Mono Agatha

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE BIBLIOTECONOMIA E COMUNICAO DEPARTAMENTO DE JORNALISMO

Priscila De Martini

AGATHA CHRISTIE NO CINEMA: Uma discusso da adaptao do gnero romance policial clssico no exemplo de Assassinato no Expresso Oriente

Porto Alegre 2006

Priscila De Martini

AGATHA CHRISTIE NO CINEMA: Uma discusso da adaptao do gnero romance policial clssico no exemplo de Assassinato no Expresso Oriente

Trabalho de concluso de curso de graduao apresentado Faculdade de Biblioteconomia e Comunicao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obteno do grau de Bacharel em Comunicao Social, habilitao em Jornalismo.

Orientadora: Profa. Dra. Miriam de Souza Rossini

Porto Alegre 2006

Priscila De Martini

AGATHA CHRISTIE NO CINEMA: Uma discusso da adaptao do gnero romance policial clssico no exemplo de Assassinato no Expresso Oriente

Trabalho de concluso de curso de graduao apresentado Faculdade de Biblioteconomia e Comunicao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a Obteno do grau de Bacharel em Comunicao Social, habilitao em Jornalismo.

Conceito final: Aprovado em 06 de dezembro de 2006

BANCA EXAMINADORA ___________________________________ Profa. Dra. Fatimarlei Lunardelli UFRGS ___________________________________ Profa. Dra. Maria Tereza Amodeo PUCRS ___________________________________ Orientadora Profa. Dra. Miriam de Souza Rossini UFRGS

Rainha do Crime, uma mulher notvel

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por todas as oportunidades, pelo amor e pela dedicao incondicional. A Miriam, pelo exemplo de empenho e empolgao. A Vanessa, pelo sacrifcio de ler Agatha Christie. A Alessandra, pelo companheirismo nos momentos mais complicados deste semestre. A Marina, Sara e Carlos, pelo incentivo. Ao Srgio, pelo auxlio tcnico. Ao Marcus, pela ajuda com a Virginia Woolf. A Brenda, pelos puxes de orelha. Aos amigos de Agncia RBS, pelo coleguismo.

RESUMO

O presente trabalho monogrfico analisar como se d a passagem do romance policial clssico da escritora Agatha Christie para o cinema, buscando avaliar que tipo de filme resulta do gnero em questo para tentar entender por que eles no so mais feitos desde o final dos anos 1980. Atravs de reviso bibliogrfica, sero definidas as principais caractersticas do tipo de literatura que faz Agatha Christie e que aspectos so indissociveis de sua obra. Em um segundo momento, sero expostas as dificuldades da transposio da linguagem literria para a cinematogrfica, com o objetivo de compreender como o cinema lida com os pontos fundamentais do romance policial clssico. Na procura pela resposta desta questo, ser analisado o exemplo do filme Assassinato no Expresso Oriente, dirigido por Sidney Lumet em 1974, adaptao do livro homnimo de Agatha Christie, publicado em 1934.

Palavras-chave: Romance policial clssico. Cinema. Literatura

LISTA DE ILUSTRAES

Ilustrao 1 Philip Jackson, David Suchet e Hugh Fraser em Poirot de Agatha Christie ..................................................................................................................................... 33 Ilustrao 2 Austin Trevor como Poirot......................................................................... 34 Ilustrao 3 Tony Randall como Poirot ......................................................................... 35 Ilustrao 4 Albert Finney como Poirot ......................................................................... 36 Ilustrao 5 Peter Ustinov como Poirot.......................................................................... 36 Ilustrao 6 David Suchet como Poirot .......................................................................... 37 Ilustrao 7 Joan Hickson como Miss Marple ............................................................... 38 Ilustrao 8 Margareth Rutherford como Miss Marple................................................ 39 Ilustrao 9 Angela Lansbury como Miss Marple......................................................... 39 Ilustrao 10 Geraldine McEwan como Miss Marple ................................................... 40 Ilustrao 11 Determinao do espao-tempo do caso Daisy ........................................ 71 Ilustrao 12 Reconstituio do caso Daisy pelos jornais.............................................. 71 Ilustrao 13 Mudana brusca do espao-tempo........................................................... 72 Ilustrao 14 Beijo entre Coronel Arbuthnot e Mary Debenham................................. 73 Ilustrao 15 Expresso Oriente na plataforma de Istambul.......................................... 74 Ilustrao 16 Expresso Oriente comeando sua viagem a Calais.................................. 74 Ilustrao 17 Passageiros reunidos para a soluo do mistrio..................................... 76 Ilustrao 18 Condessa Andrenyi e Mrs. Hubbard brindam o final feliz..................... 77 Ilustrao 19 Opulncia do vago-restaurante .............................................................. 81 Ilustrao 20 Crditos iniciais do filme .......................................................................... 82 Ilustrao 21 Crditos iniciais do filme .......................................................................... 82 Ilustrao 22 Vanessa Redgrave como Mary Debenham .............................................. 84 Ilustrao 23 Sean Connery como Coronel Arbuthnot ................................................. 84 Ilustrao 24 Anthony Perkins como Hector MacQueen .............................................. 85 Ilustrao 25 Pierre Michel ............................................................................................ 85 Ilustrao 26 Lauren Bacall como Mrs. Hubbard......................................................... 86 Ilustrao 27 Princesa Dragomiroff (E) e Hildegarde Schmidt .................................... 86 Ilustrao 28 Ingrid Bergman como Greta Ohlsson...................................................... 87 Ilustrao 29 Colin Blakely como Cyrus Hardman ....................................................... 88 Ilustrao 30 Richard Widmark como Samuel Ratchett............................................... 88

Ilustrao 31 Conde e Condessa Andrenyi .................................................................... 89 Ilustrao 32 Martin Balsam como Bianchi................................................................... 90 Ilustrao 33 John Gielgud como Beddoes .................................................................... 91 Ilustrao 34 Albert Finney como Poirot ....................................................................... 92 Ilustrao 35 Esquisitices de Poirot................................................................................ 93 Ilustrao 36 Esquisitices de Poirot................................................................................ 93 Ilustrao 37 Esquisitices de Poirot................................................................................ 93 Ilustrao 38 Die Abenteuer G.m.b.H, de 1926............................................................ 111 Ilustrao 39 The Passing of Mr. Quinn, de 1928........................................................ 111 Ilustrao 40 And then there were none, de 1945 ........................................................ 112 Ilustrao 41 Testemunha de Acusao, de 1957......................................................... 112 Ilustrao 42 Quem viu, quem matou..., de 1961 ......................................................... 113 Ilustrao 43 Ten Little Indians, de 1966..................................................................... 113 Ilustrao 44 Ten Little Indians, de 1975..................................................................... 114 Ilustrao 45 Assassinato no Expresso Oriente, de 1974 ............................................. 114 Ilustrao 46 Morte no Nilo, de 1978 ........................................................................... 115

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Diviso do filme................................................................................................ 79

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SUMRIO

1 INTRODUO ...................................................................................................................12 2 O REINO DE AGATHA CHRISTIE.................................................................................15 2.1 DOIS DETETIVES, DUAS CELEBRIDADES.................................................................20 2.1.1 Poirot e suas clulas cinzentas...................................................................................21 2.1.2 Miss Marple: o mal est por toda a parte................................................................25 2.2 AGATHA CHRISTIE NO CINEMA.................................................................................27 2.2.1 Agatha Christie nas telinhas.........................................................................................31 2.2.2 As diferentes faces de Miss Marple e Poirot................................................................34 3 O ROMANCE POLICIAL..................................................................................................42 3.1 CARACTERSTICAS DO ROMANCE POLICIAL CLSSICO.....................................43 3.1.1 Leitor-detetive..................................................................................................................48 3.2 OUTRAS VERTENTES DO ROMANCE POLICIAL......................................................50 3.2.1 O romance noir.................................................................................................................50 3.2.1 O suspense........................................................................................................................53 4 LITERATURA E CINEMA................................................................................................55 4.1 AS LIMITAES DE CADA MEIO................................................................................55 4.2 O PROCESSO DE ADAPTAO.....................................................................................58 4.3 A QUESTO DA FIDELIDADE.......................................................................................61 4.4 AS INTENES AO ADAPTAR......................................................................................64 5 O EXEMPLO DE ASSASSINATO NO EXPRESSO ORIENTE...................................66 5.1 O LIVRO.............................................................................................................................66 5.2 O FILME.............................................................................................................................68 5.3 AS RELAES ENTRE LITERATURA E CINEMA NO FILME..................................70 5.4 A QUESTO DO GNERO NO FILME..........................................................................77 5.4.1 O ponto de vista da narrativa.......................................................................................77 5.4.2 A estrutura da narrativa...............................................................................................78 5.4.3 O mundo de Agatha Christie........................................................................................80 5.5 OS PERSONAGENS..........................................................................................................83 5.5.1 A construo de Hercule Poirot....................................................................................91 6 CONCLUSO......................................................................................................................94 REFERNCIAS......................................................................................................................97

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ANEXO A Localizao de Torquay no mapa da Inglaterra..........................................100 ANEXO B Obiturio de Poirot no The New York Times..............................................101 ANEXO C Lista de episdios de Poirot, de Agatha Christie.........................................103 ANEXO D Reportagem com David Suchet no Evening News.......................................106 ANEXO E Vinte regras para escrever romances policiais, de S.S. Van Dine..............107 ANEXO F Fotos de filmes adaptados da obra de Agatha Christie...............................111 ANEXO G Poirot e Vera Rossakoff em Poirot de Agatha Christie..............................116

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INTRODUO

As caractersticas mentais habitualmente classificadas como analticas so, na verdade, pouco suscetveis anlise. Podemos avali-las somente por seus efeitos. Sabemos que elas so, entre outras coisas, uma fonte de grande prazer para quem as possui em alto grau. Assim como o homem forte exulta com sua capacidade fsica, deleitando-se com os exerccios que estimulam os msculos, o analista glorifica-se com a atividade intelectual que desembaraa as coisas. Ele extrai prazer at mesmo das atividades mais triviais que desafiem o seu talento. Gosta de enigmas, charadas, hierglifos, mostrando na soluo de cada um deles um nvel de perspiccia que parece sobrenatural para as pessoas comuns. Os resultados, obtidos atravs de puro mtodo, tm, no entanto, toda uma aparncia de intuio. (POE, 1988, p. 7)

Edgar Allan Poe bem sabia que da natureza humana o interesse pelo crime, pelas histrias que o circundam, seus personagens e, principalmente, o desenlace de sua soluo a montagem desse quebra-cabea que pe prova a capacidade de interpretao e raciocnio do homem. Tanto sabia que descobriu um gnero de literatura que estava vagueando por a h anos, somente espera de algum que o colocasse no papel: o romance policial. E se Assassinatos da Rua Morgue no desencadeou uma srie de dezenas de livros do gnero por parte de seu autor, inspirou diversos outros autores a assumir a dianteira do romance policial em seus tempos ureos, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. Escritores como Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Georges Simenon, Austin Freeman e Arthur Conan Doyle popularizaram o gnero, criando maneiras prprias de contar a histria do crime, mantendo a forma quase inaltervel do gnero, com seus trs elementos bsicos: a vtima, o criminoso e o detetive. O cinema, irmo mais novo da literatura, no tardou em aproveitar o embalo do sucesso do romance policial, especialmente nos pases de seus principais autores: Reino Unido, Frana e Estados Unidos. A partir do incio do sculo 20 comearam a surgir diversas adaptaes de obras do gnero, como as do Sherlock Holmes de Conan Doyle. Dentre os escritores de romance policial mais adaptados da histria do cinema, destaca-se aquela que tambm a mais vendida de todos os tempos: a inglesa Agatha Christie. Seus livros, traduzidos para 44 lnguas, so superados em vendas apenas por William Shakespeare e a Bblia. Segundo o Guiness Book, o livro dos recordes, so mais de dois bilhes de unidades vendidas em todo o mundo. Sua enorme popularidade e seu gnero literrio fazem com que seja conhecida em todos os continentes tambm como Rainha do Crime ou Dama do Crime. Foram quase trinta filmes para o cinema adaptados da obra da Rainha do Crime. Um, inclusive, sobre um episdio da vida da prpria escritora. Acostumada a adaptar seus textos a

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outra linguagem no caso, ao teatro , Agatha sabia que mudanas sempre so necessrias nessa transio. Mesmo assim, a autora no aceitou muito bem as verses cinematogrficas de seus livros, especialmente as que contavam com seus dois mais notrios detetives: Hercule Poirot e Miss Marple. Desde 1989, contudo, quando foi lanada a quarta verso de O Caso dos Dez Negrinhos, nenhuma obra de Agatha Christie adaptada para o cinema. So mais de 16 anos sem filmes baseados no estilo de romance policial da Rainha do Crime. E se pensarmos em adaptaes da tradicional histria policial de detetive da escritora, ainda faz mais tempo desde o ltimo filme: 1988, quando foi lanado Encontro com a Morte, com o famoso Hercule Poirot. Foi esse longo perodo sem ver produes baseadas na obra dessa que uma das escritoras mais populares do mundo, depois de uma tradio de dcadas de adaptaes, que me instigou a escolher este tema para meu trabalho de concluso. No mesmo momento em que a televiso encontrou nos textos de Agatha uma mina de ouro para sries que se tornaram mania em vrios pases, por que o cinema parece ter abandonado as fantsticas tramas do romance policial da autora inglesa? Quais os motivos para esse desinteresse? Partindo dessas questes, o objetivo desta monografia avaliar que tipo de filme resulta da adaptao do romance policial clssico da Rainha do Crime, na busca de uma explicao para essa ausncia de produes baseadas em sua obra. Quais so os princpios que devem reger essas adaptaes, o que imprescindvel manter e o que pode ser modificado e at que ponto esse tipo de filme corresponde s expectativas do mercado cinematogrfico das ltimas dcadas. Primeiramente, falo sobre quem Agatha Christie e que conceito acompanha essa grife que o nome da escritora, seja para onde for. Recupero um pouco da histria de vida desta inglesa que, acima de tudo, era esposa, me e av; que em cerca de 60 anos escreveu mais de 100 histrias e conquistou bilhes de pessoas ao redor do globo. Abordo tambm as principais obras da escritora, suas influncias e seu processo de criao. No primeiro captulo ainda consta um levantamento das adaptaes da obra da Rainha do Crime para o cinema e as sries de televiso, bem como uma anlise da representao de seus principais personagens nas telinhas e nas telonas. Em um segundo momento, abordo quais so as caractersticas das principais vertentes do romance policial. Alm do romance policial clssico, de enigma, tambm sero comentados o romance noir e o suspense, que no deixam de ser uma espcie de evoluo do

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gnero, mas minha nfase, naturalmente, ser no romance policial clssico com detetive, em especial o escrito por Agatha Christie. Na seqncia, trato da relao entre literatura e cinema, a fim de compreender como se faz essa passagem da linguagem literria para a cinematogrfica. Falo sobre as especificidades dos dois meios, com seus limites e suas possibilidades. E, como em todas as discusses sobre adaptaes para o cinema de obras literrias, ser discutida brevemente a questo da fidelidade, conflitando as idias de traduo e dilogo. A fim de ilustrar o que foi discutido anteriormente e ainda procura da resposta da questo que proponho neste trabalho, estudo o caso de Assassinato no Expresso Oriente, filme lanado em 1974, adaptado do livro homnimo publicado por Agatha Christie em 1934. Escolhi esse filme em especfico por ser um dos mais famosos da Rainha do Crime e acessvel em DVD. Alm disso, acredito que seja a produo que melhor transportou o mundo de Agatha Christie e a estrutura do romance policial clssico para o cinema. A maioria dos livros de Agatha Christie e dos filmes inspirados em suas obras foi publicada no Brasil, porm alguns nunca chegaram ao pas. Portanto, ao longo do texto optei por traduzir apenas os ttulos dos filmes e dos livros que foram lanados por aqui. Ilustraes e outros materiais referentes obra da Rainha do Crime completam a monografia. Grande parte das imagens, exceto as reprodues de Assassinato no Expresso Oriente, foi retirada da Internet, por meio do Google Imagens1.

Disponvel em http://images.google.com.br.

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2 O REINO DE AGATHA CHRISTIE

Como a maioria dos autores da literatura policial, a inglesa Agatha Christie (18901976) produziu uma obra ampla e variada em seus 60 anos de carreira. So 68 romances policiais, mais de 100 contos e 19 textos para o teatro, traduzidos para mais de 44 lnguas2. Tambm escreveu trs livros de poesia, dois de no-fico e outros seis romances com o pseudnimo Mary Westmacott. Os royalties de suas obras ainda rendem, em mdia, um milho de dlares anualmente, mesmo dcadas aps sua morte. Bilhes de livros vendidos depois, contudo, surpreendente descobrir que Agatha nunca pensou em ser escritora. Quase sem ter recebido educao formal, almejava ser musicista. A histria de vida de Agatha explica muitos aspectos de seu trabalho. Os ambientes em que viveu e as pessoas que conheceu sempre foram fontes de inspirao para sua obra. Ela nasceu no dia 15 de setembro de 1890, em Torquay, uma cidade localizada na costa da Inglaterra (ver anexo A). Seu pai, Frederick Alvah Miller, era um americano rico e a me, Clarissa Margaret Boehmer, a sobrinha inglesa da madrasta de Frederick, que no tinha um centavo. O casal pensava inicialmente em morar nos Estados Unidos, mas Clarissa selou o destino da famlia ao comprar, sem avisar o marido, Ashfield, a casa onde a criana Agatha May Clarissa Miller cresceu e pela qual teve paixo at seus ltimos dias. Agatha passava muito tempo sozinha, com os prprios pensamentos. A diferena de idade para os outros dois irmos era considervel. Marjorie (Madge) tinha 11 anos a mais e Louis Montant (Monty), 10 anos. Alm disso, a me preferiu que a caula fosse educada em casa, pelo pai. Sua infncia e pr-adolescncia foram passadas entre os livros, e o tempo que tinha livre preenchia com a imaginao. Os pais chegaram a pensar que a filha fosse retardada, mas logo descobriram que sua timidez apenas mascarava uma intensa curiosidade. Foi s aos 16 anos que a jovem comeou a freqentar uma escola em Paris, onde se aperfeioou no canto e no piano. O primeiro divisor de guas da vida de Agatha aconteceu em 1901, quando seu pai, a quem amava muito, morreu. No bastasse a dor da perda, a famlia Miller se encontrou em dificuldades financeiras. Frederick jamais trabalhara, o que logo provocou a dilapidao de seu patrimnio. No incio do sculo 20, uma jovem mulher que desejasse casar-se bem e ter uma vida confortvel precisava estar em evidncia, freqentando os lugares certos nas
2 difcil precisar quantos livros exatamente Agatha Christie escreveu, devido diferena entre as edies inglesas e norte-americanas e a ao fato de os contos muitas vezes serem dispostos em coletneas diferentes.

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ocasies certas. Os Miller no tinham mais dinheiro para arcar com as despesas de inserir a filha mais nova na sociedade, mas Clarissa fez questo de dar Agatha a vida social que merecia. Para isso, alugava Ashfield e viajava por longos perodos com a caula. Nessas viagens, Agatha conheceu diversos pases, mas no apenas isso: passou tambm a ter contato com a diversidade de pessoas e ocasies que caracterizariam to profundamente seus romances. Teve contato com a aristocracia e a burguesia sem fazer parte delas diretamente. Conheceu a pomposidade de seus integrantes, que poderiam estar sem um centavo, mas no perdiam a pose; os novos ricos que ostentavam o que tinham para compensar o que no eram; a arrogncia que impregnava at os empregados; e o abismo que separava essa gente dos demais cidados do mundo, especialmente os americanos sem bero, mas com muito dinheiro, geralmente desprezados pelos europeus. Agatha era algum que participava parcialmente desse mundo, muitas vezes apenas como convidada, mas que utilizou essa experincia como material:
Agatha Christie escreveu sobre o mundo que conhecia e via, sobre militares, lordes e damas, solteironas, vivas e mdicos de seu crculo familiar e de conhecidos. Era uma observadora natural e suas descries da poltica em vilarejos, rivalidades locais e invejas familiares eram geralmente muito precisas. Seu neto, Matthew Prichard, a descreveu como uma pessoa que ouvia mais do que falava, que via mais do que era vista. (http://uk.agathachristie.com/site/about_christie/queen_of_crime/ how_she_wrote.php. Acesso em: 15 nov. 2006)

Nesses anos, muitos se fascinaram pela jovem Agatha, mas foi quando estava noiva de um major, em 1912, que encontrou o homem que a fez perder a cabea. Depois de conhecer o capito Archibald Christie (Archie) em uma festa, escreveu uma carta para o major rompendo o noivado. Dezoito meses depois, na vspera do Natal de 1914, casou-se com Archie. O casal, no entanto, no teve muito tempo para aproveitar a lua-de-mel: dois dias depois do casamento, o capito, integrante da Fora Area Britnica, teve que partir para a Primeira Guerra Mundial. Por dois anos, Agatha trabalhou como enfermeira voluntria em um hospital local. Encontrava-se com o marido de vez em quando, nas ocasies em que ele conseguia folga de seu regimento. Depois, Agatha foi transferida para o dispensrio farmacutico, onde adquiriu grande conhecimento sobre medicamentos e venenos. Ao comentar sobre as crticas que recebeu de seu primeiro romance, O Misterioso Caso de Styles, a escritora revelou:
Recebi algumas crticas agradveis a O Misterioso Caso de Styles, e a que me deu o maior prazer apareceu em The Pharmaceutical Journal. Louvava essa histria policial por tratar de venenos de maneira competente e no com disparates acerca de substncias que no deixavam vestgios, como tantas vezes sucediam. Agatha Christie, concluam, certamente sabe do que est falando. (CHRISTIE. 1979, p. 294)

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A aventura de Agatha na literatura comeou em 1916. Com o marido na guerra e sem filhos, ela no tinha muito o que fazer com seu tempo livre. Ento sua irm, Madge, a desafiou a escrever uma histria policial para preencher as tardes de tdio. Foi quando trabalhava no dispensrio farmacutico que Agatha resolveu aceitar o desafio. Nessa poca, as histrias de Sherlock Holmes e seu estilo de romance, o hipotticodetutivo, j faziam muito sucesso junto ao pblico. Em sua autobiografia, quando fala da criao de O Misterioso Caso de Styles, Agatha admite a influncia de Arthur Conan Doyle:
Comecei a considerar que espcie de histria policial poderia escrever. Visto que estava rodeada de venenos, talvez fosse natural que selecionasse a morte por envenenamento. [...] Depois tratei das dramatis personae. Quem seria envenenado? Quem, a ou o, envenenaria? Quando? Onde? Como? Por qu? E tudo mais. [...] Naturalmente, teria que aparecer um detetive. Nessa altura, achava-me mergulhada na tradio de Sherlock Holmes. Por isso pensei logo em detetives. No poderia ser como Sherlock Holmes, claro: teria que inventar um diferente, bem meu, mas tambm ele teria que ter um amigo ntimo, uma espcie de ator contracenante [...]. (CHRISTIE, 1979, p. 263-264)

Somente cinco anos depois de escrito, em 1921, e aps ser rejeitado por seis editoras, O Misterioso Caso de Styles foi publicado na Inglaterra, pela The Bodley Head. Aps o lanamento, o livro vendeu surpreendentes dois mil exemplares, em se tratando de uma escritora desconhecida. Agatha Christie, a obra rendeu inicialmente 25 libras, e no pelos direitos autorais, mas pela metade dos direitos para a publicao em peridicos, que foram concedidos ao The Weekly Times. No ps-guerra, com a Europa em frangalhos, muita gente sem emprego e comida racionada, no era uma soma de se recusar. Ao mundo literrio, contudo, o Caso de Styles significou muito mais: nele apareceu pela primeira vez Hercule Poirot, um dos mais clebres personagens da literatura mundial, detetive que s perde em fama para Sherlock Holmes. Nesse momento, porm, Agatha ainda no sabia que ser escritora se tornaria sua profisso, tampouco que o detetive a acompanharia para o resto da vida. Vivia em Londres com Archie e com a filha, Rosalind, que havia nascido em 1919. Para cumprir o contrato que havia firmado com a The Bodley Head, Agatha um pouco a contragosto teve que produzir outros quatro livros. O Adversrio Secreto saiu em 1922; Assassinato no Campo de Golfe, em 1923; O Homem de Terno Marrom, em 1924; e O Segredo de Chimneys, em 1925. Em 1926, j com um contrato melhor em outra editora, a William Collins, Agatha publicou o livro que considerado sua obra-prima: O Assassinato de Roger Ackroyd. A escritora ousou ao quebrar uma das regras bsicas do gnero de romance que escrevia (e que

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vamos ver no prximo captulo): o narrador nunca o culpado. Agatha comentou que amigos a ajudaram na composio da trama:
Tive a sorte de descobrir uma boa frmula e devo-a em parte a meu cunhado James, que, muito tempo antes, me dissera: Hoje em dia, nas histrias policiais, quase todo mundo vira criminoso, at mesmo o detetive. Gostaria de ver um Watson virando o criminoso. [...] Depois, por acaso, uma idia muito aproximada tambm me foi sugerida por Lord Louis Mountbatten, que me escreveu sugerindo que a histria fosse narrada na primeira pessoa por algum que, no final, fosse o criminoso. [...] Mas minha mente vacilava ao pensar em Hastings assassinando algum e, de qualquer modo, seria difcil escrev-la de modo a no fazer trapaa. (CHRISTIE, 1979, p. 357)

Realmente, a idia de Hastings como criminoso era estranha demais. Ento Agatha optou por outro narrador, doutor Sheppard, que em primeira pessoa narrou a histria do prprio crime. A escritora nega que esse artifcio represente uma trapaa com o leitor:
claro que muita gente diz que O Assassinato de Roger Ackroyd trapaceado; se lerem com ateno, porm, vero que esto enganados. Pequenos lapsos de tempo, que tm que existir, esto habilmente escondidos numa frase ambgua, e o Dr. Sheppard, ao escrever a histria, comprazeu-se em contar a verdade, se bem que no toda a verdade. (CHRISTIE, 1979, p. 357)

