora da imagem, mas de
algo menos bvio: os modos pelos quais as
imagens vo povoando o mundo de outros
mundos, ou seja, aqueles que a imagem cria,
recria, reproduz, emula, simula e multiplica.
realidade, as imagens aderem, criando e
transmutando modos de ver. Longe de serem
meros reflexos ou espelhos da realidade, as
imagens so acrscimos, excedentes, adensando a complexidade do real.
O vasto mundo que a imagem
deixa atrs de si

H imagens que se pretendem completas,


sonham com a completude. Antes do advento da fotografia, que colocou na face dos
nossos olhos a incompletude de quaisquer
representaes, a maior parte das imagens
pictricas, com exceo dos artistas antecipadores, buscava dar expresso a uma cena
no orgulho de sua inteireza. O mundo, vasto
mundo atrs, dos lados e frente de si, submergia nas sombras da insignificncia, pois a

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imagem detinha o poder de conceder pleno


significado realidade. Exemplo disso pode
ser visto nas imagens renascentistas cujo
ponto de fuga avana para o infinito, da realidade terrena para algum ponto longnquo a
perder de vista (Figura 2).

a fotografia, entretanto, que leva essa


condio da imagem ao seu limiar. O corte
do enquadramento, que separa, sem subterfgios e de modo abrupto, o que ficou capturado dentro da imagem e o que foi deixado para fora, faz da imagem fotogrfica uma
arte do fragmento. O instantneo congelado
no tempo denuncia que a realidade visvel
contnua, vasta, uma vastido de que nenhuma infinidade de fotos pode dar conta,
pois a vida vai passando, lquida, indiferente,
enquanto as fotos, irremediavelmente descontnuas, vo ficando, pedao por pedao.
Cacos da matria vertente da vida que corre.
Uma corrida sem espera. A vida no se senta
ao banco de uma praa para descansar. Ela
simplesmente passa, rio que flui sem possibilidade de retorno. No seno essa verdade
que se oculta por trs de quaisquer fotos.

Figura 2: Jan Van Eyck, A Virgem do Chanceler Rolin

Mesmo no Renascimento, imagens que


flagram uma determinada situao, no instante do seu acontecer, prefiguram as condies do instantneo fotogrfico. Nesse caso, a
imagem deixa-se ver como um recorte, uma
parcela de uma realidade de que a imagem
apenas uma parte. A cena do acontecimento
fisga o observador para o conhecimento de
sua narrativa, uma narrativa de que a imagem s pode acolher um fragmento. Exemplos antolgicos na histria da arte dessa
condio da imagem, na sua crueza factual,
so algumas das obras de Goya. o que se v
na Figura 3.

Imagens como documentos


espao-temporais

Por mais ficcional que a imagem possa ser,


ela aninha, no seu seio, marcas do espao e do
tempo. No h como ocultar ou disfarar os
traos de poca dos motivos representados
e dos contextos para os quais eles apontam.
Isso fica mais explcito nas imagens figurativas, ou seja, aquelas que sugerem, indicam
ou designam objetos ou situaes existentes
sempre marcados por uma historicidade que
lhes prpria. Ao representar o referente, a
imagem acaba inevitavelmente por acolher
dentro de si a historicidade que pertence ao
referente. nesse sentido que imagens figurativas podem funcionar como documentos
de poca. Figurinos, cenrios, arquiteturas,
decoraes costumam aparecer como indicadores inequvocos de uma poca.
Imagens como ndices do seu modo e
meios de produo

