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Cartografias mestiças e outros processos
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Cartografias mestiças e outros processos
E-book793 páginas9 horas

Cartografias mestiças e outros processos

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Sobre este e-book

Cartografias Mestiças e outros Processos permitem ampliar as discussões e análises de pesquisadores e pesquisadoras de diferentes Instituições nacionais e Internacionais, vinculados(as) aos Grupos de Pesquisa dos diferentes Programas de Pós-Graduação e dos vários cursos de Graduação existentes no mundo...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de fev. de 2022
ISBN9786555624151
Cartografias mestiças e outros processos

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    Pré-visualização do livro

    Cartografias mestiças e outros processos - Isabel Orestes Silveira

    Sumário

    Capa

    Folha de rosto

    PREFÁCIO

    APRESENTAÇÃO

    PARTE I

    Tendências entrelaçadas

    A MESTIÇAGEM EM CAMADAS

    PAU BRASIL: EXEMPLO DE MESTIÇAGEM NA CANÇÃO BRASILEIRa

    MUSEUS DE ARTE E PRÁTICAS EDUCATIVAS: APONTAMENTOS SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE PLANEJAMENTO, CRIAÇÃO E MESTIÇAGEM

    O RAP: PRODUÇÃO CULTURAL MESTIÇA EM FUGA DOS FECHAMENTOS BINÁRIOS DO IDENTITARISMO

    DO FAUSTO II DE GOETHE À CRISE AMBIENTAL NO SÉCULO XXI: UMA CARTOGRAFIA DE ESPAÇOS E DE TEMPOS

    A FESTA DE FOLIA DE REIS EM ENTRELAÇAMENTOS FOTOGRÁFICOS: UMA CARTOGRAFIA DAS RELAÇÕES FESTIVAS

    VETORES DA GAMBIARRA: EXPERIMENTOS DIAGRAMÁTICOS COMO PROPOSTA DE LEITURA PARA PROCESSOS CRIATIVOS

    A CONDIÇÃO MESTIÇA DAS LÍNGUAS TUPIs

    BARROCO: BRASILEIRO E NEGRo

    A CARTOGRAFIA DAS SAUDADES NAS CANÇÕES DO PESSOAL DO ceará

    A MESTIÇAGEM EM EVA LUNA, DE ISABEL ALLENDE: A FORMAÇÃO DA AMÉRICA HISPÂNICA

    CINEMA SOCIOAMBIENTAL NA AMÉRICA LATINA CARTOGRAFIA POSSÍVEl

    SÉRGIO RODRIGUES, UM DESIGNER NA PAISAGEM

    PARTE II

    feminino e resistência

    AS MULHERES QUE NINGUÉM VÊ: O TRABALHO DO CUIDADO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA AS EMPREGADAS DOMÉSTICAS

    VOCÊ NÃO ESTÁ SOZINHA: MENSAGENS VERBO-VISUAIS DOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DA CAMPANHA INSTITUCIONAL DO METRÔ DA CAPITAL PAULISTA

    CAMILA, CAROL E OS FEMININOS POSSÍVEIS NO FILME AS MELHORES COISAS DO MUNDO

    LUGAR DE MULHER É NA NETFLIX: O PODER DA COMUNICAÇÃO NAS QUESTÕES DE GÊNERO E SEU IMPACTO PERANTE O CONSUMIDOR

    UM OLHAR FEMINISTA PARA INSERIR E MANTER AS MULHERES NO MERCADO DA ARTE

    CARTOGRAFIAS DO FEMININO, FACES DA PANDEMIA

    CARTOGRAFIAS SOBRE O BORDADO: CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS SOBRE A TÉCNICA E SEU USO EXPRESSIVO NA LINGUAGEM ARTÍSTICA CONTEMPORÂNEA DE ROSANA PAULINO E CLARA NOGUEIRA

    O FEMININO NA ATUALIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE O FEMINEJO À LUZ DA INDÚSTRIA CULTURAL

    SOU MAIS QUE UM RÓTULO: O PAPEL DA PUBLICIDADE ALIADO À DESCONSTRUÇÃO DE RÓTULOS E PADRÕES DE BELEZA FEMININO NA CAMPANHA 2019 DA NATURA TODODIA

    SER OU NÃO SER MÃE? EIS A QUESTÃO

    A PRESENÇA DA MULHER NO EXÉRCITO BRASILEIRO: DIMENSÕES DA PARTICIPAÇÃO FEMININA EM UMA ORGANIZAÇÃO MILITAR

    PARTE III

    Inquietações em processos

    CONCEPÇÃO DE UMA HIBRIDAÇÃO EM POÉTICAS EM COAUTORIAS

    WESLEY DUKE LEE E O FILIARCADO: ENSAIO ALQUÍMICO COM JOGOS INFANTIS

    CONEXÕES, HISTORIOGRÁFICAS REAIS E/OU IMAGINÁRIAS POSSÍVEIS LEITURAS CARTOGRÁFICAS

    CARTOGRAFIAS INTERDISCIPLINARES: INFLUÊNCIAS CRIATIVAS ENTRE ARTISTAS, PROFESSORES E PESQUISADORES

    LU COELHO TECENDO NAS REDES DA CRIAÇÃO EM ‘SER TÃO SER: NARRATIVAS DA OUTRA MARGEM’

    SACRALIDADE E CRIATIVIDADE COMO DIMENSÕES DA TÉCNICA

    VILÉM FLUSSER E A SACRALIDADE DO OUTRO NA INTERSUBJETIVIDADE

    CARTOGRAFIAS DO SAGRADO: REFLEXÕES SOBRE O USO DA TECNOLOGIA NO CULTO CATEDRAL INSPIRAÇÃO, NA IGREJA PRESBITERIANA INDEPENDENTE DE SÃO PAULO

    CONSUMO E VISIBILIDADE DIGITAL DO EVANGELISMO: FRAGMENTOS PARA UMA CARTOGRAFIA DO SAGRADO

    A CULTURA DIGITAL DO SAGRADO: IDENTIDADE E LINGUAGEM ECLESIÁSTICA NAS CONFIGURAÇÕES SOCIAIS DO MUNDO PÓS-PANDEMIA

    Ficha catalográfica

    Landmarks

    Cover

    Title Page

    Introduction

    Chapter

    Chapter

    Chapter

    Chapter

    Chapter

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    Copyright Page

    Parcerias

    Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura: Barroco, Oralidades e Mestiçagem do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (COS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

    Grupo de Pesquisa em Processos de Criação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica (COS) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

    Grupo de Pesquisa Sagrado, Mediações Tecnológica e Contemporaneidade da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM)

    Grupo de Pesquisa InCognITA-Inovações em Cognição, Informação, Tecnologia, Aprendizagem e Artemídia e Videoclipe do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP/SP)

    Grupo de Pesquisa O discurso Pedagógico de Paulo Freire: uma leitura do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

    Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre currículo e Sociedade (GEICS) do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura (PPGEAHC) da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

    Grupo de Pesquisa História da Cultura, Sociedade e Mídia do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura (PPGEAHC) da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

    Comissão Científica

    Profa. Dra. Alice Perucchetti Orrú (UNIFAE)

    Prof. Ms. Arnaldo Lorençato (UPM)

    Prof. Dr. Carlos Eduardo Sandano Santos (UPM)

    Prof. Dr. Carlos Eduardo Souza Aguiar (FAPCOM)

    Profa. Dra. Cecília Almeida Salles (PUC/SP)

    Prof. Dr. Eduardo Hofling Milani

    Prof. Dr. Francisco Silva Mitrald (UPM)

    Profa. Dra. Glaucia Eneida Davino (UNESP)

    Prof. Dr. Guilherme Bryan (Centro Universitário Belas Artes/SP).

