Drama Do Joãozinho

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JOÃOZINHO DA MARÉ
( peça em três atos e um debate)
Rodolpho Caniato
PRIMEIRO ATO

Época: fim dos anos setenta (l977).


Lugar:Favela da Maré, situada próxima à confluência da Avenida
Brasil com a via de acesso ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.
Personagens: Joãozinho da Maré, garoto escurinho, muito vivo e
interessado em entender o Mundo e “saber das coisas”.
Maneco, moleque pretinho, vendedor de amendoins na zona Sul. Alemão,
moleque “sarará”, muito “cdf”, “ajudante” da Professora e seu “porta voz” junto à
comunidade. Lingüiça adolescente (muito magro) que só está interessado na
merenda escolar. Teléco, moleque muito esperto, desinteressado pela escola
mas muito amigo do Joãozinho. Seu maior sonho é ser “mestre sala” de
sua“princesa”, a futura porta bandeira da escola “Unidos da Maré”.
Cenário: Centro de um pequeno espaço entre os barracos da Favela da
Maré, onde estão reunidos Joãozinho e seus amigos. Logo atrás do grupo de
moleques, do lado direito, está um casebre, sem porta nem janela, sustentado por
palafitas fincadas no lodo das margens da baia da Guanabara. Em frente ao
barraco, uma passarela de tábuas, também sustentada por palafitas, serve de
“rua”, passando pela frente de muitos outros barracos. Como fundo, bem distante,
no horizonte, à direita pode-se ver o “Pão de Açúcar”. Ao fundo, do lado
esquerdo, vê-se a torre do aeroporto do Galeão. Como fundo mais distante, ainda
do lado esquerdo, vê-se o perfil da Serra dos Órgãos, onde é bem característico o
“Dedo de Deus”.
Resumo: Os moleques, tendo como centro o Joãozinho”, estão falando
sobre seu dia-a-dia na grande cidade do Rio de Janeiro. Cada um tem aventuras
e desventuras para contar de suas vidas faveladas.
Maneco conta das dificuldades para vender o amendoim que tem que
estar sempre quente. E’ uma trabalheira, além de andar muito para vender, ter que
manter sempre acesas as brasas que mantém quente seus cartuchos de
amendoim. Toda hora é preciso assoprar ou estar balançando sua lata-fogão.
Depois de vender tudo, quando vende, ele volta para casa dependurado no pára-
choque traseiro ou de “carona” de algum ônibus.
Alemão . Esse nunca falta à aula na escolinha da Maré e decora tudo
que a professora dita, mas muito pouco entende: “é mais fácil decorar e a
professora me dá deis, cara”, é sua justificativa.
Lingüiça. Só vai à aula quando, de véspera, fica sabendo com certeza
que vai ser distribuída uma merenda. Ultimamente ela, a merenda, anda faltando
muito.
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Teléco já toca tamborim na ala juvenil da escola de samba Unidos da


Maré” e sonha ser “mestre-sala” de sua “princesa”, futura “porta bandeira”.
Joãozinho, apesar de quase não ir à escola, se destaca pelo seu
interesse em querer “saber das coisas”. Talvez por ir pouco à escola, não se lhe
apagou a curiosidade de olhar para o Mundo e querer entender aquilo que vê.
Seu trabalho é ajudar um irmão um pouco mais velho, que já é “arrimo” de família.
Os dois passam o dia a vender flores e frutas, lá pelas esquinas de Copacabana.
Desde antes de entrar para a escola, ele alimentava grande ansiedade
para ver ou ouvir de perto alguma coisa sobre a Ciência. Algumas coisas de que
ele ouvira falar ou havia visto na televisão, lhe tinham despertado a vontade de
saber mais. O que ele está contando a seus amigos é principalmente sobre o
“aprendizado” da rua e seu desapontamento quando, finalmente, chegou a hora
de “ver” isso na sua escola. Sua expectativa das aulas de Ciência era de que elas
teriam a ver com tudo que ele ouvira falar, sobre tantas coisas interessantes. À
medida que as aulas foram acontecendo, seu desapontamento foi se tornando
maior. Era uma “chatice” aquela “decoreba” de “cabeça, tronco e membros”. Ele
gostava de fazer muitas perguntas e a professora já estava ficando amolada, com
tantas que ele fazia “fora do programa”. Isso “atrapalhava” as ”aulas, o
cumprimento do programa” e, muitas vezes, colocava a professora num beco sem
saída.
Um incidente tinha deixado a professora meio arisca com o Joãozinho.
E’ que numa das aulas obrigatórias, segundo os programas vigentes, o assunto
era “fusos horários” . Depois de muitas definições, a professora havia falado sobre
o dia, a noite, as horas , etc. No fim daquela aula, a professora tinha falado sobre
o sol e as horas. A última definição naquele dia foi sobre o meio-dia. A professora,
como sempre fizera, havia muitos anos, definiu o meio-dia como “a hora em que o
sol passa a pino”. Diante das dúvidas sobre o que queria dizer “a pino”. A
professora explicou que “a pino” quer dizer “no ponto mais alto de céu”, ou “bem
sobre nossas cabeças”, ou “no Zênite”. Isso era o mesmo que dizer que ao meio
dia nossas sombras, ou a sombras dos postes (verticais) desapareceria. Naquele
dia, como sempre, a aula terminava um pouco antes do meio-dia. Joãozinho que
sempre queria entender as coisas, havia sugerido à professora que se
aproveitasse a ocasião para ver a sombra desaparecer, debaixo dos pés da gente,
ou debaixo dos postes, logo depois da aula.
A professora não aceitou a sugestão, alegando que não tinha tempo para
isso . Além de tudo, tinha que sair depressa e tomar o ônibus para ir dar mais um
período de aulas, em Acari. Somente, Joãozinho e seu pequeno grupo de
amigos, saíram da sala para ver as sombras que deviam “desaparecer” . Ainda
não era bem meio-dia. O pátio da escola estava cheio de bandeirolas para a festa
junina daqueles dias. Havia muitas estacas de bambu espetadas no pátio, para
sustentar as fiadas de enfeites coloridos das festas de São João. Faltavam alguns
minutos para o meio-dia. As sombras ainda estavam muito longas. Os meninos,
atentos às sombras dos bambus, perceberam que elas estavam mesmo
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diminuindo...... . Mas estavam ainda muito compridas. O pequeno grupo, tinha os


