O LUTO E SEUS DESTINOS

Eliane Mendlowicz

Doutoranda em Psicologia Clnica pela PUC. Psicanalista da Sociedade de Psicanlise Iracy Doyle/Spid.

RESUMO: O trabalho faz um breve percurso pela teoria freudiana do

luto e procura demonstrar, atravs de um fragmento clnico, que o destino de um luto pode ser diferente da proposta freudiana: ou a elaborao, ou a queda na melancolia. Procura enfatizar a grande dificuldade do processo de perda e valorizar outras formaes de compromissos possveis de se instalarem diante de um luto no muito bem elaborado. Palavras-chave: luto, angstia, morto-vivo, incorporao.
ABSTRACT: The vicissitudes of mourning.This paper briefly follows

the Freudian theory of mourning. Using part of a clinical case, an attempt is made to demonstrate that the vicissitudes of mourning may differ from those proposed by Freud, namely, either working through it or collapsing into melancholy. Emphasis is made on the great difficulty involved in the mourning process, as well as on the value of other possible symptom formations in the event of mourning not being well worked through. Keywords: mourning, anxiety, dead-alive, incorporation.

m seu brilhante ensaio O luto e a melancolia, Freud (1915/ 1975) lanou as linhas mestras das semelhanas e diferenas entre a melancolia e o processo de luto, tornando clssico em psicanlise o destino possvel de uma perda amorosa ou de um ideal: a elaborao do trabalho de luto (a recuperao da libido e a volta ao interesse no mundo externo), ou o fracasso dessa elaborao e a queda na melancolia. verdade que tambm falou de uma recusa da perda, que poderia levar a uma psicose alucinatria, mas o que foi absorvido pela psicanlise e tornou-se um dos mandamentos da teoria foram esses dois destinos: a elaborao bem-sucedida ou a melancolia.

