111-Texto Do Artigo-757-1-10-20230616

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ISSN 2596-2922

DOI: 10.46859/PUCRio.Acad.TeoP.2763-9762.2023v3n5p17

O verbo grego splanchnizomai presente no


Evangelho de Lucas como práxis do
Papa Francisco.
The Greek verb splanchnizomai inLuke's Gospel as
Pope Francis' práxis.

Giuliano dos Santos Saragiotto


Leandro Haynes Pariz

Resumo

Lucas revela que Deus é misericórdia. O autor do terceiro Evangelho apresenta


a compaixão de Deus como uma das principais características do ministério de seu filho
Jesus. O autor descreve o Messias como aquele que se move de compaixão diante do
sofrimento, especialmente diante dos pobres e excluídos de seu tempo. Neste artigo,
através do estudo aprofundado da expressão “ser movido de compaixão”, representada
pelo verbo grego σπλαγχνίζομαι (splanchnizomai), utilizado em três passagens no
Evangelho de Lucas: na reanimação do filho da viúva de Naim (LC 7,11-17), na parábola
do bom samaritano (LC 10,29-37) e na parábola do Pai misericordioso (LC 15,11-32),
faremos uma atualização desse mesmo verbo, olhando para a práxis do pontificado de
Francisco, especialmente em 2016, Ano Jubilar da Misericórdia, em que o pontífice
realizou vários gestos de misericórdia como forma de lembrar que a misericórdia é uma
característica fundamental do ministério de Jesus, que não pode ser esquecida ou
deixada de lado, devendo ser imitada por toda a Igreja.

Palavras-Chave: Misericórdia. Compaixão. Evangelho de Lucas. Splanchnizomai.


Papa Francisco.

TeoPraxis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, p. 17-27, jan./jun. 2023 17


ISSN 2596-2922
DOI: 10.46859/PUCRio.Acad.TeoP.2763-9762.2023v3n5p17

Abstract

Luke reveals that God is mercy. The author of the third Gospel narrates the
revelation of God's merciful face in his son Jesus. Through the study of the origin of
the expression: “to be moved with compassion” represented by the Greek verb
splanchnizomai present in the Lucan passages of the resuscitation of the son of the
widow of Nain (LC 7,11-17), the parable of the good Samaritan (LC 10,29-37) and the
parable of the merciful Father (LC 15,11-32); the updating of the term is presented in
practice through the visits made by Pope Francis on the occasion of the Jubilee Year of
Mercy in 2016 and his challenge to believers to have the same compassion as Jesus:
not as a mere ephemeral emotion, but as a call to act in name of the love of his Father
who, seeing the extreme situations of life, breaks with human logic and goes out to
meet the most vulnerable.

Keywords: Mercy. Compassion. Luke's Gospel. Splanchnizomai. Pope Francis.

Introdução

Lucas é um escritor habilidoso que elabora seu texto para revelar a salvação de
Jesus com domínio literário. O autor do terceiro Evangelho dispõe de formas e
estruturas com o intuito de deixar o coração do leitor o mais próximo do coração de
Jesus. Com esse pressuposto é possível ter uma atenção especial às palavras — como a
utilização do verbo splanchnízomai — e às narrativas existentes em seu Evangelho para
descrever o real sentimento de Jesus.
A análise de tais recursos possibilita a afirmação de que as narrativas lucanas
apresentam o rosto misericordioso de Deus através de Jesus que sente movido de
compaixão. Essas atitudes são expressas com mais veemência nos trechos que narram
a reanimação do filho da viúva de Naim,1 a parábola do bom samaritano 2 e a parábola
do Pai misericordioso.3
Nutrido por esse valor evangélico — cujas entranhas se comovem ao se deparar
com situações de sofrimento diante da morte e das tragédias humanas — o Papa
Francisco proclama, por meio da Bula de Proclamação, Misericordiae Vultus (O Rosto
da Misericórdia), em 8 de dezembro de 2015, o Jubileu do Ano Santo da Misericórdia,
que tem como objetivo tornar visível pelo testemunho concreto a experiência da
misericórdia. Como forma prática, o Papa Francisco realiza, entre outras obras de
misericórdia, visitas surpresas em hospitais, orfanatos, albergues e outros lugares que

1 Lc 7,11-17
2 Lc 10,29-37
3 Lc 15,11-32

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necessitam desse olhar e atitude de misericórdia para com as pessoas em situações de


vulnerabilidade.

