UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL

A TEORIA DEMOCRTICA ROBESPIERRISTA: DO REPUBLICANISMO CLSSICO DEMOCRACIA SOCIAL

JOSEMAR MACHADO DE OLIVEIRA

ORIENTADOR: PROF. DR. MODESTO FLORENZANO

SO PAULO 2005

2 SUMRIO INTRODUO.......................................................................................................05 PRIMEIRA PARTE uma introduo historiografia do robespierrismo: a identidade Robespierre-democracia....................................................................16 Captulo I: histria e historiografia frente identidade Robespierredemocracia..........................................................................................................................17
I.Robespierre-rei e a reabilitao babovista....................................................................17 II. As correntes historiogrficas e o robespierrismo.........................................................10

Captulo II: as origens do anti-robespierrismo na historiografia da revoluo..............................................................................................................................16

I. Mito e histria..........................................................................................................16 II. Os historiadores da Restaurao: o abb Papon...................................................24 III. Madame de Stal ............................................................................................................27 Captulo III: os historiadores liberais da Restaurao..................................32 I.Thiers........................................................................................................................34 II. Auguste Mignet: o robespierrismo e a Revoluo da multido..............................37 Captulo IV: a historiografia republicana de 1847: Lamartine, Esquiros, Michelet e Louis Blanc..........................................................................................43 I. Alphonse de Lamartine e a normalizao da imagem de Robespierre.................43 II. Alphonse Esquiros e o Cristo-povo.......................................................................50 III. Jules Michelet........................................................................................................55 IV. Louis Blanc e as razes da social democracia......................................................62 Captulo V: a terceira repblica e o robespierrismo: Taine, Aulard e Jaurs....................................................................................................................................68 I.Taine: a rejeio da Revoluo pelo medo..............................................................68 II. Robespierre no contexto do radicalismo de Alphonse Aulard e da consolidao da Terceira Repblica.....................................................................................................73 III.Marx contra Rousseau: a historiografia de Jean Jaurs e o robespierrismo........79 Captulo VI: a historiografia universitria.........................................................88 I. Albert Mathiez..........................................................................................................88 II. Georges Lefebvre:robespierrismo e passadismo................................................91 III. Albert Soboul: histria popular e robespierrismo...................................................96 Captulo VII: dois contrapontos ao robespierrismo da historiografia universitria: Pierre Gaxotte e Daniel Gurin...............................................102 I. Pierre Gaxotte e a persistncia da viso historiogrfica monarquista no sculo XX.............................................................................................................................102 II. Daniel Gurin: uma oposio historiogrfica de esquerda...................................104

3 Captulo VIII: a historiografia revisionista francesa...................................107

I. Franois Furet.......................................................................................................107

SEGUNDA PARTE a teoria da democracia robespierrista: do republicanismo clssico democracia social...............................................115 Captulo I: republicanismo clssico e robespierrismo................................115
I. Republicanismo clssico, liberalismo e Revoluo Francesa...............................115 II. O momento neoclssico.....................................................................................120 III. O culto da Antigidade e o republicanismo clssico.........................................130

Captulo II: Robespierre primeiros tempos: da repblica das letras revoluo republicana........................................................................................135
I. Reforma e Revoluo: de Montesquieu a Rousseau............................................135 II. A repblica das letras e a formao do pensamento pr-revolucionrio robespierrista............................................................................................................144 III. A demofilia de Robespierre ou o quest-ce que le peuple robespierrista............158 IV. Da demofilia democracia: o encontro com Jean-Jacques...............................166 Captulo III: o terico do princpio democrtico............................................173 I. Os dois momentos maquiavelianos de Maximilien Robespierre.........................173 II. Democracia, republicanismo e forma de governo republicano na viso do robespierrismo..........................................................................................................197 III. A rejeio da democracia absoluta e do despotismo representativo..................213 Captulo IV: do republicanismo clssico democracia social...............................219 I. O robespierrismo frente liberdade: a liberdade como igualdade perante a lei e a liberdade como igualdade atravs da lei..................................................................219 II. A liberdade como igualdade perante a lei............................................................231 III. A liberdade atravs da lei: a economia poltica popular e a reciprocidade entre o direito de propriedade e o direito existncia..........................................................255 IV. A liberdade atravs da lei: a idia de fraternidade e as antecipaes da democracia social................................................................................................................275 CONSIDERAES FINAIS.......................................................................................306 FONTES E BIBLIOGRAFIA......................................................................................306 Fontes.....................................................................................................................306 Bibliografia.........................................................................................................................308

Only this is certain, that he (Robespierre) remains the most hateful character in the forefront of history since Machiavelli reduced to a code the wickedness of public men. Lord Acton1 For while he (Robespierre) was intellectually and apparently to a contain extent emotionally committed to Rousseaus doctrine on this as on other subjects, he was much more deeply and emotionally committed to the Revolution; which, like all revolutions had a way of devouraty its children intellectually, as well as physically. Gordon H. McNeil2 No fundo, h duas maneiras de nada compreender do personagem histrico Robespierre: ou detestar o indivduo ou celebr-lo. Franois Furet3 A repblica vinha efetivamente de ser proclamada na primeira sesso da Conveno. Dos setecentos e quarenta e nove homens que, em 21 de setembro de 1792, reuniram-se nessa pequena sala das Tulherias, na qual iriam ser votados tantos funerais, quo poucos deveriam retornar terra natal! Ah! sabemos hoje, e eles mesmos o pressentiam: eles se reuniam sob a presidncia da morte! Mas e o grande carter dessa poca estranha para ningum ento a conservao da vida era o objetivo da vida. Blanc, Louis4

ACTON, John Edward Delberg, dito Lord. Lectures on the French Revolution. London, Macmillan, 1910. P. 300. 2 McNEIL, Gordon H. Robespierre, Rousseau and representation . In: HERR, R. e PARKER, H. T. (dir.) Ideas in History. Essays presented to Louis Gottschalk by his formers students . Durham, Duke University, 1965. P. 156. 3 FURET, Franois. Penser la Rvolution franaise. Paris, Gallimard, 1983. P.87. 4 BLANC, Louis. Histoire de la Rvolution franaise. Paris, Docks de la Librairie, s/d. p. 39.

5 INTRODUO
Machado de Assis, em seu conto Suje-se gordo!5, nos oferece, a despeito desse conto se passar durante o Segundo Reinado, o que pode ser considerado um verdadeiro comentrio da histria da futura repblica brasileira comentrio que os dias que correm no desmentem, ao contrrio. Nesse conto, o nosso maior escritor narra a histria de um personagem que tinha sido membro do tribunal do jri algumas vezes e de quem se poderia dizer que possua uma certa virtude republicana. Dizendo-se contrrio ao sistema de jurados, pois no gostava de julgar ningum lembrava sempre o preceito do Evangelho: no queirais julgar para que no sejais julgados o personagem em questo afirmava que, das vezes em que tinha participado do tribunal do jri, em apenas duas delas votara pela condenao dos rus. Nessas duas vezes, o primeiro julgamento tinha sido de um jovem acusado de ter roubado duzentos mil ris, e a maioria dos jurados o acompanhara na condenao do ru. A segunda vez foi o julgamento de um ru, caixa do Banco do Trabalho Honrado, que tinha roubado cento e dez contos de ris. Nesse julgamento, ao contrrio do nosso personagem, a maioria dos jurados pronunciara-se pela absolvio do ru. Moral da histria: o suje-se gordo! do ttulo justamente a idia de que se algum vai se sujar por roubar que ento suje-se por muito, pois, alm da vantagem de roubar muito, ainda h a possibilidade de se obter a absolvio. Como se pode ver, numa sociedade com essas caractersticas, a qual ainda era a sociedade escravagista do Imprio, a lei sofria muitas das tores que a riqueza e as relaes de compadrio e de clientela podiam perpetrar e que a repblica que nasceria desse contexto no conseguiria eliminar. Tal regime republicano certamente no seria o regime no qual todos esto submetidos lei e no qual todos so iguais perante ela, mas sim um regime dito quase por antfrase republicano, na medida em que esse regime o regime em que uns so mais iguais do que os outros e em que a lei pode ou no pode pegar. Esse regime , na verdade, aquele em que o mais fraco, no dependendo s da lei, no consegue evitar as cadeias da dependncia pessoal e, portanto, o tambm o da privao do exerccio pleno da cidadania, numa palavra, da liberdade.

MACHADO DE ASSIS, Jos Maria. Suje-se gordo! In: Obra completa. So Paulo, Editora Nova Aguilar, 1986. Vol. II, p. 694-698.

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Outra foi a trajetria do republicanismo francs no sculo Ilustrado e durante o processo histrico de 1789. Nessa trajetria nos defrontamos justamente com um projeto poltico que visava abolir as dependncias pessoais e instaurar aquilo que se considerava ser o instrumento mais eficaz para isso, o reino imparcial e impessoal da lei6. E aqui nos vm lembrana a clebre passagem do Emlio, em que Rousseau resumia as bases desse projeto. Tratando do que ele chamava as duas espcies de dependncia: a das coisas, que da natureza; a dos homens, que da sociedade, Rousseau observava:
A dependncia das coisas, no tendo nenhuma moralidade, no nociva liberdade e no engendra vcios; a dependncia dos homens, sendo desordenada, os engendra todos. E por ela que senhores e escravos se depravam mutuamente. Se h meio de remediar a esse mal na sociedade, substituir a lei ao homem, e armar as vontades gerais com uma fora real, superior ao de qualquer vontade particular. Se as leis das naes pudessem ter, como as da natureza, uma inflexibilidade que nunca nenhuma fora humana pudesse vencer, a dependncia dos homens retornaria aquela das coisas; reunir-se-iam na repblica todas as vantagens do estado natural s do estado civil; juntar-se-ia a liberdade, que mantm o homem isento de vcios, moralidade que o eleva virtude7.