    Prof. Dr. José Maurício Conrado Moreira da Silva (UPM)

    Profa. Dra. Katia Teonia Costa de Azevedo (UFRJ).

    Prof. Ms. Manoel Roberto Nascimento de Lima (UPM)

    Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte (UPM)

    Prof. Dr. Marcos Rizolli (UPM)

    Profa. Dra. Maria Lucia M. Carvalho Vasconcelos (UPM)

    Profa. Dra. Marili Moreira da Silva Vieira

    Profa. Dra. Mirtes de Moraes (UPM)

    Prof. Dr. Patrício Dugnani (UPM)

    Prof. Dr. Pedro Paulo A. Funari (UNICAMP)

    Prof. Dr. Pelopidas Cypriano de Oliveira (UNESP)

    Profa. Dra. Rosana Ferrareto Lourenço Rodrigues (UNESP)

    Profa. Dra. Rosana Maria Pires Barbato Schwatz (UPM)

    Profa. Dra. Regina Pires de Brito (UPM)

    Profa. Dra. Valéria Bussola Martins (UPM)

    Aliás, essa é a própria definição da comunicação: só existe o Eu porque existe o Outro, é este que justifica a existência de um Eu. Quando busco comunicar, não o faço à toa, mas direcionado ao Outro; tenho, com pressuposto, ser visto, lido, ouvido, percebido [...]. Necessitamos do Outro para a comunicação. O Outro diante de nós ou o Outro corporificado em suas obras, cuja esperança é nos tocar.

    ¹ Marcondes Filho (2019, p.41)


    1 MARCONDES FILHO, Ciro. A comunicação do sensível. Acolher, vivenciar, fazer sentir. São Paulo: ECA/USP, 2019.

    Essa coletânea é dedicada a todos os seres incompletos que se encontram inconformados e se recusam a entregar-se a um niilismo enquanto insistem pela caminhada em terrenos incômodos, instáveis e tortuosos da pesquisa.

    Prefácio

    CARTOGRAFIAS MESTIÇAS E OUTROS PROCESSOS

    "Eu não sei nada sobre as grandes coisas do mundo,

    mas sobre as pequenas eu sei menos."

    (Manoel de Barros)

    Speculum. Palavra áspera e ao mesmo tempo atraente, seu som ressoa feito sino de igreja. Faz-me recordar os benditos cantados pelas senhoras do interior onde nasci, quando nas trezenas de Santo Antônio, misturavam um português arcaico, meio latim, à variedade linguística do lugar. Ao final de cada Ave-Maria entoavam um "é de secular, saeculorum, amém. Aquilo tudo era tão sonoro, que a dureza do latim se tornava aveludado. O poder indomável da voz tocava os poros e o ouvido fazia a palavra ficar decorada no coração. Aliás, decorada no coração" é uma redundância porque decorar significa decor, cor, cordis: gravar no coração. De modo que o coração, além de ser a sede da afetividade, seria também da inteligência e da memória. Isso nos faz observar o quanto as palavras estão entrelaçadas e como a partir de suas raízes, ramificam-se infinidade de outros termos, feito canto de passarinho. Por falar em passarinho, só em pronunciar os nomes deles, os sons já configuram uma festa para os ouvidos: Nambu, juriti, xexéu, canário, ipecuá, ema, arara, araponga, inhapim, tuim, sabiá, etc. A letra aqui dança e o excesso rítmico tupi, nosso componente indígena, estende-se pela paisagem. Os passarinhos, quais adornos, filigranas da paisagem; por assim dizer, traduzem o mundo, nossa terra sonora e ruidosa.

    Voltemos ao Speculum, dele deriva o substantivo feminino consideração, que, por sua vez, significa literalmente: olhar o conjunto de estrelas (sidus-sideris). Diria que esta é a expressão fundamental de Cartografias Mestiças e outros processos: a possibilidade de olhar o conjunto, um olhar plural, com a abertura para a incorporação de novas inserções. O conjunto de textos aqui presentes pode ser observado em camadas, como movimento convergente e variável.

    Uma das características principais do conjunto dos textos elencados nesta obra é a multiplicidade de temas e a interação entre eles, entrelaçando saberes, a partir das miudezas, mesclando e ampliando o texto da cultura. De fato, a complexidade está na interação entre dentro e fora. O mundo dos textos, suas conexões e o mundo da vida e vice-versa. De nada adiantaria escrevermos compêndios, se esses não tocassem a vida e as coisas.

    O verbo tocar é elucidativo. Tem que ver com afeto, com pegar, apalpar, roçar. Resvala, portanto, a dimensão dos sentimentos e pode se ampliar para o aspecto da contemplação, que se refere com o ato de concentrar longamente a vista. Mas não somente a vista. Contemplar tem relação com os outros sentidos, como o paladar, o olfato, o tato, a audição, o corpo todo. Por fim, a palavra entre, que se refere a processos móveis da cultura, os quais se desencadeiam e se intercomunicam em múltiplas conexões. Temos, pois, ao alcance de nossos olhos um pequeno espelho, do latim speculum. Noutras palavras, um mapa de nosso repertório variado e múltiplo.

    Antonio Iraildo Alves de Brito

    Apresentação

    Cartografias Mestiças e outros Processos permitem ampliar as discussões e análises de pesquisadores de diferentes Instituições nacionais e Internacionais, vinculados aos Grupos de Pesquisa dos diferentes Programas de Pós-Graduação e dos vários cursos de Graduação.

    Por isso, se o termo cartografias remete, em um primeiro momento, às representações e demarcações territoriais em que se projetam os mapas como importante instrumento para a delimitação e análise do espaço geográfico e, ainda que um mapa esteja destinado a cumprir sua função de determinar lugares, identificar fenômenos e facilitar a compreensão dos usuários, o termo também evoca outras possibilidades e liberdades interpretativas no uso da expressão. Expandido para tratar de formulações metodológicas para as ciências humanas e ainda, mapa podem ser uma designação utilizada como referência para expressão de ideias relacionadas às múltiplas cognições do imaginário capazes de cartografar qualquer objeto investigativo.

    Nesse sentido, a coletânea que chega ao público reúne textos de pesquisadores que foram originalmente apresentados no VI Congresso Internacional de Linguagem, Identidade e Sociedade: Estudos sobre as Mídias (CLISEM) no ano de 2021 - Grupo de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

    O livro está dividido em três partes: A Parte I – Tendências entrelaçadas-, apresenta a reflexão de autores que investigam os caminhos e os labirintos da cultura mapeando questões relativas a mestiçagem pelo olhar de alguns pensadores significativos da América Latina. A Parte II – Feminino e Resistência -, acolhe textos que evocam uma perspectiva sobre a realidade social ao demostrar o esforço pela fuga das lógicas reducionistas e binárias que tendem aos estereótipos entre masculino e feminino, corpo e sexo. Instaura uma outra lógica cujas implicações se encontram associadas a história, a política, a cultura e aos discursos que penetram e intervêm na reflexão teórica que incluem os afetos. A Parte III – Inquietações em Processos reúne apontamentos de autores cujos textos compreendem os processos de criação como rede ao perceber as transformações que ocorrem no decorrer das produções e as características poéticas de artistas e obras. Os caminhos não lineares do pensamento contemplam produções comunicativas midiáticas que envolvem cartografias do sagrado na era da tecnologia.

