O Significado Da Alimentação Na Família

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 7

Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: TRANSTORNOS ALIMENTARES: ANOREXIA E BULIMIA NERVOSAS

39 (3): 333-9, jul./set. 2006 Capítulo III

O SIGNIFICADO DA ALIMENTAÇÃO NA FAMÍLIA:


UMA VISÃO ANTROPOLÓGICA

THE MEANING OF ALIMENTATION IN FAMILY: AN ANTHROPOLOGICAL VIEW

Geraldo Romanelli

Docente. Departamento de Psicologia e Educação. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP
CORRESPONDÊNCIA: Departamento de Psicologia e Educação. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – USP.
Av. Bandeirantes, 3900 - CEP 14040-901 - Ribeirão Preto - SP. email: [email protected]

Romanelli G. O significado da alimentação na família: uma visão antropológica. Medicina (Ribeirão Preto)
2006; 39 (3): 333-9.

RESUMO: Fome é uma necessidade natural que deve ser satisfeita através da ingestão de
alimentos para assegurar a produção e reprodução da existência humana. No entanto, se o ato
de saciar a fome é natural e universal, as práticas alimentares, também universais, não são
naturais, mas situam-se na esfera da cultura, vale dizer, no campo dos sistemas simbólicos. Em
torno da comensalidade, cada sociedade elabora um complexo sistema de regras dietéticas
fundadas no senso comum, em preceitos religiosos e no conhecimento médico, que criam
interdições para excluir do cardápio alimentos simbolicamente classificados como nocivos e
perigosos para a saúde. Trabalhos antropológicos têm mostrado a diversidade das formas de
produção, processamento e consumo de alimentos, que não são atos solitários, mas constitu-
em atividades sociais, e o modo como as sociedades constroem representações sobre si pró-
prias, definindo sua identidade em relação a outras sociedades, através de seus hábitos culiná-
rios. Este trabalho examina o modo como a população de baixa renda articula elementos
simbólicos provenientes de várias fontes para organizar regras dietéticas que passam a consti-
tuir indicadores culturais através dos quais os alimentos são categorizados em apropriados ou
nocivos para o consumo. A comida é uma categoria que estabelece fronteiras entre a identidade
da população pobre, que enfrenta dificuldades para prover a alimentação, e a identidade daque-
les cuja cozinha é rica e variada, e a dos muito pobres, que passam fome.

Descritores: Alimentação. Dietética; regras. Família de Baixa Renda.

1- ALIMENTAÇÃO E DIVERSIDADE CUL- culinária internacional. Um breve olhar sobre essa pro-
TURAL dução pode trazer à tona alguns aspectos da alimen-
tação e detectar certas tendências em torno do pre-
Múltiplos aspectos da alimentação têm estado paro da comida. Uma, talvez a mais relevante, retira o
bastante presentes na mídia brasileira e uma quanti- processamento de alimentos da “cozinha”, isto é dos
dade expressiva de publicações tem se dedicado a esse fundos da casa, de sua parte menos nobre, e atribui
tema, seja propondo dietas para perder ou ganhar peso, novo significado a essa prática, dotando-a de valor
para robustecer músculos, para melhorar a saúde e simbólico mais elevado. Outra tendência é que abre
para diversificar e sofisticar o cardápio, com inúme- caminho para dessexualizar, pelo menos relativamen-
ras receitas de pratos de regiões do país e também da te, o ato de cozinhar. A culinária deixa de ser, ao me-