olhos firmas nas sombras para ver o momento em que elas desapareceriam. Bate
meio dia. As sombras haviam encurtado, mas ainda estavam muito compridas,
quase do tamanho dos objetos que as produziam Cada um olha para a própria
sombra e para a de seus colegas. Todas as sombras ainda estavam muito longas.
As sombras não desapareceram ao meio-dia. Decepção do Joãozinho e de seus
amigos.
No dia seguinte Joãozinho, de volta à escola, conta à professora o que
haviam observado: as sombras ainda eram bem longas, quando “deu” meio-dia.
-“Com certeza, vocês não olharam direito”, foi a resposta da professora.
-“Todo mundo sabe que ao meio-dia, o sol passa a pino. Faz quinze anos que eu
ensino isso”. Em todo caso, poderia ter havido um engano.- “Será que quando
olhamos, o sol já tinha passado a pino, e nós não vimos ?” Será que eles haviam
observado depois de passado o meio-dia?
Com essa dúvida, Joãozinho e seus amigos resolvem “matar a aula” do
dia seguinte. -“Vamos verificar se o sol passou ou não passou a pino”. Para tanto
combinaram de se encontrar bem cedo, antes que o sol aparecesse, numa grande
esplanada que estava sendo feita, nas imediações de sua “Maré”. Era um grande
terreno, recém aplainado e preparado para um projeto de urbanização. Lá, já
estavam fincados os postes das futuras ruas.
Logo que o sol nasceu, os garotos puderam ver as sombras muito
longas. Eles acharam muito curioso o que nunca tinham notado antes. Bem cedo,
as sombras são muito compridas e vão encurtando rapidamente, enquanto
lentamente vão mudando de direção. Era bem visível que a sombra estava
“encolhendo” bem depressa.
-“Hoje vamos tirar a dúvida”, pensaram todos.
`A medida que as horas foram passando, as sombras foram mesmo
encurtando. Quando já estavam mais próximos do meio-dia, perceberam que a
sombras, agora, continuavam a encurtar. Só que agora encurtavam mais devagar.
Agora, as sombras pareciam mudar mais depressa de direção. Já estava faltando
pouco para o meio-dia e a sombras ainda estavam muito longas. Quando “deu”
meio-dia, as sombras ainda estavam mesmo muito compridas. Em seguida, as
sombras de todos os postes, sempre paralelas entre si, foram mudando de
direção e começaram a aumentar para o outro lado. Não havia dúvida. As
sombras dos postes ao meio dia ainda eram muito grandes, quase do mesmo
comprimento que os próprios postes.
As sombras não desapareceram ao meio-dia. Não havia a menor dúvida.
Pelo contrário, elas ainda eram muito compridas ao meio-dia. Portanto, o sol não
passou “a pino”, como ensinara a professora.
No dia seguinte, Joãozinho voltou à escola e contou o que ele e seus
amigos haviam observado.
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-“Ao meio dia, fessora, a gente tava de olho. A sombra ainda era muito
grande, quase do tamanho do poste. O sol, então não passou a pino não,
fessora”.
-“Olha, Joãozinho, você já está me fazendo perder muito tempo com
essa história e está atrapalhando minha aula. Pare de perturbar e anote o assunto
de hoje”.
Joãozinho agora tinha certeza que a sombra não desaparecera e,
portanto, o sol não passara pelo tal de “a pino”, nem pelo Zênite.
A convicção e a insistência do garoto, embora não fosse desrespeitosa,
havia deixado um “clima” desagradável entre ele e sua professora. Isso tudo
acontecera no meio do ano. Joãozinho só voltara à escola nas últimas aulas do
ano, quando outro incidente havia acontecido com ele.
Já era fim do ano letivo. Eram as últimas aulas do ano. Joãozinho estava
animado, principalmente pela merenda que havia melhorado. Por isso, nosso
herói, está sentado na primeira fila de carteiras. Quando toca o sinal para o fim
da aula, ele sai correndo, para ser o primeiro da fila do lanche. Ao sair da sala com
tanta pressa, ele da uma topada com o dedão na soleira da porta. Todos vinham
apressados atrás dele. Gemendo e chorando de dor, ele sai para o pátio,
segurando o dedão ferido. Sai mancando e olhando para o estrago que acaba de
fazer no seu pé. Quando a dor vai aliviando, ele continua a olhar para o pé. Só
que, agora, outra coisa lhe arrebata a atenção.
- “oh, turmaaaa!”
- “Telecooo!! Alemãooo !! Manecooo !! Linguiçaaaa !!Vem cá pessoal.”
- “Olha só, a sombra tá curtinha. Parece que vai sumir”.
Seus amigos acodem ao seu chamado. Todos olham para a sombra
que está sumindo..... Mais alguns instantes...
-“Sumiu”, gritam em coro. Finalmente, o sol passara a pino.
Só que ainda faltava um quarto de hora para o meio-dia.

Tudo isso estava sendo narrado e comentado por Joãozinho para


explicar seu desapontamento com a sua escola e seu ensino. Essa era a razão
por que ele já quase não estava freqüentando as aulas.
Nisso entra o Alemão, trazendo um recado da professora. Ela andava
muito preocupada com a grande evasão escolar. -“Muita gente tá faltando”, diz o
Alemão. E logo acrescenta:
-“A professora mandou dizer para o Joãozinho que amanhã ela vai “dar”
um assunto que ela sabe que ele gosta. Ela manda avisar também que amanhã
vai haver uma “merenda reforçada.”
Todos combinam que na manhã seguinte irão à aula e bradam:
-“Amanhã, a gente vamos todo mundo na aula”.
Fim do primeiro ato
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SEGUNDO ATO

Local: escola da Maré.


Época:dia seguinte ao do primeiro ato Escola da Maré, nas
proximidades de favela da Maré.
Personagens: Joãozinho da Maré, Professora, os amigos do Joãozinho
(Alemão, Maneco, Lingüiça e Teleco), coadjuvantes (demais alunos).
Cenário: Sala de aula da Escola da Maré. O aspecto da sala de aula é de
miséria e desleixo. Paredes e carteiras rotas e sujas. Quadro
negro pálido pelo desgaste e falta de manutenção:
Quando se levanta o pano a sala está vazia . Logo depois entram os
alunos:Joãozinho, seus amigos e os demais alunos. Depois de algumas
brincadeiras e falas entre eles, denotando a surpresa pela presença do Joãozinho,
a turma se aquieta. Entra a Professora, queixando-se da viagem de ônibus e da
caminhada para chegar à escola naquele aterro distante da Av. Brasil.
A professora se admira da presença do Joãozinho que há muito tempo
não aparecia na escola. _Logo depois, ela anuncia o assunto do dia: orientação e
pontos Cardeais. Em seguida, ela “da” uma aula sobre a importância de a gente
saber se orientar, especialmente no caso de estar perdido, no mato, por exemplo.
-“Para a gente se orientar”, diz a professora, “é indispensável o
conhecimento dos pontos cardeais. Não basta saber o nome deles, que são:
Norte, Sul, Leste e Oeste. E’ importante saber como se determina esses pontos.”
Em seguida, a professora começa a dar aquela explicação que sempre
dera, durante os quinze anos de magistério e que sempre é dada, em quase todas
es escolas, com raríssimas exceções (nunca encontrei uma dessas). Essa
“explicação” continua a ser dada.
-“Prestem atenção. A gente estende o braço direito para o ponto em que
o sol nasce. Esse ponto é o ponto Leste. Depois, a gente estica o braço esquerdo,
bem na direção oposta. Esse novo ponto é o ponto Oeste. Aí você terá bem na
sua frente, o ponto Norte e atrás de você, estará o ponto Sul”.
-“Entenderam?”, pergunta a professora.
-“Entendemos”, respondem os alunos, em coro.
Aí , a professora faz um “reforço” para “fixar”a aprendizagem..
-“Prestem atenção que agora, vocês vão repetir comigo”
“Primeiro, eu viro o braço direito para o ponto em que nasce o sol.
(faz o gesto).
-“Esse.... ponto... é... o.... pooontoooo .............?
-“Leeesteee.......”, respondem todos, em coro
-“Agora, eu vou estender o braço esquerdo para o lado oposto.
(estende o outro braço).
-“Esse...ponto... é... o.. pooontooo.......? ”
-“O....e..s..t..e eee”, responde a sala, em coro.
-“Muito bem”, reforça a professora.
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-“Ägora, vamos completar”


