Vanguarda Ou Terapia? - Arte Terapia
Vanguarda Ou Terapia? - Arte Terapia
Vanguarda Ou Terapia? - Arte Terapia
Vanguarda
ou terapia?
F
alar sobre Lygia Clark falar sobre um alm de ter sido referncia no desenvolvimento
perodo da histria da arte de vanguarda de uma nova relao entre espectador e arte.
brasileira. A no-artista conforme se Tradicionalmente, o artista quem fornece a
intitulava , nascida na Belo Horizonte (MG) de comunicao e o espectador quem a recebe. Essa
1920, durante toda sua vida foi uma das grandes transao mediada pela obra de arte. A obra de
protagonistas de movimentos culturais de maior arte estritamente construda para ser apreendida
relevncia. Seu trabalho, dizem, foi determinante pelo sentido da viso. Fazer arte parte de um
para o que hoje entendido por arte. processo contnuo que, com o tempo, tem re-
Suely Rolnik, uma de suas estudiosas, psi- nado o sentido visual isoladamente dos outros
canalista, crtica cultural e professora titular da sentidos e independentemente do corpo como
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo um todo, explica Guy Brett, no artigo Lygia
(PUC-SP) e diz que a proposta maior de Lygia Clark: in search of the body, publicado na revista
Clark, ao longo de seus 30 anos de produo ar- Art in America em julho de 1994. A idia do
tstica, foi a de misturar materiais, imagens ou autor mostrar que Lygia Clark gerou meios
mesmo objetos extrados do cotidiano com os para que o espectador se tornasse consciente de
materiais supostamente nobres da arte. Livrar o sua prpria expressividade, agora no papel de
espectador de sua inrcia anestesiante, fosse participante. Segundo ele, no novo panorama
por meio de sua participao ativa na recepo criado pela artista, os papis de artista, espec-
ou na prpria realizao da obra, ou por meio tador e objeto mediador mudariam todos.
da intensicao de suas capacidades percep- De acordo com os textos, a presena desse
tivas e cognitivas. o que est evidente em novo conceito de apreciador da arte tornou-se
seu artigo Molda-se uma alma contempornea: pano de fundo para a transio entre o movimen-
o vazio-pleno de Lygia Clark, publicado na to modernista e o contemporneo. Lygia Clark,
compilao do The Museum of Contemporary nesse contexto, trouxe luz a relao sinestsica
Art de Los Angeles The Experimental Exercise of que a Pisicologia, desde sua origem, procurava nos
Freedom: Lygia Clark, Gego, Mathias Goeritz, mais diversos movimentos artsticos.
Hlio Oiticica and Mira Schendel em 1999. A trajetria artstica de Lygia Clark inicia-se
O resultado dessa combinao de iniciativas no nal da dcada de 1940, quando estudava no
inovadoras resultou na criao de conceitos como Rio de Janeiro com Burle Marx. J na dcada de
a Estruturao do Self (consulte quadro Noo de 1950 a artista pde lanar mo de suas primei-
si mesmo) e tornou-se a fora propulsora para ras experimentaes artsticas. Em Paris, estudou
a construo de suas abordagens controversas, com o cubista Fernand Lger e com o gravurista
36 psique cincia&vida
E SPECIAL
Expressivo e contemporneo, trabalho
da artista plstica Lygia Clark est tanto
prximo quanto distante da Psicanlise,
dividindo especialistas
FOTOS: AGNCIA ESTADO
psique cincia&vida 37
Terapia da arte
rpd Szenes e ganhou prmio na Primeira Ex- seu artigo Arte cura? publicado na Internet.
posio Nacional de Arte Abstrata, em 1953, pela A transgresso veio naturalmente como marca
obra Composies. No Rio de Janeiro, recebeu o registrada de suas obras seguintes. Caminhando
prmio Augusto Frederico Schmidt e foi consi- (1963) a principal, sendo considerada o divisor
derada revelao artstica do ano. de guas em sua carreira, ao abordar a imprevi-
A partir de 1954, ganhou projeo ao compor sibilidade das escolhas em percorrer espaos sem
o Grupo Frente junto a Ivan Serpa, Hlio Oiti- lados certos e avessos, frente ou verso. Diante
cica, Lygia Pape, Alusio Carvo, Dcio Vieira, disso, Lygia chega a armar, de acordo com o ar-
Franz Weissmann e Abraham Palatnik. A idia era tigo Molda-se uma alma contempornea, que tem
juntar artistas com interesses em comum dentro pavor do espao e que atravs dele ela se recons-
de uma concepo de pintura primitiva, que uti- tri. O seu sentido prtico sempre me falta nas
lizava linguagem geomtrica como experimenta- crises, pois a primeira coisa que sinto a falta de
o. nessa poca que Lygia assume uma posio percepo dos planos e perco o equilbrio fsico.