Leitores atentos de Rousseau e do seu Emlio, os robespierristas fizeram do republicanismo rousseausta e de sua concepo de lei um verdadeiro programa, como se pode ver no texto deixado indito por Saint-Just, os seus Fragments dinstitutions rpublicaines. Nesse texto, o enfant terrible defendia como fundamento da nova sociedade francesa que se deveria dar a todos os franceses os meios de obter as primeiras necessidades da vida, sem depender de outra coisa que no das leis e sem dependncia mtua no estado civil8. Anos antes de Saint-Just conceber as idias contidas em suas Instituies republicanas, Robespierre j tinha delineado os elementos fundamentais desse programa no momento em que atuava como deputado pelo Artois aos Estados Gerais. O advogado de Arras foi, assim, a figura central de um processo histrico em que emergiu o primeiro projeto poltico republicano-democrtico dos tempos modernos. Lanados no centro de uma revoluo conduzida pelas classes mdias da sociedade francesa, os robespierristas defenderam um conjunto de idias que seria encarado pela

SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 1770 1830. Paris, Vrin/EHESS, 2000. P. 17. 7 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emlio, ou da educao. 3a ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995. P. 68-69. 8 SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. Fragments dinstitutions rpublicaines. In: euvres Compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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historiografia revolucionria como uma variante do pensamento burgus em poca de revoluo. E isso, como veremos, tanto por parte da tradio universitria dessa historiografia quanto por seus opositores. Contudo, essa no era a percepo dos movimentos polticos que marcaram a histria da Frana desde a Monarquia de Julho (1830-1848). Com efeito, a partir dessa poca, a histria do sculo XIX na Frana foi caracterizada por uma longa luta pela instalao da repblica democrtica, o que o jargo da poca chamava de a una e indivisvel, acompanhando a tradio da linguagem poltica revolucionria. Aqueles que tomaram parte nessa luta os dmoc.soc de 1848 e os seus antecessores durante a Monarquia de Julho, assim como os que levaram adiante o republicanismo durante o Segundo Imprio (1851-1870) tambm se viam como oponentes tanto das sempre presentes vozes do Antigo Regime como das tendncias polticas liberais. Ao mesmo tempo, esses homens viram na Revoluo de 1789, nos jacobinos e na Repblica do ano II o passado dileto ao qual se identificavam e no fazia referncia a outra coisa um dos lderes da Terceira Repblica, Georges Clemenceau, com a expresso de que a Revoluo era um bloco e que, portanto, devia-se aceit-la como um todo. Desse modo, mesmo tendo sido derrotado no curto prazo, os robespierristas ajudaram a deslegitimar o monarquismo na Frana e a pavimentar // o caminho para a emergncia do moderno republicanismo, a cultura poltica da Terceira Repblica9. Tal percepo que os homens do sculo XIX tiveram da especificidade do republicanismo francs frente a outras tradies polticas, analisada de forma notvel pelos trabalhos de Claude Nicolet10, no foi muito considerada nos estudos dedicados especificamente Revoluo Francesa. Nem mesmo quando o paradigma do humanismo cvico, originalmente desenvolvido por Hans Baron em suas anlises do pensamento poltico florentino da Renascena, foi utilizado para o estudo da histria inglesa e da Independncia Norte-Americana e, dessa forma, parecia confirmar aquela especificidade em outras paragens. Nossa tentativa, portanto, foi estender aos estudos da Revoluo o modelo interpretativo do humanismo cvico ou republicanismo clssico que teve na obra pioneira de

WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably. Stanford, Stanford University Press, 1997. P. 209. Grifado no original. 10 Cf. seus trabalhos: Lide rpublicaine en France (1789-1924). Essai dhistoire critique. Paris, Gallimard, 1982 e La rpublique en France: tat de lieux. Paris, Gallimard, 1992.

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Hans Baron seu marco inicial. Devemos lembrar que o grande estudioso alemo foi o primeiro a usar a noo de humanismo cvico em seus escritos, particularmente em sua obra The crisis of the early Italian Renaissance. Tal vertente do humanismo implicava, nas palavras de Baron, numa nova filosofia do engajamento poltico e da vida ativa 11, o que fazia com que essa tradio concentrasse seu discurso poltico no sobre //, a razo, o contrato e o mercado, mas sobre a virtude e a corrupo da politia, o poder e a liberdade dos cidados e o perigo dos exrcitos permanentes12. Nessa perspectiva, a histria da Revoluo Francesa pode reivindicar, a nosso ver, mais do que qualquer outro episdio das revolues atlnticas, o mrito de ser estudada como o ltimo ato do Renascimento13. Assim, a leitura do pensamento poltico robespierrista com base na tradio do republicanismo clssico ou humanismo cvico, alm de nos permitir entender melhor sua especificidade frente a outras correntes polticas, tambm nos permitiu entender a formulao da linguagem dos direitos sociais no contexto revolucionrio como uma transformao nos contedos do paradigma cvico-humanista, as quais levaram o robespierrismo a conceber o regime republicano como democrtico e social. Para alcanarmos esses objetivos nossos estudos se concentraram na formulao da noo de robespierrismo ao invs da de jacobinismo, assim como tambm se concentraram mais na teoria democrtica robespierrista do que na sua teoria revolucionria. Esse recorte, portanto, coloca em questo o sentido mais freqente do jacobinismo. Para que possamos entender melhor essa questo devemos lembrar que o jacobinismo, como bem demonstraram vrios historiadores, a comear por Michelet14, variou de momento a momento durante a

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BARON, Hans. The crisis of the early Italian Renaissance. Civic humanism and republican liberty in a age of classicism and tyranny. Princeton, Princeton University Press, 1966. P. 459. 12 FLORENZANO, Modesto. Repblica (na segunda metade do sculo XVIII-histria) e republicanismo (na Segunda metade do sculo XX-historiografia). In: SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda e GOUVEIA, Maria de Ftima Silas. (Orgs.). Culturas polticas: ensaios de histria cultural, histria poltica e ensino de histria. Mauad/Faperj, Rio de Janeiro, 2005. P. 45-66. 13 Lembramos aqui a observao de Joyce Appleby de que a Revoluo Norte-Americana, a partir do surgimento do livro de John Pocock Momento maquiaveliano, deveria ser vista menos como o primeiro ato poltico do Iluminismo revolucionrio e mais como o ltimo grande ato do Renascimento . Citada em: FLORENZANO, Modesto. Opus cit. P. 16. 14 MICHELET, Jules. Histoire de la Rvolution Franaise. Paris, Gallimard (Pliade), 1952. T. I, p. 52. Para um comentrio sobre a questo, ver: SOBOUL, Albert. Utopia e Revoluo Francesa. In: DROZ, Jacques. Historia geral do socialismo. Lisboa, Livros Horizonte, 1977. P. 277. Mesmo que usssemos as observaes de Vovelle, mudando os contedos das inflexes do jacobinismo da poltica nacional para contedos mais sociolgicos, isso no modificaria nosso ponto-de-vista sobre o robespierrismo. Cf. VOVELLE, Michel. Jacobinos e jacobinismo. Bauru, EDUSC, 2000. P. 35.

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Revoluo. Houve, assim, trs momentos principais na histria do jacobinismo: o jacobinismo inicial, de 1789, que agrupava desde nobres liberais at a pequena burguesia; o jacobinismo misto de Brissot e de Robespierre, de 1791, e, por fim, o jacobinismo dominante de Robespierre e seus companheiros, de 1793. Contudo, o termo jacobinismo acabou adquirindo um sentido mais vulgar, do qual tratam mais freqentemente os livros de histria da Revoluo Francesa e que se refere ao sentido que a prpria histria posterior ao 9 de termidor deu ao termo, ou seja, o significado desse ltimo momento, quando da preeminncia dos robespierristas. Fazendo uso desse sentido, o estudioso do jacobinismo acabava por confundir o robespierrismo quase que exclusivamente com seu momento terrorista, perdendo de vista toda sua trajetria anterior15. Portanto, para um trabalho que faz uso do modelo interpretativo do republicanismo clssico, nada mais natural do que seguir as sugestes metodolgicas da historiadora italiana Ana Maria Battista16 como tentativa para sair dos limites estreitos que a noo de jacobinismo submete os estudos robespierristas. Assim, nosso recorte teve por base a sugesto dessa historiadora de que os estudos sobre Robespierre muito ganhariam se deslocassem a ateno do terico do governo revolucionrio para o terico do princpio da democracia, o que implica questionar e mesmo negar uma relao de causa e efeito entre as duas teorias. Como afirma uma voz oposta tradio historiogrfica que seguimos, a repblica segundo Robespierre, ao menos quando ele evoca seu contedo material, no estabelece nenhuma relao evidente, e a fortiori necessria, com o Terror. No vemos em que o Terror seria necessrio sua instituio ou mais tarde sua manuteno17. Estabelecida dessa forma, a relao entre jacobinismo e robespierrismo contraria a sugesto do historiador norte-americano Johnson Kent Wright de que a histria do

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O nosso propsito, ao nos afastarmos da noo mais usual de jacobinismo em benefcio da noo de robespierrismo, era permitir dar toda centralidade a teoria democrtica robespierrista, ao mesmo tempo em que isso permitiria separar esta teoria de sua teoria revolucionria. Certamente que para dar consistncia a essa noo preciso incluir, alm do prprio pensamento poltico de Robespierre, claro, tambm o de alguns companheiros e colegas do Comit de Salvao Pblica e da Conveno, principalmente, Saint-Just e, de certa forma, mesmo Billaud-Varenne, se conseguirmos deixar de lado a anlise dos conflitos pessoais entre ele e Robespierre e nos concentrarmos apenas no estudo do seu iderio poltico. 16 Cf. infra, segunda parte, captulo II. 17 GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence revolutionnaire 1789-1794. Paris, Fayard, 2000. P. 320. Testemunho da mesma tradio e com o mesmo raciocnio o caso de Bronislaw Bacsko, segundo quem // a Revoluo no se reduz ao Terror, da mesma forma que o papel de Robespierre no se reduz quele de um terrorista //. Cf. seu Cf.: Comment est fait un tyran Thermidor et la lgende noire de Robespierre. In: Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 53-54.