Polmico e inovador, O Assassinato de Roger Ackroyd um dos livros mais vendidos da Rainha do Crime. S pela srie Le Masque, criada em 1927 na Frana, foram vendidos mais de 1,5 milho de volumes. Alm de best-seller, virou, tambm, com o nome de Alibi, uma pea de muito sucesso, que comeou a ser encenada em Londres em maio de 1928, e um filme estrelado por Austin Trevor, em 1931. O ano de 1926, entretanto, foi difcil para a escritora. Seu casamento com Archie no ia bem e, para piorar, Clarissa, a me, morreu. Agatha precisou retornar a Ashfield para recolher anos de memrias de famlia. Archie, que havia ficado em Londres, foi para Torquay no aniversrio de Rosalind, e anunciou que havia se apaixonado por outra mulher e queria o divrcio. Os acontecimentos que seguiram o anncio so at hoje um mistrio. Devastada pela notcia, Agatha desapareceu por onze dias. A escritora j era uma celebridade na poca, e seu sumio provocou furor na imprensa do pas. Encontraram seu carro na beira de um lago, que foi drenado procura do corpo da autora. Avies sobrevoaram a rea e no dia seguinte ao desaparecimento j havia 15 mil voluntrios ajudando nas buscas. Os jornais acompanharam o caso momento a momento e muitas hipteses foram levantadas: de suicdio a assassinato por Archie, e at golpe publicitrio. Foi um reprter que a encontrou, hospedada em um hotel, com outro nome. Oficialmente, diz-se que a escritora sofreu amnsia, mas nem ela nem a

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famlia jamais comentaram o assunto. Em 1978, o caso foi contado no livro Agatha, escrito por Kathleen Tynan. Em 1979, a obra virou filme, O Mistrio de Agatha, com Vanessa Redgrave e Dustin Hoffman no elenco. Em 1928, os Christies se divorciaram e Agatha viajou sozinha para o Oriente Mdio. L, conheceu o arquelogo Max Mallowan, 14 anos mais novo, com quem se casou em 1930. A escritora passou a dividir seu tempo entre a Inglaterra e o Oriente Mdio, e entre a literatura e as escavaes, das quais participava fotografando e lavando cermica. Depois de alguns anos, Agatha j era considerada a mulher que mais entendia de arqueologia no mundo. Muitos de seus livros foram escritos no Oriente Mdio e outros tantos so ambientados na regio. A escritora utilizou seus conhecimentos da geografia local e de arqueologia em suas tramas, como em Morte na Mesopotmia, Assassinato no Expresso Oriente e Aventura em Bagd. Muitos de seus textos contam com personagens indianos e iraquianos, por exemplo, e que so descritos fsica e psicologicamente em mincias. Em 1939, Agatha lanou um de seus maiores sucessos, O Caso dos Dez Negrinhos3. Ousado e surpreendente, assim como O Assassinato de Roger Ackroyd, o livro quebrou mais uma regra do romance policial clssico, ao contrariar o conceito de vtima. Isto porque, na obra, o culpado tambm uma das vtimas. O livro conta a histria de dez pessoas atradas para uma ilha, que acaba isolada devido ao mau tempo. Uma por uma, as pessoas vo morrendo de acordo com os versos de um poema infantil que enfeita a parede de todos os quartos do hotel. Ao final, no restou ningum, todos morreram. Em um eplogo, descobrimos que o assassino uma das primeiras vtimas, que idealizou todas as mortes desde o princpio como uma punio coletiva. Agatha diz que a idia de fazer O Caso dos Dez Negrinhos era to difcil, que a fascinava:
Tinham que morrer dez pessoas sem que o livro se tornasse ridculo ou o assassino ficasse demasiado bvio. Escrevi-o depois de planejamentos tremendos e fiquei contente com o resultado. Era claro, direto, desconcertante e, todavia, a explicao era perfeitamente razovel; de fato, tive que escrever um eplogo para poder expliclo. Foi bem recebido pelo pblico e pela crtica, mas a pessoa que realmente ficou contente com ele fui eu, porque sabia, melhor do que qualquer crtico, como ele fora difcil. (CHRISTIE, 1979, p. 494)

O nome do livro gerou polmica. Originalmente, Agatha o intitulou Ten Little Niggers (dez negrinhos, em portugus), em referncia ao poema infantil a que os crimes seguem. Seus editores norte-americanos, no entanto, acharam o ttulo ofensivo e publicaram o livro nos Estados Unidos com o nome And then there were none (e no restou nenhum, em portugus), parte da ltima rima do poema (Ele casou e no restou nenhum). Mas de se questionar se o nome escolhido pelos americanos no d muitas pistas ao leitor sobre o fim do livro.

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A escritora resolveu dar um passo frente e adaptar o livro para o teatro. Em 1943, ento, comeou a ser encenada nos palcos em Londres a pea Ten Little Niggers. Foi outro desafio que a escritora encarou e prosperou:
No posso dizer que seja a minha pea ou o meu livro de que mais gosto, nem mesmo que seja o que acho melhor, mas penso realmente que, sob certos aspectos, um trabalho que exigiu mais percia do que qualquer outra coisa que eu haja escrito. Suponho que foi O Caso dos Dez Negrinhos que me lanou no caminho das peas de teatro. Eu estava decidida a que, de futuro, ningum mais adaptasse meus livros para teatro a no ser eu prpria: escolheria os livros a serem adaptados e apenas os que eu considerasse adaptveis. (CHRISTIE, 1979, p. 495)

Depois da Segunda Guerra Mundial, Agatha continuou escrevendo, em mdia, um livro por ano, e suas peas tiveram muito sucesso. Em 1952, comeou a ser encenada em Londres A Ratoeira, que at hoje exibida nos palcos ingleses. No mundo todo, a pea que h mais tempo est em cartaz4. Em 1953, outra pea da escritora comeou a ser encenada, Testemunha de Acusao, que tambm virou um filme bem-sucedido em 1957, dirigido por Billy Wilder, com Marlene Dietrich. Histrias novas foram publicadas anualmente. Mesmo idosa, a Rainha do Crime continuou produzindo bastante. Em 12 de janeiro de 1976, a escritora morreu aps anos de convalescena. Mesmo aps sua morte, foram publicados ainda alguns livros, como Enquanto Houver Luz (1998) e Visitante Inesperado (1999). Sua Autobiografia, publicada em 1977, foi escrita ao longo de 15 anos de 1950 a 1965 e se concentra mais na infncia feliz da autora inglesa em Ashfield. Por suas realizaes, Agatha foi nomeada Comandante do Imprio Britnico em 1956 e Dama da Ordem Imprio Britnico em 1971.

2.1 DOIS DETETIVES, DUAS CELEBRIDADES

Em sua carreira, Agatha Christie escreveu um pouco de tudo, em termos de narrativa policial. Nos mais de 40 textos em que Poirot o detetive, predominam as caractersticas usuais ao romance policial clssico, de enigma ou de deteco pura, ao estilo Sherlock Holmes. Mas o belga no reinou sozinho no rol de detetives da Rainha do Crime. Outra

De acordo com os contratos assinados pelos produtores teatrais, nenhuma adaptao cinematogrfica de A Ratoeira pode ser feita at seis meses aps a pea parar de ser encenada.

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famosa criao da escritora foi a simptica e sagaz velhinha Miss Marple, que em sua pacata cidade, St. Mary Mead, solucionava os casos mais complicados de forma caseira, passando at mesmo a polcia para trs. Longe do estereotipo dos que lutam contra o crime, Poirot e Miss Marple eram fisicamente frgeis e cheios de manias, muito porque j nasceram velhos. Agatha conta que se arrepende de t-los criado to velhos (tinham em torno de 60 anos):
Miss Marple nasceu com 65 anos o que, tal como acontecera com Poirot, se provou ser uma infelicidade, porque ela teria que durar muito tempo na minha vida. Se eu tivesse o dom da premonio, teria feito meu primeiro detetive um precoce aluno de escola; s assim poderia ter crescido comigo. (CHRISTIE, 1979, p. 456)

Agatha tambm criou outros detetives. H o casal Tommy e Tuppence Beresford, que aparecem em cinco romances, mais voltados para o tema espionagem: O Inimigo Secreto, Scios no Crime, M ou N?, Um Pressentimento Funesto e Portal do Destino. Em uma srie de histrias, O Detetive Parker Pyne, a estrela o detetive particular Parker Pyne, que publica nos jornais um anncio em que se vangloria de resolver qualquer problema, especialmente os do corao. Outros, ainda, estiveram na dianteira das tramas da autora: Superintendente Battle (O Segredo de Chimneys, Os Sete Relgios, Cartas na Mesa, Fcil Matar e Hora Zero) e Mr. Quinn (O Misterioso Mr. Quinn). Inclusive, este ltimo era um dos personagens preferidos de Agatha. Embora a obra da Rainha do Crime seja permeada por diversos detetives em diferentes momentos, Hercule Poirot e Miss Marple so os mais significativos. Mais que isso, so celebridades sua maneira. No foram poucos os filmes e sries de televiso dedicados a eles, e seus nomes so familiares a bilhes de pessoas em todo o mundo.

2.1.1 Poirot e suas clulas cinzentas

As palavras peculiar e excntrico muitas vezes foram utilizadas nos livros de Agatha Christie para descrever o clebre Hercule Poirot. Ao comear por sua aparncia: 1,64 metro de altura, impecavelmente vestido com ternos elegantes e brilhantes sapatos de couro. Ostentava, em seu rosto oval, um luxuoso bigode meticulosamente penteado, do qual muito se orgulhava. Para piorar, era estrangeiro em um pas conhecido por depreciar imigrantes, a Inglaterra. O homenzinho odiava quando era chamado de francs. Todos esqueciam que por

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trs de seu sotaque poderia haver um cidado da Blgica, pequeno pas de lngua francesa, ignorado pela maioria dos europeus. Que britnico no suspeitaria da capacidade desse estrangeiro franzino e esquisito, e confiaria a ele muitas vezes a prpria vida? De fato, diversos clientes o desacreditavam depois de um olhar. Deve ser um engano, falavam, olhando-o de cima abaixo. Se foram ao encontro de Poirot, entretanto, porque algum dia ouviram falar de suas proezas. Ou, ainda, seguiram a recomendao de algum que tenha testemunhado qualquer dos feitos do belga e sabem: ele nunca sai derrotado. Poirot esteve em 33 romances e 65 contos da Dama do Crime. Agatha revela que se inspirou em detetives de outros autores para compor seu personagem:
Quem poderia ter como detetive? Revi todos os que conhecera e admirara nos livros. Havia Sherlock Holmes, o nico jamais poderia ser capaz de rivalizar com ele! Havia Arsne Lupin [de Maurice LeBlanc] mas ser que esse era detetive, ou ser que era criminoso? De qualquer modo, no fazia meu gnero. Havia o jovem jornalista Rouletabille, em O Mistrio do Quarto Amarelo [de Gaston Leroux] era o personagem que gostaria de ter inventado: algum que jamais havia sido utilizado antes. Quem poderia ser? Um estudante? Muito difcil! Um cientista? Que sabia eu acerca de cientistas? Lembrei-me ento de nossos refugiados belgas. [...] Todo mundo estourava de amor, amabilidade, compaixo quando chegaram [...] Mais tarde, porm, houve a reao habitual, quando os refugiados no pareciam suficientemente gratos pelo que lhes tinha sido feito e se queixavam disto ou daquilo. O fato de as pobres criaturas estarem desorientadas e num pas estranho no foi suficientemente bem compreendido. Muitos deles eram pobres camponeses desconfiados, e a ltima coisa que queriam era ser convidados para tomar ch, ou que as pessoas fossem visit-los; tudo o que pediam era que os deixassem em paz, para que pudessem sobreviver, economizar dinheiro, cavar seus jardins, estrum-los maneira deles, particular e ntima. Por que no seria belga meu detetive? Deixei que crescesse como personagem. Deveria ter sido inspetor, de modo a poder ter certos conhecimentos de crimes. (CHRISTIE, 1979, p. 265)

Aposentado da polcia de seu pas, Poirot trabalhava na Inglaterra como detetive particular, apenas aceitando os casos que lhe interessavam ou auxiliando a Scotland Yard a resolver crimes aparentemente inexplicveis. Ao pensar sobre a personalidade de seu detetive, a escritora o imaginou muito refinado, meticuloso e ordeiro:
Parecia-me at que o via, um homem muito alinhado, sempre cuidando de colocar tudo no devido lugar, gostando dos objetos aos pares, gostando das coisas quadradas, e no redondas. E seria muito inteligente teria muitas clulas cinzentas , essa era uma boa frase, devia record-la: ele possuiria no poucas clulas de matria cinzenta. Seu nome seria espetacular um desses nomes como existiam na famlia de Sherlock Holmes. Como era mesmo o nome do irmo dele? Mycroft Holmes! (CHRISTIE, 1979, p. 265-266)

Para Poirot, o trabalho essencial era feito pelas clulas cinzentas do crebro. Claro que a prtica, como reconstituir pistas e procurar vestgios, tambm era considerada

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importante, mas em menor escala: ele se gabava de poder desvendar um caso difcil sem sair da poltrona de sua casa. Como o detetive diz em Assassinato no Campo de Golfe: O verdadeiro trabalho feito aqui dentro. Com as pequenas clulas cinzentas... jamais se esquea das pequenas clulas cinzentas, mon ami!. (CHRISTIE, 1998, p. 12) Uma das diferenas entre o investigador de Agatha e Sherlock Holmes quanto psicologia dos personagens. Poirot se interessa mais pela personalidade dos personagens da narrativa, e no somente pelos indcios, pelas provas. Outro aspecto que ele considera muito importante o ecossistema em que esses personagens se encontram, o ambiente em que os suspeitos e a vtima freqentam e onde o crime foi executado. Para Poirot, esses so componentes fundamentais para preencher as lacunas do raciocnio e representam a maioria das peas desse quebra-cabea que a investigao do delito. Ao contrrio dos investigadores convencionais, Poirot est atento s mincias, aos detalhes, s sutilezas que podem parecer irrelevantes a princpio, mas que acabam se tornando a chave do mistrio. Como Agatha Christie se inspirou inicialmente em Sherlock Holmes, era natural que seu detetive viesse com um parceiro, um Watson. Assim surgiu o Capito Hastings, velho amigo de Poirot, que em O Misterioso Caso de Sytles passa a dividir apartamento com o detetive e o ajuda com as investigaes. Como Watson, sua importncia vai alm da trama: ele o narrador das histrias que participa, o responsvel por contar as faanhas de Poirot. Agatha comenta a criao de seu Watson:
Escapara minha ateno que no apenas estava ligada, agora, s histrias policiais, como tambm a duas pessoas: Hercule Poirot e seu Watson, o Capito Hastings. Eu gostava do Capito Hastings. Era uma criao estereotipada, mas ele e Poirot representavam minha idia de uma equipe de detetives. (CHRISTIE, 1979, p. 293)

Hastings ingnuo e bondoso. Seu ponto fraco so as mulheres. Em muitos livros, ele se apaixona por alguma, de inocentes a criminosas. Em vrias ocasies, Poirot destaca o talento de Hastings de no se dar conta do bvio e seus mtodos desorganizados de investigao. Sempre que Hastings acredita estar na pista certa, o detetive belga o desaponta ao evidenciar os erros em seu raciocnio. Mesmo assim, Hastings no se incomoda com o ego inflado de seu companheiro, a quem muito admira. Diferentemente de Watson, porm, Hastings no demora a ser abandonado por Agatha Christie. Seu personagem esteve em oito romances e 21 contos. No final de Assassinato no Campo de Golfe, Hastings se casa e vai morar na Argentina com a mulher. A escritora justificou sua deciso:

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Dessa vez imaginei um romance de amor para Hastings. Se era foroso existir um enredo de amor no livro, achei melhor casar Hastings! Para falar a verdade, eu estava ficando um pouquinho cansada dele. Poderia ficar ligada a Poirot por toda a vida, mas no necessitava ficar tambm amarrada a Hastings. (CHRISTIE, 1979, p. 293)

Muitas vezes o personagem retornou Inglaterra e participou de casos do ilustre amigo, em outras ocasies Poirot se refere ao antigo parceiro em livros que ele no aparece. Em A Morte da Sra. McGinty, ao ser acusado de romntico, o detetive diz: Nada disso. [...] Meu amigo Hastings, ele que era romntico e sentimental, eu nunca! Eu, eu sou severamente prtico [...]. (CHRISTIE apud REIMO, 1983, p. 50) Ou em Os Relgios: Ce cher Hastings! Meu amigo Hastings, de quem voc me ouviu falar tantas vezes. H muito tempo que no tenho notcias dele. Que absurdo ir enterrar-se na Amrica do Sul, onde esto sempre tendo revolues. (CHRISTIE, 1973, p. 90) Hastings, ento vivo, aparece pela ltima vez em Cai o Pano, para acompanhar o derradeiro caso de seu companheiro Poirot. Outro personagem diretamente ligado a Poirot o Inspetor chefe James Japp, que esteve em oito romances e sete contos. Os dois se conheceram quando Japp era apenas um detetive da Scotland Yard e Poirot, membro da polcia belga. Apesar de suas diferenas, os dois homens se respeitavam. Em termos de investigao, eram as pequenas clulas cinzentas do belga contra os supostos mtodos cientficos do ingls. Mesmo assim, Japp muitas vezes procurou a ajuda do amigo. O carisma de Poirot tanto que at hoje o detetive belga o nico personagem ficcional a ganhar um obiturio na capa do jornal americano The New York Times, um dos mais importantes do mundo. Em seis de agosto de 1975, ano anterior morte de Agatha Christie, quando foi divulgada a trama do livro que seria publicado meses depois, Cai o Pano, a primeira pgina do Times estampou a manchete: Hercule Poirot est morto; Famoso detetive belga (ver anexo B). Embora o livro tenha sido publicado somente nos anos 70, Agatha o escreveu durante a Segunda Guerra Mundial. A escritora pensou que talvez pudesse no sobreviver aos ataques areos alemes a Londres, ento escreveu o ltimo caso de Poirot e o guardou no cofre de um banco, de onde foi resgatado apenas pouco antes de ser lanado. Em seu ltimo romance, Poirot estava confinado a uma cadeira de rodas, com o corpo paralisado pela artrite. E o mais surpreendente: descobrimos que o cabelo de Poirot na verdade era uma peruca e seu indefectvel bigode, postio.

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2.1.2 Miss Marple: o mal est por toda a parte

Boileau e Narcejac avaliam que a ateno de Hercule Poirot ao detalhe e, especialmente, psicologia levou naturalmente criao de uma mulher como detetive, no caso Miss Marple, que com sua experincia de vida e interesse pelo elemento humano desvendava muitos mistrios em sua cidadezinha, St. Mary Mead:
Ela [Agatha Christie] sentiu rapidamente que deveria humanizar as suas personagens. Ora, h justamente, num romance-problema, personagens que talvez tivessem sido negligenciadas: so os suspeitos. Que estejam l para dar consistncia narrativa, o que se tinha visto muito frequentemente. Mas suponhamos que lhes demos muito mais importncia, que no sejam mais os que no tm libi, ou que tm razes banais para querer mal vtima. Em uma palavra, atribuamos-lhes verdadeiros problemas morais; faamos deles personagens encostadas na parede. E, para analis-los e compreend-los, imaginemos um detetive de um novo tipo que, alm da inteligncia, possuir, enfim, esse corao que faltava to cruelmente aos policiais da tradio. Agatha Christie inventa ento Miss Marple. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991. p. 50)

Para Stephen Knight, Poirot j era um detetive com caractersticas femininas:


O detetive nem to herico de Agatha Christie, Hercule Poirot, confia em suas pequenas clulas cinzentas, mas na verdade seus mtodos so domsticos: a questo central por que os restos da lareira foram modificados. Porque a informao crucial vem atravs de uma associao de conhecimentos em uma esfera feminina, o modelo de detetive era significantemente feminizado. No entanto, foi s em 1930, em Assassinato na Casa do Pastor, que Christie criou sua mulher detetive, Miss Marple. (KNIGHT, 2000, p. 82)5

Para a escritora, entretanto, parece que a criao de Miss Marple no surgiu de nenhuma necessidade de cunho literrio:
Assassinato na Casa do Pastor saiu em 1930, mas no consigo lembrar onde, quando e como o escrevi, ou por que o escrevi, nem sequer o que me sugeriu a idia de criar uma nova personagem Miss Marple, a investigadora da histria. Estou certa, porm, de que nesse tempo no tinha a menor inteno de continuar com ela para o resto da vida. No sabia que se tornaria rival de Poirot. Acho possvel que Miss Marple tenha nascido do prazer que senti em descrever a irm do Dr. Sheppard em O Assassinato de Roger Ackroyd. Nesse livro era ela a minha personagem favorita uma solteirona cida, roda de curiosidade, sabendo de tudo, escutando tudo, um verdadeiro servio de investigaes a domiclio. Quando o livro foi adaptado para o teatro, uma das coisas que me entristeceu mais foi a desapario de Caroline. (CHRISTIE, 1979, p. 453)

Miss Jane Marple apareceu em 12 romances e 20 contos. Conforme as descries da autora, ela era uma solteirona com cerca de 60 anos, alta e magra. Seu rosto era rosado e os

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olhos, azuis; o cabelo, branco, costumava arrumar de uma maneira que h muito j estava fora de moda. Apesar de ser discreta, Miss Marple est sempre muito atenta ao que acontece ao seu redor. A imagem que passa de uma senhora inocente, e as pessoas a vem frequentemente como uma simples solteirona ingnua, idia que ela incentiva ao andar para l e para c com suas agulhas de tric e conversas sobre pssaros e jardinagem. Mas, quem a conhece, sabe que ela muito mais do que isso. Miss Marple uma pessoa muito ctica, por tudo que j ouviu e presenciou na vida. Considera que no se pode acreditar em tudo que as pessoas falam, pois o mal est por toda parte mesmo em uma cidadezinha interiorana como St. Mary Mead. Agatha disse que se inspirou nas vrias amigas de sua av que havia conhecido para compor a personagem:
Mas Miss Marple no era, de modo algum, um retrato da minha av; era muito mais atarantada e tinha suas manias de solteirona, o que no era o caso de minha av. Havia, porm, entre elas, algo em comum: apesar de serem pessoas alegres, esperavam sempre o pior de todo mundo e de tudo, o que, com quase exatido, sempre se provava certo. [...] No h maldade em Miss Marple, ela apenas no confia nas pessoas. Apesar de pensar sempre o pior, muitas vezes aceita as pessoas com bondade, a despeito de serem como so. (CHRISTIE, 1979, p. 455-456)

Seus mtodos basicamente consistem em associar acontecimentos passados aos de sua pequena vila, e investigar os crimes de maneira annima e independente. Muitas vezes, consegue as informaes de que precisa em uma inocente conversa durante o ch das cinco ou ao entrar em residncias com a desculpa de arrecadar donativos para o bazar da igreja local, por exemplo. Embora a polcia a tenha como uma senhora intrometida, comum que precise dar o brao a torcer mediante suas concluses precisas. Raramente, contudo, ela ganha crdito oficial pelos mistrios que soluciona. Maureen T. Reddy (2000, p. 193) alega que exatamente o interesse na vida alheia, caracterstico das solteironas, que fez de Miss Marple o que ela : Uma vida inteira de intromisso o que tambm pode ser chamado de observao in loco constitui seu poder especial como detetive, embora a polcia local a veja como uma velha gata intrometida. Assim como Poirot, Agatha Christie tambm escreveu a ltima aventura de Miss Marple durante os bombardeios da Segunda Guerra Mundial, temendo que fosse morta. Um Crime Adormecido permaneceu, como Cai o Pano, por mais de 30 anos guardado no cofre de

As tradues de todos os textos em ingls foram feitas por mim.

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um banco. Publicado em 1976, ano da morte da escritora, no trouxe nenhuma revelao bombstica sobre a sagaz e querida detetive.