1. As principais características dos escritos de Lucas

O Evangelho de Lucas é conhecido por sua escrita especialmente técnica e


habilidosa. Dentre os narradores do Novo Testamento, é considerado o melhor: “se
caracteriza por sua elegância e versatilidade: Lucas domina com discreta habilidade
literária o grego de koiné (...)”.4 O autor busca demostrar o projeto de salvação de Jesus,
servindo-se de relatos que não estão contidos nos outros três evangelhos canônicos e
que enfatizam de modo especial o amor, a misericórdia e a compaixão de Jesus Cristo,
que se dirige especialmente às mulheres, aos enfermos e aos pobres.

O que Lucas quer comunicar aos seus leitores pode-se intuir examinando a
urdidura geral de seu evangelho e a linha prospectiva que lhe subjaz. Mas um
exame mais atento das acentuações temáticas e do bloco de textos inéditos
permite descobrir as preferências e os interesses de Lucas. Estes são facilmente
individualizáveis, porque Lucas tem um grande bloco de versículos próprios,
inéditos em comparação com os outros evangelhos: cerca de 600.5

Sua intenção parece ser a de demostrar para a sua comunidade que para serem
autênticos cristãos, precisam seguir os passos do Mestre, não apenas em um seguimento
superficial, mas um seguimento no qual sejam capazes de demonstrar em suas obras, o
amor e a compaixão que Jesus tinha para com os excluídos e necessitados de seu tempo.
Dessa maneira, uma leitura atenta de seus escritos será capaz de verificar a constante
conjuntura de inquietação e questionamentos nos quais “(...) constrange os cristãos a
repensarem a própria identidade em confronto com as comunidades dos inícios e com
a mensagem e a missão histórica de Jesus”.6
Ao lermos os escritos de Lucas, percebemos também uma ênfase na concepção
na qual para seguir o caminho do discipulado de Jesus não basta somente a aceitação
dos seus ensinamentos, mas também uma adesão pessoal com o seu estilo de vida, sua
simplicidade e seu compromisso com a missão de levar o amor de Deus especialmente
aqueles que são considerados pela própria comunidade mais distantes Dele. Essa
identificação com a missão de Jesus, muitas vezes será motivo de escândalo para os
prepotentes e poderosos que não entendem a lógica do perdão, da partilha e da acolhida,
levando a comunidade de fé a ser duramente julgada e perseguida.

4 MASCILONGO, P.; LANDI, A., Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos, p. 189.
5 FABRIS, R.; MAGGIONI, B., Os Evangelhos II, p. 16.
6 FABRIS, R.; MAGGIONI, B., Os Evangelhos II, p. 17.

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Outra característica importante para entender a narrativa lucana é a compreensão


do projeto de salvação e libertação universal em Cristo, ou seja, o projeto de Jesus se
direciona a todos e a tudo sem exceção. Essa universalidade do projeto salvífico não se
origina da negação do povo judeu ao Messias, mas do amor do próprio Criador que
sempre desejou trazer para junto de si toda a sua criação. Desse modo, o movimento
libertador-salvífico apresentado na obra de Lucas, tem seu ápice na vida e na missão de
Jesus Cristo, que é particularmente demonstrado em seu Evangelho, mas tem
continuidade no livro dos Atos dos Apóstolos escrito pelo mesmo autor, onde buscou
demostrar que sob a inspiração do Espírito Santo a comunidade cristã é o local de
prolongação desse mesmo projeto, e deve assim anunciar a salvação e a libertação a
todos, sem exceção como fez o próprio Cristo.
Por essa razão, para muitos teólogos deve-se fazer uma leitura de Lucas que una
seu Evangelho e o livro dos Atos. Unir os dois escritos levará a uma compreensão mais
apurada de ambos os textos, buscando entender que a finalidade de sua narrativa no
Evangelho está associada com aquilo que a comunidade vivencia e está exposto em
seus relatos no livro dos Atos.

A unidade de Lucas-Atos é de ordem, além de autoral, literária e teológica.


