Pastor Na Igreja Hoje
Pastor Na Igreja Hoje
Pastor Na Igreja Hoje
Belo Horizonte
FAJE – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2015
Helia Carla de Paula Santos
Belo Horizonte
2015
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
Santos, Helia Carla de Paula
O pastor que cuida e conduz: a formação da figura do pastor na Igreja
S237p hoje / Helia Carla de Paula Santos. - Belo Horizonte, 2015.
87 p.
2
Resumo
A presente dissertação tem por objetivo refletir, à luz do texto do Evangelho de João 10,1-
18, sobre o pastor e a formação dos futuros presbíteros nos seminários. As pesquisas sobre a
formação do presbítero nos documentos eclesiais e nos trabalhos de campo realizados por
alguns autores em seminários mostram as causas do abandono do ministério, e o trabalho
fundamental da Pastoral Vocacional na preparação e recepção dos futuros candidatos. O
aprofundamento bíblico sobre a metáfora do pastor no Antigo e no Novo Testamento é um
ensejo para refletir a figura dos líderes das comunidades, respectivamente, de Israel, no
período dos reis e das comunidades cristãs do primeiro século. Nesse caminho que a Bíblia
nos oferece, culminamos no tema sobre o pastor em Jo 10,1-18 no discurso de Jesus Cristo.
A reflexão dos primórdios do ministério ordenado oferece a ocasião de rever os documentos
eclesiais sobre o presbiterado e sugere algumas considerações sobre a formação, afim de que
contribua que os futuros presbíteros se configurem a Jesus Pastor.
3
Abstract
This work aims to reflect, in the light of the text of John 10,1-18, on the pastor and the
formation of future priests in seminaries. At first, we present some research about the
formation of priests in the documents of the Catholic Church and in fieldwork studies in
seminaries pointing to the causes of ministry abandoning. Subsequently we make a way in
the biblical theme of the shepherd as viewed in the Old Testament and the New Testament
Communities, culminating in the discourse of Jesus in John 10,1-18. In the last chapter, a
study of the ministry offers suggestions in order to make the formation of future priests
configure them to Jesus Pastor, by means of the reflection upon the Primitive Church and
ulterior Church Documents, especially of the Catholic Church in Brasil.
4
Abreviaturas
5
SUMÁRIO
Abreviaturas .................................................................................................................. 5
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8
6
3.1.2 O início da realeza: 1 Samuel 16-17,1-54 ............................................... 41
4.3.2 O sacerdócio nos escritos dos Papas dos séculos XIX e XX .................... 70
5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 77
7
INTRODUÇÃO
1
CENCINI, A árvore da vida, p. 28. As referências completas encontram-se na Referência
Bibliográfica.
8
Ao aprofundar os documentos que tratam de uma melhor formação dos futuros
presbíteros, iremos ver a formação como constituinte da identidade e da maturidade dos
futuros presbíteros. Vamos nos debruçar sobre as pesquisas de alguns autores
coerentemente vinculados na árdua tarefa de mostrar a superficialidade da formação de
alguns dos nossos seminários: Libanio, Arlene Bacarji, Benelli, Cozzens e Mézerville.
A figura do pastor no Antigo e no Novo Testamento na Bíblia mostra que o povo
está sob o cuidado de Deus, que é o Pastor por excelência de Israel. A história dos
primeiros reis de Israel, de Saul e Davi, em 1Sm 16-17, 1-54; a narrativa de 2Sm 12, 1-
10, que mostra a ação dos profetas da corte e as contradições da realeza de Salomão em
1Rs 11-12.
A figura do pastor no Novo Testamento e os diversos ministérios que estão
presentes nas comunidades se configuram no cuidado e amor ao povo. Não nos
preocuparemos com o caráter exegético dos termos, mas faremos um panorama sobre as
funções dos ministérios expressas nos escritos do Novo Testamento. Nossa intenção é
fazer um minucioso detalhamento das expressões ministeriais, que nos dará o retrato
fundamental das características daqueles que estavam responsáveis pela comunidade,
nos textos: At 20,17-38;1Cor 12,28; 16, 15-16; Rm 5,12; Fl 1,1; 2 Cor 8,6-23; 12,17-
18;1Tm 3; Tit1,4; Ef 4,11; 1Pd 5, 1-4; Ap 7,17 e finalmente, a análise de João 10, 1-18.
A partir desses textos neotestamentários identificaremos os indícios de
ministérios na Igreja nascente e a presença de lideranças, nas comunidades cristãs, que
são responsáveis pelo anúncio do Evangelho e solícitos às necessidades eclesiais.
Estamos conscientes, porém, de que “não é intenção do Novo Testamento fornecer uma
‘constituição’ da Igreja”2. Apesar da diversidade nos ministérios, “para todos os cristãos
vale a lei do amor, do serviço, da submissão mútua, qualquer que seja a função que
exerçam na comunidade”3. É objetivo central mostrar que a figura do bom pastor
refletirá a missão apostólica desta liderança comunitária, em meio aos desafios e perigos
que as comunidades enfrentam.
Analisaremos a figura da ovelha perdida nos Evangelhos sinóticos para refletir
sobre a missão da Igreja em não perder nenhum desses pequeninos, evocada na imagem
do pastor que deixa suas outras ovelhas e vai em busca daquela que se perdeu.
2
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 85.
3
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 85.
9
A metáfora do pastor encontra ressonância nos escritos dos Padres da Igreja e os
vários textos que contemplam Jesus Pastor, nos primeiros séculos da Igreja, assinalam a
postura e o compromisso dos pastores.
A época patrística assinala uma forte vivencia da Palavra do Evangelho quando
visa ao ministério ordenado nos primórdios da Igreja e, mais tarde, visualizamos um
processo de clericalização que se solidifica, abrindo caminho a uma atitude
individualista, tendendo a separar o clero da comunidade.
Os concílios falam diretamente sobre aqueles que exerciam os ministérios nas
comunidades. Por outro lado, não apresentam nenhum pronunciamento teológico e
reflexivo sobre os ministérios, justamente por não haver nenhum problema relacionado
a esta questão da fé, nem doutrina que se opusesse ao que está bem fundamentado na
tradição teológica: epíscopo, presbítero e diácono.
Assim, os Concílios de Niceia e Calcedônia, bem como, os I, III e IV Concílios
Lateranenses marcam uma nova etapa da Igreja e, será no Concílio de Trento que
Lutero questionará o sacramento da ordem, ao dizer que ele é de “origem humana e o
seu valor deveria ser considerada como tal”4. Por ocasião do Concílio de Trento e a
Reforma Católica, os bispos responderão às questões de Lutero.
Nos séculos XIX e XX, junto à confirmação do poder do Papa a partir do
Concílio Vaticano I, temos muitos escritos sobre o sacerdócio. Em várias
comemorações vitalícias ou jubileus, os Papas dedicaram alguns escritos ao clero de
todo o mundo: Pio X na exortação Haerent animo; Pio XI em sua Ad catholici
sacerdotii; Pio XII na exortação Menti nostrae; também João XXIII na encíclica
Sacerdotii nostri e Paulo VI, que no fim do ano da fé de 1967/68 escreveu aos
sacerdotes católicos A voi sacerdoti5.
No Concílio Vaticano II, a Constituição Lumen Gentium faz uma plena
exposição sobre o sacerdócio e o apostolado dos leigos, e a Optatam totius aborda a
formação dos presbíteros.
Diante do ministério ordenado com características clericais é de grande
importância resgatar o papel do leigo na Igreja. A compreensão do papel do leigo na
Igreja nos leva a reconstruir os primórdios do início das comunidades cristãs, onde não
havia a separação entre clero e leigos. Esta divisão acontece já nos primeiros séculos a
4
BECKER, O ministério sacerdotal, p.56.
5
BECKER, O ministério sacerdotal, p.111.
10
partir do momento em que a “Igreja reforça o poder do clero porque se desenvolve
como uma instituição, como uma organização humana que quer permanecer”6.
Esperamos salientar ao final da pesquisa que uma mudança interna na formação
de alguns ambientes seminarísticos lançará luzes sobre o confronto dos diversos
desafios da Igreja, e assim, a Igreja terá presbíteros configurados ao Senhor Jesus,
Pastor e guia da Igreja.
6
ANTONIAZZI, Raízes históricas, p. 18.
11
1 O PROBLEMA DA FORMAÇÃO DOS PRESBÍTEROS
1.1 Problemática
12
que os futuros presbíteros, a exemplo de Jesus-Pastor, sejam presença viva de Deus no
meio do povo. Assim, pensando nos seminários que existem em função da formação do
ministro ordenado e têm influência no perfil dos futuros presbíteros, parece urgente
refletir sobre a formação oferecida nos seminários para a atuação pastoral no ministério
presbiteral, ou seja, sobre o perfil do pastor a ser moldado pelo seminário onde se
formam os futuros presbíteros. Tanto o seminário como a formação contribuirão para a
verdadeira configuração da vida do presbítero com o perfil de Jesus-Pastor. Isto, sem
esquecer a fase anterior à formação, a pastoral vocacional, que mostrará os desafios e o
real papel da figura do presbítero na comunidade.
Optatam totius
O Decreto Optatam totius, de 28 de outubro de 1965, salienta a importância da
formação intelectual dos presbíteros, declarando alguns princípios que considera a
evolução dos tempos. Desta maneira, o Decreto enfatiza assuntos que retomam a
vocação, a importância de uma formação humana que integre as Ciências Humanas, e
uma filosofia e teologia que possam promover uma abertura dos estudantes ao Mistério
de Cristo. A exigência contempla as disciplinas teológicas, afim de que sejam ensinadas
13
à luz da fé e de acordo com o magistério da Igreja, salientando um estudo aprofundado
da Sagrada Escritura.
14
Alberto Antoniazzi
O autor visa a explicitar e aprofundar, em sua obra Os ministérios da Igreja
hoje, 1977, os fundamentos teológicos e espirituais do “presbitério”, à luz do sentido
que o Concílio Vaticano II recupera no número 28 do Documento Lumen Gentium. O
conceito presbiteral deveria ser considerado na sua conexão com a eclesiologia conciliar
que pensa o ministério presbiteral em função do ministério episcopal ou apostólico.
O autor menciona duas visões extremas, que atrapalham a análise da situação:
uma delas é o exagerado pessimismo, que vê o clero num individualismo desenfreado; a
outra, o exagerado otimismo, achar que os padres são felizes e acompanham com
generosidade e criatividade as novas exigências pastorais. Ambos extremos não
contribuem para a reflexão e a busca de alternativas para o contexto pastoral, e
deveriam ser evitadas na análise das situações existenciais e espirituais, tendo em conta
que, para se ter objetividade, seria importante avaliar caso por caso, pessoa por pessoa,
no contexto em que se encontra, para se ter uma visão menos teórica e mais
aprofundada da questão.
Amadeo Cencini
A proposta de Cencini em sua obra: A árvore da vida: proposta de modelo de
formação inicial e permanente, 2007, explicita um itinerário formativo que visa a tornar
o sujeito docibilis, isto é, disponível a uma formação continuada por toda vida. Dentro
dessa proposta, o autor faz uma profunda explanação sobre os modelos formativos do
passado, considerando-os presentes e atuais nos seminários: modelo da Perfeição, da
Observância Comum, da Autorrealização, da Autoaceitação, do Módulo Único e da
Integração. Para Cencini, os vários itinerários formativos exercem influxo educativo-
formativo nos sujeitos, mas nem sempre levam as pessoas a se tornarem livres, com
uma disponibilidade inteligente e empreendedora, ágil e engenhosa, capaz de libertar o
sujeito de rijezas pessoais que impedem qualquer crescimento, diante de Deus e diante
dos seres humanos.
15
científico. Benelli, a partir da pesquisa feita, relaciona o contexto do seminário com o
contexto global. Ao compreender as coordenadas da conjuntura socioeclesial, interpreta
que tipo de instituição concreta se produz na atualidade. Ele se serve de alguns autores
que iniciaram uma investigação no âmbito do seminário católico, como Lapasse e
Lourau (1972), Altoé (2004), Goffman (1987), Costa-Rosa (2000, 2006), Baremblitt
(1998), Foucault (1999) e Barus-Michel (2004) entre outros, que aguçaram o olhar e a
escuta atenta da pesquisa ao focalizar a prática, o discurso, o sujeito do cenário
institucional.
Gaston de Mézerville
Em suas obras A formação para a maturidade e A vivência da maturidade, 2000,
o autor traz um enfoque integrado entre psicologia e Magistério, e sua experiência na
formação de seminaristas e formadores de seminários contribui objetivamente para a
pesquisa sobre a formação dos futuros presbíteros.
As pesquisas realizadas por Mézerville, a partir da OSLAM (Organização dos
Seminários da América Latina), junto aos Bispos da Igreja Latina, revelam a desistência
de boa parte dos seminaristas e a causa predominante das deserções: as deficiências no
terreno humano-afetivo-espiritual. Os bispos concordam que é preciso reforçar o
processo educativo-pedagógico e os programas de formação humana e afetiva.