    A proposta apresentada em Cartografias Mestiças e outros Processos evidencia as características históricas e socioculturais de produção dos diferentes discursos, os quais se abrem para novos territórios como o educativo, o jornalístico, o religioso, o publicitário, o midiático, as linguagens artísticas, dentre outros campos e contextos em que se operam as linguagens e o fenômeno comunicativo e cultural.

    Desejamos uma boa leitura!

    Os organizadores.

    PARTE I

    Tendências entrelaçadas

    A Mestiçagem em Camadas

    Amálio Pinheiro (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP)

    ¹

    Introdução

    A formação cultural do continente latino-americano não pode deixar de ressaltar, em todos os graus e variantes, a presença da voz e das oralidades, combinadas ou não às inúmeras séries e gêneros escritos. É necessário desdobrar, pelo menos, três níveis de linguagem em interação, constitutivas, desde antes e, também, após a chegada de Colombo, dos processos criativos e culturais do Brasil, América Latina e Caribe. É o entrelaçamento das três camadas, exigindo análises micro e macroestruturais, que fundamenta o que aqui chamaremos de um Barroco de partida, isto é, enxertado à natureza, plural e intercomplementar, não determinado pela oposição ao clássico ou ao prolongamento de esquemas composicionais renascentistas.

    Vozes do barroco

    Os materiais botânicos nos ajudam e ensinam. Este Barroco de partida, que se configura ao modo de xaxim, trepadeira e arquipélago, fundamenta o que podemos chamar de uma poética do simultâneo inscrita na cultura. O xaxim dá a matéria adligante; a trepadeira fornece a sinuosidade helicoidal em espiral de filamentos e molas enroscantes; o arquipélago configura o conjunto de grandes e pequenas entidades, sejam ilhas ou plânctons, como pluralidades simultâneas exigindo múltiplas aptidões. Enumeremos tais camadas sucintamente.

    A primeira camada se constitui do excesso de repertórios vocais ameríndio-afro-arábigo-imigrantes, entrecruzados desde os tempos da Colônia, em contínuo e ininterrupto crisol mestiço. Este nível, por si só, dada a sua variação e multiplicidade, perturbaria a noção de identidade e a inteireza de um logos abstrato e racional, conteudista e platonizante, visto que a própria deriva abundante de significados impõe a presença dos significantes como corporeidade da língua. Exemplo: menino, garoto, moleque, infante, guri, piá, bacuri, curumim etc. Isto se dá também dentro das mesmas variantes internas ao nheengatu (provenientes, como enxertos ornamentais da voz, das inúmeras combinatórias das famílias idiomáticas em estado de mescla permanente) que o dicionário, à saciedade, nos fornece: chauã, chauá, jauá, acamatanga, acamutanga, acumutanga, camatanga, camutanga, cumatanga. Trata-se de um almoxarifado de poesia em estado de dicionário. Uma bateria de vozes em bumerangue ou palíndromo na grafia que, quando pronunciadas, fazem emergir as placas tectônicas dos vozerios ocultos da paisagem sonora. Os exemplos poderiam vir também do quimbundo ou do banto: munganga, quizumba, macumba, quiabo, quitanda. Já aqui estão presentes, sob forma de distribuição larval, em contínuo processo de morfose metamórfica, os elementos de composição e os procedimentos de construção, já constantes da fala ordinária, que serão usados na música popular, no cinema, na poesia etc.: diagramas gráfico-sonoros e visuais, aliterações e rimas em palíndromo, paronomásias (para dizer pouco). Já aqui a unidimensionalidade dos idiomas flexionais é deslocada e parodiada pelo caráter aglutinante do tupi ou do quimbundo, de tal modo que a linearidade sequencial é desviada pela potência progressivo-regressiva, não digital, da performance rítmico-sonora. Nesse caso, as sonoridades da voz/ambiente/natureza têm valor poético-político, visto que dispersam os conteúdos lineares e rígidos que todo sistema de poder homogeneíza para dominar, através da repetição conformadora do mesmo, os descuidados falantes.

    A segunda camada é formada pela abundância de palavras em que a junção onomatopaica e melismática é dominante com relação ao significado, tendo em vista a contribuição do nheengatu, do banto e do quimbundo, que invade não só o dicionário, mas toda a prosódia e sintaxe. O conteúdo abstrato dos vocábulos é abalroado pelo significante vocal e rítmico-musical: as onomatopeias se aproximam sonoramente das coisas da paisagem e os melismas marchetam as sílabas com dobras e sinuosidades ornamentais (jururu, murundu, tiririca etc.). Isto mostra, junto à presença do corpo na voz, a relação entre as entranhas da fala (boca, garganta, pulmão, todo o sistema nervoso e muscular do aparelho de fonação) e o ambiente onde sujeitos e paisagem cultural se situam. Esses fonogramas embebidos de natureza/cultura não permitem a elevação logocêntrica do significado, isolado abstrata e digitalmente do significante, nem a separação entre signos e referentes estabelecida conforme a tradição ocidental de Platão a Saussure. Não se trata, desnecessário dizê-lo, da exclusão dos conteúdos: mas de libertá-los da doxa das oposições pela variação do múltiplo. Como o fez Guimarães Rosa no título luso-tupi Sagarana, ou como nas expressões populares, recriadas em todas as épocas e lugares, tais como sanduba traíra, piaba e tantas outras em que a vinculação oral/corporal entre voz e vogal dissemina e confere potência rítmica ao conteúdo, que passa a ser acossado pela força vocal. O processo pode ser levado às maiores consequências na poesia, como nos fonemas negroides de Nicolás Guillén em Sóngoro Cosongo, onde os fonogramas captam, via o arredondamento sinuoso e sensual das vogais, os requebros físicos da dança e canto do son cubano e do bongô afroarábigoantilhano.

    A terceira camada refere-se à potência acústica na natureza/cultura que se encadeia, se incrusta e se enxerta nas linguagens com todos os rumores da paisagem cultural. Esta capacidade nunca é apenas geral ou panorâmica, mas tem de ver com os modos específicos a partir dos quais os códigos universais são trabalhados, miudamente, na relação com a paisagem e com os objetos de um determinado ambiente, e estes na relação com suas séries e arredores da cultura. Visto que as línguas têm uma sensibilidade em relação à experiência acústica do ambiente (Cavarero, 2011: 177), isto se dá em muito maior grau naquelas em que o elemento onomatopaico e melismático, que represa a natureza, predomina sobre o flexional/digital. A mesma Adriana Cavarero, citando o poeta criollo-caribenho Edward Kamau Brathwaite, mostra como se interligam as camadas aqui mencionadas: Esse fenômeno, observa Brathwaite, não diz respeito apenas à contaminação dinâmica de línguas diversas, mas também ao problema que as vincula aos diferentes universos sonoros do ambiente natural em que nascem e se desenvolvem (Cavarero, 2011: 177). A exuberância do magnífico problema nesses casos é que os signos são, digamos, nessas circunstâncias culturais, de um lado forçados para baixo, de outro a natureza invade os signos com suas espirais em trepadeira, o logos se dessemantiza e as linguagens adquirem um vasto âmbito de práticas e ressonâncias rítmicas e prosódicas do escutar -- aquém dos, apesar dos e em conjunto com os signos.