Recentemente foram identificados cinco elementos-chave em favor desta
hipótese: 1) Jesus como proclamador e proclamado; 2) o envio dos apóstolos e
das testemunhas; 3) o primado do Reino e do Messias; 4) o discipulado como
resposta adequada ao acolhimento do Evangelho; 5) a salvação oferecida a
todos.7

2. As expressões de misericórdia na Sagrada Escritura

As traduções bíblicas em português, quando apresentam a palavra misericórdia,


referem-se na realidade a três termos hebraicos diferentes, que podem até parecer
sinônimos, mas expressam sentimentos muito diferentes em sua língua original: “O
primeiro é rahamim, que é o amor entranhado, é o sentimento das vísceras maternas
diante dos outros. O segundo é o hen, que é a graça de Deus. Finalmente, o hesed, o
amor que une duas pessoas, cuja abundante ocorrência na LXX (septuaginta) o faz
merecedor de uma maior atenção”.8
Entretanto, na época em que os Evangelhos são escritos a língua que dominava
grande parte do mundo conhecido pelos autores bíblicos era a língua grega,
particularmente em ocorrência da expansão das dominações gregas e assim a sucessiva
propagação da cultura helênica entre esses povos dominados. Dessa maneira, ao
resgatar a imagem de Deus do Antigo Testamento, Lucas é obrigado a transpor para

7 MASCILONGO, P.; LANDI, A., Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos, p. 192.
8 PERONDI, I.; CATENASSI, F. Z., Misericórdia, compaixão e amor, 2016, p. 4.
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seus leitores da língua grega os três termos hebraicos apresentados anteriormente, sobre
a misericórdia divina. Assim, a versão grega do antigo testamento, a septuaginta (LXX),

(...) traduzia o termo hesed cerca de 400 vezes por eleos e cerca de 80 vezes por
oiktirmon. Então, esses dois termos foram naturalmente adotados nos
evangelhos para referir-se à misericórdia. Eleos, para este amor que exprime o
sentimento interior, e o verbo oiktirmos e seus derivados, para indicar a
expressão externa da misericórdia.9

Pode-se então compreender que “correspondendo a rahamim está o verbo grego


splanchnízomai, aos órgãos vitais, já que o substantivo splanchna, em seu sentido
clássico, indica o coração, rins, pulmões e fígado.” 10 O escritor do Evangelho
evidentemente buscou através do uso dessa expressão demonstrar que a forma de
compaixão proposta e vivenciada por Jesus não significava apenas sentir piedade ou
compaixão emocional pelas pessoas, mas sentir de modo particular essa emoção
profundamente em seu ser físico. A compaixão de Jesus é essa emoção visceral que o
move a agir em favor dos necessitados e a demonstrar o amor de Deus em suas ações.

3. O verbo splanchnízomai no Evangelho de Lucas

Tudo o que foi acima demostrado é evidenciado de modo particular em três


relatos do Evangelho de Lucas onde Jesus se sente movido de compaixão: a reanimação
do filho da viúva de Naim, 11 a parábola do bom samaritano12 e a parábola do Pai
misericordioso.13 Embora a expressão splanchnízomai, tenha menos recorrência no
Evangelho de Lucas, em comparação com os outros dois Evangelhos sinóticos,
podemos verificar uma utilização estratégica e intencional, oferecendo uma
profundidade ainda maior e evidenciando sobremaneira essa característica de Jesus para
quem a compaixão não era apenas uma emoção passageira, mas um chamado para agir
em nome do amor de seu Pai e trazer a cura e a redenção para aqueles que mais
precisavam.
Um exemplo claro da profundidade dessa expressão no Evangelho de Lucas
pode ser assimilado de forma mais precisa ao fazermos a leitura do relato da viúva de
Naim, como citado anteriormente, esse é o primeiro relato do Evangelho de Lucas a
trazer o termo estudado nesse artigo e sua leitura nos trará luz para interpretar alguns
pontos-chave e que são comuns aos três relatos aqui mencionados.

9 PERONDI, I.; CATENASSI, F. Z., Misericórdia, compaixão e amor, 2016, p. 6.


10 PERONDI, I.; CATENASSI, F. Z., Misericórdia, compaixão e amor, 2016, p. 6.
11 Lc 7,11-17
12 Lc 10,29-37
13 Lc 15,11-32

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Logo depois, Jesus dirigiu-se a uma cidade chamada Naim acompanhado de seus
discípulos e de uma grande multidão. Quando se aproximava da porta da cidade,
viu um cortejo fúnebre: levavam o corpo do filho único de uma viúva. E grande
multidão da cidade a acompanhava. Vendo-a, o Senhor sentiu compaixão por
ela e lhe disse: não chore. Aproximou-se, tocou o caixão, e os que o carregavam
pararam. Então disse ele: Jovem, eu te ordeno, levanta-te! O morto sentou-se e
começou a falar, e Jesus o entregou à mãe. 14