333
Romanelli G

nos na aparência, uma tarefa sexuada, vale dizer fe- No Brasil, já em 1933, quando publicou Casa-
minina, prescrita pela divisão sexual do trabalho e que Grande & Senzala, Gilberto Freyre3 recenseou e
é uma característica bastante relevante a ser discuti- registrou não apenas hábitos alimentares, mas inclusi-
da. Em revistas semanais diversas, em jornais de gran- ve reuniu receitas de vários pratos em seus livros. A
de circulação, vários homens mostram orgulhosamente produção nacional foi enriquecida com referências
suas habilidades culinárias. O ato de cozinhar conver- sobre o tema nas obras de Candido4, Zaluar5 e, mais
te-se em hobby para esses homens, algo a ser feito recentemente, com os trabalhos de Woortmann 6,
em momentos de folga, e é claramente associado a Murrieta7 Menasche8, Dutra9, Collaço10, Topel11 .
lazer. Além de conquistar um lugar social nobilitado, o Embora nem sempre ocupe lugar central nos
preparo de alimentos adquire característica de ativi- trabalhos antropológicos, a análise de hábitos alimen-
dade agradável, repousante, que permite a cada um tares aparece associada a temas diversos, sobretudo
exercer sua criatividade e exibi-la para amigos em am- com ênfase na dimensão simbólica presente na produ-
biente informal, oposto ao universo estressante e for- ção de alimentos e no preparo da comida12 /18. Esses
mal do trabalho. trabalhos exemplificam que comida é uma categoria
Mas esses “domingueiros da cozinha” não são bastante relevante através da qual as sociedades cons-
homens comuns, fazem parte do grupo de privilegia- troem representações sobre si próprias, definindo sua
dos, das assim chamadas celebridades, que contam identidade em relação a outras, das quais diferenci-
com recursos financeiros suficientes para se dedica- am-se nos hábitos alimentares, que constituem elemen-
rem a essa atividade. São artistas de diversos naipes, tos significativos para se pensar a identidade social de
esportistas, executivos, e a exibição de suas habilida- seus consumidores.
des culinárias procura difundir uma imagem de que a O modo como a antropologia tem tratado a ali-
masculinidade pode conviver muito bem na “cozinha”, mentação está vinculado a características nucleares
desde que haja sofisticação e requinte nos pratos pre- da disciplina. De modo sintético, a primeira delas está
parados. Por outro lado, o envolvimento com o ato de relacionada a uma forma de conhecimento, laboriosa-
cozinhar abre novos mercados destinados ao consu- mente construída para se entender a diversidade dos
mo dos neófitos. Surge uma parafernália de artefatos costumes, mostrando o caráter simbólico que envolve
destinados aparentemente a facilitar o preparo de co- as atividades humanas e como diferentes sociedades
mida juntamente com livros de receitas, além de pro- organizam de modo particular soluções específicas
gramas de televisão comandados por especialistas que para resolver problemas universais.
ensinam os iniciantes a cozinhar. Alimentação, com Outro aspecto central na antropologia é que,
tudo que ela envolve, desde a produção até o proces- dentre as ciências sociais, ela é a única que desde seu
samento de alimentos, torna-se um negócio bastante início tem se proposto a entender a difícil e complexa
lucrativo para os vários segmentos que produzem ar- vinculação entre o natural e o cultural. O natural refe-
tefatos para seu preparo. No entanto, a adesão dos re-se a tudo que já é dado pela natureza, inerente à
homens à arte de cozinhar, mostra que eles a exercem espécie humana e dotado de caráter universal. Um,
em ocasiões especiais e que o preparo de alimentos dentre vários exemplos de necessidades naturais é a
no cotidiano continua a ser tarefa feminina. Como diz fome, que deve ser saciada com a ingestão de alimen-
um antropólogo1, o alimento preparado em situações tos. Se a fome situa-se na esfera do natural e univer-
especiais serve para “honrar”, é suporte para criação sal, as práticas alimentares, também universais, não
e manutenção de relações sociais e não é destinado são naturais, mas situam-se no campo da cultura. O
apenas a “alimentar”, como é a comida do dia-a-dia. conceito de cultura remete a criações humanas sim-
Se o preparo de comida adquire expressiva vi- bólicas, produzidas na convivência social e essenciais
sibilidade social no presente, o interesse da antropolo- para se viver em sociedade. Nesse sentido, a cultura
gia pela alimentação tem sido constante, porque ela é universal pois os seres humanos só conseguem vi-
faz parte de um conjunto de experiências humanas. ver através de regras e modelos culturais, isto é, de
Desde que Malinowski2 desvendou a importância da ordenações socialmente criadas e que constituem sis-
produção de alimentos e os princípios de sua troca temas simbólicos organizadores da vida social. Ao mes-
recíproca na sociedade trobriandesa, os trabalhos an- mo tempo que a cultura tem esse caráter de universa-
tropológicos têm dedicado atenção aos inúmeros as- lidade, pois todas as sociedades humanas constroem
pectos da produção, preparo e troca de comida. sistemas simbólicos, cada sociedade, ou segmento

