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O ESPAO SOCIAL ESPECIAL ALIMENTAR | 245 | SPECIAL

O espao social alimentar: um instrumento para o estudo dos modelos alimentares

Food social space: a tool to study food patterns


Jean-Pierre POULAIN1 Rossana Pacheco da Costa PROENA2

RESUMO
Pensar a alimentao a partir das Cincias Sociais supe a superao de certos obstculos epistemolgicos que baseiam as posies tericas da fundao dessa disciplina: o positivismo e a autonomia do social. O conceito de espao social proposto por Georges Condominas para compreender as inter-relaes entre um grupamento humano e o seu meio encontra na alimentao um campo de aplicao particularmente fecundo. Assim, prope-se o conceito de espao social alimentar como um instrumento de estudo dos modelos alimentares, assinalando a conexo bioantropolgica de um grupamento humano ao seu meio. Nele destacam-se seis dimenses principais que focalizam espaos e sistemas diversos: o comestvel, a produo alimentar, o culinrio, os hbitos de consumo alimentar, a temporalidade e as diferenciaes sociais. Um modelo alimentar uma configurao particular do espao social alimentar. Termos de indexao: sociologia da alimentao, comportamento alimentar, gosto, nutrio humana, antropologia da alimentao, hbitos alimentares.

ABSTRACT
Thinking food from Social Sciences implies overcoming certain epistemological obstacles which have rooted in theoretical positions since the foundation of this discipline: the positivism and the social autonomy. The
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Socioantroplogo, Professor da Universit de Toulouse Le Mirail, Toulouse, France. Coordenador do Centre dEtude du Tourisme et des Industries de lAccueil (CETIA) e da Cellule Recherche Ingnierie Tourisme, Htellerie, Alimentation (CETHIA). Membro do Centre Dtude des Rationalits et des Savoirs UMR-CNRS N5117, axe: sociologie de la sant. Correspondncia para/Correspondence to: Universit de Toulouse 2, CETIA , 5 alles Antonio Machado, 31058, Cedex1, Toulouse, France. E-mail: [email protected] Departamento de Nutrio, Universidade Federal de Santa Catarina. Realizando ps-doutorado no CETIA - Universit Toulouse Le Mirail, como bolsista da CAPES. E-mail: [email protected]

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concept of social space suggested by Georges Condominas to understand the interrelations between a human group and his background finds in food an application field particularly fruitful. Thus, we have suggested the concept of food social space as a tool to study the food patterns. The food social space marks the bioanthropological connection of a human group to his background. It gathers six main dimensions: the eatable products, the food production, the culinary aspect, the food habits, the temporality and the social differentiations. A food pattern is a particular configuration of the food social space. Index terms: food sociology, feeding behavior, taste, human nutrition, food anthropology, food habits.

INTRODUO Pensar a alimentao, este fenmeno complexo no qual esto englobados aspectos biolgicos, psicolgicos e sociais, a partir das Cincias Sociais, no uma tarefa simples. Para faz-lo, torna-se necessrio remover certos obstculos e, nesse sentido, propomo-nos, em um primeiro momento, a destacar as transformaes epistemolgicas que permitiram a emergncia de uma Socioantropologia da Alimentao. Em um segundo momento, nos concentraremos sobre os conceitos de espao social alimentar e modelo alimentar, a cuja elaborao temos trazido algumas contribuies. Ao final, discutiremos algumas possibilidades de interao entre a Nutrio e a Sociologia da Alimentao.

mthode sociologique (1894), apresentam interesses tericos, operacionais e metodolgicos (Durkheim, 1988). No plano terico, eles delimitam um territrio preciso, distinto daquele de outras disciplinas cientficas que se interessam pelo homem, particularmente da Psicologia, mas tambm da Biologia, da Fisiologia, e de outras. Aps o territrio ser delimitado, demarcado, cartografado, aps a ordem de causalidade ser designada, a pesquisa cientfica pode comear, as leis podem ser formuladas e articuladas entre elas para dar nascimento s teorias. Logo, a cincia pode fazer seu trabalho e os conhecimentos podem ser acumulados. No plano operacional, esta delimitao do saber rompe com a atitude globalizante da Filosofia, em uma tradio humanista encarnada por Pic de La Mirandole, na qual a ambio era de pensar, de filosofar no sentido mais nobre do termo, a partir da totalidade do saber disponvel na sua poca. Em considerando os fatos sociais como objetos das Cincias Sociais e em lhes designando um territrio autnomo de causalidade, esses princpios operam uma reduo do real para permitir a extrao de leis, processo de reduo caracterstico da abordagem das cincias modernas. Ao fazer isso, inscreve-se a Sociologia em uma lgica de diviso e especializao de tarefas. No plano estratgico, esta postura legitima a autonomizao da Sociologia em relao Filosofia e a distingue claramente de outras disciplinas j institucionalizadas, tais como a Psicologia e a Biologia. Tal postura permite, ainda,

