Questionario de Rotina Familiar
Questionario de Rotina Familiar
Questionario de Rotina Familiar
Partindo da perspectiva sistmica para averiguar as caractersticas dos grupos familiares, considera-se a famlia como
um sistema constitudo por subsistemas que mantm entre
si relaes de interdependncia (Minuchin, 1985, p. 289)
que marcam o desenvolvimento dos sujeitos que o compe.
A dinmica dessas relaes se concretiza no cotidiano, nas
rotinas das famlias, de modo que essas rotinas se tornam os
principais indicadores das formas de organizao tpicas do
grupo familiar (Fiese & cols., 2002; Geertz, 1966).
Deste modo, o interesse cientfico pelas rotinas familiares
grande e seus achados tm permitido no apenas estabelecer definies bsicas na rea de famlia, mas tambm tm
ratificado o impacto da rotina na organizao do subsistema
familiar e, em termos mais gerais, no desenvolvimento humano (Haugland, 2005; Nelson, 1981, 1996). Na tentativa
1
Mtodo
Parmetros tericos de construo e avaliao do QRF
Partindo da noo de que as atividades rotineiras so
organizadas de acordo com os papis e responsabilidades
estruturados por cada contexto cultural e pela cultura de cada
famlia (Serpell, Sonnenschein, Baker & Ganapathy, 2002),
entende-se que a investigao das rotinas deve assegurar
informaes relativas s atividades especficas, aos contextos
interacionais e aos espaos determinados.
Esse parmetro pode ser considerado no estudo de rotinas
familiares que esto inseridas em diferentes grupos culturais.
Todavia, a considerao desses aspectos extremamente
pertinente quando se investiga a rotina de famlias que, por
determinadas restries ou modos de vida, tais como os
grupos ribeirinhos, tendem a desenvolver suas atividades em
torno do ncleo familiar, cujos membros so confinados pelas
cheias ao contexto da casa e o modo de produo extrativista
distribui o trabalho no interior da famlia.
Foi com base nesse parmetro inicial que se desenvolveu uma planilha do QRF (Silva, 2006), na qual constam,
no espao das linhas, os perodos de um dia, divididos em
madrugada, manh, tarde e noite, e no espao destinado s
colunas, a atividade realizada, o local, a companhia e observaes complementares. A escolha desses trs eixos de
descrio (atividade, local e companhia) deveu-se noo
de que esses so aspectos fundamentais na estruturao de
subsistemas relacionais no interior da famlia.
Psic.: Teor. e Pesq., Braslia, Abr-Jun 2010, Vol. 26 n. 2, pp. 341-350
Resultados
Categorias de anlise
Com base no cotejamento dos dados encontrados e
nos parmetros tericos estabelecidos, foi possvel desenvolver oito categorias de atividades realizadas no interior
das famlias, divididas em duas dimenses. A primeira
dimenso condiz s atividades de subsistncia e cuidados
bsicos referentes unidade familiar, tais como: Subsistncia Econmica (SE), Subsistncia Alimentar (SA), Tarefa
domstica (TD) e Cuidado Fsico (CF). Tais categorias
tomaram como princpio a relao entre a unidade familiar
e a forma como os seus subsistemas esto organizados para
sua manuteno, diviso de responsabilidades e de papis.
Esse particularmente o caso de famlias organizadas no
modo de produo familiar.
A outra dimenso de atividades diz respeito a um conjunto de categorias de contextos de encontros familiares
independentes dos modos de sobrevivncia. Nesse sentido
foram encontradas basicamente as seguintes subcategorias:
Prtica Religiosa (PR), Lazer, Brincar, Estudo. A definio
das respectivas categorias pode ser verificada no Quadro 1.
Tendo posse dos dados coletados, foi montada uma
planilha no software Microsoft Office Excel 2003, com as
informaes de cada participante, tais como o perodo do
desenvolvimento da atividade, a verbalizao do participante,
a referida categorizao da verbalizao da atividade, os
possveis acompanhantes e o local em que era desenvolvida.
Todo enquadramento das respostas em categorias de atividades foi produzido com base em discusses e no acordo
de ao menos duas das trs pesquisadoras que coletaram os
dados. Caso no houvesse concordncia, eram consultados
os orientadores do projeto mais geral em que o presente
trabalho estava includo.
Psic.: Teor. e Pesq., Braslia, Abr-Jun 2010, Vol. 26 n. 2, pp. 341-350
Categorias de atividades
Definio
Todas as atividades cujo objetivo era obteno de recursos de natureza financeira (dinheiro).
Toda tarefa relativa ao espao da casa, exceo do preparo de alimentos. So exemplos dessa
atividade: varrer casa, lavar loua, apanhar lenha, consertar casa etc.
Todas as tarefas relativas ao cuidado fsico de outras pessoas, geralmente os filhos e irmos. So
exemplos dessa atividade: alimentar, dar banho, colocar para dormir etc.
Lazer
Atividades praticadas no perodo de tempo livre e que envolvem o exerccio de algum divertimento, entretenimento ou distrao. So comportamentos dessa categoria: conversar, assistir
televiso, jogar futebol, visitar parentes etc.
Brincar
Todas as atividades praticadas de carter ldico infantil, tais como brincar, banho no rio.
Estudo
Momento dedicado s tarefas escolares sejam elas realizadas dentro da escola ou na residncia.