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humanismo cvico na Frana deveria mudar sua ateno da teoria da poltica para sua prtica, na medida em que os primeiros anos da Revoluo teriam visto a incubao de um novo tipo de republicanismo clssico, mais popular e democrtico do que o de Rousseau e de Mably. Esse historiador atribui tal incubao, entre outras razes, falta de uma liderana revolucionria, ao cancelamento da legitimidade monrquica no episdio de Varennes e ao incio da guerra. Todo esse processo levou ao estabelecimento de uma terceira grande fase na histria do republicanismo clssico na Frana (depois das fases de BoulainvilliersMontesquieu e Rousseau-Mably), essa fase se confundiria com o jacobinismo do ano II (1793-94) e consagraria o que pode ser chamado de um republicanismo unidade-teoria-eprtica18. Como o leitor poder notar ao longo desse trabalho, tentamos demonstrar que a formulao desse humanismo cvico mais popular no esteve ligada ao paroxismo da crise revolucionria, isto , aos acontecimentos que colocaram em xeque a possibilidade de conciliao entre a monarquia e a Revoluo. Tal humanismo cvico foi consubstancial a prpria evoluo do pensamento poltico robespierrista, da passagem do que chamamos sua demofilia pr-revolucionria para sua defesa da democracia, defesa essa abraada desde os primeiros momentos da Revoluo19. Desse modo, no caso do robespierrismo, sua relao com o que Kent Wright chama de prtica // a desconfortvel coalizo entre as elites intelectuais e polticas e sua tropa de choque pequeno-burguesa, o triunfante [prosecution] processamento da guerra e no menos bem sucedida direo da economia, o recurso aos grandes festivais pblicos da poca e o fatal recurso ao Terror20 veio se juntar a uma teoria que vinha sendo desenvolvida ao menos desde 1789 e que mesmo quanto ao axioma sobre o qual se apoiaram as medidas revolucionrias, a idia de salvao publica, j tinha sido tematizado muito cedo na trajetria revolucionria de Robespierre. E como explicar ento a defesa to radical desse recurso ao Terror da parte de algum que foi considerado por vozes to insuspeitas E como encaixar, ento, na trajetria revolucionria do nosso personagem a defesa to radical desse recurso ao Terror, trajetria esta de algum que foi considerado por vozes to

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KENT WRIGHT, Johnson. Opus cit. P. 205. Cf. infra, p. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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insuspeitas um dos maiores profetas da democracia ou o primeiro a defender a soberania popular, um dos princpios que modelaram o curso da civilizao21? Essa pergunta certamente no encontra respostas fceis, muito menos a respondem as simplificaes da legenda negra de Robespierre. Ademais, nas pginas do nosso trabalho, o leitor no vai encontrar uma tentativa de respond-la, na medida em que nosso trabalho trata basicamente da teoria democrtica robespierrista e a discusso sobre o terror a s entra quando tentamos demonstrar a autonomia entre uma coisa e outra. Por essa razo, algumas palavras precisam ser ditas antes de finalizarmos esta introduo. A justificativa para o recurso ao Terror durante a Revoluo, em boa medida, esteve ligada idia de salvao pblica que, por sua vez, emergiu em contextos diversos da histria do republicanismo, na poca de Ccero at a de Montesquieu e Rousseau. E esse foi o caso principalmente do momento maquiaveliano. Como observa Ana Martnez Arancn22, o Prncipe se integra estruturalmente nos Discursos, compondo a anlise do funcionamento da repblica, objetivo principal dos Discursos, a necessidade de analisar tambm sua instituio e conservao, tarefa contida quase exclusivamente nas anlises do Prncipe. Poderamos dizer, com outras palavras, que quem quer que escolhesse defender a transformao da monarquia em repblica, o que, em 1789, no significava passar do absolutismo para a democracia, mas sim fazer a passagem que do ponto de vista de nossa poca atual considerada moderada e necessria da monarquia de direito divino para uma monarquia constitucional passagem que os prprios membros noirs da Constituinte entendiam como uma republicanizao da monarquia, j que muitos deles eram conhecedores da polissemia da palavra repblica23 devia se preparar para fazer uma revoluo e, portanto, para o uso, em alguma medida, da violncia. Se que a tentativa de fazer essa passagem pudesse ser objeto de uma escolha!

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KENT WRIGHT, Johnson. Opus cit. P. 205. Respectivamente Robert Palmer e Alfred Cobban. Ver infra, p. 320 e nota 924. 22 Cf. ARANCN, Ana Martnez. Introduo. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre la primera dcada de Tito Livio. Madrid, Alianza Editorial, 2000. P. 09-10. 23 Certamente muitos deles tinham em mente a famosa classificao de repblica de Rousseau: todo Estado regido por leis, sob qualquer forma de administrao que possa conhecer, pois s nesse caso governa o interesse pblico e a coisa pblica passa a ser qualquer coisa. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro segundo, captulo VI, p. 61.

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Dessa forma, parece estranha a questo que veio tona durante os debates do bicentenrio da Revoluo de que nenhum ideal justificaria a morte de uma pessoa24. Certamente colocar essa questo hoje em dia faz todo sentido, mas coloc-la como uma opo para os homens de 1789 , no mnimo, um anacronismo. Quem quer se proponha partir de uma tal questo hoje em dia para entender o que aconteceu naquela poca se esquece que ns e no aqueles homens podemos ter em mente as palavras do escritor russo Alecsandr Herzen um filo-jacobino e combatente pela mudana do regime czarista o qual, a propsito da violncia da Revoluo Francesa e sua possvel utilidade na Rssia da segunda metade do sculo XIX, observava que o Terror dos anos noventa no pode se repetir, ele tinha a pureza ingnua da ignorncia, a f incondicional na justia e no sucesso que os terrores ulteriores no podem mais ter 25. Desse modo, foi por meio da idia da salvao pblica que o terror fez sua entrada na teoria revolucionria. O terror propriamente dito teve por causa indutora a violncia popular, a qual, por sua vez, emerge por meio do medo que explode no vero de 1789. Medo generalizado combinado com a vontade punitiva, faces da mesma moeda, que reproduzem um quadro tpico do Antigo Regime, das violncias dos motins da fome e de um cotidiano em que a morte era presena obrigatria, como nos lembram Maurice Agulhon e Michel Be 26. A revoluo nesse ponto, infelizmente, no inova, estando em continuidade com o Antigo Regime, como nos lembraram Babeuf, Madame de Stael e Tocqueville. Esse primeiro terror tomou a forma de uma reao defensiva que gera // a produo de um sistema mtico de explicao da ameaa que se sente, o qual fornece tanto os meios de um discurso legitimador quanto aqueles da ao prpria a superar o perigo e reconstituir a unidade da comunidade, condio necessria sua salvao27. Essa exigncia de salvao pblica foi todo o problema do estado de direito em vias de (re)constituio em 1789, pois

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Cf. KAPLAN, Steve. Adieu 89. Paris, Fayard, 1993. P. 82. HERZEN, Alecsandr. Citado em: KONDRATIEVA, Tamara. Bolcheviks et jacobins. Itinraire des analogies. Paris, ditions Payot, 1989. P. 45. 26 O lado embaraante, provocante, exibicionista do cadafalso em praa pblica era recebido com mais naturalidade nas mentalidades rudes desses tempos longnquos do que poderia ser em nossos dias, em que a exibio excitante nos revolta quase tanto quanto a prpria execuo. AGULHON, Maurice. Histoire vagabonde II. Idologies et politique dans la France du XIXme sicle. Paris, ditions Gallimard, 1988. P. 268. BE, Michel. Le spetacle de lxecution sous lAncien Rgime. Annalles E.S.C., juillet-aot de 1983. 27 MAZAURIC, Claude. Terreur. In: SURATTEAU, Jean-Ren e GENDRON, Franois. (dir.) Dictionaire historique de la Rvolution franaise. Paris, PUF, 1989. P. 1020. Grifado no original.

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implicava em conciliar as medidas de exceo e a proteo das pessoas e dos bens. Desse modo,
// a questo da necessidade do terror se encontrava consubstancialmente colocada no somente no Contrato social tornado a referncia comum, mas concretamente, desde as primeiras manifestaes de reao como de violncia revolucionria de abril a outubro de 1789, depois no momento da tentativa da fuga de Louis XVI, enfim desde junho de 1792 28 no momento dos primeiros revezes dos exrcitos franceses.