DO INTERESSE SOCIOLGICO E ANTROPOLGICO PELA ALIMENTAO A UMA SOCIOANTROPOLOGIA DA ALIMENTAO

Como pensar a alimentao a partir das Cincias Sociais?


O positivismo e a autonomia do social so os dois princpios fundadores das Cincias Sociais. O primeiro convida a considerar os fatos sociais como coisas, e o segundo postula que as causas de um fato social devem ser procuradas em um outro fato social, segundo as clebres expresses de Emile Durkheim. Os princpios, formulados e desenvolvidos em uma srie de artigos, posteriormente reunidos em um livro, Les rgles de la

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imaginar, justificar e reivindicar a criao de um novo territrio universitrio de ensino e pesquisa junto dos responsveis pela gesto da cincia. Considera-se ter sido graas afirmao desses princpios que Durkheim realizou a institucionalizao da Sociologia universitria francesa. Entretanto, a autonomia do social apresenta uma srie de inconvenientes para pensar os objetos situados margem, aqueles que extrapolam esta territorializao de conhecimentos, aqueles que se desdobram no no mans land do recorte do saber, e a alimentao um deles. Novamente, para trabalhar esses objetos, os inconvenientes so tericos, operacionais e estratgicos. No plano terico, a alimentao se encontra na cena das Cincias Sociais em uma posio marcada por uma dupla ambigidade. A primeira diz respeito definio do fato social que, por um lado, a inclui como objeto da Sociologia, pois a alimentao parcialmente determinada pelos mecanismos sociais, e, por outro lado, a exclui como um objeto muito biolgico e muito psicolgico. A segunda ambigidade herdada daquilo que Franoise Paul-Lvy (Paul-Lvy, 1986) designa como primitivismo das Cincias Sociais no seu nascimento, ou seja, a diferena radical entre primitivos e modernos (Le Bon, 1904; Levy-Bruhl, 1922), cuja conseqncia foi uma repartio territorial no seio das Cincias Sociais, com os primitivos tornando-se objeto da Etnologia e os modernos, da Sociologia. Essa atitude evolucionista tomou formas sutis no pensamento sobre o sacrifcio, como a distino entre os sacrifcios ao(s) Deus(es) e o sacrifcio de Deus proposto por Henri Hubert e Marcel Mauss no final do Essai sur la nature et la fonction du sacrifice (Hubert & Mauss, 1899)2 , o qual impediu, inicialmente, a concepo do pensamento mgico como um modo cognitivo utilizado pelos modernos e a mensurao de sua importncia na fenomenologia da alimentao.
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Alm disso, depois de sua institucionalizao, a Sociologia tomou certa distncia em relao ao positivismo. Ela se inscreve atualmente em uma tradio de tenso entre uma atitude objetiva, fixada no empirismo e positivismo iniciais, e uma posio compreensiva e construtivista, pontuando a importncia do sentido e dos processos cognitivos empregados na sua produo e fazendo da fenomenologia o seu modelo. Esta segunda posio afirma a irredutibilidade do objeto das Cincias Sociais e Humanas aos postulados que fundaram as cincias modernas (exterioridade do objeto de conhecimento em relao ao sujeito estudado e racionalismo do mtodo experimental). Quanto autonomia do social, a Sociologia moderna dividida entre um respeito escrupuloso a este princpio e a aceitao do dilogo com as disciplinas relacionadas. A pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade so certamente as direes para sair dessa tenso, mas elas apresentam problemas operacionais e estratgicos, revelando um risco permanente de reconduzir o pesquisador quilo que constitui as cincias sociais e humanas: a Filosofia. Adotar uma dessas posies correr o risco de ver suas produes serem qualificadas de ensaios ou, antes, desqualificadas de ensasmo filosfico. Os problemas operacionais esto relacionados ao fato de se impor aos pesquisadores engajados nesta aventura a necessidade de dominar conhecimentos dos territrios vizinhos. Isso constitui um exerccio realmente complexo, quando acompanhar a produo cientfica de seu prprio campo de atuao j uma tarefa bastante complicada. Como fazer para que se comuniquem entre si disciplinas no interior das quais os pesquisadores j tm dificuldade de se comunicarem? A complexificao da pesquisa analtica, a hiperespecializao e a subdiviso dos objetos de pesquisa atomizam o saber. O especialista aquele que sabe cada vez mais sobre um objeto cada vez mais restrito, at o