-“O ponto que fica bem na minha frente é... o p..o .n..t..o. ... ? “
-“N..o o o..r..t.. e e e e e”, responde o coro.
-“E o ponto que fica atrás de mim ..... é......o pontooooo ...?
-“S..u u u..l l ”, completa a classe.
-“Muito bem, meus alunos. Agora vocês sabem os pontos Cardeais.

Joãozinho nunca havia estudado nada de ciência, nem desses assuntos


que a professora estava dando hoje. Mas o garoto, talvez por não freqüentar as
aulas, ainda não tivesse perdido a natural curiosidade e a vontade de entender o
que via e ouvia. Ele olhava para o mundo com olhar de quem quer e gosta de
entender as coisas.
Quando a professora já estava a ponto de passar para um outro assunto,
dando os pontos Cardeais por coisa sabida , Joãozinho expõe sua dúvida.
-“Fessora, em que dia que a gente deve fazer isso daí, que a Sra
ensinou, de estender o braço direito para o lado onde nasce o sol?”
Para a professora parecia descabida a dúvida. Ninguém havia nunca
tido dúvida semelhante. Nem a professora havia pensado em qualquer data.
Quando a ela ensinaram esse assunto, foi do jeito que ela acabava de reproduzir.
Essa dúvida, agora, depois que acabava de ensinar e de fazer que os alunos
repetissem....? Para liquidar o assunto, ela responde que sempre o sol nasce no
Leste e que isso não tinha dia especial. Diante da insistência do Joãozinho, ela
fica visivelmente contrafeita e pede ao menino que justifique sua dúvida.
Joãozinho fala então de sua experiência simples e vivida no seu
dia-a-dia. Ele, a mãe e os outros irmãos moram num barraco que não tem porta
nem janela. Por isso, todos os dias, ele e toda sua família acordam com o sol na
cara. Para ele, literalmente estava na cara que o sol durante o ano, nasce em
lugares muito diferentes.
Ele conta até que na época das festas juninas, no meio do ano, o sol,
visto de seu barraco, nasce
- “lá para os lados do Dedo de Deus”(Serra dos Órgãos). Ele até aponta
naquela direção que se vê também aí da escola.
-“Depois, quando chega o fim do ano, o sol nasce lá para os lados do
Pão de Açúcar”, que também é visível de seu barraco e da escola. Ele não sabe
dizer de quantos graus é essa diferença. Mas, num gesto com os braços, ele faz
um ângulo muito grande. (no Rio de janeiro, essa diferença é de
aproximadamente cinqüenta graus, mais que meio ângulo reto).
A professora não sabia o que responder. Nunca ninguém tivera dúvida
semelhante, em todos os seus quinze anos de magistério. Não sabendo como
sair daquela situação que punha em xeque “seus” pontos Cardeais, a professora
achou melhor não dar muita importância ao que o menino dizia. A aula já estava,
felizmente, para acabar.
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Sem perceber o constrangimento e a “pontaria” mortal de seus próprios


argumentos, Joãozinho dispara:
- “Se o sol tá sempre mudando tanto na posição que nasce, o ponto
Leste também tá mudando sempre. – Os pontos cardeais também tão mudando,
junto com a mudança do lugar em que o sol nasce?”. E aí, como é que a gente se
orienta?”
Realmente: ou o ponto Leste não é simplesmente o ponto em que nasce
o sol, ou esses pontos Cardeais não servem para nada, porque estão sempre
mudando.
Fim da primeira cena( do segundo ato)

Segunda cena
Resumo: Mesmo cenários e mesmos personagens, porém um mês
depois da primeira cena (a professora está com outra roupa).
Embora Joãozinho não tivesse sido desrespeitoso, outra vez havia ficado
um clima de certo constrangimento. A professora havia ficado “sem saída”, diante
dos argumentos do garoto. Por isso Joãozinho achou mais prudente “dar um
tempo”, até que passasse a “zanga” dela com ele.
Ele ficara sabendo, através dos amigos, que ia ser tratado um assunto
de seu grande interesse. Esse assunto seria “as estações do ano”.
Os alunos, entre eles Joãozinho e seus amigos, entram na classe. Em
seguida entra a professora. Começa a aula do dia.
-“O assunto hoje será sobre as estações do ano”.
A professora “dá” a aula com aquelas definições que quase sempre são
dadas e fazem parte dos estereotipados programas escolares. Em resumo:
-“O verão é o tempo do calor”.
-“O inverno é o tempo do frio”.
-“A primavera é o tempo das flores”.
-“O outono é o tempo das frutas”
Para o Joãozinho, que vive naquela favela do Rio de Janeiro, muito
poucos dias poderiam ser chamados de frio. E’ até, graças a esse calor quase
constante que ele sobrevive apenas com um velho calção que, tempos atrás, fora
short de um garoto da zona Sul. Sua atividade quase sempre é ajudar seu irmão,
um pouco maior, a vender flores e frutas em Copacabana. Tanto flores quanto
frutas, eles vendem o ano todo. ......E ainda tinha muito mais....
Das imediações de sua favela, próxima à Av. Brasil, ele vê passar
muitos caminhões, tanto de flores quanto de frutas, durante todo o ano. Todos
dias passam também por ali cortejos que levam flores. São os enterros que se
dirigem para os cemitérios próximos . Ele também já havia estado num grande
mercado dessa região, pegando uma xepa e pudera constatar que ali se vende
grande quantidade de flores e frutas, durante todo o ano.
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Contudo havia um período do ano em que eram mais freqüentes os


cortejos que levavam flores pela Av. Brasil: os casamentos . Era o mês das
noivas, o mês das rosas, o mês de maio .............?.... “Então, maio devia ser na
primavera ?”
Todas essas coisas vivenciadas por Joãzinho, iam lhe passando pela
cabeça, enquanto a professora continuava falando sobre as quatro estações.
Para fazer a “fixação”.................
-“Vamos ver se vocês aprenderam....”
-“O verão é o tempo ... do...........?” , pergunta a professora.
-“CAAALOOOR” , respondem todos.
-“O inverno é o tempo... do.....?
-“F R I I I O O O”, responde o coro.
-“A primavera ...é.... o.... tempo.... das....?
-“FLOOOREEEES”, responde o coro, agora com mais força.
-“E o outono é o tempo ...das... ?”
-“FRUUUTAAAS”, terminam os alunos.