2.2 AGATHA CHRISTIE NO CINEMA

Desde 1921, ano da publicao de O Misterioso Caso de Styles, at hoje foram 26 adaptaes para o cinema da obra de Agatha Christie. Embora a escritora tenha adaptado diversas de suas obras para o teatro, jamais se aventurou em roteiros de cinema. O interesse da stima arte nas tramas da Rainha do Crime, no entanto, comeou cedo. J em 1926 apareceu a primeira adaptao, um filme mudo alemo chamado Die Abenteuer G.m.b.H, adaptado do livro O Inimigo Secreto. Dirigido por Rudolph Walther-Fein e estrelado por Carlo Aldini e Eve Gray, o filme se manteve fiel ao livro. Em 1928, outro filme mudo foi lanado, dessa vez no Reino Unido, inspirado no conto A Chegada do Senhor Quinn. Intitulada The Passing of Mr. Quinn, a produo teve como protagonista o ator Stewart Rome e apresentou mudanas considerveis na trama. Nos anos 30, foram lanados quatro filmes trs deles com Austin Trevor no papel de Hercule Poirot. Em 1931, saiu Alibi, uma adaptao do aclamado O Assassinato de Roger Ackroyd, dirigida por Leslie S. Hiscott. Foi ele tambm que dirigiu Black Coffee, adaptado da pea Caf Preto, publicada na Inglaterra no mesmo ano. Em 1934, foi a vez de Lord Edgware Dies, filme dirigido por Henry Edwards, uma adaptao de Treze Mesa, romance lanado no ano anterior. As trs produes desagradaram a autora, pois as mudanas realizadas em Poirot descaracterizaram o personagem o detetive foi rejuvenescido em 20 anos, passou a ser esbelto e no usava o to famoso bigode. Quando Roger Ackroyd foi adaptado para o teatro, Agatha j havia protestado contra as mudanas sugeridas ao personagem:
Alibi, a primeira pea feita sobre um romance meu a ser encenada, O Assassinato de Roger Ackroyd, foi adaptada por Michel Morton, que era experiente em adaptao de peas. No gostei de sua primeira sugesto, que era rejuvenescer 20 anos nosso amigo Poirot, chamar-lhe de Beau Poirot e ter muitas moas apaixonadas por ele. Eu j estava to ligada a Poirot que compreendi que o ficaria para o resto da vida. Argumentei violentamente contra a idia de alterar sua personalidade. (CHRISTIE, 1979, p. 454)

O ltimo filme dos anos 30 foi Love from a Stranger, que saiu na Inglaterra em 1937, com Ann Harding e Basil Ruthbone no elenco, e direo de Rowland V. Lee. Ele se inspirou

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na pea de mesmo nome, que foi adaptada por Agatha Christie do conto Philomel Cottage, publicado em 1934 na coletnea The Listerdale Mystery. Conta a histria de uma jovem que suspeita que o marido seja bgamo e assassino, e planeja mat-la para ficar com a herana. Em 1947, um estdio de Hollywood fez um remake do filme, com roteiro do escritor de livros de mistrio Philip MacDonald. Estrelado por John Hodiak e Sylvia Sidney, recebeu o nome de A Stranger Walked In. Em 1945, foi lanado nos Estados Unidos And then there were none, adaptado da verso para o teatro de O Caso dos Dez Negrinhos, escrita pela prpria Agatha em 1943. No livro, todos morrem, inclusive o assassino. Agatha avaliou que a verso teatral precisava de um final mais feliz, ento determinou que dois personagens sobrevivessem experincia para construir uma vida juntos. A obra foi a mais adaptada para o cinema da Rainha do Crime: recebeu mais trs verses, todas como o nome de Ten Little Indians. Elas seguiram o final feliz da pea, mas modificaram o cenrio. A de 1966, lanada na Inglaterra, tirou a trama da ilha e a levou para um castelo afastado no topo de uma montanha nos Alpes Suos. O filme de 1975 moveu a histria para um hotel no deserto iraniano. A ltima verso saiu em 1989, e se passou em um safri na frica. A verso de 1945, dirigida pelo francs Ren Clair, a mais famosa delas. nica produo inspirada nas tramas de Agatha Christie nos anos 50, Testemunha de Acusao foi um grande sucesso de crtica e pblico. O filme adaptado da pea com o mesmo nome, lanada em 1953 saiu em 1957 com vrios nomes famosos no elenco. Foi dirigido por Billy Wilder e estrelado por Marlene Dietrich, Charles Laughton e Tyrone Power, e conta a histria de uma mulher que deps contra o prprio marido no julgamento em que acusado de matar uma senhora rica. Em 1960, foi lanado Spiders Web, dirigido por Godfrey Grayson e com Glynis Johns e John Justin no elenco. O longa-metragem uma adaptao da pea de mesmo nome, de 1954, ltimo grande sucesso teatral da Rainha do Crime. Conta a histria da mulher de um diplomata que tenta identificar o assassino de um cadver que aparece em sua casa. Em 1962, a MGM lanou a primeira produo de uma srie de quatro estreladas por Miss Marple. Os filmes, dirigidos por George Pollock e protagonizados por Margareth Rutherford, viveram uma contradio: grandes sucessos de pblico, eram odiados pela escritora. A comear pelos ttulos, modificados totalmente apenas para ter mais apelo comercial. 4.50 from Paddington (A Testemunha Ocular do Crime, no Brasil) virou Murder,

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She Said6 (aqui, Quem Viu, Quem Matou); After the Funeral (Depois do Funeral) se tornou Murder at the Gallop 7 (aqui, Sherlock de Saias); e Mrs. McGintys Dead (A Morte da Senhora McGinty) mudou para Murder Most Foul8 (Crime Crime, no Brasil). O quarto e ltimo filme, Murder Ahoy! (Assassinatos a bordo), utilizou o personagem de Miss Marple, mas no foi adaptado de uma obra de Agatha Christie. O roteiro original foi escrito por David Pursall e Jack Seddon, que j haviam participado das adaptaes dos outros trs longasmetragens. Fracasso de bilheteria, o filme determinou o fim prematuro dessa srie de aventuras de Miss Marple em 1964. Os ttulos, entretanto, no foram os nicos pontos de polmica em torno dos filmes da MGM. As tramas dos trs livros que inspiraram os primeiros longas foram muito modificadas. O que se manteve mais fiel foi Murder, She Said (1962), que eliminou a personagem que testemunhava o crime da janela de um trem. No filme, a testemunha ocular foi a prpria detetive, que decidiu investigar esse assassinato que oficialmente no havia ocorrido, j que o corpo no tinha sido encontrado e no havia nenhuma notificao de desaparecimento. Murder at the Gallop (1963) e Murder Most Foul (1964) saram completamente diferentes dos textos originais. Vividos por Miss Marple nos filmes, os casos originalmente eram de Hercule Poirot. Em Depois do Funeral, Poirot investiga a morte de um homem de meia idade. Aps o enterro, a famlia se rene em uma fazenda, onde surgem as primeiras insinuaes de assassinato. No filme, o morto virou um velho recluso e a fazenda se transformou em um clube de hipismo. Em Murder Most Foul, em vez de ser consultada por um detetive da Scotland Yard que duvida da culpa de um homem acusado de homicdio (o que acontece com Poirot em A Morte da Senhora McGinty), Miss Marple a jurada em julgamento de homicdio e se nega a aceitar o veredicto de culpado de um homem acusado de matar uma atriz chantagista. A ltima adaptao dos anos 60 foi The Alphabet Murders, em 1966, baseada no livro Os Crimes ABC, publicado em 1936. A produo dirigida por Frank Tashlin e tem Tony Randall como Hercule Poirot e Robert Morley como Capito Hastings. A adaptao foi realizada pelos mesmos roteiristas da srie feita pela MGM de Miss Marple, que adicionaram elementos de comdia ao texto original. A trama bsica foi mantida, mas as interpretaes de Poirot e Hastings beiravam caricatura. A produo do filme foi quase inviabilizada, pois
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O ttulo 4.50 from Paddington uma referncia linha e ao horrio do trem em que acontece o assassinato: aquele que parte da cidade de Paddington, s 16h50min. J Murder, She Said pode ser traduzido como assassinato, disse ela, em referncia insistncia de Miss Marple de que havia testemunhado um crime. 7 Pode ser traduzido como assassinato a galope. 8 Algo como assassinato muito horrvel.

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Agatha no aprovou o primeiro roteiro, que continha muita violncia e uma cena de amor de Poirot. A autora apenas autorizou o filme depois da excluso das cenas de violncia e sexo, alm da substituio do ator que havia sido originalmente escolhido para o papel de Poirot, o comediante Zero Mostel. Em 1972, foi lanado Noite Interminvel, filme baseado no romance homnimo publicado em 1967. O diretor foi Sidney Gilliat e o elenco contou com Hayley Mills, Hywel Bennett, Britt Eklund e George Sanders. A trama, sobre o casamento de um trabalhador com uma jovem herdeira e o mal que uma maldio cigana joga sobre eles, seguiu basicamente a do livro, mas a tentativa de deixar a histria mais atrativa com cenas sexuais desagradou autora. Assassinato no Expresso Oriente, lanado em 1974, foi uma superproduo baseada no romance de mesmo nome publicado em 1934. O diretor foi o aclamado Sidney Lumet e o elenco estava cheio de estrelas Albert Finney, Lauren Bacall, Ingrid Bergman, Jaqueline Bisset, Sean Connery e Vanessa Redgrave so apenas alguns. O filme foi muito fiel ao texto original, e no poupou esforos para caracterizar o glamour da poca; os figurinos foram impecveis e chegaram a ser usados vages reais do Expresso Oriente. Sucesso de pblico e crtica, Assassinato no Expresso Oriente ganhou os prmios de melhor filme, ator e atriz coadjuvantes no Bafta e o Oscar de melhor atriz coadjuvante para Ingrid Bergman (foi indicado em seis categorias). Os anos 70 tambm trouxeram outra grande produo baseada em uma obra de Agatha Christie. Morte no Nilo foi lanado em 1978 com elenco estrelar e muito glamour. Ao lado de Peter Ustinov, que interpretou Poirot, estavam Bette Davis, Mia Farrow, Angela Lansbury, Maggie Smith e Jack Warden, entre outros. Dirigido por John Guillermin e adaptado por Anthony Schaffer, o longa se manteve fiel trama original, na qual uma jovem americana milionria morta em um barco que navegava no rio Nilo, no Egito. Todos a bordo tinham motivos para mat-la. Os anos 80 viram mais dois filmes com Peter Ustinov como Poirot. Assassinato num Dia de Sol, de 1982, foi adaptado para as telas do romance homnimo publicado em 1941. Dirigido por Guy Hamilton e escrito por Anthony Schaffer, o filme tambm se manteve fiel ao texto original. Encontro com a Morte foi o penltimo filme adaptado de uma obra da Rainha do Crime, em 1988. A produo foi dirigida por Michael Winner, escrita por Peter Buckman e estrelada por Ustinov, Lauren Bacall e John Gielgud. Em 1980, Guy Hamilton dirigiu seu primeiro filme inspirado em uma obra de Agatha. A Maldio do Espelho, que contou com Angela Lansbury como Miss Marple, baseou-se no

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romance homnimo lanado em 1962. O livro o ltimo inteiramente passado em St. Mary Mead e narra os esforos de Miss Marple em descobrir o assassino de uma mulher envenenada em uma festa beneficente promovida por uma estrela de cinema que filmava na cidade. O elenco contou com Elizabeth Taylor, Kin Novak e Rock Hudson, entre outros atores famosos. Em 1984, na Inglaterra, foi lanado Condenado pela Inocncia, inspirado no romance de mesmo nome publicado em 1958. O filme foi dirigido por Desmond Davis e estrelado por Christopher Plummer, Donald Sutherland e Sarah Miles. A trama do filme se manteve fiel do livro, que centrada nos esforos de um geofsico em recuperar a memria de um homem preso por engano sob a acusao de homicdio. At o final dos anos 80, o cinema muito visitou a obra de Agatha Christie. Nos ltimos 15 anos, contudo, no apareceu nenhuma adaptao cinematogrfica dos textos da escritora. Mas, na televiso, o legado de Agatha Christie continua bem vivo. Se a segunda metade dos anos 80 trouxe o trmino de um ciclo de dcadas de filmes, tambm significou o incio de um ciclo ainda mais popular: o das sries televisivas inspiradas na Rainha do Crime.

2.2.1 Agatha Christie nas telinhas

A primeira srie foi ao ar no canal britnico BBC de setembro a novembro de 1982 e se chamou The Agatha Christie Hour. Foram produzidos dez episdios adaptados de contos menos conhecidos de Agatha Christie, que no contavam com os detetives mais famosos nem, tampouco, tinham como foco a soluo de um crime. Os temas eram variados, alguns com histrias sobrenaturais, outros com romance e ainda aventuras juvenis. Os contos foram retirados das coletneas The Listedale Mystery (The Manhood of Edward Robinson, Jane in Search of a Job, The Girl in the Train), The Hound of Death & Other Stories (O Sinal Vermelho, O Mistrio do Vaso Azul, O Quarto Homem), Miss Marples Final Cases (In a Glass Darkly), The Golden Ball and Other Stories (Magnolia Blossom) e duas histrias de O Detetive Parker Pyne (O Caso do Soldado Insatisfeito e O Caso da Esposa de Meia-idade). Cada episdio tinha aproximadamente 60 minutos de durao e houve muito cuidado com a ambientao da Inglaterra da poca, anos 20 e 30. Em 1984, a adaptao de Um Corpo na Biblioteca, livro de 1942, inaugurou a srie The Miss Marple Mysteries na Inglaterra. Produzida pela BBC e estrelada pela atriz britnica

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Joan Hickson, a srie teve 12 episdios em seus oito anos de durao. Em 1985, foram trs: A Mo Misteriosa, Cem Gramas de Centeio e Convite para um Homicdio. Um Crime Adormecido apareceu em 1986. Em 1987 foram quatro: O Caso do Hotel Bertram, Nmesis, Assassinato na Casa do Pastor e A Testemunha Ocular do Crime. Depois de um intervalo em 1988, de 1989 a 1992 saram apenas um episdio por ano: Mistrio no Caribe, Um Passe de Mgica e A Maldio do Espelho, respectivamente. A srie foi um sucesso no s entre os ingleses; cerca de 40 pases transmitiram os episdios. E Joan Hickson vista at hoje como a melhor atriz a interpretar a velha detetive de Agatha Christie. Tambm em 1984 foi ao ar pela LWT (London Weekly Television) The Partners in Crime TV Series, com dez contos adaptados dos 15 que integram o romance homnimo (Scios no Crime, de 1929). As estrelas eram Tommy e Tuppence Beresford, interpretados por James Warnick e Francesca Annis. Os contos adaptados foram The Affair of the Pink Pearl, The House of Lurking Death, Finessing the King, The Clergyman's Daughter, The Sunningdale Mystery, The Ambassador's Boots, The Man in the Mist, In Case of the Missing Lady, The Unbreakable Alibi e The Crackler. Com sets e figurinos luxuosos, que buscavam mostrar o glamour da poca, a srie foi um sucesso de pblico. Mas nada se compara ao xito conquistado por Poirot de Agatha Christie, srie que comeou a ser produzida na Inglaterra em 1989 pela LWT. No foram poupados esforos para recriar o ambiente dos livros da Rainha do Crime; cenrios, locaes, figurinos, tudo era impecvel. Os produtores tambm foram muito felizes ao escolher o elenco: David Suchet incorporou Hercule Poirot, Hugh Fraser deu vida prpria a Capito Hastings, Philip Jackson tornou o Inspetor chefe Japp um personagem conhecido e Pauline Moran nos fez entender ainda mais do detetive belga ao interpretar a eficiente secretria Miss Felicity Lemon. Um dos motivos do sucesso do programa foi a manuteno desse elenco fixo (Ilustrao 1). Originalmente, Hastings apareceu em apenas oito romances e 21 contos, Japp esteve em oito romances e sete contos e Miss Lemon participou de oito romances com Poirot e dois contos com o detetive Parker Pyne (de quem tambm foi secretria). Na srie, quase todas as histrias eram adaptadas de modo a comportar esses trs personagens, que adquiriram muito carisma entre os espectadores.

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Ilustrao 1 Philip Jackson, David Suchet e Hugh Fraser em Poirot de Agatha Christie

De 1989 a 1996 foram seis temporadas, com 45 episdios ao todo. A srie voltou em 2000 e 2001, com mais duas temporadas e quatro episdios (ver anexo C). Na poca encenando uma pea que exigia muito preparo fsico, David Suchet at precisou usar enchimento em todo o corpo para voltar a apresentar as mesmas medidas do detetive belga (ver anexo D). Em 2003, Granada ITV, Chorion e A&E se juntaram para lanar mais duas temporadas da srie, ainda com David Suchet no papel principal. Foram mais oito episdios, exibidos entre 2003 e 2006. Nos primeiros anos da srie, a maioria dos episdios foi adaptada dos contos da escritora. A partir de 1995, os romances tiveram seu espao. E no foi somente Poirot que ressurgiu na televiso. Miss Marple tambm recebeu uma nova verso, Agatha Christies Marple. Produzida pela ITV e pelo WGBH Boston, a srie estrelada pela atriz Geraldine McEwan. At o momento, foram adaptados oito livros: Um Corpo na Biblioteca, Convite para um Homicdio, Assassinato na Casa do Pastor e A Testemunha Ocular do Crime, em 2004; e A Mo Misteriosa, Um Crime Adormecido, Um Pressentimento Funesto e O Mistrio de Sittaford, em 2006. A srie foi indicada ao Emmy, o Oscar da televiso, em 2005.

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2.2.2 As diferentes faces de Miss Marple e Poirot

Diversos atores e atrizes encararam o desafio de interpretar nas telinhas e nas telonas o detetive belga e a solteirona esperta de Agatha Christie. So verses completamente diferentes dos dois personagens, tanto em aparncia como em personalidade e trejeitos. Os dois detetives so elementos-chave das histrias policiais da Rainha do Crime, pois no s tm papel fundamental na trama, como definem o tipo de romance que ser escrito. Portanto, preciso ter muito cuidado ao mudar qualquer pea de ambos os personagens, porque a histria poder ficar totalmente descaracterizada. Entre os atores que interpretaram o detetive belga, talvez as nicas caractersticas que tenham se mantido intactas sejam a excentricidade e a astcia nem o indefectvel bigode foi unanimidade. O primeiro Poirot do cinema foi interpretado por Austin Trevor (Ilustrao 2), bem diferente da descrio do personagem. Ele esteve em trs filmes: Alibi (1931), Black Coffee (1931) e Lord Edgware Dies (1934). Dcadas mais novo, alto e magro, foi idealizado para ser quase um gal. E o que at hoje deixa indignados fs da Rainha do Crime, o detetive de Trevor no tinha um fio de cabelo acima dos lbios.

Ilustrao 2 Austin Trevor como Poirot

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Poirot voltou s telas dos cinemas apenas 32 anos depois, com o lanamento de The Alphabet Murders (1966). O Poirot de Tony Randall (Ilustrao 3) tido pela maioria dos fs dos livros de Agatha como a pior de todos. Se o que incomodava em Austin Trevor era a aparncia, em Randall parece que o problema a interpretao em si. Os elementos de comdia impostos pelos roteiristas David Pursall e Jack Seddon (os mesmos da srie de Miss Marple na MGM) fizeram com que tanto Poirot quanto Hastings fossem interpretados quase como caricaturas.

Ilustrao 3 Tony Randall como Poirot

Albert Finney, que interpretou o detetive belga em Assassinato no Expresso Oriente (1974), considerado o melhor Poirot do cinema (Ilustrao 4). Chegou a ser indicado ao Oscar de melhor ator em 1975, e ganhou o prmio nessa categoria no Bafta. Fisicamente, era muito similar ao personagem descrito por Agatha Christie. As excentricidades desse pequeno notrio belga foram muito bem mostradas pelo ator. Entretanto, sua verso do investigador um tanto histrica. A imagem do detetive refinado fica para trs, e d lugar a um homem estranho que fala alto e sem parar.

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Ilustrao 4 Albert Finney como Poirot

O Poirot de Peter Ustinov (Ilustrao 5), por sua vez, mais comedido. Aparece em trs filmes: Morte no Nilo (1978), Assassinato num Dia de Sol (1982) e Encontro com a Morte (1988); esteve tambm em outras trs produes para a televiso, Thirteen at Dinner (1985), Dead Mans Folly (1986) e Murder in Three Acts (1986). Ele muito mais alto e gordo do que as descries de Agatha Christie, alm de ter a cabea cheia de cabelos brancos. E embora seja mais discreto que o Poirot de Finney, Ustinov interpreta o detetive com mais humor, um homem mais bonacho, mas consegue no descambar para o ridculo.

Ilustrao 5 Peter Ustinov como Poirot

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No h dvidas, contudo, de que a imagem que vem cabea quando se pensa em Hercule Poirot a de David Suchet (Ilustrao 6). Veterano do teatro ingls, o ator interpreta o investigador belga h mais de 15 anos na televiso inglesa, no seriado Poirot de Agatha Christie, produzido pela LWT (no Brasil, foi por muitos anos atrao do canal de TV a cabo Multishow). Suchet aclamado como o Poirot definitivo e tem a devoo de milhares de fs da Rainha do Crime no mundo todo. O Poirot de Suchet o mais sbrio, contido e sutil. Fisicamente, aproxima-se muito da descrio do personagem, com exceo da cor dos olhos, que segundo os livros so azuis (os de Suchet so castanhos).

Ilustrao 6 David Suchet como Poirot

O ator se preparou cuidadosamente para o papel: leu todos os contos em que Poirot esteve presente, alm de tudo que Agatha Christie escreveu sobre o personagem. Suchet queria interpretar o detetive belga com toda sua inteligncia e as idiossincrasias:
Ele [Poirot] tem excentricidades. Mas no apenas um palhao com uma voz engraada. Ele pode ser interpretado sendo espirituoso, tolo e um pouco peculiar. Ela mesma [Agatha Christie] fala que s vezes ele parece um personagem de musical. Mas no pode ser motivo de piada. Ele pode ser realmente irritante, muito

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ftil e egocntrico. Mas tem um charme enorme. o que o faz um personagem to popular at os dias de hoje. (apud CONVEY, 1999)

Coincidentemente, a interpretao mais fiel da outra detetive de Agatha Christie, Miss Marple, tambm foi em uma produo para a TV. De 1985 a 1992, a atriz Joan Hickson (Ilustrao 7) filmou os 12 romances da solteirona inglesa para uma srie da BBC. Fisicamente ideal para o papel, Joan interpretou Miss Marple com competncia e foi um sucesso entre o pblico.

Ilustrao 7 Joan Hickson como Miss Marple

Tambm extremamente popular, mas nem um pouco fiel, foi a Miss Marple de Margareth Rutherford (Ilustrao 8). Protagonista da srie de quatro filmes produzidos pela MGM nos anos 60 Quem Viu, Quem Matou, Sherlock de Saias, Crime Crime e Assassinatos a Bordo , a atriz era baixa e gorda demais para o papel. Alm disso, interpretou a personagem com um vis cmico, tanto que nos filmes chegou a montar a cavalo, disfararse de empregada e at a travar uma vigorosa luta de espadas! A autora odiava no s os quatro filmes, mas tambm a atuao de Margareth. O que no impediu que ambas se tornassem amigas: a Rainha do Crime at dedicou um dos livros de Miss Marple atriz, A Maldio do Espelho.

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Ilustrao 8 Margareth Rutherford como Miss Marple

E foi desse mesmo livro que surgiu a prxima adaptao de Miss Marple. A atriz que interpretou a detetive em A Maldio do Espelho (1980) foi Angela Lansbury (Ilustrao 9). Novamente, no foi a escolha ideal, j que Angela era nova demais para o papel. Embora o filme tenha sido um sucesso de bilheteria, a idade inadequada de Angela um grande problema, pois quase todo o poder de Miss Marple centrado em sua experincia de anos de vida e de observao.

Ilustrao 9 Angela Lansbury como Miss Marple

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Se idade de menos foi um obstculo para Angela Lansbury, o de Helen Hayes foi idade de mais. A atriz interpretou Miss Marple em dois filmes feitos para a TV: A Caribbean Mistery (1983) e Murder with Mirrors (1985). E, apesar de seu desempenho ter sido descrito como delicioso e resiliente pelo The New York Times, sua idade avanada e a qualidade inferior da segunda produo levaram ao fim da srie. Em 2004, foi lanada uma nova srie na ITV, no Reino Unido, adaptada nas obras de Miss Marple. Nessas produes, a detetive interpretada por Geraldine McEwan (Ilustrao 10), que convence tanto fisicamente quanto psicologicamente.

Ilustrao 10 Geraldine McEwan como Miss Marple

Agatha Christie nunca gostou de nenhuma interpretao de seus dois detetives, nem no teatro nem no cinema. Em sua autobiografia, escreve que seja quem for que faa o papel de Poirot, parece nunca ter as medidas certas. E muito se falou de sua ojeriza pela atuao de Margareth Rutherford como Miss Marple. Entretanto, os familiares da escritora so unnimes em afirmar que, se estivesse viva, Agatha adoraria as verses desses dois personagens nas populares sries de televiso. David Suchet afirmou que a filha nica de Agatha, Rosalind, garantiu que a me amaria sua interpretao. Joan Hickson foi alm, praticamente ganhou o papel como herana, em uma quase premonio da Rainha do Crime. As duas se encontraram no set de filmagens de

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Murder, She Said, em 1962. Em uma entrevista de 1993, a atriz relembrou a ocasio: Ela falou para mim: Algum dia eu gostaria que voc interpretasse Miss Marple. Fiquei bastante surpresa, porque eu era jovem na poca!9.

Depoimento citado pelo site oficial da escritora, mantido pela Agatha Christie Limited, empresa que cuida dos direitos autorais da autora e presidida pelo seu nico neto, Matthew Prichard. Disponvel em: http://uk.agathachristie.com/site/the_detectives/miss_marple/marple_on_tv_and_film.php. Acesso em: 20 out. 2006.

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3 O ROMANCE POLICIAL

O terreno para o surgimento do romance policial comeou a ser preparado um pouco antes da metade do sculo 19. Com a Revoluo Industrial, a Europa viu suas cidades crescerem, formando um conglomerado novo de pessoas. A polcia, do jeito que conhecemos, surgiu nessa poca, assim como os jornais populares, de grande tiragem, que comearam a se multiplicar pelas ruas. As publicaes da poca circulavam com sesses que exploravam dramas pessoais, muitas vezes banais. Muito aproveitados, tambm, eram aqueles crimes raros, aparentemente inexplicveis. Aos poucos, o pblico passou a no s criar o hbito da leitura, como a se acostumar a esse tipo de narrativa em especfico. Quem percebeu esse mercado pulsante foi o americano Edgar Allan Poe, que vivia na Frana. Poe observou o interesse que a populao demonstrava pelo crime, pelo mistrio, pelo desconhecido, o fato incomum. Notou a fascinao que isso causava nas pessoas. Foi assim que surgiu o romance policial, em 1841, com a publicao de Assassinatos na Rua Morgue. Outros fatores tambm explicam o surgimento deste novo gnero. Um o advento do positivismo, movimento filosfico marcante desse sculo. Sua crena bsica era de que os fenmenos so regidos por leis. O novo cidado, seguindo as idias positivistas, passa tambm a ter uma nova idia de criminoso. At a Idade Mdia, o crime era considerado como um delito entre indivduos, que poderia ser solucionado entre as partes lesadas, mas com a criao do Poder Judicirio o crime passou a ser visto como uma infrao contra o Estado. O criminoso comeou a ser considerado um inimigo social. Poe estava atento a tudo isso. Assassinatos na Rua Morgue conta a histria de um crime horrendo, e que no entanto parecia ter sido impossvel de se cometer, mas ao final, quando se descobre que o assassino era um orangotango, tudo passa a fazer sentido. O investigador apenas chegou a essa concluso por meio de um mtodo bem definido de investigao, seguindo um raciocnio lgico. Essa a tarefa do cavalheiro Dupin10, detetive que servir de espelho para quase todos os demais a partir daqui. Boileau e Narcejac explicam o trabalho de Dupin:

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interessante destacar que os primeiros detetives do romance policial no faziam parte da polcia. Uma explicao talvez seja a gnese da instituio na Frana, cujos primeiros integrantes eram ex-criminosos que tinham mtodos empricos, ou seja, combatiam o crime convivendo com os ex-colegas contraventores.