Um texto na qual, no entanto, os autores procuram sair dos pressupostos ideolgicos evolucionistas de Robertson Smith (1889). Para aprofundar esta questo, ver Cartry M. (1991), Sacrifice.

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momento em que ele atinge a genialidade de saber tudo sobre nada, escreveu Ernst Cassirer (1995) e, por compaixo, ns acrescentaremos sobre quase nada. H, tambm, inconvenientes estratgicos, pois, assim procedendo, o pesquisador, ao mesmo tempo, se situa fora do seu prprio territrio institucional e permanece um estrangeiro sem nenhuma legitimidade nos territrios vizinhos. De fato, mesmo que a pluridisciplinaridade tenha tido suas horas de glria, nas aberturas ou nos fechamentos de eventos, nos editoriais das publicaes e, digamos, nos corredores da cincia, ela jamais conseguiu abrir a porta mais decisiva, aquela das comisses de especialistas.

Suplantar os obstculos epistemolgicos


Fazer da alimentao um objeto sociolgico supe, portanto, a suplantao das ambigidades mencionadas. Para tanto, seguiremos, em um primeiro momento, os percursos que vo permitir a sada do primitivismo e, aps, veremos como o dilogo pode se instalar entre a Sociologia e as diferentes disciplinas interessadas pelos comedores3 humanos. Para compreender como o obstculo do primitivismo foi suprimido por Claude Lvi-Strauss, precisamos retornar pr-histria da Antropologia. Quando Linn props que todos os Homo sapiens formam somente uma mesma espcie do gnero Homo, a noo de raa surgiu como a maneira de pensar a diversidade humana. Para Buffon, figura eminente da histria natural, a chave da explicao dessas variaes no podia ser buscada nas arbitrariedades do criador, mas em uma lei do desenvolvimento aplicada uniformemente na natureza. A Antropologia tornou-se, ento, uma questo de observao, de
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medida e de ordenamento dessa diversidade para fazer emergir, em seguida, a taxonomia das leis da natureza. Na efervescncia do desenvolvimento cientfico que acompanhou as grandes descobertas, criou-se, na Frana, em 1799, La socit des observateurs de lhomme (A sociedade dos observadores do homem). Ela reuniu, entre outros, mdicos, naturalistas, historiadores e gegrafos, e a obra principal de sua curta histria (1799-1805) foi a redao de um manual intitulado Considrations sur les diverses mthodes suivre dans lobservation des peuples sauvages (Consideraes sobre os diversos mtodos a seguir na observao dos povos selvagens) (Grando,1800), o qual pr-configurou uma Antropologia pluridisciplinar. Alguns anos mais tarde, Lamarck e Darwin deram Lei da evoluo das espcies um grau de formalizao tal que, no seio da Antropologia, serviria no somente como base para discutir o desenvolvimento da espcie mas tambm como modelo para pensar a evoluo das formas de organizaes sociais e de suas produes culturais (Morgan 1977; Tylor 1994). Instalada em uma perspectiva evolucionista, a Antropologia fsica debateu-se com dificuldades cientficas na sua pretenso de explicar a diversidade humana e alimentou certas derivaes polticas que acompanharam e justificaram os aspectos mais obscuros do colonialismo, derivaes polticas que alcanaram seu paroxismo no racismo poltico institucionalizado representado pelo nazismo. Esses problemas cientficos e suas derivaes polticas conduziram os pensadores da Antropologia a romper com as dimenses anatmicas e fisiolgicas que limitavam a Antropologia fsica. Nos anos cinqentas, a ruptura foi consumada e a Antropologia tornou-se, doravante, cultural. Claude Lvi-Strauss entregou Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO) o texto Race et histoire, o qual se tornou clebre e

