Aos Pes Do Crucificado PDF
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Resumo
Buscar-se- em trs etapas realizar uma leitura da narrativa de Jo 19,25-27 que d conta
do contexto global do Quarto Evangelho e de seu forte contedo simblico. Na primeira
etapa, busca-se um breve resumo das diversas interpretaes que o referido texto
encontrou ao longo das etapas histricas da teologia. Posteriormente, se dar a
construo das identidades das personagens protagonistas da cena levando em conta
suas diversas aparies ao longo do Evangelho. Como ltima etapa, analisar-se- a
entrega acontecida ao p da cruz (Me de Jesus ao Discpulo Amado e vice-versa)
visando
apreender
suas
implicaes
para
compreenso
da
Aliana
e,
Rsum
On cherchera raliser en trois tapes une lecture du rcit de Jn 19,25-27 qui puisse
donner compte du contexte global du Quatrime vangile et de son fort contenu
symbolique. Dans la premire tape, on cherche un bref rsum des diverses
interprtations que le texte a trouv au long des tapes historiques de la thologie.
Ultrieurement, on essayera la construction des identits des personnages protagonistes
de la scne en prenant en considration leurs diverses apparitions au long de l'vangile.
Comme dernire tape, on analysera levnement au pied de la croix, quand la Mre de
Jsus est confie au Disciple Aim et vice versa, en visant apprhender son
implication pour la comprhension de l'Alliance et, par consquence, pour l'identit de
la communaut de foi.
Mots-cl : Jean, Mre de Jsus, Disciple Aim et Alliance.
Siglas e abreviaturas:
DV: Constituio Dogmtica Dei Verbum
LG: Constituio Dogmtica Lumen Gentium
RM: Carta Encclica Redemptoris Mater
MC: Exortao Apostlica Marialis Cultus
BAC: Biblioteca de Autores Christianos
PL: Patrstica Latina
SUMRIO
Introduo ......................................................................................................................... 9
Referncias ...................................................................................................................112
1 Tradues da Bblia consultadas: .............................................................................. 112
2 Software ..................................................................................................................... 112
3 Livros e artigos .......................................................................................................... 112
Anexo I ...................................................................................................................115
Introduo
opinio comum que os relatos evanglicos no possuem a preocupao
factual da historiografia como ns a entendemos. Portanto, o que os evangelistas
buscam no o relato jornalstico dos fatos acontecidos com Jesus, mas, sim,
produzir uma teologia que comunique a profundidade do Mistrio de Deus manifesto
na pessoa, palavras e obras de Jesus Cristo1. Isso influencia profundamente na escolha e
na construo das narrativas em funo do contedo que se quer comunicar.
O Quarto Evangelho certamente no escapa dessa concepo. Quando
consideramos tanto o material prprio quanto a aparente reelaborao de temas
sinpticos, reconhecemos nesse ltimo dos evangelhos uma redao esmerada, lanando
mo frequentemente de relatos com forte carter simblico. Joo, como chamaremos o
autor do Quarto Evangelho de agora em diante, parece querer comunicar com isso o
Mistrio divino e humano que envolve a existncia histrica crist.
Na linha do que acabamos de dizer, nosso trabalho se prope ler, atento
teologia simblica de Joo, o relato do ltimo acontecimento antes da morte do Filho na
cruz, segundo Jo 19,25-27, pois percebemos que a maneira como foi redigida esta
percope porta essa fora simblica. Tal leitura, constitui um caminho enriquecedor para
a hermenutica, ainda pouco conhecida em nossas comunidades eclesiais, do evangelho
inteiro.
Como primeiro passo, buscaremos perceber como esta percope foi
interpretada ao longo da tradio teolgica bblica crist. Sero escolhidos para a
pesquisa alguns autores relevantes nos diversos perodos histricos da teologia. Ao final
deste passo, intentaremos uma sntese que nos permita seguir este caminho hemenutico
com a devida honestidade epistemolgica.
O segundo passo ser construir, no interior da narrativa, a identidade de
cada personagem para compreender a funo simblica que cada um ocupa no relato.
Para tanto, se far a anlise de cada uma das menes relativas s personagens
principais da percope em questo ao longo do Evangelho de Joo.
DV, 19
VITRIO, J. A narrativa do livro de Rute. In: ESTUDOS Bblicos. Petrpolis: Vozes, 2008. n. 98. p.85106.
10
11
12
Irineu de Lio:
Autor do segundo sculo de nossa era, Irineu comps sua obra mais
expressiva, Adversus Haereses, no ano de 180 d.C. Com uma preocupao menos
exegtica que pastoral, essa obra possui carter apologtico; nela, o autor refuta as
principais correntes gnsticas de seu tempo (Valentim, Basilades e Marcio). Redigida
h apenas nove dcadas da data provvel da escrita do evangelho de Joo, constitui-se,
assim, como um dos primeiros testemunhos relativos ao Quarto Evangelho.
No tocante percope em questo neste trabalho, encontramos apenas uma
referncia indireta ao tema, onde o autor expressa sua opinio sobre a identidade do
Discpulo Amado:
E Joo, o discpulo do Senhor, aquele que tinha recostado a cabea ao peito
dele, tambm publicou seu Evangelho, quando morava em feso, na sia.1
Ambrsio de Milo:
O grande mestre de Milo trabalha a percope de Jo 19,25-27 sob um prisma
psicolgico e simblico. Ambrsio nos apresenta Jesus como um mestre de piedade.
Centra-se na figura do filho que se preocupa com a me no momento em que ir deix1
IRINEU. Contra as Heresias. So Paulo: Paulus, 1997. Livro III,1,1. (Col. Patrstica, 4)..
13
la sozinha por causa de sua morte. Prope, assim, o gesto de Jesus como exemplo moral
a ser seguido pelos filhos com relao s suas mes2.
O fato de esse relato estar presente somente no evangelho de Joo, explica
Ambrsio, porque esse evangelista foi quem mais penetrou na profundidade dos
mistrios divinos3. Mateus e Marcos enfatizaram os aspectos morais e humanos na hora
da morte de Jesus na cruz (Mt 27,5-61; Mc 15,33-41), para ressaltar que a humanidade
assumida pelo Cristo era a mesma que padecia na cruz. Lucas nos apresenta Jesus como
o grande intercessor ao demonstrar misericrdia para com os judeus e o ladro4.
Para Ambrsio, existem trs grandes temas presentes na percope de Jo
19,25-27: a virgindade perptua de Maria, o testamento de Jesus e Maria como figura da
Igreja.
Sobre a virgindade perptua de Maria, o Santo Doutor afirma: Esta
passagem nos apresenta um testemunho superabundante da virgindade de Maria5.
Segundo o costume em Israel, caso ela tivesse outros filhos, aps a morte do
primognito, eles que haveriam de cuidar da me em situao de desamparo, levandoa para suas casas e cuidando de sua subsistncia. Assim, visto que Maria s possua um
filho, ou seja, Jesus, com a sua morte, Maria ficar sozinha. preciso entreg-la aos
cuidados de algum para que no fique sem recursos para sobreviver. O escolhido por
Jesus o discpulo a quem mais ama, ou seja, para Ambrsio, Joo, que a recebe como
Me.
Dessa forma, o autor percebe que nessa passagem est contida toda a
preocupao de Jesus com sua Me. Assim, Ambrsio apresenta esta percope como
prova da virgindade perptua de Maria e da maneira como Jesus honra sua Me:
E Joo, que foi quem penetrou com mais profundidade nos mistrios divinos,
trabalhou sem cessar para declarar que aquela que havia gerado a Deus havia
permanecido Virgem. Pois, se o fato de que o Senhor perdoou ao ladro
algo verdadeiramente sagrado, muito mais o que o Filho honre a sua Me.6
AMBRSIO, Santo. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. In: Obras de San Ambrosio. Tomo I
BAC, vol. 257. Madrid: Editorial Catolica, 1966, Livro X, n. 132, p. 612.
3
AMBRSIO, Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Livro X, n. 130, p. 611.
4
AMBRSIO, Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Livro X, n. 129, p. 610.
5
AMBRSIO, Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Livro X, n. 133, p. 613.
6
AMBRSIO, Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Livro X, n. 130, p. 611.
14
Cristo fazia seu testamento desde a cruz, testamento que guardou Joo em
seu livro, como um testemunho digno de to grande testador. Um testamento
que de grande valor, ainda que no certamente pecunirio, seno vital,
escrito no com tinta, seno pelo Esprito de Deus vivo (cf. 2Cor 3,3).7
Agostinho de Hipona:
Para tratar a percope de Jo 19,25-27, Agostinho estabelece uma ponte com
o relato de Jo 2,1-10, o episdio das Bodas em Can. Com o intuito de explicar a
resposta de Jesus interpelao de sua Me, Que queres de mim mulher? A minha
hora ainda no chegou (Jo 2,4), Agostinho recorre filiao divina de Jesus:
Por um privilgio nico, ele nascera somente do Pai, sem ter pai. Deus sem
Me, e homem sem Pai! Sem Me desde todos os tempos. Sem pai, no fim
dos tempos.9
AMBRSIO, Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Tomo I, Livro X, n. 131, p. 611.
AMBRSIO, Tratado sobre el Evangelio de San Lucas, Tomo I, Livro X, n. 134, p. 613.
9
AGOSTINHO. Oeuvres de Saint Augustin: Homlies sur levangelie de Saint Jean I-XVI. Bruges:
Descle de Brouwer, 1969. p. 489.
8
15
o Mestre, pelo seu testemunho. Mesmo morrendo, ele no perde de vista a sua misso
de anunciar aos homens o Evangelho. Maria vista como dom do Crucificado para os
seus seguidores10.
Bernardo de Claraval
Quanto percope de Jo 19,25-27, So Bernardo v as palavras dirigidas por
Jesus sua Me: Mulher, eis a o teu filho, como cumprimento da profecia proferida
por Simeo: a ti mesmo uma espada te transpassar a alma (Lc 2,35). O autor afirma:
troca! Te entregaram Joo no lugar de Jesus, o servo no lugar do Senhor, o
discpulo no lugar do Mestre, o filho de Zebedeu no lugar do Filho de Deus,
um homem no lugar de Deus Verdadeiro.11
Toms de Aquino
No comentrio de Santo Toms ao Evangelho de Joo, encontra-se uma
meno explcita ao texto de Jo 19,2512. No interior da leitura que Santo Toms faz do
prlogo de So Jernimo, o santo doutor da igreja comenta a afirmao que Jernimo
faz sobre a virgindade do Apstolo Joo. Para confirmar a virgindade do apstolo, so
apresentadas duas provas: a primeira a de que Joo, testemunha fiel que escreveu o
Evangelho, amou de maneira to profunda o Senhor, que este se torna prova da pureza
do Apstolo; a segunda prova encontra-se no fato de Jesus, suspenso na cruz, ter
confiado sua me, a Virgem Maria, ao Apstolo, para que ela, virgem, pudesse ser
guardada como convm, por um homem virgem.
10
AGOSTINHO, Sobre el Evangelio de San Juan (36-124), Tomo XVI, Tratado CXIX, n. 3, p. 709.
BERNARDO DE CLARAVAL, En la natividade de la bienaventurada Virgen Mara. In: Obras
Completas de San Bernardo. Madrid: Editorial Catlica, 1980. n.15. Apud: LOPES, Rogrio de Frana. A
Me de Jesus no Evangelho de Joo: Um estudo de Jo 2,1-11; 19,25-27 para uma mariologia funcional
cristocntrica. Dissertao de Mestrado. Belo Horizonte: CES, 2004, p. 63.
12
THOMAS DAQUIN. Commentaire sur lvangile de Saint Jean. Paris: Cerf, 1998. n. 15, p. 46.
11
16
Afonso de Ligrio
Embora a relevncia do pensamento desse doutor da Igreja, na tradio
teolgica, tenha sido no campo da moral, e no mariolgico e bblico, santo Afonso
sempre se mostrou um grande devoto de Nossa Senhora, tendo dedicado um livro
especialmente devoo mariana (Glrias de Maria). Sendo assim, acredita-se que esse
autor possa bem expor a interpretao geralmente aceita em sua poca no tocante a essa
percope.
Tendo isso presente, quanto participao de Maria na hora de Jesus, santo
Afonso nos diz:
Pela segunda vez Maria nos gerou para a graa, quando no Calvrio ofereceu
ao Eterno Pai, por entre muitos sofrimentos, a vida de seu amado Filho pela
13
Cf. THOMAS DAQUIN. Commentaire sur lvangile de Saint Jean. Paris: Cerf, 2006. n. 2439-2441.
Extrado da web: Acesso http ://docteurangelique.free.fr, em 26 de fevereiro de 2010.
14
Cf. THOMAS DAQUIN, Comentaire sur lvangelie de Saint Jean (2006), n. 2442-2443.
15
THOMAS DAQUIN, Comentaire sur lvangelie de Saint Jean. n. 15, p. 46.
17
nossa salvao. Porque ela ento cooperou com o seu amor para que os fiis
nascessem para a vida da graa, por isso mesmo, segundo S. Agostinho, veio
a ser Me espiritual de todos ns, que somos membros da nossa cabea, Jesus
16
Cristo.