334
O significado da alimentação na família: uma visão antropológica

social específico em seu interior, elabora sistemas pró- pecto estético da alimentação, presente na exposição
prios, diversos, para resolver problemas universais, da comida à mesa, na riqueza de formas, cores, odo-
como a fome. res, bem como a dimensão erótica de alimentos cultu-
Esses dois princípios antropológicos permitem ralmente classificados como afrodisíacos, supostos
balizar e situar algumas questões sobre a alimentação, estimulantes do desejo e do aprimoramento da perfor-
situada na imbricação da natureza e da cultura. O ato mance sexual. Assim, a alimentação só pode ser en-
de saciar a fome é específico de cada sociedade e em tendida como processo social complexo que envolve
torno da comensalidade construíram-se inúmeras re- diferentes esferas da vida social, inclusive a dimensão
gras que fazem parte de um sistema, já que alimenta- do sagrado.
ção não é prática isolada, mas integra um sistema sim-
bólico e relaciona-se com outros sistemas. Se todos 2- A DIMENSÃO SIMBÓLICA E AS REGRAS
precisam comer, não o fazem de um mesmo modo. DIETÉTICAS
Os antropólogos têm comparado o impulso para
comer com o impulso sexual12,15. Lévi-Strauss15 assi- O ato de alimentar-se é sempre mediado por
nala a relação, presente em quase todas as línguas do regras dietéticas, cujas origens e finalidades são múl-
mundo, entre o ato de comer e o de copular. Sexo é tiplas e são elaboradas a partir de diversas formas de
fundamental para a reprodução biológica e, como a saber, como o conhecimento científico, o senso co-
alimentação, está cercado de tabus, interdições, pres- mum, as religiões, que criam interdições para excluir
crições que fazem com que o impulso sexual, ele tam- do cardápio alimentos considerados culturalmente
bém natural, só possa ser satisfeito observando-se as como nocivos.
inúmeras regras que delimitam a escolha de parceiros As grandes religiões monoteístas sempre se
para o coito. Alimentação e relações sexuais jamais preocuparam em seus livros sagrados em estabelecer
se concretizam no plano da mera naturalidade, ou de tabus alimentares delimitando o que os fiéis podem ou
uma suposta “animalidade”. Se a satisfação do impul- não comer. Regras dietéticas estão presentes na Bí-
so sexual e da fome é essencial para a continuidade blia, no Levítico e no Deuteronômio, classificando os
da vida humana, relações sexuais e alimentação tam- animais em puros e impuros, permitidos ou proibidos
bém partilham outros traços em comum: são fonte de para consumo. Assim, pode-se comer animais que têm
prazer e só se realizam socialmente, sempre depen- unha fendida dividida em duas e que ruminam, como
dem da presença de um outro, embora de modo dife- boi, ovelha, cabra; mas são impuros e impróprios para
renciado, para se realizarem. o consumo aqueles que só apresentam uma dessas
Não se pode ter relações sexuais com qualquer características, como camelo, lebre, porco, com unha
pessoa, pois todas as sociedades fixam interdições fendida, mas que não são ruminantes. Dos que vivem
culturais, das quais a mais importante é a proibição do na água são comestíveis aqueles com barbatanas e
incesto1, que estabelece com quais parceiros não se escamas, mas são imundos os que não têm essas duas
deve praticar o coito. As penalidades impostas aos características. Essas interdições, analisadas por
infratores são severas e quem mantém relações se- Douglas18, estão relacionadas à idéia de santidade, de
xuais com pessoas classificadas como proibidas sofre integridade. A raiz de “santidade” significa “colocar
punições sociais, escárnio e desprezo social. Do mes- separadamente”, estabelecer a ordem correta, funda-
mo modo, não se pode, nem se deve, ingerir qualquer da no sagrado. Os tabus alimentares visam separar
tipo de comida; quem consome alimentos considera- alimentos cuja ingestão pode poluir quem os conso-
dos proibidos, também está sujeito a sanções. Seja pelo me. Para Douglas18, a noção de poluição, de sujeira,
escárnio, seja porque a ingestão do que é avaliado como não está relacionada a questões de higiene, tampouco
proibido pode excluir o consumidor do rol dos eleitos visa proibir a utilização de alimentos que representem
de determinadas religiões, ou ainda porque pode oca- ameaça à higidez. As proibições do consumo de de-
sionar doenças e mesmo a morte. terminados alimentos não pretendem proteger o “or-
A alimentação não é ato solitário, mas é ativi- ganismo biológico”, mas objetivam defender o “orga-
dade social, sempre envolve outras pessoas na produ- nismo social” dos membros de determinado grupo re-
ção de alimentos, em seu preparo e, sobretudo, na pró- ligioso, fixando suas identidades em contraponto às
pria comensalidade, ocasião para se criar e manter identidades de participantes de outros grupos religio-
formas ricas de sociabilidade. Ressalte-se ainda o as- sos. Essas regras dietéticas não têm apenas caráter

