Drama Do Joãozinho
Drama Do Joãozinho
Drama Do Joãozinho
JOÃOZINHO DA MARÉ
( peça em três atos e um debate)
Rodolpho Caniato
PRIMEIRO ATO
-“Ao meio dia, fessora, a gente tava de olho. A sombra ainda era muito
grande, quase do tamanho do poste. O sol, então não passou a pino não,
fessora”.
-“Olha, Joãozinho, você já está me fazendo perder muito tempo com
essa história e está atrapalhando minha aula. Pare de perturbar e anote o assunto
de hoje”.
Joãozinho agora tinha certeza que a sombra não desaparecera e,
portanto, o sol não passara pelo tal de “a pino”, nem pelo Zênite.
A convicção e a insistência do garoto, embora não fosse desrespeitosa,
havia deixado um “clima” desagradável entre ele e sua professora. Isso tudo
acontecera no meio do ano. Joãozinho só voltara à escola nas últimas aulas do
ano, quando outro incidente havia acontecido com ele.
Já era fim do ano letivo. Eram as últimas aulas do ano. Joãozinho estava
animado, principalmente pela merenda que havia melhorado. Por isso, nosso
herói, está sentado na primeira fila de carteiras. Quando toca o sinal para o fim
da aula, ele sai correndo, para ser o primeiro da fila do lanche. Ao sair da sala com
tanta pressa, ele da uma topada com o dedão na soleira da porta. Todos vinham
apressados atrás dele. Gemendo e chorando de dor, ele sai para o pátio,
segurando o dedão ferido. Sai mancando e olhando para o estrago que acaba de
fazer no seu pé. Quando a dor vai aliviando, ele continua a olhar para o pé. Só
que, agora, outra coisa lhe arrebata a atenção.
- “oh, turmaaaa!”
- “Telecooo!! Alemãooo !! Manecooo !! Linguiçaaaa !!Vem cá pessoal.”
- “Olha só, a sombra tá curtinha. Parece que vai sumir”.
Seus amigos acodem ao seu chamado. Todos olham para a sombra
que está sumindo..... Mais alguns instantes...
-“Sumiu”, gritam em coro. Finalmente, o sol passara a pino.
Só que ainda faltava um quarto de hora para o meio-dia.
SEGUNDO ATO
Segunda cena
Resumo: Mesmo cenários e mesmos personagens, porém um mês
depois da primeira cena (a professora está com outra roupa).
Embora Joãozinho não tivesse sido desrespeitoso, outra vez havia ficado
um clima de certo constrangimento. A professora havia ficado “sem saída”, diante
dos argumentos do garoto. Por isso Joãozinho achou mais prudente “dar um
tempo”, até que passasse a “zanga” dela com ele.
Ele ficara sabendo, através dos amigos, que ia ser tratado um assunto
de seu grande interesse. Esse assunto seria “as estações do ano”.
Os alunos, entre eles Joãozinho e seus amigos, entram na classe. Em
seguida entra a professora. Começa a aula do dia.
-“O assunto hoje será sobre as estações do ano”.
A professora “dá” a aula com aquelas definições que quase sempre são
dadas e fazem parte dos estereotipados programas escolares. Em resumo:
-“O verão é o tempo do calor”.
-“O inverno é o tempo do frio”.
-“A primavera é o tempo das flores”.
-“O outono é o tempo das frutas”
Para o Joãozinho, que vive naquela favela do Rio de Janeiro, muito
poucos dias poderiam ser chamados de frio. E’ até, graças a esse calor quase
constante que ele sobrevive apenas com um velho calção que, tempos atrás, fora
short de um garoto da zona Sul. Sua atividade quase sempre é ajudar seu irmão,
um pouco maior, a vender flores e frutas em Copacabana. Tanto flores quanto
frutas, eles vendem o ano todo. ......E ainda tinha muito mais....
Das imediações de sua favela, próxima à Av. Brasil, ele vê passar
muitos caminhões, tanto de flores quanto de frutas, durante todo o ano. Todos
dias passam também por ali cortejos que levam flores. São os enterros que se
dirigem para os cemitérios próximos . Ele também já havia estado num grande
mercado dessa região, pegando uma xepa e pudera constatar que ali se vende
grande quantidade de flores e frutas, durante todo o ano.
8
moleque soavam como insolência e desaforo, tão segura ela estava de sua
Ciência, repetida tantos anos a fio e nunca posta em dúvida.
No momento em que ela enfatizava que a Terra ora passa perto, ora
passa longe, Joãozinho se lembrou de uma outra experiência por ele vivida.
-“Fessora ?”
-“Que é, menino .Você ainda não se convenceu?”, diz ela com certa
irritação.
-“E’ que quando a senhora falô que a Terra , às veis passa perto e às
veis passa longe, eu lembrei dos avião que a gente vemos daquí”.
-“ E o que que avião tem a ver com as estações do ano, menino ?”
-“Eu achei que tem, fessora. E’ que avião, quando vai chegando,
vai chegando pert, vai ficando grandão. Quando vai pra longe vai
ficando piquininim.”
-“E daí ...?” já quase perdendo a paciência.
-“Se a Terra chegasse mais perto do Sol, a gente não tinha que vê ele
maiorzão? Depois, quando a Terra passasse mais longe agente não
tinha que vê ele menorzim? a gente vemos ele sempre do mesmo
tamanho, num é?”
TERCEIRO ATO
Zuleica começa então a narrar para sua colega, tudo que lhe sucedera
na aula. Era a culminância de vários episódios de constrangimento, em que sua
Ciência tinha ficado em xeque e, sempre com aquele moleque, o Joãozinho.