Ao oferecer o filho, Maria vista por Ligrio, bem ao modo de seu tempo,
como co-redentora. interessante perceber que, ao ler a entrega da Me ao Discpulo,
embora ainda em uma leitura marcada pela identificao primeira do Discpulo Amado
com Joo, Afonso amplia ao dizer que essa no-nomeao do Discpulo, nesse
momento, apontaria para uma categoria que podemos chamar simblica, uma vez que
amplia a percepo para a universalidade de todos os que levam o nome de discpulos.
Essa maternidade espiritual de Maria gerada na dor. Afonso percebe uma
espcie de martrio, pois, no abandonando o filho na hora da dor, ela sofre com a morte
de Jesus.
Aqui temos a contemplar uma espcie de martrio. Trata-se de uma me
condenada a ver morrer diante de seus olhos, no meio de brbaros tormentos,
um filho inocente e diletssimo. Estava em p junto cruz de Jesus, sua me
(Jo 19,25). desnecessrio dizer outra coisa do martrio de Maria, quer com
isso declarar S. Joo; contemplai-a junto da cruz, ao lado de seu Filho
18
moribundo e vede se h dor semelhante sua dor.
Assim, percebe-se que Maria, para santo Afonso, co-redentora por seu
martrio junto cruz. Ao entregar seu filho, em meio a todo o seu sofrimento, fiel ao p
da cruz, Maria se torna Me espiritual, pois possibilitou, pela sua entrega, a salvao
dos homens na morte de Jesus.
16
LIGRIO, Afonso Maria de. Glrias de Maria. Aparecida: Santurio, 1987. p.47.
LIGRIO. Glrias de Maria, p.47-48.
18
LIGRIO. Glrias de Maria, p. 392.
17
18
Ser somente no sc. XIII que se encontrar uma segunda meno do ttulo:
A Igreja , pois, me de Maria, e Maria me da Igreja21. Certa ressonncia em um
texto de Agostinho, embora vaga, pode ter conferido validade ao ttulo22. Mais
claramente, encontra-se a seguinte afirmao de Agostinho:
me segundo o Esprito, me de nossa cabea que o Salvador, do qual ela
nasceu antes espiritualmente, porque todos os que creram nele, entre os quais
tambm ela, corretamente se chamam filhos do esposo (cf. Mt 9,15). Mas ,
certamente, me de seus membros, que somos ns, porque cooperou pela
caridade, para que nascessem os filhos na Igreja, que so membros daquela
cabea. Mas, quanto ao corpo, ela a me da cabea mesma. Convinha, de
fato, que nossa cabea, por um milagre insigne, nascesse da virgem segundo
a carne, para significar que seus membros haveriam de nascer da virgem
Igreja segundo o Esprito23.
19
Os dados presentes nesta seco foram gentilmente cedidos por Francisco Taborda (FAJE-BH) e
constituem parte do manuscrito de sua obra sobre mariologia ainda a ser publicada.
20
PSEUDO-AMBRSIO. Expositio super septem visiones libri Apocalypsis. PL 17, 960.
21
PITRA, J. B.: Spicilegium Solesmense. Complectens S. Patrum scriptorumque ecclesiasticorum
anedocta.. III. Paris, 1855, 130-131, apud: SCHILLEBEECKX, Edward: Mariologia: ieri, oggi, domani.
In: SCHILLEBEECKX, Edward; HALKES, Catharina: Maria: ieri, oggi, domani. Brescia: Queriniana,
1995. p. 33-34.
22
Cf. AGOSTINHO: Sermo 25, De verbis Evangelii Matthaei XII, 41-50. PL 46, 938.
23
AGOSTINHO: De sancta virginitate VI, 6. PL 40, 399.
19
24
salv-lo, baseando-se em Lutero26. Por sua vez, Sesbo observa que como uma me
de famlia membro da famlia, Maria, Me da Igreja, continuou a ser evidentemente
membro dela e irm nossa27.
Taborda observa que todos esses ttulos marianos so, na realidade, ttulos
do Esprito Santo atribudos, primeiramente, Igreja e depois transpostos a Maria. De
fato, me da Igreja o Esprito, fonte de toda vida e, portanto, tambm da vida da
Igreja28. Me dos fiis o Esprito que nos engendra na f. A partir da, a Igreja que
nos gera no seio do batismo, e Maria, como me daquele que a cabea do Corpo de
Cristo, dos quais somos membros.
Lumen gentium
O Conclio Vaticano II, principalmente em seu documento Lumen Gentium,
significou um dos maiores avanos na mariologia dos nossos tempos. Antes desse
importante evento, a figura de Maria era compreendida a partir de privilgios
individuais que a Me do Senhor havia recebido (Me de Deus, sempre Virgem,
Imaculada, assunta aos Cus). Lumen Gentium recoloca a viso mariolgica da Igreja
em funo da cristologia e da eclesiologia. Maria e sua misso j no so mais
compreendidas, a partir de ttulos e privilgios individuais, mas em relao a Cristo e
Igreja. Enfim, o pensamento recolocado na perspectiva da Histria da Salvao.
No sem mais que a principal referncia a Maria nos documentos do
Conclio encontrada no interior do documento sobre a Igreja. O ttulo do oitavo
captulo de Lumen Gentium29 por demais sugestivo: A Bem-Aventurada Virgem
Maria Me de Deus no mistrio de Cristo e da Igreja. Assim, Maria vista como uma
24
Maria tambm me da Igreja, essa Igreja, da qual ela o membro mais eminente. WA 1, 107.22-25,
apud: GROUPE DES DOMBES: Marie dans le dessein de Dieu et la communion des saints. Paris:
Bayard; Centurion, 1999, n 57, p. 42 (doravante citado como DOMBES). Cf. WA 4, 234.5-8, cit. em
DOMBES, n 57, p. 42-43.
25
Grupo ecumnico de origem francesa fundado em 1937.
26
Cf. DOMBES, n 57, p. 42-43. Tal a consolao e a bondade excessiva de Deus que um homem
possa se orgulhar, se cr, de um to grande tesouro: que Maria sua verdadeira me, Cristo seu irmo
e Deus seu pai (LUTERO, Martinho: Kirchenpostille 1522 Evangelium der Christimess. Luk 2,114, em: WA 10/I, 72, l. 19-73, l. 2).
27
SESBO, Bernard. A Virgem Maria. In: ID. (dir.): Histria dos dogmas. Tomo 3: Os sinais da
salvao . So Paulo: Loyola, 2005, 465-514; aqui: 464.
28
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward: Mariologia: ieri, oggi, domani, p. 52-53.
29
LG, 52-69
20
criatura de Deus, escolhida para a Misso de ser a Me do Filho de Deus encarnado. Sua
grandeza encontra-se na escuta desse chamado e na fidelidade de vida ao mesmo,
caminhando na f. Dessa forma, Maria vista agora mais em sua dimenso bblica,
inserida no interior do projeto salvfico do Pai em Jesus, do que pela dogmtica.
O texto do nmero 58 de Lumen Gentium, lugar em que se encontra a
referncia explcita ao texto em questo neste trabalho, assim reza:
Na vida pblica de Jesus, Sua me aparece duma maneira bem marcada logo
no princpio, quando, nas bodas de Can, movida de compaixo, levou Jesus
Messias a dar incio aos Seus milagres. Durante a pregao de Seu Filho,
acolheu as palavras com que Ele, pondo o Reino acima de todas as relaes
de parentesco, proclamou bem-aventurados todos os que ouvem a palavra de
Deus e a pem em prtica (cfr. Mc. 3,35 e paral.; Luc. 11, 27-28); coisa que
ela fazia fielmente (cfr. Luc. 2, 19 e 51). Assim avanou a Virgem pelo
caminho da f, mantendo fielmente a unio com seu Filho at cruz. Junto
desta esteve, no sem desgnio de Deus (cfr. Jo.19,25), padecendo
acerbamente com o seu Filho nico, e associando-se com corao de me ao
Seu sacrifcio, consentindo com amor na imolao da vtima que d'Ela
nascera; finalmente, Jesus Cristo, agonizante na cruz, deu-a por me ao
discpulo, com estas palavras: mulher, eis a o teu filho (cfr. Jo. 19, 26-27).
Assim, o culto a Maria, segundo Paulo VI em MC, no tem outra funo que
a de levar os homens a Cristo. Ou seja, Maria, por sua intercesso e exemplo de vida de
santidade, se mostra como caminho a ser seguido na direo de seu Filho e Mestre.
No tocante percope central deste trabalho, Jo 19,25-27, encontramos as
melhores referncias no n. 20 de MC:
Esta unio da Me com o Filho na obra da Redeno (LG 57) alcana o ponto
culminante no Calvrio, onde Cristo "se ofereceu a si mesmo a Deus como
vtima sem mancha" (Hb 9,14), e onde Maria esteve de p, junto Cruz (cf.
Jo 19,25), "sofrendo profundamente com o seu Unignito e associando-se
com nimo maternal ao seu sacrifcio, consentindo amorosamente na
imolao da vtima que ela havia gerado" (LG 58), e oferecendo-a tambm
ela ao eterno Pai. Para perpetuar ao longo dos sculos o Sacrifcio da Cruz, o
divino Salvador instituiu o Sacrifcio eucarstico, memorial da sua Morte e
Ressurreio, e confiou-o Igreja, sua Esposa (SC 47), a qual sobretudo ao
domingo, convoca os fiis para celebrar a Pscoa do Senhor, at que Ele
torne (SC 102 e 106): o que a mesma Igreja faz em comunho com os Santos
do cu e, em primeiro lugar, com a bem-aventurada Virgem Maria,(42) de
quem imita a caridade ardente e a f inabalvel.32
30
MC, n. 33.
MC, 57e.
32
MC, n. 20c.
31
23
RM, n. 21
24
Ignace de la Potterie
Esse influente biblista perceber as personagens Me de Jesus e Discpulo
Amado a partir de sua importncia corporativa. Ou seja, para ele, no se trata de
identificar simplesmente a Me de Jesus com Maria ou o Discpulo Amado com Joo.
Tais personagens indicam grupos bem distintos no interior do Quarto Evangelho.
Potterie, em consonncia com a tradio veterotestamentria, expe um estudo feito por
Serra onde se pode perceber no vocativo Mulher, aplicado Me de Jesus, tanto em
Can como na cruz, a Sio Messinica, que denominada mulher em diversos
textos do Antigo Testamento, principalmente pelos profetas35.
34
35
RM, n.23
LA POTTERIE, I. Marie dans le mystre de lalliance. Paris: Descle, 1995. p. 244. (Col. Jesus et
Jesus-Christ)
25
O Discpulo Amado, por sua vez, designa todos aqueles que se encontram
na amizade de Jesus, os discpulos.
O carter esteorotpico e enftico da formula o discpulo que Jesus amava
chama a ateno para dois grandes temas joaninos: a condio mesma do
discpulo e o amor de Jesus pelo discpulo. No d a compreender esta
expresso em um sentido exclusivo, como se tratasse somente do discpulo
que Jesus amava ou de uma preferncia de Jesus por este discpulo [...] O
Discpulo que Jesus amava representa, ento, os discpulos de Jesus, que
como tais, so acolhidos na comunho com o Cristo.36
Schrmann
A tese defendida por esse autor, de carter profundamente simblico,
apresenta a Me de Jesus, j nas Bodas em Can, como smbolo daqueles que esperam a
salvao e que solicitam o dom de Jesus. O dom do vinho pedido por Maria nas bodas
se cumpre plenamente na consumao permanente na cruz. Assim, essa, que representa
todos os que esperam na fidelidade o cumprimento da promessa, h de receber o
discpulo amado no lugar de seu Filho; e o discpulo h de comunicar-lhe o que Jesus
deixa. Para esse autor, na Me de Jesus todos os que esperam a salvao so confiados
Testemunha (Discpulo Amado) e ao seu evangelho39. Schrmann percebe a
personagem Me de Jesus como um smbolo que ultrapassa as barreiras geogrficas e
temporais.
36
26
Schnackenburg
Esse especialista, em seu comentrio ao evangelho de Joo40, ao interpretar a
percope de Jo 19,25-27, dentre tantas possibilidades que apresenta, aproxima-se da tese
de H. Schrmann, que anteriormente foi exposta como sendo a mais aceitvel.
Para Schnackenburg, a Me de Jesus representa o Israel que espera a
manifestao do Messias e o reconhece em Jesus de Nazar. Ela capta toda a tenso
messinica que antecede o relato de Can (cf. Jo 1,31.41.45.49) e que retomada na
entrada em Jerusalm (cf. Jo 19,12). Sua figura contrabalana com a do judasmo
incrdulo que aparece em Jo 12,13. Na dupla entrega, preciso perceber que no s
Maria entregue ao discpulo, que a leva para o interior de sua vida, mas que tambm
ao discpulo ela entregue como Me. Assim, pode-se perceber a inteno de recordar
comunidade crist o regao materno do qual Jesus e a prpria Igreja mesma provm.