335
Romanelli G

prático, fundado no conhecimento acerca das propri- A dimensão afetiva da alimentação, que englo-
edades dos alimentos, mas fazem parte de um siste- ba a relação com o outro, está presente nas refeições
ma simbólico mais amplo, ancorado na idéia de sagra- familiares, momentos de encontro, de conversação e
do, que estabelece fronteiras entre judeus e gentios. de troca de informações, isto é, da criação e manu-
A análise de Douglas18 evidencia que por trás tenção de formas de sociabilidade bastante ricas e
da aparente racionalidade das regras dietéticas judai- prazerosas. Certamente o repasto familiar jamais se
cas, encontra-se um complexo sistema simbólico. É caracteriza unicamente pela positividade de relações
nesse sentido que a antropologia submete à interroga- harmoniosas e de solidariedade. Ao contrário, pode
ção a concepção ocidental de que atos humanos es- constituir cenário para disputas intensas entre comen-
tão fundados em uma racionalidade só acessível atra- sais. Contudo, essa dicotomia é constitutiva de todas
vés do conhecimento formulado cientificamente. A as relações sociais e harmonia não elimina a presença
análise das regras dietéticas judaicas, bem como de do conflito e vice-versa.
normas alimentares de outras religiões, revela que seu No entanto, hoje almoça-se principalmente com
fundamento não se encontra no materialismo médico, amigos, com colegas de trabalho, ou com desconheci-
mas essas regras constituem um sistema simbólico de- dos que se sentam à mesma mesa. Nesse último caso,
dicado a estabelecer padrões normativos que tomam a sociabilidade durante as refeições quase desapare-
a comida como categoria relevante para estabelecer ce, mas pode ser momento para entrar em contato
as identidades sociais de seus consumidores. com quem se partilha a mesa e para dar início à con-
Não basta ter acesso ao saber científico para versação, mesmo que seja transitória e limitada àque-
modificar costumes alimentares, pois eles não estão le momento.
fundados tão somente na racionalidade humana. Esta Lévi-Strauss1 descreve essa ocasião de encon-
certamente existe, mas convive tensamente com va- tro. Em pequenos restaurantes franceses, quando dois
lores simbólicos e com os prazeres propiciados pela desconhecidos dividem a mesma mesa, um oferece
comida, sejam eles gustativos, psicológicos ou sociais, ao outro a pequena garrafa de vinho destinada a seu
isto é, provenientes das relações criadas em torno das consumo. O alimento é escolhido por cada um, mas o
refeições. De fato, a humanidade come de tudo; in- vinho tem caráter simbólico distinto e não deve ser
clusive a si própria, como mostra a prática do caniba- usufruído individualmente. A norma de etiqueta pres-
lismo. Neste caso, ingerir o corpo do outro pode re- supõe que oferecer o conteúdo de sua garrafa, que
presentar uma maneira de tê-lo simbolicamente perto contém a mesma quantidade e o mesmo vinho, para o
de si e de superar a dor do luto e da perda. parceiro diante de si é propício para romper a barreira
do isolamento e para dar início à relação com o outro.
3- AFETO E COMENSALIDADE
4- ALIMENTAÇÃO, FAMÍLIA E POBREZA
O caráter social da alimentação está presente
desde o nascimento. O leite materno é o primeiro ali- A comida é uma categoria através da qual os
mento oferecido ao ser humano e sua ingestão envol- pobres pensam sua relação com os “ricos” que não
ve o contato com o corpo da mãe, mediado pelo seio. enfrentam necessidades alimentares e com os muito
Por isso, desde o início da vida humana a alimentação pobres, que passam fome. Desse modo, a categoria
está associada tanto a afeto e proteção quanto seu comida estabelece fronteiras entre a identidade de po-
preparo está indelevelmente ligado ao universo femi- bres, dos ricos e dos muito pobres.
nino. Essa estreita vinculação prossegue durante a Para a população de baixa renda os alimentos
existência humana devido à divisão sexual do traba- são classificados entre os que são comida, como ar-
lho, segundo a qual o processamento de refeições cons- roz, feijão, carne. Em suas representações são alimen-
titui tarefa da mulher. Devido às representações ne- tos “fortes” que sustentam e se contrapõem a verdu-
gativas que incidem indevidamente sobre as atribui- ras, legumes, frutas que servem para “tapear” e são
ções domésticas, basicamente realizadas por mulhe- indicados no diminutivo como “coisinhas”, “saladinhas”,
res, incluindo-se nelas as atividades culinárias, essas “verdurinhas” que não enchem barriga5.
tarefas são consideradas menos dignas do que o tra- Essa lógica classificatória não se funda no va-
balho masculino, o que contribui para deixar de lado a lor nutriente dos alimentos, mas no fato de que pro-
investigação mais acurada do preparo de alimentos. porcionam a sensação de repleção, pois são gorduro-