A palavra francesa mangeur representa, para a Sociologia da Alimentao atual, o homem que come, razo da utilizao da palavra comedor em portugus. A utilizao deste termo surgiu a partir da publicao Le mangeur du 19me de Jean-Paul Aron (1976). Em seminrio realizado em 1998, tendo como um dos temas justamente a discusso de como designar o mangeur humano, definiu-se pela utilizao da palavra no plural, a partir da compreenso de que somos todos mltiplos quando comemos e de que mltiplos so tambm os tipos de comedores humanos (Nota de traduo).

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fez a honra dessa disciplina. Ele escreveu: O brbaro, antes de tudo o homem que cr na barbrie (Lvis-Strauss, 1952, p.21). Essa ruptura dificultou a considerao de certos trabalhos sobre alimentao, decodificados, ento, como oriundos dessa velha Antropologia fsica e medicinal, da qual doravante desconfiou-se. Este foi o caso, na Inglaterra, das pesquisas sobre alimentao entre os Bemba da Rodsia feitas por Audrey Richards (Richards 1932; 1939), bilogo de formao e aluno de Malinowski, e, na Frana, do extraordinrio trabalho sobre a alimentao na frica Ocidental Francesa realizado por Lon Pales (Pales, 1954), mdico antroplogo, que terminou a sua carreira como subdiretor do Muse de lhomme (Museu do Homem), em Paris, juntamente com Claude Lvi-Strauss. Ao mesmo tempo, em Sar Luk, perto de Dalat, nas altas plancies do centro do Vietnam, o jovem etnlogo Georges Condominas (Condominas, 1952) realizou pesquisas com os Mnong Gar, resultando em um livro memorvel, Nous avons mang la foret (Condominas, 1954). Quando do seu lanamento, salientou-se, sobretudo, a qualidade e a originalidade do texto, o qual, com a aparncia de uma crnica interiorana, tratou, sem exibies tericas, as questes antropolgicas mais fundamentais. Claude Lvi-Strauss, manifestando-se sobre o livro, escreveu que um novo estilo de texto etnolgico nasceu. Mas somente nos anos oitenta este tipo de pesquisa aportou Antropologia um conceito chave: o espao social, que coloca em um sistema as relaes entre o social, o biolgico e o ecolgico, tema a ser desenvolvido proximamente neste artigo. O dilogo entre a Antropologia fsica e a Antropologia cultural recomeou, a partir dos anos sessenta, com o desenvolvimento da Gentica, a qual ofereceu as novas bases cientficas para a explorao da variabilidade humana. A humanidade passou a ser uma mesma espcie politpica. Uma disciplina emergiu, a Gentica das populaes, voltando-se para a Antropologia cultural. A cooperao entre a Biologia e a

Antropologia pde novamente ocorrer para trabalhar as interaes entre o cultural e o biolgico.
Organizao das regras e as prticas efetivas de aliana, condies de estabelecimento das diferenas entre os subconjuntos sociais, processos cognitivos utilizados na escolha do cnjuge, gesto do meio ambiente e de seus recursos atravs da tecnologia e da organizao social: esses so alguns dos tantos contextos que agem diretamente sobre a estrutura das populaes biolgicas humanas e condicionam, assim, a forma como se distribuem os caracteres hereditrios (Benoist, 1991).

Assim, a cultura no est a jusante do fato biolgico; ela est, para os homens, a montante (isso no quer dizer que seja o nico determinante). Busca-se, ento, pesquisar na cultura, aquilo que modela a parte biolgica do homem, jogando com as leis da gentica a partir de suas prprias leis. O homem est na natureza mas [...] no completamente a natureza, diz Dubos. Se o social trabalha o ser vivo, ele o faz a partir do material que dado ao social e que lhe fixa as regras (Benoist, 1991). A retirada do segundo obstculo se fez em vrias etapas. A primeira remonta ao texto original de Marcel Mauss, Les techniques du corps (Mauss, 1934), no qual se situa a articulao do biolgico, do social e do psicolgico. O que surge claramente disso (as tcnicas do corpo) que ns nos encontramos, por toda parte, em presena da montagem fisio-psico-sociolgica das sries dos atos. Esses atos so mais ou menos antigos na vida do indivduo e na histria da sociedade. Vamos mais longe: uma das razes pelas quais essas sries podem ser montadas no indivduo , precisamente, porque elas so montadas para e pela autoridade social (Mauss, 1980). Mauss comeou, ento, a discutir a problemtica da pluridisciplinaridade. Quando uma cincia natural faz progressos, ela no o faz jamais no sentido do concreto, mas sempre no sentido do desconhecido.