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Em uma palavra, o mtodo do cavalheiro Dupin hipottico-dedutivo, como se diz s vezes. Vai dos fatos a uma teoria provisria que lhe permite voltar aos fatos para ver se o mtodo os explica todos. Se restarem alguns que fiquem ainda inexplicados, sofre uma reviso, e assim por diante, at que se ajuste exatamente ao dado. Ento a investigao encerrada e o culpado, desmascarado. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 23)

Os mtodos de Poe e Dupin, que estiveram em outros dois livros, A Carta Roubada e O Mistrio de Marie Roget, inauguraram o que pode ser chamado de romance policial clssico, ou de enigma. Esse tipo de romance policial teve diversos seguidores, como S.S. Van Dine, Arthur Conan Doyle e a dama do crime, Agatha Christie.

3.1 CARACTERSTICAS DO ROMANCE POLICIAL CLSSICO

Agatha deu pistas de que tipo de romance policial escreveria ao falar que se inseria na tradio de Sherlock Holmes. Holmes, o detetive mais famoso do mundo, o protagonista de tramas que podem ser chamadas de romance de enigma, romance de deduo pura ou romance policial clssico, que foi inaugurado por Edgar Allan Poe e seu detetive Dupin. Esse tipo de texto traz uma estrutura bsica: comea com um crime e algum disposto a desvendlo, um detetive. Nem toda histria com um crime e um detetive, no entanto, pode ser considerada romance policial. A forma de articular a narrativa tambm muito importante. O romance policial de enigma dividido em duas partes bsicas: a histria do crime e a investigao dele. O crime, em si, no ganha muito espao na trama. O trauma do assassinato raramente aparece; a violncia, o sangue no ganham espao nesse tipo de romance. No tanto a histria de um crime, mas sim a histria da investigao de um crime. Tanto que a narrativa chega ao fim quando o enigma resolvido, nem sequer a punio dos criminosos importante. Os livros no falam sobre o julgamento do culpado, no mximo mostram um suicdio logo depois da soluo do mistrio, mas sem a dramaticidade que um suicdio assumiria normalmente. Outra caracterstica recorrente do romance policial de enigma a histria ser narrada em tom de memrias, geralmente por um amigo do detetive. Nunca o investigador o narrador da histria. Nos livros de Sherlock Holmes, este papel assumido pelo famoso Dr. Watson. Agatha Christie, em seus primeiros romances, tambm utilizou esse narradormemorialista da tradio de Conan Doyle, como ela observou em uma citao anterior. O

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amigo ntimo, essa espcie de ator contracenante nos livros da escritora inglesa foi o Capito Hastings que, como scio de Hercule Poirot, acompanhava passo a passo as investigaes. A utilizao desse tipo de personagem-narrador seria facilmente explicvel pela natureza do detetive, alega Sandra Lcia Reimo (1983). O investigador do romance policial imune e infalvel. Ele uma mquina de pensar, nunca ser vencido pelo criminoso. No final do romance, o crime sempre ser solucionado; eventualmente, o culpado pode no ser denunciado s autoridades, mas nunca restaro dvidas sobre sua culpabilidade. Reimo fala do papel do narrador-personagem no romance de enigma:
O detetive desse tipo de romance , via de regra, uma mente dedutiva, uma mquina de pensar, que, atravs de vestgios, pistas, indcios consegue reconstruir uma histria, um fato passado, e assim descobrir o(s) culpado(s). Se a narrativa fosse elaborada por essa mente dedutiva, o leitor estaria sempre passo a passo com o detetive (o que contraria a prpria concepo de leitor, nesse tipo de narrativa). Assim, uma das caractersticas fundamentais do romance de enigma a revelao final e a conseqente reconstruo da trama perderia seu sentido. Alm de, claro, esses personagens auxiliares intensificarem o halo de admirao que rodeia o detetive. (REIMO, 1983, p. 31-32)

Boileau e Narcejac tambm escreveram sobre a infalibilidade do detetive do romance policial de enigma:
O autor, fingindo deixar ao seu detetive o campo livre, d-se a si mesmo a prova de que utilizou bons ndices. Se, por acaso, o detetive viesse a tropear num obstculo intransponvel, que algo, no argumento, no seria conveniente, e o autor deveria verificar logo as peas de sua maquinaria. Isso significa, evidentemente, que o detetive no pode falhar. Ele infalvel, no porque um super-homem, mas porque seu papel desmontar um imbrglio que foi montado para ele. Se se enganasse, no forneceria a prova de que o mistrio o ultrapassa, mas simplesmente de que a histria ruim, e, nesse caso, o romancista renunciaria a escrev-la. Desde que a histria existe, o policial infalvel. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 23)

Alm do detetive, outro personagem fundamental no romance policial de enigma o criminoso. O suspeito mais bvio raramente o culpado; ao contrrio, a tendncia que a soluo do mistrio seja o mais surpreendente possvel. O escritor S.S. Van Dine, em suas Vinte regras para escrever histrias policiais, artigo publicado em 1928 na American Magazine cujo ttulo auto-explicativo, menciona algumas vezes as caractersticas desse criminoso. Ele diz que o culpado deve ser um personagem que teve papel razovel na trama at ento, e que jogar sujo com o leitor recair a culpa sobre um personagem menor ou recm apresentado na histria. O leitor deve conhecer o criminoso, que provavelmente despertou algum interesse durante a narrativa. Seguindo o mesmo raciocnio, compreensvel que seja

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fcil demais escolher o culpado entre os empregados, como mordomos, cozinheiras, jardineiros etc. Segundo Van Dine, o criminoso deve ser algum que valha a pena. Acredito que seja instrutivo transcrever as regras mais significativas de Van Dine11:
1) O leitor deve ter oportunidade semelhante do detetive para resolver o mistrio. Todas as provas devem ser mostradas e descritas claramente. 2) No deve haver nenhuma tentativa de aplicar truques no leitor a no ser aqueles que forem aplicados legitimamente pelo criminoso no detetive. 4) O culpado nunca deve ser descoberto sob os lances do prprio detetive ou de um membro da polcia. Seria trapaa to vulgar quanto oferecer a algum uma moeda de um centavo em troca de uma nova de cinco dlares. injusto. 8) O problema policial deve ser resolvido com a ajuda de meios estritamente realistas. Mtodos para descobrir a verdade como leitura de bzios, tbuas ouija, leitura de mente, espiritualismo, bola de cristal etc. so tabu. O leitor tem chances de rivalizar com um detetive racional, mas se ele precisar competir com o mundo dos espritos e tiver que percorrer a quarta dimenso da metafsica estar fadado ao fracasso desde o incio. 9) Num romance policial digno desse nome, deve haver apenas um nico verdadeiro detetive. Reunir o talento de trs ou quatro policiais para a caa ao bandido seria no somente dispersar o interesse e perturbar a clareza do raciocnio, mas ainda levar uma vantagem desleal sobre o leitor. Se h mais de um detetive o leitor no sabe quem o co-dedutor. como faz-lo participar de uma corrida de revezamento. 10) O culpado sempre deve ser uma pessoa que tenha desempenhado um papel mais ou menos importante na histria, isto , algum que o leitor conhea e o interesse. Acusar do crime, no ltimo captulo, uma personagem que acaba de introduzir ou que desempenhou na intriga um papel completamente insuficiente seria, da parte do autor, confessar sua incapacidade de medir-se com o leitor. 11) O autor nunca deve escolher o criminoso entre o pessoal domstico, tais como criado, lacaio, crupi, cozinheiro ou outros. H nisso uma objeo de princpio, pois uma soluo fcil demais. O culpado deve ser algum que valha a pena. 12) S deve haver um culpado, sem levar em conta o nmero de assassinatos cometidos. Toda a indignao do leitor deve poder concentrar-se contra uma s alma negra. 15) A fina palavra do enigma deve ser aparente ao longo do romance, contanto, bem entendido, que o leitor seja bastante perspicaz para capt-la. Quero dizer com isso que, se o leitor relesse o livro, uma vez desvendado o mistrio, veria que, em um sentido, a soluo saltava aos olhos desde o comeo, que todos os ndices permitiam concluir pela identidade do culpado e que, se tivesse sido to fino quanto o prprio detetive, teria podido descobrir o segredo sem ler at o ltimo captulo. Escusado seria dizer que isso acontece efetivamente com muita freqncia e chego at afirmar que impossvel manter secreta at o fim, e diante de todos os leitores, a soluo de um romance policial bem e lealmente construdo. Portanto, haver sempre um certo nmero de leitores que se mostrar to sagaz quanto o escritor. a, precisamente, que reside o valor do jogo. 17) O escritor deve abster-se de escolher o culpado entre os profissionais do crime. As ms aes dos ladres ou bandidos so do domnio na polcia, e no dos autores e dos mais ou menos brilhantes detetives amadores. Tais crimes graves compem a grisalha rotineira dos comissariados, enquanto um crime cometido por um freqentador assduo de igreja ou por uma velha senhora conhecida por sua grande caridade realmente fascinante. 20) Finalmente, e tambm para fazer uma conta redonda de pargrafos para este Credo, queria enumerar abaixo alguns macetes aos quais no recorrer nenhum autor que se respeite. So macetes que vimos muito freqentemente e que so, h muito,

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No anexo E consta a ntegra do texto de S.S. Van Dine, disponvel no site http://gaslight.mtroyal.ab.ca/ vandine.htm. Acesso em: 20 out. 2006.

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familiares a todos os verdadeiros amadores do crime na literatura. O autor que os utilizasse faria confisso de sua incapacidade e falta de originalidade. a) A descoberta da identidade do culpado comparando uma ponta de cigarro encontrada no local do crime s que fuma um suspeito; b) A sesso esprita trucada, no decorrer da qual o criminoso, tomado de terror, se denuncia; c) As falsas impresses digitais; d) O libi constitudo por meio de um manequim; e) O co que no late, revelando assim que o intruso um familiar do local; f) O culpado, irmo gmeo do suspeito ou de um parente que se parece com ele a ponto de levar a engano; g) A seringa hipodrmica e o soro da verdade; h) O assassinato cometido numa pea fechada, na presena dos representantes da polcia; i) O emprego das associaes de palavras para descobrir o culpado; j) A decifrao de um criptograma pelo detetive ou a descoberta de um cdigo cifrado.

Muito se deve abstrair desse Credo de Van Dine. O tom de brincadeira usado j denuncia que ele no v o romance policial como algo mais que um passatempo. Seguindo as regras, os personagens do romance policial so apenas peas em um jogo de xadrez, nada mais. O texto de Van Dine importante para perceber as linhas gerais do gnero, mas no se deve levar a srio os nunca e jamais que ele impe. Tanto que muitos dos melhores textos de Agatha Christie desobedecem algumas dessas regras. Assassinato no Expresso Oriente, por exemplo, no cumpre a regra 12, pois uma dzia de pessoas se reuniu para cometer o crime. H quem diga que O Assassinato de Roger Ackroyd desobedece a regra 2, ao escolher o narrador como criminoso. Sobre esse criminoso, Stephen Knight ratifica que sua escolha limitada socialmente. As classes inferiores e os criminosos profissionais no tm muito espao na trama. O criminoso sempre est no crculo social da vtima e os serventes raramente so culpados e o so apenas se estiverem sob algum disfarce. Alm disso, Knight observa que os superviles que eram to populares no incio do sculo 20 e ainda sobrevivem hoje nos thrillers no tm espao no romance de enigma. (2000, p. 78) J o escritor de romances policiais da fase noir Raymond Chandler critica o criminoso do romance de enigma. Para ele, a inventividade do criminoso tal que requer um conjunto de qualidades que no se encontram no mesmo crebro, o que chega a parecer que a nica inteno do assassino foi dificultar o trabalho de investigao e que o crime foi cometido apenas para fornecer um cadver ao autor. (apud REIMO, 1983, p. 47) marcante tambm no romance policial que no somente o detetive aplica com rigor a apurao do crime em questo, com mtodos lgicos e precisos, mas a tradio de Edgar Allan Poe tambm impe sistemas rgidos para a composio da narrativa, para o rigor lgico

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na criao literria. Poe no acreditava em inspirao. Para ele, o escritor no deveria se enganar com o frenesi da imaginao; mas sim controlar cada sugesto que ela venha a dar:
Se existe uma coisa evidente, que um plano qualquer digno do nome de plano deve ter sido cuidadosamente elaborado em vista do desfecho, antes que a caneta ataque o papel. No seno tendo sem acessar o pensamento do desfecho diante dos olhos que podemos dar a um plano sua indispensvel fisionomia de lgica e casualidade fazendo com que todos os incidentes caminhem em direo ao desenvolvimento da inteno. (POE apud BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 21)

Ento, na opinio do escritor americano, as obras deveriam ser escritas ao contrrio, ou seja, o autor teria que pensar o final do livro antes de tudo, para que o resto da trama se encaixe perfeitamente de acordo com aquilo que ser revelado nas ltimas pginas. A obra ser construda de acordo com o seu fim j determinado. Seguindo esse rigor lgico, tanto do escritor quanto do detetive, com essa narrativa que caminha para a deteco pura, valorizando o raciocnio em detrimento da emoo, compreensvel que o romance entre personagens no seja bem aceito pela histria policial de enigma. Eventualmente, amor e paixo podem aparecer, mas sem ser o motor da trama. O romance pode ser a motivao do assassino, o libi de um suspeito, e personagens podem, sim, apaixonar-se durante o livro, mas a histria desse amor, dessa paixo ou ainda o sexo entre os personagens no podem aparecer em primeiro plano. Segundo Stephen Knight, crticos eram contra o romance na histria policial de enigma. Uns diziam que o gnero seria hostil ao tom racional da narrativa, outros apontavam que esse elemento tende a retirar pessoas da lista de suspeitos. (2000, p. 79) Ningum imaginaria a mquina de raciocinar Dupin se relacionando com uma mulher, Sherlock Holmes cedendo para um rabo de saia ou ainda Poirot sair aos beijos com uma suspeita12. Na histria policial de enigma, o detetive infalvel no poderia jamais sucumbir a um amor, ser suscetvel aos caprichos de uma mulher. Alm de pr em risco a imunidade do investigador, esses fatores tirariam o foco do que realmente interessa: a investigao. Essa caracterstica se perde nas outras vertentes do romance policial, como o noir e o suspense, por exemplo.

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Entretanto, Poirot j se apaixonou. Ele conheceu a condessa russa Vera Rossakoff, grande amor de sua vida, no conto O Duplo Indcio (ver anexo G). Ironicamente, Vera ela prpria uma criminosa, uma ladra de jias. O que s faz crescer a admirao de Poirot, que a descreve como uma mulher notvel. O detetive chegou a encobrir crimes da amada, mas o romance nunca se consumou.

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3.1.1 Leitor-detetive

Anteriormente, Reimo destacou que se o detetive fosse o narrador da histria policial, a prpria concepo de leitor nesse tipo de trama seria contrariada. preciso se alongar um pouco mais nesse ponto em especial. Est aqui uma das caractersticas mais importantes deste tipo de literatura, e talvez um dos elementos que fizeram e fazem o sucesso do gnero entre o pblico leitor. O leitor no romance policial de deteco pura, em especial na obra de Agatha Christie como um todo, desafiado. Ele no apenas l a histria, aguardando o final, para se surpreender com a soluo do enigma. Ele tem a oportunidade de tambm ser detetive. A narrativa construda de modo que o leitor acompanhe o detetive em sua investigao, no dentro de sua cabea, como j foi apontado, mas da perspectiva do narrador neutro o amigo, o desconhecido, o memorialista etc. O escritor utiliza seu narrador para deixar o leitor a par de todos os indcios, provas e pistas que surgirem. O leitor deve ter a chance de brincar de detetive tambm, de poder desvendar o mistrio. Para isso, naturalmente, o escritor necessita pr as cartas na mesa, preciso jogar limpo. Pode ser que o leitor no consiga descobrir o assassino o contrrio freqentemente ocorre entre os leitores mais assduos , mas necessrio que ele admita que a soluo dada pelo autor era a nica possvel. Se o leitor relesse o livro, deveria encontrar l todas as provas de que precisava para chegar mesma concluso do detetive. Stephen Knight considera essa relao com o leitor um dos trunfos do romance policial de enigma:
Uma explicao do poder do romance policial como gnero que ele constri um lugar para o leitor compartilhar da inteligncia e da oniscincia do autor [...]. O romance de enigma faz isso diretamente ao convidar o leitor a participar, e muitos de seus elementos compulsivos enfatizam essa funo: a necessidade de jogo limpo, a obsesso por testar o leitor com pistas falsas, o abandono do intermedirio Watson, o estilo superficial e a caracterizao bidimensional criam um espao para o leitor encontrar o autor e construir seu lado escritor. (KNIGHT, 2000, p. 91)

Boileau e Narcejac indicam que, provavelmente, foi Austin Freeman que primeiro percebeu a potencialidade do leitor como parceiro, nos anos 1920:
Parece certo que Freeman foi o primeiro que compreendeu claramente que o autor policial se dirigia a algum e organizou sua narrativa para facilitar a tarefa daquele que se tornava o co-investigador. Eis por que, para Freeman, a construo de um romance deve passar por quatro fases: 1) o enunciado do problema; 2) a

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apresentao dos dados essenciais descoberta da soluo; 3) o desenvolvimento da investigao e a apresentao da soluo; 4) a discusso dos ndices e a demonstrao. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 36)

At hoje, todos os romances de deteco apresentam essa estrutura clssica. mais uma questo de lgica do que de moda. Por isso, grande parte dos livros policiais tem no seu ltimo captulo o mais longo. Nele, preciso juntar todos os indcios fornecidos at ento, que somados apontam quase matematicamente o culpado. Nos primeiros romances de Agatha Christie, o mesmo narrador que auxilia o leitor, que compartilha de suas percepes e das do detetive pode na verdade confundir. Capito Hastings, o Dr. Watson da Dama do Crime, muitas vezes demora para perceber as sutilezas de Poirot, as provas mais bvias podem passar batidas a seus olhos e ele pode at ser usado pelo detetive, sem saber, para disseminar informaes falsas. Hastings no raro desvia o leitor do caminho correto, por ser o narrador dos fatos, os nossos olhos na investigao. Outras vezes, porm, to claro que Hastings est sendo enganado que o leitor se adianta a esse narradorpersonagem, que aqum-leitor-mdio em relao a sua capacidade intelectual. (REIMO, 1983, p. 45) De fato, no h registro de que Hastings alguma vez tenha descoberto sozinho a identidade do criminoso. Mas como dizem Boileau e Narcejac, o risco de que o leitor, de parceiro, se tornasse adversrio do autor estava inscrito na natureza das coisas. Os ndices do romance podem ser to sutis que se tornem inacessveis ao leitor, que ficar desencorajado. Se os ndices forem claros demais, o leitor pode chegar concluso bvia antes mesmo do detetive, o que tornar o livro desinteressante.
O problema, portanto, se prope assim: devo escrever um livro que resista leitura sem aborrecer. Resistir, se eu fornecer ao leitor um enigma raro, que ele no poder resolver, mas que tem, contudo, o poder de esclarecer. Eu o desafiarei a descobrir. O desafio espiaar at o fim a sua curiosidade, mas a natureza excepcional da intriga o manter em malogro. E eis proferida a palavra-mestra: excepcional. Significa que os crimes, doravante, sero fora do comum. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 37)

Fora do comum e excepcional so, definitivamente, palavras que podem descrever a trama do livro e do filme escolhidos para esta anlise, Assassinato no Expresso Oriente, como ser exposto no ltimo captulo.

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3.2 OUTRAS VERTENTES DO ROMANCE POLICIAL

O romance policial de enigma sempre fez sucesso junto ao pblico, mas no era unanimidade entre os prprios escritores do gnero. Muitos autores criticavam o modelo desse tipo de romance, por ser superficial e inverossmil, por exemplo. Stephen Knight fala sobre uma das fraquezas do romance policial de enigma:
certamente verdade que os romances so restritos em cenrio, classe e comportamento, descrevendo os modelos do mundo da alta burguesia do Sul da Inglaterra (no, como muitos americanos pensam, um mundo da classe alta) e insistentemente eufemisando morte, paixo e poltica. (KNIGHT, 2000, p. 82)

Por isso, o prprio romance policial foi sendo alterado e o gnero foi ganhando novos contornos e denominaes como: romance noir e de suspense.

3.2.1 O romance noir

Esse mundo sem a representao da violncia, do romance, do sexo, no qual o detetive um super-homem infalvel e imune no agradava a muitos autores, especialmente nos Estados Unidos. A maior resistncia ao romance de enigma se encontrou nas obras do romance noir, cujo criador foi o americano Dashiell Hammett (1894-1961). O auge de popularidade desse tipo de romance foi com a Srie Noire, que comeou a ser publicada na Frana em 1945. Sua plataforma de lanamento, contudo, foi a revista Black Mask, de baixa qualidade de impresso e gosto duvidoso. Nela, Hammett comeou a publicar seus contos e textos mais importantes. Nos primeiros volumes da Srie Noire, Marcel Duhamell, criador e diretor da coleo, assinava um texto em que alertava os leitores: embora os livros fossem narrativas policiais, no seguiam o estilo do romance policial de enigma de Conan Doyle, Agatha Christie, Van Dine e muitos outros.
O leitor desprevenido que se acautele: os volumes da Srie Noire no podem, sem perigo, estar em todas as mos. O amante de enigmas a la Sherlock Holmes a no encontrar nada a seu gosto. O otimismo sistemtico tampouco. A imoralidade, admitida em geral nesse gnero de obras, unicamente para contrabalancear, a moralidade convencional, a se encontra bem como os belos sentimentos, ou a

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amoralidade simplesmente. O esprito raramente conformista. A vemos policiais mais corrompidos do que os malfeitores que perseguem. O detetive simptico no resolve sempre o mistrio. Algumas vezes nem h mistrio. E at mesmo, outros vezes, nem h detetive. E ento? Ento resta a ao, a angstia, a violncia sob todas as formas, especialmente as mais vis , a pancadaria e o massacre. Como nos bons filmes, os estados dalma se traduzem por gestos, e os amantes da literatura introspectiva devero fazer uma ginstica inversa. H ainda o amor, de preferncia bestial, a paixo desordenada, o dio sem perdo, todos os sentimentos que numa sociedade policiada s devem ser encontrados raramente, mas que aqui so moeda corrente, e so, algumas vezes, expressos numa linguagem bem pouco acadmica, mas onde domina sempre, rosa ou negro, o humor. (DUHAMELL apud REIMO, 1983, p. 52-53)

Percebe-se que se caracteriza, primeiramente, a Srie Noire pela oposio que ela faz ao romance policial de enigma, a caractersticas como otimismo, moralidade convencional, esprito conformista e a existncia de um investigador que no falha. Num segundo momento, fala-se do que esse romance noir, como a presena da ao (detalham-se aes violentas e brutais, por exemplo), explora-se situaes angustiantes, todos os tipos de sentimentos, mesmo os mais radicais. Aceita-se linguagem coloquial, grias e humor. Enfim, evidencia-se que a racionalidade da investigao no o prato principal, como acontecia no romance de enigma. A atividade literria de Hammett comeou no princpio dos anos 20, mas foi no incio da dcada de 30 que o americano teve seu perodo mais frtil e aclamado pela crtica. Em romances como Safra Vermelha, Estranha Maldio e Chave de Vidro, o detetive Sam Spade se mostra totalmente oposto aos seus colegas do romance de enigma: rude, vulgar e deselegante. E para se contrapor abstinncia sexual de detetives como Poirot e Holmes, Spade est sempre envolvido com mulheres. Mas no s o detetive do romance noir faz oposio ao do romance enigma, a forma tambm diferente. A narrativa conduzida no presente, ou seja, no h aquele narrador memorialista, que conta as faanhas do detetive. Na maioria das vezes, o narrador o prprio protagonista. Isso faz com que, no romance noir, o investigador no seja imune. Ele pode, sim, morrer ou falhar. Observa-se, tambm, que esse detetive participa das aes e das emoes da trama. Envolve-se totalmente com os personagens, participa dos sentimentos da narrativa. Alm disso, o narrador seja o detetive ou no geralmente no fornece informaes sobre a psicologia dos personagens, deixa isso por conta do leitor. E, em oposio suposta superficialidade do romance de enigma, a proposta de Hammett outra:

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O ponto central, estruturador, fundamental, dos textos de Hammett a crtica ticopoltico-social. Atravs de seu detetive e das tramas em que ele se envolve, Hammett nos mostra o quanto o mundo do crime participa e solicitado pela sociedade capitalista. [...] O tempo todo, ao fazer seu detetive penetrar nas mincias do mundo do crime, Hammett vai fazendo com que ns, leitores, nos apercebamos das contradies, das ambigidades, dos jogos duplos do mundo burgus em que vivemos, numa verdadeira alegoria econmico-poltico-social da nossa sociedade. Utilizando o mundo do crime como metfora da sociedade em geral, Hammett vai denunciando a falncia das instituies burguesas, a corrupo, o egosmo, a falsa moralidade etc. E faz com que ns, leitores, passemos a enxergar com outros olhos no a prpria narrativa policial, mas o mundo em que vivemos cotidianamente. (REIMO, 1983, p. 61-62)