336
O significado da alimentação na família: uma visão antropológica

sos ou preparados com gordura animal e demoram lação pobre mostrar para si mesma e para seus iguais
para ser digeridos, dando a sensação de “barriga que ela também pode consumir o que é simbolicamen-
cheia”. Não se trata de desconhecimento do valor te positivo. Ainda no plano da sociabilidade familiar a
nutritivo de frutas e legumes, mas da suposição, de- possibilidade de consumo de tais produtos aparece as-
monstrada na prática, de que eles não proporcionam a sociada à dimensão afetiva, isto é, oferecer o que não é
sensação de repleção e que seu consumo deixa a sen- fundamental para a alimentação traduz-se para pais e
sação de fome5. A dieta da população pobre é mono- filhos em demonstração de afeto, mesmo que à custa
tonamente repetida, menos por falta de conhecimento da contenção da aquisição de outros bens, às vezes
do que pelo significado que os alimentos considerados mais necessários para a família como um todo.
“fortes” ocupam no sistema classificatório alimentar, Ora, as mulheres ocupam uma posição funda-
bem como pelas condições socioeconômicas em que mental na alimentação da família por vários motivos.
vivem. Muito provavelmente, a mesma monotonia fre- Elas controlam, se não o orçamento doméstico, pelo
qüenta o cardápio daqueles qualificados como “ricos”. menos as compras de alimentos, seu processamento,
Fazer com que os filhos habituem-se às nor- socializam os filhos para aceitá-los e distribuem a co-
mas alimentares das famílias pobres é um processo mida entre os componentes da família. Mais impor-
complicado que mobiliza as mães. Os filhos revelam tante ainda, é que as mulheres têm maior acesso do
preferência por alimentos diferentes daqueles presen- que os homens a informações acerca da alimentação,
tes em suas casas, classificados justamente como gu- provenientes de várias fontes e de programas diver-
loseimas, tais como doces, bolachas, refrigerantes5. sos de orientação. As mulheres são mediadoras entre
Esses produtos são considerados mais saborosos, além universos nos quais predominam regras alimentares
de serem dotados de valor simbólico diverso, estando diversificadas e podem ser agentes transformadores
associados ao universo alimentar dos “ricos”. de hábitos alimentares.
Por sua vez, as mulheres tendem a reservar a A população de baixa renda enfrenta falta de
melhor parte do que preparam para os maridos quan- recursos financeiros para ter acesso a certos tipos de
do eles levam a refeição para o local de trabalho. Essa alimentos. Mas não é sua suposta ignorância que im-
postura é um recurso para mostrar que a família não pede o consumo de produtos adequados e de baixo
vive em situação de grande precariedade material e custo. De modo geral, há um vasto rol de informações
para que o marido não “passe vergonha” diante dos circulando entre as famílias pobres. Mas elas enfren-
outros19. Essa conduta feminina demonstra outra for- tam dificuldade em substituir hábitos solidamente im-
ma de os pobres utilizarem a comida como demons- plantados ou para adequá-los ao saber científico, pois
tração pública da posição social da família e que suas esses hábitos fazem parte de um sistema, onde cada
condições não são tão precárias. item ocupa um lugar que faz “sentido”, pois está inte-
As regras alimentares dos pobres convivem grado em um corpo de saberes. Torna-se difícil encai-