    Algo de Paul Zumthor: a voz na letra

    Tal é a densidade e extensão com que Paul Zumthor elabora conexões — entre os campos de interferência da voz e da escritura; os campos de interferência da voz e certas séries institucionais como a igreja e a escola; os mesmos campos e séries mais amplas e difusas como o costume, o cotidiano, a vida cultural (agregando-se aí a mútua interferência, desde o mais pontual ao mais generalizável, entre todos esses campos) — que somos obrigados a fazer um recuo estratégico e escolher, com o risco de incorrer em imprecisões e esquecimentos, certas relações de maior pertinência para a nossa situação de produção.

    Avulta em todo o La Lettre et la Voix, em contrações e expansões, conforme as relações de aproximação e recusa do universo da voz com o mundo escolar, eclesiástico e da imprensa, a complexidade e variabilidade microssemiótica e microcultural dos contatos entre voz e escritura, de uma parte, e voz, escritura e imagem visual, de outra. Por exemplo: Daí a fragilidade do equilíbrio entre os valores que traz a voz e os que tendem a impor a escritura: situação que deriva das ‘longas durações’ históricas, e cujas últimas sequelas só serão liquidadas com a revolução industrial (ZUMTHOR, 1987: 141).

    O reconhecimento que Zumthor faz da materialidade produtiva da voz (com seus atributos intercorrentes que abalroam o signo: performance, nomadismo radical, intervocalidade, erotismo, movência, dissipação da autoria) dentro da palavra poética, parece propor, entre outras, a investigação mais cuidadosa de três situações de linguagem reciprocamente encadeadas. Resumo-as a seguir.

    Voz na poesia

    Muitas obras poéticas escritas talvez devessem ser lidas levando-se mais em conta as várias possíveis gradações da inscrição vocal na escritura, a par da importância significante concedida às interações entre os níveis prosódico (acentos, entonações, tonalidades), oral (vocal, coloquial) sonoro, gráfico e visual. Isso vale especialmente para certas obras poéticas não deliberadamente oralizantes, mas compostas de refugos vocais/coloquiais crioulizados, mestiços e migrantes que, inseridas e remontadas dentro de metros e estrofes tradicionais ou vocabulário hermético próprio da escritura, dão nova inflexão, senão dispersam, aquelas dicotomias, habilmente criticadas por Zumthor (1987: 132), entre o popular e o erudito, entre litteratus e illitteratus ("Oral não significa nunca popular, assim como escrito não significa erudito"). Colhamos um pequeno exemplo em César Vallejo:

    Quién hace tanta bulla, y ni deja

    testar las islas que van quedando.

    O recorte e a fricção, entre o primeiro verso, que contém uma interrogação cotidiana dentro de um espaço performático, e o segundo, que se dificulta num tecnicismo jurídico ("testar" = legar) configurando uma imagem com alto grau de ambiguidade, aceleram-se em vaivém pelo fato de o primeiro ser um decassílabo meticulosamente construído com cesura (que escancara, para quem sabe ouvir vendo, a presença da boca) na sexta sílaba. (Fica visível aí, diga-se de passagem, a importância do reconhecimento dos índices de vocalidade para qualquer operação tradutória, que deverá tentar refazer aquela fricção entre os versos (sempre carregada de conflitos e modulações culturais e históricas) dentro de uma nova conjunção de intertextualidade como intervocalidade. Talvez, por exemplo: Quem faz tanto barulho, e nem deixa / legar as ilhas que vão restando (PINHEIRO, 1988: 38-39), em que a impressão da voz e o escandir das sílabas não podem deixar de ter um itinerário tradutório, de um a outro idioma, que busque recolocar, revisitado, como última instância, o tom do texto de partida.

    Voz na cultura

    As marchas e contra-marchas da maior ou menor presença dos elementos vocais na escritura têm que ver com uma lenta e longa disputa, dentro dos territórios de uma pequena quase-ilha no extremo da Eurásia (ZUMTHOR, 1987: 23), em que a série dos componentes performáticos já citados que a voz congrega, pela ação de uma leitura cada vez mais apta a dividir as palavras em entidades separadas, foi sendo paulatinamente afastada, reprimida, ou assimilada por mecanismos oficiais de diluição. Nada melhor do que citar aqui certas passagens do próprio Zumthor:

    O sermo vulgaris, os clercs sabem-no e repetem-no desde séculos, é raiz e fruto de uma cultura selvagem, inoficial, embora onipresente, feita de sedimentações obscuras acumuladas desde o neolítico, poderosa mistura 'camponesa' (quer dizer, 'pagã’) de lembranças ibéricas, celtas, germânicas, de crenças, de práticas, uma arte com a qual a tradição latina, eclesiástica e escolar está obrigada a compor, na impossibilidade de poder extirpá-la com a acusação de paganismo ou heresia. Ora, a partir dos séculos XI, XII e XIII, conforme os lugares, esta cultura popular, até então recalcada nos bastidores do teatro da Ordem (política, social, moral), entra ruidosamente em cena e força os letrados a um prodigioso esforço de invenção para tentar racionalizá-la nem que seja um pouco e de se conferir assim algum poder sobre ela. Seu mais poderoso instrumento, nessa tarefa, é a escritura; e esta cedo ou tarde se libera do seu mais pesado constrangimento vocal: o verso (ZUMTHOR, 1987: 136).

    (Nesse sentido, o próprio Mallarmé, conforme mostrou Barthes (1988: 244-246), ao comprometer o leitor com uma leitura em vaivém constelar e reverberante, pretende, mais do que realçar a autonomia do verso, liberar para o olho e o ouvido, através de golpes sintáticos, na palavra escrita, o que tinha sido e vinha sendo negado, pela imposição do conteúdo, à voz: presença física, escuta móbil, visualidade estrutural, erotismo sonoro.)

    Não podemos, neste ponto, deixar de nos perguntar como atua esse conjunto de situações sígnicas instauradas pela voz nos espaços culturais, por exemplo, o latino-americano e antilhano, em que não houve essa gradativa penetração dos valores que a subdivisão do ato de ler em signos discretos implica, comprometendo cada vez menos a realidade do corpo (ZUMTHOR, 1987: 136), mas sim, já indiciava o poeta e cronista cubano José Martí, a irrupção relacional de superabundâncias provenientes das colisões linguísticas e repertoriais entre o próximo e o distante, o conhecido e o desconhecido, o simétrico e o assimétrico. Não é à toa que disse Severo Sarduy, no seu Barroco, a respeito da profusão de vocalidades nômades convergentes: Quando o falar cubano se agita, há várias línguas (várias civilizações) que se expõem, e o centro não está em parte alguma (SARDUY, 1989: 11). Lezama Lima caminha em direção semelhante quando reconta a história do continente a partir de sobras e perdas produtivas, das vivência de um ethos oblíquo, de um eros relacionável, que se atualiza na modulação diferencial de uma voz em filigrana de ourives, postada na confluência entre uma nova dimensão geográfica e as configurações simbólicas: Sentado dentro de mi boca asisto al paisaje (LEZAMA, 1985: 183-184). Proliferação vocal e paisagem multicolorida e helicoidal recriam um outro barroco.