Eugen Drewermann
Em sua obra Funcionários de Deus: psicograma de um ideal, 1989, o autor
evidencia a oferta da graça e a franqueza da confiança que deveria ser a prioridade no
serviço dentro da instituição chamada Igreja. Ao mesmo tempo, aponta a força do
estado clerical, que coibe a liberdade e a espontaneidade, fortalecendo nos
representantes eclesiais um cordão hermético de barreiras e proibições que evita
reflexões analíticas consideradas subversivas.
O autor faz uma pesquisa entre as diversas religiões, para depois analisar as
diferenças e poder estruturá-las nos ambientes culturais em que se encontram. A
pesquisa não tem a intenção de interpretar as escolhas de Deus ao longo da história, mas
de saber como alguém se considera eleito de Deus. Também, compreender como se
sente alguém que se julga eleito, o que ele entende por isso, e todas as consequências
que se tiram desta eleição.
16
José Rafael Prada Ramírez
O padre José Rafael apresenta em sua obra Psicologia e formação, 2013 alguns
aspectos importantes para a formação dos futuros presbíteros. Em linhas gerais, o autor
salienta uma formação racional que inclua na grade curricular as Ciências Humanas,
visto que o mundo de hoje exige crítica pessoal em relação às diversas situações da pós-
modernidade. Sua obra considera as teorias comportamentais, humanistas e cognitivas,
e a contribuição da neuropsicologia aplicada aos futuros presbíteros, no que concerne a
uma melhor aprendizagem.
Nesta obra, o autor mostra a importância da escola de Luigi M. Rulla, jesuíta,
que fundou o Instituto de psicologia na universidade Gregoriana de Roma, onde pode
aprofundar sobre os abandonos da vocação por parte de presbíteros e religiosos,
reconhecendo uma falta de maturidade afetiva. J. R. Prada Ramírez mostra as principais
teorias e conceitos que foram pesquisados por L. Rulla, visto que contribuem no
processo formativo e integral do sujeito.
Donald B. Cozzens
Na obra A face mutante do sacerdócio, 2001, D. B. Cozzens é muito crítico ao
falar tanto dos seminários como dos presbíteros. Mas, sua crítica maior é aos seminários
que são os produtores do clericalismo vigente, e contribuem para com a infantilização
dos candidatos ao presbiterado. O autor é taxativo em sua obra quando mostra a
realidade no seminário, em regime de internato, que causa o efeito de exclusão desse
sujeito da vida civil, totalmente alheio ao salário, a uma formação profissional, sem
nenhuma noção do enfretamento das dificuldades cotidianas do cidadão comum. Por
trás deste falso conforto, garantido pelo sistema paternalista do seminário, que fornece
moradia, salário e privilégios, há uma estrita dependência e inércia dos presbíteros que
se alienam nos aspectos sociopolíticos do mundo contemporâneo.
17
psicanálise, acentua os motivos e os porquês de essas pessoas, sofrendo de patologias
diversas, se sentirem atraídas por esse universo hierárquico e entrarem na Igreja com o
objetivo de fazer mau uso daquilo que é sagrado.
O objetivo principal da obra é mostrar ao clero a imagem negativa que pessoas
adoentadas têm passado à sociedade em geral. A autora tem como princípio preservar a
imagem da Igreja perante o povo de Deus, e mostrar que a falta de testemunho de
padres com transtornos de personalidade e perversões (que é uma minoria, mas que faz
um grande estrago na Igreja) tem que ser impedida pelos formadores e bispos em geral.
A problemática formativa dos futuros presbíteros exposta pelos autores, numa
visão geral e pelos Documentos da Igreja contribuem com o aprofundamento da
reflexão do processo formativo nos seminários. O próximo ponto esboça a figura do
pastor na Bíblia e a característica principal que é o serviço às comunidades.
18
2 A FORMAÇÃO COMO CAMINHO PARA A CONFIGURAÇÃO DO
PRESBÍTERO COM JESUS PASTOR
1
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 196.
2
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 70.
19
ama Jesus, Jesus ama as ovelhas e estas são amadas pelo Pai. O amor culminará na
entrega da vida e a vida será retomada porque foi sublime doação3, valentia e fidelidade.
É no discurso de Jesus como Bom Pastor que a comunidade contempla a morte como
vitória sobre a própria morte. É na morte que Jesus Pastor abre o caminho para que a
comunidade adentre a intimidade do Pai.
Ao doar a vida, Jesus a readquire por expansão do próprio amor4. Sua vida não
lhe é tirada pelos dirigentes homicidas, mas ele a entrega livre e gratuitamente,
acentuando seu amor e dinamismo para com Deus Pai que ama igualmente as ovelhas.
Como filho, entrega-se sem limites e, desta forma, dá significado total à vida tornando-a
definitiva.
Em torno do Pastor por excelência, verificam-se as análises realizadas nos
seminários católicos no Brasil, apresentando diversas situações que questionam a
formação dos futuros presbíteros. Podemos nos perguntar: de que forma os seminaristas
católicos estão sendo formados? Como a formação pode contribuir para o
desenvolvimento de presbíteros pastorais, companheiros e preocupados com a formação
laical, portanto, menos clericais e elitistas, menos exclusivistas e feudais?
As análises sobre a formação presbiteral, realizadas nos seminários da América
Latina, Brasil e Estados Unidos, apresentam dificuldades em comum. A principal
questão está em averiguar os problemas do processo formativo dos seminaristas tendo
em vista o horizonte presbiteral no cenário da Igreja no Brasil.
O presente trabalho acompanha a dinâmica das Diretrizes para a formação, de
2011, que coloca algumas indicações sobre as várias dimensões formativas, mas não
apresenta de maneira mais concreta as principais problemáticas que estão presentes nas
pesquisas, e que se assemelham nos estudos teóricos. O Documento oferece uma
orientação para a formação dos seminaristas, de forma que “as grandes linhas das
orientações eclesiais foram adaptadas e aplicadas às condições da Igreja católica no
Brasil pela Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil” 5.
As Diretrizes para a formação apontam para o trabalho da pastoral vocacional
que em sua composição poderá contar com profissionais de várias áreas para contribuir
no processo de discernimento dos jovens que se apresentam:
A pastoral vocacional tem por objetivo despertar a vocação humana,
cristã e eclesial; discernir os sinais indicadores do chamado de Deus,
3
DURRWELL, A Morte do Filho, p. 36.
4
DURRWELL, A Morte do Filho, p. 39.
5
BENELLI, Análise psicossocial, p. 272.
20
cultivar os germes de vocação e acompanhar o processo de opção
vocacional consciente e livre. Deve dar ênfase às vocações de especial
consagração e, entre elas, particularmente, à vocação ao presbiterato6.
6
CNBB, Diretrizes para a formação, p. 28.
7
DOCUMENTO de Aparecida, 314, p. 143.
8
MÉZERVILLE, Maturidade, v.1, p.173.
9
MÉZERVILLE, Maturidade, v.1, p.169.
21
O cuidado está em ter discernimento e a questão de fundo que podemos verificar é um
profundo despreparo das pessoas que compõem as equipes da Pastoral Vocacional.
As dificuldades que surgem nas etapas formativas se dão pela falta de assessoria
de especialistas. As pesquisas realizadas por Gaston de Mézerville apresentam uma
multiplicidade de problemas posteriores que se explicam pelo fato de que
faltou acompanhamento sério por parte do psicólogo [...] Faz-se
necessário tanto orientação psicológica como melhor seleção e
acompanhamento [...] Pessoas imaturas com experiências traumáticas
que não receberam suficiente apoio para o amadurecimento10.
10
MÉZERVILLE, Maturidade, v.1, p.174.
11
COMBLIN, Olhando para o horizonte, p. 831-857.
22
leiga concreta, que se traduza em recomendação escrita e
pormenorizada sobre a vida do candidato [...]12.
Por ser desdobramento do batismo, “a vida sacerdotal não pode ser considerada
como uma promoção”13, um status social que se consegue a partir do ser presbítero. A
condução do processo vocacional deverá ser conduzida na linha do pastor que serve e dá
a sua vida, ou seja na gratuidade. Por isso se deve enfatizar que a vocação é muito mais
que um convite à participação, é um estímulo para que todos os batizados tenham em
mente as primeiras comunidades cristãs.
12
MÉZERVILLE, A formação, v. I, p.171.
13
JOÃO PAULO II, Pastores dabo vobis, n. 36. p. 96
23
Quando nos voltamos para nossa atualidade, podemos nos perguntar se a
formação oferecida nos seminários é capaz de configurar o futuro presbítero a Jesus-
Pastor, e a lhe oferecer ferramentas para que saiba lidar com as várias situações
pastorais. Ao considerar o seminário como o lugar do encontro com Deus e consigo
mesmo, na realização da própria vocação, podemos reler, numa óptica formativa e
educativa, aquilo que expressou o Papa Bento XVI:
O seminário é tempo de caminho, de busca, mas sobretudo, de
descoberta de Cristo. De fato, à medida que se faz uma experiência de
Cristo, o jovem pode compreender verdadeiramente a sua vontade e
em consequência a própria vocação. Quanto mais conheceis Jesus,
tanto mais o seu ministério vos atrai; quanto mais o encontrais, tanto
mais estareis impulsionados a procurá-lo. É um movimento do espírito
que dura toda a vida e que encontra no seminário uma estação repleta
de promessas, a sua primavera14.
14
BENTO XVI, Aos seminaristas em Colônia, 19 de agosto de 2005.
24
Mas, em alguns seminários parece que o sujeito docibilis não é o objetivo
principal do projeto formativo. Há uma realidade histórica que se mantém e torna a casa
de formação como instituição global, total e disciplinar, determinada por alguns
operadores:
a técnica do enclaustramento: ingresso do seminarista num espaço
institucional fechado de controle; a tutela econômica: exclusão do
seminarista do mundo do trabalho profissional; o regime de internato:
onde se estabelecem mecanismos de controle sobre a organização dos
seminaristas e o panoptismo: mecanismos de controle institucional
que produzem comportamento adequado, medo, apatia e resignação15.
15
BENELLI, Análise psicossocial, p. 350.
16
BENELLI, (Análise psicossocial, p. 350), explica que o panoptismo se instala com suas
estratégias de vigilância hierárquica, sanção normalizadora e técnicas de exames variadas, ou
seja, mecanismos de controle institucional que produzem comportamento adequado, medo,
apatia e resignação.
17
CENCINI, A árvore da vida, p. 12.
18
CENCINI, A árvore da vida, p. 16.
25
antropologia que está subjacente aos modelos formativos e refletiremos sobre a
capacidade ou incapacidade de incutir perseverança e continuidade formativa na vida
de quem se sentiu chamado por Aquele “que não cessa de nos chamar em cada dia da
vida”19.
Aspectos antropológicos
Dificilmente uma pessoa que vivenciou o modelo da Perfeição vai continuar,
depois de alcançada a chancela para a ordenação, seu processo formativo. A perfeição
em si é de tal maneira e tão forte que leva o sujeito a exigir ferrenhamente a perfeição
no outro, na Igreja e na própria comunidade. É inviável a liberdade interior, ou seja, a
docibilitas, pois, a formação inicial, rígida e inflexível, contribuiu na constituição do
adulto amadurecido que está convencido que não há mais nada a fazer.
O ser perfeito traz um traço sincero no esforço e na boa vontade de conversão
devido à clareza e disciplina para alcançar a meta, o objetivo ideal: ser perfeito. Porém,
neste modelo da perfeição não há nenhum espaço para a liberdade interior, que
incentive realmente o ser humano a se transformar, a transcender e a ser docibilis. No
embate entre os aspectos positivos e negativos, é inviável ao modelo da Perfeição
19
CENCINI, A árvore da vida, p. 19.
20
CENCINI, A árvore da vida, p. 30.
26
corroborar na formação dos futuros presbíteros, além de não ser capaz de “presidir a
renovação pretendida pelo Concílio Vaticano II”21.
Se no modelo da Perfeição o sujeito busca, com seus esforços, alcançar o
máximo de si, vejamos os traços do modelo da Observância Comum e sua dimensão
coletiva.
Aspectos antropológicos
O deslocamento do eu individual para o tu abrirá portas à valorização do aspecto
relacional, na reflexão da motivação interna e da identidade do sujeito. Porém, até as
mudanças acontecerem, teremos um longo caminho a fazer, porque a busca da perfeição
ainda se impõe fortemente e protagoniza o cenário formativo e constitutivo da pessoa e
do grupo.
O aspecto antropológico deste modelo formativo concentra um mesmo ideal e
cumprimento das regras, com a força de ligar mutuamente e indistintamente os
21
CENCINI, A árvore da vida, p. 35.