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O que pretendemos, neste trabalho, considerar que so vrios os destinos possveis de um luto, desde o pleno resgate da libido a solues sintomticas de compromisso: neuroses transitrias ou no; at os quadros mais graves como a melancolia ou a psicose alucinatria. Muito temos ainda a descobrir em relao a esse processo. Ao comparar melancolia e luto, Freud (1915/1975) centra a questo em torno da perda, seja de uma pessoa, seja de um ideal, e esclarece que algumas pessoas reagem a isso com um quadro de melancolia, provavelmente devido a uma predisposio patolgica. J no luto, espera-se que, passado algum tempo, recupere-se o interesse pela vida sem necessidade de qualquer interferncia teraputica. As caractersticas do luto e da melancolia so descritas: um profundo desnimo, perda do interesse pelo mundo externo, inibio da atividade em geral, incapacidade de amar. A diminuio da auto-estima, acompanhada de intensas autoacusaes, podendo culminar at mesmo numa expectativa delirante de punio, considerada uma caracterstica exclusiva da melancolia. Alm disso, o objeto perdido do melanclico mais idealizado que o do luto, sendo que, na melancolia, estamos lidando com uma perda de objeto que pode ser inconsciente, enquanto no luto esta perda totalmente consciente. A ambivalncia em relao ao objeto perdido outro aspecto fundamental que diferencia os dois quadros, sendo muito intensa nos melanclicos, que se esquivam dela, voltando contra si a hostilidade que sentiam contra o objeto. Dando prosseguimento sua metapsicologia da melancolia, Freud (1915/ 1975) conclui que, nesta afeco, a libido livre, ao invs de se ligar a um novo objeto, volta-se para o prprio ego, e ocorre uma identificao do ego com o objeto abandonado. Da, ento, o ego passa a ser julgado por uma agncia especial (futuramente nomeada de superego) como se fosse um outro objeto. As autoacusaes so, na realidade, dirigidas contra esse objeto perdido internalizado no ego. O processo de luto, por sua vez, se realiza atravs do teste de realidade, que ao evidenciar reiteradamente que o objeto no mais existe, exige que a libido se desprenda do objeto perdido. Entretanto, sublinha que esta exigncia no fcil de ser cumprida. As pessoas tendem a se agarrar insistentemente a seus investimentos libidinosos e no abrem mo de suas ligaes mesmo quando outro objeto se apresenta a elas. Afirma, como j observamos, que quando essa oposio muito forte pode ocorrer um aprisionamento intenso no objeto, a ponto de se instalar uma psicose desejosa alucinatria, resultado de um total fracasso do juzo de realidade. As exigncias do teste de realidade s podem ser realizadas gradativamente e com muito gasto energtico, sendo que no decorrer deste perodo a existncia do objeto perdido prolongada no psiquismo. Todo esse processo envolve sofrimento, dor, e feito muito lentamente, pedao por pedao.
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Abraham (1924/1970) achava que a diferena entre o luto e a melancolia ainda no estava plenamente compreendida, apesar da formidvel contribuio freudiana. Comentou que a metapsicologia do luto normal era superficial; a psicanlise ainda no tinha conseguido explicar como se processava o trabalho de luto. Avanou no estudo das depresses melanclicas e, entre outras contribuies, encontrou no processo de luto normal uma analogia possvel relacionada ao par melancolia-mania, apontando que em muitos processos verificava-se um aumento dos desejos sexuais, uma maior iniciativa, um engravidar. Acompanhando Abraham (1924/1970), concordamos que, apesar de todo estudo desenvolvido em torno do luto e da melancolia, o processo de luto ainda permanece assaz misterioso, e o que temos observado que este processo tambm pode envolver qualidades inconscientes, sem por isso desembocar, necessariamente, numa melancolia. A experincia clnica nos revela que a perda de uma pessoa amada pode fazer emergir outros tipos de perturbaes psquicas, alm do quadro melanclico. Estamos tentando ampliar os conhecidos destinos: ou a elaborao do luto, ou a melancolia. Tentaremos ilustrar nossa proposta com uma vinheta clnica, relativa a um determinado acontecimento ocorrido h alguns anos atrs: Maria, uma mulher no incio de seus 40 anos, procurou a anlise, alegando que j no agentava tanto sofrimento, tanta angstia. Tentava em vo se consolar com palavras tranqilizadoras, racionalizadoras mas nada adiantava, a dor insistia. Seus terrores se traduziam num medo incontrolvel de perder os filhos. Qualquer mnimo atraso, qualquer indcio de doena e os afastamentos um pouco mais longos eram vividos como tragdias iminentes. No tinha a menor dvida de que se tratava de um sofrimento neurtico, mas tudo era intil, vivia avassalada pelo medo. As coisas pioraram depois que os filhos cresceram e ganharam certa autonomia, da em diante sua vida tornara-se um inferno. Entretanto, no pretendia escravizar seus filhos com seus temores infundados. Observou que lamentava muito isso estar ocorrendo, pois estava num momento particularmente feliz de sua vida. Com o crescimento dos filhos, voltara a ter mais tempo para se dedicar ao trabalho, tinha um companheiro amoroso, uma vida sexual que a satisfazia, bons amigos e uma situao financeira confortvel. Perdera o pai h uns quinze anos atrs e era muito ligada a ele. Tinha dificuldades com a me, mas conseguira um relacionamento razovel com ela, no diria amoroso, porm civilizado. Sofreu muito com a morte sbita do pai, tendo levado muito tempo para sair de uma profunda tristeza com a perda de quem tanto significou para ela. Engravidara de seu primeiro filho logo aps a morte do pai (decidira engravidar antes de sua morte), e no tinha dvidas de que isso ajudara muito a superar sua dor.
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No desenrolar de nossos encontros, eu pouco falava e Maria continuava avassalada pela sua angstia, perplexa e desanimada com nossa experincia. As propostas psicanalticas povoavam minha mente. Escutava Maria mas pouco ouvia. Nada comprovava minhas suspeitas, que alis giravam em torno dos pressupostos tericos psicanalticos. Ambivalncia excessiva? Medo/desejo de morte dos filhos? Gozo superegico? Neurose traumtica? Um dia, um sonho: Hoje tive um sonho estranhssimo. No tinha histria, nem nada... No sei por que ele ficou me invadindo, na verdade, era s uma imagem, e ela apareceu muitas vezes hoje de novo, quando j estava acordada. Era um vidro de conserva e dentro dele havia um tumor; mais parecia um queijo branco, como a muzzarella de bfala, boiando num lquido. No fao a menor idia do que esse sonho quer significar. Visualizei o sonho, pensei e nada me ocorreu. Lembrei-me da advertncia freudiana para selecionar um pedao do sonho e solicitar associaes em cima do fragmento, quando nada se produzisse em torno do sonho como um todo. Tumor? Comecei a repetir para mim mesma: tumortumor tumor, morto! Digo: Maria, tumor ao contrrio morto. Maria comeou, ento, a fazer outras associaes: o branco lembrava o lenol branco que envolvia seu pai, quando foi enterrado. No estava aqui quando ele faleceu. Ao chegar j o encontrara no caixo. A religio judaica enterra seus mortos nus, como vieram ao mundo, enrolados num lenol branco, e no se pode abrir o caixo. Maria lembrou que havia pedido insistentemente para tocar seu pai, explicando que no pudera v-lo morto. Um religioso, penalizado, abriu o caixo rapidamente, e ela o tocou. No possvel, disse ela emocionada, 15 anos se passaram e eu no consigo enterr-lo! Um queijo muzzarella de bfala, conservado num vidro. Um tumor. Um pai muito amado, judeu, vindo da Itlia com a invaso do nazismo. Um pai-me, um paifilho, um pai morto-vivo. Aps esse sonho, prosseguimos nossos encontros onde predominava o assunto do pai vivo e do pai morto. Sua angstia foi deslocada para seus filhos, eleitos, entre outras razes, por terem sido justamente concebidos em pleno luto paterno. A contaminao da vida com a morte se deu. Irrompeu no luto, uma brusca erupo de vida mesclada com a morte. Maria lembrou-se que, logo aps a morte de seu pai, acordava no meio da noite temerosa de morrer tambm, alm disso, provocara um acidente de automvel na primeira semana aps o desaparecimento do pai. Esses sintomas passaram com relativa rapidez, mas no a tristeza, essa levara muito tempo... Sempre foi uma me preocupada e cuidadosa com seus filhos, mas como eram crianas saudveis que adoeciam pouco, no valorizara como um corpo estranho a angstia que eclodia nas ocasies em que estavam doentes. S com o crescimento deles, quando no tinha mais controle absoluto de seus movimentos, pois angora v. I II n. 2 jul/dez 2000 87-96