Papel diferente, tambm, assume o leitor do romance noir. Ao invs de tentar perseguir o raciocnio lgico e infalvel do detetive do romance de enigma, aqui o leitor passa a acompanhar os enganos e os tropeos do investigador noir, cujas dedues nem sempre so as mais acertadas. Alm disso, como diz Reimo, ele convidado a complementar o texto, preencher as lacunas, as entrelinhas das descries objetivas e exteriores com os significados lgicos que elas indicam:
Ao ter em mos uma obra de Hammett que tem como protagonista Sam Spade, o leitor, alm de fruir uma narrativa de ao e aventura pode, tambm, aperceber-se de outros nveis de leitura (a crtica poltica, a crtica social, tica etc.), nveis que constroem uma viso de mundo, que pode fazer com que o leitor questione, descubra e desvende um pouco mais do mundo que o cerca. (REIMO, 1983, p. 64)

Seguindo os caminhos trilhados por Dashiell Hammett estava Raymond Chandler (1896-1959). Sua carreira tambm comeou na revista Black Mask, em seu perodo mais frtil (1926-1936). O narrador de seus romances o protagonista, detetive Philip Marlowe, que no decorrer dos 23 contos do escritor aos poucos foi se construindo como personagem. Em comparao aos outros autores do gnero, Chandler teve obra pequena: alm dos 23 contos, escreveu mais sete romances, entre eles Janela para a Morte, A Irmzinha e Beira do Abismo. Tanto os dilogos como as narrativas do detetive de Chandler so speros, secos e rudes, com muitos erros intencionais de gramtica e grias. Marlowe um detetive profissional, mas no pode ser considerado ganancioso: pode at trabalhar de graa, se o caso lhe interessar. Ao contrrio de Spade, no bebe enquanto trabalha e no se envolve sexualmente com mulheres, apesar de ser assediado. O que o aproxima do investigador de Hammett a insolncia, o humor e a descontrao. Alm disso, como Spade, Marlowe desencadeia aes e um narrador parcial, pois se envolve totalmente com os demais personagens. Ainda em oposio ao romance de enigma, Marlowe percebe a fragilidade de

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sua profisso, nota que no com leis de lgica que se chegar a uma resposta inequvoca. Caracterstica que a tradicional narrativa no presente do romance noir acentua. Chandler, como Hammett, critica no s o modelo de detetive do romance de enigma, mas a prpria construo das tramas, carregadas de inverossimilhana. O romance noir tem mais ao e violncia, assim como a vida real, o dia-a-dia das grandes cidades. Reimo destaca as potencialidades da obra de Chandler:
Chandler-Marlowe proporcionam ao leitor a convivncia com toda a fragilidade e a possibilidade de erro de um detetive simplesmente humano. Detetive que convive com a violncia e no tenta disfarar ao elaborar suas narrativas. Detetive que convive, deixa-se envolver e, s vezes, quase se ludibria com as falsas aparncias das pessoas e dos valores que elas dizem sustentar, mas que sabe ser bastante crtico e custico quando percebe a falsidade das aparncias. E, ao lado disso tudo, um detetive-narrador que tambm sentimento, que sabe se emocionar e no esconde isto de seus leitores; um detetive que com atitudes protecionistas para com aqueles que considera necessitar dessa atitude. Enfim, um detetive plenamente humano, ou talvez pudssemos afirmar tratar-se no mais de um detetive, mas de um homem que casualmente investiga. (REIMO, 1983, p. 71-72)

3.2.2 O suspense

Enquanto o romance de enigma pode ser considerado o romance do detetive e o noir, do criminoso, o suspense o romance da vtima. At ento, essa personagem havia sido negligenciada no gnero policial. Afinal, a vtima era apenas o ponto de partida da narrativa. A histria s comeava de verdade depois de a vtima morrer, desaparecer ou estar acuada em meio aos lobos, at que fosse enfim abocanhada. No suspense, o embate no ser entre o detetive e o criminoso, mas sim entre o criminoso e a vtima, a caa e o caador, com o final imprevisvel. No h certeza de que no fim o investigador ir prevalecer, que solucionar o mistrio. Estas so as palavras que caracterizam o suspense: ameaa, expectativa e perseguio. So a incerteza e a angstia que movem a trama. Boileau e Narcejac explicam quais os elementos que levaram apario do suspense:
Ora, o primeiro romance policial apenas visava produzir um efeito de surpresa, graas progresso rpida da investigao, e foi esse efeito de surpresa que os sucessores de Poe se esforaram em reforar at o abuso. Mas, quando se compreendeu que o romance policial estava matando toda a sensibilidade, tanto nas personagens, quanto no leitor, foi preciso verificar se no podia produzir outros efeitos em que no se tinha pensado. Havia um: o medo, que muito j tinha servido quando do duelo entre o detetive e o criminoso, mas que jamais tinha sido tomado

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como mvel da narrativa, pois o criminoso nunca vencia. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 67)

Mas e se o detetive fracassasse, chegasse tarde demais? O nico personagem que pode sofrer com o terror da perseguio em tempo suficiente para manter a trama a vtima. O suspense o resultado de uma relao matemtica entre o tempo e a excitao produzida pela narrativa. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 67) Ainda no h um crime, o detetive no est em destaque e, pior, falvel. Ento, o suspense pode ser considerado romance policial? Segundo Boileau e Narcejac, sim. Para eles, permanecer um romance com criminoso, vtima e detetive, s que com uma disposio diferente. Aqui, a vtima est em primeiro plano, o assassino potencial est atrs e o detetive age por trs dos panos, quase invisvel. No entanto, preciso dosar os elementos do suspense, para que no se caia numa espcie de teatro de horrores ou no thriller. O romance policial, acima de tudo, deve continuar sendo inteligente. Os maiores representantes desse tipo de romance so Stanley Gardner, com seu investigador-advogado Perry Mason, e William Irish, que descrito por Boileau e Narcejac (1991, p. 74) como o poeta do pesadelo. Para eles, o suspense a forma mais literria do romance policial. Como pudemos observar, romance policial clssico, romance noir e suspense, embora pertenam ao mesmo gnero literrio, possuem caractersticas muito diferentes entre si. natural que ao serem adaptados para o cinema resultem tambm em filmes bem diversos. O romance policial clssico, como o de Agatha Christie, no se adapta muito bem linguagem cinematogrfica. J o romance noir e o suspense tm grande tradio nas telonas. O porqu desse fenmeno explicvel pelas diferenas entre a literatura e o cinema, como veremos a seguir.

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4 LITERATURA E CINEMA

Quando primeiro me sugeriram essa adaptao, no fazia a menor idia dos sofrimentos que tal tarefa implicaria, dadas as alteraes que se impem. (CHRISTIE, 1979, p. 454)

A frase acima foi escrita por Agatha Christie em sua autobiografia, no ponto em que fala sobre seu primeiro livro a ser adaptado para o teatro, O Assassinato de Roger Ackroyd. As palavras usadas pela escritora do uma idia das complicaes e das polmicas que rondam as adaptaes de obras literrias para outras mdias. Sofrimentos, alteraes, impem indicam uma tarefa no s difcil, como s vezes sacrificante para o escritor. Agatha ficava to descontente com as adaptaes de suas obras para o teatro que em certo momento decidiu ser a nica pessoa autorizada a fazer esse trabalho. No s seria a responsvel pelas adaptaes, mas tambm por escolher as obras a serem adaptadas. Com o tempo, a escritora se acostumou aos sacrifcios exigidos pela tarefa e reconheceu que so necessrios. Eliminar personagens, mudar elementos da histria e at refazer o final foram alguns dos esforos que a autora precisou aceitar em sua carreira de adaptadora, que encarou como um desafio a mais. Mesmo ciente de tais necessidades, entretanto, Agatha no aprovou a maioria das verses cinematogrficas de seus livros. Faz parte do jogo que alguns autores sejam mais adaptveis que os outros, de acordo com o tipo de narrativa que escrevem. Alguns escritores so muito visuais, enquanto outros so melhores no mundo das idias. Isso se reflete diretamente no tipo de filme que resulta do livro, pois preciso observar as especificidades de ambas as mdias.

4.1 AS LIMITAES DE CADA MEIO

Desde que o cinema reconheceu sua vocao narrativa, passou a pedir emprestado literatura seus enredos. Em certas pocas, os filmes inspirados em obras literrias chegavam a representar mais de 40% do total de produes. Nos ltimos anos tem havido um boom de adaptaes, em um momento que alguns crticos vem como de crise de criatividade entre os roteiristas. Assim que surge um best-seller de fico ou mesmo biografia, os estdios correm

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para adquirir os direitos de filmagem. De apelo altamente comercial, as adaptaes sempre geraram polmicas, mas sua problemtica vai muito alm do que geralmente se fala. A passagem da linguagem literria para a cinematogrfica no simples. Embora o objetivo seja o mesmo, narrar uma histria, os elementos que os dois meios dispem para narr-la, bem como a maneira que o pblico a receber, so muito diferentes, como observa George Bluestone:
Romancista e diretor se encontram aqui em uma inteno comum. Mas enquanto um enxerga visualmente atravs dos olhos, o outro v imaginativamente atravs da mente. E entre a percepo da imagem visual e a conceituao de imagem mental se encontra a diferena entre as duas mdias. (BLUESTONE, 2003, p. 1)

Os smbolos que formam as palavras, o material da literatura, devem ser transformados em imagens, sentimentos e conceitos atravs do pensamento. J no cinema, as imagens em movimento atingem diretamente nossa percepo. Esses so modos diferentes de compreender o universo. Um dos exemplos mais claros das diferenas de linguagem entre as duas mdias a dificuldade do cinema em reproduzir as figuras de linguagem to utilizadas pela literatura. A escritora Virginia Woolf destaca o poder do discurso. Para ela, as imagens de um poeta so um compacto de centenas de sugestes, das quais a visual apenas a mais bvia:
Mesmo a mais simples imagem: meu amor como uma rosa vermelha, vermelha, que acaba de brotar em junho nos proporciona impresses de umidade e tepidez e o ardor de carmim e a suavidade das ptalas inextricavelmente mesclados e levados pelo enlevo de um ritmo que ele mesmo a voz da paixo e a hesitao do amante. Tudo isso, que acessvel s palavras, e s palavras somente, o cinema deve evitar. (WOOLF apud BLUESTONE, 2003, p. 21)

As palavras do escritor mexem com os sentidos do leitor, levam automaticamente a dezenas de associaes. Cineastas no conseguiriam esse mesmo efeito apenas com imagens ou sons. Enquanto o escritor tem disposio a riqueza metafrica da linguagem verbal, contudo, o cineasta dispe no s de imagens visuais, mas tambm de linguagem verbal (dilogo, narrao e letras de msica), de sons no-verbais (rudos e efeitos sonoros), de msica e da prpria lngua escrita (crditos, ttulos etc.). E todos esses materiais podem ser arranjados de formas diversas, que resultaro em filmes igualmente diversos. At mesmo o silncio um instrumento poderoso do cinema que a literatura no teria como reproduzir. Portanto, se o cinema incapaz de fazer tudo que a literatura faz, a literatura tambm no consegue alguns efeitos que o cinema produz.

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Enquanto a literatura possui a capacidade imbatvel de trabalhar com as figuras de linguagem e o mundo metafrico, o cinema encontrou uma ferramenta muito prpria para tentar diminuir essa desvantagem: a montagem. A edio foi um dos elementos a permitir que os cineastas construssem uma assinatura, um estilo caracterstico. Deu novos poderes de seleo ao cineasta, permitiu que ele enfatizasse algum ponto em especial e eliminasse intervalos insignificantes, ajustando a linha central de sua narrativa. No h mais aquele plano geral quase imutvel do incio do cinema, quando o filme parecia mais um carto postal animado. O diretor, j contemplado com as liberdades de seleo de imagens das lentes da cmera, ganha com a montagem uma oportunidade nica de brincar com o espao. Outra diferena entre o cinema e a literatura est no tempo da narrativa, como explica Ben Brady:
Um romance a histria sobre pessoas envolvidas em um conjunto de circunstncias que presumidamente ocorreram em algum momento do passado. Isto verdade mesmo nas ocasies em que o autor conta a histria no presente. Mesmo uma histria sobre o futuro (fico cientfica, por exemplo) contada como se os eventos j tivessem acontecido. Um filme, entretanto, segue na suposio de que a histria est se desenrolando agora em frente aos seus olhos apesar de o tempo em que se passa a trama seja um passado longnquo ou um futuro distante. Em suma, o romance uma recontagem; o filme uma recriao. (BRADY, 1994, p. 6)

No cinema, contamos com imagens que podem causar uma impresso de realidade que a literatura desconhece. Como no se pode conjugar imagens, o nico tempo que o cinema dispe o presente, mesmo que a histria se desenrole no passado ou no futuro. O espaotempo no cinema autnomo quando se compara narrativa literria, na qual o espao um lugar abstrato ligado somente capacidade evocadora das palavras que foram utilizadas e sensibilidade lingstica de cada leitor. Qualquer um que deseje adaptar uma obra de Agatha Christie, por exemplo, ter que lidar com todo o universo que a escritora criou, em torno da aristocracia britnica do incio do sculo 20. O leitor no familiarizado com essa realidade, apenas busca referncias em sua experincia e em seus conhecimentos prvios para tentar formar uma idia, uma imagem de como seria. O cineasta, por sua vez, necessita fazer uma pesquisa profunda sobre a poca e recriar por meio das ferramentas prprias do cinema esse universo. Seja pelo figurino, pela trilha sonora ou a direo de arte, esse cineasta precisa utilizar o que seu meio dispe para concretizar o que na literatura apenas sugerido. Ainda podemos considerar a diferena de tempo de apreenso das informaes, que no cinema definido pelo autor. Na literatura diferente, pois cada leitor define seu ritmo de leitura. Um livro de 400 pginas pode ser lido tanto em uma semana quanto em um ano, ou

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at mais. Da mesma forma, podemos passar segundos ou horas observando um quadro. No teatro, um ator pode mudar o ritmo de acordo com a recepo da platia. Mas na sala de cinema, um filme de duas horas e meia s pode ser visto em duas horas e meia. Mas no so apenas esses elementos que diferenciam cinema e literatura, como explica Bluestone:
As convenes que governam cada mdia so condicionadas por diferentes origens, audincias, modos de produo e exigncias de censura. O romance respeitvel, em geral, tem sido apoiado por um pblico pequeno e literato, produzido por um autor individual e se manteve relativamente livre de censura. O filme, em contrapartida, vem sendo apoiado por uma audincia massificada, produzido cooperativamente em condies industriais e restringido por um Cdigo de Produo imposto pela prpria indstria. (BLUESTONE, 2003, p. VI)

Para publicar um livro, no necessrio muito dinheiro ou aparato tecnolgico se comparado ao cinema. Alm disso, basta apenas vender algumas centenas de exemplares para o investimento ser coberto. Dependendo da obra, apenas alguns milhares de unidades vendidas j do lucro. O escritor livre e a maioria das vezes sozinho em sua arte, que tem um pblico definido e cativo. O cinema, por sua vez, necessita de muito capital para se manter. Um filme feito com uma equipe de no poucas pessoas, que devem seguir as limitaes financeiras e tecnolgicas. Por isso, h algumas regras mercadolgicas que podem ou no acatar, de acordo com as pretenses de pblico da produo. Quanto maior o investimento, maior a dependncia a essas convenes impostas pelo mercado. Para cobrir o investimento e dar lucro, o filme muitas vezes precisa ser visto por milhes de pessoas. Mesmo assim, alguns do prejuzo.

4.2 O PROCESSO DE ADAPTAO

H muitos aspectos a serem observados ao adaptar uma obra literria para as telonas. A principal diferena entre o cinema e a literatura que tudo na linguagem audiovisual deve ser visvel ou audvel, enquanto na literatura o escritor s fornece as informaes que desejar, deixando ao leitor o trabalho de preencher as lacunas com a imaginao. O cineasta gacho Jorge Furtado falou sobre essa diferena:
[...] quem j tentou fazer um roteiro sabe como difcil evitar a tentao de escrever: Joo acorda e lembra de Maria. Isso muito fcil escrever e muito difcil de filmar.

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Palavras como pensa, lembra, esquece, sente, quer ou percebe, presentes em qualquer romance, so proibidas para o roteirista, que s pode escrever o que visvel. A literatura, que a todo o momento nos remete ao fluxo de conscincia dos personagens, pode utilizar todas essas palavras. Mas no necessariamente precisa utilizar todas essas palavras, o que faz com que alguns textos sejam muito mais facilmente adaptveis do que outros. (FURTADO, 2003)

Furtado cita Dashiell Hammett como escritor facilmente adaptvel. Todas as frases que escreve so potencialmente visuais. Em contrapartida, coloca William Faulkner e Marcel Proust na outra ponta, dos timos autores cujas obras nunca deram bons filmes. As palavras pensa, lembra, sente no so aceitas em um roteiro de cinema porque no so visuais. No romance, a palavra o material de expresso, que conduz a narrativa. Com elas possvel explicar muita coisa, como dizer o que o personagem pensa, sente ou at o que esqueceu. Por isso, o cinema no suporta bem textos que se passam no mundo das idias, com muita reflexo terica e pouca ao. O tipo de romance policial que Hammett escreve e do qual foi precursor, o noir, geralmente d bons filmes. Isto porque a narrativa nestes livros extremamente visual. Geralmente, tudo possvel ser traduzido em imagens sem perda de informao; ao contrrio, a linguagem cinematogrfica tende a aumentar o potencial do texto original. Tanto que h um tipo de filme que tambm chamado de noir. A ao dessa espcie de romance policial favorece o cinema, assim como o clima lgubre e a construo dos personagens. Algo semelhante acontece com o filme de suspense. O cineasta Alfred Hitchcock j dizia que so os livros ruins que resultam em bons filmes, mas nem preciso ser to radical. O romance de suspense fornece um timo material para o cinema, pois trabalha com uma tenso, a prpria suspenso do espao-tempo, que muito bem conduzida pela montagem e potencializada pela msica e os efeitos sonoros. O suspense captura todo o tipo de reao dos espectadores, como o medo, a tenso, a apreenso e, por que no, a curiosidade. J o romance policial clssico, com suas regras quase imutveis, exige mais sacrifcios do cinema do que se pode imaginar. Por ser basicamente cerebral, esse tipo de narrativa no tem grande potencial visual. Como a maior parte do tempo destinada a uma investigao que deve ser acompanhada pelo leitor/espectador, o filme acaba se tornando lento demais. E se o cinema decidir mudar a estrutura que para si sacrificante, j no teremos mais como resultado a adaptao de um romance policial clssico, mas sim uma outra coisa. A construo dos personagens tambm explicita a diferena entre as duas mdias. Na literatura, o escritor descreve o personagem da maneira que acha pertinente. Diz se loiro ou moreno, a cor dos olhos, a altura. Aos poucos, vai construindo a personalidade dessa pessoa, o

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carter e todos os elementos necessrios para a narrativa. Com isso, o leitor fica livre para criar sua verso do personagem, preencher todas as lacunas que o escritor deixou com a imaginao. Cada leitor tem uma idia particular de como o personagem fisicamente, de como ele fala, age, caminha, gesticula. Se o escritor apenas diz que um personagem feio, na cabea de cada leitor ele ter uma aparncia completamente diversa. Alguns vo imaginlo careca, outros, gordo ou magro demais, cheio de espinhas. E o que pode ser horrendo para um, o outro no necessariamente achar feio. Por isso a tarefa do cineasta complicada: ele precisa escolher um ator para interpretar esse papel nas telas. Alguns livros descrevem os personagens em mincias, mas outros falam to pouco que o trabalho de concepo da imagem fica quase totalmente a cargo da imaginao de quem l. Por esse motivo to freqente o descontentamento dos leitores com a representao de seus personagens favoritos nas telas. O cineasta no pode liberar aos poucos as informaes sobre o personagem; quando o espectador v o filme, o personagem j est pronto, pois o ator j foi escolhido e ps em cena a interpretao que foi considerada apropriada. Na maioria das vezes, os leitores imaginavam o personagem completamente diferente do ator escolhido para interpret-lo, ou no se contentam com a entonao da voz utilizada e a representao de outras tantas caractersticas. Sobre isso, George Bluestone observa:
Como a linguagem tem suas prprias leis e os personagens literrios so inseparveis da linguagem que os forma, a externalizao desses personagens geralmente parece insatisfatria. A distino entre o personagem que aparece nas telas e em sua imagem visual explica, talvez, o desgosto insistente de crticos cinematogrficos como Michael Orme [...]. Ao protestar contra a carnificina de De Mille em Four Frightened People, de E. Arnot Robinson, Orme reflete: voc no pode transpor qualquer personagem das pginas para as telas e esperar represent-lo inteiramente como o romancista o criou ou da maneira que os leitores do romancista o conheciam... Algum consegue recordar alguma vez ter visto uma performance que realmente retratou seu personagem preferido da maneira que o imaginava? (BLUESTONE, 2003, p. 25)

o que acontece, por exemplo, com as interpretaes de Hercule Poirot e Miss Marple, os dois famosos detetives de Agatha Christie. Os leitores da Rainha do Crime e a prpria escritora protestaram ao ver o investigador belga como um gal de matin em Alibi (1931), ou como um personagem completamente caricaturado em The Alphabet Murders (1960). natural que como propostas artsticas, literatura e cinema tenham seus prprios materiais que resultem em obras completamente diferentes umas das outras. Assim como um quadro pintado por um artista diferente da paisagem que retratou, ou a escultura no a

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mesma coisa que seu modelo. Em todos esses casos, cada meio de expresso possui mais ou menos elementos de expresso, e no melhores ou piores. No processo de adaptao, o cineasta deve, inevitavelmente, modificar alguns elementos do romance de origem. Nada mais natural, j que, como observamos at agora, os dois meios so muito diferentes um do outro; o que funciona em um, pode ser impossvel no outro. E no apenas isso: h tambm outros fatores, como perfil ideolgico e restries polticas do estdio de cinema, preferncia do autor e a disponibilidade de capital e tecnologia, por exemplo. O caso das adaptaes dos romances policiais da Agatha Christie bastante ilustrativo. A prpria autora reconhece os obstculos peculiares de seu gnero de literatura:
Uma histria policial muito diferente de uma obra dramtica e, portanto, muito mais difcil de adaptar do que qualquer outro gnero literrio. O enredo intrincado e contm, normalmente, tantas personagens e pistas falsas que fcil ficar confuso e sobrecarregado. Fazia-se necessrio simplific-los. (CHRISTIE, 1979, p. 494)

A maioria dos filmes tem at duas horas de durao. A quantidade de personagens, acontecimentos, pistas, detalhes que comportam essas histrias dificilmente poderiam ser transportadas com sucesso para esse curto tempo. O filme ficaria longo demais, cansativo e confuso, e dificilmente resultaria em uma obra to instigante quanto a de origem. Assassinato em Gosford Park, filme dirigido por Robert Altman em 2001, um bom exemplo, embora no seja uma adaptao. O roteiro original, ganhador do Oscar, inspirou-se no romance policial clssico, porm brincando com a infalibilidade do detetive (no filme, o investigador totalmente incompetente). A quantidade de personagens era tanta e a narrativa to arrastada que comum ouvir os espectadores comentarem que no conseguiram assimilar os nomes e as funes de todos os personagens, nem pegar as mincias da histria. O roteiro era extremamente inventivo, mas pecou exatamente pela fidelidade ao gnero literrio no qual se inspirou. Fidelidade que o ponto mais polmico quando se trata de adaptaes literrias para o cinema.