Figura 3: Trs de Maio, Goya

Imagens visuais no flutuam no ar da


imaterialidade. Mesmo as imagens computacionais, que equivocadamente muitos cha-

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mam de imateriais, apresentam a realidade


fsica da eletricidade e da luz. Isso para no
mencionar a fisicalidade dos aparatos que as
tornam possveis.
Na materialidade da imagem ficam inevitavelmente imprimidas as marcas do modo
como foram produzidas. Sua aparncia est
prenhe de vestgios dos meios e instrumentos utilizados para a sua realizao. So marcas fsicas que nos permitem diferenciar, por
exemplo, uma imagem produzida por microscpio eletrnico de uma imagem produzida com pincel e tinta, mesmo quando essas
imagens apresentam uma profunda identidade formal.
Quais foram os materiais, suportes,
meios e dispositivos utilizados na feitura
de uma imagem? Quaisquer que sejam eles,
sempre deixam rastros na sua aparncia. A
tinta a leo produz um efeito diferente do
acrlico, por exemplo. A textura e linhas de
uma foto so diferentes de um desenho.
Por mais imperceptvel que seja a diferena
entre uma e outra, uma imagem sinttica,
computacional, no se confunde com uma
imagem fotogrfica, mesmo que esta ltima
venha a ser manipulada em computador.
certo que, depois do advento do computador, essas diferenas esto se tornando cada
vez menos detectveis, mas elas s passam
despercebidas ao olhar leigo, no ao olhar
do especialista.
As convenes de representao
da imagem

No possvel produzir uma imagem


sem a aquisio mnima de um vocabulrio
convencional de projeo grfica ou plstica.
A conveno implica em sistemas de codificao que devem ser aprendidos e que se
transformam historicamente.
So muitos os sistemas de conveno ou
formas de codificao da imagem. O sistema

mais conhecido o da perspectiva monocular. H muitas formas de perspectiva, mas a


monocular aquela que estabeleceu racionalmente e com plena conscincia matemtica aquilo que pode ser legitimamente chamado de plano figurativo. Outros tipos de
conveno esto presentes em imagens que
se constroem de acordo com regras de proporo e harmonia, de sequncias rtmicas
no espao ou de rupturas dessas regras.
Imagens portadoras da generalidade
dos smbolos


Imagens simblicas so aquelas que,
mesmo quando reproduzem a aparncia das
coisas visveis, essa aparncia utilizada apenas como meio para representar algo que
no est visivelmente acessvel e que, via de
regra, tem um carter abstrato e geral. Assim funcionam os smbolos que, no caso das
imagens, s podem ser interpretados com a
ajuda do cdigo das convenes culturais.
Trata-se de conhecimentos culturais bastante especficos para o entendimento da imagem, sem os quais o observador no pode ir
alm da leitura das figuras elas mesmas, sem
se dar conta de que elas esto representando
outras realidades para as quais sua aparncia
no passa de via de acesso.
Como se pode ver, o elenco de facetas
complexas da imagem no pequeno. Comparadas com a simplicidade daquilo que nelas bvio, as facetas ardilosas das imagens
no se deixam facilmente ver. H argumento
e prova maior para reivindicar o fato de que
a leitura de imagens implica uma pedagogia
da imagem? No se pode confundir a obviedade da imagem, que dispensa processos de
aprendizagem, com os ardis da imagem que
exigem o cuidado honesto de ensinamentos
capazes de abrir olhos e mentes para as mltiplas camadas de sentido de que as imagens
so portadoras.

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Referncias

DIDI-HUBERMAN. Georges. O que vemos, o que nos olha.


ed. 2, So Paulo: Editora 34, 2010.
SANTAELLA, Lucia. Diante da imagem. So Paulo: Editora 34,
2013.
DONDIS, Donis. La sintaxis de la imagen. Barcelona: Gustavo
Gili, 1976.
GIBSON James J. The Perception of the Visual World. Cam-

bridge, Mass.: The Riverside Press, 1950.


MERLEAU-PONTY, M. O visvel e o invisvel. ed. 3, So Paulo: Perspectiva, 1992.
SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento.
So Paulo: Iluminuras/Fapesp, 2001.
SANTAELLA, Lucia. Leitura de imagens. So Paulo: Melhoramentos, 2012.

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