A Comida Boa para Pensar
A Comida Boa para Pensar
A Comida Boa para Pensar
10.12957/demetra.2013.6648
Correspondncia / Correspondence
Helisa Canfield de Castro
E-mail: helisa [email protected]
Resumo
A presente comunicao situa-se no campo de estudos da
antropologia da alimentao e pretende discorrer sobre
aspectos do ato alimentar sob o ponto de vista da cultura.
Entendida como um campo aglutinador, a antropologia tem
contribudo para a reflexo e a compreenso do fenmeno da
alimentao incorporando nas anlises representaes, crenas,
conhecimentos e prticas que so herdados e/ou aprendidos e
que so compartilhados pelos indivduos de uma dada cultura ou
de um grupo social determinado. Buscaremos levantar algumas
consideraes sobre a formao do gosto alimentar enquanto
mobilizador de significados e demarcador de identidades.
Trataremos sobre a noo de sistema alimentar como uma
proposta ampla capaz de aproximar diferentes disciplinas na
apreenso do fenmeno enquanto dotado de complexidade. A
partir de uma perspectiva sistmica, possvel apreender as
dinmicas envolvidas na contemporaneidade em que h evidente
convivncia de uma heterogeneidade sociocultural.
Palavras-chave: Comida. Antropologia. Sistemas Alimentares.
Abstract
This communication is situated in the field of food anthropology
and aims to discuss aspects of the act of eating from the
cultural point of view. The research will raise some practical
considerations about cooking or eating while mobilizing the
marking of meanings and identities. Understood as a unifying
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Um fenmeno biocultural
O antroplogo francs Claude Lvi-Strauss,1 em sua obra Mitolgicas, recorreu cozinha e
ao preparo dos alimentos para estudar diversos mitos indgenas. Mais do que isso, Lvi-Strauss
nos demonstrou que os alimentos podem ser utilizados quando se busca entender melhor aquilo
que nos faz humanos. Assim, parafraseando o autor com relao aos mitos que so bons para
pensar , trazemos a ideia de que o mesmo fenmeno ocorre com a comida: essas substncias
compostas por nutrientes e simbolismos so boas para comer e igualmente servem para pensar
a realidade que nos cerca.
Lvi-Strauss nos instiga a pensar a comida a partir de sua funo semitica e comunicativa.
Para ele, a cozinha uma linguagem, uma forma de comunicao, um cdigo complexo que
permite compreender os mecanismos da sociedade qual pertence, da qual emerge e que lhe d
sentido.2 Para alm de uma pura reduo que o situa como resposta a necessidades fisiolgicas,
o ato alimentar deve ser compreendido como um ato social que incorpora mltiplas dimenses
do indivduo.
A presente comunicao situa-se no campo de estudos da antropologia da alimentao,
entendida, em concordncia com Contreras & Garcia,3 como um campo de estudos aglutinador
sobre o conjunto de representaes, crenas, conhecimentos e prticas herdados e/ou aprendidos
que esto associados alimentao e que so compartilhados pelos indivduos de uma dada cultura
ou de um grupo social determinado. Nosso esforo argumentativo num primeiro momento ser
no sentido de trazer ao debate reflexes sobre a comida e o comer enquanto condicionados pelas
culturas e entendidos como relaes dinmicas; aspectos que acreditamos importantes na medida
em que iluminam e qualificam as questes em torno da alimentao.
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Mary Douglas atenta para o simbolismo dos processos classificatrios. Em termos alimentares,
cada cultura possui um sistema classificatrio que aponta o que comestvel ou no, em que
circunstncias, em companhia de quem. Tais processos tambm nos prescrevem ou interditam
determinados comportamentos. Em outras palavras, as coisas so ordenadas de maneira diferente
de acordo com cada esquema cultural.6 Assim, o que definido como comestvel em uma dada
cultura pode no ser em outras. Um exemplo clssico o cachorro, que, para ns, ocidentais,
considerado um animal de estimao, mas em alguns pases asiticos compe parte de uma
refeio ordinria.
nessa perspectiva, de explorar a alimentao no apenas considerando sua funo biolgica,
mas tambm sua insero numa dada cultura ou sociedade, marcada temporal e espacialmente,
que a antropologia da alimentao estabelece suas reflexes. O que propomos, nesse sentido, a
necessidade de um dilogo entre os campos capaz de formatar uma compreenso holstica, no
hierarquizada em termos explicativos, mas sim que enfatize a complementaridade do adjetivo
biocultural que marca o ato alimentar.
Igualmente nos faz pensar a questo do gosto o trabalho de Mintz,10 Sweetness and power, de
1985. Nesse estudo o autor analisa a histria social da produo e do consumo do acar. Ao faz-lo,
revela-nos que, para alm de uma explicao baseada na preferncia inata pelo gosto doce ou pela
simples imitao de uma classe abastada por uma mais humilde, o crescente aumento do consumo
de acar, sobretudo entre a classe operria europeia do sculo XIX, est relacionado a uma busca
por energia a ser convertida em trabalho e a uma associao com outros produtos crescentes
no mercado ingls que passam a compor a dieta daquele grupo, como, por exemplo, o caf e o
ch. Nesse sentido, o autor observa uma interao entre interesses econmicos, poderes polticos,
necessidades nutricionais e significados culturais, abstendo-se de uma explicao meramente
causal do ponto de vista biolgico.
A partir da argumentao de que a formao do gosto alimentar no se d, exclusivamente,
em nvel individual, mas forma-se social e historicamente, passamos a analisar o processo do
qual emerge um sistema alimentar, tambm chamado de cozinhas, que d sentido quilo que
se ingere, alm de demarcar diferentes gostos. Maciel11 faz algumas consideraes:
As cozinhas representam uma complexificao do ato alimentar, que compreende a
preparao, a combinao de elementos, a composio de um prato, ou seja, a transformao
do alimento em comida11 (p.150).