Durante todo esse perodo Robespierre foi consciente dessas questes e desenvolveria pari passo com sua teoria da democracia sua teoria revolucionria. De fato, muito antes de pronunciar sua famosa apstrofe aos girondinos cidados, quereis uma revoluo sem revoluo29, ele j tinha esboado uma verdadeira teoria do governo revolucionrio e das medidas de salvao pblica. Todavia, o sentido comezinho dessa teoria teve a concordncia de vrios integrantes da burguesia revolucionria, entre eles, Antoine Barnave e Madame Roland, que concordaram tambm quanto a seus efeitos prticos. Por outro lado, tais efeitos, o derramamento de sangue provocado pelos motins populares nos incios da Revoluo a propsito dos quais Barnave tambm cunhou uma famosa apstrofe, o sangue que acaba de correr era, pois, to puro30 e, mais tarde, a lei dos suspeitos, s adquiriram a dimenso trgica que conhecemos bem depois do momento inicial em que sua justificao foi esboada teoricamente, quando o processo de deslegitimao da monarquia, a partir da fuga do rei em junho de 1791, e a guerra interna e externa colocaram fora de questo qualquer tentativa de conciliao. A derrubada da monarquia e a ameaa de invaso estrangeira durante o vero de 1792 fez com que houvesse uma nova escalada na violncia revolucionria, o que levou ao enquadramento pelas autoridades pblicas do terror poltico31. Comeava assim uma nova fase, o terror deixava de ser espordico e passava a ser o Terror institucionalizado. Nesse ponto, gostaramos de enfatizar dois aspectos para concluir a relao do robespierrismo com o Terror. Em primeiro lugar, ao colaborar, tanto teoricamente quanto na prtica, para que a Revoluo entrasse nessa nova fase, em nada Maximilien se diferenciava de seus colegas,
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Idem, ibidem. Grifado no original. Cf. infra, p. 195.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 30 Citado em: GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence revolutionnaire 17891794. Paris, Fayard, 2000. P. 64. 31 MAZAURIC, Claude. Opus cit. P. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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fossem eles os seus adversrios girondinos ou seus colegas montanheses, daqueles que defenderam o terror por clculo ou por princpio. Contudo, como veremos32, mais do que qualquer outro revolucionrio, ele foi o alvo de uma verdadeira legenda negra, o que obscureceu sua participao nos acontecimentos mais trgicos durante o ano II. Alm disso, ele era o mais visvel na defesa da institucionalizao do terror. Como observa David Jordan,
no caso de Robespierre foram suas palavras que criaram sua demonaca reputao mais do que seus feitos, os quais foram consideravelmente menos horrveis do que os daqueles de vrios colegas. Mas ele falou to freqentemente, to bem, e to ferozmente sobre o Terror que fazendo isso ele preparou sua prpria condenao. Ele era um fcil e bvio (e necessrio) alvo.33

Em segundo lugar, preciso levar em conta o prprio carter do nosso personagem para entender, em parte, sua aceitao da escalada terrorista. A imagem que sincera e profundamente ele construiu de si mesmo era de uma pessoa que deveria viver de acordo com os mais puros princpios cvicos, o que implicava num devotamento total a causa e ao bem pblicos. este um dos significados da expresso de Hegel de que o advogado de Arras tomou a virtude a srio34. Em seu caso, isso significou estabelecer um padro de comportamento para o representante do povo de que este no podia errar35, padro este que poucos podem atingir, se que algum o possa. Tal caracterstica, no contexto de um processo poltico to radicalizado como foi o caso da Revoluo depois da queda realeza em 1792, acabava por levar, nas palavras de Georges Lefebvre, a uma // dureza impiedosa para com os traidores //36. Foi a esse respeito que Michelet produziu sua ironia cruel de que de desconfiana em desconfiana, ele acabaria por guilhotinar a si mesmo37. Certamente, ele no era capaz de entender que at a virtude precisa de limites, como Montaigne e Monstesquieu sabiam!38 Uma palavra final quanto organizao do nosso texto.

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Cf. Primeira Parte, captulo I. JORDAN, David P. The revolutionary career of Maximilien Robespierre. Londres, Collier Macmillan, 1985. P. 183. 34 Ver infra, p. 239. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 35 Foi isto que o convencional Joseph-Dominique Garat registra em suas memrias. Ver infra, p. 186. 36 LEFEVBRE, Georges. La Rvolution franaise. 7a ed. Paris, PUF, 1989. P. 408. Edio brasileira, p. 356. 37 MICHELET, Jules. Histoire de la Rvolution Franaise. Paris, Gallimard/ditions de la Pliade, 1952. Le tyran. 38 Ver infra, p. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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Organizamos o texto em duas partes. A primeira parte tem como eixo a identidade Robespierre-democracia, na qual repertoriamos a historiografia do robespierrismo, norteada quase sempre de acordo com a aceitao ou rejeio pelo historiador da opo incondicional feita por Robespierre da democracia. Ao mesmo tempo, buscamos fazer nessa parte um apanhado da formao da legenda robespierrista, de sua representao histrica e de como se desenvolveu, sobretudo a partir de Lamartine, uma historiografia sobre o robespierrismo menos preocupada com os tabus e mais com o debate dos fatos e das idias. A segunda parte do nosso trabalho trata do robespierrismo propriamente dito, passando por uma anlise do republicanismo clssico ou humanismo cvico durante o sculo Ilustrado francs, a formao inicial de Robespierre nesse contexto e a discusso sobre sua teoria democrtica.

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PRIMEIRA PARTE UMA INTRODUO HISTORIOGRAFIA DO ROBESPIERRISMO: A IDENTIDADE ROBESPIERRE-DEMOCRACIA

17 Captulo I Histria e historiografia frente identidade Robespierre-democracia

I. Robespierre-rei e a reabilitao babovista

1. Noite do dia 9 de termidor (27 de julho de 1794). Impasse momentneo. Dois grupos que lutam pelo poder se organizam para um enfrentamento39. De um lado, a chamada comuna robespierrista, ou pelo menos, o que restava dela, tentava se preparar para encetar uma nova jornada revolucionria; do outro, a coligao formada pelo marais40 e pelos montanheses organizava os ltimos detalhes da ao que levaria destituio definitiva de Robespierre. Todos os preparativos necessrios para cumprir essa tarefa foram colocados em marcha pelos membros dessa coligao entre eles, muitos terroristas, que ansiavam por deixar de s-lo principalmente preparativos de ordem militar. Porm, como bons tcnicos41 que eram do Terror, era preciso adicionar aos atos concretos alguma coisa de carter ideolgico para que a tarefa pretendida tivesse sucesso. A idia parece ter sido de Marc Alexis Vadier, um dos principais membros do Comit de Segurana Geral42. Difundir o boato de que Robespierre desejava se tornar rei. Criou-se ento o que Bronislaw Bacsko chama a fbula do Robespierre-rei43. O tirano tinha sido desmascarado. Ele na verdade ambicionava o trono. Para consegui-lo, casar-se-ia com Madame Royale, filha de Lus XVI, aprisionada no Templo. Colocado em circulao, o boato aumentou a desconfiana com que algumas sees parisienses j olhavam Robespierre desde

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Devemos lembrar que aps a priso de Robespierre no dia 9 de termidor, priso essa ordenada pela Conveno e pela maioria dos integrantes dos Comits, ele acabou sendo solto pelas autoridades da Comuna. Na noite desse dia, o clima era de incerteza e de vacncia de poder. Nesse momento, ningum poderia afirmar qual dos dois lados poderia ter ganhado a disputa pelo poder. 40 Em francs, pntano: termo que servia para classificar pejorativamente os moderados da Conveno, tambm chamados de plaine (plancie). 41 Expresso de Bronislaw Baczko. Cf. BACZKO, Bronislaw. Comment sortir de la Terreur. Thermidor et la Rvolution. Paris, Gallimard, 1989. P. 46. 42 Idem, P. 35. Vadier plantou um falso selo com a flor de lis, smbolo da monarquia francesa, nos objetos de Robespierre. 43 Idem, P. 17.

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a liquidao dos hbertistas em maro44. Ele tambm criou o mesmo sentimento em algumas daquelas sees que ainda nutriam respeito pelo Incorruptvel, j que no havia maior crime para os sans-culottes do que ser suspeito de monarquismo. Assim, no momento de tomar o poder dos robespierristas, os futuros termidorianos construram uma imagem mtico-ideolgica de Robespierre como monarquista, o que foi importante, sobretudo, para convencer a opinio de um pblico burgus, mas principalmente sans-culotte, cuja adeso mesmo passiva era muito importante45. Tal imagem foi o comeo de toda uma legenda anti-robespierrista que se estendeu do Diretrio at a Restaurao influenciando toda a historiografia posterior sobre o advogado de Arras, por mais que muitos historiadores fizessem profisso de f de objetividade46. Essa legenda comeou justamente pelo exato contrrio da identificao de Robespierre democracia imagem construda pelo prprio Robespierre47, e por seus oponentes, ao longo de sua carreira de revolucionrio por sua identificao monarquia, que era a fbula Robespierre-rei. 2. Todavia, o boato Robespierre-rei bastante eficaz na atmosfera nervosa do 9 Termidor para ajudar os adversrios do Incorruptvel a derrub-lo no teve futuro

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Quando esse governo, simbolizado por Robespierre e seus amigos, estivesse em perigo, muitas sees ficariam neutras. SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793-9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P. 984. 45 Esse boato tambm foi importante para obter a aprovao para os acontecimentos do 9 de termidor dos departamentos e dos clubes filiados aos jacobinos da capital. Em alguns deles houve exclamaes do tipo: Robespierre aspirava monarquia, ns detestamos os reis. Citado em: BERNET, Jacques. La perception de Robespierre dans les clubs de jacobins de Champagne et de Picardie. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Robespierre: de la nation artsienne la Rpublique et aux nations (Actes du colloque dArras) . Lille, Imprimerie de luniversit Charles de Gaulle -Lille III, 1994. P. 106. 46 Veja-se, por exemplo, as caracterizaes de Richard Cobb, a despeito de sua formao ter sido marcada pela obra de Georges Lefebvre, em seu The police and The people: french popular protest 1789-1820 (Oxford, 1973). Cobb, segundo Rud, teria voltado s vendetas do passado. RUD, George. Opus cit. P. 92. Veja-se tambm o verbete Robespierre escrito por Patrice Gueniffey no Dicionrio crtico de Furet e Ozouf. Como observa Isser Woloch, o ensaio imaginativo de Gueniffey oferece vvidos insights, mas o efeito estragado por uma firme embora subterrnea hostilidade, por uma sufocante malignidade de objetivo atribuda a Robespierre. WOLOCH, Isser. On the latent illiberalism of the French Revolution. Washington, American Historical Review, 155, vol. 95, n. 5, p. 1452-70, dezembro de 1990. P. 1466. 47 O nico a ter explicitamente utilizado a palavra democracia durante a Revoluo teria sido Robespierre. Cf. SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada 2: as questes clssicas. So Paulo, Editora tica, 1994. Pg. 47. Na verdade, Robespierre, em seu discurso Conveno de 5 de Fevereiro de 1794, mencionou a palavra democracia por diversas vezes e num sentido claramente positivo. O que s foi feito antes com a mesma veemncia e positividade por Thomas Paine. Cf. PALMER, Robert R. Notes on the use of the word democracy 1789-1799. Nova York, Political Science Quartely, n. 68, p. 203-226, 1953. P. 216.