Essa viso reforada pela figura do discpulo amado como aquele que o
homem de confiana de Jesus, o que abriu seu interior (cf. Jo 13,23-26), o crente (Jo
20,8) e que conhece pela f (Cf. Jo 21,7) e que por isso chamado a ser intrprete da
revelao de Jesus. Ele chamado a acolher no somente a me de Jesus no interior de
sua casa, mas tambm a todos aqueles que esperam a salvao. Levando em conta o
eplogo, Schnackenburg aponta para o discpulo como aquele que permanecer como
testemunho at que o Senhor venha. Dessa forma, se cumpre a misso terrena de Jesus,
cuidando para que a revelao de Jesus se prolongue no futuro.
Schnackenburg tambm expe, para rebat-las, as interpretaes de
Bultmann e Kragerud para o relato da cruz. Para Bultmann, a Me de Jesus
representaria o judeu-cristianismo, enquanto o Discpulo Amado seria a figura do
cristianismo gentio. Em sua crtica, Schnackenburg percebe que essa interpretao no
convincente. Para ele, a interpretao de Maria como smbolo do judeu-cristianismo no
se sustenta e o Discpulo Amado como o cristianismo gentio entra em choque com a
dificuldade de que o termo discpulo est relacionado ao crculo coetneo dos discpulos
de Jesus. A nica possibilidade de se fazer essa leitura seria sustentar a idia de certa
animosidade entre Pedro (representante do judeu-cristianismo) e o Discpulo Amado
(cristianismo gentio). Contudo, segundo a tradio, Pedro no poderia estar presente ao
p da cruz.
40
Cf. SCHNACKENBURG, R. El Evangelio segun San Juan: Version y Comentario. Barcelona: Herder,
1980. vol. 3. p. 342-344.
27
Lon-Dufour
Lon-Dufour opta por uma leitura semelhante quela de Schnakenburg, j
apresentada acima. Lendo a percope de Jo 19,25-27, em paralelo com a narrativa das
Bodas em Can (cf. Jo 2,1-11), o autor percebe a Me de Jesus, pela repetio do
vocativo Mulher, como aquela que, nas Bodas, representava Israel espera da
interveno salvfica de Deus e que, ao p da Cruz, v realizada a sua espera.
A equivalncia simblica pela qual a me de Jesus recapitula em sua
pessoa a espera secular do povo que creu na Aliana (cf. Sl 87,5) muito
provavelmente se encontra mantida de um relato ao outro. Mas a situao
mudou. Diante da cruz, sob o olhar do Elevado, a Mulher que simboliza a
espera da salvao prometida por Deus associada ao Discpulo, que est
alm da espera: tendo repousado no peito do Revelador, o Discpulo aparece
como testemunha verdica e o intrprete autorizado da plenitude recebida.41
LON-DUFOUR, X. Leitura do Evangelho de Joo. So Paulo: Loyola, 1996. Tomo IV. p. 104. (Col.
Bblica Loyola 16)
42
LON-DUFOUR, Leitura do Evangelho de Joo, IV, p. 104.
28
significa um ato que perpetuar para sempre naquilo que constitui a prpria identidade
do Discpulo Amado, ou seja, na sua adeso ao Filho e na sua apropriao pessoal da
Palavra43.
[...] O neutro plural t ida pode indicar globalmente o que algum possui,
mas tambm o fundo prprio de algum (Jo 8,44; 15,19). Tratando-se aqui do
Discpulo perfeito na f, o termo pode significar sua adeso ao Filho, sua
apropriao pessoal da Palavra.44
1.2.6 Balano
Depois de ter exposto diversas interpretaes que a percope de Jo 19,25-27
teve ao longo da histria, faamos agora o balano , percebendo as evolues e os
pontos em comum, bem como as idias que prevalecem em cada momento histrico.
Perodo patrstico
Percebe-se que o primeiro a interpretar o Evangelho de Joo, Irineu de Lio,
no se preocupa propriamente com a percope em questo. Com Ambrsio de Milo,
porm surge, na patrstica latina, uma primeira interpretao relevante para nossa
pesquisa. O autor nos permite duas vias para a leitura dessa percope: a psicolgicomoral e a simblica. Pela via psicolgico-moral, Ambrsio aborda o sentido direto do
texto. De fato, numa leitura mais de superfcie, o que salta aos olhos do leitor a
preocupao do Filho que est prestes a morrer enquanto sua me ser deixada sozinha.
Sendo viva, e seu filho no possuindo prole, a posio da me, dentro da sociedade
judaica, seria muito complicada. Assim, o corao filial de Jesus se preocupa com o
43
29
futuro de sua me, deixando-a sob os cuidados daquele que lhe era mais prximo. Nesse
primeiro nvel, tanto a Me de Jesus quanto o Discpulo Amado so identificados com
pessoas, respectivamente, Maria de Nazar e Joo, filho de Zebedeu.
A segunda via apontada por Ambrsio nos situa no campo simblico. Maria
nos apresentada como figura da Igreja, presente em aparncia j no antigo povo
(Israel), que gerou o Messias e agora se une a um novo povo na cruz. Dessa forma,
Ambrsio parece encontrar um sentido mais de superfcie e outro mais profundo para a
passagem, sem descartar nenhum dos dois. Ao mesmo tempo em que a Me de Jesus
vista como Maria de Nazar, a ponto de Ambrsio perceber nessa passagem a prova de
sua virgindade perptua, pois no existiria mais ningum para cuidar dela depois da
morte do nico filho, ela tambm vista como figura da Igreja, como povo fiel, presente
j no povo da Antiga Aliana.
Em Agostinho, percebe-se uma interessante mudana: no h mais a
compreenso da Me de Jesus como smbolo. Agostinho foca sua interpretao na
figura de Maria de Nazar como me de Jesus. Ele, fazendo um ponto com os relatos de
Can, se fixar no paradoxo da frieza do dilogo entre Jesus e Maria em Can e no
profundo cuidado demonstrado quando da cruz. Ele recorre dupla realidade de Jesus
Cristo: homem e Deus. Em Can, quando age a divindade de Jesus, sua resposta
distante, pois o Cristo que ali age. Na cruz, quando a dor e o sofrimento humanos
aparecem com maior fora, Jesus reconhece a carne que o gerou, por isso, a docilidade e
o cuidado.
Enquanto Ambrsio ainda d certo peso ativo figura do Discpulo Amado,
Agostinho o coloca, na interpretao desta percope, em segundo plano. Ele quem
receber a Me. O foco vai se fixando na figura de Maria, enquanto o Discpulo Amado
vai tomando um papel secundrio, quase passivo, na ao.
Perodo Medieval
Como representante desse perodo, escolhemos Bernardo de Claraval. O
foco da interpretao que se encontra no Doutor Melfluo est centrado na figura de
Maria. H total identificao entre a Maria de Nazar e a figura da Me de Jesus de
Joo. A frase evanglica Me, eis a o teu filho interpretada como cumprimento da
profecia de Simeo: Uma espada de dor transpassar o seu peito, presente no
evangelho de Lucas.
30
Perodo Moderno:
A interpretao que encontramos em Santo Afonso Maria de Ligrio nos
leva percepo de Maria como co-redentora. Em seu martrio ao p da cruz, Maria
oferece o seu Filho pela salvao do mundo. Aqui, definitivamente, o foco est centrado
na figura de Maria. Por seu sofrimento e entrega do filho, ela se torna me espiritual de
todos os fiis.
Novamente a figura do Discpulo Amado ligada a Joo, o apstolo, e fica
em segundo plano. Interessante perceber que, aqui, Joo figura como a imagem do
homem redimido. pela oferta que Maria faz de seu filho que os homens so salvos.
At aqui, percebe-se como a interpretao dessa percope foi ficando cada
vez mais centrada na pessoa de Maria. Ela identificada, sem mais problemas, com a
Me de Jesus mencionada no evangelho de Joo. A figura do Discpulo Amado,
identificado com Joo, vai ficando cada vez mais passiva e obscurecida. Assim, v-se
nascer uma interpretao mariocentrista da percope que est sendo trabalhada. Se em
nenhum momento se perde o centro no Mistrio da Salvao manifesto em Jesus,
contudo, a figura de Maria vai crescendo em tais propores que, em Santo Afonso, ela
se torna corredentora.
A linha de interpretao simblica que se encontra em Ambrsio de Milo
vai se perdendo no decorrer da histria da interpretao. O que vai se fixando a via de
interpretao mais psicolgica e devocional mariana. Uma reao contra isso se desenha
a partir do Conclio Vaticano II.
31
Exegese cientfica:
Com a abertura proporcionada pela mentalidade condensada no Conclio
Vaticano II, novas interpretaes da percope de Jo 19,25-27 surgiram. Tanto Potterie
como Schrmann, Schnackenburg e Lon-Dufour tendem a uma anlise mais simblica
do texto joanino. Esse simbolismo, que retoma a linha perdida desde Ambrsio,
permitiu a possibilidade de uma leitura mais global das Escrituras, dentro do esprito
presente entre os escritos sagrados do Novo Testamento, em que a Boa-Nova presente
em Jesus cumprimento de toda a espera messinica de um povo que se percebe em
Aliana de vida com seu Deus.
Ao se deixar de lado o exagerado mariocentrismo presente nas
interpretaes anteriores, gradualmente, a importncia da figura do Dscipulo Amado
retomada nas interpretaes recentes dessa percope. Assim, o leque se amplia ao
demonstrar a riqueza presente na tradio milenar onde o cristianismo lanou suas
razes. De maneira alguma Maria perde seu lugar na histria salvfica, mais do que isso,
reencontra seu lugar de direito, como discpula e Me do Salvador. A presente
interpretao aproxima-se de uma possvel compreenso condizente com o contexto do
autor do Quarto Evangelho, ou seja, de um judeu religioso, criado na esperana da
32
realizao plena da Aliana de Deus com seu povo e que percebe em Jesus o centro e o
cumprimento de sua f e esperana.
Schnackenburg, em seu comentrio ao Evangelho de Joo47, reuniu em
quatro grupos temticos diferentes, as interpretaes que a percope em questo teve ao
longo da histria: historicista, tipolgico-simblica, mariolgica em estrito senso e
outras interpretaes simblicas. A exposio desse interessante estudo servir para
completar e sintetizar ainda mais o caminho feito at agora, pois, assim, o que foi
apresentado primeiro de maneira mais discursiva aqui retomado criticamente, num
enfoque mais metodolgico e atento s categorias que se apresentam.
Interpretao historicista:
Nesse tipo de interpretao no se v mais do que a solicitude filial de Jesus
para com Maria, sua me. Essa leitura j se encontra presente nos santos padres e foi at
utilizada como prova de que as expresses irmo ou irm de Jesus, nos evangelhos
(Mc 6,3par; Jo 2,12) se referiam a parentes e no a filhos da mesma me.
Consequentemente, essa interpretao ser usada para falar da virgindade perptua de
Maria, como se viu no pensamento de Ambrsio de Milo.
Contra essa forma de interpretao pesam o inegvel interesse teolgico do
evangelista no resto da narrativa da paixo e a ausncia de meno, at aquele
momento, de solicitude terrena de Jesus para com sua Me.
A maioria dos defensores da leitura historicista supe que o Discpulo
Amado seja o apstolo Joo, que teria levado Maria para sua casa depois da morte de
Jesus.
Interpretao tipolgico-simblica:
Essa via de interpretao, presente de maneira mais difundida na exegese
eclesistica desde o sculo XII, percebe Maria como imagem da Igreja. Para isso,
utilizar os termos me e mulher em consonncia com as imagens
veterotestamentrias de Israel ou Sio como mulher e me. Retomam a tipologia
patrstica Eva-Maria. Schnackenburg questiona se realmente essa tipologia e viso de
Igreja, muito centrada na figura de Maria, est presente no pensamento do autor do
Quarto Evangelho. Ele v como mais provvel a interpretao simblica que percebe a
47
33
*
Ao fim dessa apresentao, v-se que nossa hiptese encontra apoio
especialmente na interpretao dos telogos contemporneos. De maneira especial, ser
Xavier Lon-Dufour o telogo que mais nos oferecer elementos para desenvolver
nossa hiptese inicial.
34
35
1. A Me de Jesus:
A expresso Me de Jesus, em grego, mh,thr tou/ VIhsou/, aparece em
apenas dois episdios em todo o Evangelho de Joo, a saber, na percope conhecida
como das Bodas em Can (2,1-11) e aquela que denominamos Aos ps do
Crucificado (19,25-27). Ambas esto profundamente marcadas por um vis
escatolgico. A hora da glorificao do Filho, tema que ser aprofundado mais
frente , d o tom de fundo s duas percopes. A isso atribumos, como exposto
anteriormente, um primeiro indcio de que tais narrativas possuam profundo carter
simblico, indo, assim, alm de uma narrativa de carter meramente histrico. Dessa
forma, necessria a exposio de algumas consideraes prvias sobre a expresso
Me de Jesus, antes de proceder propriamente ao estudo das percopes.
36
LON-DUFOUR, X. Leitura do Evangelho de Joo: Palavra de Deus. So Paulo: Loyola, 1996. Tomo I.
p. 174-175. (Col. Bblica Loyola 13).