27
integrantes do grupo, orientando o coletivo em detrimento aos percalços, cansaços e
feridas do indivíduo. O rosto do grupo representa a feição de cada sujeito que o compõe.
Existe um “medo da liberdade individual; ausência da formação da liberdade [... e,]
pouca coragem em sustentar as próprias ideias”22.
Ao visualizar o comportamento grupal, que deverá ser perfeito, as regras
ocupam o lugar da vivência e do cultivo espiritual, racionalizando e materializando todo
o processo formativo.
O modelo da Observância Comum se assemelha em alguns aspectos ao modelo
da Perfeição. Ambos modelos fizeram história no período anterior ao Concílio vaticano
II e, continuaram posteriormente ao Concílio Vaticano II, e perduram de forma implícita
nos processos educativos dos futuros presbíteros, apesar de se revelarem limitados,
principalmente no campo espiritual:
Parece que ainda não conseguimos produzir sistema de formação
capaz de responder aos seminaristas... Os seminários são muito
exigentes no exterior e não calam fundo na vida espiritual, ou carecem
de um sólido projeto de formação23.
Como se pode constatar, a busca pela perfeição leva a pessoa a valorizar somente o
externo e a vigiar o próprio comportamento diante dos outros, tornando o processo
educativo superficial, medíocre e sem crescimento individual.
Vejamos o modelo da Autorrealização que é posterior ao Concílio Vaticano II e
que se identifica pelo forte desejo de mudança que implica toda a Igreja.
22
CENCINI, A árvore da vida, p. 43.
23
MÉZERVILLE, Maturidade, v. 1, p.180-182.
28
Autorrealização que mergulha nas águas da mudança eclesial inaugura uma nova
estratégia formativa imbuída na esperança de um novo tempo:
O termo ‘auto-realização’ torna-se, muito depressa, uma espécie de
símbolo de alguma coisa estratégica e programática para significar um
novo período, um novo modo de conceber o acontecimento da
consagração, a própria humanidade e talvez a mesma fé. Presta-se
muito bem, portanto, para significar a mudança de perspectiva que
interveio na Igreja com o ...terremoto do Concílio Vaticano II e a sua
‘virada antropológica’24.
Aspectos antropológicos
Na medida em que centralizamos a autorrealização como cume da própria
satisfação e autoestima, naturalmente damos uma importância maior em desenvolver os
próprios talentos. Ao enfatizar o desenvolvimento e ampliação desses talentos,
desconsidera-se que eles são princípio e limitação do ser humano, eles são colocados
como o “aspecto mais relevante da própria identidade”25.
Ao nos referir à formação dos futuros presbíteros estamos em meio a pessoas
que fizeram uma escolha, dentre muitas outras. Cencini aponta esta escolha vocacional
24
CENCINI, A árvore da vida, p. 56.
25
CENCINI, A árvore da vida, p. 60.
29
que é feita a partir dos talentos pessoais. Em outras palavras, o talento funciona como
uma trave nos olhos, impedindo o sujeito de ver outros horizontes, e nesse ponto, a
escolha vocacional não passa de um subjetivismo pautado nos talentos que o sujeito
possui.
A realização pessoal exige empenhos e sacrifícios por parte das pessoas que
automaticamente dependem dos outros para a promoverem. É um ciclo que visa aos
sucessos e aos resultados positivos, e Cencini coloca que “o modelo da Auto-realização
tem o poder de distorcer a percepção do futuro e criar expectativas irreais, nas quais,
obviamente não haverá lugar para os insucessos”26. O modelo da Autorrealização não
leva a nenhuma realização concreta.
Neste modelo, há uma visível impossibilidade do ser docibilis, visto que
encontramos um vazio que reduz a formação a interesses pessoais. O modelo em
questão traz em sua essência certa instabilidade, que impede o sujeito de se conhecer
substancialmente. Desta forma, “acaba sendo descaminho em relação ao ideal
sacerdotal-religioso”27.
Se o modelo da Autorrealização evidencia os aspectos mais positivos e explora
as qualidades mais notáveis do sujeito, analisemos o modelo da Autoaceitação e a sua
total acolhida dos aspectos negativos do sujeito em sua inteira realidade.
26
CENCINI, A árvore da vida, p. 63.
27
CENCINI, A árvore da vida, p. 73.
30
superação daquilo que nos torna frágeis. A formação avalia este aspecto, que segundo
Cencini, não está em considerar somente aquilo que é “positivo da dignidade
humana”28, o que se considera na sociedade hodierna, mas em perceber-se como pessoa
nos traços que constituem a personalidade, sejam negativos ou não.
Dentro da lógica acima, o autor aponta outro aspecto da autoaceitação. Uma
deformação desse processo ocorre quando o objetivo central das pessoas é estar,
subjetivamente, mais tranquilas e em paz consigo mesmas. Analisemos, pois, os
aspectos antropológicos do modelo da Autoaceitação.
Aspectos antropológicos
O processo formativo que as pessoas perfazem em uma fase educativa pode
contribuir ou não com a busca do conhecimento de si, e no caso do modelo em questão,
Cencini apresenta alguns enganos que se escondem por trás da autoaceitação como
modelo de formação.
O autor salienta que a autoaceitação está na condição de intermediária na etapa
formativa e não representa a etapa final desse processo, visto que não contribui para
maiores mudanças significativas. Este modelo visa a conhecer-se no decorrer do
processo de formação, e por isso, é dito como intermediário.
O modelo da Autoaceitação se impõe no decorrer do processo formativo,
inclusive na dimensão espiritual, onde a “auto-aceitação é confundida com a humildade
autêntica, com o abandono e a entrega de si nas mãos de Deus”29. Esta falsa visão de
que aceitar-se resolve todos os problemas, acaba por encobrir o que de fato é a
autoaceitação: um período inicial que nos abre a um verdadeiro caminho de
desenvolvimento humano integral.
A formação permanente torna-se indispensável para que os futuros presbíteros
formados nos seminários tenham condições de responder aos questionamentos de uma
sociedade urbana e pós-moderna. O modelo da Autoaceitação não oferece uma
perspectiva de formação que seja capaz de colocar nas mãos dos formandos os
instrumentos favoráveis, afim de que possam responder ao contexto em que estão.
Na pesquisa feita por Benelli constatamos que o processo formativo no
seminário preocupa-se com a “identidade sacerdotal” e não consegue formar o sujeito
pós-moderno, que seja capaz de dar conta da sociedade pós-moderna:
28
CENCINI, A árvore da vida, p. 77.
29
CENCINI, A árvore da vida, p. 81.
31
O seminário funciona como uma máquina para produzir uma
“identidade sacerdotal” nos seminaristas, conforme se pode ler nos
documentos oficiais o sentido dos enunciados: “plasmar”, “formar”,
“modelar”, “inculcar”. Mas isso não cola, dizem os seminaristas, que
resistem ao processo de codificação, de modelagem30.
Aspectos antropológicos
O Módulo Único prioriza e enfatiza algumas dimensões do processo formativo
particularmente ligados aos aspectos antropológicos que podem ser averiguados no
nosso contexto atual. Esses são os aspectos priorizados pelo módulo único: o
30
BENELLI, Pescadores de homens, p. 298.
31
CENCINI, A árvore da vida, p. 90.
32
espiritualismo, voluntarismo, pietismo, liturgismo, intelectualismo, psicologismo,
experiencialismo e o subjetivismo.
O último modelo que o autor apresenta é o mais adequado para a formação:
modelo da integração.
32
CENCINI, A árvore da vida, p. 179.
33
CENCINI, A árvore da vida, p. 164.
33
proposta dos pesquisadores e das “Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja
no Brasil” pedem muito mais que um simples conhecimento.
As “Diretrizes para a formação dos presbíteros da Igreja no Brasil” sublinham
cinco dimensões da formação que deveriam ser desenvolvidas no processo formativo: a
humano-afetiva, a comunitária, a espiritual, a pastoral-missionária e a intelectual. O
Documento salienta que a atenção à dimensão intelectual é uma “questão de fidelidade a
Deus, fidelidade ao seu povo, fidelidade a si mesmo, e um modo singular de viver o
discipulado”.34 Em vista disso, o documento convoca a todos os seminários para que
haja neles um formador que cuide pessoalmente desta dimensão da formação
presbiteral.
A dimensão intelectual está acima da pura aquisição de conhecimento. O
conhecer não significa pensar, analisar ou sintetizar. Infelizmente, o saber em nossa
cultura, como pesquisou João Batista Libanio, “transforma-se em possuir a maior
abundancia possível de conhecimentos”35. Lembramos o problema do intelectualismo
acima apontado no modelo do módulo único; existe o perigo de informações
fragmentadas, com um material que esclarece, porém, não dá aptidão, e da parte de
alguns formandos, verifica-se escasso esforço em pensar e compreender, que se encaixa
nos programas de busca da internet.
Quando a formação não viabiliza o processo interdisciplinar, que possa conjugar
e envolver a participação dos estudantes em palestras, onde se tenha a oportunidade de
trabalhar temas da atualidade e geopolítica, teremos uma formação aquém da sociedade
e das provocações que ela traz.
A dimensão intelectual, a partir da análise das “Diretrizes para a formação dos
presbíteros da Igreja no Brasil”, apresenta orientações específicas para os estudos
teológicos e filosóficos. Apesar de haver liberdade na organização, permanece o
requisito de manutenção das mínimas exigências que são obrigatórias, como
dois anos de curso filosófico e quatro anos de curso teológico estudos
literários e/ou científicos complementares no período propedêutico e
ao longo do currículo filosófico-teológico; curso introdutório ao
ministério de Cristo (OT 14; RFIS 62) e avaliações que verifiquem o
processo de aprendizagem36.
34
CNBB, Diretrizes para a formação, p. 191.
35
LIBANIO, A arte de formar-se, p. 33.
36
CNBB, Diretrizes para a formação, p. 196.
34
Os seminários constituem o lugar onde poderemos manter o propósito principal
do Concílio, que ultrapassa o fato de incluir simplesmente, na grade curricular, aulas de
matemática e português, o que metodologicamente não seria cabível. Busca-se agora
transformações criativas nas várias dimensões formativas das instituições eclesiais,
permitindo a promoção de um crescimento mais integrado e ecumênico.
37
MÉZERVILLE, A formação, v. I, p. 32-33.
38
DOCUMENTO de Aparecida, n.479.
35
lhes o caminho que conduz a seu amadurecimento”39. O formador promove aos seus
discípulos momentos de convivência, acompanha atento e com a ajuda de uma equipe
bem preparada o desenvolvimento de cada formando.
Ao analisar os documentos eclesiais, antigos e recentes, sobre a formação do
presbítero, nos deparamos com características que definem a maturidade humana cristã
e ministerial dos formadores religiosos (ou diocesanos), e na pesquisa realizada por
Mézerville, podemos enumerar algumas delas:
compreender os seminaristas e ter capacidade de resposta no plano
pessoal; ter um conhecimento de Deus baseado em experiência vital
de relacionamento com ele na oração; verdadeira sabedoria como
resultado da escuta atenta e prolongada da Palavra de Deus; genuíno
amor à liturgia, acompanhado de verdadeira compreensão do papel
que ela desempenha na formação espiritual e eclesial; preparação
acadêmica oportuna para se ter desempenho excelente no plano de
ensino; adequada organização que permita dispor do tempo suficiente
e da boa vontade requerida para atender aos seminaristas
individualmente e não apenas no plano grupal40.
39
MÉZERVILLE, A formação, v. I, p. 230.
40
MÉZERVILLE, A formação, v. I, p. 234-241.
41
COZZENS, A face mutante, p. 37
36
A instituição oferece privilégios aos seminaristas: casa, comida e formação
acadêmica, sem que eles tenham que trabalhar para obtê-las, porém, se renuncia à
liberdade e autonomia, “aceitando uma adolescência tutelada e excessivamente
longa”42. O que se coloca por trás dessa troca é justamente uma barganha entre a Igreja,
que oferece os privilégios, e o seminarista, que doa seu tempo, sua liberdade e sua
juventude. Desta forma,
vai se instilando em sua mente o estilo clerical da boa vida
eclesiástica, arcada por um status social automático e por uma série de
privilégios acessórios, além do poder de mando43.
Sobre o poder clerical, Comblin explicita de forma notável seu sentido em meio
ao povo:
O poder do clero não se exerce como outros poderes. Não é brutal
como o militar. Não é insensível como o poder da burocracia. É um
poder de sedução, de pressão, de sugestão; um poder que exerce mais
pela presença, por sinais discretos, acompanhados de boas palavras
encorajadoras44.
42
BENELLI, Análise psicossocial, p. 311.
43
BENELLI, Análise psicossocial, p. 311.
44
COMBLIN, Olhando pra o horizonte, p. 831-857.
45
CNBB, Diretrizes para a formação, p. 143.