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histrico48. Isso porque, na histria e na historiografia, o que ficou de herana do robespierrismo foi sua identidade com a democracia/repblica49, tanto para o bem quanto para o mal. Ajudou nesse processo no s o fato de que o boato era absurdo por si mesmo, como tambm o fato de que os prprios revolucionrios retomaram o legado democrtico do robespierrismo. Com efeito, isso aconteceria no decorrer mesmo do processo revolucionrio de 1789, quando Graccus Babeuf, um revolucionrio irreprochvel do ponto de vista da histria dos movimentos populares, atestaria a folha corrida de democrata sem mcula de Robespierre. Babeuf parecia ter sido envolvido pelo sentimento aparente de congraamento e concrdia que pairava no ar logo aps a derrubada de Robespierre 50. Quem lia seu Journal de la Libert de la Presse naqueles dias, constatava sua aprovao em relao derrubada do Incorruptvel, o qual ele chegou a considerar como o mais infame dos tiranos51. Babeuf afirmava ainda em seu jornal que o 10 de termidor marca o novo limite depois do qual ns estamos trabalhando para renascer liberdade52. Contudo, ele logo percebeu o vrai visage dos termidorianos, fazendo uma verdadeira autocrtica de suas posies53. Desse modo, o jornalista picardo afirmava:
Quando eu, um dos primeiros, gritei com veemncia para fazer tombar a estrutura monstruosa do sistema de Robespierre, eu estava longe de prever que concorria para fundar uma construo, que, numa direo completamente oposta, no seria menos funesto ao 54 povo.

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Porm, ao criarem a legenda anti-robespierrista, os vitoriosos do 9-10 do termidor // tambm reconheceram, em seus frenticos esforos para exorcisar a pertubadora sombra de Robespierre, seu significado. Em um certo sentido, a vituperao termidoriana manteve Robespierre vivo. JORDAN, David P. The revolutionary carrer of Maximilien Robespierre. Londres, Collier Macmillan, 1985. P. 17. 49 // governo democrtico ou republicano: essas duas palavras so sinnimos //. ROBESPIERRE, Maximilien. uvres de Maximilien Robespierre. Paris, Phnix ditions, 2000. T. X, p. 352. Daqui por diante essa obra ser citada pelas iniciais OCR (Obras completas de Robespierre). 50 Florence Gauthier fala de hesitao de Babeuf diante do significado do 9 do Termidor. GAUTHIER, Florence. Thionphe et mort du droit naturel en rvolution 1789-1795-1802. Paris, PUF, 1992. P. 248. 51 BABEUF, Graccus. Journal de la libert de la Presse. Paris, EDHIS, 1966. N 1, p. 5. 52 Idem, n 2, p. 02. Talvez o mais marcante libelo anti-robespierrista de Babeuf tenha sido o seu livro Le systme de dpopulation ou la vie et les crimes de Carrier. Son procs et celui du Comit rvolutionnaire de Nantes. Avec des recherches et des considrations politiques sur les vues gnrales du Dcemvirat dans lintention de ce systme. Segundo Bacsko, um texto alucinante, um verdadeiro inventrio dos medos que obcecava o Antigo Regime amalgamados com fantasmas engendrados pela Revoluo. Esse texto foi publicado antes de frimrio do ano III, quando Babeuf cessou seus ataques contra Robespierre. Cf. BACSKO, Bronislaw. Comment est fait un tyran Thermidor et la lgende noire de Robespierre. In: Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 46, nota 27. 53 Interpretao de Mazauric. Cf. BABEUF, Graccus. Ecrits. Paris, Messidor, 1988. P. 285. 54 BABEUF, Graccus. Le Tribun du Peuple. Paris, EDHIS, 1966. N 28, p. 237.

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Constatado o reacionarismo da revoluo termidoriana, a poltica de Robespierre era reabilitada55. Babeuf chegou a usar at uma expresso mais forte do que reabilitar: rveiller. Em que residia o cerne dessa poltica para o pioneiro do comunismo? Na democracia. Como observa Mazauric, Babeuf estabelece mesmo uma cadeia de equivalentes entre democracia e robespierrismo, robespierrismo e Repblica, chegando a dizer de seus companheiros e dele mesmo que eles eram somente os segundos gracos da Revoluo Francesa.56 Assim, em sua carta ao hbertista Bodson, de 9 do ventoso do ano IV, Babeuf afirmava que
o robespierrismo est em toda Repblica, em toda classe judiciosa e clarividente e naturalmente em todo o povo. A razo simples, que o robespierrismo a democracia, e essas duas palavras so perfeitamente idnticas: pois reconstruindo o robespierrismo, vs 57 fiqueis seguros de reconstruir a democracia.

3. Contudo, tal resgate da imagem de Robespierre, feito em plena Revoluo, no teve grande significado para o destino dessa ltima e do movimento popular revolucionrio. Depois das revoltas de germinal e prairial do ano III (abril-maio de 1795), nas quais os sansculottes no mais conseguiram impor seus interesses como tinham feito, ao menos em parte, em outros momentos da Revoluo, e do fracasso da chamada conspirao dos iguais do prprio Babeuf (1796), o robespierrismo no seria mais praticado. E, coincidentemente, nem a democracia, at a Revoluo de 1848. At l a histria da democracia deixou de ser um captulo da histria tout court para voltar a ser um captulo da histria das idias. No entanto, enquanto parte da histria das idias, a reabilitao de Robespierre por Babeuf serviu para estabelecer uma verdadeira linha de transmisso para a legenda robespierrista, dessa vez pr e no contra o Incorruptvel. Isso porque Buonarroti,

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H pelo menos duas maneiras de ver a mudana de idia de Babeuf sobre o robespierrismo. Segundo Mathiez, Babeuf, enquanto jornalista, foi obrigado a // renegar Robespierre, a se (des)solidarisar com um nome comprometedor. Posio diferente era a de Daline. Conforme o historiador russo, foi a constatao posterior da necessidade de uma ditadura revolucionria que levou Babeuf a ver com outros olhos o papel de Robespierre. Essas interpretaes encontram-se respectivamente em: MATHIEZ, Albert. Autour de Robespierre. Paris, Payot, 1926. P. 247. DALINE, Viktor. Robespierre et Danton vus par Babeuf. Paris, AHRF, tomo 32, p. 388-410, 1960. P. 402. 56 MAZAURIC, Claude. Lidal rpublicain implique-t-il des rapports conomiques et sociaux? In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Robespierre: de la nation artsienne la Rpublique et aux nations (Actes du colloque dArras). Lille, Imprimerie de luniversit Charles de Gaulle -Lille III, 1994. P.291. Com a expresso segundos gracos, Babeuf faz referncia s leis do vento so, nas quais o robespierrismo teria enunciado uma forma de diviso da propriedade fundiria e que, portanto, aproximava Robespierre e seus companheiros dos tribunos romanos defensores da reforma agrria.

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companheiro de Babeuf na conspirao dos iguais, encarregou-se de passar para a posteridade o pensamento poltico de Babeuf, assim como tambm o apreo que esse tinha por Robespierre58 talvez Buonarroti tenha sido o responsvel pela mudana de idia de Babeuf sobre Robespierre, haja vista sua convivncia pessoal tambm com este ltimo. De qualquer modo, Babeuf e Buonarroti legaram a certos seguimentos da esquerda e da historiografia uma viso de Robespierre que foi bem evocada principalmente na historiografia de Jaurs e do seu mais famoso seguidor, Georges Lefebvre, o qual afirmou que o Incorruptvel foi o mais famoso dos apstolos da democracia59.

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BABEUF, Graccus. Ecrits. Paris, Messidor, 1988. P. 287. Isso pode ser percebido de maneira evidente por um exemplo no francs. O cartista Bronterre OBrien no comeo de sua carreira era um anti-robespierrista. Sua visita a Frana, nos anos 1836 e 1837, o fez mudar de idia. Essa mudana foi motivada pelo contato com a obra de Buonarroti La conspiration pour lgalit dite de Babeuf. A partir da ele se tornou um dos principais defensores do pensamento poltico robespierrista na Inglaterra. LEWIS, Gwynne. Robespierre throught the chartist looking-class. In: HAYDON, Colin e DOYLE, Willian. Robespierre. Cambridge, Cambridge University Press, 1999. P. 194-211. 59 LEFEBVRE, Georges. tudes sur la Rvolution. Paris, PUF, 1954. P. 96.