Neste relato, observamos que a compaixão de Jesus o moveu a agir em favor


daquela mulher. Ele a consolou, curou seu filho e, assim, demonstrou sua misericórdia
e amor. Contudo, como mencionado acima, devemos buscar um significado mais amplo
dessa passagem e perguntar através dela o que há em comum nesses três
acontecimentos em que Jesus se move de compaixão pelos sofredores no Evangelho de
Lucas e que demostram a finalidade de sua utilização intencional e precisa pelo autor.
Um dos pontos em comum encontrados nos três relatos é a presença do verbo
“ver”: “Jesus, ao chegar à porta da cidade, viu a mãe viúva e enlutada”;15 “o samaritano
viu o homem caído e semimorto”;16 o pai viu o filho quando ainda estava longe. 17
Através da utilização desse verbo, o autor, busca demostrar que o verbo compadecer é
ocorrência direta daquele que enxerga, que vê o sofrimento e não pode ficar imóvel
perante ele. Em todas as suas palavras e ações Jesus jamais foi indiferente ao outro, sua
encarnação e sua missão salvífica, demostram plenamente que Deus não é indiferente
e distante de nossas realidades humanas, ele vê o sofrimento e deseja salvar a todos nós
que somos seus filhos e filhas.
Esse movimento de compaixão vivenciado por Jesus o incomoda verdadeiramente
mexe com o seu ser, com sua condição física a ponto de o levar a agir em favor do
sofredor, contudo, sua ação não é apenas uma ação qualquer, mas uma forma de ação que
lhe é própria, capaz de restaurar aquilo que há de mais profundo em cada pessoa humana,
transformando sua existência e assim restituindo-lhe a vida:

Jesus pediu para que a mãe não chorasse mais, aproximou-se do morto, tocou a
padiola e fez parar os carregadores. Com a sua palavra, devolveu a vida e a fala
ao jovem, que se sentou e começou a falar. Então, Jesus o entregou à sua mãe. 18
Lucas descreve com sete expressões verbais a ação do samaritano em favor do
homem caído: “aproximou-se”, “cuidou de suas chagas”, “derramando óleo e

14 Lc 7,11-15
15 Lc 7,13
16 Lc 10,33
17 Lc 15,20
18 Lc 7,14-15

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vinho”, depois “colocou-o em seu próprio animal”, “conduziu-o à hospedaria”,


“dispensou-lhe cuidados” e, ainda, no dia seguinte, “tirou dois denários e deu-
os ao hospedeiro, dizendo: ‘Cuida dele, e o que gastares a mais, em meu regresso
te pagarei’”.19 São várias as ações do pai: ele correu e pulou no pescoço do filho,
cobrindo-o de beijos, depois interrompeu o discurso do filho e ordenou aos
servos que depressa trouxessem a melhor túnica e o revestissem, que pusessem
um anel no dedo e sandálias nos pés, que trouxessem o novilho cevado e o
matassem para comer e festejar (15,22-23).20

Por fim, outra lição catequética de Lucas por trás do seu uso pontual e
intencional da expressão splanchnízomai em seu Evangelho é encontrada na observação
dos sujeitos que se movem de compaixão em cada um dos relatos por ele apresentados:
na primeira vez Jesus foi movido de compaixão; na segunda o samaritano e, na terceira
o pai do filho pródigo. Ao observarmos os três textos como um conjunto de catequese
continua, há uma mensagem profunda: a compaixão de Jesus no relato da viúva de
Naim é a mesma compaixão do Pai na parábola do Filho Pródigo, demostrando a
filiação divina e a compaixão como um atributo de Deus, da qual, entretanto, os homens
também são capazes, e não só aqueles homens que se consideram perfeitos e santos,
mas principalmente aqueles considerados pecadores e distantes do Criador como
demostrado na parábola do Bom Samaritano.

4. Papa Francisco e a prática do valor evangélico da misericórdia em Lucas

O grande esforço da teologia cristã é revelar as pessoas o verdadeiro “rosto de


Deus”.21 Desde suas primeiras aparições públicas, catequeses, homilias e cartas, o Papa
Francisco anuncia incansavelmente a face misericordiosa de Deus.