Ela conta então, resumidamente, todos aqueles episódios em que sua
ciência tinha sido “ultrajada” pelo garoto . Era sempre ele. Já nas primeiras aulas,
ele havia evidenciado sua decepção por aquelas aulas “tão chatas”, segundo ele,
sobre corpo humano: ”cabeça, tronco e membros”. Em seguida, ela reproduz
aquele episódio dos pontos cardeais e do “sol a pino”. Hoje, no entanto, tinha sido
“demais para minha cabeça”, com a história das estações, verão e inverno e a
12
órbita elíptica da Terra; a tal questão do “passa perto, passa longe do Sol”. Alem
do “desastre” daquela aula, a professora estava preocupada com a mesma aula
que teria que dar, na próxima semana, sobre os mesmos assuntos, para uma
outra turma da mesma escola. Os argumentos do Joãozinho podiam “contaminar”
outras turmas e comprometer suas aulas futuras de uma ciência agora posta em
dúvida. Letícia vai ouvindo, pacientemente. Zulêica, à medida que vai contando,
também vai se acalmando e começando a poder enxergar o que lhe acontecera.
Mas, era realmente perturbador, pensar que depois de ensinar aquelas coisas,
daquele mesmo jeito, por quinze anos, ela mesma começava a ficar em dúvida.
Até aqui, tudo aquilo lhe parecia uma verdade convicta. Nunca sequer lhe
ocorrera qualquer dúvida. Ela achava que aquilo que havia ensinado era
verdade científica
Depois de muito ouvir, Letícia diz ter ouvido falar de coisas parecidas por
parte de uma professora sua amiga. Essa amiga contara que havia estado em
uma reunião e até em um curso onde se havia levantado essas questões. Era um
grupo de professores da UFRRJ que estava mostrando que nossas escolas estão
“plantando muita tiririca” nas cabecinhas das crianças. Entre essas “tiriricas”
estavam, justamente questões desse tipo.
Diminuída a raiva inicial, Zulêica começa a rememorar as discussões
que tivera em classe com Joãozinho. Aos poucos, ela vai percebendo que
Joãozinho não tinha dito nem feito nenhum desaforo. Seus argumentos eram
claros e ingênuos: independentes de qualquer estudo da Ciência
- “Como eu não consegui perceber isso ?”, Pergunta ela a si mesma .
No caso de onde nasce o Sol, era evidente. Ela começa a perceber que toda a
vida repetira “aquilo”, sem nunca ligar o assunto da aula com sua experiência
diária. Afinal, todos os dias, antes de sair para a aula , ela abria sua janela e
podia ver que o sol vai nascendo em lugares muito diferentes, nas diferentes
épocas do ano. Isso faz também o sol entrar e iluminar de maneira diferente o seu
quarto, em diferentes épocas do ano.
Letícia lembra que ouvira de sua outra amiga falar desses problemas e
dos cursos que estavam sendo dados por aquele grupo, na tentativa de evitar
“tanta disseminação das tiriricas”.
Zuleica volta a lembrar a questão do “sol a pino”. Aos poucos, ela
começa a admitir que não seria mesmo possível, de nenhuma maneira, que o
meio-dia fosse definido pelo “sol a pino”. Afinal, “meio dia” existe em todo lugar.
“sol a pino” só é possível em países tropicais . Tropical , afinal é isso: poder
receber o sol a pino , ao menos uma vez no ano. Mesmo no Brasil, boa parte de
seu território está fora da região tropical. Essa região tem “meio dia” todos os dias
mas, nunca tem “sol a pino”. Todos os países que estão fora da região tropical,
como EEUU, Canadá, toda a Europa, etc, têm “meio dia”. Nenhum deles tem,
nunca, “sol a pino” .
Aos poucos, a professora Zulêica, vai se dando conta de que eram
legítimos e irrefutáveis os argumentos ingênuos do Joãozinho. Isso a abalava
13
muito, ao dar-se conta de que, durante tantos anos, havia ensinado, como
Ciência, uma coisa que não resistia aos argumentos ingênuos e tão claros de um
garoto da favela e que jamais havia estudado qualquer ciência.
E...... porque só o Joãozinho ? E os outros...? Porque ninguém nunca
cobrara a consistência do que ela sempre ensinara com tanta certeza ? Qualquer
das coisas do “caso” Joãozinho poderia ter sido percebida por todos os alunos.
Mas ninguém percebeu nada. Nem mesmo ela.
Até agora ela achava que “ a escola é o lugar onde as crianças
desenvolvem suas potencialidades”. Agora ela começava a desconfiar também
dessa verdade indiscutível. E’ até muito curioso que tenha sido justamente o
Joãozinho, que quase não vem à aula. Não seria exatamente por isso que ele
ainda mantinha a natural vontade de saber e de entender aquilo que vê e
ouve?
Ela se lembra então de uma charge que, anos atrás, vira numa revista e
que a deixara contrariada, quase ofendida. A charge mostrava uma fila de
crianças entrando numa escola ( “ex-cola”? ) . Na fila dos que estavam entrando,
todos tinham as cabecinhas redondinhas. Na fila dos que estavam saindo, do
outro lado, todos tinham as cabeças quadradinhas.
-“Sabe, Zulêica, completa sua colega.
-O que, Letícia ,tem mais ainda ...?
-“Tem uma “heresia” ainda maior , daquele professor que tem
dado palestras e cursos ,também aqui pela baixada fluminense.
Ele diz que grande parte de nossas escolas, em lugar de
cientistas forma mais é SENTISTAS .
-“S E N T I S T A S”........?
DEBATES E DESDOBRAMENTOS