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II. O robespierrismo frente historiografia revolucionria

O que resultou da viso termidoriana e do legado babovista sobre o robespierrismo comps a base do que consistiu durante o sculo XIX e XX a viso histrica de Robespierre. Contudo, a tentativa termidoriana de identificar Robespierre ao monarquismo fracassou. A partir do sculo XIX, foi a identidade entre o robespierrismo e a democracia que se tornou o verdadeiro problema sobre o qual se debruou a historiografia do advogado de Arras. No seio dessa historiografia, algumas questes tiveram grande relevncia. Assim, a formulao robespierrista da democracia foi questionada com base nas respostas dadas questo social (robespierrismo e proto-socialismo), relao entre o laico e a religio (a religio cvica), e ao Terror. Quanto identidade com a democracia, na verdade, Robespierre foi quase uma unanimidade, j que direita e esquerda do espectro poltico esse foi o ponto mais valorizado de sua trajetria. A avaliao de sua carreira revolucionria a partir dessa identificao deu incio a toda uma historiografia que viu nela tanto origem de positividade quanto de negatividade. Como afirma Godechot, // ou bem os historiadores aprovam a evoluo republicana e democrtica da Revoluo, e eles eram favorveis Robespierre ou bem eles a reprovam, e eles lhe eram hostis60. Contudo, devemos relativizar essa idia de Godechot. Como veremos, Maurice Agulhon61 observa que nem todos os historiadores republicanos foram favorveis ao Incorruptvel, mesmo entre aqueles da esquerda republicana. Ademais, para a historiografia francesa sobre a Revoluo apesar de em seu interior ser predominante a idia de Clemenceau de que a Revoluo era um bloco vale uma espcie de lei que, conforme Bruhat, // quer, de qualquer maneira, que cada grupo social escolhesse no movimento da Revoluo Francesa seu perodo de predileo ( cada um sua Revoluo!) 62. Essa lei no

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GODECHOT, Jacques. Lhistoriographie franaise de Robespierre. In: Actes du colloque Robespierre. Paris, ditions Sociales, 1967. P. 168. 61 Cf. Infla, p. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 62 BRUHAT, Jean. La Rvolution franaise et la formation de la pense de Marx . Paris, AHRF, ano 38, n. 184, p. 125-170, abril-junho de 1966. P. 146. Uma outra variante dessa idia: a historiografia da Revoluo Francesa comparvel ao desenrolar da Revoluo Francesa: atravessada de contradies e de batalhas espetaculares, como se o carter teatral do acontecimento tivesse sido legado a seus historiadores, // parte comum de uma

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deixaria de influenciar os setores republicanos de esquerda, os quais escolheram cada um a sua Revoluo e, por meio de cada Revoluo, aquele personagem que supostamente a encarnava. Porm, a idia de Godechot identificava uma tendncia de conjunto, na qual, de fato, a linha de demarcao entre a defesa da repblica/democracia e seu repdio demarcava quase sempre a rejeio ou a aprovao do robespierrismo. Outro problema irrompe quando partirmos do segundo termo da relao robespierrismo/democracia. A democracia, esse outro duplo da Revoluo, teve uma histria ao longo do sculo XIX francs no menos polmica. Como afirma Englund, retomando uma idia de Tocqueville63, a democracia tornou-se na Frana, para o pior e o melhor, como Tocqueville o notou com perspiccia o ideal da conscincia poltica moderna, a referncia a partir da qual todo sistema poltico julgado64. Compreender em que medida esse ideal foi perturbado por uma m conscincia provocada pela Revoluo, ou seja, por sua relao com os terroristas, pais fundadores da democracia, uma chave para se entender sua histria e seu drama na Frana do sculo XIX. Os momentos desse drama, isto , a luta pela implantao do regime democrtico que durou a maior parte desse sculo, so bem conhecidos. Se for certo que se possa dizer que esse drama ainda era resultado das remanescncias do confronto entre o Antigo Regime e a Revoluo, de uma Revoluo que s veio a terminar na longa durao, o fato era que, do comeo desse sculo at o seu final, a implantao de um regime poltico democrtico enfrentou diversos adversrios poderosos que a Revoluo fez emergir, mas que eram tanto quanto os manarchiens65, adversrios da democracia, como por exemplo, o liberalismo, o monarquismo e o bonapartismo, quando no a lei e as prises66.

herana conflitual. FURET, Franois. La gauche et la Rvolution franaise au milieu du XIXe sicle . Edgar Quinet et la question du jacabinisme. Paris, Hachette, 1986. P. 9. 63 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na Amrica. Belo Horizonte, Itatiaia, 1987. Introduo. Para Tocqueville o processo de nivelamento das condies sociais tinha o significado de democracia. Depreende-se disso que ele veria a democracia como uma poca histrica, a qual se estabeleceria nos ltimos sculos da histria europia. Cf. BTOURN, Olivier e HARDIG, Aglaia I. Penser lhistoire de la Rvolution. Paris, La Dcouverte, 1989. P. 28. 64 ENGLUND, Steven. Le thatre de la dmocratie. In: BAECQUE, Antoine de. (dir) Une histoire de la dmocratie en Europe. Paris, Le Monde ditions, 1991. P. 115. 65 Grupo formado por deputados aos Estados Gerais, tendo em Jean Joseph Mounier seu principal membro, os quais defendiam a adoo de uma constituio inglesa, ou seja, com duas cmaras e um rei dispondo do direito de veto absoluto. 66 Cf. abaixo o exemplo de Laponneraye.

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Todavia, o paradoxo foi que a tentativa de implantao do regime democrtico necessariamente no foi agravada pela relao da democracia com o robespierrismo. Em outras palavras, pela relao entre a democracia e o Terror, o que poderia ter feito com que certos historiadores rejeitassem o regime poltico democrtico, fazendo coro com os grupos sociais dos quais eram a expresso. Basta citarmos o exemplo dos historiadores liberais, os quais, ao mesmo tempo em que justificaram de alguma forma o Terror67 assim como os republicanos, mas por outra razo, como veremos rejeitaram a democracia, pelo menos at a Terceira Repblica. Para esses historiadores no vale a afirmao de Palmer de que a associao da democracia com Robespierre e, portanto, com o Terror e o assassinato judicial, naturalmente tendia a desacreditar a democracia em si mesma68. Curiosamente, foi somente no fim do sculo XX que essa relao constituiu um problema para uma determinada corrente historiogrfica francesa, salvo casos isolados. Os chamados revisionistas colocaram em xeque a democracia revolucionria por sua relao com o terror. As demais correntes historiogrficas tiveram outras preocupaes para sua condenao ou aprovao da democracia, as quais passavam mais por temas do tipo: repblica/monarquia constitucional, natureza social do governo revolucionrio ou o tratamento dado questo religiosa pelos robespierristas. De qualquer forma, a historiografia do robespierrismo caracterizou-se por uma srie de questes tericas, todas intimamente associadas ao momento histrico na qual foram formuladas, tendo na identidade Robespierre/democracia um dos seus elementos fundamentais. Podemos dizer que essa identidade se desdobrava volta de trs questes bsicas: o programa social e poltico robespierrista, a questo religiosa e o Terror. Foi em torno dessas questes que se produziram diversas correntes historiogrficas desde o sculo XIX. Podemos resumi-las da seguinte forma: a) As que se situam fora da tradio republicana e, portanto, sua rejeio do robespierrismo era homnima sua rejeio da democracia. Era o caso da historiografia contrria Revoluo e a Robespierre em particular. Essa corrente historiogrfica,

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// o historiador pode dar do Terror uma explicao que convm ao mesmo tempo tradio jacobina, j que exatamente o que ela diz, e ao pensamento liberal, j que a sobrevivncia nacional estava em jogo e prevalece sobre toda outra considerao. FURET, Franois. Penser la Rvolution franaise. Paris, Gallimard, 1983. P. 89. 68 Cf. PALMER, Robert R. Notes on the use of the word democracy 1789 -1799. Nova York, Political Science Quartely, n. 68, p. 203-226, 1953. P. 216.

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chamada de conservadora, foi a primeira a se constituir. Ela teve como precedente mais notvel Edmund Burke69. Os historiadores dessa corrente, como veremos, tiveram a caracterstica de rejeitar a Revoluo e essa rejeio originava-se na acusao de que ela pretendia nivelar as propriedades, produzir anarquia70, etc., o que seria o suposto contrrio da monarquia. Numa palavra, o que chocava essa historiografia era o advento da democracia e de quem a encarnava, Robespierre. Nela nasceu a caracterizao da Revoluo como uma tirania inerente marcha da democracia igualitria71 e que tem no sculo XX um exemplo caracterstico em Pierre Gaxotte72. b) A historiografia liberal da Restaurao se assemelhava a essa primeira corrente historiogrfica pela rejeio tanto da democracia quanto do robespierrismo. Ao retomar o projeto poltico dos girondinos e dos homens do Diretrio, essa historiografia foi partidria da Revoluo, mas no da democracia73. c) A corrente historiogrfica republicana era, em geral, partidria do robespierrismo. Contudo, se todo robespierrista republicano, nem todo republicano robespierrista. Assim, essa corrente dividia-se em vrias tendncias, caracterizadas por aquilo que Maurice Agulhon chamou de posteridade republicana74. Essas tendncias expuseram diferenas em relao aos seus adversrios direita, como seria natural, como manifestavam diferenas de seu prprio lado na avaliao do legado revolucionrio. Sua viso do robespierrismo adquire uma grande complexidade, pois a relao entre a democracia e revoluo social, de um lado, e de outro, a questo religiosa, colocava em questo sua adeso ao robespierrismo. Uma primeira tendncia foi inaugurada com os trabalhos de Lamartine e de Michelet. Ela se constituiu durante o processo pr-revolucionrio de 1848, momento em que o republicanismo passou a ter um crescente nmero de adeptos. O ponto comum desses historiadores foi a tentativa de ancorar a Revoluo num projeto republicano no-

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FLORENZANO, Modesto. Reflexes sobre a Revoluo em Frana de Edmund Burke: uma reviso historiogrfica. So Paulo, 1993. Tese de Doutorado defendida no Departamento de Histria da USP. 70 Essa expresso era muito comum no ambiente contra-revolucionrio. E no toa que Pierre Gaxotte a usou para dar ttulo a um captulo do seu livro. Cf. infra, p. 104. 71 Expresso de Irene Castells. CF. AULINAS, Llus Roura i e Castells, Irene. (eds.) Rvolucion y democracia: el jacobinisme europeo. Madrid, Ediciones del Oro, 1995. P.33. 72 GAXOTTE, Pierre. La Rvolution franaise. Bruxelles, ditions Complexe, 1988. 73 Cf. os exemplos aqui estudados de Mignet (opus cit.) e de THIERS, Adolphe. Histoire de la Rvolution franaise. Paris, Furne e cia, 1865.