    As chamadas vanguardas parecem ter sido, num continente pluribarroco, um momento de tomada mais ou menos conjunta dessa aguda necessidade de dar mobilidade formal ao confronto das técnicas, vindas de outro processo evolutivo, com um material (em grande parte vocal) em estado ebuliente de fermentação, dentro de um cenário de ordem/desordem no qual as leis de separação abstrata do mundo em dígitos sucessivos são sempre reviradas do avesso ou desmembradas pela invasão de múltiplas forças de metacomunicação analógicas. Essas forças, por analógicas, não podem partir da vontade triste de poder, sempre opositiva e digital, mas sim da alegria lúdica da corporeidade vocal que canta e dança.

    Parêntese para Nicolás Guillén

    Os poemas do também cubano Nicolás Guillén às vezes quase parecem não aceitar, feitos para o canto soletrado muscularmente para dançar, o suporte do livro. No poema Sóngoro Cosongo, é importante ver como a inscrição dos ritmos da voz no que é fragilmente escrito (que exponencia, no limite das fronteiras dos gêneros, a marca, também, da escritura) acarreta uma tradução, no plano da forma, que lhe é simultânea: o triângulo amoroso, esboçado como recalque na primeira estrofe, se transforma em festa gráfico-corpóreo-vocal na segunda, e em chamamento gregário na terceira (ao mesmo tempo em que o palíndromo/palimpsesto Sóngoro Cosongo força os neurônios na direção de uma quase língua (hispano-afro-taína?) costurada pela grafia operativa das síncopes orais e pelos refrões em coral coletivo (GUILLÉN, 1991):

    Ay, negra,

    si tú supiera!

    Anoche te bi pasá

    y no quise que me biera.

    A é tu le hará como a mí,

    que cuando no tube plata

    te corrite de bachata,

    sin acoddate de mí.

    Sóngoro cosongo,

    songo be;

    sóngoro cosongo

    de mamey;

    sóngoro, la negra

    baila bien;

    sóngoro de uno

    sóngoro de tre.

    Aé,

    bengan a be;

    aé,

    bamo pa be;

    bengan,

    sóngoro cosongo,

    sóngoro cosongo

    de mamey!

    Há muito o que fazer nesse setor. A concretização e a ação do olho/ boca/ouvido em novas regiões de espaço/tempo exigem que, a partir de diferentes e mutáveis situações lingüístico-culturais, ensaiemos o cérebro para outras noções, de generalidade, por sua vez, provisória.

    E vale a pena não perder de vista a demarcação do próprio Zumthor:

    Permanece o fato de que a civilização do Ocidente medieval foi a das populações de uma pequena quase-ilha do extremo da Eurásia que, durante um milênio, e de todas as maneiras, em todos os domínios, e em todos os níveis, consagraram o essencial das suas energias a interiorizar suas contradições (ZUMTHOR, 1987: 23).

    Não é por acaso que a palavra recalcar, reprimir (refouler), aparece tanto, sob várias formas, na obra do autor de Introdução à poesia oral.

    Voz e conhecimento

    Zumthor mostra-nos como aos modos de se usar os órgãos dos sentidos correspondem sutilezas do conhecimento:

    Da imagem ao escrito e inversamente, a referência não é unívoca. Um só é o par do outro por exceção. Opõem-se menos em virtude da sua significância respectiva do que do tipo de correlação que une seus elementos: associação por contiguidade de percepções sensoriais, de um lado; e, de outro, codificação implicando uma hierarquização, de caráter, ao menos tendencialmente, abstrato (ZUMTHOR, 1987: 140).

    Quando a voz invade a letra abala-se o tipo lógico fundado em oposições abstratas, que necessita, para imprimir suas generalizações (sim ou não, ser ou não-ser, dentro ou fora, centro ou periferia, clássico ou popular etc.), ele também, dicotomizar-se frente às movediças relações contextuais, sempre diferentes com relação ao esquema previamente proposto. Por isso é tão valioso que Zumthor vá reiteradamente mapeando como o processo elocutório dos mais diversos tipos de jogral, por exemplo, é indissociável da cena em que se atualiza a performance, que inclui essa vagabundagem ativa, essa errância erótica (que estão para o signo vocal assim como o som para a grafia) mais ou menos na fronteira do oficial e do inoficial, da página e da vida (Ramón Ramírez, o Mourisco, inventava e recriava suas falas fingindo ler folhas em branco...).

    Resta-nos repensar como essa virada epistemológica (essa palpabilidade vocal/táctil dos saberes) se coloca para as sociedades (como a nossa: formada de agregados de contigüidades descentradas no tempo e no espaço, debaixo de uma película de ordenação consensual) cujos suportes míticos se retalharam, se mesclaram, pluralizaram ou sexualizaram, deixando na voz (e na letra, na imagem e no gesto que dela se impregnem), a desconfiança festiva e risonha, agudamente criteriosa, de que não há retorno ao lar de uma unicidade possível, de que tudo é montagem tradutória, transversal e provisória. O modo ibero-americano e caribenho de ser universal...


    Referências

    CAVARERO, Adriana. Vozes plurais – filosofia da expressão verbal. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

    BARTHES, Roland. A face barroca. In: O rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1988.

    GUILLÉN, Nicolás. Motivos de son (Organização, introdução e tradução de Amálio Pinheiro). São Paulo: Pau Brasil, 1991.

    PINHEIRO, Amálio. César Vallejo a dedo. São Paulo: Pau-Brasil, 1988.

    SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa: Vega, 1989.

    ZUMTHOR, Paul. La lettre et la voix. Paris: Seuil, 1987.

    PAU BRASIL: EXEMPLO DE MESTIÇAGEM NA CANÇÃO BRASILEIRa

    André de Freitas Simões (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP)

    ¹

    Introdução

    Francis Hime — com o aristocrático nome completo de Francis Victor Walter Hime — é branco, neto do fundador da grandiosa siderúrgica Hime, tendo passado por estudos formais de música e tantos outros privilégios típicos da elite econômica do país. Associá-lo à mestiçagem dentro do contexto da canção brasileira causa de início estranheza: pode soar como retórica provocadora ou extrapolação de conceito acadêmico para fins exibicionistas. Quando se toma a definição de mestiçagem defendida por Amálio Pinheiro, no entanto, para além das lógicas binárias e conceitos estereotipados, percebe-se que o cancionista brasileiro, querendo ou não, cônscio ou não, tem seu fazer necessariamente imbuído de mestiçagem.

    E Francis Hime figura no time dos que operam cônscia e orgulhosamente com muito do que está expresso na mestiçagem conceitualizada por Pinheiro, ainda que o músico provavelmente desconheça os textos teóricos sobre o tema. Chamar a atenção para a obra de Hime nos parece, ainda, a possibilidade de auxiliar a correção de uma injustiça histórica (corrente tanto na academia como na crítica jornalística especializada) que tende a diminuir sua figura, ao lembrá-lo meramente como parceiro e arranjador de Chico Buarque durante certo período de tempo; o meramente aqui é empregado de maneira proposital, sabendo-se que, de fato, apenas seus grandes sucessos com Buarque lhe garantiriam posto indelével na história da cultura brasileira, por seu caráter monumental — admitindo-se o uso de tão forte adjetivo para qualificar exemplares da canção popular, e este pesquisador entusiasticamente admite. Acontece que a obra de Hime vai muito além das cerca de 20 canções feitas com Buarque, tanto numericamente quanto em diversidade de conteúdo.