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davam desacompanhados, foi que irromperam as freqentes crises de angstia, aos seus prprios olhos injustificadas. Retomando a preciosa contribuio freudiana, ratificada por Abraham (1924/ 1970), verificamos que, em qualquer processo de perda, o primeiro movimento o de introjeo do objeto amado perdido, mecanismo que empresta vida ao objeto, vitaliza o amor que se foi. Entretanto o que se observa, segundo esses autores, que nos processos de luto normal tal introjeo rpida, transitria, e o psiquismo se v obrigado a se curvar ao teste de realidade. Concordamos que esse processo de introjeo , efetivamente, muito mais longo nos casos dos lutos no to bem sucedidos, mas, como j observamos, tais casos no se limitam a um destino melanclico. Maria, apesar de suas ecloses de angstia era uma mulher vivaz, interessada na vida e vaidosa. Entretanto, carregava um processo de luto ainda por elaborar. A introjeo de um objeto morto produtora de muita angstia, mesmo quando diante de uma perda sem ambivalncia excessiva. Sabemos da proximidade do conceito de introjeo com o da identificao, e ao convocarmos o objeto morto ao nosso interior a fim de no nos separarmos dele, invocamos concomitantemente uma angstia avassaladora, pois os vivos no se misturam harmoniosamente com os mortos. Ao emprestarmos vida ao morto pagamos com um pedao de nossas vidas e, no mnimo, com a ameaa de nossa prpria morte. No h negociao possvel com a morte cuja moeda no seja a prpria vida. A introjeo de um morto que se quer vivo, de um morto-vivo, uma soluo de compromisso provocadora de intensa angstia, indutora de um pouco de morte. Estamos supondo que, em muitos casos, a perda por morte e a conseqente introjeo do objeto morto, transformado num morto-vivo, provoca uma intensa angstia que no est vinculada nem ambivalncia, nem culpa, mas sim ao desejo de se unir ao objeto, impossibilidade de se separar dele, e ao mesmo tempo, ao terror que essa unio significa: a nossa prpria morte. Bowlby, em 1962, j havia afirmado que a persistente busca de unio com o objeto definitivamente perdido o principal motivo do luto patolgico, e isso sempre aparece de forma mascarada, distorcida. Temos uma vastssima produo na cultura de mitos, lendas, figuras de religio que expressam de uma forma ou outra esse processo que tentamos descrever. So os nossos famosos vampiros, fantasmas, zumbis, que retornam do inanimado, ameaando-nos. So metforas, criaes que no cessam de ser construdas e, atualmente, contamos com todo arsenal tecnolgico da contemporaneidade contribuindo para multiplicar essas produes. A propsito do mecanismo de introjeo, Abraham e Torok (1968,1972/1995) fizeram uma crtica veemente e muito pertinente ao fato de a psicanlise estar tratando os conceitos de introjeo e incorporao como equivalentes. Argumengora v. III n. 2 jul/dez 2000 87-96