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robespierrista. Assim, a historiografia representada por Lamartine e por Michelet vai ser, como afirmava Godechot75, respectivamente, girondina e dantonista. A segunda tendncia se pretendia revolucionria e, desse modo, conforme Maurice Agulhon, era prxima // do povo mais humilde e dos projetos mais avanados, ela se sentiu sans-culotte, enraivecida, descristianizadora, hbertista, maratista, bobouvista //. Tal tendncia contrape esses projetos ao projeto poltico do advogado de Arras e, nesse caso, // Robespierre pecava dessa vez por falta mais do que por excesso! 76. Essa viso teve no revolucionrio Louis Auguste Blanqui seu ancestral mais notrio e ecoa at os nossos dias em trabalhos como os do historiador Daniel Gurin77. Uma terceira tendncia viu no Incorruptvel o pioneiro do revolucionrio moderno, na acepo de defensor do povo e da democracia, buscando definir o robespierrismo como uma ideologia democrtica radical com contedos sociais, os quais a aproximaria dos dmoc.soc. da Revoluo de 1848 e do que hoje em dia chamaramos de social-democracia. Ela teve origem, basicamente, em Louis Blanc e um prolongamento, no comeo do sculo XX, em Jaurs. Sua continuidade pode ser constatada entre os historiadores da Sorbonne mais conhecidos. Um exemplo de tal tendncia o historiador Claude Mazauric, que apresentou o Incorruptvel no Dicionrio histrico da Revoluo Francesa da seguinte maneira: Maximilien Robespierre foi a figura central da Revoluo Francesa. No por que ele tivesse encarnado todos os seus aspectos complexos e diversos mas porque geralmente exprimiu sua essncia profundamente plebia e democrtica78. d) Uma quarta corrente, majoritariamente79 de origem anglo-saxnica teve grande difuso na Frana e mundo afora a partir dos trabalhos de Franois Furet. Diferentemente das correntes anteriores, ela questionava a ligao entre antagonismo social e ao revolucionria

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AGULHON, Maurice. A propos de jacobins sous Louis-Philippe. In: FURET, Franois e OZOUF, Mona. (dir.) The French Revolution and the creation of modern political culture . Vol. 3. The transformation of political culture 1789-1848. P. 527. 75 GODECHOT, Jacques. Opus cit. 76 AGULHON, Maurice. Opus cit. 77 GURIN, Daniel. La lutte de classes sous la Premire Rpublique 1793-1797. Paris, Gallimard, 1968. 78 MAZAURIC, Claude. Robespierre. In: SURATTEAU, Jean-Ren e GENDRON, Franois. (dir.) Dictionaire historique de la Rvolution franaise. Paris, PUF, 1989. P. 914-921. 79 Essa predominncia pode ser percebida na simples citao de autores revisionistas feitas por Timothy Tackett, na qual o nico autor francs citado era Furet. Cf. TACKETT, Timothy. Par la volont du peuple. Paris, Albin Michel, 1997. P. 13.

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e colocava boa parte de sua problemtica histrica na relao democracia-Terror80, afirmando que a ausncia da possibilidade de representao poltica eliminou o debate poltico no violento. Sua crtica da Revoluo aproxima-se muitas vezes de uma rejeio pura e simples da Revoluo como momento de positividade na histria, ou ao menos se recusa a considerar como positivo aquilo que na Revoluo relacionava-se ao robespierrismo81.

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Nada melhor para compreendermos essa tendncia do que as cenas do filme Danton de Andrey Wajda, nas quais Eleonor Duplay usou a tcnica do castigo corp oral para ensinar a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado a uma criana. Sem entrarmos em detalhes sobre a completa falsidade histrica dessas cenas, essa era uma alegoria perfeita para aqueles que discutiram como a democracia, em seu primeiro momento nos tempos modernos, pde ser implementada pari passo com o Terror. 81 Basta citarmos o volume de Furet e Ozouf sobre o advento republicano. Nele no h nenhum artigo sobre Robespierre e seus companheiros. Cf. FURET, Franois e OZOUF, Mona. Le sicle da lavenement rpublicain. Paris, ditions Gallimard, 1993.

28 Captulo II As origens do anti-robespierrismo na historiografia da Revoluo

I. Mito82 e histria

1. Fazer um estudo do pensamento poltico robespierrista ainda , mais de dois sculos depois da morte de Robespierre, uma tarefa que permanece embaraante. Isto porque para se conseguir chegar a analisar os elementos que compuseram esse pensamento e o inescapvel papel que nele possuiu o Terror duas questes que voltaremos a tratar com mais vagar ao longo de todo esse trabalho, a primeira mais do que a segunda preciso antes enfrentar um outro problema, a saber, o advogado de Arras teve provavelmente mais do que qualquer outro personagem da histria sua trajetria estabelecida entre mito e histria83. O que resultou em avaliaes ambivalentes e contraditrias. Para termos uma idia de como ainda atual esse tratamento da biografia intelectual do advogado de Arras basta nos voltarmos para dois exemplos recentes, um de 1999 e o outro de 2003. O primeiro deles, mais prximo de ns, nos dado por Milton Meira do Nascimento, no texto de sua resenha da primeira edio dos textos de Robespierre no Brasil. Este autor comea observando que homens de ao, polticos profissionais, revolucionrios, enfim, todos aqueles que se pem a tarefa de transformao das instituies da sociedade visando a melhor-las, no escondem o fascnio diante dos Discursos de Robespierre. Na seqncia do seu texto, ele comenta a apresentao de Joo Batista Natali dos textos de Robespierre, o qual, segundo Nascimento, revela-nos tambm seu entusiasmo e convida o leitor a ouvir um dos maiores oradores da Revoluo Francesa, destacando-o como um inventor do discurso
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A palavra mito em nosso texto remete a pelo menos trs significados: 1) representao de fatos ou personagens reais, exagerada pela imaginao popular, pela tradio, etc.; 2) idia falsa, sem correspondente na realidade; 3) imagem simplificada de pessoa ou de acontecimento, no raro ilusria, elaborada ou aceita pelos grupos humanos, e que representa significativo papel em seu comportamento. FERREIRA, Aurlio Buarque de Holanda. Novo dicionrio da lngua portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. P. 1143. 83 A indagao de Marc Bloch s faces que se construram em torno do legado de Robespierre nos revela o quanto essa relao entre mito e histria caracterizou o estudo do advogado de Arras: robespierristas, antirobespierristas, ns lhes suplicamos; por piedade, digam-nos apenas: quem foi Robespierre? SIRINELLI, Jean Franois. Os intelectuais. In: RMOND, Ren (org.) Por uma histria poltica. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Editora FGV, 1996. P. 240. Um testemunho insuspeito dessa interpretao pode ser encontrado em: FURET, Franois e RICHET, Denis. La Rvolution franaise. Paris, Librerie Artheme Fayard, 1973. P. 221.

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poltico, uma espcie de agente da metaforizao, dentro do espao de poder, da palavra latente da ptria e dos patriotas que ele acreditava materializar por meio da linguagem. Para concluir observando que no entanto, a admirao pela lgica do incorruptvel, com freqncia, no se sustenta diante do incmodo ou da decepo, ao se constatar que este mesmo homem pudesse ter sido o principal protagonista do terror revolucionrio.84 O segundo vem de uma biografia de vulgarizao de Robespierre da italiana Alberta Gnugnoli. Esta escritora, por sua vez, comea observando que Maximilien Robespierre um dos personagens mais controversos e estudados de toda a histria francesa. Seu papel poltico antecipa aquele dos ditadores totalitrios do sculo XX para concluir que todavia, a recente historiografia superou o mito negativo de Robespierre, o revolucionrio frio e intransigente que justificava o assassinato sistemtico para a salvao da Revoluo. O Incorruptvel foi antes um ardente idealista que lutou pela igualdade e pela justia, o apstolo da democracia que se imolou por sua f revolucionria85. Sem querer pretender fazer a histria das representaes histricas de Robespierre, o que ainda, conforme Lucien Jaume, resta por ser feito86, podemos, apesar de tudo, avanar algumas razes para que sua trajetria fosse marcada por avaliaes to dspares. A comear pela natureza de sua figura histrica. No sendo um homem dotado de um passado aventureiro como Mirabeau, nem tambm de uma trajetria histrica de vencedor de batalhas como Napoleo, a figura seca do Incorruptvel era pouco afeita a uma viso passvel de ser romanceada que pudesse absolv-la de possveis pecados. O que sobrou de sua figura foi sua condio de legislador, o que tambm, de qualquer forma, no era propcio a romantizaes de novela popular ou mesmo da grande literatura. E a aparece outra razo para a viso mtica do Incorruptvel. A imagem que se tinha e se tem de sua figura foi, em parte, construda pela literatura. Basta citarmos o exemplo de uma das passagens fundamentais da carreira de revolucionrio de Robespierre, a saber, seu papel no julgamento de Danton. Robespierre foi acusado de ser o responsvel principal por sua morte. Essa idia em grande parte foi reproduzida pela literatura e pelo teatro, e no sculo XX, pelo cinema. No entanto, conforme Jordan,

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NASCIMENTO, Milton Meira do. A lgica da guilhotina. Jornal de resenhasxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx GNUGNOLI, Alberta. Robespierre e il Terrore rivoluzionario. Florena-Milo, Giunti Editores, 2003. Contracapa.