2
Cf. MATEOS, J.; BARRETO, J. Verbete: Me. In: ID. Vocabulrio Teolgico do Evangelho de So
Joo. So Paulo: Paulinas, 1989. p. 173.
37
Traduo instrumental
1
10
10
11
11
Natanael: chamado por Jesus de um verdadeiro israelita, em quem no h dolo, portanto, figura como
aquele que faz parte do Israel que permaneceu fiel. A frase de Jesus Antes que Filipe te chamasse, te vi
eu, estando tu debaixo da figueira nos remete figueira da passagem de 1Rs 4,25 onde Jud e Israel
habitavam seguros.
4
Henoc 46,1.2.3; 48,2; 61,10.13.17; 62,15; 68,38.39.40.41; 69,1;
5
Os sete sinais so: As npcias em Can (2,1-11), a cura do filho do nobre (4,46-54), cura do paraltico
(5,1-18), multiplicao dos pes (6,1-15), Jesus caminha sobre as guas (6,16-21), cura do cego (9,1-41),
ressurreio de Lzaro (11,1-44).
39
narrativa simblica. na medida em que aponta para uma nica realidade que a
organiza e a preenche de sentido. Como prprio desse evangelista, as narrativas
simblicas dos sinais cumprem a funo de revelar/comunicar uma face da identidade
messinica de Jesus Cristo, o Filho unignito do Pai.
Em 2,11, encontramos a expresso tau,thn evpoi,hsen avrch.n tw/n shmei,wn,
que qualifica, de maneira especial, esse sinal. Embora esse incio dos sinais tambm
signifique o princpio da sequncia dos sinais de Jesus, percebe-se ainda que, sob o
prisma escatolgico, possa essa expresso apontar para o incio de uma nova realidade
que se inaugura com os sinais. Isso se deve interpretao da palavra grega arch, que
implica dois sentidos: um sentido temporal, que marca o incio da enumerao dos
sinais que ho de ser manifestos ao longo do livro, e um sentido qualitativo, ou seja, o
princpio de uma nova realidade que estar presente, de agora em diante, no texto do
evangelho. Esse segundo sentido, para o qual apontamos, explicita o grande alcance que
possui essa palavra. Partindo do fato, anteriormente exposto de que esse sinal no
acompanhado de nenhuma palavra que ajude em sua interpretao, Lon-Dufour
pergunta:
No ser porque o sinal da gua transformada em vinho o arqutipo no
qual se acha prefigurada e pr-contida toda a srie [dos sinais]?6
Cronologia:
Joo nos oferece duas referncias cronolgicas para os eventos de Can: o
terceiro dia7, por sua vez inserido no quadro de uma semana8. Em ambas as
referncias ressoam textos importantes do Antigo Testamento. A seguir, sero estudadas
essas duas referncias, buscando-se perceber o contedo simblico existente.
6
Jo 2,1.
Jo 1,19. 28.35.43
40
O terceiro dia
As Bodas acontecem no terceiro dia e, em Joo, essa cronologia est em
profunda relao com a hora do Filho (cf. Jo 1,51; 2,4). Essa expresso (terceiro dia)
recorrente na narrativa de eventos importantes na histria de Israel9. Segundo
Konings,
o terceiro dia no deve ser entendido apenas como elemento narrativo, mas
como indcio de simbolismo. Na Bblia o terceiro dia no deve ser
entendido matematicamente; geralmente indica um breve lapso de tempo, s
vezes relacionado com o (pronto) agir divino...10.
Segundo dia
Terceiro dia
Quarto dia
Quinto dia
Sexto dia
Stimo dia
Simoens realiza um interessante estudo sobre esta expresso: SIMOENS, Yves. Selon Jean : Une
interpretation. ditions de nstitute dstudes Thologiques: Bruxelles, 1997. Tomo II. p.130-133.
10
KONINGS, J. Evangelho segundo Joo: Amor e Fidelidade. So Paulo: Loyola, 2005. p. 100.
11
De agora em diante utilizaremos o termo npcias no lugar de bodas, visto que em portugus mais
bem expressa o sentido desejado. O termo npcias tem grande peso teolgico. Por diversas vezes, a
dinmica nupcial foi utilizada no Antigo Testamento, largamente pelos profetas, em referncia Aliana
de Deus com Israel (Os 2,16-25; Jr 2,1-2; 3,1.6-12; Ez 16; Is 50,1; 54,2-8; 62,4-5; Sl 45; entre outros). No
Novo Testamento, o Reino de Deus comparado a uma festa de casamento (Mt 22,1-14; 5,25-33). Paulo
nos apresenta Jesus como o esposo (2Cor 11,2; Ef 5,25-33). O Apocalipse fala das npcias do cordeiro
(Ap 21,9).
41
A semana:
Quanto cronologia marcada por sete dias, acredita-se que, tanto os relatos
da verso litrgica do Targum com relao a xodo 19, exposta anteriormente na
meno a Manns, quanto os de Joo sobre as npcias em Can, estejam em referncia
12
Sobre a relao entre Antiga e Nova Aliana, remeto a: JAUBERT, A. La notion dalliance dans le
Judasme: aux abords de lre chretienne. Paris: Seuil, 1963.
13
MANNS, F. LEvangile de Jean a la lumire du Judasme. Jerusalem: Franciscan Printing Press, 1991.
p. 109
14
Embora preferindo uma abordagem que englobe os eventos do Sinai e a Semana da Criao em
paralelo com as npcias, no podemos deixar de citar que, para Simoens, o paralelo com Ex 19,11 mais
provvel do que uma possvel comparao com a semana da Criao. Cf.: SIMOENS. Selon Jean, II p,
133.
15
MANNS. LEvangile de Jean a la lumire du Judasme, p. 98
16
MANNS. LEvangile de Jean a la lumire du Judasme, p. 98
42
Geografia
Prosseguindo o estudo, v-se que tais npcias se realizam em Can. Notao
geogrfica tambm repetida em Joo (2,1.11); a possvel localizao geogrfica desse
lugar seria Kirbet Kan, situada a 14 km de Nazar ou Kefer Kan, a 7 km. Pode-se ver
aqui uma clara inteno simblico-teolgica. Segundo Frana Lopes:
Em 1,46 lemos: De Nazar, lhe [a Felipe] disse Natanael, ser que pode sair
alguma coisa boa? Felipe lhe disse: Vem e v. A passagem bblica mostra o
desprezo pela Galilia e pelos seus habitantes. Tanto os cristos como os
zelotas foram chamados de galileus, inimigos dos judeus.17
17
43
desconhecida Can se situa na Galilia. Essa regio, identificada por Isaas (8,23; cf.
1Mc 5,15) e citada por Mt 4,15-16 como Galilia das naes, se situa no ponto de
convergncia de diversas rotas da poca. No Quarto Evangelho, ela apresentada como
lugar da aceitao da mensagem e da pessoa de Jesus, mais do que em sua prpria ptria
(cf. 4,44). Ela o Norte que em Jesus ser unido ao Sul, lugar dos judeus (cf.
11,51-52). Nessa perspectiva, percebe-se que no Cristo se realizar a nova Aliana que
far da humanidade o povo uno (nico), imagem do Deus uno18.
18
44
Que h entre mim e ti. O sentido dessa frase varia de acordo com o
contexto. Geralmente significa: Que h de comum entre ns? ou O que que nos
separa?. Contudo, ela no pode ser reduzida a esses sentidos. Na Bblia, essa frmula,
ma li walak peculiar linguagem diplomtica, examina o elo existente entre dois
parceiros, seja para indicar uma ruptura, seja para chamar a ateno do interlocutor para
um ponto de divergncia23. No Antigo Testamento, ela aparece em 2Rs 3,13 e Os 14,9,
onde expressa a divergncia de opinies e em Jz 11,12 e 1Rs 17,18 onde exprime
hostilidade e recusa de relacionamento. No Novo Testamento, encontrada em Mt 8,29;
Mc 1,24; 5,7; Lc 4,34; 8,28. Nessa ocorrncia em Joo, percebe-se certa tenso entre
Jesus e sua Me acerca da falta de vinho. comum nos dilogos de Jesus em Joo certa
19
45
Em Joo, Jesus no reservar esse termo somente sua me. Ele pode ser
visto tambm aplicado Samaritana (4,21) e a Maria Madalena na manh pascal
(20,15).
Minha hora ainda no chegou: A expresso hora no Quarto Evangelho
muito importante. Todo o Evangelho de Joo um deslocar-se para esse momento
(7,30; 8,20; 12,23.27; 13,1; 16,32; 17,1). o cume de todo o livro: a glorificao do
24
46
Filho, ou seja, o enaltecimento na cruz. Essa expresso encontra suas origens nos
ambientes apocalpticos (Dn 8,17.19; Hen 89,72; 90,1.5) e designa o momento no qual
vai-se cumprir definitivamente o desgnio de Deus, to inelutvel quanto o Dia do
Senhor27.
Segundo Frana Lopes:
Esta hora no evangelho de Joo o momento da glorificao de Jesus. O seu
retorno ao Pai. um tempo de revelao. Cristo mostrar a intimidade que
Ele tem com o Pai. Jesus revelar quem Ele e quem o Pai, porque o Pai e
Ele so um (Jo 10,30). Tambm ser nessa hora que os discpulos
reconhecero que Jesus est no Pai. A hora em Can o comeo de uma
manifestao de Jesus Cristo que se plenificar na sua morte e ressurreio.
o momento em que Jesus vai doar a sua vida para a remisso dos pecados da
humanidade.28
Fazei tudo quanto ele vos disser: Surgem novos personagens na narrativa. A
Me de Jesus os chama obedincia. Segundo Manns, o termo dia,konoj ser retomado
em 12,26, designando a unidade entre a vida do discpulo servidor e a do Mestre31. No
contexto da Aliana, em que se desenvolve essa cena, encontra-se possvel aluso a Ex
19,8: na boca do povo escolhido, a promessa de obedincia ao Senhor. A me-Israel,
fiel Aliana, convoca obedincia aquele que levar a Antiga Aliana plenitude na
Nova.
47
Esses utenslios esto postos de lado, vazios e sem funo. O antigo rito
desgastara-se. Contudo, agora eles serviro para uma nova realidade. Jesus manda que
os serventes encham-nas de gua. Segundo Konings, a gua no simbolismo judaico
33
48
Jesus manifestou a sua glria e os seus discpulos creram nele: Todo sinal
em Joo est direcionado para a manifestao da glria de Deus no Filho. Ao mesmo
tempo que essa glria provoca a f, ela condio sine qua non para que a manifestao
se realize. Crer, em Joo, est profundamente associado aos verbos ver, entender e
conhecer (cf. Jn 1,37.51; 4,42; 6,40.45; 8,47; 10,3; 12,44; 14,8; 4,46).
36
49
sabido de todos, por meios dos sinpticos e Paulo39, que Jesus nasceu de uma mulher,
judia, de nome Maria, que habitava a regio de Nazar. Nossa pesquisa, seguindo
indcios j anteriormente expostos, perguntou sobre a fora simblica dessa
personagem, enquanto ela ocupa o lugar de personalidade corporativa. Cabe-nos,
agora, rapidamente recolher os resultados. Sendo assim, percebemos em nossa anlise
que a Me de Jesus aparece na narrativa como a Sio Messinica que, fiel Aliana
feita com o Senhor, permanece na esperana de seu cumprimento em plenitude.
Conforme exposto, o contexto narrativo das npcias em Can nos remete ao
captulo 19 do livro do xodo, a saber, a celebrao da Aliana entre YHWH e seu
povo. A Me de Jesus surge como smbolo do povo, o Israel fiel, esposa e Me de todos
os homens. O uso do substantivo Mulher relacionado Me de Jesus, tendo em conta
toda a ressonncia que esse termo encontra no AT, justifica nossa hiptese de leitura.
No interior de sua fidelidade, ela conduz a ateno e a obedincia para a obra de Deus a
ser realizada em seu enviado. J estando presente antes da chegada de Jesus, ela a
noiva no nomeada do relato que aguarda a plenitude da Aliana. Consumado o sinal,
ela acompanha Jesus e seus discpulos at o cumprimento definitivo das npcias na
Cruz, prefiguradas em Can.
Assim, concluiu-se o primeiro passo do trabalho que foi reservado para este
captulo. A anlise da segunda ocorrncia dessa personagem acontecer mais adiante.
Cabe-nos agora elucidar a segunda figura que compe o quadro da percope central
deste trabalho (Jo 19,25-27), a saber, o Discpulo a quem Jesus amava.
39
50
Traduo instrumental
23
24
24
25
25
26
26
II.
III.
IV.
Dois movimentos cnicos compem o captulo. No primeiro, o lavaps, encontra-se, em primeiro plano, Jesus e Pedro. Judas o coadjuvante da cena,
mencionado trs vezes no segundo plano. No segundo quadro, entra em cena o
Discpulo Amado ao lado de Pedro. Judas, agora possudo por Satans, torna-se o
centro dramtico do momento final.
41
Por opo metodolgica, escolhemos analisar apenas o recorte textual em que o Discpulo Amado
protagoniza a ao.
42
Cf. KONINGS. Evangelho segundo Joo, p. 255.