clara de contestao ao pintar as molduras de suas Brinco com ele de perde-ganha e jogamos a parti-
obras. Essa atitude dene a idia de que a obra de da do gato e do rato. Ele me persegue me apavora
arte no tem separao com relao vida, indica e me destri aparentemente e eu o domino e o
Ktia Maciel, artista e professora adjunta da Es- reconstruo dentro de meu eu, reproduz o artigo.
cola de Comunicao da Universidade Federal do Suely Rolnik, nesse mesmo texto, explica que
Rio de Janeiro (Eco-UFRJ). Ela conta que, nessa nas trs ltimas etapas da primeira parte da obra
poca, escultores tambm eliminam o pedestal e da artista, que podem ser identicadas como neo-
passam a produzir obras que no tm um ponto concretistas, mantm-se do construtivismo certos
de vista privilegiado a obra, segundo Ktia, pode princpios, como a escolha de objetos reduzidos
ser vista de qualquer perspectiva. sua essencialidade material, a valorizao das pro-
Em 1959, Lygia assinou o Manifesto Neocon- priedades da matria e a percepo de estruturas
creto, que, em suma, pedia pelo restabelecimento formadas na relao gerada pela ao conjunta,
dos valores intuitivos, expressivos e subjetivos. Se- arma. Para ela, nesse primeiro momento, a obra
gundo o documento, no seria mais possvel en- de Lygia d maior nfase aos objetos vivos, que
contrar referenciais artsticos em mquinas so- migraro do plano para o relevo e, da, para o
mente em organismos vivos. espao. Embora prxima das propostas da arte
O primeiro grande marco de Lygia Clark, se- da poca, sua investigao j aqui toma uma
guindo essa linha, foi a criao dos Bichos. Essas direo original, complementa. Na mesma
obras consistiam em vrias estruturas geomtri- poca, Lygia tambm revisita os Bichos criando
cas metlicas que se articulavam por meio de do- novas abordagens, como Obra mole, e renome-
bradias. Elas dependiam da interao do pbli- ando-os, tal qual O antes o depois.
co, atravs do qual a manipulao gerava diversas
perspectivas sobre a mesma obra. Em 1960, INDIVDUO
quando Lygia Clark criou os Bichos, explicou a Em 1968, Lygia deixa o Brasil e vai morar na
obra com um questionamento simples: Quantas Frana, onde ca at 1976. nesse momento
posies o bicho tem? Eu no sei, voc tambm que ela desloca o norte de suas experimentaes
no sabe, mas o bicho sabe, observa Ktia Ma- da obra para o indivduo. Lecionando a partir de
ciel. Suely Rolnik tambm pondera: a radicali- 1970 na Facult dArts Plastiques St. Charles, da
zao da proposta de Lygia j se anunciava com Sorbonne, ela deixa de se colocar como artista e
o Trepante, ltimo exemplar de sua prestigiada veste o papel de, em suas palavras, propositora.
famlia dos Bichos. Essa radicalizao ganha visi- Seus trabalhos assumem traos sensoriais e a abor-
bilidade no pontap que lhe deu Mrio Pedrosa dagem grupal tal qual realizaes como Roupa-
ao ver essa obra pela primeira vez e em sua alegria corpo-roupa: O eu e o tu em que um casal veste
de poder chutar uma obra de arte, aponta em macaces cujo interior revestido por tramas
38 psique cincia&vida
E SPECIAL
Noo de si mesmo
Nas sesses de Estruturao do self, de Lygia constante. Como conseqncia dos efeitos do
Clark, diretamente conectada com seus Obje- mundo, constantemente levado a recriar a si
tos Relacionais, o self no teria qualquer relao mesmo e sua relao com a realidade no
com a conceituao estabelecida pela tradio um lugar xo; est sempre se recompondo,
psicanaltica inglesa, sendo, na verdade, uma pontua a psicanalista Suely Rolnik.
viso mais ampla sobre a subjetividade do que Pode-se dizer que Lygia, ao transgredir o
o ego e o psiquismo. O self uma noo conceito de arte, vira mais uma de suas crticas.
de si mesmo que voc situa consigo mesmo. A arte, totalmente cafetinada pelo mercado,
Ele inclui uma relao sensvel com o mundo perdeu o poder essencial de abrir no receptor
e inui tambm em um trabalho de criao sua capacidade sensvel. Lygia faz com que esse
espectador da arte, que se tornou mero consu-
midor, se transforme atravs dela, deixando-se
tocar pela obra de arte. Mas, para isso, ela viu
que devia fazer um trabalho que pretendia re-
Lygia no seria terapeuta, mas uma conquistar essa capacidade perdida pelo mer-
matriz de muitas pesquisas e de muitos cado na arte, explica Suely.