Apresentao de um caso
A Famlia A, do casal Bastos (B) e Deise (D), um
exemplo tpico de famlia ribeirinha Araraiana e foi analisada por Silva (2006). Esse grupo constitudo pelo casal,
trs filhos e Mrio (M), o irmo de Deise, e se encontra em
um dos primeiros estgios do ciclo familiar, haja vista que
a idade da segunda gerao varia entre 1 a 4 anos. A esposa
ainda muito jovem, tendo apenas 22 anos, enquanto seu
cnjuge tem 72 anos. Mrio, o irmo mais novo de Deise,
tem apenas 17 anos.
O DAF do grupo Bastos/Deise, visualizado na Figura
1, representa as atividades realizadas em um dia de semana
qualquer. O dia da famlia inicia com Bastos e Deise acordando e fazendo suas tarefas de asseio e, na seqncia, Deise
prepara o caf. Ressalta-se que o casal dorme em ambientes
separados, Bastos na cozinha e Deise no quarto junto com as
crianas. No DAF, essa observao est no alto da figura. O
fato de o pai dormir em um cmodo separado, mais exposto
a eventuais perigos externos, um hbito comum atribudo
ao gnero masculino nessa comunidade.
Logo em seguida, Bastos parte para as suas atividades
de SE e/ou SA e Deise, para as atividades de TD, SA e CF.
Os dois s voltam a se encontrar no perodo da tarde, aps
o retorno de Bastos de suas atividades realizadas sozinho,
inclusive o almoo no mato. As atividades empreendidas
solitariamente por Bastos esto circuladas por linha tracejada
e as atividades empreendidas por Deise juntamente com as
crianas esto contornadas por linha dupla continua.
A ntida diviso de tarefas empreendida pelo casal
demonstra certa rigidez nas fronteiras de atividades estabelecidas entre os subsistemas e como o exerccio de tais
atividades determina os momentos de aproximao e afastamento do casal.
No so muitas as atividades de Deise em TD e SA, visto
que a casa no demanda grandes cuidados e no h diversidade de alimentos a serem preparados. Contudo, seu encargo
dirio se torna pesado quando se considera que sua principal
atribuio no decorrer de toda manh e tarde o CF com suas
crianas muito jovens [Luiza (L), 4 anos; Oscar (O), 2 anos
e Ivo (I), 1 ano], como alimentar, vigiar, dar banho e colocar
para dormir. Essas tarefas so de sua inteira responsabilidade,
no sendo partilhadas com Mrio e com Bastos. Observa-se
apenas o auxlio de Luiza, sua filha mais velha que, apesar
de ter apenas 4 anos de idade, cuida de seus irmos mais
novos durante as brincadeiras que realizam. No DAF, este
subsistema est envolvido por linha grossa continua.
As crianas esto sempre no entorno de Deise durante a
execuo das atividades da me, seja explorando o ambiente,
seja brincando juntas. Nota-se que constituem um subsistema
separado, que realiza atividades particulares e passa grande
parte do tempo em conjunto, o que uma caracterstica da
socializao local. A parceria de brincadeiras desenvolvidas
por irmos possibilita a configurao do sistema fraternal
como tambm a possibilidade de melhor estabelecimento do
subsistema parental (me-filho mais novo), medida que a
me relata que enquanto eles esto entretidos nas brincadeiras
pode cuidar do filho e da casa.
Por outro lado, pode-se supor que a relao estabelecida
entre os irmos funciona como um laboratrio para a exePsic.: Teor. e Pesq., Braslia, Abr-Jun 2010, Vol. 26 n. 2, pp. 341-350
SE
SA
Almoo
TD
SE
B
72
D
22
M
17
Caf da tarde
TD CF SA
Jantar
Caf
Almoo
Lazer
L
4
O
2
I
1
Br incar
essencialmente noturno.
- Interaes ldicas entre "B" e "O".
- Contato Fraternal tempo integral.
- M aior intensidade de contato com
"I" e "L"
Discusso
As pesquisas em desenvolvimento humano e relaes
familiares ainda apresentam maior nfase de estudos em
contextos urbanos, nas sociedades industrializadas (Hutz &
Silva, 2002). Os instrumentos desenvolvidos para investigar os subsistemas familiares apresentam-se artificiais em
contextos no urbanos e consideram somente populaes
letradas e, por isso, necessitam ser adaptados s especificidades culturais.
Investigaes em contextos rurais como a peculiar comunidade ribeirinha do Rio Araraiana, caracterizada pelo
isolamento, possibilita um conjunto de questes sobre a
organizao familiar e o desenvolvimento infantil que demandam metodologias peculiares. Desse modo, foram realizadas
adaptaes metodolgicas com base nas caractersticas da
populao e do contexto cultural em que esta se situa.
Por se entender que imprescindvel considerar a complexidade do grupo, contextualizando-o social, histrica e
culturalmente (Bing, Crepaldi & Mor, 2008), a produo do QRF e do DAF se sustentou primordialmente nas
peculiaridades regionais com o intuito de construir uma
metodologia vlida para o contexto ribeirinho amaznico.
O acesso aos dados e a demonstrao das informaes foi
possvel somente a partir da construo de um inventrio
adaptado forma como os moradores compreendem e
organizam o seu tempo, o QRF. A representao do material coletado, o DAF, demandou um sistema de categorias
adaptado s atividades desenvolvidas e organizao destas
em subsistemas.
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Recebido em 07.11.2008
Primeira deciso editorial em 08.09.2009
Verso final em 24.02.2010
Aceito em 24.03.2010
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