51
43
52
Traduo instrumental
5
kai. paraku,yaj ble,pei kei,mena ta. ovqo,nia( ouv
me,ntoi eivsh/lqen
53
54
pedra que fechava a porta do tmulo fora removida, ela corre ao encontro de Pedro e do
Discpulo Amado e relata o acontecido.
Eles correm para o sepulcro: Ambos correm para o sepulcro. Contudo, o
Discpulo Amado corre mais e chega na frente, olha para dentro do tmulo, v os panos
que envolviam o defunto, mas no entra. Joo realiza um intrigante movimento na
narrativa: a testemunha por excelncia cede a precedncia a Pedro. Ele entra e constata
o acontecido. A cena com a qual se depara no pode ser obra de ladres, pois tudo est
em ordem, nem de algum que tivesse roubado o corpo, pois o teriam levado com os
panos. Contudo, no caso de Lzaro, levantado do tmulo, saiu amarrado com suas
faixas, necessitando que outros as desatassem (cf. 11,44). Entretanto, no caso de Jesus
transparece a soberania daquele que tem poder de retomar a vida (cf. Jo 10,17-18).
Completando a constatao de Pedro, o Discpulo Amado entra. Segundo
prescreve a Lei (Nm 35,30; Dt 17,6), duas testemunhas atestam o fato. Contudo, a
atitude do Discpulo Amado difere em muito da de Pedro: o relato nos diz que ele viu e
creu. A Simo Pedro a precedncia, ao Discpulo Amado, a f49.
49
55
Texto grego
Traduo instrumental
52
56
2
2
Diz-lhes Simo Pedro: Eu parto pescar. Dizemlhe: Vamos tambm ns contigo. Saram *pois e
entraram no barco, e naquela noite prenderam
nada.
4
55
56
57
praia, sem conseguir identific-lo57. Jesus pergunta se eles tm algo para comer. Com a
resposta negativa, Jesus diz: Lanai a rede pelo lado direito e encontrareis peixes.
Assim fazendo, obedientes fala do Mestre, eles recolhem tantos peixes que no
conseguem nem trazer a rede para dentro do barco. O fato dessa pesca ser relatada em
Joo, aps os acontecimentos pascais, sugere um sentido mais profundo. Sobre isso, nos
diz Konings:
A pesca ps-pascal a chave para compreender o cap. 21: descreve
concretamente como se realiza no tempo da Igreja o que Jesus, na sua Hora,
instaurou. Lembram-se os principais nomes, a presena do Senhor no meio
da comunidade, a atrao de novos discpulos, a celebrao da refeio do
Senhor, os carismas de liderana e de testemunho.58
Traduo instrumental
20
20
21
21
22
22
23
23
24
24
57
O simbolismo aqui importante, quando ainda noite, o Senhor est ausente e a pesca no rende. Com
o alvorecer, ele se faz presente, e o trabalho dos pescadores tem rendimento abundante.
58
KONINGS, Evangelho segundo Joo, p. 369. Ver tambm, nesta mesma pgina de Konings, a possvel
aproximao entre este relato e Lc 5,1-11.
58
25
25
59
59
Cf. PARKER, P. John and John Mark. Journal of Biblical Literature 79, 1960, 97-110
60
3 O Crucificado
Dedicaremos esta seco de nosso trabalho definio de uma possvel
identidade para o Crucificado no interior do Quarto Evangelho. A pergunta que nortear
nossa pesquisa ser a mesma utilizada para as personagens anteriormente estudadas:
Para o autor do Evangelho de Joo, quem Jesus? Debruar-nos-emos sobre o prlogo
(1,1-18) e depois sobre as sete autoproclamaes de Jesus, identificadas pela
precedncia da expresso Eu sou. Nessas autoproclamaes, a identidade de Jesus vai
sendo, aos poucos, elucidada atravs de contedos simblicos.
Aps o estudo do prlogo, por uma opo metodolgica, tendo em vista no
alongar demais o trabalho, far-se- apenas uma breve coletnea das sete
autoproclamaes61, seguidas, cada uma, de uma breve anlise, sem se fixar por demais
na anlise das percopes inteiras. Ter-se- como base o estudo feito por Konings62.
Traduo instrumental
evn auvtw/| zwh. h=n( kai. h` zwh. h=n to. fw/j tw/n
avnqrw,pwn\
61
A saber: 6,35 Eu sou o po da vida; 8,12 Eu sou a luz do mundo; 10,7 Eu sou a porta;
10,10 Eu sou o bom pastor; 11,25: Eu sou a ressurreio e a vida; 14,6 Eu sou o caminho, a
verdade e a vida; 15,1 Eu sou a verdadeira videira.
62
Cf. KONINGS. Evangelho segundo Joo, p. 156-157
61
8
ouvk h=n evkei/noj to. fw/j( avllV i[na marturh,sh|
peri. tou/ fwto,j
10
10
11
11
12
12
13
13
14
14
15
15
16
16
17
17
18
63
3.2 As autoproclamaes:
A expresso Eu sou (em grego: evgw, eivmi) evoca a atmosfera da teofania.
Encontram-se suas razes no AT na passagem de Ex 3,14. Deus, YHWH, se identificou
a Moiss como aquele que tem o nome inefvel, diferentemente dos outros deuses.
Identificou-se como aquele que, com sua presena, acompanha seu povo. Essa
expresso, associada a Jesus, que desde o prlogo, como acima vimos, identificado
com a Palavra do Pai, nos remete presena de Deus, junto ao seu povo na figura de sua
Palavra feita carne, ou seja, Jesus Cristo.
Este estilo muito prprio do Jesus de Joo se revelar, difere do modo como
os sinpticos lidaram com a figura de Jesus. Nos outros evangelhos, Jesus se apresenta
como profeta ou como mestre popular, anunciando e denunciando, exortando ou
ensinando em parbolas. O Jesus de Joo, anunciado desde o prlogo como a Palavra de
Deus, se mostra soberano, se revelando a partir de smbolos que atribui a si, que sero
compreendidos por aquele que se encontra inserido no interior da tradio da qual bebe
a comunidade.
Por sete vezes em Joo, Jesus toma a palavra para se autoproclamar como a
realizao daquilo que os grandes smbolos do povo bblico e mesmo da humanidade
esperam:
Citao
Texto grego
Traduo instrumental
6,35
ei=pen
a;rtoj
ouv mh.
ouv mh.
64
8,12
10,7
10,11
11,25
14,6
15,1
Para que se compreenda essa maneira de falar, preciso ter em conta que o
Quarto Evangelho o evangelho pascal. O Jesus que Joo nos apresenta, um Jesus
pascal, ou seja, o Jesus da memria crist. Somente depois da Pscoa que os
discpulos compreenderam como Ele realmente , desde sempre (cf. Jo 2,22; 12,16).
Suas palavras e atos se enchem de sentido depois dos eventos pascais. Assim, as
autoproclamaes em Joo s podem ser entendidas luz do Mistrio Pascal. como se
o Ressuscitado as pronunciasse.
As autoproclamaes, portanto, no so atributos ou predicados de Jesus,
mas, nos revelam a profundidade do Mistrio do Filho, enquanto Ele aquele que
cumpre, plenifica a Aliana. Buscar-se-, de maneira rpida, perceber as ressonncias
dessas autoproclamaes no AT e, assim, elucidar um pouco mais seu sentido, enquanto
apontam para Jesus como cumpridor da promessa.
Eu sou o po da vida: Inserida no contexto da multiplicao dos pes, essa
autoproclamao ressoa a passagem de Ex 16,15ss, quando o povo no deserto recebeu o
manah dos cus. A partir do mal-entendido dos judeus, que buscavam o po material
para se fartar, Jesus opera uma importante mudana de sentido. Ele no o po que os
Pais receberam no deserto por intermdio de Moiss, mas ele o verdadeiro po que
vem dos cus, aquele que sacia toda a fome e toda a sede. Tendo em mente textos como
Is 55,1-3, Pr 9,5 e Sr 15,3 e 24,21 , po (e bebida) simbolizam o ensinamento e a
sabedoria de Deus. O po que vem dos cus em Jesus o ensinamento,
autocomunicao, de Deus que ele nos d a conhecer.
65
66
67
Sobre este smbolo, a luz, ver KONINGS. Evangelho segundo Joo, p. 182
Cf. KONINGS, Evangelho segundo Joo, p. 255
66
*
A partir do estudo realizado, percebe-se que Joo nos apresenta Jesus como
aquele em quem se realiza a plenitude da Aliana. Essa Aliana traada entre Deus e
Israel, s pode ser levada plenitude pelo prprio Deus ou por algum que tenha
autoridade para agir em nome de Deus. Nesse sentido, o prlogo nos introduz no
interior do Mistrio de Jesus como Palavra de Deus. Como vimos acima, enquanto
Palavra de Deus, ele o lugar onde o Senhor atua se comunicando. Quando age a
Palavra, Deus que age nela. Portanto, ele tem autoridade para falar do Pai e pelo Pai.
As sete autoproclamaes completam esse quadro. Alm de marcar o
ministrio terreno de Jesus, referidas ao Antigo Testamento, expressam grandes
momentos do agir de Deus na economia da Aliana. Ao utilizar, em referncia a Jesus, o
vocativo Eu sou, nome dado a si por Deus quando perguntado por Moiss (Ex 3,14),
o autor do evangelho evoca a figura do prprio Deus presente em Jesus. Sendo assim,
pode-se concluir que Joo nos apresenta a figura de Jesus em total referncia Histria
da Aliana. Mais do que isso, ele surge como aquele em quem se cumprem as
promessas feitas por Deus, pois ele, que a Palavra, age por Deus. Onde age o Filho,
Jesus, o prprio Pai que age cumprindo e plenificando a Aliana feita.
68
69
Sobre os termos caminho, verdade e vida, ver KONINGS, Evangelho segundo Joo, p. 310-311
Sobre este assunto, ver KONINGS, Evangelho segundo Joo, p. 324-325
67
68
69
princpio dos sinais, h uma meno hora (2,4). So esses acontecimentos que se
configuram como chave de leitura para a interpretao dos fatos e da atividade de Jesus.
Jo 12,23 e 17,1 indicam o incio da hora e seu contedo, a glorificao do Filho
na morte de cruz (cf. 12,24). A morte manifestar a profundidade do amor-fiel de Deus
em Jesus. A hora manifesta toda a fecundidade do amor. A negatividade do momento se
perde na grandiosidade da manifestao do amor-fiel. Como vimos no captulo II deste
trabalho, Can j figurava como sinal dessa glorificao. Agora a hora da
manifestao do vinho novo do amor de Deus na doao de vida do Filho. Sem perder a
perspectiva da Aliana, a entrega total do Filho aperfeioa, plenifica, a Aliana de Deus.
A atividade de Jesus no era s promessa de salvao, mas salvao em ato, que
receberia o seu termo e sua eficcia definitiva em sua hora, quando desse o Esprito
na cruz (19,30)2.
Traduo instrumental
25
25
26
26
27
27
70
(Clopas seria o nome do pai de Maria) e Maria Madalena. Dessa forma, essas duas
mulheres significariam a Antiga e a Nova Aliana.
H no textos quatro designaes de personagens femininos: sua me e a irm
de sua me, Maria a de Clofas e Maria Madalena (...) A possibilidade de
quatro mulheres fica descartada por faltar a partcula kai entre a segunda e a
terceira denominao (cf. 21,2). Pode, pois, tratar-se de trs mulheres: a me,
sua irm, chamada Maria a de Clofas, e uma terceira, Maria Madalena, ou
ainda, de dua mulheres, a me e sua irm, que se chamavam,
respectivamente, Maria de Clofas e Maria Madalena.
Para resolver o problema h que se ter presente que, dada a orientao
teolgica de sua obra, quando Joo nomeia um personagem porque o atribui
um papel significativo (...).
Opta-se, pois, pela meno de duas mulheres, indicadas primeiro por
vnculos de parentesco (me, sua irm) e, na continuao, identificadas por
seus nomes. Ficaria confirmada esta opo pelo claro significado das
mulheres na cena. Clofas seria o nome do pai de Maria. Note-se que no
vlida a objeo de que duas irms tenham o mesmo nome, pois a me de
Jesus unicamente chamada Maria nos outros evangelhos; sua irm teria em
todo caso o mesmo nome, uma vez que fosse Maria de Clofas, na hiptese
de trs mulheres, ou Maria Madalena, na hiptese de duas. E mais, pode
dizer-se que neste evangelho o nome Maria prprio das mulheres que
representam uma figura de esposa fiel: a me de Jesus, a da antiga Aliana
(2,1-5); Maria de Betnia (12,3) antecipa a figura de Maria Madalena; Maria
Madalena a esposa fil da Nova Aliana (20,1.11-18). 3
71
72
Sobre o verbo ver nos relatos da ressurreio, remetemos o leitor ao estudo feito por MANNS.
LEvangile de Jean a la lumire du Judasme, p. 431-448.
9
Segundo Lon-Dufour, seria caso semelhante a Tb 7,12 (LXX) e remontaria a Ambrsio e sustentada
por poucos como E. Stauffer e, com reticncia, C. K. Barret. Apud: LON-DUFOUR. Leitura do
Evangelho de Joo, IV, p. 101, nota 42.