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taram que os autores psicanalticos perderam o sentido rigoroso e especfico introduzido por Ferenczi em 1909. A introjeo, segundo este autor, consiste num processo que permite que os interesses primitivos auto-erticos se expandam para o mundo exterior, possibilitando a incluso dos objetos do mundo no ego. Para Ferenczi (1912/1991), o homem s capaz de amar a si mesmo; qualquer amor de objeto, em ltima instncia, implica a integrao desse objeto no prprio ego. essa fuso dos objetos com o prprio ego que chama de introjeo. Esse processo constituinte do ego, que se amplia atravs das introjees. Ferenczi aproxima a introjeo da transferncia, e argumenta que o neurtico est continuamente buscando objetos de transferncia, ou seja, busca atrair para si prprio tudo que possvel, distribuindo seu amor e dio at para objetos superficialmente insignificantes. O resultado dessa transferncia a introjeo excessiva, que nos neurticos se manifesta somente como um exagero daquilo que absolutamente normal e constituinte de todo ser. No incio, o recm-nascido no capaz de diferenciar o que o mundo externo ou interno. Ao fazer a primeira separao entre o que lhe pertence e o que da ordem externa, est realizando a primeira operao projetiva, a projeo primitiva. Uma parte do mundo externo, entretanto, no cede expulso e se impe ao ego, que a reabsorve, constituindo a primeira introjeo, a introjeo primitiva, ampliando o ego. , tambm, graas introjeo que o objeto externo opera como um mediador para o Inconsciente. Esse comrcio transforma as moes pulsionais em fantasias desejantes com uma configurao delineada, enriquecendo o ego, dando nome ao que no tinha, permitindo o jogo objetal, a vida de relaes. A concepo ferencziana da introjeo implica uma valorizao desse conceito como algo estruturante, constituinte do ego, fundamental ao desenvolvimento, e os autores contemporneos tm esvaziado esse conceito, chegando a equacionar introjeo posse do objeto atravs da incorporao, como bem observaram Abraham e Torok (1968,1972/ 1995) ao insistirem na distino metapsicolgica entre introjeo e incorporao. Retomando a originalidade do conceito criado por Ferenczi (1909/1991), clarificaram que introjetar um processo de alargamento do ego, de incluso da libido inconsciente que investida no objeto permite a ampliao egica. A operao da introjeo no compensatria de uma perda objetal; na verdade, quase todas as caractersticas atribudas a ela pertencem incorporao, este sim um mecanismo fantasmtico que entra em ao aps a perda de um objeto. Na tentativa de negar o objeto perdido, realiza-se a incorporao, ou seja, uma fixao, um congelamento do objeto dentro do sujeito. O ego tenta manter vivo o objeto imaginrio mesmo custa de sofrimento, na esperana de que algum dia seus desejos possam ser realizados e paga por isso com a doena do luto. Segundo esses autores, a cura mgica pela incorporao implica uma recusa
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ao luto, ou seja, uma negao da dimenso do significado daquela perda. O saber implicaria uma necessria modificao em ns mesmos que seria proporcionada pela introjeo. Ao invs da introjeo ocorre uma incorporao, e isso aponta, necessariamente, para uma lacuna, uma falta. A incorporao no permite uma metabolizao do objeto no ego. O objeto, como j observamos, permanece fixo, congelado, dentro do ego. Nessa perspectiva, os autores recuperam a introjeo como um mecanismo enriquecedor e expansor dos interesses do ego, dando a ele uma importncia fundamental no processo de luto, resgatando a formulao original feita por Ferenczi (1909/1991). Acrescentaram que as perdas que tm por destino a incorporao so aquelas que no podem ser conscientemente admitidas. Tais perdas tm como conseqncia um luto indizvel, instalando no sujeito uma cripta secreta. A troca da introjeo pela incorporao deve-se ao fato de estarmos lidando com desejos proibidos em relao ao objeto, um luto envergonhado. Torok (1968/1995) nomeia de fantasia do cadver saboroso este morto, conservado inconscientemente, guardado na esperana de um dia poder ser reanimado. Uma muzzarella de bfala num vidro de conserva um cadver saboroso e a recusa de abrir mo de uma posio libidinosa to confortvel: a iluso da proteo que poupava Maria do profundo sentimento de desamparo. Neste caso, no se tratava exatamente de um luto envergonhado por um desejo sexual interditado; a incorporao instalou-se pela recusa parcial das conseqncias daquela morte, a perda de um objeto que significava uma promessa de escapar da angstia ante o destino incontrolvel. A psicanlise centrou, primeiramente, a explicao das psiconeuroses no complexo de dipo e, gradativamente, foi dando cada vez mais valor s perturbaes nas relaes de objeto pr-edpicas, como responsveis pela formao dos quadros psiconeurticos e, especialmente, dos psicticos. Abraham (1924/1970) j destacara, dentre as causas determinantes dos quadros depressivos, uma grave leso no narcisismo infantil provocada por sucessivos desapontamentos amorosos na relao me-filho. , alis, esse autor quem precisa que quando a perda de um objeto amado se transforma num quadro melanclico, tal objeto sempre representa um objeto infantil original. Apesar de concordamos com todo estudo psicanaltico que valorize as experincias infantis e a influncia de fatores constitucionais na determinao dos quadros neurticos, fazemos objeo a qualquer teoria que tente estabelecer, rigidamente, o momento da evoluo, em que se produziriam acontecimentos que, necessariamente, predisporiam a um determinado quadro. O que se verifica um desenvolvimento feito de estruturaes e restruturaes ao longo da vida. Temos observado que o processo de luto um dos maiores desafios ao equilbrio do psiquismo e que, alm disso, dependendo do tipo de perda, ou seja, morgora v. III n. 2 jul/dez 2000 87-96