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Ora, o desconhecido se encontra sempre nas fronteiras das cincias, l onde os professores comem-se entre si como diz Goethe [eu digo comem, mas Goethe no assim to polido]. Geralmente, nesses domnios mal partilhados que residem os problemas mais urgentes (Mauss, 1980). Ele se posicionou claramente sobre os papis das diferentes dimenses biolgicas, psicolgicas e sociolgicas. Opondo-se, ao mesmo tempo, tradio de Comte e autonomia do social de Durkheim, essas dimenses eram, para ele, claramente articuladas. O psicolgico desempenharia um papel de engrenagem, estabilizando a conexo entre o social e o biolgico. [...] eu vejo aqui os fatos psicolgicos como engrenagens e [...] eu no os vejo como causas, exceto nos momentos de criao ou de reforma (Mauss, 1980). A questo da pluridisciplinaridade tornou-se central na sociologia dos anos sessentas. Deve-se salientar o belo artigo de Gusdorf na Encyclopaedia Universalis (Gusdorf ,1968), mas a Edgar Morin que a Sociologia da Alimentao deve a sua oficializao. Em 1972, Edgar Morin organizou um colquio intitulado Lunit de lhomme (A unidade do homem), reunindo um conjunto impressionante composto de pesquisadores de reas que vo da Biologia s cincias cognitivas, envolvendo vrios prmios Nobel, dispostos ao dilogo. Os anais desse colquio originaram uma publicao em trs volumes (Morin & Piatelli-Palmarini, 1973a). A comunicao de Morin tomou tal amplitude que originou um livro, Le paradigme perdu: la nature humaine (O paradigma perdido: a natureza humana), no qual ele escreveu: Como ns no vemos que aquilo que mais biolgico - o sexo, a morte - , ao mesmo tempo, aquilo que mais embebido de smbolos, de cultura! Nossas atividades biolgicas mais elementares, o comer, o beber, o defecar, so estreitamente ligadas a normas, interdies, valores, smbolos, mitos, ritos, quer dizer, aquilo que h de mais especificamente cultural! E

podemos, aqui, compreender que este sistema nico, federativamente integrado, fortemente intercomunicante do crebro de sapiens, que permite a integrao federativa ou biolgica, do cultural, do espiritual (elementos, por sua vez, complementares, concorrentes, antagonistas, nos quais os degraus de integrao sero muito diferentes de acordo com os indivduos, as culturas, os momentos), em um nico sistema biopsico-socio-cultural (Morin, 1973b). Comer tornou-se, ento, um ato humano total. Morin promoveu uma abordagem transdisciplinar do complexo. Isso no se referia somente a juntar as disciplinas, nem mesmo a criar uma cincia unitria do homem, pois ela mesma dissolver a multiplicidade complexa do que humano, mas consistia em desenvolver as pesquisas e os conhecimentos metadisciplinares. O importante no esquecer que o homem existe e no uma iluso ingnua de humanistas pr-cientficos (Morin,1990). Ento, foi em torno de Edgar Morin e Georges Condominas que os primeiros trabalhos e as primeiras teses sobre alimentao foram desenvolvidos. Mas, se esses avanos em diferentes campos das Cincias Sociais criaram as condies para o desenvolvimento de uma Sociologia e de uma Antropologia da Alimentao, deve-se a Claude Fischler (Fischler, 1979; 1990; 1996a; 1996b) o mrito de haver lanado a dinmica. Embora, antes dele, pesquisadores como Igor de Garine (Garine 1978; 1979; 1991), Annie Hubert (Hubert, 1985), Claude Grignon (Grignon & Grignon, 1980) e Jean-Pierre Corbeau (Corbeau, 1991; Corbeau & Poulain, 2002) tivessem comeado a trabalhar esse territrio, foi o nmero 31 da revista Communication que deu a partida ao criar as condies de um trabalho sociolgico em comunicao com as disciplinas vizinhas. Este conhecimento nos meios jornalsticos e suas qualidades de comunicao deram ao novo campo de pesquisa uma notoriedade inesperada. Quando da sua publicao, em 1990, a tese de Claude Fischler sobre o onvoro se imps naturalmente

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como a liderana de base desta escola francesa de Sociologia da Alimentao. Aps este rpido relato histrico da Sociologia da Alimentao, dissertaremos sobre o conceito de espao social e de modelos alimentares.