com normas dietéticas de cunho médico-científico que xar novas orientações porque as regras alimentares
adquiriram hegemonia, difundindo-se para todos os seg- estão incorporadas na interioridade dos sujeitos e en-
mentos sociais da população. Mas hegemonia não sig- capsuladas pelo aspecto afetivo e pelo prazer que pro-
nifica exclusão de outras regras alimentares. Como porcionam.
todo produto cultural, as normas dietéticas não são O grande dilema de todos os profissionais da área
absorvidas, incorporadas e postas em prática do mes- de saúde que trabalham com essas questões é que
mo modo, mas convivem com outras ordenações cul- eles se defrontam com a realidade cultural da população
turais de modo ambíguo e conflitante. Além disso, in- pobre, diversa daquela produzida pelo conhecimento
teresses mercantis mobilizam-se para difundir, promo- científico, de que esses agentes são portadores.
ver e incentivar o consumo de determinados alimen- No entanto, a convivência entre códigos cultu-
tos, sobretudo do supérfluo, daquilo que a população rais conflitantes não ocorre apenas entre a população
de baixa renda chama de “guloseimas”, destinadas pobre, queixa comum dos profissionais da área. Está
especialmente a crianças e adolescentes. presente com toda força e intensidade no seio das ca-
Em sua dimensão sociocultural alimentar-se é madas médias, que desfrutam de maior acesso ao co-
um meio de marcar identidades, de estabelecer fron- nhecimento científico, em função de escolaridade mais
teiras entre segmentos sociais. Oferecer aos filhos ali- elevada e de condições financeiras para se alimenta-
mentos pouco nutritivos constitui um meio de a popu- rem de acordo com padrões considerados adequados.

337
Romanelli G

Para tomar alguns exemplos do modo de relaciona- denações de cunho científico. Antes de considerar as
mento com a comida, temos os casos de anorexia, escolhas alimentares como fruto de uma irracionalida-
bulimia, obesidade, úteis para explicitar que a relação de que atinge apenas alguns, como pobres, anoréxi-
com a comida nunca é direta, ou melhor, nunca é de- cos, bulímicos, obesos e outros, seria melhor pensar
terminada em função da qualidade dos alimentos e de nessas escolhas como possibilidades sempre presen-
sua função para a saúde. Esses exemplos revelam ain- tes para a espécie humana. Não é apenas no plano
da que não basta ter acesso ao conhecimento acerca alimentar que os homens rebelam-se contra o instituí-
das propriedades dos alimentos, mas que a relação com do, e que além de instituído é considerado adequado,
eles não é dada pelas necessidades do organismo, ou saudável, racional. Nas mais diversas esferas da vida
pela racionalidade do conhecimento médico-científi- social sempre há os rebeldes que, ao não acatarem o
co, mas é mediada por um complexo sistema simbóli- estabelecido, contribuem para desafiar o conhecimen-
co que organiza escolhas alimentares. to e para propor alternativas culturais diversas a fim
Essas considerações podem alertar aqueles que de resolver problemas que são comuns a todos. É no
tratam diretamente com a população pobre de que seres plano da rebeldia, da recusa a normas, regras, valores
humanos não são plenamente racionais, mas são an- instituídos que se reproduz a diversidade cultural, o que
tes de tudo animais bastante complexos e complica- cria um espectro amplo de possibilidades para se viver
dos, que não se sujeitam a seguir obedientemente or- em sociedade.