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tes sbitas, precoces, violentas, perda de um filho, a elaborao pode se tornar assaz complexa, com grandes possibilidades de um fracasso parcial deste trabalho. um momento em que enormes dificuldades se impem ao sujeito, e alguns sucumbem ou apenas conseguem encontrar uma meia soluo, uma meia elaborao. A morte, destino inexorvel de todo ser, dificilmente absorvida pela civilizao ocidental, que diante do golpe narcsico mais contundente descobre caminhos tortuosos na doce iluso de um drible possvel. Diante da morte no h negociao harmoniosa possvel: ou ela plenamente aceita, ou nos cobra um pedao de nossas vidas. So os nossos mortos-vivos que no nos deixam em paz, ou melhor, somos ns que no os deixamos em paz. O caminho que estamos trilhando o do conflito permanente, da necessidade de elaborao constante do aparelho psquico, da eterna vulnerabilidade do homem diante do imprevisvel do destino. Mesmo Klein (1940/1975), forte adepta da importncia do fator constitucional, j havia nos indicado que o sujeito depende emocionalmente de seus objetos amorosos, a integrao plena jamais alcanada e estamos sempre tendo que elaborar a ao radical das pulses e o sentimento de solido. Segundo essa autora, mesmo que se atravesse a posio depressiva construtivamente, um quadro neurtico poder ser desenvolvido. A to pretendida estabilidade e invulnerabilidade psquica no encontra ressonncia na teorizao kleiniana, onde o sujeito, tambm, depende do olhar amoroso do outro para manter o equilbrio instvel de seu mundo interno, sujeito a desorganizaes diante das perdas da vida. Sem dvida, Klein (1932/1975) valoriza extraordinariamente a relao precoce com a me e as primeiras vitrias contra as pulses destrutivas, como condio para uma boa estruturao egica, capaz de promover uma relao mais harmoniosa do sujeito com o mundo. Entretanto, isso no implica que o sujeito, mais tardiamente na vida, no possa, de qualquer forma, fracassar na elaborao de uma perda e desenvolver uma sintomatologia especfica. Para Freud, o ego tinha sempre que enfrentar dois tiranos inimigos: a realidade externa e as pulses, enquanto para Klein (1932/1975) o homem estava, sempre, inteiramente merc das pulses destrutivas. Winnicott (1963/1974) por sua vez, autor bem mais otimista que Freud e Klein, no via a realidade como inimiga e acreditava que o processo maturacional tinha uma natural aptido para a sade, embora raramente se alcanasse a maturidade completa. Inclinava-se a conceber o homem como um ser vivel e criativo, embora inclusse em sua perspectiva as pulses de morte. Os processos de maturao, para esse autor, so concebidos como contnuos na vida, possibilitando mudanas at na velhice. Apesar da extraordinria valorizao que d funo materna que possibilita o surgimento do ser integrado, de forma alguma essa funo garante uma harmonia para o resto da vida. O equilgora v. I II n. 2 jul/dez 2000 87-96