O espao social alimentar e suas dimenses


Em p r e s t a m o s , e n t o , d e G e o r ges Condominas (Condominas, 1980) o conceito de espao social para designar este espao de liberdade e esta zona de imbricao entre o biolgico e o cultural, adotando a expresso espao social alimentar (Figura 1). Ele corresponde, assim, zona de liberdade dada aos comedores humanos por uma dupla srie de condicionantes materiais. De um lado, pelas condicionantes biolgicas, relativas ao seu estatuto de onvoro, que se impem a ele de maneira relativamente flexvel, e, de outro lado, pelas condicionantes ecolgicas do bitopo no qual est instalado, que se transformam em condicionantes econmicas nas sociedades industrializadas e que tendem a se reduzir conforme se controla tecnologicamente a natureza (Poulain 1999; 2002). O espao social alimentar um objeto sociolgico total no sentido Maussiniano do termo; quer dizer que coloca em movimento[...] a totalidade da sociedade e de suas instituies (Mauss, 1980).

DO ESPAO SOCIAL ALIMENTAR AO ESTUDO DOS MODELOS ALIMENTARES A alimentao humana submetida a duas sries de condicionantes mais ou menos flexveis. As primeiras so referentes ao estatuto de onvoro e impostas aos comedores por mecanismos bioqumicos subjacentes nutrio e s capacidades do sistema digestivo, deixando um espao de liberdade largamente utilizado pelo cultural e contribuindo, assim, para a socializao dos corpos e para a construo das organizaes sociais. J as segundas so representadas pelas condicionantes ecolgicas do bitopo no qual est instalado o grupo de indivduos; essas condicionantes tambm oferecem uma zona de liberdade na gesto da dependncia do meio natural.

Cultura

Espao de liberdade

Condicionantes fisiolgicas e biolgicas As dimenses sociais da alimentao

Condicionantes ecolgicas Condicionantes ecolgicas

A ordem do comestvel O sistema alimentar O espao culinrio O espao dos hbitos de consumo alimentar A temporalidade alimentar

Figura 1. O espao social alimentar.

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Assim sendo, possvel, na tradio de graus de profundidade definidos por Gurvitch (1958), distinguir diferentes dimenses do espao social alimentar4 .

O espao do comestvel
Considerando as mltiplas substncias naturais - minerais, vegetais e animais, as quais podem, potencialmente, servir de alimento e so colocadas pela natureza disposio dos homens, observa-se a utilizao de um nmero pequeno delas. Esta seleo pode, talvez, ser objeto de anlise em termo de performances adaptativas (Harris, 1985), mas no se pode reduzir somente a isto. Ela se articula com as representaes simblicas que revelam a arbitrariedade das culturas (Douglas, 1979; Kilani, 1992) e, sobretudo, participam da diferenciao cultural dos grupos sociais quando, em bitopos equivalentes, as escolhas so diferentes de uma cultura para outra (Garine, 1979; 1991, Fischler, 1979; 1990). O espao do comestvel , portanto, a escolha que operada pelo grupo humano no interior do conjunto de produtos vegetais e animais colocados sua disposio pelo meio natural, ou que poder ser implantada pela deciso do grupo (Condominas, 1980).

(Lewin, 1943). Ele utiliza a imagem de um canal atravs do qual o alimento passar para chegar ao comensal e cujo acesso e funcionamento sero controlados por porteiros. Ele distingue diferentes canais: o das compras, o do cultivo, o da colheita, entre outros. Em cada um deles, o alimento passa por diferentes etapas tcnicas regidas no somente por leis fsicas, mas tambm por leis sociolgicas, pois o fun-cionamento dos canais controlado por indivduos em interao. Os alimentos no se movimentam sozinhos. Sua entrada em um canal e sua progresso de uma seo outra se efetuam graas ao controle de indivduos que abrem as portas de acesso seo seguinte do canal. Esses porteiros agem de acordo com lgicas profissionais ou familiares, em funo de suas representaes de necessidades e desejos dos comensais e de seus papis sociais recprocos.