4.3 A QUESTO DA FIDELIDADE

O lema deve ser ao cineasta o que do cineasta, ao escritor o que do escritor, valendo as comparaes entre livro e filme mais como um esforo para tornar mais claras as escolhas de quem leu o texto e o assume como ponto de partida, no de chegada. (XAVIER, 2003, p. 62)

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Quando se fala em adaptaes de obras literrias ao cinema, quem j no ouviu de algum amigo ou at mesmo leu em crticas cinematogrficas a afirmao: o livro bem melhor? Desde as primeiras adaptaes, o tema debatido acaloradamente, e os anos no fizeram cessar a polmica. Freqentemente, se um filme se afasta um pouco da verso original j fortemente criticado. Segundo Randall Johnson, essas crticas se devem, principalmente, viso de que a obra literria inviolvel:
O problema o estabelecimento de uma hierarquia normativa entre a literatura e o cinema, entre uma obra original e uma verso derivada, entre a autenticidade e o simulacro e, por extenso, entre a cultura de elite e a cultura de massa baseia-se numa concepo, derivada da esttica kantiana, da inviolabilidade da obra literria e da especificidade esttica. Da uma insistncia na fidelidade da adaptao cinematogrfica obra literria originria. Essa atitude resulta em julgamentos superficiais que freqentemente valorizam a obra literria sobre a adaptao, e o mais das vezes sem uma reflexo profunda. (JOHNSON, 2003, p. 40)

A supervalorizao do romance em detrimento do filme leva a avaliaes comprometidas. Ao se tratar de uma adaptao, preciso pensar no livro e no filme como obras independentes, que como j vimos possuem linguagens completamente diferentes e so regidas por convenes igualmente diversas. Como George Bluestone comenta:
Na crtica cinematogrfica, foi sempre fcil reconhecer como um filme pobre destri um romance superior. O que no foi suficientemente reconhecido que tal destruio inevitvel. No sentido completo da palavra, o cineasta se torna no um tradutor de um determinado autor, mas um novo autor em seu prprio direito. (BLUESTONE, 2003, p. 62)

Entre os tericos do cinema, praticamente unnime a viso de que um filme no precisa ser a verso em celulide do romance, como escreveu Ben Brady (1994, p. ix). Segundo Ismail Xavier,
[...] nas ltimas dcadas tal cobrana perdeu terreno, pois h uma ateno especial voltada para os deslocamentos inevitveis que ocorrem na cultura, mesmo quando se quer repetir, e passou-se a privilegiar a idia do dilogo para pensar na criao das obras, adaptaes ou no. O livro e o filme nele baseado so vistos como dois extremos de um processo que comporta alteraes de sentido em funo do fator tempo, a par de tudo o mais que, em princpio, distingue as imagens, as trilhas sonoras e as encenaes da palavra escrita e do silncio da leitura. (XAVIER, 2003, p. 61)

Sendo ele mesmo um autor com seu prprio direito, como afirma Bluestone, o cineasta livre para encontrar sua maneira as melhores solues para adaptar a obra que escolheu. Angelo Moscariello complementa:

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No deve haver qualquer preocupao de fidelidade letra do texto original, mas, pelo contrrio, a mais ampla liberdade na procura de solues dramticas e de figuras estilsticas capazes de produzir na tela o mesmssimo efeito potico confiado na pgina a outros tantos recursos ao dispor da linguagem escrito-verbal. (MOSCARIELLO, 1985, p. 78)

Normalmente, as reclamaes a respeito da fidelidade ocorrem com obras literrias muito conhecidas ou de autores famosos. Quanto mais leitores determinado autor tem, maior a chance de as adaptaes para o cinema de seus trabalhos serem criticadas. A chance bem maior de surgir crticas desfavorveis a adaptaes de Hamlet, de William Shakespeare, ou de O Cdigo Da Vinci, de Dan Brown, por exemplo. Em contrapartida, raro encontrar quem saiba que O Talentoso Ripley, de Anthony Minghella, inspirado em um romance da escritora Patricia Highsmith, ou Os Matadores, de Beto Brant, tem como base um conto de Maral Aquino. Da mesma forma, a fidelidade no importante para os espectadores que no conhecem a obra da qual o filme foi adaptada. Nesse sentido, Johnson comenta:
A insistncia na fidelidade que deriva das expectativas que o espectador traz do filme, baseadas na sua prpria leitura do original um falso problema porque ignora diferenas essenciais entre os dois meios, e porque geralmente ignora a dinmica dos campos de produo cultural nos quais os dois meios esto inseridos. (JOHNSON, 2003, p. 42)

Mas nem tudo so farpas na relao entre literatura e cinema. A literatura pode, inclusive, tirar proveito do assdio da indstria cinematogrfica a seus textos. Assim que foi lanada nas telas a primeira verso de O Morro dos Ventos Uivantes, em 1939, mais exemplares do livro homnimo de Emily Bront foram vendidos do que em todos os 92 anos anteriores, quando foi publicado. E aps o lanamento da primeira adaptao de Orgulho e Preconceito, em 1940, a verso pocket do livro de Jane Austen vendeu mais de 700 mil cpias, e as outras edies, quase 400 mil unidades. O cinema, uma arte ainda nova, deve se firmar como uma mdia independente, e no apenas mais um meio de expressar a linguagem de outros meios. Alis, a linguagem cinematogrfica tem influenciado a prpria produo da literatura, como observa Johnson:
Basta pensar, por exemplo, na prosa dita cinematogrfica de Oswald de Andrade ou Antnio de Alcntara Machado, em romances como Operao Silncio (1939), de Mrcio de Souza, que tematiza o cinema de mltiplas formas, e Camilo Mortgua (1980), de Josu Guimares, que usa o cinema como elemento temtico e estruturador, ou num caso como o do escritor argentino Miguel Puig, que disse em vrias ocasies que, quando era menino numa pequena cidade da Argentina, seu maior desejo era ser um filme, porque a realidade que ele via na tela era mais bonita do que a realidade que o circundava. E a importncia do cinema em sua obra est

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mais do que evidente em romances como A Traio de Rita Hayworth e O Beijo da Mulher-Aranha. (JOHNSON, 2003, p. 39)

Essa opinio compartilhada por Moscariello:


[...] se o cinema quiser falar a linguagem que lhe prpria, em vez de limitar-se a duplicar a das outras artes, deve acima de tudo empenhar-se na procura de uma srie de figuras que sejam no j idnticas, mas equivalentes s utilizadas pela literatura. Ao faz-lo, o cinema tambm poder ter algo a ensinar sua parente nobre, como demonstram as influncias cada vez mais numerosas que o filme vai exercendo precisamente no plano da utilizao da categoria espao-temporal sobre a produo romanesca atual, mesmo de tipo tradicional. (MOSCARIELLO, 1985, p. 53)

4.4 AS INTENES AO ADAPTAR

Para se analisar a adaptao cinematogrfica de uma obra literria necessrio determinar qual era a inteno do cineasta quanto fidelidade. Existem trs possibilidades bsicas: a primeira busca por uma transposio o mais exata possvel com o texto original; a segunda, a manuteno da essncia da obra com modificaes e/ou reinterpretaes de algumas passagens; e a terceira, a viso do original apenas como uma inspirao, uma base para a criao de uma narrativa bem diferente. Ismail Xavier explica essas opes ao nos introduzir os conceitos de fbula e trama. Fbula a histria em si, que conta com certos personagens e se passa em um determinado lugar em um determinado tempo. J a trama o modo como tal histria e tais personagens aparecem para o leitor ou o espectador por meio do texto ou do filme. Uma nica histria pode ser contada de diversas maneiras, ou possvel dizer que uma fbula pode ser construda por meio de inmeras tramas.
[...] um filme pode exatamente s estar mais atento fbula extrada de um romance, tratando de tram-la de outra forma, mudando, portanto, o sentido, a interpretao das experincias focalizadas. Ou pode, no outro plo, querer reproduzir com fidelidade a trama do livro, a maneira como esto l ordenadas as informaes e dispostas as cenas sem mudar a ordem dos elementos. (XAVIER, 2003, p. 66-67)

No se pode exigir muita fidelidade de um diretor que optou pelo terceiro caminho, por exemplo. Esse cineasta possivelmente considerou pertinente o esqueleto da obra

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literria, a idia do escritor, mas achou melhor construir uma outra histria com ela. Os filmes mais perseguidos pela exigncia de fidelidade so os que se encontram no primeiro grupo. Grande parte das obras de Agatha Christie adaptadas para o cinema se enquadra na primeira opo. As intenes ficam claras desde o princpio. Como Agatha uma das escritoras mais vendidas do mundo, muitos filmes fazem questo de destacar o nome da inglesa nos psteres de divulgao e comum que ele aparea com destaque nos crditos. Se as pessoas vem um pster em que o nome Agatha Christie ocupa quase o mesmo espao que o ttulo do filme, s vezes at maior, o mnimo que esperam o mximo possvel de fidelidade. Como o pblico da escritora inglesa imenso em todo o planeta, compreensvel que uma produo que se diz baseada em sua obra, mas no observe as peculiaridades desse mundo particular, seja muito criticada. Claro, algum que nunca leu um livro de Poirot no se incomodaria caso um ator interpretasse o detetive belga como um gal de matin. Heresia que um f da escritora jamais aceitaria. Opo diferente fizeram os produtores de Identidade, filme de 2003, dirigido por James Mangold e com John Cusack e Ray Liotta no elenco. O longa-metragem est includo naquele terceiro grupo, que apenas aproveita a idia de um livro e cria uma outra histria. O roteiro pega emprestado de O Caso dos Dez Negrinhos a idia de pessoas reunidas em um certo local isolado morrerem uma a uma. Mas no filme no em uma ilha, e sim em um hotel de beira de estrada, no meio do nada, onde alguns estranhos so obrigados a permanecer devido a uma forte tempestade e comeam a ser assassinados. O restante da histria totalmente diferente daquela de Agatha Christie. A narrativa se passa nos dias de hoje e conta uma outra histria simultaneamente, sendo que ambas se interligam no final. O filme em nenhum momento assumiu qualquer ligao com a obra da escritora inglesa, assim nenhum tipo de fidelidade poderia ser exigida. A nica aluso Agatha est no roteiro, no qual uma das personagens comenta sobre a existncia de um livro em que dez pessoas em uma ilha morrem uma a uma, referncia indireta a O Caso dos Dez Negrinhos. Assassinato no Expresso Oriente, filme de 1974, entra no primeiro grupo. A inteno claramente de se manter o mais fiel possvel ao texto original. Como foi o processo de adaptao e seus resultados analisarei no captulo seguinte.

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O EXEMPLO DE ASSASSINATO NO EXPRESSO ORIENTE

De todos os gneros literrios, talvez o romance policial clssico seja o mais sensvel a mudanas quando adaptado paras as telas. Muitas vezes um pequeno deslocamento ou uma nfase maior em alguma parte da histria realizada pelo cineasta j descaracteriza totalmente o tipo de literatura na qual o filme se baseou. Como j foi observado anteriormente, tudo depende da inteno do cineasta ao adaptar a obra. O caso de Agatha Christie especial. O nome da escritora inglesa uma grife afinal, aqui lidamos com a Rainha do Crime ou Dama do Crime. natural que se d o maior destaque possvel ao fato de um filme ser adaptado de uma obra de Agatha. Atrai pblico, crtica e publicidade, mas nesse momento, o cineasta define claramente o caminho que deve trilhar: preciso o mximo de fidelidade. E isso implica, principalmente, que esse mundo exposto em mais de 200 trabalhos e admirado por bilhes de pessoas mundo afora seja respeitado. Ao comear pelas diretrizes do romance policial clssico, de enigma, que j estudamos nesta monografia. Como se adaptaria com sucesso um romance de Poirot dando mais nfase ao do que investigao, por exemplo? No presente captulo analisarei a que , provavelmente, a mais fiel adaptao de uma obra do romance policial de enigma de Agatha Christie, com vtima, criminoso e detetive. Trata-se de Assassinato no Expresso Oriente.

5.1 O LIVRO

Assassinato no Expresso Oriente foi lanado em 1934 na Inglaterra pela William Collins Sons & Co com o nome de Murder on the Orient Express e nos Estados Unidos, pela Dodd, Mead & Co, como Murder in the Calais Coach (em portugus, assassinato no vago Calais). um dos livros mais conhecidos da Rainha do Crime, no apenas por seu enredo fantstico, mas tambm pela notoriedade de sua verso cinematogrfica. A trama gira em torno da investigao do assassinato de Samuel Ratchett, rico empresrio americano, com 12 facadas em sua cabine no Expresso Oriente. O crime aconteceu na viagem entre Istambul e Calais, quando o trem fica preso em uma tempestade de neve nos Blcs. O vago Istambul-Calais est lotado, o que incomum para a poca do ano.

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Pessoas de vrias nacionalidades dividem espao no trem, entre elas o detetive belga Hercule Poirot, que logo toma a dianteira das investigaes. No h pegadas na neve e ningum escondido no trem, o que determina: o assassino algum dos passageiros. Antes de morrer, Ratchett havia pedido o auxlio de Poirot, que recusou. O homem disse que estava recebendo cartas annimas ameaadoras e corria perigo. Uma dessas cartas foi encontrada queimada ao lado do corpo. Poirot consegue recuperar um pedao dela, o suficiente para descobrir a verdadeira identidade de Ratchett e, por conseqncia, o motivo do assassinato. Ele era Cassetti, responsvel por uma tragdia cinco anos antes nos Estados Unidos. O homem era o mandante do seqestro da menina dos Armstrong, Daisy, que apareceu morta aps os pais terem pago uma enorme soma de resgate. A me de Daisy, Sonia filha de uma das maiores atrizes da poca, Linda Arden , estava grvida na poca e morreu no parto prematuro aps o choque do assassinato da menina. A criana nasceu morta. Coronel Armstrong, o pai, ento se suicidou. E a empregada francesa que cuidava de Daisy, acusada injustamente de cumplicidade no crime, tambm se matou pulando de uma janela. Portanto, o homem que fora assassinato era responsvel por cinco mortes no cl dos Armstrong. Desde o incio, as nicas pessoas que tinham relao direta com a famlia Armstrong eram a princesa Dragomiroff, madrinha de Sonia, e Hector MacQueen, secretrio da vtima, que filho do promotor do caso e ficara impressionado com Sonia na poca. Mas o que deixava o caso ainda mais intrigante era a impossibilidade de algum no trem ter cometido o crime. Todos possuam libis, a maioria de pessoas que aparentemente no tinham nenhuma relao umas com as outras. Aos poucos, Poirot conclui que a nica explicao possvel para o crime de que todos no trem estavam envolvidos. Assim, deduz o papel de cada um no cl dos Armstrong a me, a irm, o motorista, a cozinheira, a governanta etc. Ratchett tinha escapado da Justia, mas no da vingana das pessoas que fez sofrer. Como em um jri, 12 pessoas determinaram o destino do criminoso. Aps a confirmao de sua fantstica teoria, a outra verso que tinha sugerido, de que o crime tinha sido cometido por algum de fora, foi escolhida para ser a oficial pelo diretor da Wagon-Lits. Assim, mesmo desmascarados, os verdadeiros assassinos de Samuel Ratchett no foram denunciados. Para fazer o livro, Agatha Christie se inspirou em dois episdios reais. O primeiro incidente foi o seqestro do beb dos Lindbergh em 1932, nos Estados Unidos. Na ocasio, Charles e Anne Morrow Lindbergh pagaram um resgate de 50 mil dlares, mas a criana foi assassinada mesmo assim. O segundo incidente que influenciou a trama aconteceu em 1929, quando o Expresso Oriente ficou preso pela neve por seis dias na fronteira da Turquia.

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Outra inspirao do livro foi a vontade de Agatha de escrever uma histria que se passasse no lendrio Expresso Oriente. Uma das razes que fez a inglesa viajar sozinha para o Oriente Mdio aps o divrcio foi a possibilidade de utilizar esse trem. Agatha j tinha reservado passagens para a Jamaica e as ndias Ocidentais quando foi jantar com um casal de amigos e alguns conhecidos que voltavam de Bagd. Agatha escreveu sobre a ocasio em sua autobiografia:
Fiquei sentada junto ao comandante e ele falou-me em Bagd. Acabara de chegar dessa parte do mundo, do Golfo Prsico. Depois do jantar a mulher dele tambm sentou-se perto de mim e conversamos. Contou-me que todo mundo dizia que Bagd era uma cidade horrvel, mas ela e o marido haviam ficado fascinados. Falaram-me tanto de Bagd que comecei a me entusiasmar. Perguntei se s se podia chegar at l por mar. Pode ir de trem, pelo Expresso Oriente. O Expresso Oriente? Toda a minha vida ambicionara viajar no Expresso Oriente. Quando viajei pela Frana e Espanha ou na Itlia, vira muitas vezes o Expresso Oriente parado em Calais e sentira enorme vontade de me meter dentro dele. Simplon Orient Express Milan, Belgrade, Stamboul... Fiquei contagiada. (CHRISTIE, 1979, p. 378-379)

Foi nessa viagem que Agatha, triste pelo fim definitivo de seu casamento com Archie, conheceu o futuro marido, Max Mallowan. De certa forma, at se pode dar ao Expresso Oriente crditos pelo casrio.

5.2 O FILME

Lanado em 1974, Assassinato no Expresso Oriente um clssico do cinema. O filme foi considerado uma superproduo na poca, devido a toda a ateno dada aos detalhes, que resultariam no glamour to desejado pelos produtores. Ao comear pela direo: quem comandou o projeto foi o americano Sidney Lumet, muito reconhecido por seus colegas e pela crtica, e responsvel por outros filmes famosos como Doze Homens e uma Sentena, Um Dia de Co, Serpico, Rede de Intrigas e Uma Estranha entre Ns. Lumet enfrentou dificuldades para conseguir a autorizao de Agatha para adaptar Assassinato no Expresso Oriente para as telas, j no final da vida da escritora.
A autora estava relutante em permitir que qualquer outro filme fosse feito de sua obra, e precisou a interveno do Lorde Louis Mountbatten, antigo representante da Coroa na ndia e tio do prncipe Philip, duque de Edimburgo, para convenc-la a tentar mais uma vez. (SOVA, 1996, p. 237)

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Especialmente para o filme, foram resgatados os vages originais do Expresso Oriente no depsito da companhia Wagon-Lits, na Blgica. Eles foram levados at Paris, onde uma rplica da estao de Istambul foi montada para a cena da partida do trem para a viagem de trs dias pela sia e a Europa. At um especialista em sons de trens famosos foi contratado para que o barulho do Expresso Oriente fosse autntico. O figurino tentou reproduzir a opulncia da poca, e at mesmo as diferenas entre as classes. Enfim, tudo foi pensado e executado em detalhes para que o mundo de Agatha Christie fosse reproduzido no filme. Um mundo que, para Lumet, era predominantemente nostlgico:
Assassinato no Expresso Oriente uma histria policial de primeira ordem que mantm voc completamente expectante. Lembro-me, quando li o roteiro pela primeira vez, de ter berrado de alegria quando finalmente foi revelado que todos tinham feito aquilo. Fala do implausvel! E depois de pensar um pouco, percebi que falava de algo mais: nostalgia. Para mim, o mundo de Agatha Christie predominantemente nostlgico. At os ttulos dela so nostlgicos. O Assassinato de Roger Ackroyd (que nome!), Assassinato no Expresso Oriente (que trem!), Morte no Nilo (que rio!) tudo no trabalho dela representa um tempo e um lugar que eu jamais soube que existiam, e na verdade fico imaginando se de fato existiram. (LUMET, 1998, p.18)

E no s os cuidados tcnicos ajudaram a fazer a fama do filme. O elenco estelar. Poucas produes at ento tiveram tantos astros como Assassinato no Expresso Oriente. Sean Connery, Vanessa Redgrave, Albert Finney, Anthony Perkins, Ingrid Bergman, Lauren Bacall, Jacqueline Bisset, John Gielgud, Michael York, Richard Widmark, Wendy Hiller, Rachel Roberts e George Coulouris dividem as atenes dos espectadores. Para Lumet, o efeito nostlgico que gostaria de dar ao filme s funcionaria com um elenco cheio de estrelas:
s vezes o estilo do filme se torna visvel quando fecho o roteiro aps a primeira leitura. [...] Assassinato no Expresso Oriente um exemplo. Lidvamos ali com um melodrama que tinha uma trama admirvel. Mas tambm tinha de ter outra caracterstica: nostalgia romntica. O que poderia ser mais nostlgico ou romntico do que um elenco somente de astros? Isto no se fazia desde muitos anos, embora tivesse havido muitos elencos estelares nas dcadas de 30, 40 e 50. A trama era maravilhosa, mas complicada. Assim, o que poderia fazer voc ouvir com mais ateno do que um astro dando as deixas? [...] Mesmo os papis secundrios foram tratados como se fossem de tamanho maior do que o natural. (LUMET, 1998, p. 58)

Muitos dos atores estavam na poca atuando em peas no West End, em Londres, o que dificultou ainda mais a produo. Algumas cenas tiveram de ser gravadas em uma s tomada, exigindo o mximo de percia e ateno da equipe de produo e dos atores. Tanto esforo e cuidado valeu a pena. O longa-metragem foi um grande sucesso de bilheteria e crtica. Ingrid Bergman ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante por sua

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atuao de no mais de 10 minutos como a missionria sueca Greta Ohlsson. O filme foi indicado a mais cinco categorias na premiao da Academia: melhor ator (Albert Finney), melhor fotografia (Geoffrey Unsworth), melhor figurino (Tony Walton), melhor trilha sonora original (Richard Rodney Bennett) e melhor roteiro adaptado (Paul Dehn). No Bafta, o Oscar britnico, ganhou trs prmios: melhor trilha sonora e melhores atriz e ator coadjuvantes (Ingrid Bergman e John Gielgud, pelo papel do criado do morto, Beddoes). Foi indicado em mais sete categorias: filme, ator (Albert Finney), diretor (Lumet), fotografia, edio (Anne V. Coates), figurino e direo de arte (ambos por Tony Walton). Alm disso, Lumet foi indicado para o prmio de melhor diretor de cinema pela Associao de Diretores da Amrica e o roteiro adaptado de Paul Dehn ganhou o prmio da Associao de Roteiristas do Reino Unido e foi indicado ao prmio Edgar Allan Poe. Se no bastasse o reconhecimento do pblico e da crtica, Assassinato no Expresso Oriente foi aprovado pela prpria Agatha Christie, que participou da premiere do filme em Londres, ao lado da rainha britnica, Elizabeth II. Este foi o ltimo evento pblico da Dama do Crime, que morreu pouco mais de um ano depois. Como vimos no captulo anterior, as relaes entre cinema e literatura nunca foram muito amistosas, mas em Assassinato no Expresso Oriente os dois meios parecem se entender. Pretendo agora analisar as mudanas realizadas pelo cineasta em comparao ao original, observando tudo o que foi exposto at agora neste trabalho.

5.3 AS RELAES ENTRE LITERATURA E CINEMA NO FILME

O filme comea com uma reconstituio do caso Daisy Armstrong atravs de imagens da poca revezadas com as notcias dos jornais (Ilustrao 12). Assim, ficamos sabendo que a pequena Daisy, filha dos Armstrong, foi seqestrada quando dormia; que os bandidos pediram um resgate pela menina; que os pais pagaram a quantia pedida, mas que, mesmo assim, a criana foi morta pelos criminosos. O pblico ainda no sabe, mas este ser o motivo do assassinato de Samuel Ratchett. O livro, no entanto, s apresenta aos seus leitores o caso Daisy Armstrong na pgina 52, quando Poirot consegue reconstituir parte da carta queimada na cabine do morto.

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Ilustrao 11 Determinao do espao-tempo do caso Daisy

Ilustrao 12 Reconstituio do caso Daisy pelos jornais

A explicao disto parece simples. O roteirista tinha no livro um comeo muito fraco se fosse transposto para um filme. Como j disse, o tempo de apreenso de livro e filme diferente. O leitor pode escolher ler um captulo por dia ou o livro todo de uma vez s, por exemplo, mas o espectador senta na poltrona do cinema e v as duas horas de filme de forma contnua. O livro comea com um dilogo entre Poirot e o tenente Dubosc, que esperam o trem para transport-lo a Istambul. A ateno do espectador seria posta prova. Comear o filme com suspense, apresentando um caso chocante, utilizando muito a edio, com cortes rpidos, flashbacks, imagem de jornais e a msica bem marcada ajuda a

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prender a ateno do espectador, mant-lo ligado na telona. No cinema, conquistar a ateno do espectador j nas primeiras cenas importantssimo. Ao contar a histria de Daisy por meio de imagens, foi imperativo ter alguns cuidados. Manter a imagem escura no algo que se deva apenas ao fato de ser noite. Era preciso esconder os rostos dos integrantes do cl dos Armstrong, pois eles sero os suspeitos do crime daqui a algum tempo no filme. Alm de Daisy, as nicas duas pessoas que tm o rosto exposto no incio do filme so os pais, Sonia e Rudolph, que tambm faro parte desta tragdia. Depois de contar a histria de Daisy, o filme d um salto de cinco anos e muda completamente de cenrio, entrando de fato no tempo dos acontecimentos do livro. Essa mudana brusca no espao-tempo informada ao espectador atravs de caracteres (Ilustrao 13), alm da suavizao nas cores. No mais noite o sol brilha forte em Istambul. Agora comea a narrativa do livro propriamente dita. Poirot e o tenente conversam, mas no esto esperando na madrugada a partida de um trem que os levaria a Istambul, como acontecia no livro, mas sim de um barco luz do dia. Essa mudana facilmente explicvel. Como veremos adiante, o filme coloca o prprio Expresso Oriente como um personagem. Seria um contra-senso dividir a ateno do espectador entre dois trens, principalmente porque o nome de um deles est no ttulo do filme.

Ilustrao 13 Mudana brusca do espao-tempo

A nica mudana significativa na trama est logo nesse incio. Os personagens de Mary Debenham e Coronel Arbuthnot j so apresentados de cara como um casal (Ilustrao

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14), o que eles escondem por um bom tempo do detetive. No livro, sugerido aos leitores que os dois tm um caso, mas a suspeita confirmada apenas na penltima pgina. Assim como no livro, os dois escondem a relao o tempo todo, eles se negam a esclarecer a que se referiam quando Mary falou: Agora no. Por favor, no. Quando tudo estiver acabado, quando tudo estiver para trs, ento.... A frase extremamente suspeita e uma importante pista que indica o envolvimento de ambos no crime. No filme, o roteirista inventa uma histria sobre a infidelidade da mulher do coronel e a vontade deste de se casar com Mary para justificar as palavras da inglesa, o que tira das costas de ambos a suspeio.

Ilustrao 14 Beijo entre Coronel Arbuthnot e Mary Debenham

No livro o narrador deixa claro que Poirot ouviu a conversa. No filme, isso foi evidenciado ao inserir um espirro do detetive, como se dissessem espectador, ele estava bem atento e tambm est ciente deste dilogo. Como j vimos, o essencial em uma adaptao usar a linguagem que prpria do cinema para acrescentar alguma coisa ao livro, tornar o filme uma nova obra, com autoria. E aqui que entra o grande trunfo da verso cinematogrfica de Assassinato no Expresso Oriente. Somente com os caracteres, com as palavras escritas impossvel transmitir a imponncia do Expresso Oriente. No cinema, a imagem do trem na estao se preparando para partir, as portas se fechando e o momento em que o farol se acende e o trem comea a funcionar indescritvel. Nada dito, mas a juno de imagens e msica causa um efeito sem igual na literatura.