Joãozinho que, enquanto isso estava pensando, resolve perguntar.

-“Porque existe tempo de frio e tempo do calor, fessora ?”


-“Muito bem, Joãozinho. Essa é uma boa pergunta”
Com essa pergunta, a professora percebe que o menino está mesmo
querendo saber e não é movido por intenção de atrapalhar. Satisfeita com a
oportunidade de poder mostrar seu conhecimento além do que o programa pedia,
ela dá uma resposta mais “científica”.
-“Eu já expliquei, numa outra aula, a Terra que é uma grande bola, está
girando no espaço. Além do movimento de rotação , que produz os dias e as
noites, a Terra faz uma grande volta ao redor do Sol.. Essa volta não é circular. E’
uma órbita elíptica. Isso quer dizer que em parte do ano a Terra passa mais
perto do Sol. Quando passa mais perto é verão. Quando passa mais longe é
inverno”
- “Fessora”, pergunta o Joãozinho.
- “A senhora não explicou pra gente que a Terra é uma grande bola e
que ela está girando? –Que é por isso que tem dia e noite ?”
-“E’ isso mesmo , Joãozinho ”, confirma a professora.
-“Quer dizer que quando a bola está girando mais perto do Sol, é
verão e quando está girando mais longe, é inverno ?”
-“Muito bem, Joãozinho, é isso mesmo.”
-“Fessora ?”
-“Que é Joãozinho” , responde a professora , já com certa impaciência .
-“Eu tava aqui pensando.......”
-“Pensando o que, Joãozinho ?” , com mais impaciência.
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Aí, Joãozinho, a seu modo, começa a argumentar de maneira simples e


ingênua da seguinte forma. Se a Terra é uma bola que está girando mais perto do
Sol, então deve ser verão em toda a bola, ao mesmo tempo, porque ela está
girando próxima ao Sol. Se é o maior afastamento da Terra do Sol que provoca o
inverno, então deve ser inverno em toda a Terra. Se fosse o maior ou menor
afastamento do Sol, a Terra deveria ter, em toda ela, verão, quando próxima e,
em toda ela, inverno, quando afastada. O argumento era simples e claro. A
professora nunca se havia dado conta da inconsistência evidente da coisa que
repetira durante tantos anos, como coisa científica.
A essa altura da argumentação do Joãozinho, a professora já estava
tensa. Ela nunca havia pensado nisso e não sabia como responder ao menino.
Por um lado os argumentos de “perto” e “longe” do Sol, como causa das estações
estavam em verdadeiro “xeque-mate”. Tinha que ser só inverno e depois só
verão. Mesmo ela, sabia que existem simultaneamente verão e inverno
Por outro lado o Joãozinho havia argumentado que
-“A gente sabemos que tem verão e inverno , ao mesmo tempo” .
E’ que Joãozinho e seus amigos , quando chegava o fim do ano, só
saiam para o ensaio da escola de samba “Unidos da Maré”, depois de ver o jornal
da televisão no “butiquim” da favela. Aí podiam ver “ao vivo” os diferentes países
atolados na neve, enquanto ele e toda gente de sua favela viviam verdadeiro
sufoco de calor: Rio de Janeiro 40 graus.
Além de ver na televisão, Joãozinho e seus amigos faziam algum
“biscate” nas proximidades do aeroporto do Galeão, ali perto. Sempre ganhavam
algum troco, carregando alguma mala de passageiros que chegavam da Europa.
As malas ainda vinham geladas. As pessoas ainda traziam pesadas roupas de
frio e contavam que há poucas horas ainda estavam sob a neve do inverno, no
lugar de onde acabavam de chegar: da neve ao sufocante calor carioca.

Diante da insistência do Joãozinho naqueles argumentos que resultavam


de sua experiência, de seu dia-a-dia, a professora, sem saída, reclama de sua
“impertinência que só visava atrapalhar e tumultuar” sua aula . Por essa razão, a
professora resolve pontificar com sua “autoridade científica”. Já bem nervosa, ela
alega que faz quinze anos que ela ensina tudo isso e que nunca ninguém tinha
posto em dúvida seus conhecimentos e sua autoridade de professora. E, para
enfatizar sua autoridade, ela dita, lembrando que esses assuntos poderiam “cair”
nas provas :
-“A Terra descreve, ao redor do Sol, uma grande curva que se chama
órbita elíptica. Essa órbita é uma elipse, que ora se aproxima ora se afasta do
Sol. Portanto, A Terra passa, ora mais perto, ora mais longe do Sol e é por isso
que existem verão e inverno. Estamos conversados”.
Joãozinho estava tão convencido daquilo que estava pensado que nem
se dera conta de quanto a professora já estava irritada. A ela, os argumentos do
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moleque soavam como insolência e desaforo, tão segura ela estava de sua
Ciência, repetida tantos anos a fio e nunca posta em dúvida.
No momento em que ela enfatizava que a Terra ora passa perto, ora
passa longe, Joãozinho se lembrou de uma outra experiência por ele vivida.
-“Fessora ?”
-“Que é, menino .Você ainda não se convenceu?”, diz ela com certa
irritação.
-“E’ que quando a senhora falô que a Terra , às veis passa perto e às
veis passa longe, eu lembrei dos avião que a gente vemos daquí”.
-“ E o que que avião tem a ver com as estações do ano, menino ?”
-“Eu achei que tem, fessora. E’ que avião, quando vai chegando,
vai chegando pert, vai ficando grandão. Quando vai pra longe vai
ficando piquininim.”
-“E daí ...?” já quase perdendo a paciência.
-“Se a Terra chegasse mais perto do Sol, a gente não tinha que vê ele
maiorzão? Depois, quando a Terra passasse mais longe agente não
tinha que vê ele menorzim? a gente vemos ele sempre do mesmo
tamanho, num é?”