O gosto, este sentido atravs do qual o sabor percebido, tem um papel fundamental na
formao dessas cozinhas, afinal tanto a utilizao das tcnicas quanto a eleio dos elementos se
daro conforme o gosto ou as preferncias, ambos sensveis no plano individual, mas inscritos num
dado contexto sociocultural. H uma importante crtica no sentido de no reduzir as cozinhas a um
inventrio ou a um repertrio de ingredientes, nem convert-las em frmulas ou combinaes de
elementos cristalizadas no tempo e no espao. As cozinhas devem ser reconhecidas acima de tudo
na sua dinamicidade, ligada identidade social; um projeto coletivo em constante reconstruo2
em que os aspectos convencionais ou tradicionais so perpassados por aspectos de inovao.
Estas transformaes acabam sendo absorvidas ou digeridas pela tradio, que, em patamares
seguintes, criam novos modelos, adaptados aos modelos convencionais precedentes. Mediante
de um processo histrico, uma srie de elementos novos e referenciados na tradio funde-se no
sentido de criar algo nico capaz de demarcar identidades. Nessa perspectiva os ingredientes e
tcnicas estaro em constante relao com as preferncias produzidas socialmente, articulando
assim o gosto alimentar com a formao dessas cozinhas ou sistemas.
Tais afirmaes tornam-se pertinentes na medida em que o que ser definido como comida ou
comestvel depender de cada cultura ou segmento: quando se pensa, por exemplo, nas preferncias
por pratos mais calricos entre camadas de trabalhadores braais, isso no se deve a argumentos
estritamente ligados a seu valor nutritivo, mas por representaes sociais ligadas fora e robustez.
Da mesma forma, a observao do aumento do consumo de fast food entre jovens acaba por no
Demetra; 2013; 8(Supl.1); 321-328
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ser pautada por perigos ou riscos sade, mas por significados compartilhados que definem o
grupo e representam ideias de modernidade. Assim, j na primeira infncia estamos imersos em
critrios, parmetros e classificaes alimentares, o que chamado gosto.
preciso mencionar a essa altura que tais formaes e transformaes no so dadas de forma
consciente e utilitria, mas esto calcadas em interaes de elementos imersos em dinmicas sociais
e histricas. Ao analisar os sentidos que as pessoas atribuem a certos alimentos, fundamental
um olhar atento para os diversos determinantes que compem os gostos. Estes significados, em
ltima anlise, podem ser diferentes mesmo dentro de uma mesma classe ou segmentos social.
Em termos mais pragmticos, ao se refletir sobre a prtica profissional voltada tanto a indivduos
quanto a coletividades, consideramos que as escolhas alimentares no devem ser reduzidas a
determinantes objetivos e de carter utilitrio.
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Contreras & Garcial3 pontuam que, embora de incio esta concepo tenha sido fragmentada
pelas diferentes tradies das cincias sociais (sociolgica, antropolgica), nos ltimos anos tem-se
produzido um encontro transdisciplinar capaz de trabalhar sob essa ptica, levando em conta
a diversidade de definies, interpretaes e nfases atribudas noo. Esta noo, longe de ser
consensual e da qual derivam diferentes desdobramentos como redes alimentares e sistemas
culinrios, traz em si a noo de Mauss13 sobre fato social total, ou seja, a ideia de que o ato
alimentar est envolvido em vrios nveis da realidade com instituies de diversas ordens
(econmica, poltica, gnero, classe) e que indispensvel uma compreenso do fenmeno em
sua totalidade, mesmo que a nfase recaia sobre determinada atividade ou estgio especfico de
cada campo do conhecimento.
Cabe ainda destacar as contribuies da antropologia no sentido de incorporar abordagem
a questo dos significados envolvidos, chamando a ateno para o fato de que o ato alimentar
algo especfico. Ou seja, mesmo em um contexto relativamente globalizado, em que se tenta
encontrar a homogeneidade de prticas e de representaes, a universalidade de comer ou se
alimentar encontra-se com as especificidades de diferentes contextos que so demarcados por
fatores socioculturais, econmicos e individuais. Estes devem ser levados em conta quando se
pretende pensar sobre a comida e o comer. No se pretende, contanto, determinar o enfoque ou
os objetos dos demais campos, mas sim propor que estes trabalhem seus diferentes objetos com
base nesse olhar sistmico em que o alimento e o indivduo no esto isolados, mas relacionados
num fluxo dinmico.
Longe de concluirmos esta reflexo, buscamos explorar o fato da alimentao como um tema
que permite o dilogo entre as cincias que buscam dar conta desse fenmeno mediante diferentes
ngulos. Enfatizar as aes simblicas e especficas das diferentes atividades que compem os
sistemas alimentares, considerando as dinmicas e os sentidos diante de cada contexto, tem sido
tarefa da disciplina antropolgica. Para tanto, o exerccio de relativizao e a valorizao das
diversidades constituem importantes contribuies da disciplina.
Enxergar o fenmeno da alimentao enquanto parte de um sistema integrado para alm
do simples ato de ingesto de alimentos pode enriquecer os campos que tratam dessa temtica.
Igualmente importante o fato de estarmos lidando com conjuntos de smbolos que vo ser
reutilizados pelas pessoas nas suas relaes e atividades cotidianas, num processo que, alm de
fisiolgico, social.
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Referncias
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Recebido: 13/6/2013
Aprovado: 15/8/2013
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