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s vezes uma imagem to significativa ou bela que pode captar ou iluminar nossa pergunta original: De que trata esse filme? Em Assassinato no Expresso Oriente a tomada do trem deixando Istambul tinha esta caracterstica. Possua todo o mistrio, glamour, nostalgia, ao que eu desejava que todo o filme tivesse. (LUMET, 1998, p. 148)

Por isso, pode-se dizer que o filme se aproveita desses elementos para transformar o prprio Expresso Oriente em um personagem, que resulta naquilo que Lumet chama de clima de nostalgia.

Ilustrao 15 Expresso Oriente na plataforma de Istambul

Ilustrao 16 Expresso Oriente comeando sua viagem a Calais

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Alguns acontecimentos que no filme s fazem parte das verses dos passageiros em seus depoimentos so filmadas assumindo serem verdadeiras. No livro, no h como saber se o que MacQueen e Beddoes descrevem ter ocorrido na ltima vez que encontraram o patro verdade, por exemplo. O filme, porm, opta por apresentar as ltimas horas de vida de Ratchett, como forma de tirar um pouco a trama do ponto de vista do detetive, e tambm de dar um pouco mais de nfase nesse personagem que est com os minutos contados. Para dar algum drama ao filme, o crime foi descoberto pelo prprio Poirot. No livro, o detetive s chamado para ser informado do assassinato e convidado a conduzir as investigaes aps o corpo j ter sido descoberto por outra pessoa. Pelo menos motivo, dramaticidade, a cena em que mostrada a faca usada para matar Ratchett foi filmada primeiramente com um close na arma, e depois um zoom out mostrando quem a segurava, e s depois foi explicado de onde ela surgira. Os depoimentos dos passageiros comeam com 39 minutos de filme e terminam quase uma hora depois. No livro, so 80 pginas de testemunhos, em que basicamente Poirot fica sentado no vago-restaurante ouvindo os passageiros. Poucas vezes ele sai de l. No cinema, procurou-se manter essa estrutura. Em geral, os depoimentos foram filmados em plano mdio, quase o tempo inteiro enfocando as reaes do passageiro ao falar. Para a seqncia de testemunhos no ficar enfadonha demais, no entanto, as cenas do vago-restaurante foram intercaladas com flashbacks da verso de cada passageiro para o que havia acontecido na noite anterior e com imagens do exterior do trem, mostrando como est o processo de liberao dos trilhos. Outra estratgia retirar do vago-restaurante alguns dos depoimentos, como o da princesa Dragomiroff, que foi ouvida em sua cabine por ser idosa. Para pegar o gancho, Poirot ouviu a dama de companhia Hildegarde Schmidt na cabine dela, onde encontrou o uniforme do suposto condutor misterioso. Sendo 80 pginas de depoimentos, natural que muita coisa seja eliminada ou at deslocada para o depoimento de outra pessoa por convenincia. A conduta estranha de Hardman, que ficou a noite espiando pela porta, foi omitida, assim como o pedido de Mrs. Hubbard sueca para conferir se a porta de intercomunicao com a cabine do morto estava trancada ou as vrias referncias existncia de um condutor baixo e com voz afeminada, por exemplo. Outras coisas so adicionadas, como a informao de que Greta Ohlsson havia se tornado religiosa havia cinco anos ou a traio da mulher de Arbuthnot. No filme, a identidade da Condessa Andrenyi s foi revelada na soluo do crime, portanto as suas revelaes sobre o cl dos Armstrong feitas no livro so repassadas para a outra envolvida oficialmente com a famlia: princesa Dragomiroff.

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A soluo do mistrio um momento clssico nas histrias de Poirot. Ele rene todos em uma sala e explica seu raciocnio e o que o levou a crer que aquela era a resoluo do enigma (Ilustrao 17).

Ilustrao 17 Passageiros reunidos para a soluo do mistrio

No livro, a soluo exposta nas ltimas oito pginas. No filme, so pouco menos de 30 minutos, dos quais mais da metade representa um monlogo de Poirot. Para a seqncia ficar mais leve, foram usados flashbacks com os trechos dos depoimentos que o detetive destacava, mas com um ngulo diferente daquele que vimos ao longo do filme. Sidney Lumet explica:
Enquanto ele [Poirot] descrevia os incidentes, as cenas que tnhamos visto antes eram repetidas em flashbacks. Somente agora, porque tinham adquirido um significado melodramtico maior como prova, apareciam na tela de forma muito mais dramtica, vigorosa, gravada em traos firmes. Isto foi conseguido mediante o uso de diferentes lentes. (LUMET, 1998, p. 78)

No livro, quando a soluo apresentada, ns j sabemos que quase todos no trem possuem alguma relao com os Armstrong. No filme, isso s revelado nos ltimos 30 minutos, na soluo do crime, porque o efeito de surpresa seria muito maior assim. Outras tantas revelaes tambm so guardadas para o final, como quem a dona do leno com a letra H, encontrado na cena do crime.

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Assim que escolhido o que ser dito polcia iugoslava, acaba o livro. O filme, no entanto, ainda usa um fechamento, com todos brindando o final feliz dessa histria (Ilustrao 18). Para finalizar com uma imagem marcante, a neve retirada dos trilhos do trem, e nosso personagem Expresso Oriente est livre para seguir seu caminho at Calais.

Ilustrao 18 Condessa Andrenyi e Mrs. Hubbard brindam o final feliz

5.4 A QUESTO DO GNERO NO FILME

Ao se propor a adaptar o mais fielmente possvel um romance policial clssico de Agatha Christie, a equipe de produo de Assassinato no Expresso Oriente teve de observar aquelas regras bsicas do gnero. A seguir, analiso os pontos mais significativos do filme de Sidney Lumet quanto ao gnero.

5.4.1 O ponto de vista da narrativa

Uma das principais caractersticas do romance policial clssico a necessidade de deixar o leitor a par de todas as provas de que o detetive dispe, para que se tenha chance de tambm solucionar o mistrio. Na literatura, isso feito pelo narrador, que acompanha os

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passos do investigador e nos fornece todas as informaes de que precisamos para desvendar o crime, no mais, no menos do que o detetive sabe. No livro, o narrador descreve os acontecimentos seguindo o ponto de vista do detetive, mas sem entrar nos pensamentos de Poirot. No mximo, narra alguma impresso dos personagens quanto aparncia dos outros, como uma forma de introduzir essas pessoas. Todos os personagens so descritos pelos olhos de Poirot, e o prprio detetive descrito pelo olhar de Mary Debenham no primeiro trem. No filme, muitas vezes preciso abandonar o ponto de vista do detetive j que, alm dos flashbacks, h outras cenas sem Poirot. A maior implicao disto que acabamos sabendo mais que o detetive de uma certa forma. Se em uma cena o detetive vira as costas e outro personagem o olha com uma expresso estranha, esta j uma informao que o espectador tem, mas que escapa percepo do detetive. Isso acontece vrias vezes no longa-metragem, como na cena em que MacQueen observa com um semblante preocupado Poirot se afastando. Ou na cena da plataforma, quando dois personagens o condutor e Mrs. Hubbard reagem ao ficar sabendo que Hercule Poirot, o famoso detetive belga, estar no trem com eles. Esse tipo de informao, que o leitor no tem pela falta das imagens, acaba dando pistas demais ao espectador.

5.4.2 A estrutura da narrativa

O livro dividido em trs grandes partes: Os fatos, que narra da sada do primeiro trem at a descoberta da verdadeira identidade de Ratchett; Os testemunhos, que dispe todos os depoimentos dos passageiros; e Hercule Poirot pra para pensar, em que o detetive organiza todas as pistas importantes para a soluo e desvenda o mistrio. O filme tambm separado em trs partes. A primeira termina quando Poirot recusa o caso de Ratchett. A segunda acaba no depoimento de Hardman, e a terceira traz a soluo do mistrio. A primeira parte serve para apresentar os personagens. Foi a maneira que o roteirista achou para lidar com a grande quantidade de personagens que Agatha se referiu anteriormente. Para que o espectador conseguisse ligar o nome da pessoa ao rosto e sua funo na histria se fez necessrio um tempo especialmente dedicado para a explicitao dessas informaes. Quando a segunda parte do filme comea, j houve tempo para o

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espectador se familiarizar com os personagens, o que facilitado tambm pelo nmero de astros no elenco. Eles so apresentados aos poucos. No barco, somos introduzidos ao detetive Hercule Poirot. sempre bom lembrar que nem todo mundo que assiste ao filme est familiarizado com a obra de Agatha Christie ou tem qualquer idia de quem Poirot. As cenas no mar tambm nos apresentam Mary Debenham e Coronel Arbuthnot. Na plataforma do trem em Istambul, somos introduzidos aos personagens de maior destaque: Conde e Condessa Andrenyi, Mrs. Hubbard, Ratchett e o secretrio MacQueen, Princesa Dragomiroff e a damade-companhia Hildegarde Schmidt, e Greta Ohlsson. E a sugesto de que todos no trem conhecem o condutor pelo nome nos apresenta tambm Pierre Michel. Esse um momento em que caractersticas dos personagens so mostradas, como a nacionalidade, por exemplo. Cada um que entra no trem saudado pelo condutor em sua lngua me, o que enfatiza a idia de que no trem h uma mistura de pessoas bem diferentes umas das outras. A apresentao dos personagens continua no vagorestaurante, quando os outros so introduzidos: Cyrus Hardman, Antonio Foscarelli e Beddoes. A seqncia tambm serve para expor mais da personalidade dessas pessoas, atravs de dilogos que no aparecem no livro: a tagarelice insuportvel de Mrs. Hubbard, a realeza de princesa Dragomiroff, a beleza e a notoriedade do casal diplomata Andrenyi, a pomposidade de Beddoes, a extravagncia de Hardman, a latinidade de Foscarelli, a sobriedade de Mary Debenham etc. Quando se aproxima o fim da primeira parte, todos os personagens j foram devidamente assimilados pelos espectadores. A diviso em trs partes evidencia o tratamento que o filme deu narrativa do livro. Mais que isso, mostra claramente que tipo de filme resulta de um romance policial clssico. Observe a seguinte tabela:
00:00:00 a 00:02:00 00:02:00 a 00:34:10 00:02:00 a 00:05:14 00:05:15 a 00:27:24 00:27:25 a 00:34:10 00:27:45 a 01:30:00 00:34:11 a 00:39:12 00:39:13 a 01:30:08 Terceira parte 01:30:00 a 02:01:48 01:30:09 a 01:58:40 01:58:41 a 02:01:48 Tabela 1 Diviso do filme Crditos iniciais Caso Daisy Apresentao dos personagens Noite do crime Descoberta do corpo Depoimentos Soluo Final e crditos finais

Primeira parte

Segunda parte

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Como se pode notar, foram mais de 20 minutos apenas destinados apresentao dos personagens, seja no barco, na estao de Istambul ou no vago-restaurante. Um dcimo do filme foi reservado para fazer com que o espectador se familiarizasse com a grande quantidade de personagens to caracterstica do gnero policial e que pode prejudicar a apreenso do filme se no for bem lidada, como no exemplo j citado de Assassinato em Gosford Park. Os acontecimentos como o crime e a descoberta do corpo, que seriam as partes com mais ao da narrativa, tiveram espao mnimo no filme, como tambm ocorre no romance policial clssico. Os dois acontecimentos juntos no chegam a 12 minutos no longa-metragem. Como a caracterstica do gnero ser extremamente cerebral, a parte destinada aos depoimentos no filme a maior: das duas horas, ocupa quase metade. So mais de 50 minutos em que os personagens descrevem seus passos na noite do crime, que serviro de base investigao. A soluo do crime, tambm muito importante ao romance de detetive, especialmente ao de Poirot, igualmente se estende por longo tempo: quase meia hora. Deste perodo, 17 minutos so destinados apenas ao monlogo do detetive. Essa estrutura respeita com maior fidelidade o gnero policial clssico.

5.4.3 O mundo de Agatha Christie

Sidney Lumet compreendeu logo que, para ter sucesso, seu filme deveria ser capaz de traduzir aquele universo to caracterstico aos livros de Agatha Christie. o que ele chamou de nostalgia romntica de um tempo que ele no conhecia e nem imaginava como seria. o mnimo que se espera da adaptao de uma obra da Rainha de Crime, que tente capturar as sutilezas daquele mundo de glamour e opulncia, mas ao mesmo tempo um mundo de vingana, inveja e no qual o mal no escolhe classe social. Alm de manter a estrutura clssica dos romances policiais de enigma, tambm se fazia necessrio recriar com imagens esse ambiente, essa poca nostlgica que os leitores da escritora inglesa s imaginam, pois poucos tiveram a oportunidade de viv-la. Era fundamental que a caracterizao desse universo fosse o mais precisa possvel, porque esse um dos principais elementos dos livros de Agatha Christie. Alis, essa seria a grande vantagem do filme sobre o livro, a possibilidade de mostrar com sons e imagens esse mundo

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que s descrito por meio de palavras. E dificilmente a imaginao do leitor conseguiria recriar com proximidade esse universo. A prpria equipe de produo se surpreendeu, como contou Lumet:
Tony [Walton, diretor de arte e figurinista] tinha ido Blgica para ver os galpes de depsito de Wagon-Lits, onde os antigos vages [do Expresso Oriente] eram guardados. Ao voltar contou que a realidade era mais glamourosa do que qualquer coisa que ele pudesse conceber. (LUMET, 1998, p. 93)

Por isso mesmo houve muito cuidado e dedicao para que tudo ficasse glamouroso. No foram poupados esforos na direo de arte do longa-metragem. Nas mesas havia prata verdadeira, os assentos dos compartimentos eram de veludo e os painis de vidro eram Lalique.

Ilustrao 19 Opulncia do vago-restaurante

Lumet conta que no encontraram um restaurante suficientemente pomposo para o filme, ento Walton converteu o mezanino de um antigo palcio do cinema em Londres em um restaurante.
Nenhum detalhe foi deixado de lado na criao de um visual glamouroso. Qual creme de menta, o verde ou branco, ficaria mais bonito servido numa bandeja de prata? Ns nos decidimos pelo verde. Para a princesa Dragomiroff, dois poodles franceses ou dois pequineses? Os pequineses. Para uma carroa de verduras na estao de Istambul, repolhos ou laranjas? Laranjas porque tm melhor aparncia quando caem no cho cinza escuro. E assim por diante, Tony, Geoff e eu discutamos longamente e depois decidamos. (LUMET, 1998, p. 94)

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O figurino tambm teve papel importante na composio desse universo to particular. A preocupao do figurinista e do diretor no foi com a verossimilhana das roupas que os astros vestiram, mas apenas com esse comprometimento com a necessidade de glamour. Lumet explica:
Quando Betty Bacall aparece pela primeira vez em Assassinato no Expresso Oriente est usando um vestido de veludo longo, cor de pssego e cortado de vis com chapu e egrete combinando. Jacqueline Bisset, em sua primeira apario, usa um vestido comprido azul de seda, um casaco da mesma cor com gola branca de arminho, e na cabea um minsculo toque com uma pena. Ora, Tony Walton (que fez os figurinos) sabe que ningum toma um trem vestido desse jeito. Mas o que as pessoas vestem no vem ao caso. De fato, o que as pessoas realmente usam quando embarcam num trem a ltima coisa que teramos levado em considerao. O objetivo era lanar o pblico num mundo que ele nunca conheceu criar um sentimento de como as coisas eram glamourosas. Os ttulos de abertura estavam atrelados a isso. Eu filmei pessoalmente o cetim que serviria de fundo para os ttulos. Tony escolheu o estilo das letras. (LUMET, 1998, p. 92)

Os ttulos a que Lumet se refere so os crditos iniciais do filme, em que aparece o elenco e a equipe tcnica, alm do nome da produo. Eles fazem com que o filme parea bem mais antigo do que , prprio da poca em que se passam os acontecimentos do livro.

Ilustrao 20 Crditos iniciais do filme

Ilustrao 21 Crditos iniciais do filme

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Outro elemento que ajuda a dar essa impresso de glamour a trilha sonora. Ela est presente nos momentos mais marcantes do filme, especialmente naqueles que mostram a imponncia do Expresso Oriente. Lumet diz que de todos os filmes que fez, Assassinato no Expresso Oriente foi o nico em que ele gostaria que a partitura brilhasse. Composta por Richard Rodney Bennett, a trilha sonora incentiva a percepo de que o trem mais um dos personagens principais do filme.

5.5 OS PERSONAGENS

A construo dos personagens em adaptaes de obras literrias geralmente um problema, como observamos do captulo anterior. Dificilmente o ator escolhido pelo cineasta corresponde s expectativas dos fs do texto original, pois a liberdade que o escritor d ao imaginrio de quem l faz com que exista uma verso do personagem para cada leitor. Muitas vezes, a escolha equivocada de um ator pode arruinar uma produo. As caractersticas fsicas diferentes ou a interpretao que foge das pginas do livro podem descaracterizar um personagem mundialmente conhecido, causando a ira de fs. No entanto, h ocasies em que os personagens no precisam ser transportados para as telas da maneira que foram descritos no livro. Assassinato no Expresso Oriente viveu esses dois extremos. Enquanto o detetive belga Hercule Poirot exige uma representao/interpretao precisa, os demais personagens foram alterados sem maiores conseqncias para o resultado final do filme. Mary Debenham foi descrita assim:
Era morena, alta e esguia, talvez uns 20 anos de idade. Havia um qu de eficincia na sua maneira de tomar desjejum e no modo de pedir mais caf ao garom, o que revelava seu conhecimento do mundo e das viagens. Usava um traje escuro de viagem, feito de um tecido eminentemente adequado atmosfera aquecida do trem. (CHRISTIE, s.d., p. 12)

Vanessa Redgrave (Ilustrao 22), a atriz que interpretou Mary, alta e esguia, mas era ruiva e tinha a aparncia de uma mulher de trinta e poucos anos. A descrio psicolgica da personagem foi seguida no filme por Vanessa, que acentuou os modos ingleses de Mary.

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Ilustrao 22 Vanessa Redgrave como Mary Debenham

Coronel Arbuthnot era [...] um homem alto de seus 40 ou 50 anos, de figura magra e pele morena, com os cabelos das tmporas embranquecendo. (CHRISTIE, s.d., p. 12) O ator escolhido para interpret-lo, Sean Connery (Ilustrao 23), corresponde bastante com essa descrio. Connery tinha 44 anos na poca e por ser britnico no teve dificuldades com o papel do ingls tpico, que tem averso por estrangeiros.

Ilustrao 23 Sean Connery como Coronel Arbuthnot

Hector MacQueen foi descrito apenas como sendo [...] um americano simptico de uns 30 anos. (CHRISTIE, s.d., p. 18) O papel foi representado no filme pelo americano Anthony Perkins (Ilustrao 24). Agatha no deu muitas instrues sobre o personagem, mas

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o ator perfeitamente se passa por um simptico americano de 30 anos, embora na poca tivesse pouco mais de 40 anos.

Ilustrao 24 Anthony Perkins como Hector MacQueen

O condutor Pierre Michel era [...] um homem alto, amarelado, de meia-idade (CHRISTIE, s.d., p. 20). Jean Pierre Cassel (Ilustrao 25), que interpretou o condutor, corresponde a essa descrio, talvez apenas um pouco mais baixo, mas a principal diferena na transposio do personagem foi a personalidade. No livro, o condutor aparentava ser uma pessoa insegura. Como a pessoa mais humilde entre os suspeitos do assassinato, ele temia ser incriminado. No filme, Pierre era bem mais impassvel e nunca externou o medo de ser preso.

Ilustrao 25 Pierre Michel

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Mrs. Hubbard, ou Linda Arden, foi descrita no livro como [...] uma mulher alta, de rosto agradvel, mais velha, que parecia falar sem parar nem para respirar. (CHRISTIE, s.d., p. 25) Lauren Bacall (Ilustrao 26), atriz que interpretou a personagem, encarnou perfeitamente os maneirismos de Mrs. Hubbard, embora no tenha um rosto agradvel e no aparente ter os 50 anos da poca.

Ilustrao 26 Lauren Bacall como Mrs. Hubbard

Hildegarde Schimdt foi descrita assim: [...] uma senhora de meia-idade, vestida de preto, rosto inexpressivo. Alem ou escandinava [...] Provavelmente dama-de-companhia. (CHRISTIE, s.d., p. 25) Pouco foi informado sobre o personagem, mas tudo que foi dito no livro se encaixa interpretao da atriz britnica Rachel Roberts (Ilustrao 27).

Ilustrao 27 Princesa Dragomiroff (E) e Hildegarde Schmidt

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Princesa Dragomiroff foi descrita como:


[...] uma das senhoras mais feias que j vira. E estranhamente sua feira era mais de fascinar que de repelir. E como se enfeitava! Trazia um colar de prolas enormes que, muito provavelmente, eram verdadeiras. Suas mos estavam cobertas de anis. O casaco de pele caa para as costas, pesado. Um pequenino chapu preto enfeitava-lhe o rosto amarelado. (CHRISTIE, s.d., p. 24)

No livro fica a cargo do leitor construir uma imagem mental de uma mulher to feia que chega a fascinar, mas como o cineasta precisa escolher algum para interpretar o papel, Wendy Hiller (Ilustrao 27) foi a opo. A atriz inglesa tinha 62 anos na poca, mas parecia ter muito mais devido ao trabalho de maquiagem e s prprias caretas que criou para a personagem. O papel da princesa, originalmente, foi oferecido a Ingrid Bergman, que preferiu interpretar Greta Ohlsson (Ilustrao 28). A atriz ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel da sueca, que foi descrita sendo uma senhora [...] alta, de meia-idade, usava uma blusa num padro escocs e saia de tweed. Os cabelos, de um louro esmaecido, estavam arrumados num rolo. Usava culos, e suas feies alongadas, amveis, lembravam uma ovelha. (CHRISTIE, s.d., p. 24) Ingrid tinha quase 60 anos quando filmou Assassinato no Expresso Oriente, mas no parecia. Diz-se que, apesar de ser sueca, a atriz tinha o ingls to bom que enfrentou dificuldades em falar com sotaque de sua lngua me.

Ilustrao 28 Ingrid Bergman como Greta Ohlsson

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Cyrus Hardman, segundo o livro, era [...] um americano corpulento, num terno de cor berrante, possivelmente um caixeiro-viajante. (CHRISTIE, s.d., p. 24) No filme, o personagem foi interpretado pelo ator irlands Colin Blakely (Ilustrao 29), na poca com 44 anos. O figurino correspondeu s descries de Agatha, embora Blakely fosse baixo e magro.

Ilustrao 29 Colin Blakely como Cyrus Hardman

A vtima, Samuel Ratchett, interpretada por Richard Widmark, foi descrita assim:

[...] um homem de uns 60 ou 70 anos que, de perto, tinha o aspecto suave de um filantropo. Cabea ligeiramente calva, testa alta, sorriso mostrando a brancura dos dentes artificiais, tudo indicava uma personalidade benevolente, exceo de uns olhos pequenos, fundos, estudiosos. (CHRISTIE, s.d., p. 18)

Fisicamente, Widmark (Ilustrao 30) se encaixava descrio do personagem. No entanto, a aparncia benevolente do personagem em nenhum momento apareceu. Pelo contrrio, o filme construiu ao redor dele desde o incio o mximo de tenso e antipatia.

Ilustrao 30 Richard Widmark como Samuel Ratchett

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O Conde Andrenyi, vivido por Michael York (Ilustrao 31), conforme o livro [...] usava roupas inglesas de tweed, mas no era ingls. [...] Um belo homem de 30, com um bigode grande. (CHRISTIE, s.d., p. 25) York correspondia descrio fsica de seu personagem e precisou carregar um sotaque hngaro.

Ilustrao 31 Conde e Condessa Andrenyi

J a Condessa Andrenyi, papel da bela Jacqueline Bisset (Ilustrao 31), segundo Agatha Christie:
[...] ainda era uma mocinha vinte anos, mais ou menos. Usava um casaco justo e saias pretas, blusa de cetim branco, um chapeuzinho elegante cado para o lado. Tinha um rosto de estrangeira, bonito, pele muito branca, olhos castanhos, grandes, cabelos muito negros. Fumava um cigarro numa piteira longa. Suas unhas eram cuidadas, compridas, pintadas de vermelho. Usava uma esmeralda sobre platina. Havia coqueteria em seu olhar e na sua voz. (CHRISTIE, s.d., p. 25)

No filme, a personagem no aparenta ser to nova quanto no livro. Na poca, a atriz tinha 30 anos. Seus cabelos eram de um castanho quase ruivo e os olhos, claros. Mas, no geral, a atriz representou o papel de uma estrangeira elitista com sucesso. Nenhuma dessas mudanas influenciou negativamente no filme, tampouco prejudicou o texto original. Assim, os produtores conseguiram comportar o maior nmero possvel de estrelas, sem precisar se preocupar demais com a aparncia fsica. Duas mudanas, porm, chamam a ateno. O diretor da Wagon-Lits, no livro, um belga [...] idoso, atarracado, os cabelos cortados em brosse chamado Bouc. (CHRISTIE, s.d., p. 17) No filme, ele virou um italiano com o nome de Bianchi, vivido por Martin Balsam

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(Ilustrao 32). A explicao mais plausvel para a mudana talvez seja no fazer com que o detetive e o diretor sejam da mesma nacionalidade. Como os dois esto geralmente juntos nas cenas, o natural seria falarem em francs, como acontece no livro. Mas no livro o narrador apenas informa que os dois esto falando francs, e narrativa chega a ns em nossa prpria lngua. Como no cinema isso no possvel, e seria pssimo colocar legendas na fala do protagonista, foi bem mais simples transformar o diretor da linha em italiano.