10
Cf. KONINGS. Evangelho segundo Joo, p. 341.
11
LON-DUFOUR. Leitura do Evangelho de Joo, IV, p.101
73
12
VOIGT, S. O Discpulo Amado recebe a Me de Jesus eis ta ida: velada apologia de Joo em 19,2527. Petrpolis: Revista Eclesistica Brasileira, n.35, v.4, 1975. p. 770-823.
74
simplesmente que o discpulo a acolheu (em grego e;laben auvth,n, cf. Jo 1,12; 5,43;
6,21...), ou que ele a recebeu eivj to.n oi=kon auvtou/ (cf. 7,53), ou ainda, eivj oivki,an (cf.
2Jo 1,10). Pelo contrrio, escolheu uma expresso menos difana e certamente de
sentido mais complexo e ambguo. Talvez seja por essa falta de clareza da expresso
que tradutores eventualmente tomam suas precaues. Como, por exemplo, o caso da
Vulgata que, ao invs de utilizar a expresso in domum suam, prefere utilizar a
expresso mais cautelosa in sua. A traduo da Bblia feita pela CNBB prefere, de
maneira tambm cautelosa, traduzir como aquilo que era seu. Tais verses mantm a
possibilidade de compreenso material da expresso, para sua casa e seus bens, como
tambm do abertura para outros sentidos, como buscamos nesta seco do trabalho.
Voigt, em seu estudo, abre a leitura para a possibilidade de trs tipos de
interpretao da expresso ta. i;dia. Ele chama um de sentido esttico; outro de
dinmico; e um terceiro, mais englobante, ele denomina de pregnante:
Com efeito, no se foge impresso de que o Quarto Evangelho tem algum
motivo para de propsito empregar esta expresso de significado complexo e
de que a razo disto pode estar naquela sua caracterstica viso de
globalidade que tambm se poderia chamar de jogo de ambigidade ou duplo
sentido. Pois, se j em seu sentido esttico ta. i;dia possui um significa
complexo, uma ainda maior margem de ambigidade (que prefiro neste caso
chamar riqueza de pregnncia) lhe advm de sua acrescida possibilidade de
ter tambm um sentido dinmico.13
Esse sentido dinmico ou ativo, que Voigt v em ta. i;dia, aponta para a
possibilidade de essa expresso ter o sentido de interesse-afazeres. Acredita-se que Jo
1,11 esteja mais prximo desse sentido. Contudo, essencial notar que a referida
expresso pode, de modo especial, congregar todos os sentidos, esttico e dinmico,
fazendo com que sejam pensados mutuamente, resultando em um sentido englobado,
ou, como prefere Voigt, pregnante.
A fora de pregnncia dessa expresso est no fato de ela representar a
substantivao de um no-precisado neutro plural:
O fato de ta. i;dia representar a substantivao dum no-precisado neutro
plural de certo modo explica a sua pregnncia, ou seja, a sua capacidade de
abrigar toda uma gama simultnea de conotaes ou significados diversos
que no se excluem mas eventualmente se somam e completam e
interpenetram.14
13
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75
76
casas ou trabalhos, mas tambm para aquilo que inerente sua identidade naquele
momento (a fraqueza da f). J o Discpulo Amado, testemunha fiel, continua ao lado
do Mestre at o fim, pois a ele foi confiado compreender tudo.
1.2.3 A acolhida:
O primeiro sentido e mais evidente desta acolhida, aquele que chamamos
mais acima de esttico. O gesto do discpulo pode ser compreendido de vrias maneiras,
desde o sentido concreto de acolher em sua casa, at acolher o dom celestial que a
proteo maternal de Maria16. Contudo, podemos perceber um sentido mais profundo,
para alm do mero nvel do texto, onde se pretende reconhecer todo o simbolismo que
foi explicitado durante este estudo e, sobretudo, o dado que exprime um cuidado
assumido de modo permanente.
Diante do definitivo instaurado pela entrega do Filho, o papel do discpulo
no qual est depositado o Evangelho no tem mais limite de durao. A relao
estabelecida aos ps do Crucificado definitiva. O neutro plural ta. i;dia, como antes
vimos, pode indicar globalmente o que algum possui, mas tambm o que de mais
profundo o constitui (cf. 8,44). No caso do Discpulo Amado, bem como em relao
Me de Jesus, nossa anlise at aqui nos leva a transcender o dado meramente
material\concreto, para acreditar que se trata daquilo que constitui a prpria identidade
dessas figuras.
Assim, este recebimento da Me pelo Discpulo Amado eij ta. i;dia parece
significar uma acolhida mtua, porm desigual. Aos ps daquele que o Filho de Deus,
em quem se cumprem as promessas, o Discpulo Amado, filho gerado na f, reconhece
que seu passado, que a f que recebeu, a mesma f de Israel. A comunidade crist, que
reconhece no Discpulo a testemunha fiel, v em Israel sua Me. A histria de Israel
tambm a histria da comunidade crist. No h uma nova histria da Aliana, mas sim,
a plenitude dessa Aliana no Filho. por meio de Israel que essa nova comunidade se
v inserida na grande histria de amor que a Aliana. Sem Israel, a comunidade crist,
representada pelo Discpulo Amado, perderia seu passado salvfico. Contudo a Me de
Jesus, Israel, ao acolher o Discpulo Amado como seu Filho, reconhece nessa
comunidade seu futuro. Ela, que havia gerado o Messias, dever reconhecer que a
16
77
78
Assim, esta parte final do trabalho ser dedicada a perceber o futuro desse
Discpulo como continuador do Filho. Focaremos, principalmente, nas passagens em
que o termo hora aplicado diretamente ao grupo discipular, para perceber como o
destino dos discpulos, para Joo, est intrinsecamente ligado ao destino do Filho. A
essas passagens acrescentaremos a afirmao da permanncia do Discpulo at que o
Senhor venha, tema anteriormente estudado. Outra figura do universo joanino que far
parte da seco que se segue o Parclito. Percebe-se que, a partir de sua funo
explicitada por Joo, garantia e ao do Ressuscitado no seio da comunidade.
79
Traduo instrumental
4
evgei,retai evk tou/ dei,pnou kai. ti,qhsin ta. i`ma,tia
kai. labw.n le,ntion die,zwsen e`auto,n\
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Tendo tomado
(porm) noite.
*pois
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Encerrando sua orao ao Pai no captulo 17, Jesus resume o fruto de sua
misso, a comunicao do Amor do Pai para com a humanidade, na permanncia desse
amor nos discpulos. A Glorificao do Filho, ponto pice de sua misso, tem como
finalidade que o amor com que o Pai ama o Filho, permanea nos discpulos. Os
discpulos so tornados filhos no Filho, ou seja, pela ao da Palavra no mundo, ao
que a manifestao do amor de Deus, vem a capacidade de participar deste amor que
fundamento da filiao.
Traduo instrumental
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pe,myanto,j me patro,j
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Traduo instrumental
85
5
5
eva.n mh, tij me,nh| evn evmoi,( evblh,qh e;xw w`j to.
klh/ma kai. evxhra,nqh kai. suna,gousin auvta. kai. eivj
to. pu/r ba,llousin kai. kai,etai
7
7
eva.n mei,nhte evn evmoi. kai. ta. r`h,mata, mou evn u`mi/n
mei,nh|( o] eva.n qe,lhte aivth,sasqe( kai. genh,setai
u`mi/n
8
10
Se
meus
mandamentos
guardardes,
permanecereis no meu amor, assim como eu os
mandamentos de meu Pai guardei e permaneo em
seu amor.
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evgnw,risa u`mi/n
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25
avllV i[na plhrwqh/| o` lo,goj o` evn tw/| no,mw|
auvtw/n gegramme,noj o[ti evmi,shsa,n me dwrea,n
26
26
{Otan e;lqh| o` para,klhtoj o]n evgw. pe,myw u`mi/n
para. tou/ patro,j( to. pneu/ma th/j avlhqei,aj o] para.
tou/ patro.j evkporeu,etai( evkei/noj marturh,sei peri.
evmou/\
27
27
parbola no estilo das parbolas sinpticas18. Jesus mesmo quem explica essa
alegoria: ele o tronco; os ramos so os discpulos; e o Pai o agricultor que espera
frutos da vinha. A videira, no Antigo Testamento, fora tomada pelos profetas como
imagem do povo de Israel. Natanael, o primeiro discpulo, em 1,46-49 chamado, como
anteriormente vimos, de verdadeiro israelita. Konings chega a perguntar: Quem sabe
ser a verdadeira videira o verdadeiro Israel, incorporado na pessoa de Jesus o Jesus
pascal, eclesial, presente em sua comunidade?19. Pelo que se viu at o presente
momento, j tendo analisado a entrega de Israel ao Discpulo Amado, pode-se perceber
que sim e, mais do que isso, dizer que o verdadeiro Israel, a Sio messinica, nasce ao
p da cruz naquela entrega.
Essa alegoria expressa muito bem o tipo de unidade existente do Pai com o
Filho e, pelo Filho com os discpulos. Uma unidade que encontra seu fundamento no
amor-fidelidade. Por sete vezes, durante a narrativa da alegoria (mais precisamente
entre os vv. 4-8), e por quatro vezes, durante a explicao (vv. 9-17), Joo utiliza o
verbo permanecer para indicar essa unidade. Ligados a Jesus pelos laos do amor, os
discpulos so chamados a frutificar em amor fraterno. Amor este que nasce do cuidado
de Deus para com eles por meio do Filho. Desligados desse amor, ou seja, aqueles que
no creem em Jesus e no amam seus irmos so galho j morto que ser arrancado e
jogado fora.
Deus permanece (mora) nos discpulos, por meio do Filho, como presena
salvfica20. E, na medida em que o discpulo abre sua vida para essa inabitao amorosa,
tambm eles permanecem nele. Sobre esse tema, Konings nos diz:
Ora, se permanecermos em comunho com Jesus e suas palavras
permanecerem em ns, receberemos tudo o que em seu nome convm pedir.
Joo usa de modo surpreendente o termo permanecer equivalente a
morar para expressar a presena das palavras de Jesus em nossa vida [...]
Isso, porque suas palavras so equivalentes sua pessoa. Se queremos saber
se Cristo est em ns, cabe verificar se suas palavras desempenham papel
efetivo (e afetivo) em nossa vida.21
88
bem outra coisa. O mandamento se firma sobre o Deus revelado em Jesus. Esse amor
dom, gratuidade vinda de Deus. Deus quem gratuitamente vem em direo
humanidade e com ela estabelece Aliana. O Deus-Amor se manifesta de maneira plena
em sua Palavra. Jesus no nos manda amar a Deus, mas sim, aos irmos. Esse amor
pede carne, quer se expandir. Ele fundamenta e impele o discpulo na direo do
prximo enquanto pede comunicao e partilha. Somente quando esse amor se torna
realidade como dom gratuito ao irmo, ele pode levar a Deus. amor que pede amor.
nesse sentido que deve ser entendido este binmio amor-mandamento.
intrnseco ao amor se comunicar e se expandir. O mandamento no aparece, ento, com
o peso de uma exigncia a ser cumprida, mas como norma intrnseca ao prprio amor
gratuito de Deus. Como ele amou a humanidade em Jesus, tambm os discpulos devem
amar. Como antes dissemos, a concretizao desse amor na doao de vida ao
prximo que o valida.
Texto grego
Traduo instrumental
5
kai. nu/n do,xaso,n me su,( pa,ter( para. seautw/| th/|
do,xh| h-| ei=con pro. tou/ to.n ko,smon ei=nai para. soi,
89
kai. ta. evma. pa,nta sa, evstin kai. ta. sa. evma,( kai.
dedo,xasmai evn auvtoi/j
11
kai. ouvke,ti eivmi. evn tw/| ko,smw|( kai. auvtoi. evn tw/|
ko,smw| eivsi,n( kavgw. pro.j se. e;rcomai pa,ter a[gie(
th,rhson auvtou.j evn tw/| ovno,mati, sou w-| de,dwka,j
moi( i[na w=sin e]n kaqw.j h`mei/j
12
10
11
12
13
13
nu/n de. pro.j se. e;rcomai kai. tau/ta lalw/ evn tw/|
ko,smw| i[na e;cwsin th.n cara.n th.n evmh.n
peplhrwme,nhn evn e`autoi/j
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26
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91
Seguindo essa mesma percepo, Lon-Dufour afirma que tem mais um tom
de louvor que de pedido ou intercesso:
[...]o Filho nico celebra o Pai, cujo amor o preencheu desde antes da criao
do mundo e se estende a toda criatura. O Filho retorna agora ao Pai, mas no
sozinho; embora os fiis, presentes e vindouros, sem dvida permaneam e
devam permanecer no mundo, eles j no pertencem ao mundo. Se Jesus,
pronunciando em voz alta a sua prece, vive diante dos discpulos a sua
prpria intimidade com o Pai, isso ocorre porque essa intimidade no tardar
a ser compartilhada com estes ltimos.27
17,6-19
Prefcio
No prefcio, Jesus pede pela concluso de sua misso: a manifestao da
Glria do Pai nele. Pede que o dom da vida definitiva se realize nos seus, ou seja, que
sua morte comunique ao mundo, e aos discpulos em particular, seu amor e o amor do
27
92
Pai pela comunicao do Esprito aos que creem. Ambos, o Pai e o Filho, esto na
mesma glria, a saber, a do Pai comunicada eternamente no Filho (1,14). Jesus pede,
ento, que essa glria brilhe em todo o seu esplendor na doao de vida que j se realiza
(10,18). A Glria de um amor sem limite que capaz de vencer todo o dio (15,18-25).