O espao do culinrio
Segundo evidenciou Claude Lvi-Strauss, a cozinha uma linguagem na qual cada sociedade codifica as mensagens que lhe permitem significar ao menos uma parte do que essa sociedade (Lvi-Strauss, 1968). Para o socilogo, a cozinha um conjunto de aes tcnicas, de operaes simblicas e de rituais que participam da construo da identidade alimentar de um produto natural e o transformam em consumvel. O espao do culinrio , ao mesmo tempo, um espao no sentido geogrfico do termo, de distribuio no interior dos lugares (este ser, por exemplo, a posio da cozinha, o lugar onde se realizam as operaes culinrias, dentro ou fora de casa), um espao no senso social, o qual representa a repartio sexual e social das atividades de cozinha, mas tambm um espao no sentido lgico do termo, englobando relaes formais e estruturadas. O tringulo culinrio de Claude Lvi-Strauss o exemplo mais conhecido (Lvi-Strauss, 1968; Poulain, 1985).

O sistema alimentar
A segunda dimenso corresponde ao conjunto de estruturas tecnolgicas e sociais empregadas desde a coleta at a preparao culinria, passando por todas as etapas de produo e de transformao. Ela constitui o sistema de ao que permite a um alimento chegar ao consumidor. Kurt Lewin colocou em evidncia o fato de uma deciso alimentar ser o resultado de um conjunto de interaes sociais e de ser conveniente, para a compreenso da primeira, entender a organizao que sustenta as segundas
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Para uma exposio sistemtica das dimenses do espao social e alimentar, ver Poulain (2002).

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O espao dos hbitos de consumo


A quarta dimenso do espao social alimentar envolve o conjunto de rituais que rodeiam o ato alimentar no seu sentido estrito. A definio de uma refeio, sua organizao estrutural, a forma da jornada alimentar (nmero de refeies, formas, horrios, contextos sociais), as modalidades de consumo (comer com garfo e faca, com a mo, com o po), a localizao das refeies, as regras de localizao dos comensais e outros aspectos variam de uma cultura outra e no interior de uma mesma cultura, de acordo com os grupos sociais (Fischler, 1990; Corbeau, 1995; Poulain, 1998; 2001).

A temporalidade alimentar
A alimentao se inscreve dentro de uma srie de ciclos temporais socialmente determinados, como o ciclo de vida dos homens, com uma alimentao de lactente, de criana, de adolescente, de adulto e de idoso. A cada etapa correspondem estilos alimentares, compreendendo alguns alimentos autorizados, outros proibidos, os ritmos das refeies, os status dos comensais, os papis, as condicionantes, as obrigaes e os direitos. Representam tempos que vo se alternando ciclicamente, variando conforme o ritmo das estaes e dos trabalhos no campo pelos agricultores, o da migrao das caas pelos caadores, a alternncia de perodos de abundncia e de penria - sejam eles naturais, pocas de colheita e de poda, ou decididos pelos homens, de perodos festivos onde todos os alimentos so autorizados e de perodos de jejum parcial ou total. Enfim, um ritmo cotidiano, com suas alternncias de tempos de trabalho e de repouso, as diferenas das refeies, as comidas fora das refeies e sua implantao horria respectiva (Poulain, 1998; Poulain & Neirinck, 2000).

cultura e de outra, mas tambm no interior de uma mesma cultura, entre os membros que a constituem. No interior de uma mesma sociedade, a alimentao desenha os contornos dos grupos sociais. Um certo alimento pode ser atribudo a um grupo social e rejeitado por outro (Grignon & Grignon, 1980; Lambert, 1987; Herpin, 1988; Poulain, 1998). Assim, o espao social alimentar assinala a conexo bioantropolgica de um grupo humano ao seu meio. Um modelo alimentar um conjunto de conhecimentos que agrega mltiplas experincias realizadas sob a forma de acertos e de erros pela comunidade humana. Esse modelo se apresenta sob a forma de uma formidvel srie de categorias encaixadas, imbricadas, as quais so cotidianamente utilizadas pelos membros de uma sociedade, sem que os mesmos tenham verdadeiramente conscincia, pois tal encadeamento ocorre de maneira implcita (Fischler, 1990; 1996a; 1996b; Lalhou, 1998).