37
3 APROFUNDAMENTO DO MODELO BÍBLICO DO PASTOR
Em toda a Bíblia a figura do pastor permeia a história do povo que está sob o
cuidado e a atenção de alguém. Os pequenos pastores das famílias patriarcais que
inicialmente cuidavam dos rebanhos, esboçam a configuração dos reis que deveriam
cuidar do povo, tendo em vista os mandamentos do Senhor. Esses mandamentos
esboçam os traços desse ofício, e exorta a comunidade que para ser pastor do povo
deverá passar pelo crivo do Senhor que sempre manifesta seu amor e sua fidelidade
sempre.
O Senhor Yahweh é o pastor por excelência de seu povo, como mostra a Bíblia
nos escritos proféticos. Os relatos sobre o pastoreio do Senhor fortalecem a esperança
do povo que vive a escuridão da ambição de suas autoridades. Os escritos salientam
verdadeiras mudanças na vida do povo, como também anunciam castigos para aqueles
que foram falsos pastores.
Vejamos que esta imagem simples e aparentemente sem valor elucida uma
simbologia que vai além dos horizontes do campo e do rebanho, porque enfatiza a
íntima relação da ovelha e o seu pastor. Estão inseridos em âmbito existencial e
também, eclesial. A metáfora do pastor nos convida a fazer o trajeto bíblico, que esboça
a trama da vida e a tecedura das narrativas do Antigo e Novo Testamento. E ao
mergulhar no sentido mais profundo do ser pastor, veremos que Jesus Cristo – que é a
imagem do Pai – é o pastor por excelência. Vamos citar as passagens do texto da Bíblia
de Jerusalém.
38
Ser pastor significava correr riscos, principalmente se o rebanho fosse grande. A
tarefa do pastoreio parecia ser simples, resumindo-se em buscar pastos e água, mas
exigia atenção, paciência e muitas vezes coragem. O trabalho poderia trazer benefícios,
mas também prejuízos, caso algum animal fosse arrebatado por ladrões ou feras. Ex 22,
9-12 determinava que o pastor era obrigado a ressarcir o proprietário caso um animal
fosse roubado. No caso de ataques de animais ferozes, ele tinha que dar provas ao dono
do rebanho, levando-lhe o animal dilacerado, mas era tarefa ainda mais arriscada e
praticamente impossível.
A defesa do rebanho exigia do pastor astúcia e perspicácia. Somente o cajado
não lhe servia de garantia contra roubos ou ataques, era necessário ter boa visão do
terreno e vigilância constante. Assim, como é uma tarefa que exige amor e cuidado, a
alegoria do pastoreio é colocada na compreensão de Yahweh como pastor que cuida,
apascenta e acompanha seu povo. Esta aplicação do pastoreio de Yahweh encontramos
no Sl 23: “Yahweh é meu pastor, nada me falta”; e nos oráculos dos profetas: Jr 23, 1-4,
“Vós dispersastes as minhas ovelhas, as expulsastes e não cuidastes delas”; Ez 34,11,
“visto que o meu rebanho é objeto de saque...” e Zc 11,4-7, “Eu tomei para mim dois
bastões, [...] e apascentei as ovelhas”.
O Sl 23 e os livros proféticos citados acima mostram dois aspectos da categoria
do Senhor como pastor de seu povo. No Sl 23 analisamos as imagens de “verdes
pastagens”; “águas tranquilas” que salientam um local de paz e conforto para onde o
Senhor conduz, e a expressão “restaura as minhas forças” enfatiza a solicitude do
Senhor em restaurar e cuidar de seu povo. O outro aspecto que encontramos nos
profetas mostra também o cuidado do Senhor para com o seu povo, mas a alegoria do
pastor ganha uma roupagem ameaçadora, contra a injustiça e os desmandos das
autoridades locais.
Entretanto, apesar das denúncias e ameaças nos oráculos, a profecia de Ezequiel
34, 14-15 assemelha-se à paz e à tranquilidade descritas no Sl 23:
14
Apascentá-las-ei em um bom pasto, sobre os altos montes de Israel
terão as suas pastagens. Aí repousarão em um bom pasto [...] 15 Eu
mesmo apascentarei o meu rebanho, eu mesmo lhe darei repouso,
oráculo do Senhor (Ez 34, 14-15).
39
O sentido simbólico do rei de Israel como pastor traz no bojo das narrativas uma
mistura de cuidado e desmandos por parte da realeza. No livro dos Nm 27,17 aparece a
expressão na boca de Moisés: “para que a comunidade de Yahweh não seja como um
rebanho sem pastor”, e esboça uma situação do povo em relação aos seus governantes.
Neste aspecto também observamos a ambiguidade desse título que sai das margens da
figura simplesmente pastoril para ganhar um título real e exercer seu poder. A realeza
em Israel mostrou seu fracasso no cuidado com o povo, e na categoria de pastor,
comportaram-se como mercenários e ladrões do seu próprio rebanho.
Dessa forma, a primeira parte deste capítulo analisará a história dos primeiros
reis de Israel, de Saul e Davi, em 1Sm 16-17, 1-54; a narrativa de 2Sm 12, 1-10 que
mostra a ação dos profetas da corte; as contradições da realeza de Salomão em 1Rs 11-
12, e as denúncias na voz dos profetas: Elias 1Rs 20-21 e Miqueias 1Rs 22,13-28 no
reinado de Acab. Na compreensão do que é a figura do pastor que permeia grande parte
da narrativa bíblica, a segunda parte selecionará a ação de alguns profetas contra os
falsos pastores, na narrativa de Jeremias (2,8; 10,21; 23, 1-3) e em Ezequiel 34, e neste
plano, colher as informações que mostram o sentido messiânico presente na figura do
pastor. Não nos deteremos na análise narrativa do texto em si, mas abordaremos a
intenção do redator em citar o comportamento dos reis e as denúncias proféticas contra
a monarquia.
1
ROMER et al., Antigo Testamento, p. 355.
40
Davi, (da tribo de Judá), e a intenção do autor é fazer com que o leitor interprete “o
conjunto de seus respectivos reinados à luz dessa oposição fundamental e inteiramente
constitutiva”2.
O trabalho redacional do deuteronomista mostra o papel do profeta no confronto
com os reis e acentua o comportamento desses reis frente aos mandamentos de Yahweh.
A realeza é vista com plena desconfiança visto que “a existência de um rei humano está
claramente em tensão com a realeza de Yhwh, [...] e é apresentada como significando a
recusa da realeza de Yhwh”3. A realeza é aceita sob a condição de que o próprio
Yahweh escolha o rei, e este esteja com o seu coração inteiramente voltado para
Yahweh e o povo (Dt 17,14-20).
Os profetas e reis protagonizam a narrativa do deuteronomista, mas o redator
sabe o final da história, assim como o leitor implícito. A realeza culmina no exílio e na
destruição de Jerusalém, e já em 1Sm temos uma nota do motivo dessa destruição:
Se temerdes a Yahweh e o servirdes, se lhes odebecerdes e não vos
opuserdes ao que ele disser, se todos vós e o rei que reina sobre vós
seguirdes a Yahweh vosso Deus, então tudo irá bem! Mas se não
obedecerdes a Yahweh, se vos revoltardes contra a sua vontade, então
a mão de Yahweh pesará sobre vós e sobre o vosso rei (1Sm 11-12).
2
ROMER et al., Antigo Testamento, p. 338-339.
3
ROMER et al., Antigo Testamento, p. 356.
41
A Historiografia Deuteronomista, na qual se insere o Primeiro Livro de Samuel,
foi escrita durante o exílio da Babilônia, e o autor implícito nessa obra demonstra
profundo conhecimento das tradições de Israel e da Teologia da Aliança4. O objetivo
central dessa obra é apontar o fracasso dos líderes, ou seja, dos reis— que foram os
principais responsáveis pelo exílio do povo. Acreditava-se que Deus se utilizava da
Babilônia para castigar o povo devido ao esquecimento da Lei (Jr 25).
No Primeiro Livro de Samuel sublinha-se, inicialmente, a rejeição do Senhor a
Saul, rei de Israel. As primeiras linhas enfatizam que o Senhor não está mais com Saul e
pede ao vidente Samuel (1Sm 9,11) que unja outra pessoa da casa de Jessé para a
função de rei. Veremos no texto que o menor dos filhos de Jessé será escolhido, para
espanto de Samuel. As aparências enganam o profeta-juiz, como também os
destinatários do texto!
Inicialmente Saul aparece como um líder corajoso contra as ameaças dos
amonitas (1Sm 11,15). No livro de Samuel temos outras narrativas que descrevem o
processo da escolha do novo líder. Em meio ao medo e às expectativas do povo, Saul é
escolhido e ungido por Samuel (1Sm 10,1). Ele é proclamado rei de Israel por Samuel,a
seu promotor e guia.
Podemos perceber que o autor deuteronomista deixa claro que Saul não se
submete à Lei do Senhor, e levando em consideração a situação do leitor implícito, ou
seja, o exilado, isso é muito grave, porque o limite do rei é o mandamento de Deus.
Constatamos também, nas entrelinhas do fracasso de Saul, o autor preparando a cena
para a unção de Davi como rei.
O início da realeza em Israel elucida a situação do povo que estava como
“ovelhas sem pastor” quando os líderes ficavam em falta ou quando o povo estava
confuso (Nm 27,17; 1Rs 22,17; Ez 34,5; 2Cr 18,16).
A unção de Davi como rei de Israel se dá durante uma refeição. Simbolicamente,
a refeição na tradição israelita é o aperitivo para um grande acontecimento de salvação
(Ex 12,8). Podemos pensar na esperança dos exilados porque o Senhor não escolheu o
mais forte, e sim, o mais fraco entre os filhos de Jessé, e poderá fazê-lo novamente entre
o povo aniquilado na Babilônia que se encontra perdido e enfraquecido.
A Obra Historiográfica Deuteronomista elenca alguns quesitos para ser rei: a
escolha é feita por Deus; aclamação vinda do povo; sincera submissão do rei à Lei de
4
KONINGS, A Bíblia, p. 54.
42
Deus5. Percebe-se que o autor insiste nos mesmos assuntos muitas vezes, porque sua
mensagem deveria ser bem fixada pelos exilados, que estavam naquela situação por
causa dos desmandos e desobediências dos reis a Deus.
O texto salienta a maneira errônea de como o sistema monárquico começou.
Saul, inexperiente, demonstra nas intenções obscuras de suas ações, que o rei é capaz de
mandar e desmandar, fazer o que quer e esquecer que Deus está acima dele. Com Davi,
encontramos a tranquilidade de que o povo precisava – um rei que verdadeiramente
saiba qual é era o seu lugar na história. Ocupando o trono, o rei não está no lugar de
Deus, mas a serviço do povo, para que cumpra a Lei. Mas, por outro lado, Davi também
age em favor de seus interesses.
A parábola do profeta Natã caracteriza-se como uma forte repreensão à conduta
de Davi. Se outrora Natã lhe anunciou a promessa dinástica, agora pronuncia-lhe uma
condenação em nome de Yahweh. Natã era um dos profetas da corte, que ficavam bem
próximos ao rei. Com o tempo foram, pouco a pouco, afastados da corte devido ao
incômodo que causavam com suas denúncias.
O exemplo da parábola que apresenta os antônimos “rico e pobre” recorda duas
categorias valorizadas pela Bíblia, onde o pobre está sempre em desvantagem na relação
com o rico. Vejamos: “Havia dois homens da mesma cidade, um rico e o outro pobre”
(2Sm 12,1). O recente rei se encolerizou com o homem da história, não percebe que o
autor do crime é ele mesmo. A palavra de Yahweh, na boca de Natã, o chama à
responsabilidade, e alude a uma realidade de desmandos que se fará presente entre os
pastores de Israel: “Esse homem és tu!...” O que Natã faz ao contar a parábola é esboçar
o contexto da atitude de Davi em aproveitar-se do poder que tinha para ter vantagem em
seus interesses. Diante dessa escolha, a “promessa dinástica [anunciada por Natã em
7,16] toma aqui um complemento terrível: desgraça, como resposta ao malfeito de
Davi”6: “Agora, a espada não mais se apartará da tua casa, porquanto me desprezaste e
tomaste a mulher de Urias, o heteu, para que ela se tornasse tua mulher”(12,10).
Entre os reis e os profetas presenciaremos alguns conflitos que sempre estarão
na linha da justiça e do direito do povo. As tradições de Samuel mostram que os
profetas próximos aos reis não pouparam suas críticas e denúncias, como por exemplo,
5
STORNIOLO, Como ler livro, p. 30
6
ALONSO-SCHOEKEL, L. Biblia do Peregrino, p. 605-606.
43
do próprio Samuel que elegeu Saul, mas é o primeiro a condená-lo (1Sm 15); e a
coragem de Natã diante de Davi.