    Temos a intenção, neste artigo, amparados na conceituação de mestiçagem de Pinheiro, de demonstrar como a música de Hime pode ser apreciada em várias camadas de absorção sensorial, tendo o compositor rara sensibilidade para traduzir plurissemanticamente, em música, o quadro cultural circundante, podendo ser mencionadas as paisagens cultural, sonora, social, visual e linguística, entre tantas outras.

    Sendo a canção brasileira merecidamente objeto de cada vez mais estudos acadêmicos ao longo dos anos, parece-nos indevido o posto atualmente atribuído a Hime, e este artigo defende mais atenção para sua contribuição à arte brasileira: postulamos que, de maneira geral, há erro de avaliação ou simples ignorância da magnitude de seu trabalho.

    Faremos neste artigo um resumo da impressionante diversidade da obra de Hime, mas nos deteremos na canção Pau Brasil, parceria com o poeta Geraldo Carneiro lançada em 1982, em álbum homônimo, para a possibilidade de maior fôlego analítico. Pesquisadores brasileiros que notoriamente vêm se dedicando ao estudo da canção brasileira — Luiz Tatit, José Miguel Wisnik, Marcos Napolitano, entre outros — também fornecem respaldo teórico a este texto.

    PAU BRASIL E A MESTIÇAGEM

    A pesquisa da canção popular no Brasil

    Já nas primeiras décadas do século 20, a música popular assumiu importância formativa e papel caracterizador das noções cultural e social de brasilidade, passando a identificar traços distintivos brasileiros perante outras nações, sendo, atualmente, de inequívoca importância para a compreensão da sociedade brasileira contemporânea. Essa noção é quase consensual na contemporaneidade, mas pesquisas acadêmicas sobre canção popular no Brasil começaram a aparecer de maneira sistemática apenas na década de 1970, com aprofundamento na década seguinte (MORAES, 2000; NAPOLITANO, 2002). Para Marcos Napolitano (2002, p.77), a canção popular, especialmente no Brasil,

    ocupa um lugar muito especial da produção cultural. Em seus diversos matizes, ela tem sido termômetro, caleidoscópio e espelho não só das mudanças sociais, mas sobretudo das nossas sociabilidades e sensibilidades coletivas mais profundas.

    Desde então, refletindo o caráter intrinsecamente híbrido da canção popular, verifica-se uma crescente atenção da pesquisa científica em relação ao tema, mas com seu foco de estudos espalhado em diversos departamentos universitários. A abordagem multidisciplinar para o estudo da canção popular é reconhecida como a mais adequada por pesquisadores de diferentes áreas, como atesta Sérgio Molina (2017, p.19).

    Especialmente a partir das duas últimas décadas do século XX, com a fundação da IASPM (International Association for the Study of Popular Music) e as publicações de Richard Middleton, Phillip Tagg, Frith e Goodwin (orgs.), Kate Negus e Luiz Tatit (no Brasil), entre outros, fortaleceu-se a visão de que — devido às características multidisciplinares que o contexto da música popular cantada inegavelmente envolve — uma análise exclusivamente musical não seria o caminho mais adequado para dar conta da pluralidade de significações que tal objeto sugere.

    Da mesma maneira, uma análise de canção que se atenha exclusivamente ao aspecto lírico será insuficiente, quando não desprovida de sentido. Diz Luiz Tatit (2007, p.237):

    A letra da canção como se sabe, pertence a uma esfera de valores muito particular, altamente comprometida com a melodia e todo o aparato musical circundante, de tal modo que sua avaliação por critérios unicamente poéticos redunda, quase sempre, em julgamento desastroso.

    E não são ainda apenas música e letra que devem, de forma binária, serem consideradas para a compreensão razoável do valor artístico de uma canção popular; faz-se necessário, no mínimo, avaliar, conjuntamente, música, letra, arranjo, interpretação e performance — apenas para citar os traços constituintes mais óbvios do gênero. Em seu História e Música — História Cultural da Música Popular (2002), Marcos Napolitano oferece uma proposta para sistematização de procedimentos básicos na orientação do pesquisador da área, englobando diversos aspectos do objeto canção (texto e contexto, música e letra, autor e sociedade, estética e ideologia, recepção, performance, veiculação etc.) que tendem a ser considerados de maneira separada em escritos menos rigorosos. Essa linha de pensamento complementa a noção (e coaduna com ela) de que a mestiçagem se apresenta como elemento fundamental para entender-se o desenvolvimento da canção popular, particularmente no Brasil, e de maneira destacada na obra de Francis Hime.

    Em âmbito geral, o artigo de José Miguel Wisnik A Gaia Ciência (2004, pp.215-216), aponta para a importância da canção brasileira no entendimento das particularidades da cultura nacional:

    Dizer que a música popular brasileira é forte e bela é mais verdade do que novidade, mas pouco ajuda, dentro ou fora do Brasil, a entender aquilo que a distingue. Aparentemente, um dos seus traços mais notáveis é a permeabilidade que nela se estabeleceu a partir da Bossa Nova entre a chamada cultura alta e as produções populares, formando um campo de cruzamentos muito dificilmente inteligível à luz da distinção usual entre música de entretenimento e música informativa e criativa. [...] Está implícito ou explícito em certas linhas da canção um modo de sinalizar a cultura do país que além de ser uma forma de expressão vem a ser também [...] um modo de pensar — ou, se quisermos, uma das formas da riflessione brasiliana.

    A obra de Francis Hime e sua relação com a mestiçagem

    Vamos aqui a excertos da definição de mestiçagem por Amálio Pinheiro (2020), à qual já foi feita alusão diversas vezes neste artigo:

    Mestiçagem não é apenas cruzamento de raças, mas interação entre objetos, formas e imagens da cultura. A mestiçagem não opera por fusão, que apaga as diferenças, nem por mero reconhecimento das diversidades, que as mantêm isoladas. (...) adora os advérbios também e ainda; detesta as alternativas duais expressas pela conjunção ou. (...) A mestiçagem se forma e se expressa, portanto, aquém das lógicas binárias das identidades e das oposições (...) Não lhe é suficiente o hibridismo, pois que à mestiçagem não interessam apenas as proximidades e aglomerações quantitativas de fronteira, mas principalmente as inclusões e conexões assintáticas e pré-sintáticas, assemânticas ou plurissemânticas, através de todos os procedimentos de toda e qualquer linguagem, através de todos os desconhecidos procedimentos dos magmas e lavas anteriores às linguagens, que transformam o separado, seja distante ou próximo, em retículas, ourivesaria ou labirintos de alteridades em ação e reação.