Os Objetos Relacionais, dessa forma, so os
tratamentos. Desconhecimento terico instrumentos de cada sesso experimental rea-
da Psicologia seria a causa de tantas lizada pela artista, mas tambm envolvem tra-
preocupaes acerca da classicao balhos anteriores reinventados. Eles formam
o conjunto nal de sua obra, j que no ano
do trabalho da artista de 1988 ela morre em seu apartamento na rua
Prado Jnior, em Copacabana.
que estimulam sensaes tteis inerentes ao cor- vada desse momento chama-se Baba antropof-
po fsico do sexo oposto e Arquitetura Biolgi- gica, em que um grupo de pessoas molha com
ca: Ovo-Mortalha no qual sacos de nilon ou saliva um carretel de costura e, desenrolando-o,
juta so enados nos ps de duas pessoas que, coloca em uma outra pessoa a linha molhada.
em seguida, improvisam movimentos, cada Posteriormente, os envolvidos na experincia
uma envolvendo a outra no plstico. devem esgarar o emaranhado at que se desfa-
Em suas aulas na Frana, Lygia Clark, como a completamente. O compartilhamento verbal
arma Suely Rolnik em entrevista, costumava da vivncia da obra naliza seu percurso.
desenvolver com os alunos propostas artsticas De volta ao Brasil, a artista continua com a
para serem experimentadas grupalmente. Dessa abordagem iniciada na Europa, mas de maneira
forma ela podia acompanhar de perto o efeito aperfeioada. O artigo de Suely, Molda-se uma
pleno das propostas artsticas. Em duas aulas alma contempornea: o vazio-pleno de Lygia Clark,
por semana com trs horas cada, ela propunha mostra que Lygia descobre que, para que a in-
experincias artsticas para o grupo inteiro e tegrao do corpo vibrtil se consolide em uma
acompanhava ao longo do semestre as diferentes subjetividade marcada pelo trauma dessa expe-
manifestaes que observava com essa interao rincia que levou a seu recalque, o ritual requer
particular entre o aluno e a obra da professora, continuidade no tempo e a expresso das fan-
pontua a pesquisadora. A principal obra deri- tasias produzidas pelo trauma. Segundo Suely
psique cincia&vida 39
Terapia da arte
Rolnik, esse processo necessita de um trabalho Lygia ter ido longe demais. A rede do meio artsti-
desenvolvido individualmente, para o conse- co que subjazia seu trapzio desapareceu: para esse
qente enfrentamento do vazio-pleno. meio, com rarssimas excees, sua obra no fazia
Ela cria um dispositivo artstico em que mais sentido algum, completa.
uma pessoa por vez, em uma hora de sesso, trs Assim como o meio artstico considerava
vezes por semana, ao longo de meses ou mes- no reivindicar para si em sua totalidade, a Psi-
mo de anos, tinha investigada a convocao da canlise criava resistncia em crer como vlidas
impossibilidade, mobilizando a angstia disso e suas experimentaes. De fato, Lygia fazia uso
tratando de maneira a poder efetivamente abrir de conceitos psicanalticos na realizao de suas
esse espao na sensibilidade do receptor. Lygia proposies e na interpretao de seus resultados.
Clark diz que liberar a imaginao criadora e o Considerando-se o pioneirismo de sua proposta,
poder onrico talvez a funo mais essencial da no havia um discurso capaz de apreend-la em
subjetividade, explica Suely. toda sua radicalidade; da ela recorrer Psican-
lise que, na poca, era o discurso legitimado para
EXPERINCIA OU TERAPIA? se referir ao trabalho com a subjetividade. O fato
As criaes transgressoras de Lygia Clark fo- que os psicanalistas no se interessaram pelo
ram poderosas o suciente para jog-la, junto assunto e os crticos no acompanharam e con-
com sua obra, em uma espcie de limbo que tinuam no acompanhando essa virada na obra
separa artistas de terapeutas. Ainda que existam de Lygia, salienta Suely, em Molda-se uma alma
alguns que respeitem esse seu perl marginal, contempornea: o vazio-pleno de Lygia Clark.
h tambm quem empurre a artista para as clas- Para Tania Rivera, psicanalista e professo-
sicaes que ela sempre evitou receber. ra adjunta da Universidade de Braslia (UnB),
Suely Rolnik acredita ser esse um grande a produo artstica de Lygia Clark e sua tica
mal-entendido entre crticos de arte e psicanalis- psicanaltica so indissociveis e podem certa-
tas. Penso que Lygia se disse terapeuta, inclusive mente confundir-se uma com a outra. Eu diria
a si mesma, como resposta surdez ambiente que que os dois campos lidam com a questo do su-
se constituiu em torno de sua obra, situao dia- jeito, portanto tm a aprender um com o outro
metralmente oposta ao sucesso que ela conhecera sem que haja uma resposta cabal. O que a arte, a
nos anos 1950 e 1960: no se pode esquecer que o Filosoa e a Pisicologia tm em comum a busca
momento em que Lygia d o chute radicalizador pelo entendimento da natureza humana, arma.