Ilustrao 32 Martin Balsam como Bianchi

J o valete de Ratchett, que no livro se chama Masterman, tem 39 anos e um [...] plido ingls de rosto inexpressivo [...] (CHRISTIE, s.d., p. 69), no filme foi transformado em um senhor de mais de 60 anos chamado Beddoes, vivido por John Gielgud (Ilustrao 33). Nesse caso, acredito que a explicao tambm seja simples. Masterman foge um pouco do esteretipo do valete, do mordomo ingls. Como aqui a imagem fundamental, e a platia seria constituda por pessoas de todo o mundo, no custava adequar o personagem viso do espectador.

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Ilustrao 33 John Gielgud como Beddoes

Mas se quase todos os personagens em Assassinato no Expresso Oriente so maleveis, h aquele que no pode sofrer nenhuma modificao, sob pena de fracasso: Hercule Poirot.

5.5.1 A construo de Hercule Poirot

J foram muito expostas neste trabalho todas as peculiaridades do detetive de Agatha Christie. Portanto, ficou bem claro que mexer em alguma caracterstica desse personagem proibido em qualquer circunstncia. A no ser que se queira comprar briga com os fs da escritora ao redor do mundo ou gravar o nome da histria do cinema como um herege. O Poirot de Albert Finney tido como o melhor das telonas. Embora o ator tivesse pouco menos de 40 anos ao fazer Assassinato no Expresso Oriente, houve um trabalho rduo de maquiagem para envelhec-lo. Fisicamente, ele se parece muito com as descries de Agatha Christie para o detetive belga, e a prpria escritora admitiu que a interpretao de Finney foi a mais prxima daquela que imaginava para sua criao. S pecou, talvez, em ter interpretado Poirot um pouco efusivo demais. Mas a construo do personagem vai muito alm da aparncia fsica. Algo importantssimo que o filme fez foi explicitar as excentricidades desse belga atravs da insero de algumas cenas curtas. O nico propsito delas dar mais informaes sobre a

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personalidade desse personagem, que uma celebridade da literatura. Cenas como a do vago-restaurante, em que Poirot bebe um licor verde com seus maneirismos; ou aquela em sua cabine, quando est vestido com um roupo extravagante, coloca um protetor para o bigode e passa cremes nas mos para colocar as luvas, tomando cuidado para no sujar as mos com as folhas do jornal. At procedimentos mais simples, como um enquadramento diferente, ajudam a construir esse personagem perante os espectadores. o que acontece na parte final, na soluo do mistrio, quando o doutor Constantine comenta que a presena do detetive teria feito os passageiros mudarem de plano, pois todos conheciam a fama do belga. Isso, naturalmente, era lisonjeiro para Poirot e alimentava seu ego sem tamanho. Para evidenciar isso, a cena foi gravada com o mdico fora de campo no momento em que faz o comentrio, com a cmera parada em um plano aberto do detetive. Assim, possvel ver a reao de satisfao de Poirot por algum evidenciar a sua notoriedade.

Ilustrao 34 Albert Finney como Poirot

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Ilustrao 35 Esquisitices de Poirot

Ilustrao 36 Esquisitices de Poirot

Ilustrao 37 Esquisitices de Poirot

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6 CONCLUSO

Atualmente, o pblico est acostumado a um fluxo de informaes sem igual, rapidez na comunicao, fugacidade das relaes. Est acostumado a apreender informaes atravs de narrativas rpidas e geis, pois no est disposto a perder tempo. As pessoas hoje em dia esto habituadas velocidade, informao fragmentada e tm dificuldade em fixar a mente em apenas uma questo. Estas novas caractersticas que os espectadores assumiram com o tempo talvez expliquem porque o romance policial clssico de Agatha Christie no mais adaptado para o cinema desde o final dos anos 1980, e at porque esse gnero de literatura agoniza, como observam Boileau e Narcejac:
H uns quinze anos, o romance policial est doente, apesar de certas renovaes de aparncia enganosa. O pblico, saturado de cinema, televiso, revistas em quadrinhos, no pensa mais exatamente como o do comeo deste sculo. Ele l muito mais depressa; est habituado s smulas da montagem, aos dilogos eficazes e rpidos, s personagens que compreendemos com um olhar. Pensa mais intuitivamente, mais por associao de imagens do que por encadeamento de idias. Como o romance policial de pura deteco no lhe pareceria lento, pesado e desusado? Se h um mtodo do esprito que se lhe tornou estranho, pelo menos em sua forma consciente, bem o silogismo, que , entretanto, a pea-mestra do raciocnio. Entretanto, ele que, no romance problema clssico, faz progredir, pouco a pouco, a investigao, a intriga e seus lances teatrais. Isso supe uma leitura esmerada, paciente, metdica. O leitor tem a iniciativa, tanto quanto o romancista. H, com efeito, menos a ver do que a compreender. Esse tipo de romance policial um exerccio, no um espetculo. Mas precisamente o pblico de hoje exige antes de tudo o espetculo. Ele quer ficar no somente cativado, mas, que nos permitam a expresso, pasmo. (BOILEAU; NARCEJAC, 1991, p. 77)

A frmula do romance policial clssico no agrada mais aos leitores do incio do sculo 21, como tampouco atraa os leitores do final do sculo 20. Normalmente, para o cinema este no seria um problema to grave, j que ele deve adaptar um texto para sua prpria linguagem que, como vimos, bem diferente da literria, e atualiz-lo. A adaptao cinematogrfica no deve ser avaliada pelas regras do meio literrio. O filme uma obra artstica diferente do livro, portanto livre de exigncias de uma fidelidade rigorosa ao texto original. No entanto, o romance policial clssico um gnero da literatura que exige certos sacrifcios do cinema. Seu efeito depende quase exclusivamente da estrutura da narrativa.

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Portanto, se o cinema quiser realmente retratar uma histria do romance policial clssico deve respeitar algumas regras bsicas do gnero, ou seja, submeter-se ao mundo dos escritores. Este o caso da escritora inglesa Agatha Christie, que criou maneiras muito prprias de escrever o romance policial clssico. Seus livros no abordam apenas uma histria especfica, mas evocam todo um mundo peculiar, de nobres, burgueses e crimes, com muito luxo e futilidades. Ela recriou um universo do qual participou em sua adolescncia, e seus livros no so nada sem ele. No somente isso: as prprias regras do romance policial clssico que escreve so muito definidas, principalmente o de detetive. Como vimos, o tipo de literatura que Agatha escreve d nfase ao raciocnio em detrimento da ao. No a histria de um crime, mas sim a histria da investigao de um crime. E no h como deixar de descrever o passo a passo dessa investigao, porque outra caracterstica do gnero, o leitor-detetive, estaria ameaada. Essa questo ficou explcita na anlise do filme Assassinato no Expresso Oriente, adaptao de 1974 do diretor Sidney Lumet da obra homnima de Agatha Christie, publicada em 1934. O filme segue todos os principais conceitos intrnsecos ao romance policial clssico, logicamente observando as mudanas necessrias para a transposio da linguagem literria para a cinematogrfica. Isso apareceu claramente ao analisar a diviso estrutural do filme em trs partes. Como no romance policial, a adaptao respeitou a natureza racional da narrativa, reservando investigao praticamente metade de sua durao. Da outra metade, quase 50% foi destinada soluo do crime, outra caracterstica bsica das histrias de Poirot. E do restante, a maior parte do tempo serviu para resolver um dos maiores problemas da transposio do gnero para as telas: a grande quantidade de personagens. A ateno considervel que o filme d ao raciocnio faz com que o resultado seja um longa-metragem lento, que no corresponde aos desejos do mercado cinematogrfico. Podemos ir at mais alm. Como foi observado anteriormente neste trabalho, h alguns livros que simplesmente no so bons para serem adaptados. Tudo leva a crer que o romance policial clssico se inclua nesse grupo. O cineasta que se prope a adaptar uma obra de Agatha Christie logo se encontra em um dilema. Se ele quiser que sua obra traga nos crditos o nome da escritora inglesa, precisar respeitar diversas regras e buscar recriar esse universo to caracterstico de seus livros. Caso mude algum elemento dessa estrutura, no estar propriamente adaptando um romance policial clssico e enfrentar a ira de fs por todo o mundo. Esse cineasta no tem a opo, como outros, de reorganizar a obra de origem de um modo a adapt-la e, acima de tudo,

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atualiz-la para as exigncias dos espectadores de sua poca. O romance policial clssico no suporta mudanas estruturais substanciais. Outra razo que fez o cinema abandonar esse gnero de literatura foi seu sucesso na televiso. Nenhum filme conseguiu alcanar uma forma to bem-sucedida de adaptar o romance policial clssico como as sries de televiso fizeram. Essa mdia encontrou uma frmula de transformar a narrativa cerebral do romance policial em linguagem visual e totalmente assimilvel pelo pblico. Tanto que, embora fiquem alguns anos sem serem produzidas, sempre retornam de maneira triunfante. O qu a televiso faz de diferente para conseguir o que o cinema tanto tentou sem sucesso? Bom, esse seria o tema para outro trabalho to ou mais extenso que este. O fato que o tipo de filme que resulta de um romance policial clssico no o que o espectador em geral espera assistir.

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REFERNCIAS

ASSASSINATO em Gosford Park. Direo: Robert Altman. Roteiro: Julian Fellowes. Elenco principal: Charles Dance; Michael Gambon; Tom Hollander; Clive Owen; Ryan Phillippe; Kristin Scott Thomas; Maggie Smith. Reino Unido: USA Films/Capitol Films, 2001. 1 filme (137 min), son, color. 35mm. Ttulo original: Gosford Park. ASSASSINATO no Expresso Oriente. Direo: Sidney Lumet. Roteiro: Paul Dehn. Elenco principal: Albert Finney; Lauren Bacall; Martin Balsam; Ingrid Bergman; Jacqueline Bisset; Jean Pierre Cassel; Sean Connery; John Gielgud; Wendy Hiller; Anthony Perkins; Vanessa Redgrave; Rachel Roberts; Richard Widmark; Michael York. Reino Unido: EMI, 1974. 1 filme (122 min), son, color. 35mm. Ttulo original: Murder on the Orient Express. BLUESTONE, George. Novels into film. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2003. BOILEAU, Pierre; NARCEJAC, Thomas. O romance policial. Traduo Valter Kehdi. So Paulo: tica, 1996. Traduo de: Le roman policier. BRADY, Ben. Principles of adaptation for film and television. Austin: University of Texas Press, 1994. CHRISTIE, Agatha. Autobiografia. Traduo Maria Helena Trigueiros. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. Traduo de: An autobiography. _________. Assassinato no campo de golfe. 11. ed. Traduo A. B. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Record, 1998. Traduo de: Murder on the links. _________. Assassinato no Expresso Oriente. Traduo Archibaldo Figueira. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d. Traduo de: Murder on the Orient Express. _________. Murder on the Orient Express. 2. ed. Nova York: Berkley, 2004. _________. Os relgios. 4. ed. Traduo Carmen Annes-Dias Prudente. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1973. Traduo de: The clocks. CONVEY, Olivia. Suchet pads up for big Poirot role. Evening News, Cambridge, 30 dez. 1999. TV, p. 13.

98

FURTADO, Jorge. Palestra na 10 Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo/RS. 29 ago. 2003. Disponvel em: <http://www.casacinepoa.com.br/port/conexoes/adaptac.htm>. Acesso em: 15 nov. 2006. IDENTIDADE. Direo: James Mangold. Roteiro: Michael Cooney. Elenco principal: John Cusack; Rebecca De Mornay; Clea Du Vall; Ray Liotta; Alfred Molina; Amanda Peet. Estados Unidos: Columbia Pictures/Sony Pictures Entertainment, 2003. 1 filme (90 min), son, color. 35mm. Ttulo original: Identity. JOHNSON, Randall. Literatura e cinema, dilogo e recriao: o caso de Vidas Secas. In: Tnia Pellegrini et al. Literatura, cinema e televiso. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2003. p. 37-59. KNIGHT, Stephen. The golden age. In: PRIESTMAN, Martin (Org.). The Cambridge Companion to crime fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 77-94. LUMET, Sidney. Fazendo filmes. Traduo Luiz Orlando Lemos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. Traduo de: Making movies. MOSCARIELLO, Antonio. Como ver um filme. Lisboa: Presena, 1985. Traduzido de Come si guarda un film. POE, Edgar Allan. Os assassinatos da Rua Morgue e o escaravelho de ouro. Traduo e adaptao Ricardo Gouveia. So Paulo: Scipione, 1988. Traduo e adaptao de: The murders in the Rue Morgue e The gold-bug. PRIESTMAN, Martin (Org.). The Cambridge Companion to crime fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. REDDY, Maureen T. Women detectives. In: PRIESTMAN, Martin (Org.). The Cambridge Companion to crime fiction. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 191-207. REIMO, Sandra Lcia. O que romance policial. So Paulo: Brasiliense, 1983. SOVA, Dawn B. Agatha Christie A to Z: The essencial reference of her life and writings. Nova York: Facts on File, 2000.

99

THE OFFICIAL Agatha Christie Website. Disponvel em: http://www.agathachristie.com. Acesso em: 20 nov. 2006. VAN DINE, S. S. Twenty rules for writing detective stories. Disponvel em: <http://gaslight.mtroyal.ab.ca/vandine.htm>. Acesso em: 20 out. 2006. VANOYE, Francis; GOLIOT-LT, Anne. Ensaio sobre a anlise flmica. 3. ed. Traduo Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1994. Traduzido de: Prcis danalyse filmique. XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construo do olhar no cinema. In: Tnia Pellegrini et al. Literatura, cinema e televiso. So Paulo: Editora Senac So Paulo, 2003. p. 61-89.

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ANEXO A LOCALIZAO DE TORQUAY NO MAPA DA INGLATERRA

Fonte: Google Maps

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ANEXO B OBITURIO DE POIROT NO THE NEW YORK TIMES

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ANEXO C LISTA DOS EPISDIOS DE POIROT DE AGATHA CHRISTIE

Primeira temporada (1989) The Adventure of the Clapham Cook (A Aventura da Cozinheira de Clapham) Murder in the Mews (Assassinato no Beco) The Adventure of Johnnie Waverly (A Aventura de Johnnie Waverly) Four and Twenty Blackbirds (O Caso das Amoras Pretas) The Third-Floor Flat (O Apartamento do Terceiro Andar) Triangle at Rhodes (O Tringulo de Rodes) Problem at Sea (Problema a Bordo) The Incredible Theft (O Roubo Inacreditvel) The King of Clubs (O Rei de Paus) The Dream (O Sonho)

Segunda temporada (1990) Peril at End House (A Casa do Penhasco) The Veiled Lady (A Dama de Vu) The Lost Mine (A Mina Perdida) The Cornish Mystery (O Mistrio da Cornualha) The Disapperance of Mr Davenheim (O Desaparecimento do Senhor Davenhein) Double Sin (O Duplo Delito) The Adventure of the Cheap Flat (A Aventura do Apartamento Barato) The Kidnapped Prime Minister (O Primeiro-ministro Seqestrado) The Adventure of The Western Star (A Aventura do Estrela do Ocidente)

Terceira temporada (1990-1991) The Mysterious Affair at Styles (O Misterioso Caso de Styles) How Does Your Garden Grow? (Que Bonito seu Jardim) The Million Dollar Bond Robbery (O Roubo de um milho de Dlares em Obrigaes do Tesouro) The Plymouth Express (O Expresso de Plymouth) Wasps Nest (A Casa de Marimbondos) The Tragedy at Marsdon Manor (A Tragdia de Marsdon Manor) The Double Clue (O Duplo Indcio) The Mystery of the Spanish Chest (O Mistrio do Ba Espanhol) The Theft of the Royal Ruby (A Aventura do Pudim de Natal) The Affair at the Victory Ball (O Caso do Baile da Vitria) The Mystery of Hunter's Lodge (O Mistrio de Hunters Lodge)

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Quarta temporada (1992) The ABC Murders (Os Crimes ABC) Death in the Clouds (Morte nas Nuvens) One, Two, Buckle My Shoe (Uma Dose Mortal)

Quinta temporada (1993) The Adventure of the Egyptian Tomb (A Aventura da Tumba Egpcia) The Under Dog (Os Planos do Submarino) Yellow Iris The Case of the Missing Will (O Caso do Testamento Desaparecido) The Adventure of the Italian Nobleman (A Aventura do Pobre Italiano) The Chocolate Box (A Caixa de Chocolates) Dead Mans Mirror (O Espelho do Morto) The Jewel Robbery at the Grand Metropolitan (O Roubo das Jias no Grand Metropolitan)

Sexta temporada (1995-1996) Hercule Poirot's Christmas (O Natal de Poirot) Hickory Dickory Dock (Morte na Rua Hickory) Dumb Witness (Poirot Perde uma Cliente) Murder on the Links (Assassinato no Campo de Golfe)

Stima temporada (2000) Lord Edgware Dies (Treze Mesa) The Murder of Roger Ackroyd (O Assassinato de Roger Ackroyd)

Oitava temporada (2001-2002) Evil Under the Sun (Morte na Praia) Murder in Mesopotamia (Morte na Mesopotmia)

Nona temporada (2003-2004) Five Little Pigs (Os Cinco Porquinhos) Sad Cypress (Cipreste Triste) Death on the Nile (Morte no Nilo) The Hollow (A Manso Hollow)

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Dcima temporada (2005-2006) Mystery of the Blue Train (O Mistrio do Trem Azul) After the Funeral (Depois do Funeral) Cards on the Table (Cartas na Mesa) Taken At the Flood (Seguindo a Correnteza)

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ANEXO D REPORTAGEM COM DAVID SUCHET NO EVENING NEWS

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ANEXO E VINTE REGRAS PARA ESCREVER ROMANCES POLICIAIS, DE S.S. VAN DINE

A histria de detetive um tipo de jogo intelectual. E mais um evento esportivo. Para a produo de histrias de detetive h diversas regras definitivas que nunca foram escritas, talvez, mas que so obrigatrias; e todos os escritores de mistrio respeitveis e que se respeitam as cumprem. Abaixo, segue uma espcie de Credo, baseado tanto na prtica de todos os grandes escritores de histrias de detetive, como nas orientaes da conscincia honesta deste autor. 1) O leitor deve ter oportunidade semelhante do detetive para resolver o mistrio. Todas as provas devem ser mostradas e descritas claramente. 2) No deve haver nenhuma tentativa de aplicar truques no leitor a no ser aqueles que forem aplicados legitimamente pelo criminoso no detetive. 3) No deve haver interesse amoroso. A inteno levar o criminoso para a cadeia, e no levar um casal para o altar. 4) O culpado nunca deve ser descoberto sob os lances do prprio detetive ou de um membro da polcia. Seria trapaa to vulgar quanto oferecer a algum uma moeda de um centavo em troca de uma nota de cinco dlares. injusto. 5) O culpado deve ser determinado atravs de dedues lgicas e no por acidente ou confisso espontnea. Resolver um mistrio dessa ltima maneira como mandar o leitor para uma deliberada busca intil, e dizer-lhe, depois de ele ter falhado, que voc tinha o que ele procurava embaixo da manga o tempo inteiro. Esse tipo de autor no nada mais que um brincalho. 6) O romance de detetive deve possuir um detetive; e um detetive no pode ser considerado tal se ele no detecta. Sua funo reunir pistas que iro, eventualmente, levar pessoa responsvel pelo trabalho sujo no primeiro captulo; e se o detetive no chegar a essas concluses por meio das anlises dessas pistas, ele no ter solucionado o problema mais do que o estudante que procura as respostas no final do livro de aritmtica. 7) Um romance policial sem cadver no existe. Acrescentarei at que, quanto mais morto estiver esse cadver, melhor. Fazer ler 300 pginas sem sequer oferecer um assassinato seria mostrar-se exigente demais com um leitor de romances policiais. Afinal de contas, o gasto de energia do leitor deve ser recompensado. Ns, americanos, somos essencialmente

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humanos, e um belo assassinato faz surgir em ns o sentimento de horror e o desejo da vingana. 8) O problema policial deve ser resolvido com a ajuda de meios estritamente realistas. Mtodos para descobrir a verdade, como leitura de bzios, tbuas ouija, leitura de mente, espiritualismo, bola de cristal etc. so tabu. O leitor tem chances de rivalizar com um detetive racional, mas se ele precisar competir com o mundo dos espritos e tiver que percorrer a quarta dimenso da metafsica estar fadado ao fracasso desde o incio. 9) Num romance policial digno desse nome deve haver apenas um nico verdadeiro detetive. Reunir o talento de trs ou quatro policiais para a caa ao bandido seria no somente dispersar o interesse e perturbar a clareza do raciocnio, mas ainda levar uma vantagem desleal sobre o leitor. Se h mais de um detetive o leitor no sabe quem o co-dedutor. como faz-lo participar de uma corrida de revezamento. 10) O culpado sempre deve ser uma pessoa que tenha desempenhado um papel mais ou menos importante na histria, isto , algum que o leitor conhea e o interesse. Acusar do crime, no ltimo captulo, uma personagem que acaba de introduzir ou que desempenhou na intriga um papel completamente insuficiente seria, da parte do autor, confessar sua incapacidade de medir-se com o leitor. 11) O autor nunca deve escolher o criminoso entre o pessoal domstico, tais como criado, lacaio, crupi, cozinheiro ou outros. H nisso uma objeo de princpio, pois uma soluo fcil demais. O culpado deve ser algum que valha a pena. 12) S deve haver um culpado, sem levar em conta o nmero de assassinatos cometidos. Toda a indignao do leitor deve poder concentrar-se contra uma s alma negra. 13) Sociedades secretas, camorras, mfias etc. no tm lugar na histria de detetive. Um assassinato fascinante e realmente bonito estragado irremediavelmente por tal culpabilidade em larga escala. 14) O mtodo do assassinato, e as maneiras de decifr-lo, devem ser racionais e cientficos. Quero dizer que esses dispositivos pseudocientficos e puramente imaginativos no sero tolerados no romance policial. No momento em que o autor entrar no mundo da fantasia, moda Julio Verne, est fora dos limites da histria de detetive, e sim nos domnios da aventura. 15) A fina palavra do enigma deve ser aparente ao longo do romance, contanto, bem entendido, que o leitor seja bastante perspicaz para capt-la. Quero dizer com isso que, se o leitor relesse o livro, uma vez desvendado o mistrio, veria que, em um sentido, a soluo saltava aos olhos desde o comeo, que todos os ndices permitiam concluir pela identidade do

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culpado e que, se tivesse sido to fino quanto o prprio detetive, teria podido descobrir o segredo sem ler at o ltimo captulo. Escusado seria dizer que isso acontece efetivamente com muita freqncia e chego at afirmar que impossvel manter secreta at o fim, e diante de todos os leitores, a soluo de um romance policial bem e lealmente construdo. Portanto, haver sempre um certo nmero de leitores que se mostrar to sagaz quanto o escritor. a, precisamente, que reside o valor do jogo. 16) No deve haver, no romance policial, longas passagens descritivas, no mais do que anlises sutis ou preocupaes de atmosfera. Essas questes no tm papel vital na narrativa do crime nem na deduo. Eles seguram a ao e introduzem questes irrelevantes para a proposta central, que colocar um problema, analis-lo e chegar a uma concluso bemsucedida. As descries devem ser suficientes para delinear personagens e dar verossimilhana ao romance. 17) O escritor deve abster-se de escolher o culpado entre os profissionais do crime. As ms aes dos ladres ou bandidos so do domnio na polcia, e no dos autores e dos mais ou menos brilhantes detetives amadores. Tais crimes graves compem a grisalha rotineira dos comissariados, enquanto um crime cometido por um freqentador assduo de igreja ou por uma velha senhora conhecida por sua grande caridade realmente fascinante. 18) O crime em uma histria de detetive nunca deve se descobrir um acidente ou um suicdio. Acabar uma odissia de investigao com esse anticlmax ferir a confiana e a bondade do leitor. 19) Os motivos de todas as histrias de detetive devem ser pessoais. Compls internacionais e polticas de guerra pertencem a uma outra categoria de fico de espionagem, por exemplo. Mas um romance policial deve refletir as experincias do dia-a-dia do leitor, e fornecer-lhe uma amostra de seus desejos e emoes reprimidas. 20) Finalmente, e tambm para fazer uma conta redonda de pargrafos para este Credo, queria enumerar abaixo alguns macetes aos quais no recorrer nenhum autor que se respeite. So macetes que vimos muito freqentemente e que so, h muito, familiares a todos os verdadeiros amadores do crime na literatura. O autor que os utilizasse faria confisso de sua incapacidade e falta de originalidade. a) A descoberta da identidade do culpado comparando uma ponta de cigarro encontrada no local do crime s que fuma um suspeito; b) A sesso esprita trucada, no decorrer da qual o criminoso, tomado de terror, se denuncia; c) As falsas impresses digitais;

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d) O libi constitudo por meio de um manequim; e) O co que no late, revelando assim que o intruso um familiar do local; f) O culpado, irmo gmeo do suspeito ou de um parente que se parece com ele a ponto de levar a engano; g) A seringa hipodrmica e o soro da verdade; h) O assassinato cometido numa pea fechada, na presena dos representantes da polcia; i) O emprego das associaes de palavras para descobrir o culpado; j) A decifrao de um criptograma pelo detetive ou a descoberta de um cdigo cifrado.

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ANEXO F FOTOS DE FILMES ADAPTADOS DA OBRA DE AGATHA CHRISTIE

Ilustrao 38 Die Abenteuer G.m.b.H, de 1926

Ilustrao 39 The Passing of Mr. Quinn, de 1928

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Ilustrao 40 And then there were none, de 1945

Ilustrao 41 Testemunha de Acusao, de 1957

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Ilustrao 42 Quem viu, quem matou..., de 1961

Ilustrao 43 Ten Little Indians, de 1966

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Ilustrao 44 Ten Little Indians, de 1975

Ilustrao 45 Assassinato no Expresso Oriente, de 1974

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Ilustrao 46 Morte no Nilo, de 1978

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ANEXO G POIROT E VERA ROSSAKOFF EM POIROT DE AGATHA CHRISTIE

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