Jesus Cristo é o rosto da misericórdia do Pai. O mistério da fé cristã parece


encontrar nestas palavras a sua síntese. Tal misericórdia tornou-se viva, visível
e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré. O Pai, ‘rico em misericórdia’ (Ef
2,4), depois de ter revelado o seu nome a Moisés como ‘Deus misericordioso e
clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e fidelidade’ (Ex 34,6), não cessou
de dar a conhecer de vários modos e em muitos momentos da história a sua
natureza divina. Na ‘plenitude do tempo’ (Gl 4,4), quando tudo estava pronto
segundo o seu plano de salvação, mandou o seu Filho, nascido da Virgem Maria,
para nos revelar de modo definitivo o seu amor. Quem O vê, vê o Pai. Com a

19Lc 10,34-35
20 PERONDI, I.; CATENASSI, F. Z., Misericórdia, compaixão e amor, 2016, p. 11.
21 Sl 27,8

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sua palavra, os seus gestos e toda a sua pessoa, Jesus de Nazaré revela a
misericórdia de Deus.22

Em ocasião da Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia em oito


de dezembro de 2015, que marcou o cinquentenário da conclusão do Concílio
Ecumênico Vaticano II, o Papa Francisco interpelou a Igreja de forma profética nesse
Ano Santo Jubilar, a abrir os olhos e os corações para ver e sentir as misérias do mundo
presentes nas mais variadas periferias existenciais que causam as feridas em tantos
irmãos e irmãs.
O esforço do Papa a partir do Ano Santo é de viver a prática da misericórdia
estabelecendo como gesto concreto as “Sextas-Feiras da misericórdia” em que realizou
uma série de visitas “surpresas” a locais como hospitais, orfanatos, albergues e outros
lugares que necessitam desse olhar e de atitudes misericordiosas como acolhimento,
hospedagem, cuidado e carinho das pessoas que se encontram em alguma situação de
vulnerabilidade. Dentre os gestos concretos realizados por Francisco nessas “Sextas-
Feiras da Misericórdia”, gostaríamos de recordar três deles, que demostram
eficazmente a compaixão evangélica como práxis de seu pontificado.
No dia 12 de agosto de 2016, o Papa Francisco visitou a estrutura romana da
“Comunidade Papa João XXIII”, que na ocasião acolhia 20 mulheres libertadas da
escravidão da prostituição. O Papa “vê”, “se comove” e “se aproxima” de mulheres que
perderam sua dignidade por passarem por situações limites de vida, recordando a
atitude de compaixão de Jesus com a viúva de Naim que pede: “Não chore”. O Papa
diante dessas mulheres tão sofridas e abandonadas remete ao sentimento de Jesus que
não é alheio as tragédias, mas que oferece um sinal de esperança de vida.23 A atitude
do Papa, com singular visita, convida os crentes a imitar a ação de Jesus que se
compadece e sofre junto diante das situações de aprisionamento, de escravidão e de
morte, oferecendo sempre a esperança da vida nova.
No dia 16 de setembro, o Papa visitou dois hospitais de Roma: no San Giovanni,
visitou o Pronto Socorro e a Unidade Neonatal, onde estavam internados 12 recém-
nascidos e no Policlínico Universitário Gemelli visitou doentes com câncer. Assim
como o Samaritano “aproximou-se e cuidou das chagas”,24 deixando seus
compromissos para sua caminhada e ao ver o sofrimento move-se de compaixão indo
ao encontro daqueles que padeciam de enfermidades. Francisco, mais uma vez
refletindo a figura de Jesus que recolhe e hospeda todos os excluídos pela lei da vida,
convida, com seu exemplo, toda a Igreja a continuar a missão desse mesmo samaritano:
“Vai e faze o mesmo”.25 Tal interpelação de Jesus, agora assumida na atitude do Papa,

22FRANCISCO, PP., Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, n. 1.


23FAUSTI, S., Uma comunidade lê o Evangelho de Lucas, p. 250.
24Lc 10,33
25Lc 10,37