    Note-se aqui como as palavras de Pinheiro sobre mestiçagem condizem perfeitamente com a notória apresentação de Hime feita por Ruy Castro (2002), usada até no site do próprio músico (excetuando-se o uso da palavra fusão, rejeitada por Pinheiro, mas que no excerto de Castro não parecem apontar ao sentido de apagar as diferenças):

    No mapa da MPB, todos os afluentes confluem para o talento estuário de Francis Hime. Tom Jobim é um piano, Caymmi um violão, Vinicius, uma caneta, Noel, um terno branco. Por analogia, Francis Hime é uma orquestra. E uma orquestra sinfônica. Não uma sinfônica convencional, apoiada exclusivamente nas cordas, madeiras e gravatas, mas uma formação enriquecida por metais de gafieira, cavaquinhos de chorões e tamborins de escola de samba. Se a música do Rio é uma fusão – a música de todos os Brasis confluindo para um estúdio onde as águas se misturam e ganham ritmo e densidade –, Francis é a personificação dessa fusão. A todos estes ritmos brasileiros, Francis empresta seu inspirado refinamento e deles toma emprestado a vitalidade e a beleza. Atenção: essas não são palavras vazias. Como Francis Hime (agora que já não temos Villa-Lobos, Radamés Gnatalli, Tom Jobim e Luizinho Eça), estamos diante de um compositor cujo domínio da técnica permite voos de asa-delta – ou de orquestra – à criação.

    Como cancionista, Hime atua desde 1964; como autor de música de concerto, começou a produzir especificamente em 1986, com sua Sinfonia Nº1. Mas os caminhos dessas duas facetas se confundem, imbuídos de mestiçagem, a ponto de ficarem completamente borradas as fronteiras de classificação. Afirmar que a obra de Francis Hime conjuga com maestria a música popular e a música erudita pode ser correto, mas não é preciso. Com Francis, os elementos erudito e popular não agem como entidades separadas que se misturam para a composição de peças exóticas.

    O compositor soube abrir sua formação às mais distintas influências musicais, para a criação de um repertório afetivo em que o popular e o erudito sempre estiveram reunidos. Esse repertório lhe permitiu expressar-se artisticamente de maneira coesa, sem que precisasse reprimir vertentes de sua memória musical.

    Assim, uma sinfonia de Francis não resulta numa peça erudita com alguns elementos de citação das formas mais populares; um samba lançado num álbum de canções, do mesmo modo, não é simplesmente entretenimento radiofônico com nuances mais sofisticadas, acordes invertidos e modulações. Isso já seria bastante, mas é bem menos do que ele oferece.

    Francis lega à música brasileira arte e trabalho de autor, com grande carga de originalidade. E em sua arte e em seu trabalho — importante reforçar a indissociabilidade dos dois elementos —, o compositor não abre mão de usar as múltiplas facetas musicais de que gosta e as quais domina. Por que deveria?

    Aparecem na obra de Francis — de modo perfeitamente integrado, não como camadas sobrepostas —, profundidade melódica, contrapontística e harmônica, o colorido orquestral e a organização de base europeia; as variações, síncopes e deslocamentos rítmicos ligados à tradição africana; a miscigenação, a naturalidade de combinar música e palavra típica da canção popular das Américas.

    E tudo isso aparece nas criações de Francis praticamente o tempo todo: não é numa composição aqui, noutra acolá — não! A grata amálgama está em canções soltas, temas instrumentais, trilhas para teatro e cinema, concertos, sinfonias etc. Sua obra é intrinsecamente mestiça, por extensão diretamente vinculada a sua nacionalidade — e Francis Hime se orgulha tanto da música brasileira quanto do fato de contribuir com sua tradição, exercendo, isolada ou concomitantemente, os papéis de compositor, instrumentista, cantor, arranjador, regente, letrista, diretor musical e produtor.

    Como autor de música para canções populares, inspirou o melhor dos parceiros quando apresentou melodias para serem letradas, e soube como poucos valorizar as nuances de um texto quando musicou letras já existentes. Nesse trabalho de junção para compor um todo maior do que a soma das partes, operou com estilos tão diversos quanto pode haver no trabalho de mais de 60 (!) parceiros, número que é, provavelmente, um recorde na canção brasileira.

    O rol de parceiros, além de extenso, é diverso, indo de Camões e Fernando Pessoa até autores bem mais jovens do que ele, como Thiago Amud e sua própria filha, Joana Hime. Num grupo à parte, estão os parceiros com quem compôs em larga escala: Vinicius de Moraes, Ruy Guerra, Paulo César Pinheiro, Chico Buarque, Olivia Hime, Cacaso e Geraldo Carneiro. O raro é encontrar, entre seus contemporâneos brasileiros, um letrista relevante que não haja composto com Francis Hime. E ele soube engrandecer o trabalho de todos esses parceiros, por mais consagrados e diversos na natureza da obra que fossem.

    Seu trabalho conjunto com Chico Buarque é de qualidade tal que louvações correm o risco de ser redundantes; o fato de o sucesso comercial massivo de Francis estar, no entanto, restrito a apenas essa parceria só pode ser atribuído a razões (algumas mais, outras menos) imponderáveis do mercado fonográfico. Mesmo com repertório denso e formação erudita, a produção de Francis não soa hermética: comunica-se clara e eficaz.

    Para além dos grandes sucessos da parceria com Chico, conhecidos de todos os que se interessam minimamente pela canção brasileira, há muitas e muitas canções de Francis à altura de seus hits, divididas com vários parceiros. Trata-se de repertório riquíssimo e relativamente pouco apreciado, sem dúvida merecedor de mais contemplação, pesquisa, análise — e simples desfrute.

    Escolhemos para este artigo, entre tantas outras possibilidades, atermo-nos à canção Pau Brasil, da parceria com Geraldo Carneiro, poeta eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2016. Antes de entrarmos diretamente na análise dessa canção, haveremos de lembrar que Hime e Carneiro têm uma parceria bastante heterogênea, abarcando diversos ritmos e perfis líricos em suas canções (nesse sentido, é bastante representativa O Tempo das Palavras, adaptação de texto shakespeariano musicada como guarânia!); das 20 canções lançadas pelos parceiros, 12 delas se concentram nos álbuns Arquitetura da Flor (2006) e O Tempo das Palavras/Imagem (2009), período mais prolífico para a dupla. Há de destacar-se também a participação de Carneiro como letrista em Carnavais para Coro Misto e Orquestra (1988) e Sinfonia do Rio de Janeiro de São Sebastião (2001), dois projetos de Francis escritos para as salas de concerto — mas que também resultam inevitavelmente mestiços.

    Análise da canção Pau Brasil

    A grande mudança estilística da produção do cancionista Francis Hime com Geraldo Carneiro, em relação a seus parceiros anteriores, encontra-se no fato de que, com Carneiro, em quase todos os casos, as canções são letras musicadas, ao passo que com seus parceiros anteriores, o procedimento mais comum consistia em Hime apresentar uma melodia para que seu parceiro letrista atribuísse a cada nota uma sílaba, compondo os versos a formar a letra da canção.

    Embora já houvesse composto sistematicamente com Cacaso (e pontualmente com Ruy Guerra, Paulo César Pinheiro e alguns outros parceiros menos frequentes) musicando poemas, é graças ao trabalho com Carneiro que Francis atribui o fato de ter se tornado plenamente fluente nesse tipo de ofício. Com Cacaso, afinal, havia o facilitador de versos a musicar no metro fixo da redondilha; nas letras enviadas por Carneiro a Francis, embora fique evidente o cuidado no trabalho com o ritmo das palavras, na maior parte das vezes o metro é irregular — uma das exceções é justamente Pau Brasil, com a proposta menos comum de quatro sílabas poéticas por verso, tornada indistinguível por Francis quando do poema se fez canção, ao aglutinar versos numa única frase melódica.