tambm o momento em que seu prestgio atinge o Essa associao tambm ganha fora dian-
apogeu, em escala internacional, diz no artigo Arte te das circunstncias histricas em que a arte
cura?. O problema reside, segundo ela, no fato de moderna e, posteriormente, a contempornea
Obras em Niteri
40 psique cincia&vida
E SPECIAL
estavam inseridas. Arte moderna e Psicanlise estmulos sensoriais, era totalmente modicada.
so do mesmo momento histrico. Na Lygia Essa srie de reaes provocada pelo trabalho de
isso se materializa desde o princpio de sua car- Lygia tornou possvel para esses indivduos en-
reira, resultando em um processo de aperfeio- xergarem-se como seres moventes, diz.
amento que inevitavelmente cai no movimento Nesse sentido, a teraputica da Estruturao
contemporneo, ressalta Tania. Alm disso, do Self permite perceber, segundo Arte cura? de
segundo a professora, momentos bastante mar- Suely Rolnik, que toda patologia diz respeito
cantes como a reviravolta de sua arte na dcada relao com o trgico. De acordo com ela, car
de 1960 foram pontuados por sesses psicanal- preso nas intensidades do corpo e dilacerado
ticas que ela mantinha. pela dor, como na psicose; ou dependente de es-
tratgias existenciais para anestesi-lo, como na
Psicanlise serviria mais como um neurose, mina a potncia criadora e entorpece
o estado de arte. As prticas analticas consisti-
alicerce para a obra da artista do riam, ento, em criar condies favorveis para
que para sua reprovao uma despatologizao da relao com o trgico.
Isso depende essencialmente da conquista de
uma intimidade com o ponto inominvel de
onde emergem as formas, arma.
A relao da arte de Lygia Clark com a Psican- Outro aspecto que deixa psiclogos e psica-
lise, porm, segundo Tania Rivera, vai muito alm nalistas reticentes quanto aplicao terapu-
da controversa abordagem teraputica da artista e tica da obra de Lygia Clark o fato de ela nun-
de sua aceitao pela Psicologia. A Psicanlise no ca ter se iniciado regularmente na Psicologia.
tem uma nica viso da arte, j que se posiciona O desconhecimento terico da artista, mesmo
muito mais com o objetivo de colocar questes pra que no se possa provar sua inuncia negativa
si prpria do que responder questes sobre arte. na formulao e nos resultados de sua aborda-
Elas partilham questes do nosso tempo e com- gem, causa receio e compromete as premissas
partilham questes sobre o sujeito em uma dicoto- ticas da psicoterapia. fato que temos que
mia entre o subconsciente e o material. impor- ter uma formao para proteger nossos clientes
tante acompanhar o dilogo entre elas recolocando e para nos protegermos. na educao que,
questes uma para a outra, pondera. A Psicanli- alm da tcnica, aprendemos a tica prossio-
se, portanto, serviria mais como um alicerce para a nal, analisa Joya Eliezer. Na opinio da espe-
obra da artista do que para sua reprovao. cialista, no se pode considerar Lygia Clark
O fato que, mesmo diante de tantas contesta- uma terapeuta de fato, mas uma matriz de
es, a arte de Lygia Clark possua claramente uma muitas pesquisas e de muitos tratamentos.
nalidade teraputica e que, como tal, nas palavras Suely Rolnik, nessa perspectiva de discusso,
de Suely Rolnik, teve como objetivo produzir uma percebe que para ser terapeuta, muito mais im-
abertura na sensibilidade do espectador, liberan- portante do que ter uma formao institucional
do o poder onrico, a capacidade de imaginao e fazer consigo mesmo um trabalho teraputico a
de criao. Joya Eliezer, psicloga, professora de vida inteira. Segundo ela, Lygia Clark fez anlise
Arteterapia da Universidade Estadual de Campinas a vida inteira, alm de ser inegvel sua capaci-
(Unicamp) e presidente da Associao Brasileira de dade muito renada de perceber a sensibilidade
Arteterapia, acredita que esse perl teraputico se do outro. Ela tambm lembra que, de qualquer
explica com a busca de novas referncias e perspec- forma, Lygia no foi uma terapeuta de fato, mas
tivas sobre a propriocepo (nova percepo interna como gostava de se auto-intitular uma propo-
de si mesmo). Deprimidos e esquizofrnicos cata- sitora. Porque se colocou na borda tambm da
tnicos eram alguns de seus principais clientes. Eles clnica de seu tempo, Lygia indica para ns analis-
tm uma noo de si muito precria que, com os tas novos rumos a explorar, comenta.
psique cincia&vida 41