Desta forma, será possível analisar as narrativas 1Rs 11, 1Rs 21, 1-16 e 2Rs 21,
onde a conduta dos reis Salomão, Acab e Manassés são caracterizadas pelos desmandos
da casa real em relação ao povo e ao descumprimento dos mandamentos de Yahweh.
7
ALONSO-SCHOEKEL, L. Biblia do Peregrino, p. 666.
44
40)8, são interpretados pelo autor como castigo de Yahweh pela sua desobediência
(11,14).
8
ALONSO-SCHOEKEL, L. Bíblia do Peregrino, p. 666.
9
SICRE DIAS, Profetismo, p.75.
10
SICRE DIAS, Profetismo, p . 76.
11
SICRE DIAS, Profetismo, p.78.
45
seguida, a narrativa mostra a missão do profeta Miqueias na corte de Acab, e prediz o
seu fracasso na batalha anunciada.
No diálogo entre Miqueias e o rei Acab vemos a missão do profeta como porta-
voz de Deus em meio às adversidades. O rei, considerado pastor de seu povo, conta com
o profeta, mas não acredita no que ele lhe diz. E quando Miqueias diz a verdade, ele
enfrenta perseguições e dificuldades devido às palavras proferidas.
As palavras de Miqueias ao rei no v. 17: “Eu vi todo Israel disperso pelas
montanhas como um rebanho sem pastor” retomam o livro dos Números onde Moisés
pede a Yahweh que estabeleça na comunidade de Israel um homem, para que o povo
não seja como um rebanho sem pastor (Nm 27,17). É a primeira vez que uma citação
mostra a figura do pastor ligado às lideranças do povo, e na narrativa dos Reis, o profeta
Miqueias anuncia que o rei não voltará são e salvo da batalha, e por isso, ele suporta a
agressão e a prisão com água e pães escassos (24.27).
Na profecia constatamos uma transição que será a marca principal dos profetas.
Por parte de Samuel, Natã, Aías de Silo e Elias, o texto se firma no propósito de
denunciar as posturas errôneas dos reis: “profetas e reis foram contemporâneos, mas
inimigos declarados, sem meias palavras”12. Os profetas surgem com a dura realidade
da estrutura monárquica, juntamente com a idolatria, que sustentava e justificava o
poder dos reis pastores. Vejamos a atuação dos profetas posteriores, nas profecias de
Jeremias, Ezequiel e Zacarias.
12
MOSCONI, Profetas da Bíblia, p. 27.
46
expressava numa confiança fetichista no Templo. Devido a isto, Jeremias sofreu as
piores incompreensões e ironias (15,10).
Os profetas têm em comum um conhecimento profundo da Lei e a certeza de
que a verdadeira fidelidade a Yahweh consiste em praticar a justiça, principalmente para
com os pobres. A missão dos profetas Jeremias e Ezequiel encontra um ponto em
comum quando se trata de lembrar o povo os caminhos do Senhor. E neste aspecto, a
monarquia compactuada com a religião do Templo, prova o abandono sistemático de
Yahweh, e o rei é o pivô desse afastamento, visto que se utiliza da religião para
legitimar seus desmandos.
A situação política de Israel descrita nos escritos proféticos mostra que o frágil
reino se encontra submetido aos impérios da época (Ez 24,2), e narram também a
maneira como os reis exercem seu pastoreio. A profecia de Ezequiel sublinha a situação
do povo que ficou à mercê dos crimes cometidos pelos pastores de Israel:
Pastores, assim diz o Senhor Iahweh: Ai dos pastores de Israel que se
apascentam a si mesmos! Não devem os pastores apascentar o seu
rebanho? Vós vos alimentais com leite, vos vestis de lã e sacrificais as
ovelhas mais gordas, mas não apascentais o rebanho! Não restaurastes
o vigor das ovelhas abatidas, não curastes o que está doente, não
tratastes a ferida da que sofreu fratura, não reconduzistes a desgarrada,
não buscastes a perdida, mas dominastes sobre elas com dureza e
violência (Ez 34, 1-4).
47
3.1.6 O caráter régio e messiânico do vocábulo pastor
13
BAUER, Messias, v. II, p.689.
14
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 72.
48
segundo as narrativas posteriores, “Fizeram o mal aos olhos de Yahweh”: 2Rs 23,31-
25,30..
Inicialmente temos a presença dos profetas que estão junto aos reis. Por vezes
estas figuras confrontam a realeza e participam das sucessões reais e, alguns
personagens, não aparecem nos profetas posteriores, com exceção de “Isaías (2Rs 18-20
que é retomado em Ez 36-38), e Jonas ben Amitai em 2Rs 14,25 (cujo nome é retomado
pelo autor do livro de Jonas)”15. Outros profetas deixam sua marca na redação
deuteronomista como: Aías de Silo (1Rs 11,19-40; 14,1-18), Miqueias (1Rs 22,5-28),
Elias (1Rs 17-19; 21; 2Rs 1-2) e Eliseu (1Rs 19,19-21; 2Rs 2-9 e 13, 14-21) e a
profetiza Hulda (2Rs 22, 14-20). Estes
O olhar do redator sobre a história dos reis de Israel e Judá é moralizante e traz
em sua estrutura uma relação profunda com a Lei. Obedecer a Yahweh é a principal
característica para ser bom pastor, e a maneira como os dirigentes foram irresponsáveis
em sua conduta, comprova o desamor para com o povo, e também, para com o próprio
Deus, que é, por excelência, Pastor de Israel.
15
ROMER et al., Antigo Testamento, p. 371.
49
3.2 O pastoreio nas comunidades do Novo Testamento
A maior parte dos textos do Novo Testamento, com algumas poucas exceções,
não nos apresenta o termo pastor referindo-se diretamente a um ministério eclesial. As
primeiras comunidades buscavam se organizar no aspecto ministerial. A multiplicidade
de escritos do Novo Testamento que indicam os ministérios, nos mostra que “um
pluralismo na prática ministerial é perfeitamente explicável pela distância geográfica
entre as comunidades e por sua diversa origem, seja judeu-cristã, seja helenístico-
cristã”16.
16
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 75.
17
ALMEIDA, O ministério dos presbíteros, p. 17.
18
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 76.
50
Os testemunhos que lemos sobre os ministérios nos apontam atividades que são
desempenhadas por pessoas bem definidas, como exemplo temos 1Cor, 16, 15-16 onde
Paulo pede muito respeito à família de Estéfanos, em Acaia, pois se afadigaram e
colaboraram com o serviço (diakonía) na mesma obra. Por outro lado, esta atividade
ministerial não é descrita em pormenores, mas vemos que, por estas pessoas, Paulo tem
especial carinho, como em 1 Ts 5,12-13, onde ele pede para tratar com respeito e
caridade aqueles que presidem e repreendem a comunidade.
Na carta aos Romanos, Paulo intercede por Febe, diaconisa da Igreja de
Cencreia, e pede à comunidade “para que a recebais no Senhor de modo digno, como
convém a santos” (Rm 16,1-2). Na primeira carta aos tessalonicenses, Paulo exorta a
comunidade para que “tenhais consideração para com aqueles que entre vós labutam,
velam por vós no Senhor e vos repreendem...”(5,12). O Apóstolo zela pela paz entre as
pessoas (v.13) e faz um apelo à comunidade, para que se tenham estas pessoas em alta
estima, por causa do trabalho que realizam. Na carta aos Filipenses (1,1) Paulo saúda
aos epíscopos e diáconos que estão na Igreja de Filipos.
As Igrejas locais descritas nas cartas paulinas mostram também o papel do
delegado, como Tito, em 2Cor 8,6-23 e 12, 17-18, era responsável em recolher ajuda
para a Igreja de Jerusalém. Qual era a função do delegado? Provavelmente não era
alguém que presidia, mas tinha uma missão, mas não temos pistas nas Escrituras para
definir bem o seu papel. Paulo, em 1Cor 16,3 pede à Igreja de Corinto que escolha seus
delegados, e em 2Cor 8,22-23, exorta às Igrejas que recebam os delegados vindos de
outras comunidades.
Encontramos nas cartas paulinas a presença de pessoas que eram colaboradores
de Paulo. Em 1Cor 3,5 nos deparamos com a figura de Apolo, e Paulo escreve que
ambos servidores e cooperadores do Senhor (1Cor 3,9) , agiram de acordo com os dons
recebidos. A carta aos coríntios nos revela muitos problemas dentro da comunidade, e
mais à frente (1Cor 9,6), num discurso apologético (1Cor 9,3), vemos a figura de
Barnabé, como colaborador de Paulo, dentro de um conflito na comunidade.
Na Primeira Carta aos Coríntios constatamos certa preocupação do apóstolo com
a paz e a concórdia dentro da comunidade: “Não haja divisões entre vós; sede bem
unidos num mesmo espírito e num mesmo pensamento”(1,10). Entre as diversas
discussões sobre vários assuntos em Corinto, Paulo preocupa-se também com a
pluralidade de carismas presente nos membros da comunidade, o que o leva a escrever,
no capítulo 12, sobre a diversidade dos membros e a unidade do corpo. No v.27 Paulo
51
afirma que a comunidade é o corpo de Cristo e são também os membros, e em seguida,
ordena os dons que Deus dispõe em uma ordem de importância:
Paulo distingue carismas maiores e menores. Em toda a abundância e
diversidade de carismas não reina a anarquia espiritual, mas a ordem.
Primeiro os apóstolos (os mais importantes), depois os profetas, então
os doutores e assim por diante. No final estão os pastores e dirigentes.
Todos os carismas devem ser levados à plenitude pelo amor. O amor
os mede, ordena, leva a servirem e a submeterem-se uns aos outros.
Sem amor nenhum carisma tem valor19.
19
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 89.
20
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 76.
21
GONZÁLEZ FAUS, Hombres de la comunidad, p. 30
52
Vejamos a seguir que a Igreja mostra que a figura do bom pastor refletirá a
missão apostólica desta liderança comunitária, em meio aos desafios e perigos que as
comunidades enfrentam.
53
a ovelha mostram a vontade do Pai em relação às pessoas, e fundamentam a pastoral
eclesial no seio destas primeiras comunidades.
O texto de Mateus é uma verdadeira instrução à comunidade cristã; seu tema
esboça a fragilidade dos pequenos e necessitados. A metáfora da ovelha perdida e do
pastor que, mesmo tendo um farto rebanho, a procura e a traz de volta, ilustra a
prioridade do serviço e do cuidado que também aparece no profeta Ezequiel, no capítulo
34; é, por outro lado, uma forte menção de que Deus não quer a morte do pecador, como
lemos em Ez 18, 32. O pastor está atento e é a figura das lideranças à frente dessas
comunidades.
Em Lucas, a parábola da ovelha perdida está entremeada por outras parábolas
que denotam o mesmo sentido: a moeda perdida e o filho pródigo. Esta narrativa
incorpora imagens de festa e alegria entre os vizinhos, que são reunidos para comemorar
o encontro daquela ovelha. Temos nestas narrativas um cunho eclesial que, além de
revelar a vontade de Deus, mostra a característica principal do pastor: não perder
nenhuma de suas ovelhas.
Outra imagem da ovelha está no episodio da mulher cananeia Jesus afirma em
bom tom que foi “enviado somente às ovelhas perdidas da Casa de Israel”. Sem adentrar
na exegese do diálogo entre Jesus e a mulher no texto, vamos perceber que Israel, de
acordo com o autor, está como “ovelhas perdidas”. Em Mt 7,15 a aparência de ovelha
serve de disfarce para os falsos profetas: a lã da ovelha disfarça a personalidade do lobo
voraz debaixo da pele, e chama atenção das comunidades em relação às lideranças.
Paulo, na carta aos Romanos (Rm 8,36), exorta a comunidade ao citar o Sl 44,
exemplificando às pessoas que, na situação de perseguição estão como ovelhas levadas
para o matadouro. As comunidades são vistas como vencedoras nestas circunstâncias
graças ao amor de Deus revelado em Jesus Cristo.
O pastoreio era comum naquela região, mas para o autor, o tema adquire
profundidade na boca de Jesus porque ele diz que o pastor “dá a vida pelas suas
ovelhas” (Jo 10,11), e ainda revela que a fonte desse amor capaz de doar a própria vida
vem do Pai. Então, num contraponto com as autoridades do tempo de Jesus, cujo poder
o levou a ser crucificado, a comunidade cristã joanina continua a enfrentar seus
opositores. O discurso de Jesus se situa num contexto comum à maioria das pessoas da
região onde ele morava, mas para a comunidade no ano 90, que acredita que Jesus é o
Messias, esse discurso de João tem outro sabor. Há uma recusa evidente de qualquer
outro que se ponha no lugar do verdadeiro Pastor. Está implícita nessa narrativa a
questão do seguimento da comunidade, ou seja, dos destinatários do texto.