Os modelos alimentares e a interao entre o social e o biolgico


As relaes entre o biolgico e o social no se reduzem a uma simples justaposio que permite designar, para um lado ou outro de um limite preciso, o territrio do primeiro ou do segundo. Elas so marcadas por uma srie de interaes. A imerso de uma criana em um contexto alimentar pontuada por ritmos; o uso de certos produtos relaciona-se com o biolgico tanto no tocante expresso de determinados fentipos quanto na ativao de mecanismos de regulao e de controle da tomada alimentar. A alimentao a primeira aprendizagem social do pequeno homem. Ela est no centro do processo de socializao primria. O comportamento alimentar da criana entrando no mundo largamente submetido s condicionantes fisiolgicas, alternncia de sensaes de fome, aos comportamentos desencadeados por essas sensaes (apelos, choros, gritos... depois leite) e s sensaes de saciedade e de abundncia que se seguem. Ao longo das interaes com a sua

O espao de diferenciao social


Comer marca, tambm, as fronteiras de identidade entre os grupos humanos de uma

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me, a qual logo buscar regular a criana sob certos ritmos sociais (como as alternncias do dia e da noite, os momentos de trabalho e de repouso), esses mecanismos biolgicos vo conhecer uma primeira influncia social. Depois, com o desmame, o aprendizado da alimentao normal desenvolver o gosto da criana, ensinando-lhe a amar aquilo que bom na sua cultura, e regular sua mecnica digestiva aos ritmos da sociedade que a viu nascer. Essa incrementao do biolgico sobre o cultural tanto mais forte quanto mais a alimentao for implicada nos processos de construo da identidade social. Ao comer segundo uma forma socialmente definida, a criana aprende o senso do ntimo e do pblico (aquilo que ela pode mostrar da sua mecnica alimentar e aquilo que ela deve esconder), bem como as regras de partilha e de privilgio que refletem a hierarquizao social, enfim, o senso do bom, mais exatamente do que bom para o grupo ao qual ela pertence. Ao comer, ela interioriza os valores centrais de sua cultura, os quais se exprimem nas maneiras mesa. Paralelamente, o corpo do comensal e os ritmos da mecnica biolgica so formatados pelos ritmos sociais.

Assim, um novo campo de pesquisa se abre na interface das cincias da nutrio e da Socioantropologia da Alimentao, cujo objeto compreender as decises alimentares. Seu desenvolvimento supe as colaboraes pluri e transdisciplinares. Os riscos so numerosos, para aqueles que se engajarem nessa via, riscos de se desconectar de seu espao disciplinar legtimo e at mesmo, talvez, de se distanciar da realidade emprica. Se a via do pensamento complexo explorada por Edgar Morin pode ser uma pista, ela ser um complemento e no poder tomar o lugar de um trabalho rigoroso de observao, de construo de dados e de questionamento da realidade - quando se sabe que mesmo esta realidade socialmente construda. Para poder iniciar o dilogo entre as disciplinas, torna-se necessrio que os conhecimentos disciplinares estejam suficientemente solidificados. Ento, e somente ento, ser possvel, segundo a expresso consagrada, comear a cruzar os olhares entre as disciplinas. Em matria de alimentao, os progressos da cincia passam, por conseguinte, ao mesmo tempo, pelo macroscpio e pelo microscpio.

AGRADECIMENTOS Carmem Silvia Rial pelo auxlio na reviso deste artigo em relao aos contedos especficos da rea de Cincias Sociais.

CONSIDERAES FINAIS Os conceitos de espao social alimentar e de modelo alimentar permitem, ao mesmo tempo, fazer a Sociologia para os socilogos e criar as condies de aplicao de um dilogo pluridisciplinar com as cincias da alimentao e da nutrio. O espao social alimentar delimita as dimenses sociais da alimentao e permite trabalhar, respeitando o princpio da autonomia do social, sobre um objeto sociolgico reconhecido pelo universo disciplinar da Sociologia. Contudo, ao definir as dimenses sociais da alimentao, ao pontuar as zonas fronteirias com a Psicologia e a Biologia, ele oferece a possibilidade de pensar as interaes.

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Recebido para publicao e aceito em 13 de maio de 2003.

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