A professora com esses argumentos se sente perdida e começa a


esbravejar, muito zangada. Se estabelece um pequeno tumulto, pela intervenção
de dois amigos, a favor do Joãozinho. A maioria dos alunos, prefere não entrar na
“briga” porque já aprendeu que é mais prudente ficar do lado da autoridade, para
não se comprometer. Mesmo assim, a discussão fica muito acalorada. A
professora, agora aos berros, tenta impor sua autoridade, fazendo ameaças de
não mais permitir “gente que fica interrompendo a minha aula”.
No auge do tumulto e das ameaças da professora, toca o sinal para o
fim da aula. A professora é salva de maior constrangimento pelo final da aula
-Triiiiiiiiimmmmm

Cai o pano. Fim do segundo ato.


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TERCEIRO ATO

Lugar : sala de um modestíssimo e pequeno apartamento em


Nova Iguaçu, arredores do Rio de Janeiro.
Personagens: A professora (Zulêica) do Joãozinho e outra
professora, Letícia, com quem ela divide o
pequeno e pobre apartamento(conjugado).
Tempo : Duas horas depois de haver terminado a aula do fim do
segundo ato.
Cenário: Sala do modesto apartamento (conjugado) .

Resumo: Num velho sofá, está recostada, descansando a professora


que divide o apartamento com a professora do Joãozinho. Ela está lendo,seu
horóscopo enquanto ouve notícias de um velho rádio. O noticiário nacional
destaca as greves no ABC. O presidente Geisel exonera o ministro do Exército,
integrante da linha dura e inicia uma abertura “lenta e gradual”. No cenário
internacional as notícias são sobre o nascimento do primeiro bebê de proveta, o
suicídio coletivo promovido pelo reverendo Jim Jones, em Jamestown, na Guiana
e o reconhecimento de Israel, por parte do presidente Sadat do Egito.
Repentinamente, entra a professora (Zulêica) do Joãozinho, carregando
uma pilha de cadernos para corrigir. Ela chega esbaforida pela viagem de mais de
uma hora de ônibus, viajando em pé. Ela abre a porta, com raiva e joga sobre a
mesa o monte de cadernos e desaba desanimada sobre um velho sofá. Ela
lamenta a profissão, a vida e o episódio que lhe ocorrera, duas horas atrás.
O que duas horas antes ( fim do segundo ato), havia acontecido em sua
aula, envolvendo o Joãozinho, havia deixado a professora Zulêica muito abalada.
-“Mas o que aconteceu de tão grave, Zulêica ?”
-“Quero mudar de profissão, Letícia.Não quero mais passar o
que passei hoje. Nunca pensei que me pudesse acontecer uma
coisa assim, depois de quinze anos de dar alas para essa gente.

-“Desabafa, mulher. Conta o que aconteceu.”

Zuleica começa então a narrar para sua colega, tudo que lhe sucedera
na aula. Era a culminância de vários episódios de constrangimento, em que sua
Ciência tinha ficado em xeque e, sempre com aquele moleque, o Joãozinho.
Ela conta então, resumidamente, todos aqueles episódios em que sua
ciência tinha sido “ultrajada” pelo garoto . Era sempre ele. Já nas primeiras aulas,
ele havia evidenciado sua decepção por aquelas aulas “tão chatas”, segundo ele,
sobre corpo humano: ”cabeça, tronco e membros”. Em seguida, ela reproduz
aquele episódio dos pontos cardeais e do “sol a pino”. Hoje, no entanto, tinha sido
“demais para minha cabeça”, com a história das estações, verão e inverno e a
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órbita elíptica da Terra; a tal questão do “passa perto, passa longe do Sol”. Alem
do “desastre” daquela aula, a professora estava preocupada com a mesma aula
que teria que dar, na próxima semana, sobre os mesmos assuntos, para uma
outra turma da mesma escola. Os argumentos do Joãozinho podiam “contaminar”
outras turmas e comprometer suas aulas futuras de uma ciência agora posta em
dúvida. Letícia vai ouvindo, pacientemente. Zulêica, à medida que vai contando,
também vai se acalmando e começando a poder enxergar o que lhe acontecera.
Mas, era realmente perturbador, pensar que depois de ensinar aquelas coisas,
daquele mesmo jeito, por quinze anos, ela mesma começava a ficar em dúvida.
Até aqui, tudo aquilo lhe parecia uma verdade convicta. Nunca sequer lhe
ocorrera qualquer dúvida. Ela achava que aquilo que havia ensinado era
verdade científica
Depois de muito ouvir, Letícia diz ter ouvido falar de coisas parecidas por
parte de uma professora sua amiga. Essa amiga contara que havia estado em
uma reunião e até em um curso onde se havia levantado essas questões. Era um
grupo de professores da UFRRJ que estava mostrando que nossas escolas estão
“plantando muita tiririca” nas cabecinhas das crianças. Entre essas “tiriricas”
estavam, justamente questões desse tipo.
Diminuída a raiva inicial, Zulêica começa a rememorar as discussões
que tivera em classe com Joãozinho. Aos poucos, ela vai percebendo que
Joãozinho não tinha dito nem feito nenhum desaforo. Seus argumentos eram
claros e ingênuos: independentes de qualquer estudo da Ciência
- “Como eu não consegui perceber isso ?”, Pergunta ela a si mesma .
No caso de onde nasce o Sol, era evidente. Ela começa a perceber que toda a
vida repetira “aquilo”, sem nunca ligar o assunto da aula com sua experiência
diária. Afinal, todos os dias, antes de sair para a aula , ela abria sua janela e
podia ver que o sol vai nascendo em lugares muito diferentes, nas diferentes
épocas do ano. Isso faz também o sol entrar e iluminar de maneira diferente o seu
quarto, em diferentes épocas do ano.
Letícia lembra que ouvira de sua outra amiga falar desses problemas e
dos cursos que estavam sendo dados por aquele grupo, na tentativa de evitar
“tanta disseminação das tiriricas”.
Zuleica volta a lembrar a questão do “sol a pino”. Aos poucos, ela
começa a admitir que não seria mesmo possível, de nenhuma maneira, que o
meio-dia fosse definido pelo “sol a pino”. Afinal, “meio dia” existe em todo lugar.
“sol a pino” só é possível em países tropicais . Tropical , afinal é isso: poder
receber o sol a pino , ao menos uma vez no ano. Mesmo no Brasil, boa parte de
seu território está fora da região tropical. Essa região tem “meio dia” todos os dias
mas, nunca tem “sol a pino”. Todos os países que estão fora da região tropical,
como EEUU, Canadá, toda a Europa, etc, têm “meio dia”. Nenhum deles tem,
nunca, “sol a pino” .
Aos poucos, a professora Zulêica, vai se dando conta de que eram
legítimos e irrefutáveis os argumentos ingênuos do Joãozinho. Isso a abalava
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muito, ao dar-se conta de que, durante tantos anos, havia ensinado, como
Ciência, uma coisa que não resistia aos argumentos ingênuos e tão claros de um
garoto da favela e que jamais havia estudado qualquer ciência.
E...... porque só o Joãozinho ? E os outros...? Porque ninguém nunca
cobrara a consistência do que ela sempre ensinara com tanta certeza ? Qualquer
das coisas do “caso” Joãozinho poderia ter sido percebida por todos os alunos.
Mas ninguém percebeu nada. Nem mesmo ela.
Até agora ela achava que “ a escola é o lugar onde as crianças
desenvolvem suas potencialidades”. Agora ela começava a desconfiar também
dessa verdade indiscutível. E’ até muito curioso que tenha sido justamente o
Joãozinho, que quase não vem à aula. Não seria exatamente por isso que ele
ainda mantinha a natural vontade de saber e de entender aquilo que vê e
ouve?
Ela se lembra então de uma charge que, anos atrás, vira numa revista e
que a deixara contrariada, quase ofendida. A charge mostrava uma fila de
crianças entrando numa escola ( “ex-cola”? ) . Na fila dos que estavam entrando,
todos tinham as cabecinhas redondinhas. Na fila dos que estavam saindo, do
outro lado, todos tinham as cabeças quadradinhas.
-“Sabe, Zulêica, completa sua colega.
-O que, Letícia ,tem mais ainda ...?
-“Tem uma “heresia” ainda maior , daquele professor que tem
dado palestras e cursos ,também aqui pela baixada fluminense.
Ele diz que grande parte de nossas escolas, em lugar de
cientistas forma mais é SENTISTAS .