A narrativa central que engloba o discurso do bom pastor (10,1-18) está situada
dentro de um quadro histórico de localização que o autor nos apresenta no v. 22:
“Celebrava-se em Jerusalém a festa da dedicação do templo”. A festa da dedicação do
templo celebrava uma nova consagração do lugar santo, que fora profanado pelos
gregos23. Estes detalhes que o autor revela mostram que as palavras de Jesus no discurso
do pastor provocam uma nova discussão, como vemos no v. 19. E no v. 24, a pergunta
feita pelos judeus “Até quando nos deixará em dúvida? Se tu és o Cristo, dize-nos
22
BRUCE, João, p.194.
23
BLANK, O Evangelho segundo João, I, p 220
55
abertamente”, elucida que o discurso do bom pastor tem um caráter messiânico. Jesus
responde-lhes no v. 25: “As obras que eu faço em nome de meu Pai, elas é que
testemunham a respeito de mim. Mas vós não credes, porque não sois minhas ovellhas”.
Ao aprofundar o tema do pastor, encontramos Jesus Messias Pastor que “dá a vida pelas
suas ovelhas”:
É impossível ler Jo 10,11 sem lembrar-se das profecias que
apresentam o Messias como pastor. A Bíblia nasceu num povo
enraizado na vida pastoril. Deus é pastor (Gn 49,24; Sl 23; 78, 52-53;
95,7 etc.) Os patriarcas são pastores. Moisés (Ex 3,1), Davi (1Sm 16),
Amós (1,1) são chamados por Deus enquanto conduzem os rebanhos.
“Pastor”é um título do rei (também dos reis que abandonam o povo:
1Rs 22,17; Jr 10,21; 23, 1-2; Zc 11. Especialmente Ez 34 serve de
pano de fundo para Jo 10; o pastor futuro messiânico. Este texto
denuncia o descaso dos pastores malvados ( 34, 5-6) e anuncia que
Deus mesmo assumirá o pastoreio de seu povo (34, 11-16)24.
O texto sinaliza no início10,7-10 que Jesus diz ser a porta do redil e salienta
depois, 10,11-13, aquele que trabalha visando somente ao dinheiro. Este demonstra sua
imaturidade, deixando as ovelhas em perigo e à mercê da rapinagem, porque
simplesmente não se importa. Jesus se intitula o Bom Pastor, conhece as ovelhas e
revela que quem o enviou como pastor, conhece as ovelhas também. Jesus fala que
outras ovelhas fazem parte de seu redil e ele deve conduzi-las igualmente. O texto não
nos apresenta nada de misterioso, mas “compreender e não compreender o discurso
depende também aqui da atitude aberta ou fechada, do crer ou não-crer”25
Não há dúvidas de que, para o autor, o seguimento era crucial diante de uma
realidade que exigia firmeza dos crentes. Considerando os desafios, perder a esperança
era jogar por terra toda a fé que havia chegado até eles desde o início da pregação. A
parábola do Pastor e suas ovelhas ilustra que era necessária a reflexão por parte da
comunidade. A resposta poderia ser colocada na boca de Jesus de forma mais simples!
Porém, o discurso diz respeito à vida, dá força a uma simples história, mostrando a
relação de confiança e cuidado do verdadeiro pastor para com suas ovelhas. Aqui, a
morte é expressão de amor! A comunidade sabe disso quando faz memória do Mestre
crucificado e ressuscitado.
24
KONINGS, Evangelho segundo João, p. 206.
25
BLANK, O Evangelho segundo João, I, p. 226.
56
3.2.3.1 A relação do Bom Pastor e as ovelhas para a comunidade joanina
O quadro simbólico do pastor e suas ovelhas esboça a profunda relação de
intimidade e confiança da comunidade joanina e Jesus. Vejamos o texto26, Jo, 10,1-18,
para melhor apreciar seus detalhes:
“Amém, amém, vos digo: quem não entra no pátio das ovelhas pela porta, mas
sobe por outro lugar, é ladrão e bandido. Quem entra pela porta é o pastor das
ovelhas. Para este o porteiro abre, as ovelhas escutam a sua voz, ele chama a cada uma
pelo nome e as leva para fora. E depois de fazer sair todas as que são suas, ele
caminha à sua frente e as ovelhas o seguem, porque conhecem sua voz. Elas não
seguirão um estranho, mas fugirão dele, porque não conhecem a voz de estranhos”.
Jesus contou-lhes essa parábola, mas eles não entenderam o que ele queria
dizer..
Jesus disse então: “Amém, amém, eu vos digo: eu sou a porta das ovelhas.
Todos os que vieram antes de mim são ladrões e bandidos; mas as ovelhas não os
ouviram. Eu sou a Porta. Quem entrar por mim será salvo;poderá entrar e sair, e
encontrará pastagem. O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vim para que
tenham a vida e a tenham em abundancia.
Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas. O assalariado,
que não é o pastor e a quem as ovelhas não pertencem, vê o lobo chegar e foge; e o
lobo as ataca e as dispersa. Por ser apenas assalariado, ele não se importa com as
ovelhas. Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem, assim
como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas. Tenho
também outras ovelhas, que não são deste pátio; também a essas devo conduzir, e elas
escutarão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor. É por isso que o Pai me
ama: porque dou a minha vida. E assim, eu a recebo de novo. Ninguém tira a minha
vida, mas eu a dou por própria vontade. Eu tenho poder de dá-la, como tenho poder de
recebê-la de novo. Tal é o encargo que recebi do meu Pai.
O discurso do Bom Pastor é a continuação da narrativa da cura do cego de
nascença (9,1-41). O autor apresenta-nos um enredo no qual situa o discurso que
provoca outras questões mais à frente v. 19. Podemos inferir que são textos que se
complementam e que apresentam um sentido quando lidos em conjunto. A metáfora do
pastor e da ovelha pode ser lida na literatura judaica, no livro de Henoc27, que elucida a
26
Conforme a tradução de KONINGS, Evangelho segundo João, p. 195.
27
LEON-DUFOUR, Leitura do Evangelho, II, p. 246.
57
questão: fala-se das ovelhas cegas que são dispersas pelos lobos. Estas ovelhas são o
próprio Israel que recupera a vista quando guiado pelo verdadeiro mestre.
O discurso 10,1-18 mostra quem é o verdadeiro mestre-pastor. O autor se utiliza
de um pano de fundo com imagens pastoris para explicitar que a promessa de que Deus
suscitará um Pastor (Jr 23,4) cumpriu-se em Cristo. Esse discurso supõe a comunidade
falando da vida de Jesus e de seu agir. Não entende assim quem é de fora. Quando se
evoca a Jesus, que dá a vida e revela o Pai, o texto é lido à luz da morte e ressurreição.
A estrutura literária de Jo 10,1-18 pode ser dividida em três partes28: 10,1-6
Simbolismo da cena pastoril; 10,7-10 Jesus diz ser a Porta; e 10,11-18 O Bom Pastor.
A primeira parte, 10, 1-6, descreve uma cena comum, familiar aos leitores/
ouvintes. É uma parábola-narrativa: inicialmente focaliza a morte das ovelhas quando
ladrões e bandidos entram no redil; e, além de introduzir o discurso seguinte, também
complementa de forma clara a relação do pastor e das ovelhas. Os ladrões não entram
pela porta, e a imagem da porta é muito importante porque é o lugar de entrar e sair.
Para saber a intenção de quem entra, basta ver se entraram ou não pela porta do cercado.
O movimento é crucial. Era costume cercar o redil e o pastor chamava suas ovelhas da
porta. O quadro simbólico dos binômios pastor e ovelha expressa a relação de cuidado e
vida porque as ovelhas seguem o pastor que as conhece pelo nome.
João fala das ovelhas que conhecem a voz do pastor, ou seja, aquelas que
aderiram à Palavra de Jesus. Como aquele cego de nascença: curado por Jesus,
reconheceu o Filho do Homem, e se tornou modelo para que outros também
reconheçam quem é Jesus. Jesus se identifica pela expressão “Eu sou...” no versículo
11, o que retoma os textos proféticos de Jeremias (23) e Ezequiel (34,1) e o próprio
Êxodo (3). Em 10,1-6, o narrador fala de Jesus claramente, como pastor que sabe o
nome de todos aqueles que creem nele, como as ovelhas que conhecem a voz do pastor.
Na segunda parte do discurso Jesus proclama: “Eu sou a Porta” (10,7-10). Jesus
é a porta das ovelhas. Jesus é o acesso ao redil, as ovelhas entram e saem pela porta,
cujo movimento significa sobreviver. Não se fala de várias possibilidades para chegar às
ovelhas, mas há somente um acesso: o próprio Senhor. Na eclesiologia posterior, o texto
de João será interpretado no sentido da fidelidade ao Senhor Jesus para ser pastor na
Igreja. O texto contrapõe as autoridades vigentes à vida em abundância que Jesus
28
LEON-DUFOUR, Leitura do Evangelho, II, p. 248-261.
58
oferece. Jesus é o único mediador que cuida das ovelhas e “não se apresenta como
mediador dos pastores que virão”.29
Jesus afirma também ser a porta das ovelhas (v. 7) e que conduz às pastagens
(v.9). Este tema evoca a abundância que ecoa no Sl 23. O autor deixa claro que ninguém
antes de Jesus conduz à vida plena e definitiva; por isso suas palavras no v.8 “Todos
que vieram antes de mim são ladrões e assaltantes”, têm a dureza da exclusão. A
narrativa não se refere àquele que tira algo do semelhante, ou o que não lhe pertence,
mas a uma tradição sociorreligiosa que não permite à ovelha a vida em abundância 30.
A terceira parte dessa composição é a figura do Bom Pastor que dá a vida pelas
ovelhas. Jo 10,11-18 fundamenta a base do anúncio dos profetas na promessa de um
pastor enviado por Deus. Este pastor, no v. 16 “Tenho também outras ovelhas, que não
são deste pátio; também a estas devo conduzir”, descortina um pastoreio universal onde
ninguém será excluído.
No v. 18 “Ninguém tira a minha vida, mas eu a dou por própria vontade”, o
autor mostra que a vida de Jesus doada, entregue por própria vontade, é infinitamente
acolhida pelo Pai, que lhe devolve a vida em plenitude. Ao retomar a Aliança do Antigo
Testamento sabe-se que Deus é o Pastor de Israel: “Jesus retoma para si a função divina
na expressão ‘Eu Sou’, e não só conduz Israel, mas a todos os filhos de Deus.
O sentido máximo alcança a viva compreensão no Jesus crucificado e
ressuscitado, que entregar a própria vida. Pois ele já havia afirmado: “Eu vim para que
tenham vida e a tenham em abundancia” (v.10).
É nessa figura do pastor que nos deteremos com maior profundidade.
29
LEON-DUFOUR, Leitura do Evangelho, II, p. 253.
30
KONINGS, Evangelho segundo João, p. 207.
59
Mas, a quem Jesus se refere? É complicado pensar que o narrador faça alusão aos
judeus a partir dessa expressão no v.8, uma vez que Jesus está enraizado na tradição
israelita, desde os patriarcas e profetas. Sabemos que este trecho causou muitos
problemas na Idade Média por causa de várias interpretações, porém, é improvável que
Jesus se refira ao Antigo Testamento. Simplesmente se quer enfatizar que o caminho
por Jesus Cristo leva o ser humano à plenitude.
O cenário por detrás deste discurso se insere na falsa autoridade dos fariseus,
questionada pelo autor, num tipo de pastoreio onde não existe amor, e sim interesse para
que tudo seja arrancado das ovelhas. O v.20 culmina na reação que Jesus causava: “Ele
tem um demônio! Está delirando! Por que o escutais?”. O narrador coloca o alicerce da
incredulidade que permanece mesmo dentro da comunidade, ou seja, há pessoas que
creem e estão dentro do redil e também podem correr o risco de não crer. Mas o
evangelista coloca para a comunidade uma profunda reflexão: é obrigação da ovelha
reconhecer a voz de Jesus Pastor! Ovelhas sim, mas não no sentido passivo, que
geralmente se entende, e que não é o sentido primordial do autor.
O Pai ama Jesus, Jesus ama as ovelhas e estas são amadas pelo Pai. O amor
culminará na entrega da vida e a vida será retomada porque foi sublime doação31. É no
discurso de Jesus como Bom Pastor que a comunidade contempla a morte como vitória
da própria morte. É na morte que Jesus Pastor abre o caminho para que a comunidade
adentre na intimidade com o Pai.
A vida está intimamente ligada à Palavra de Deus e interpela o povo para uma
sincera conversão do coração. A vida doada garante mais vida em abundância, pois vem
de uma doação que é, em primeiro lugar, vocação. A vida é entregue por próprio querer,
sem imposição ou coação, e é nesta entrega que se desvela o amor.
Nos versículos 11 e 15 Jesus diz: “Eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas”.
Toda a mensagem do pastor está focada na figura do discípulo e esses dizeres de Jesus
mostram o interior daquele que guia e se diz pastor. Na responsabilidade do pastoreio,
ser discípulo é seguir as Palavras do Mestre e cuidar para que as atitudes não sejam de
um assalariado.