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brio psquico no completamente estvel e est sujeito s vicissitudes da vida. O ambiente fundamental, essencial para o equilbrio, e desorganizaes, rupturas, reviravoltas podem provocar srios comprometimentos psquicos, pois no h nenhuma possibilidade de uma independncia do ambiente. O sujeito humano est condenado a ser algum entrelaado ao social, dependente das relaes afetivas que construiu. Com mais um ano de anlise, Maria pde prosseguir no seu trabalho de luto, na elaborao e realizao total de sua perda. Reconheceu, nesse perodo, que fazia, muitas vezes, exigncias exageradas ao companheiro quando este falhava em sua funo protetora. Aceitou a idia de que, provavelmente, nunca mais teria na vida algum que a poupasse tanto dos dissabores do dia-a-dia como o fizera seu pai. Finalizou seu percurso, observando que a perda do pai foi a maior dor de sua vida. Conclumos que chegou mesmo a ter saudades da dor que sentia, pois no sofrimento estava perto dele e hoje j se sentia longe, muito longe. Certamente o que Maria desenvolveu no fora uma melancolia mas, por outro lado, tambm no havia conseguido elaborar completamente a morte do pai. O desejo de se unir a ele permanecia e a angstia se fazia presente na relao com os filhos. Acreditava que no suportaria mais viver se algo acontecesse a eles. Afora esse sintoma, era alegre, vital, interessada nas coisas, mas um resto de luto ficara, a angstia da morte rondava, restos inconscientes, elaboraes e ligaes faltosas...

Recebido em 20/7/2000. Aceito em 13/9/2000.

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