-“S E N T I S T A S”........?

- Porque, segundo ele, o que mais fazemos na escola é treinar os

Alunos a PASSIVAMENTE, SENTAR E OUVIR”:


SENTISTAS , de tanto sentar.
Ele acha que além do quase nada que fica do quase tudo que a gente
pensa que ensinou, uma escola que exercita mais as faculdades
sentantes do que as pensantes, acaba por deformar também o
exercício de nossa cidadania

Cai o pano : Fim.


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DEBATES E DESDOBRAMENTOS

Quem é e de onde veio o Joãozinho


Desde o início de minha carreira docente, era usual em minha prática
com alunos e professores o uso de argumentos simples, relacionados com
alguma situação concreta. Muitas das questões relacionadas com a Física e
com coisas, como as dos pontos cardeais e outras que aparecem no “drama” que
acabamos de ver, eram já por mim usadas desde muitos anos. No entanto eu
poderia dizer que “Joãozinho da Maré” “ nasceu” em agosto de 1978.
Foi com aquele primeiro grupo de professoras e um só professor que,
numa interação mais forte e demorada, esse meu personagem tomou forma. O
propósito era investigar o “universo” conceitual entre os professores do primeiro
grau. Meu empenho emocional foi muito grande e com um entusiasmo parecido ao
que se tem quando nos nasce um filho de verdade. Não um filho que vem
acidentalmente mas um filho planejado. Mas, mesmo um filho conceitual como
esse, não poderia ter sido “feito” sem uma “mãe”. Essa “mãe” foi a Profa Yacy
Andrade Leitão. Foi todo o entusiasmo dela, uma educadora e pessoa muito
especial, que com seu zelo e apoio institucional tornou isso possível. Como
acontece com os filhos biológicos, seu nascimento veio acompanhado dos
melhores sonhos e das esperanças dos pais. Como também acontece com os
filhos biológicos, o nascimento e o crescimento desse “rebento” trouxe também
grandes dores de cabeça para os “pais”.
Todas as vezes que contei a história ou simplesmente fiz o papel do
Joãozinho, questionando os professores, a primeira reação foi a de pedir a
resposta “certa”. As pessoas sempre querem as respostas “certas”. Não é fácil
convencê-las de que o problema não está no fato de a resposta ser certa ou
errada. Meu propósito nunca foi o de simplesmente mostrar que as(os)
professoras (es) estão ensinando coisas erradas. O que está em jogo é outra
coisa, a meu ver, muito mais séria. O que nos leva a, durante toda uma vida,
repetir uma algo, sem nunca olhar para fora da janela e ver que os fatos estão a
desmentir aquilo que repetimos. Em muitos casos, nem sequer teríamos que olhar
para fora da janela. A simples atenção ao que estamos ouvindo, ou dizendo,
poderia ser o bastante para percebermos a inconsistência da afirmação. No
entanto, em geral, não fazemos nem uma coisa nem outra. Por que será que isso
acontece e, em tão grande escala ? – O que será que isso tem a ver com a
escola?
Outro aspecto curioso é o fato de que, como já mencionei anteriormente,
as pessoas passam por uma escola superior e essas coisas, como muitas outras,
continuam lá na nossa cabeça e atuando. É nesse sentido que, muitas vezes, a
escola superior pode ser entendida como superior, apenas no sentido de ter sido
posta “por cima”. E’ a isso que tenho chamado de “tiriricas”, aquela erva daninha,
quase onipresente e difícil de ser extirpada. Não só nos professores do primeiro
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grau, as “tiriricas” sobrevivem. Tenho, ao longo dos anos, aproveitado um grande


número de conferências, cursos e seminários, dentro e fora do Brasil, para
verificar a presença das tais “tiriricas”. Elas permanecem, independentemente da
cultura “superior”. Já devo ter mencionado anteriormente que as “achei” até em
curso de pós graduação em arquitetura. Neste caso (Pontos Cardeais), talvez
coubesse aquela expressão usada por um professor, quando propus ao debate
aquela história dos peixinhos no aquário sobre a balança: “...isso é demais para a
minha cabeça”.
No caso dos pontos Cardeais, há outro aspecto a considerar. Da maneira
como é ensinado aquele assunto é uma verdadeira “jóia” de cultura inútil. Em
nossa cultura, no Brasil, não se costuma fazer uso dos pontos ou direções
Cardeais. Se alguém tivesse tido, uma única vez na vida, necessidade de fazer
uso daqueles conceitos, teria percebido. Teria ficado desorientado, ou teria
percebido que os pontos Cardeais não são como foram ensinados, ou não
servem para nos orientar porque estão mudando todo o dia.
Nos últimos quinze anos tive uma outra oportunidade de verificar os
equívocos sobre aqueles pontos. E’ que nestes anos tenho dado inúmeros cursos
sobre navegação. Esses cursos atingem pessoas de todos os níveis e de
diferentes áreas de conhecimento. Eles são também uma outra oportunidade de
verificar a onipresença daquelas “tiriricas” de que estive falando.
Como já mencionei, sempre, quase todas as pessoas querem saber a
resposta “certa. Eu, no entanto, me recuso a simplesmente dar a resposta “certa”.
Mesmo que eu me dispusesse a dar a resposta “certa”, as pessoas, outra vez
estariam fazendo um “ato de fé”. Este poderia estar tão errado quanto aquele em
que estiveram acreditando por toda a vida .
.Outro aspecto curioso tem sido observar que diante de minha recusa em
“dar” a resposta “certa” , as(os) professoras(es), acabam “deixando por isso
mesmo”. Só insistem aqueles que tem de “ensinar” o assunto em suas aulas. A
impressão que se tem é de que se extinguiu na maioria das pessoas aquela
curiosidade natural pelo saber. Em geral o estudar ou o entender só se
manifestam quando se precisa, por alguma imposição ou necessidade concreta.
E’ muito raro perceber nas pessoas o interesse natural, a necessidade e o prazer
lúdico do saber e do descobrir. Não é por acaso que saber e sabor tem
significados semelhantes. Quando se diz que alguma coisa sabe a sal, por
exemplo, queremos dizer que tem gosto de sal. Saber não é apenas ouvir falar ou
mesmo memorizar. E’ experimentar por vivência. E’ sentir o sabor: saborear
Estou convencido de que os problemas básicos, não só de nossa
escola, como de toda nossa sociedade, estão intimamente ligados ao ensino que
temos e que fazemos. Nossos (as) professores (as), a escola que fazemos, em
lugar de abrir as cabeças para aprender a aprender, contribuem mais para que
as cabeças sejam tomadas de “tiriricas”. Essas tiriricas, não só atrofiam a
abertura da inteligência, mas também atrofiam o exercício da cidadania e, por
conseqüência, a sociedade.
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No episódio do Joãozinho, quando “esquenta” a discussão entre ele e a