    A fluência das canções da dupla, sem aspecto típico de poema musicado (como acontece no Réquiem composto com Ruy Guerra, por exemplo, sem que isso acarrete demérito para essa outra proposta de canção), possibilita-se graças à grande intimidade entre os parceiros, sempre abertos a ajustes posteriores em suas partes do trabalho para beneficiar a obra final. Essa liberdade pode gerar lances cômicos, como no recente episódio de Samba Funk (2019), no qual Carneiro, depois de ouvir a faixa, pediu desculpas para pedir uma modificação na letra depois de já gravada a canção, pois custava a acreditar que houvesse escrito um dos versos, muito ruim — posteriormente descobriu-se que justamente o verso achincalhado pelo poeta havia passado por uma adaptação de Francis, que se esqueceu de consultá-lo².

    Para quem analisa uma canção, como saber o que veio primeiro, música ou letra (deixando à parte os casos, geralmente nas situações de canções de autor único, em que ambos surgem juntos)? Alguns exemplares se prestam mais facilmente à dedução: um dos melhores truques para um palpite certeiro sobre qual elemento precedente numa canção é imaginá-la como um tema instrumental: quanto menos a melodia da linha vocal fizer sentido isolada dos versos da composição, mais provável é que se trate de um poema musicado (pensemos em Like a Rolling Stone, de Bob Dylan, obviamente um caso em que a música corre atrás da letra, sem nenhuma regularidade melódica em seu fraseado musical), sendo o contrário também verdadeiro (a música em Beatriz, de Edu Lobo, é uma obra de sentido completo em execução instrumental, embora a posterior letra de Chico Buarque só tenha engrandecido a obra).

    A parceria entre Hime e Carneiro foge, no entanto, a esse modelo. Logo na primeira composição gravada dos dois, a canção Pau Brasil (1982), há a surpresa de se constatar que as palavras precederam a melodia na feitura da obra (surpresa equivalente se instaura ao se ouvir tantas outras canções da dupla, e depois descobrir que se trata de poemas musicados, e não músicas letradas): um feito, haja vista que há a presença de um motivo melódico bem delineado e em seguida desenvolvido, podendo perfeitamente gerar execução instrumental satisfatória; o poema tranquilamente também se sustenta sozinho e, em feliz efeito, a junção das duas partes as enriquece mutualmente, tornando o todo ainda melhor.

    Confiramos o texto de Geraldo Carneiro, musicado por Hime:

    Era uma vez

    Uma floresta

    Cheia de festa e

    Balangandã

    Na noite fresca

    Carnavalesca

    Brilhava a estrela

    Aldebarã

    E nas quebradas

    Da madrugada

    Toda menina

    Era cunhã

    Um belo dia

    Uma menina

    Achou no mato

    Uma maçã

    Olhou a fruta

    Meio de banda

    Como se fosse

    Coisa malsã

    Deu uma dentada

    Meteu o dente

    E de repente

    Tchanchanchanchan

    Ouviu na mata

    A voz possante

    E extravagante

    Do Deus Tupã

    Que então lhe disse

    Mas que tolice

    Minha menina

    Minha cunhã

    Uma maçã

    É uma maçã

    É uma maçã

    É uma maçã

    E a menina

    Foi pra gandaia

    Cantarolando

    Cubanacan

    Na originalíssima letra, somos apresentados a um mito fundador muito particular, no qual a citação de elementos brasileiros e latino-americanos (os balangandãs de Caymmi, a noite de carnaval, deus Tupã, cunhã e cubanacan etc.) aparecem unidos à maçã da tradição bíblica; em Pau Brasil, no entanto, a figura divina não culpa a personagem feminina por provar da fruta, absolvendo-a com uma adaptação do famoso verso de Gertrude Stein sobre a rosa: Uma maçã é uma maçã é uma maçã é uma maçã. Toda essa reunião de elementos díspares, que implica erudição do autor, é apresentada de forma irreverente — sendo o louvor à irreverência justamente a chave do texto! —, de modo que mesmo quem não estiver apto a captar todas as referências possa se divertir com os versos e ser tocado pelo seu sentido geral.

    Também não se pode deixar de notar, no título Pau Brasil, uma referência dupla (e condizente com a proposta de exploração de um mito fundador na letra) à árvore em si — primeira riqueza do país do ponto de vista europeu — e ao Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924), de Oswald de Andrade, que usa o conceito de primitivismo em sincronia com uma proposta de liberdade de espírito e abertura a junções inusitadas de referências: assim foi, décadas depois de sua publicação, um texto fundamental para o movimento da Tropicália, por sua vez de grande influência para significativa parte da produção de Carneiro, inclusive em outras parcerias com Hime, como a cantata Carnavais para Coro Misto e Orquestra (1988).

    Para espelhar essa proposta lírica, Francis Hime optou por uma música de possibilidade comunicativa muito direta, trazendo a construção harmônica mais simples entre todas as canções de sua carreira, inteiramente ancorada nos graus I, IV e V³, embalada por ritmos dançantes. É sobre essa base simples que o compositor põe seu tempero: embora os acordes sejam de tônica, subdominante e dominante, há o acréscimo de algumas tensões e inversões sem as quais Francis não passaria; no arranjo, a singeleza da base harmônica é balanceada por contrapontos e um rico colorido na orquestração de sopros; a junção de itens associados a locais distantes entre si, presente na letra, encontra correspondente no ritmo da canção, que começa no compasso binário da rumba cubana e, depois de transposição meio tom acima, dá lugar a um ritmo espanholado ternário (Francis classifica como paso doble). O tom irreverente é reforçado por uma construção melódica de notas curtas e tessitura não muito ampliada, exemplo do que Luiz Tatit chama de canções tematizadas, muito usadas em composições de exaltação (2006).

    Em seu livro Trocando em Miúdos as Minhas Canções (2017), Francis Hime comenta a gênese de Pau Brasil:

    Acho que Pau Brasil foi a primeira letra de Geraldinho que musiquei, isso lá pelo início da década de 1980. Lembro de tê-la composto no violão, inicialmente uma espécie de mambo/salsa, mas depois resolvi mudar o ritmo e compus um paso doble. Permaneci na dúvida até o dia da gravação, sem conseguir me decidir sobre qual deles era mais adequado. Optei por fazer das duas formas [...]. E um belo dia eu me vi cercado de formosas bailarinas no hall do hotel Quitandinha, em Petrópolis, que dançavam freneticamente num cenário de bananeiras e cachoeiras artificiais: tratava-se de um clipe para o Fantástico. [...] Pau Brasil é uma música que sempre incluo no repertório dos meus shows. Sua melodia e harmonia são muito simples e conseguem uma comunicação forte com o público graças ao seu ritmo empolgante, que, por sinal, contraria todas as regras da prosódia, conforme vocês podem constatar na transcrição a seguir, em que mostro as acentuações em maiúsculas.

    era uma vez uMA floresta

    cheIA de FESta e baLANganDÃ

    na noite FRESca carNAvaLESca

    briLHAva a esTREla alDEbaRÃ

    e nas queBRAdas da MAdruGAda

    toDA meNIna eRA cuNHÃ

    um belo DIa uMA meNIna

    Está gostando da amostra?
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