Ao pedir que seja manifesta a Glria do Pai no Filho, nessa introduo,
Jesus expressa todo o carter dinmico da comunicao desta Glria-Amor. No se trata
de um bem transmitido de uma vez para sempre, mas a comunicao incessante,
ininterrupta, como expresso da ligao de amor entre o Pai e o Filho. dessa forma
que se realizar a comunicao da Glria de Deus no discpulo pelo Filho. Essa ligao
ininterrupta uma vez que a manifestao no discpulo depende de sua referncia ao
Filho, na unidade de amor formada. por meio do Filho que a vida eterna comunicada
de maneira incessante aos discpulos e ao mundo (17,2). Pois no Filho, pelo Esprito,
que a Glria de Deus, a vida eterna, comunicada ao mundo (17,3).
O corpo da orao
O corpo da orao (17,6-23), como anteriormente vimos, se divide em duas
partes temticas. A primeira (17,6-19) diz respeito aos discpulos presentes junto a Jesus
naquele momento. J a segunda parte (17,20-23) uma prece aos discpulos futuros,
transcendendo o tempo, abarcando a todos aqueles que viro a fazer parte da
comunidade dos discpulos.
31
Quanto a estas presses imediatas no contexto da comunidade, mais frente as analisaremos quando
nos ocuparmos da Hora do Discpulo.
93
Glorificado pelo Pai. Alegria esta que no exclui a cruz, mas que a integra como lugar e
sinal da doao amorosa de vida. Assim, essa alegria do discpulo se d no interior da
prpria alegria do Mestre; uma alegria que doao e comunho de vida,
principalmente, como na vida de Jesus, segue na direo dos irmos que mais sofrem.
Nessa mesma linha, percebe-se que a cruz tambm sinal de todo o
processo que levou morte de Jesus. Ele manifestou aos homens o verdadeiro rosto do
Deus invisvel (cf. 1,18). Porm, o mundo32 no o aceitou, e, assim como negou ao
Filho, negar tambm aqueles que esto em Jesus e negaro o domnio do mundo.
Contudo, no interior desta prece, Jesus no pede que Deus retire do mundo os seus
discpulos (mundo aqui visto como destinatrio da salvao), pois esse o lugar onde se
dar o testemunho. Pede apenas que os guarde do Maligno que domina o mundo (cf.
17,15). O problema no est na realidade criada, mundo, mas em quem o domina33.
Jesus pede ao Pai que os discpulos sejam consagrados na verdade (cf.
17,17). A verdade a manifestao de Deus, de seu amor e fidelidade, em sua palavra,
que vem por meio de Jesus34. por meio dessa verdade, ou seja, da misso assumida
por ele e continuada no testemunho daqueles que esto com ele que essa consagrao
acontece. Consagrar35 significa fazer pertencer a Deus, o nico santo de Israel (cf.
sentido em 2Rs, 19,22). Isso implica em certa separao, no caso de Joo, separao da
realidade que no aceita a salvao. Jesus aplica a si mesmo essa afirmao (cf. 10,36).
Israel se compreende como povo eleito, dedicado santidade de Deus (cf. Lv 19,1)36.
Os discpulos, assim, passam a participar, por meio dessa consagrao no Enviado de
Deus, dessa realidade sacramental onde Deus, em sua graa, se faz presente ao mundo.
O sentido da glorificao do Filho est intrinsicamente ligado consagrao
dos discpulos (cf. 17,19). O termo por eles, nos remete a outras expresses do dom
da vida pelos outros: 6,51 (pela vida do mundo), 15,13 (pelos amigos), 10,11
(pelas ovelhas), 11,51 (pela nao). Jesus se torna oblao dedicada verdade e
32
O vocbulo mundo pode ter em Joo dois sentidos, um positivo e outro negativo. O sentido positivo
se revela enquanto realidade que destinatria da salvao. O sentido negativo diz respeito ao mundo
enquanto realidade que recusa a salvao. No primeiro sentido, o lugar de Jesus e dos seus
naturalmente no mundo, ao qual eles devem apresentar a salvao, tirando o pecado do mundo (1,29;
20,19-23). No segundo sentido, eles no podem pertencer ao mundo, no podem estar em seu poder, serlhe submissos. (KONINGS. Evangelho segundo Joo, p. 310).
33
Cf. KONINGS. Evangelho segundo Joo, p. 309.
34
KONINGS. Evangelho segundo Joo, p. 310.
35
Sinnimo: santificar.
36
Cf. KONINGS. Evangelho segundo Joo, p. 311.
94
fidelidade de Deus. por meio dessa oblao que os discpulos participam da verdade,
que Deus se manifestando em seu Amor37.
Sua morte far possvel a consagrao dos discpulos, pois ela lhes far ver
qual o mximo do amor (13,1) e por ela recebero o Esprito. Ficaro assim
consagrados, isto , capacitados para percorrer ao caminho at o Pai (14,6),
com e como Jesus, at chegar resposta total.38
95
vezes s no v. 23. A orao do captulo 17, que comeara como um pedido de glria,
termina no v.26b pedindo o amor42. Nisso podemos ver resumido todo o movimento da
Glria no Evangelho de Joo. No se trata da glria deste mundo, com seus reis e
governantes, mas da glria que vem do amor-fidelidade (cf. 1,14). Amor levado s
ltimas consequncias da fidelidade: a cruz. esse amor que gera a unidade dos
discpulos, pois esses, na f e no Esprito, participam da mesma realidade do Pai e do
Filho.
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e mais hostis a Jesus (cf. 4,1-3; 7,32.47s; 8,13; 11,46), que poderiam fazer expulsar os
discpulos caso se pronunciassem em favor Dele.
A perseguio religiosa poderia fazer os discpulos se afastarem de Jesus e
de seu grupo. muito compreensvel esse fato se partimos da compreenso de que Jesus
perseguido pelos representantes mais devotos da religio da poca. Os discpulos do
primeiro momento veem-se perseguidos a partir de dentro da instituio que doava
sentido s suas existncias religiosas. E Jesus alerta: no apenas os perseguiro, mas os
entregaro morte em nome do Deus da religio.
Como em todo o Adeus de Jesus, em Joo, h certa antecipao de tempo.
Jesus fala de uma realidade que as comunidades dos primeiros decnios e sculos ainda
vivero. O Jesus que dirige seu discurso de despedida, como j foi visto no tpico
acima, aquele que j participa da glria do Pai. Por isso, alguns especialistas tendem a
ligar a expulso da sinagoga com os eventos posteriores ressurreio como, por
exemplo, o Snodo fariseu de Jmnia.
Para os leitores de Joo, esse acontecimento est bem prximo
temporalmente. Em 68 d.C., quando da Guerra Judaica, os fariseus, com a anuncia do
poder romano, saram de Jerusalm para se refugiar em Jmnia/Javn, cidade situada a
uns 50 km de Jerusalm. Depois da destruio do Templo (no ano 70) e do fim da
guerra, os rabinos, em sua maioria de linha farisaica, comearam a reestruturar a
comunidade judaica. J sem a referncia do Templo, a base religiosa configurar-se- ao
redor da Sinagoga. O movimento de reestruturao em Jmnia tomou a deciso de
expulsar os cristos da nova configurao das comunidades judaicas, portanto, expulslos das sinagogas e, consequentemente, da religio. A consequncia teolgica ser,
logicamente, a expulso da Aliana.
Jmnia introduzir nas liturgias cotidianas a birkat ha-minin46, uma
maldio dos hereges (minin). A razo dessa animosidade pode ser diversa. Os cristos
proclamavam Jesus como o Messias, fato que os judeus nacionalistas no podiam
aceitar, principalmente depois da queda do Templo, o que configura uma situao bem
distante das esperanas que carregavam com relao ao Messias. Outra razo vem do
fato de os cristos atriburem carter e dignidade divina misso e pessoa de Jesus, o
que era considerado pelos fariseus blasfmia (cf. Jo 5,18). Uma terceira razo nasce do
46
Que no haja esperana para os apstatas... que os nazareus e os minim peream num instante. Sejam
apagados do livro dos vivos e no sejam inscritos entre os justos (SCARDELAI, Donizete. Mateus e os
Judeus. http://www.sion.org.br/artigos/mateus_judaismo.pdf, em 15 de agosto de 2009).
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confronta com a realidade da perseguio que resultar em sua morte na cruz. Eles
ainda no haviam recebido o Esprito da verdade.
A fala de Jesus evoca a imagem da disperso do rebanho. Afugentados pelo
lobo das perseguies, os discpulos fogem, deixando Jesus aparentemente sozinho.
Diante da catstrofe da morte do Mestre, cada discpulo segue para o seu lado. Na figura
da disperso, que nos remete aos sinpticos e ao Antigo Testamento (Mc 14,27 e par.,
cf. Zc 13,7), Jesus indica que a f dos discpulos ainda frgil. Contudo, mesmo diante
da disperso dos seus, Jesus no se v s: o Pai est com ele. A glria de Jesus junto do
Pai no depende do nmero de discpulos ao p da cruz. Embora a inconstncia dos
discpulos, a certeza de sua vitria permanece. Jesus termina retomando os grandes
temas do adeus (14,27-31), confortando os discpulos: o que foi dito para que eles
tenham paz, pois no mundo encontraram a perseguio, mas ele venceu o mundo em sua
glria.
2.4. O Parclito
Estudaremos agora a figura do Parclito. Aps os acontecimentos
pascais, o Esprito ser aquele que continuar a presena do Ressuscitado no meio da
comunidade. Centrar-nos-emos nas cinco passagens que mencionam a figura do Esprito
no evangelho de Joo (14,16-17; 14,26; 15,26-27; 16,7-11; 16,12-15). Iremos, de
maneira gradual, como o faz o texto, expor a funo do Parclito em Joo. Antes,
preciso fazer um breve caminho sobre a compreenso que Joo tem do Esprito ao longo
do evangelho.
Konings nos esclarece que no Evangelho de Joo, o Esprito, alm das
caractersticas comuns da Bblia (sopro, dinamismo de Deus que inspira os profetas,
concede poderes milagrosos etc), assume algumas caractersticas prprias. Como
realidade permanente, ele permanece em Jesus (1,33) e nos discpulos (14,17). O
termo Parclito significa auxlio, apoio, confortador, ou, no campo judicial, fiador,
defensor, advogado49.
Lon-Dufour aprofunda o estudo sobre a etimologia desse termo. Explica
que, no Novo Testamento, ele aparecer apenas nos discursos de despedida de Jesus e
uma vez apenas em 1Jo 2,1 (em que qualifica Jesus como intercessor celeste). Foi
comumente traduzido, por uma etimologia errnea, como Consolador. Aponta para o
49
100
fato de o termo vir do particpio passivo do verbo grego parakale,w que, literalmente,
significa chamado para junto de algum, em latim, advocatus50.
Em Joo, a primeira meno do Esprito surge no testemunho de Joo
Batista. Em 1,32-33, ele v o Esprito descer e permanecer sobre Jesus: Eu vi o
Esprito descer do cu como pomba, e repousar sobre ele. E eu no o conhecia, mas o
que me mandou a batizar com gua, esse me disse: Sobre aquele que vires descer o
Esprito, e sobre ele repousar, esse o que batiza com o Esprito Santo. Porque o
Esprito permanece sobre ele, Jesus aquele que pode verdadeiramente batizar com o
Esprito. Sendo assim, ele pode comunicar o Esprito a quem cr51.
O Esprito ainda ocupa lugar importante nas conversas de Jesus com os
candidatos f. Na conversa com Nicodemos (Jo 3), Jesus explica que o discpulo
dever nascer de novo, ou seja, para a nova vida instaurada em Jesus. No caso concreto
de Nicodemos, ele dever romper com o grupo dos judeus, perseguidores, para se
colocar do lado dos perseguidos, correndo os riscos dessa opo. Para a Samaritana,
Jesus aponta para o dom da gua viva. Ela ainda no compreende a realidade do
Mistrio daquele que se coloca sua frente. Contudo, mais adiante no evangelho, Jesus
diz: Se algum tem sede, venha a mim, e beba. Quem cr em mim, como diz a
Escritura, rios de gua viva correro do seu ventre. E isto disse ele do Esprito que
haviam de receber os que nele cressem; porque o Esprito Santo ainda no fora dado,
por ainda Jesus no ter sido glorificado.(Jo 7,37-39). O Esprito, derramado na cruz,
lugar da manifestao plena do amor, quem comunicar a vida aos discpulos. Do lado
aberto do Senhor correm o dom da vida e do Esprito (19,34).