professora, a maior parte prefere não se envolver. Mesmo que a professora não
diga, todos aprendem, desde cedo, pela prática vivenciada em aula, que “é
melhor” ficar do lado da “autoridade”. A discussão e o cotejo dos argumentos são
um ingrediente fundamental mas, quase sempre ausente em nossa escola. O
professor é tido como a “fonte” do conhecimento e “autoridade”. E’ o professor
que deve “encher” as cabecinhas com “conhecimentos”. E é interessante que,
freqüentemente, os mesmos professores que apenas “dão” aula, como a
professora do Joãozinho, se dizem “piagetianos” ou que adotam o
“construtivismo”. Nos anos noventa, muitas vezes fui chamado a fazer seminários
ou a proferir palestras para instituições que se diziam construtivistas. Em geral, aí
encontrei a mesma situação na qual se “dá” aula do mesmo jeito mas se chama a
isso de construtivismo. E’ muito mais uma questão de rótulo que da prática em
aula.
Seria ótimo que os (as) professores(as) soubessem mais sobre todas as
correntes teóricas e abordagens metodológicas do ensino da Ciência e da
Educação. No entanto, mesmo sem isso, seria possível fazer uma escola muito
melhor, apenas dando espaço para o desafio, o debate e a verbalização dos
argumentos com alguma ação. Memorizaríamos menos coisas mas
aprenderíamos mais a ouvir, argumentar e verificar a consistência do que
estamos dizendo e ouvindo e fazendo. Poderíamos continuar mais facilmente a
abrir caminho, por nossa própria conta, também no campo do conhecimento. E’ a
isso que se chama de Educação continuada. Uma coisa que nos torna mais
independentes e capazes de adaptação a um Mundo em constante e cada vez
mais rápida mudança.
Os problemas que vivemos em nossa sociedade precisam de
conhecimento. Entretanto, precisamos, com muito mais urgência, de iniciativa e
de exercício da cidadania, tanto para fazer como para criticar e cobrar. O
intenso treinamento da passividade, de só sentar e ouvir, é a maior das
deformações que a escola pode produzir. Cidadãos passivos, além da baixa,
produtividade para si e para a sociedade, têm muito menores chances de lutar
pela própria felicidade. Além disso estarão sempre muito mais dispostos a atribuir
suas frustrações aos outros: pessoas, instituições e seu próprio país.. Estarão
sempre ‘a espera de que alguém diga qual a resposta “certa” e o que deve ser
feito ou como as coisas deveriam ser.
De nada nos adiantaria, mesmo que nosso professor de natação fosse
um campeão olímpico, se apenas assistíssemos suas conferências, por melhores
que fossem. Se quisermos nos tornar bons nadadores, talvez sejam úteis as
palestras do campeão. No entanto isso só será de proveito SE NOS
DISPUSERMOS A ENTRAR NA ÁGUA E A NADAR. O campeão olímpico não
poderá fazer isso por nós. O papel do professor é ORIENTAR O PROCESSO,
para que ele seja mais seguro e proveitoso. Nada dispensa o “NADAR” de cada
um. Pense no seguinte:
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Para sermos bons nadadores, teremos que ouvir e aprender muitas


coisas, mas teremos que treinar muito, principalmente, natação.
Para sermos bons corredores, teremos que ouvir e aprender muitas
coisas, mas teremos que treinar muito, principalmente, corrida.
Você não acha isso simples, claro e lógico?. –Então pense no seguinte:
Se, durante muitos anos, quando damos forma à nossa maneira de
ser, só ouvimos passivamente e o que mais treinamos foi SENTAR, o que
SEREMOS no futuro......?........-Mais que tudo........ SENTISTAS, de tanto sentar,
em vez de Cientistas. Obviamente, não se pretende que a escola forme cientistas
no sentido estrito da palavra. Cientistas sim, no sentido de que ganhem alguma
autonomia na busca de seu próprio crescimento em termos de conhecimento e
abertura de novos e próprios caminhos. Isso vale para a construção do próprio
conhecimento e na busca da própria felicidade.
Diante dos milhares de professores com quem interagi, durante as várias
décadas, em todos os níveis, estou convencido de que nosso sistema
educacional produz uma formação muito deficiente do ponto de vista do
conhecimento. Acredito, no entanto que esse não é o maior problema. O maior
problema, a meu ver, é a deformação e atrofia da INICIATIVA. As conseqüências
são: a deformação do exercício da INDIVIDUALIDADE, da independência, da
CIDADANIA e uma sociedade fruto da quase-ideologia-do-
subdesenvolvimento. Nossa escola, com raras e honrosas exceções, não
prepara para argumentação, muito menos para AÇÃO.
Não é fácil mudar esse estado de coisas. E’ preciso muito trabalho.
Durante essas décadas, todo meu empenho foi nesse campo. Mas as resistências
são muitas e de variada natureza. Por razões que tem a ver com nossas origens
culturais, estamos muito mais habituados aos discursos que às ações.
Mudança de hábitos é uma coisa trabalhosa, demorada e que não é
encorajada. Numa sociedade quase só de consumo, quase sempre, alguém tem
que estar “faturando” para que as coisas caminhem. Esse é um grande desafio
para o Educador e para a Sociedade.
Minha preocupação sempre foi muito além da simples crítica à escola e a
seus métodos. Nessas décadas, mostrei uma alternativa concreta, em método,
material experimental, conteúdo e sua prática. Parte ponderável desses milhares
de professores que passaram por meus cursos, saíram cheios de entusiasmo e
disposição para aplicar essa proposta. As imensas dificuldades, no entanto
fizeram que a maioria acabasse por fazer muito pouco ou desistisse. Esse
mesmo fato eu já havia observado em relação aos grandes projetos
internacionais. Em alguns desses, uma das dificuldades era a obtenção do
material. Esse, mesmo sendo simples e barato em seus países de origem, não o
era o era no Brasil.
Essa observação me fizera desenvolver material que podia ser
encontrado no Brasil a um custo insignificante. Todo o material que desenvolvi foi
pensado e ensaiado para ser utilizado dentro da sala de aula ou nos pátios das
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escolas, sem necessidade de laboratório ou qualquer recinto especial. Só que,