A doação da própria vida pressupõe um coração agradecido, pressupõe também,
a disposição em dar dinamismo ao amor, fazendo com que ele alcance todos os recantos
onde haja necessidade. Doar a vida exige de nós colocar algumas metas. A meta de
31
DURRWELL, A Morte do Filho, p. 36.
60
Jesus foi até a morte na cruz. A morte não representa maldição, perda do sentido ou
oposição aos anseios e à esperança. A morte de Jesus impede que a comunidade e os
discípulos se acomodem no bem estar da fé superficial, e possam refletir que aquilo que
doamos volta para nós com abundância. A Ressurreição mostrará esta verdade!
32
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 84.
33
Citado segundo TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 71.
34
Citado segundo TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 71.
35
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 71.
61
alguém aspira ao episcopado, deseja uma boa coisa. É necessário, porém, que o
epíscopo seja irrepreensível” (1Tm 3,1-2). Gregório chama a atenção para os perigos de
se procurar a própria glória dentro do ministério:
Portanto, aquele que busca o episcopado pela glória desse cargo, e não
por ser esse ministério uma boa coisa, testemunha, para si mesmo, que
não é ao episcopado que aspira. Bem longe de amar a função sagrada,
ele a ignora: aspirando ao mais alto posto do ministério pastoral, nos
pensamentos ocultos da sua mente, apascenta-se a si mesmo,
submetendo os outros; se regozija pelo louvor que recebe, orienta o
seu coração para as honrarias; exulta pela abundância dos bens36.
Gregório inicia o livro Regra Pastoral com uma forte admoestação: “Ninguém
pode presumir de ensinar uma arte senão depois de tê-la apreendido por meio de um
estudo atento e meditado”37. O autor retoma o texto de Isaías (56,10-11) quando o
profeta compara os chefes do povo com os “cães vorazes que desconhecem a saciedade”
e como “pastores incapazes de compreender”. Exorta aos que exercem o ministério
pastoral a viverem com coerência, a exortarem as pessoas considerando a situação em
que vivem, e a se dedicarem ao estudo, à meditação e à contemplação.
Se pensarmos na Regra Pastoral, nos dias de hoje, poderíamos dizer que a
formação humana, que abrange as dimensões intelectual e pastoral na vida dos futuros
pastores, ilumina o caminho nos diversos desafios. O autor se preocupa com o
ensinamento que as lideranças eclesiais passam para os fiéis, visto que o aspecto
intelectual diz respeito ao aprofundamento no conhecimento do mistério de Deus, que
nos convida a adentrar e beber de sua fonte. Mas o autor também se preocupa com a
conduta dos pastores:
Assim acontece que, quando um pastor caminha por despenhadeiros, o
rebanho o segue até o precipício. Por isso, o Senhor se lamenta da
desprezível ciência dos Pastores, dizendo por meio do profeta:
“Enquanto vós bebeis água limpa, turveis o resto com os vossos pés e
as minhas ovelhas se nutriam de quanto havíeis pisoteado com os
vossos pés e bebiam a água que os vossos pés haviam turvado” (Ez
34, 18-19)38.
36
GREGORIO, Regra pastoral, p. 49.
37
GREGORIO, Regra pastoral, p. 35.
38
GREGORIO, Regra pastoral, p. 37.
62
Quando me aterroriza o que sou para vós, consola-me o que sou
convosco. Pois para vós sou bispo, convosco sou cristão. Aquele é o
título de uma função recebida, este é o título de graça; aquele é de
perigo; este é de salvação ( Sermão, 340,1)39.
Com esses dados dos escritos bíblicos e dos Santos Padres podemos adentrar na
análise da figura do pastor descrita em Jo 10, 1-18. Neste discurso, Jesus ressalta as
características que iluminam e contemplam a vida do pastor, principalmente no que
concerne ao fato de que o verdadeiro pastor dá a vida pelas ovelhas.
39
Citado segundo TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 145.
40
CNBB, Diretrizes. p. 83 e 84.
41
CNBB, Diretrizes. p. 87.
42
CNBB, Diretrizes. p. 89.
63
A exegese do Evangelho de João sobre o Bom pastor contribui para o resgate da
imagem do presbítero para o seu povo, a exemplo de Yahweh Pastor do povo no Antigo
Testamento e Jesus, Pastor da comunidade joanina no Novo Testamento.
64
4 OS MINISTÉRIOS NA IGREJA
1
MARTINA, História da Igreja, v. 2, p. 275-324.
2
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 107.
3
GIRAUDO, Num só corpo, p. 9.
65
Há, no texto desse autor, a firme certeza de que o ministério ordenado na Igreja
só é compreendido a partir dos textos do Novo Testamento, ou seja, a partir da
Revelação neotestamentária4.
A figura de Ambrósio, bispo de Milão, viveu em seu ministério uma íntima
ligação com a comunidade pela qual era responsável, e podemos constatar uma
preocupação para que as pessoas (os neófitos) entendessem os sacramentos. Há uma
maneira diferente de ver e viver o ministério, cujo comprometimento com a comunidade
passa por uma verdadeira comunhão com o povo e por uma formação a partir das
catequeses mistagógicas. Os esforços de outros bispos, como Cirilo de Jerusalém em
sua obra catequética nos fazem refletir sobre a dinâmica metodológica e o cuidado com
aqueles que iniciavam a fé cristã.
O ministro ordenado tem diante dos seus olhos a comunidade eclesial, e esta
atua junto aos ministros, para a edificação da Igreja. De acordo com o Concílio de
Calcedônia, no Canon 6, ninguém deveria ser ordenado sem vínculo com uma Igreja
local ou uma comunidade, para evitar as ordenações absolutas:
Há dois tipos de casos: os monges que, tendo sido ordenados bispos
para determinada Igreja, depois de um tempo recusam a comunidade e
voltam ao seu mosteiro e, com isso, sua ordenação se torna absoluta; e
os que são ordenados sem que lhes designe uma função em
determinado local. Deste último tipo são as ordenações absolutas mais
famosas da Antiguidade: a de Jerônimo e a de Paulino de Nola 5.
4
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 7.
5
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 110.
6
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 110.
7
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 113.
66
A maneira obscura de ver o ministério ordenado como potestas acarreta um
mergulho profundo nas águas do clericalismo, que se faz sentir no próprio espaço onde
se celebra a liturgia:
A liturgia se torna ocupação do clero. O povo assiste passivamente,
sem entender o latim em que se celebra. Essa situação se traduz na
constituição de dois espaços separados dentro do edifício de culto: a
igreja do clero (presbitério, coro) e a igreja dos leigos, por vezes até
mesmo separados por uma parede (Lettner), com um altar para o clero
(altar-mor) e outro para o povo (altar da cruz). Essa separação acarreta
a acentuação do elemento ritual na vida dos presbíteros”8.
Nesta atmosfera clerical vemos que a comunidade eclesial deixa de ser a missão
principal na ordenação dos ministros, visto que, a “partir da missão de presidir a
comunidade decorrem as funções do ministro”9, como nos relata a teologia pastoral dos
primeiros séculos.
4.3 O Magistério
8
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 114-115.
9
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 111.
10
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 9.
67
Se for constatado que alguns vêm procurar os poderosos e celebram
para eles a liturgia, sejam afastados desta atividade ou depostos...
Melhor seria que instruíssem as crianças e os domésticos, e que
lessem para eles a Sagrada Escritura, porque foi para isso que
receberam as ordens sacras.
11
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 13.
12
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 14.
68
4.3.1 O ministério ordenado no Concílio de Trento
Alguns bispos ficaram preocupados com os dizeres de Lutero sobre o
sacramento da ordem, ao afirmar que ela é de “origem humana e o seu valor deveria ser
considerado como tal”13. Em outras palavras, Lutero “eliminou a doutrina católica do
poder de consagrar e da transmissão deste na ordenação sacerdotal”14. Ao retomar o
texto bíblico 1Pd 2,9, Lutero questiona a terminologia “sacerdotium” designando o
epíscopo e o presbítero, visto que em sua maneira de pensar, “cada sacerdote pode
voltar ao estado leigo”15.
Dentro desse movimento de oposição encontraremos também a figura de
Melanchton, que apresenta reflexões em seu “Confessio Augustana”. Nesse texto, o
autor compartilha com Lutero as ideias sobre o sacramento da ordem, mas, na
“Apologia Confessiones”, Melanchton “objeta aos católicos que os sacerdotes não
podem continuar a exercer este ofício entre os fiéis, visto que o sacrifício de Cristo já
expiou todos os pecados”16.
A sessão 22ª, que faz uma explanação sobre o sacrifício da missa, é considerada
a mais importante porque tem como tema principal o sacerdócio. Porém, “o máximo
que se consegue é atenuar o ‘vínculo natural’ entre sacrifício e sacerdócio, e afirmar que
esse vínculo existe por disposição divina, tanto no Antigo como no Novo Testamento
(cf. DH 1764)”17. No cânon 2 vemos que os bispos querem de uma maneira ou de outra,
expressar que Cristo instituiu o sacerdócio:
Se alguém disser que Cristo, com aquelas palavras “Fazei isto em
memória de mim”, não constituiu os apóstolos sacerdotes, ou não
ordenou que eles e os outros sacerdotes oferecessem seu corpo e
sangue: seja anátema (DH 1752).
13
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 56.
14
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 56.
15
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 56.
16
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 58.
17
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 122.
18
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 124.
19
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 124.
69
sacrifício e as apascentem pela pregação da palavra divina, pela
administração dos sacramentos e pelo exemplo em todas as boas
obras, tenham cuidado paternal pelos pobres e outros necessitados e
se empenhem nas outras tarefas pastorais. Quem não está atento a seu
rebanho nem o acompanha, mas o abandona, como o fazem os
mercenários, não pode realizar nem levar a cabo nada disso. Por esta
razão o santo Sínodo os admoesta e exorta que, lembrados dos
preceitos divinos e feitos modelos do rebanho, o apascentem e
governem com juízo e verdade.20
A Igreja tem todo o cuidado, no capítulo I (DH 1739), de não assinalar com
sacerdócio novo o sacerdócio ministerial da Igreja, e sim o sacerdócio de Cristo,
enraizado na carta aos Hebreus. E a exortação, contida no conteúdo da carta aos
Hebreus, mostra que “ao contrário do sacerdócio do Antigo Testamento, o de Cristo não
se radica no âmbito ritual, mas no histórico”21, e que “Jesus vem a ser sacerdote não
por uma separação dos demais, como a casta sacerdotal, mas ao contrário, fazendo-se
semelhante aos que sofrem”22.
Retomando a sessão 22ª, o ensinamento da Igreja salienta os capítulos referentes
à missa e aos cânones que se opõem diretamente ao que os reformadores objetaram. Há
uma preocupação em considerar “que o sacerdócio de Cristo não é ritual, mas histórico.
É sua práxis de entrega ao Pai e aos irmãos e irmãs”23 e ainda, que “o sacerdócio dos
apóstolos e de seus sucessores deve perpetuar a missão de Cristo, enquanto ministério
de seu serviço”24. Podemos compreender que o Concílio foi obrigado a falar sobre o
sacerdócio por causa dos reformadores, mas não há um desenvolvimento longo ou
exaustivo, e sim notas, para esclarecer o assunto e revidar os comentários da oposição.
20
Concílio de Trento, 23º sessão (15 jun.1563: Decreto de reforma, cânon 1, em COD, 744, 1.
24-32, citado segundo TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 124 (grifo de Taborda).
21
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 42.
22
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 42.
23
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 42.
24
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 90.
70
Menti nostrae; também João XXIII na encíclica Sacerdotii nostri, e Paulo VI que, no
fim do ano da fé de 1967/68, escreveu aos sacerdotes católicos a A voi sacerdoti25.
Temos, nesse período, várias outras encíclicas que, apesar de abordarem outros
assuntos, também mencionam o sacerdócio. As encíclicas Miserentissimus Redemptor e
Mediator Dei fazem uma exposição sobre o tema, e a primeira, do Papa Pio XII “parte
da devoção ao Sagrado Coração de Jesus para chamar a atenção sobre o sacerdócio dos
fiéis”26. A segunda encíclica tem como tema principal a liturgia, porém, discorre sobre o
ministério sacerdotal e comum, e na encíclica Sacerdotalis coelibatus, de 1967, Paulo
IV dedicou-se em escrever sobre a natureza do sacerdócio.
As encíclicas sobre o sacerdócio retomam alguns vocábulos não empregados no
Concílio de Trento, como por exemplo, a ideia da participação e o fato do sacerdote agir
“in persona Christi”, que é expressão mais antiga dentro do magistério da Igreja. De
fato, Pio XI retoma outra expressão, “o sacerdote é ‘alter Christus’, porque ‘eius
personam gerit’”27, na encíclica Ad catholici sacerdotii. Nos escritos que destacam as
terminologias acima, veremos que estas expressões são mais refletidas e aprofundadas.