Aps a sua glorificao na cruz, o Ressuscitado, chamado por Joo Batista
de o cordeiro que tira o pecado do mundo(1,29.36), comunica o Esprito
comunidade para que, na sua ausncia, eles continuem sua misso (20,22-23)52.
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estiver em sua existncia terrena, seu lugar ocupado pelo Parclito. Trata-se de uma
mediao futura, de acordo com sua nova posio na Glria do Pai53.
A caracterstica do Parclito expressa nessa passagem a de permanecer
junto comunidade para sempre. O Esprito adjetivado como sendo o outro, em
funo do mediador por excelncia que Jesus. Em sua funo de estar com ele foi
precedido por Jesus. Depois de partir para o Pai, a promessa estarei contigo, que
perspassa toda a tradio bblica, se realiza graas ao Parclito em que Jesus, ao mesmo
tempo, aproxima e distingue de si. Jesus d a entender, em 14,16, que ele mesmo foi o
apoio da comunidade durante o tempo de sua vida terrestre. Aps a partida de Jesus para
o Pai, quem permanecer junto comunidade o Intercessor. Este outro Parclito
ser o defensor da comunidade no processo contra o mundo.
O Esprito aqui designado como da verdade. Joo usa essa construo
prpria para designar o Esprito de Deus. Lida esta expresso luz da proclamao: Eu
sou o caminho a verdade e a vida; o Esprito ento qualificado como o Esprito de
Jesus-verdade e remete, no s revelao que a verdade traz, mas tambm separao
realizada entre os homens segundo sua opo (cf. 9,39): entre aqueles que aceitam a
verdade e aqueles que a rejeitam54. Ele Esprito da Verdade num sentido positivo, pois
nos faz ver a verdade da nossa existncia, mas tambm em num sentido negativo na
medida em que tambm se ope fora da mentira e das trevas que tenta dominar o
mundo55.
Em 14,26, o Esprito, enviado pelo Pai em nome de Jesus, tem a funo de
ensinar e lembrar. Ele a memria viva do Ressuscitado. No se trata de mera
recordao morta. ele que nos recapitula Cristo e nos faz habitao do Pai e do Filho
na medida em que guardamos a sua palavra, o seu mandamento. Aqui j se realizam, em
ns e entre ns, seus discpulos, as moradas que Jesus nos prepara (14,3)56.
2.4.2 O Parclito: a testemunha diante no processo contra o mundo (15,2627; 16,7-11; 16,12-15)
No captulo 15 de Joo, comea a se instaurar um litgio entre a comunidade
discipular e o mundo. O mundo, enquanto realidade que no aceita a verdade do
Enviado de Deus, odeia aqueles que esto com ele (15,18.25). Joo retoma nesse
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contexto o tema do Parclito. Como promessa de Jesus, ele ser auxlio e testemunha do
Glorificado. interessante perceber que aqui Jesus quem envia o Parclito, diferente
de 14,17, quando o prprio Pai quem enviaria o Parclito a pedido de Jesus. Contudo,
para Joo, o Pai e o Filho trabalham juntos, em unidade, como vimos no captulo 17.
Torna-se necessrio compreender bem esse movimento. Quando se parte do Jesus
humano, percebe- se que o Esprito no desaparece com a morte de Jesus, mas o Pai
continua a envi-lo para que permanea nos fiis. Quando partimos do Jesus Glorioso,
enaltecido, o Esprito enviado para continuar a obra do Cristo no mundo, atravs de
sua presena nos discpulos. Joo insiste no fato de que, assim como Jesus, o Filho,
recebeu sua mensagem do Pai, assim o Esprito recebe de Jesus aquilo que ele ensinou
para transmiti-lo aos discpulos (16,13-15).
Neste litgio que est sendo montado, os discpulos daro testemunha do
Cristo, pois estiveram com ele desde o princpio (15,27), condio para o testemunho
apostlico (cf. At 1,21-22). Lendo essa passagem, a partir do contexto dos anos 90, o
verbo testemunhar ganha em sentido. Joo utiliza o grego marture,w para designar
esse testemunho. Nos tempos da comunidade joanina, o testemunho de sangue j uma
realidade57. Nesse contexto, a palavra do Mestre conforta: no vos escandalizeis.
Estar com eles um auxiliador.
Em 15,27, a exigncia para a vinda do outro Parclito o retorno de Jesus
ao Pai. As dificuldades e perseguies comearo a surgir com fora para a comunidade
aps o enaltecimento do Filho. Toda a perseguio que a comunidade sofre
encontrar sua chave de leitura na cruz do Cristo. Essa chave de leitura entregue na
despedida. Ela vem comunidade com o Esprito da Verdade entregue j no Calvrio
(cf. 19,28). O que no foi dito desde o incio, e que no presente da comunidade
receptora acontece, encontra seu sentido na partida.
Outro sentido para essa exigncia est no fato de que quando Jesus estava
com eles na terra, era o porta-voz dos seus; agora, depois de sua partida, o testemunho
vir pela boca dos discpulos atravs da fora do Esprito. o Esprito quem
testemunhar o Cristo nos discpulos.
Esse testemunho no Esprito provocar uma mudana no interior da
contenda: de defensor dos discpulos, o Esprito atuante na vida dos discpulos passa a
acusador do mundo. Ele inverter as posies no jogo mostrando a verdade. Enquanto
57
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Ao final desta pesquisa, fica ento clara a figura deste que permanecer:
testemunha fiel de tudo aquilo que havia presenciado e vivido com o Senhor, ele
continua a ao do Filho no mundo. A comunidade, seguidora e testemunha do Cristo,
segue na atualizao desse testemunho atravs dos tempos. A cada momento histrico,
permeado por suas perseguies e cruzes, a comunidade continua a anunciar o amor de
Deus que a fundamenta e na qual vive. Tudo isso acontece no Esprito e por obra dele.
Nessa pedagogia pneumatolgica, a verdade de Deus, revelada em sua Palavra, vai se
tornando sempre palavra nova para a humanidade em cada homem e mulher que assume
a Verdade do Amor de Deus revelada na doao maior do Filho na cruz.
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IV Concluso
1 Uma comunidade inserida no Mistrio de Deus com os
homens1.
Aps termos realizado as trs etapas que formam o ncleo deste trabalho,
retomaremos as concluses parciais encontradas para, assim, expor a idia que
buscamos comprovar com esta pesquisa sobre a percope de Jo 19,25-27. Nossa
hiptese, como anteriormente fora exposto, se baseia sobre a possibilidade de uma
leitura de carter simblico da cena e personagens presentes na referida percope, bem
como a importncia da dupla entrega realizada ali, e tambm de suas ressonncias na
percepo do Mistrio da Aliana de Deus com os homens.
No primeiro captulo desta dissertao, buscou-se refazer o caminho
histrico da interpretao da percope referida, a partir de autores que so referncia em
determinados momentos da histria da teologia, pleiteando encontrar, neste caminho, a
base epistemolgica necessria para realizar a pesquisa atravs do vis desejado.
De maneira geral, percebe-se que, no perodo patrstico at Agostinho de
Hipona, a possibilidade de uma leitura simblica da narrativa aparece, mesmo que de
maneira muito livre e associada a outras interpretaes menos simblicas. De Agostinho
at os autores modernos, inclusive, encontra-se, cada vez com mais fora, a
identificao historicizante das personagens Me de Jesus e Discpulo Amado
com as pessoas de Maria de Nazar e Joo, o Apstolo, associada a certa nfase
unilateral2 na entrega do Discpulo Me.
Ao se analisar os textos dos autores contemporneos escolhidos, a
possibilidade de uma leitura de carter simblico ressurge. Com algumas variaes,
como se demonstrou, no decorrer do primeiro captulo, as figuras da Me de Jesus e
do Discpulo Amado vo ganhando certa distncia dos personagens histricos a elas
referidos, e descortinando um novo e firme caminho de interpretao. H tambm uma
importante mudana na interpretao da dupla entrega: mais de acordo com o texto, a
nfase passa a ser dada entrega da Me ao Discpulo; a Me quem segue para o
contexto do Discpulo. Aproximamo-nos, dessa forma, da proposta interpretativa dos
Leia-se: Salvao.
No caso, do Discpulo Me, sendo que os cuidados do Discpulo quando recebe a Me esto em
funo da entrega primeira.
2
106
Deus, da qual participa em sua unidade com o Filho, no Esprito. O caminho da Palavra
no Mundo continua na nova comunidade surgida ao p da Cruz.
Lanando um olhar global sobre o Evangelho, a partir daquilo que
apreendemos neste trabalho, podemos concluir mais um aspecto desta relao de Deus
de com a humanidade no Filho expressa por Joo. Para este evangelista, o que se prefere
aqui chamar de Mistrio de Deus com os Homens se realiza de maneira transhistrica e meta-histrica3.
Confirma-se que o Mistrio de Deus no se configura como realidade ahistrica, como pregara a forte vertente gnstica dos tempos da comunidade joanina,
mas, pelo contrrio, como realidade ao mesmo tempo trans-histrica e meta-histrica.
Esse Mistrio compreendido como trans-histrico na medida em que se encontra de tal
maneira enraizado que no se compreende sem a histria humana. Perpassa toda ela,
desde o princpio at o fim, e encontra nela a sua realizao. Deus se mostra no como
um espectador passivo, mas faz da Histria Humana sua histria, a ponto de habitar
entre os homens. meta-histrico, na medida em que transcende a prpria Histria,
sendo anterior e posterior a ela, no se reduzindo a ela, mas doando-lhe sentido pleno e
se descortinando como Futuro Absoluto.
O emprego de tais conceitos, tal como se encontram aqui, no foram extrados de outros autores e, por
isso, sabemos de debilidade que carregam.
4
A fim de facilitar a compreenso do que agora se far, propem-se o cone que se encontra reproduzido
no Anexo I.
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em sua prpria vida e morte, a Aliana que Deus havia selado com seu povo desde os
primeiros tempos. Ele eterno tempo presente da salvao de Deus.
No lado direito do crucificado, lado que a tradio humana pelos sculos
coincidiu com o lado da justia, encontra-se a Me de Jesus. Nela esto reunidos
simbolicamente todos aqueles que aguardam a justia de Deus: o cumprimento da
Aliana. No interior de sua fidelidade, como povo que se guardou na esperana da
realizao das promessas, gera e acolhe em seu seio, como Dom do Pai, aquele que era
esperado desde muito. Agora espera permanecer na fidelidade ao seu amado Deus,
cumprindo em si as promessas desse Amor. Ela se tornar, assim, a Sio Messinica,
lugar do encontro de Deus. Como tempo passado, base humana do caminho que se
seguir.
Do lado esquerdo, comumente identificado com os sentimentos, est aquele
que muito amado. Testemunha fiel, permaneceu junto do Mestre desde o incio. Ocupa
agora um lugar especial, pois reconheceu e vive nesse amor. esse amor que lhe d
identidade, sentido sua existncia. Sua misso ser a de continuar, no Esprito, a
testemunhar esse amor sempre fiel de Deus na histria, contra o mundo, realidade que
nega a esse amor, que se encontra em constante processo contra os filhos de Deus. Vive,
no Esprito, uma profunda unidade de vida, misso e destino com o Mestre. Sofrer, por
sua fidelidade, a cruz imposta tambm sobre o Mestre. Guardar-se- fiel at que o
Senhor volte. Nesse esquema histrico, nele se realiza o tempo futuro da Salvao que
vem de Deus, pelo Filho, no Esprito.
Em sua palavra do alto da Cruz, o Cristo unifica esses tempos no eterno
presente que ele . A comunidade discipular recebe da prpria Palavra de Deus, O
Crucificado, Israel, Me de Jesus, como seu passado histrico. Sua origem est na
Aliana feita por Deus com seu povo. Contudo, esse passado inserido na nova
dinmica do cumprimento das promessas; dever ser lido a partir da vinda do Filho. No
enaltecimento5 do Filho, na doao maior de vida, Deus diz sua ltima e definitiva
palavra sobre o seu Amor. Nele, na glorificao\crucificao do Filho, as promessas da
Aliana so cumpridas.
Contudo, a histria desse amor no tem fim; ela continua no desenrolar da
prpria histria humana. Assim como Israel permaneceu fiel, a nova comunidade
presente aos ps do crucificado continuar, na fidelidade, a narrar em sua existncia a
5
Entenda-se aqui por enaltecimento no s o acontecimento histrico da cruz, mas todos os eventos
pascais que, para Joo, formam uma nica unidade.
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REFERNCIAS
1 Fontes consultadas
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BBLIA. Portugues. Bblia de Jerusalm: Nova edio, revista e ampliada. 2
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KLOPPENBURG, B.; VIER, F. (Orgs.). Compndio Vaticano II: Cartas, Decretos
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CONCLIO VATICANO II. Constituio Dogmtica Lumen Gentium. In.:
KLOPPENBURG, B.; VIER, F. (Orgs.). Compndio do Vaticano II: Cartas,
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Paris: Seuil, 1963.
JOO PAULO II. Carta encclica "Redemptoris mater" do sumo pontfice Joo Paulo II
sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria na vida da Igreja que est a caminho. So
Paulo: Paulinas, 1987.
112
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ANEXO I
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