Romanelli G. The meaning of alimentation in family: an anthropological view. Medicina (Ribeirão Preto) 2006;
39 (3): 333-9.

ABSTRACT: Hunger is a natural need that must be satisfied through the ingestion of food in
order to ensure the production and reproduction of human existence. However, if appeasing
hunger is a natural and universal action, alimentation practices are also universal. They are not
natural, but are situated in the scope of culture, that is to say, in the field of symbolic systems.
Around commensality, each society designs a complex system of dietetic rules based on com-
mon sense, religious precepts and medical knowledge, which creates interdictions to exclude
foods that are symbolically classified as harmful or dangerous to health from its menu. Anthropo-
logical studies have shown the diversity of alimentary practices, which do not constitute a solitary
act, but are social activities including the production, processing and consumption of food and
how societies construct their own representations, thus defining their identity in relation to other
societies through their eating habits. This study examines how the low-income population articu-
lates symbolic elements from various sources in order to organize dietetic rules that eventually
become cultural indicators through which food is categorized as appropriate or harmful for con-
sumption. Food is a category that establishes boundaries between the identity of the poor popu-
lation, who faces difficulty to promote alimentation, and the identity of those whose culinary is rich
and varied and that of the very poor, who starve.

Keywords: Feed. Dietetic; rules. Family; low-income.

REFERÊNCIAS 3 - Freyre G. Casa-Grande & Senzala. 10ª ed. Rio de Janeiro:


José Olympio; 1961.

1 - Lévi-Strauss C. Les structures eléméntaires de la parenté. 2ª 4 - Candido A. Os parceiros do Rio Bonito. 2ª ed. São Paulo:
ed. Paris: Mouton; 1973. Duas Cidades, 1971.
2 - Malinowski B. Argonautas do Pacífico Ocidental. Um relato do
empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipéla- 5 - Zaluar A. As mulheres e a direção do consumo doméstico. In:
gos da Nova Guiné melanésia. São Paulo: Abril Cultural; Almeida MSK et al. Colcha de retalhos. Estudos sobre a
1984. família no Brasil. São Paulo: Brasiliense; 1982. p. 159-84.

338
O significado da alimentação na família: uma visão antropológica

6 - Woortmann K. A comida, a família e a construção do gênero 13 - Lévi-Strauss C. Le cru et le cuit. Paris: Plon; 1964.
feminino. Dados 1986; 29 (1): 103-30.
14 - Lévi-Strauss C. L’origine des manières de table. Paris: Plon;
7 - Murrieta RSS. O dilema do papa-chibé: consumo alimentar, 1968.
nutrição e práticas de intervenção na Ilha de Ituqui, baixo
Amazonas, Pará. Rev Antropol 1998; 41 (1): 1-22. 15 - Lévi-Strauss C. A lição de sabedoria das vacas loucas. Estud
CEBRAP 2004; 70: 79-84.
8 - Menasche R. Risco à mesa: alimentos transgênicos, no meu
prato não? Campos 2004; 5(1): 111-29. 16 - Sahlins MD. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar;
1979.
9 - Dutra RC de A. Nação, região, cidadania: a construção das
cozinhas regionais no projeto nacional brasileiro. Campos 17 - Harris M. Vacas, porcos, guerras e bruxas: os enigmas da
2004; 5(1): 93-110. cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 1978.

10 - Collaço JHL. Um olhar antropológico sobre o hábito de co- 18 - Douglas, M. Purity and danger. An analysis of concepts of
mer fora. Campos 2003; 4: 171-94. pollution and taboo. London: Routledge & Kegan Paul; 1966.

11 - Topel, MF. As leis dietéticas judaicas: um prato cheio para a 19 - Fausto Neto AMQ. Família operária e reprodução da força
antropologia. Horiz Antropol 2003; 9: 203-22. de trabalho. Petrópolis: Vozes; 1982.

12 - Mintz SW. Comida e antropologia. Uma breve revisão. Rev


Brasil Ci Soc 2001; 16 (47): 31-41.

339

Você também pode gostar