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é para que seja criada uma cultura de amor ao próximo capaz de acolher, cuidar e
hospedar.
Por fim, em 26 de fevereiro de 2016, Francisco visita à comunidade de
recuperação terapêutica de dependentes químicos São Carlos, localizada na periferia de
Roma. O amor e a bondade do Pai das misericórdias são manifestos no gesto de
Francisco que ultrapassa os muros da Cidade Eterna em direção aqueles que são
surpreendidos em suas periferias existenciais. A visita surpresa de Francisco é um
convite — não só para aqueles que foram visitados na ocasião, mas todos aqueles que
são cristãos — para redescobrir o amor e a bondade acolhedora de Deus a partir da
iniciativa do pai que, esquecendo toda transgressão, vai ao encontro do seu filho,
acolhe-o sem reserva e o reabilita em sua condição precedente. Ao assumir o caráter
evangélico da parábola do “filho reencontrado”26 o Papa Francisco que se enche de
compaixão e vai ao encontro daqueles que buscam se curar da dependência química,
resplandece para eles e para toda a igreja, o coração misericordioso do Pai,
ressignificando, através do amor, todos os esquemas, lógicas e expectativas humanas.
O Papa Francisco, ao realizar tantas outras visitas, gestos e denúncias proféticas,
não só por ocasião do Ano da Misericórdia, masdurante todo o seu pontificado, tem
buscado demostrar seu desejo de que a Igreja, povo de Deus, seja manifestação
verdadeira da compaixão Divina, estando sempre atenta aos outros em seu olhar e
tornando-se assim capaz de identificar os sinais dos tempos presentes na sociedade, sem
nunca se esquecer, entretanto, que mesmo diante de realidades tão complexas e
conflitantes, Deus continua a manifestar e desejar a salvação a todos os seus filhos e
filhas.
Portanto, nesses dez anos de seu pontificado, Francisco, tem sucedido um grande
projeto de impulso missionário e profético para a Igreja, mesmo que haja contra ele
uma grande oposição de alguns grupos, que parecem preferir viver presos as amarras
do passado, do que se abrir aos novos ares e horizontes redescobertos e reiniciados pela
Igreja nos últimos 60 anos, e que inspiram o ser e o agir do atual pontífice.

Conclusão

Todo o Evangelho de Lucas é um convite ao encontro com Jesus, que quer


revelar o rosto misericordioso do Pai e espera de cada um de nós uma atitude
misericordiosa: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso”. 27

26Lc 15,11-32
27Lc 6,36
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Os três textos que estudados: a reanimação do filho da viúva de Naim, 28 a


parábola do bom samaritano 29 e a parábola do Pai misericordioso,30 revelam que não
basta ter o sentimento da misericórdia e da compaixão, tão necessários, mas que as
pessoas misericordiosas são também pessoas movidas por ações eficazes, pois somente
atitudes caritativas restauram a situação. É isso que fez Jesus; foi o que fez o
samaritano; foi o que fez o pai. A sequência de ações favoreceu aqueles que estavam
em estado de morte: o filho começou a falar e foi entregue à sua mãe. O homem
machucado e abandonado foi curado e colocado em lugar seguro. O jovem perdido
recuperou sua dignidade de filho e foi reintroduzido na casa paterna.
Em um mundo cada vez mais individualista, a lógica de Jesus de uma visão
atenta ao outro parece ser estranha e incapaz de encontrar espaço na correria de nosso
dia a dia, mas, nós cristãos somos continuadores de seus ensinamentos e de sua missão,
portanto não nos esqueçamos jamais dos ensinamentos do Evangelho, pois, como nos
recorda profeticamente o próprio Papa Francisco: o Evangelho nos educa a ver: orienta
cada um de nós a compreender corretamente a realidade superando preconceitos e
dogmatismos dia após dia. E depois ensina-nos a seguir Jesus, porque seguir Jesus
ensina-nos a ter compaixão: estar atentos aos outros, especialmente aos que sofrem, aos
que mais precisam.

Referências bibliográficas

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Dictionary of the New Testament. Disponível em:
<https://search.nepebrasil.org/strongs/?id=G4697>. Acesso em: 29 mar. 2023

28Lc 7,11-17
29Lc 10,29-37
30Lc 15,11-32

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MASCILONGO, P.; LANDI, A. Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos.


Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2022. ed. 1.
PERONDI, I.; CATENASSI, F. Z. Misericórdia, compaixão e amor: o rosto de Deus
no Evangelho de Lucas (Mercy, compassion and love: the face of God in the Gospel of
Luke). Cadernos Teologia Pública, v. 13, n. 118, 2016

Giuliano dos Santos Saragiotto


Graduado em Filosofia e graduando em Teologia pela PUC Campinas
Pedreira / SP – Brasil
E-mail: [email protected]

Leandro Haynes Pariz


Graduado e graduando em Teologia pela PUC Campinas
Campinas / SP – Brasil
E-mail: [email protected]

Recebido em 29/03/2023
Aprovado em 08/05/2023

TeoPraxis, Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, p. 17-27, jan./jun. 2023 27

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