Por exemplo, o Papa Pio XII diz que “Cristo é denominado sacerdote e principal agente
também em cada missa” (D-H 3855). E Paulo VI, em 1963, na alocução Voi avete
relembra que o sacerdote age “in persona Christi”28.
Nas palavras de João XXIII, que repetem a frase de Pio X, “Somos sacerdotes
quando oferecemos o sacrifício”29, constatam-se temas abordados em Trento, além de
outros assuntos; Pio XI fala sobre o sacerdócio comum dos fieis nos documentos da
Igreja. Pio XI menciona pela primeira vez o sacerdócio régio dos fiéis na encíclica
Miserentissimus Redemptor, apoiando-se em 1Pd 2.
Não só participam no arcano sacerdócio e no múnus de satisfazer e de
sacrificar aqueles que nosso Sumo Sacerdote Jesus Cristo utiliza como
ministros seus, para oferecerem ao Nome Divino uma oblação pura
em todo lugar desde o nascer até o pôr do sol. Mas também o povo
cristão chamado com justeza pelo príncipe dos apóstolos, “estirpe
eleita, sacerdócio régio”, deve oferecer tanto por si como por todo o
gênero humano sacrifícios pelos pecados de maneira quase semelhante
25
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 111.
26
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 112.
27
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 115.
28
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 82, citando Paulo IV, Alocução “Voi avete”, AAS 55 -
754,2 e 755.
29
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 90, citando Pio X, “Cum Heri”, 211,1.
71
ao sacerdote (sacerdos omnis ac Pontifex) que, assumido dentre os
homens, é constituído para eles em tudo o que se refere a Deus30.
O movimento litúrgico contribuiu para que o Papa Pio XII cuidasse para que se
interpretasse corretamente a questão do sacerdócio comum dos fiéis, que poderia ser
visto em detrimento ao sacerdócio ministerial, e estas duas questões foram tratadas
amplamente no Magistério.
Assim, passamos ao Concílio Vaticano II que na Constituição Lumen Gentium
faz uma ampla exposição sobre o sacerdócio e o apostolado dos leigos, acolhendo a
doutrina dos papas anteriores e ampliando a reflexão.
312
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 171, citando Pio XI na encíclica: “Miserentissimus
Redemptor”.
31
COSTA BRITO, O leigo cristão no mundo, p. 14
32
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 128.
33
KLOPPENBURG, As vicissitudes da Lumen Gentium, p. 202.
72
sobre os que são ordenados. A Lumen Gentium 10 e 11 retoma o que outrora foi
anunciado pelos papas Pio XI e Pio XII:
O sacerdócio comum dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou
hierárquico, apesar de diferirem entre si essencialmente e não apenas
em grau, ordenam-se um para o outro; de fato, ambos participam, cada
qual a seu modo, do sacerdócio único de Cristo.
Nos textos dispostos entre LG 18-27 nos deparamos com a missão do bispo, cujo
poder, junto com aqueles que colaboram com ele, ou seja, presbíteros e diáconos, foi
confiado um tríplice múnus34. E o múnus inicialmente apresentado é o de ensinar (LG
25) exigindo um comprometimento com a Palavra; e em seguida, o múnus de santificar,
que na intimidade da oração e do trabalho pelo povo, espalha multiforme e
abundantemente a plenitude da santidade de Cristo (LG 26) e finalmente, o múnus de
governar, tendo diante dos olhos a imagem do bom Pastor (LG 27).
Ao retomar as funções do bispo, descritas na Lumen Gentium, surge a questão de
que um dos múnus do episcopado, pode ser denominado “sacerdotium” ou “múnus
sanctificandi”35, e o texto conciliar não esclarece esta questão36. Temos, porém, no
número 26,1 que “especialmente na eucaristia que ele oferece ou manda oferecer e pela
qual a Igreja vive e cresce continuamente” o fato de que o bispo exerce plenamente o
ofício do sumo sacerdócio37. De toda maneira, podemos considerar que o “acento
medieval, tridentino e pós tridentino no sacerdócio é devidamente valorizado, mas
tirado de seu isolamento e integrado no contexto ministerial global” 38.
Os ministros ordenados e os leigos respondem igualmente, em virtude do
batismo, por um testemunho vivo do Evangelho proclamado, e por outro lado, “ o
sensus fidei e o sensus fidelium garantem a confiança básica em todos os cristãos”39.
Não há dúvidas que o Concílio ampliou e refletiu intensamente sobre a participação do
leigo ao “declarar a verdade da igualdade fundamental de todos os membros do povo de
Deus pelo batismo”40. Porém, na realidade eclesial concreta, apesar das Assembleias do
Povo de Deus, onde as decisões da vida da Igreja são planejadas e estudadas pelos
bispos, presbíteros e na maioria leigos, não há
34
CONCÍLIO VAT. II, Lumen Gentium, n.25-27.
35
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 138.
36
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 138.
37
BECKER, O ministério sacerdotal, p. 139.
38
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 131.
39
LIBANIO, Concílio Vaticano II, p. 182
40
LIBANIO, Concílio Vaticano II, p. 182.
73
estatuto jurídico suficientemente consistente que garantisse ao leigo
realmente o direito de participação no interior da Igreja até no
exercício de ministérios, sem precisar depender do beneplácito das
autoridades eclesiásticas41.
Os estudos e as reflexões feitas por Yves Congar contribuíram para uma maior
valorização do leigo, visto que Congar em seu escrito Pour une théologie du laicat”
marca a passagem de uma reflexão teológico-espiritual sobre o lacaito, para uma
autêntica teologia do laicato”.42 O Concílio abarcou seus argumentos e temas em torno
deste assunto, “principalmente no decreto Apostolicam Actuositatem”43:
Revaloriza-se a dimensão batismal, insiste-se na participação dos
leigos no poder profético, sacerdotal e real de Cristo; mais tarde,
passa-se a falar de evangelização em lugar de apostolado; não se trata
de participar no dever exclusivo da hierarquia, mas de assumir a
missão global da Igreja enquanto tal, se bem que na devida distinção
de papéis. Os leigos passaram progressivamente de “objetos” da
preocupação dos pastores a “participantes” da missão apostólica, e até
“sujeitos” com plenos direitos na mesma comunidade; de “argumento”
eclesiológico a “parte integrante” de uma eclesiologia compreensiva,
incluídos em cada ponto do seu desenvolvimento44.
41
LIBANIO, Concílio Vaticano II, p. 182.
42
COSTA BRITO, O leigo cristão no mundo, p. 14.
43
COSTA BRITO, O leigo cristão no mundo, p. 14.
44
COSTA BRITO, O leigo cristão no mundo, p. 15.
45
CONGAR, Y. Leigos na Igreja, p.50
74
chamar de clericalização do leigo, e se opõe às consagrações do laicato, visto que, pelo
batismo, o leigo já está habilitado a assumir responsabilidade na Igreja46.
O Concílio apresenta em seus documentos uma ampla visão sobre as realidades
eclesiais e sociais. Há um desafio na conjugação entre os leigos e ministério ordenado,
pois, “ao assumir reais responsabilidades na Igreja, os leigos questionam a maneira de
exercício do poder na mesma”47. Veremos no próximo ponto, a reflexão e a importância
da formação dos leigos que participam do pastoreio em âmbito eclesial.
46
CONGAR, Ministères et laicat, p. 133.
47
COSTA BRITO, O leigo cristão no mundo, p . 83.
48
ANTONIAZZI, A. Raízes Históricas da condição atual dos leigos na Igreja, p.18.
49
TABORDA, A Igreja e seus ministros, p. 163.
50
BINGEMER, Da Teologia do Laicato à Teologia do batismo.
75
eclesial fez fenecer a participação do laicato em nível intraeclesial. Mesmo as
assembleias do Povo de Deus, como citamos anteriormente, apesar de contar com a
participação de toda a Igreja, não “encontram lugar na legislação oficial da Igreja”51.
Em 2013, o Papa Francisco, em sua exortação Evangelii Gaudium, comenta e
confirma o crescimento da missão e da identidade dos leigos na Igreja, que conhecem e
valorizam o sentido da “comunidade”52, e partilham “uma grande fidelidade ao
compromisso da caridade, da catequese, da celebração da fé”53. O Papa Francisco
salienta que a responsabilidade laical nasce a partir do batismo e da confirmação, mas
esta consciência não se manifesta igualmente em todos os cantos, devido a questões que
vão desde a falta de formação até o excesso do clericalismo que marginaliza e exclui os
leigos.
A formação que abrirá caminhos para que os sujeitos sejam docibiles, se
constitui a partir de um processo formativo que “cria internamente uma disponibilidade
da mente e do coração”54. A partir de uma mudança interna da formação no ambiente
seminarístico, e mesmo na consciência de leigos e leigas sobre o papel que a formação
ocupa em âmbito eclesial, a Igreja terá acesso à presbíteros configurados ao Senhor
Jesus, Pastor e guia da Igreja, e portanto, menos clericais e elitistas, menos exclusivistas
e feudais, e a presença de leigos mais críticos e capazes de evangelizar os meios
intelectuais.
51
LIBANIO, Concílio Vaticano II, p. 182.
52
Exortação Evangelium Gaudium, n. 102
53
Exortação Evangelium Gaudium, n. 102
54
CENCINI, A árvore da vida, p. 163.
76
5 CONCLUSÃO
1
CENCINI, A árvore da vida, p. 12.
77
Cencini e o objetivo de se formar um sujeito capaz de responder aos desafios da pós-
modernidade, partimos da premissa de que o seminário não é capaz de formar o sujeito
pós-moderno, de onde a necessidade urgente de mudanças.
Ao considerar a espiritualidade e maturidade dos futuros presbíteros, não há
dúvidas de que uma formação mais coesa, organizada e interdisciplinar contribua na
construção de uma identidade inteira e não fracionada. A formação contribui
efetivamente com uma postura que se opõe à cultura pós-moderna, a qual dilui a
concepção de serviço, de entrega comprometida e amor ao próximo.
Ao nos debruçarmos sobre a figura do pastor na Bíblia, que permeia a história do
povo, vimos a imagem de Deus como Pastor que cuida de seu povo oprimido. O
trabalho dos pequenos pastores das famílias patriarcais, que inicialmente cuidavam dos
rebanhos, antagoniza a figura dos reis que deveriam cuidar do seu povo.
Vimos que esta imagem simples e aparentemente insignificante evoca uma
simbologia que vai além dos horizontes do campo e do rebanho, porque enfatiza a
íntima relação da ovelha e o seu pastor, que estão inseridos em âmbito existencial e
também eclesial. Nesta reflexão, as profecias de Jeremias e Ezequiel colocaram em
xeque a monarquia em Israel, devido aos desmandos dos reis, e esboçaram as linhas da
esperança do pastor que cuida do povo a partir de seu conhecimento e sensatez nos
mandamentos de Deus.
O quadro simbólico do pastor e suas ovelhas aprofunda a relação de intimidade e
confiança entre a comunidade joanina e Jesus. O discurso 10,1-18 mostra quem é o
verdadeiro mestre-pastor. O autor se utiliza de um pano de fundo com imagens pastoris
para explicitar que a promessa de que Deus suscitará um Pastor (Jr 23,4) cumpriu-se em
Cristo. O Novo Testamento sintetiza, nas entrelinhas, que para exercer o ministério nas
comunidades é preciso ser como Jesus Pastor. E esta figura contempla o ministério
eclesial, e que está presente na reflexão feita pelos Padres da Igreja, confirma que a
alegoria do Pastor Jesus aponta para um verdadeiro ministério pastoral.
Esta análise bíblica, que se deteve principalmente na exegese do texto joanino,
entrelaça-se com a pesquisa sobre a formação presbiteral, pois, não haverá um
verdadeiro pastoreio se não houver um bom processo de formação. O objetivo é
contribuir efetivamente para que os futuros presbíteros sejam pastores nas comunidades
onde atuam, e possam, de fato, animar e articular as comunidades. A formação por si
não resolverá os desafios, mas acenderá faróis para um ministério bem vivido.
78
A pesquisa acerca do ministério ordenado e a evolução de sua clericalização, que
se opõe totalmente à linha eclesial do Novo Testamento, nos interpela para o papel dos
seminários dentro do processo formativo, cuja evidência primordial, diante das
pesquisas, afirma ser o seminário produtor de clericalismo.
Acentua-se a atualidade do texto de Jo 10,1-18, tecido pela comunidade joanina,
que no discurso feito por Jesus nos mostra a verdadeira missão do pastor. A proposta de
uma formação mais adequada aos nossos tempos promoverá mudanças nos futuros
presbíteros, na maneira de ver os leigos e de compreender a real missão dentro do
ministério ordenado.
79
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