exatamente por isso, ninguém ia lucrar com venda de material “didático”.
Ninguém estaria interessado em promover uma alternativa só pelos méritos dela,
sem ganhar nada com isso. Esse é um problema característico de uma sociedade
regulada apenas pelo mercado ou por grupos políticos que se nutrem do
clientelismo demagógico.
Mesmo assim, foram por mim dados mais de cento e vinte cursos e
conferências com debates em muitas dezenas de escolas, em diferentes estados
do Brasil e alguns no exterior (l).
As muitas dificuldades para implantação de uma proposta dessas tem a
ver também com o despreparo na formação dos professores. O “cerne” da
proposta está nas discussões e nas atividades. Nelas o professor fica exposto a
um “bombardeio” de perguntas e situações, muitas delas imprevisíveis. Para quem
está habituado a ser a “fonte” de tudo o que os alunos devem “saber”, isso
representa um “risco”. O risco de não saber responder à alguma dúvida levantada.
A fraca formação pode ficar exposta. O professor prefere ficar seguro, ainda que
em sua mediocridade. Mas ele não percebe que também acaba sendo uma
“vitima” dessa “segurança”. Sem o debate e, de tanto repetir as mesmas coisas,
sua cultura se vai “esclerosando”, assim como seu entusiasmo. Ninguém pode
fazer com e entusiasmo e competência uma coisa que, de tão repetitiva, se torna
obrigatoriamente monótona e enfadonha. Ao contrário, o debate “afia” os
argumentos e faz crescer, a cada aula, os conhecimentos e a agilidade mental,
também do professor. Hoje, sem sombra de dúvida, posso dizer que meus
conhecimentos, devo-os em boa parte ao estímulo enriquecedor e à busca das
questões provocados pela quantidade das discussões e questões postas por
meus alunos. Com uma abordagem que privilegia a discussão, a cada aula
crescem o conhecimento e a capacidade de renovação, também do professor. Aos
meus alunos que me “desafiaram” com suas dúvidas, dediquei um de meus
livros(Com(ns) Ciência na Educação, Ed. Papirus) .
Dos professores que saíram dos cursos, cheios de motivação para
aplicar as “novas idéias”, muitos foram, pelo menos durante algum tempo, por nos
acompanhados. Uma das dificuldades por eles encontradas era a resistência dos
seus diretores. E’ que o “padrão” de “boa aula” é o professor fazendo discurso e
os alunos, quietos, anotando, ou dormindo. Numa proposta em que o núcleo do
processo está na discussão, os alunos estão discutindo e se movimentando com
as atividades. Essa “agitação” é vista com desconfiança e taxada de “bagunça”.
A própria arquitetura e a disposição da sala de aula já pressupõe que um fala e os
outros apenas ouvem e anotam. As fileiras de carteiras são paralelas entre si, o
que pressupõe que não se encontrem, não interajam As portas das salas de aula ,
com sua janelinha de vidro também presumem a “inspeção” do diretor para ver se
a aula “vai bem. Em minha proposta, os alunos, divididos em pequenos grupos(de
cinco alunos), ficam frente a frente, pressupondo sempre o intercâmbio e o
confronto das idéias.
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Das primeiras dezenas de cursos, a grande maioria era de escolas


oficiais, tanto no estado do Rio como em alguns outros estados. Além de todas as
dificuldades inerentes a qualquer inovação, apareceram outras, difíceis de
imaginar.
Durante os primeiros anos do projeto com as escolas de primeiro grau,
na baixada fluminense, todo o material que fui produzindo era impresso na
Universidade(UFRRJ) e emprestado às escolas. Cada assunto, com sua atividade,
constituía um módulo. Muitos cursos haviam sido dados para uma secretaria de
Educação de Estado . Em 1984 muitos outros estavam planejados para aquela
mesma Secretaria que encomendou o material para ser distribuído às escolas
do estado. Todo o material impresso foi reunido num pequeno livro meu (“A Terra
em que vivemos”, editado pela “Papirus”). A Secretaria de Educação encomendou,
“com urgência”, 2.000 exemplares. Esses livros deveriam ser entregues no prédio
da Secretaria de Educação. Diante da “urgência”, logo que a editora aprontou os
primeiros 1.000 livros, pedimos que ela os entregasse direto na Secretaria. Eu
estive pessoalmente na entrega e ajudei a carregar as caixas de livros para dentro
do prédio da Secretaria. Quando eu mesmo voltei a precisar dos livros, com os
professores da rede oficial, nunca se conseguiu encontrar um só daqueles livros.
Nunca se descobriu onde eles foram parar. Nos cursos seguintes, para a mesma
Secretaria, tivemos que voltar a emprestar o material. Depois, com a mudança de
Governo, todo o trabalho foi interrompido. Foi preciso começar tudo de novo. Além
do preparo científico nos falta competência na gestão da educação. Isso nos custa
gastos muito grandes para muito pouco proveito.
Em minhas andanças, com os muitos cursos dados em diferentes países
da América Latina e em quase todas as muitas dezenas de cursos dados pelo
Brasil, pude constatar outros grandes problemas que parecem típicos de
sociedades desorganizadas ou subdesenvolvidas. Estamos sendo sempre
exortados, em nome da “criatividade” e da ‘inovação” a reinventar a roda.
Gastamos grande quantidade de tempo e recursos em “inovações” que de alguma
maneira já foram “inventadas”. Se por um lado é desejável que cada professor
seja “original”, não nos poderíamos dar ao luxo de desconhecer coisas que já
custaram tempo e dinheiro e das quais, freqüentemente, não tomamos
conhecimento. Com esse sempre inventar “inovações”, muito pouca experiência
se acumula e se constrói muito pouco. Todos pretendemos ser muito “originais”.
Essa “originalidade” nos custa muito caro e nos faz sempre começar de novo.
Antes de fazer nova semeadura, teríamos que esperar que aquela cultura
começada anteriormente complete seu ciclo e sejam colhidos os frutos, bons ou
maus, daquela seara. Se nos apressamos em fazer outra semeadura sem
estarmos certos do que produziu a anterior, muito provavelmente estaremos
jogando fora sementes, sem saber o que iríamos colher. Assim não se “faz
escola”; fazemos uma escola quase inútil.

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