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No foi Robespierre, estritamente falando, que destruiu Danton, embora os escritores Hugo, Bchner e Dickens, tanto quanto vrios historiadores, fizessem parecer assim. Robespierre, de fato, era relutante em sacrificar Danton; mas seus colegas do Comit de Salvao Pblica prevaleceram.87

Por fim, talvez a razo mais importante para a mitificao de Robespierre tenha sido o fato de que ele foi o primeiro personagem histrico que teve deliberadamente sua biografia construda pelo Estado. Isto porque, preocupados em justificar a necessidade da derrubada dos robespierristas no 9 Termidor e, ao mesmo tempo, em estabelecer uma diferena entre Robespierre e seu projeto poltico, os termidorianos88 se dedicaram construo de uma imagem de Robespierre que no deixasse dvida sobre sua condio de aspirante ditadura, seno como simples e puro ditador89. Essa elaborao acabou produzindo uma imagem mtico-ideolgica do advogado de Arras. 2. Como que abrindo o caminho para o que viria com o relatrio Courtois, alguns autores foram pioneiros nesse processo termidoriano de construo de uma biografia oficial do arrageois90. Entre outros, Pierre-Louis Roederer, que considerava Robespierre um menestrel sanguinrio sem coragem e sem talento e que criou uma concepo sobre a carreira poltica de Robespierre que viria a fazer um enorme sucesso, a saber, que foi custa de nada fazer que ele acabou obtendo xito. Segundo Roederer, foi porque [Robespierre] nada fez enquanto as circunstncias trabalhavam para ele que ele adquiriu esse poder de um ano que, na verdade, foi um sculo de crimes //91.

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JAUME, Lucien. Robespierre. In: CHATELET, Franois, DUHAMEL, Olivier e PISIER, velyne. Dictionnaire des oeuvres politiques. Paris, PUF, 1986. P. 685-691. 87 JORDAN, David P. Opus cit. P. 248. Alm desses escritores, deve-se acrescentar o nome de Balzac, para quem, segundo Patrick Berthier, // Robespierre aparece como um ser uniformemente antiptico, o arqutipo do tirano sem corao e sem escrpulo, ao qual nos referimos quando se trata de evocar a fria crueldade ou ambio ilimitada daqueles que, como Napoleo, exploram as revolues apenas em benefcio de seu poder. citado em: MILNER, Max. Regards croiss sur Robespierre: Balzac et Nodier. In: EHRARD, Jean (org.). Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 327. E, no sculo XX, podemos acrescentar literatura tambm o cinema como importante veculo para a formao de uma imagem legendria do Incorruptvel. Se desde o cinema mudo Robespierre no se beneficia de nenhuma complacncia e isso se pode ver no caso do filme de David W. Griffits, Deux Orphellines mais ainda nos dias de hoje, quando um filme como o de Andrej Wayda fez tanto sucesso. 88 Essa expresso identificava os vitoriosos do 9 do termidor. Eles se transformaro em diretoriais em 1795, quando o regime do Diretrio comear a funcionar. 89 Como afirma Jordan: irnico que um homem que to consistentemente evitou cargo e influncia deveria se r acusado de estar buscando a ditadura. JORDAN, David P. The revolutionary carrer of Maximilien Robespierre. Londres, Collier Macmillan, 1985. P. 40. 90 Em francs, natural de Arras. 91 Citado em Walter, Grard. Robespierre. Paris, Gallimard, 1961. t. II, P. 144.

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Vieram se juntar a esse festival de condenaes, os livros de Dubois Cranc, no qual ele descrevia Robespierre como um monstro que tinha desejado aprisionar os talentos, o esprito //; e de Galart de Montjoye (1796), que instigava a imaginao folhetinesca de seus leitores, descrevendo um Robespierre organizador de orgias com prostitutas92. Contudo, um dos instrumentos principais para a construo de uma biografia poltica oficial de Robespierre foi o chamado Relatrio de Edme-Bonaventure Courtois93. Este deputado da Conveno, responsvel pela direo da comisso encarregada de analisar os papeis de Maximilien, produziu um relatrio que era uma verdadeira condenao pstuma de Robespierre, na medida em que ele no chegou a ser julgado formalmente. Encontra-se nesse Relatrio a fonte originria de muitos clichs sobre Robespierre, como, por exemplo, sua covardia, sua aspirao ditadura, etc. J nas primeiras pginas de seu relatrio, Courtois lanava mo da habitual discusso retrica sobre os pais fundadores da Antigidade clssica para condenar o robespierrismo, igualando Robespierre a Csar. Esse percurso de paralelismos levava logo a outro lugar comum: Robespierre era comparado bte fauve de Gvaudan94. Nesse ponto, o relatrio chegava ao recorrente tema de comparar o personagem a uma figura monstruosa ou s feras, como no caso mais famoso da imagem do Robespierre chat-tigre95. Como nos mostra Bronislaw Bacsko, // nos textos retorna sem cessar esse clich, a imagem de uma fera assimilada a um monstro, ao mesmo tempo ameaador e imundo. Essa representao se alimentou de fantasmas e por sua vez os alimentou96. No relatrio Courtois vemos os robespierristas sendo retratados como esses homens que, ao sair de suas criminais orgias, bbados de vinhos e de sangue //97, cometiam os

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Apud GARMY, Roger. Aux origines de la lgende anti-robespierristes: Pierre Villiers et Robespierre. In: Actes du Colloque Robespierre. Paris, ditions Sociales, 1967. P. 19. 93 COURTOIS, Edme-Bonaventure. Rapport fait au nom de la commission charg e de lexamem des papiers trouvs chez Robespierre et ses complices. Paris, Maret, 1794. (16 do Nivoso do ano III). 94 Episdio legendrio do sculo XVIII. Um animal misterioso, possivelmente um lobo, matou mais de cem pessoas na regio francesa de Gvaudan e no sul de Auvergne entre 1764 e 1767. 95 Pode se dizer que pouca criatividade existia no jogo das calnias durante a Revoluo. Esse era o caso de muitas representaes caricatas de Robespierre, como esta do chat-tigre, que j aparece nos jornais girondinos. E que retomada mais tarde pelos termidorianos. Cf. Feuille du jour, n. 13, 210. Citado em: OCR, t. X, p. 336. Para o perodo termidoriano ver: BACSKO, Bronislaw. Comment est fait un tyran Thermidor et la lgende noire de Robespierre. In: Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 36. 96 Idem, ibidem. 97 COURTOIS, E. B. Opus cit. P. 6. Passagens como essa fizeram com que Bacsko observasse que // o sangue pelo qual o tigre foi corrompido no somente um smbolo. Robespierre tinha sede d e sangue no sentido prprio desse termo e ele o bebia realmente. BACSKO, Bronislaw. Opus cit. P. 36.

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piores crimes, como por exemplo, aniquilar doze ou quinze milhes de Franceses // 98. Esse tipo de interpretao dos robespierristas, estendida ao conjunto dos jacobinos99, inaugurava um estilo muito comum entre os publicistas da legenda anti-robespierrista do Diretrio e da Restaurao e que repercute mesmo em historiadores de quase um sculo depois, como foi o caso de Hippolyte Taine100. Contudo, o que era evidente no relatrio Courtois era a diferena ideolgica entre os termidorianos e os homens que eles tinham derrubado. A comear pela noo de felicidade pblica que deixava claro a diferena das concepes republicanas de ambos os grupos. O que pode ser visto na crtica que o relatrio fazia de que os robespierristas conceberam uma felicidade coletiva esquecendo-se que a felicidade pblica apenas se compe de elementos da felicidade individual101 e em afirmaes de que os robespierristas queriam // distribuir a cada um um arado e algumas landes [terras pouco frteis] para preparar, para nos salvar dos perigos da felicidade de Perspolis102. Nessas crticas, os termidorianos afirmavam sua continuidade com os girondinos103. Esse aspecto ficava mais claro ainda quando Courtois procurava identificar as devidas culpas da conspirao robespierrista. Conforme seu relatrio,
os lderes dos comits favoreciam a tirania de Robespierre, porque ela fundava a deles; no era para elev-la isoladamente, nem da mesma maneira que Robespierre; era para realizar sua quimera, que era o nivelamento, a sans-culottizao geral, pela extino das riquezas e 104 a runa do comrcio.

Somado a esses argumentos ideolgicos, outros elementos desses autos eram verdadeiras prolas de mistificao. Um deles foi forjar formas simplrias para provar a acusao de que Robespierre pretendeu tornar-se ditador. Para prov-la, o relatrio Courtois
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COURTOIS, E. B. Opus cit. P. 6. Courtois afirmava que para os devedores bastava tornarem-se jacobinos // para serem probos por excelncia. Idem, p. 03. 100 TAINE, Hippolyte. Les origines de la France contemporaine. Paris, Robert Lafont, 1986. 101 COURTOIS. E. B. Opus cit. P. 03. 102 COURTOIS, E. B. Opus cit. P. 06. Perspolis foi a capital erguida por Dario, rei dos persas. Seu luxo chegava a ser proverbial. Saint-Just afirmava que a Revoluo no deveria oferecer a felicidade de Perspolis, a qual era a felicidade dos corruptores da humanidade. A Revoluo ofereceria a felicidade de Esparta e de Atenas, cuja felicidade era a da virtude, a felicidade que nasce do gozo do necessrio sem suprfluos. Rapports au nom du comit de Salut Public sur les factions de ltranger, present la Convention Nationale dans la sance du 23 ventse an II. In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. euvres Compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 729. 103 O girondino Pierre-Victorin Vergniaud, deputado Conveno, j tinha feita a mesma crtica concepo de frugalidade e vida simples robespierrista. Ver infra, p. 85.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 104 COURTOIS, E. B. Opus cit. P. 13. Grifado no original.

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usou de distores e interpretaes primrias de suas palavras. A frase dos rascunhos de Robespierre, preciso uma vontade nica105, tirada do contexto, dava a impresso de que ele estaria falando de sua vontade pessoal. Porm, na verdade, ele se referia a unidade republicana do governo106. Alm disso, esse relatrio fazia afirmaes de um psicologismo absolutamente grosseiro, do tipo: Maximilien foi no colgio o que ele seria depois na Conveno. Criana, ele queria dominar as crianas; homem, ele quis subjugar os homens107. 3. Na via aberta pelo relatrio Courtois, surgiram outras obras dedicadas construo do mito Robespierre. Talvez a mais caracterstica obra desse tipo seja La vie et les crimes de Robespierre, surnomm le tyran, depuis sa naissance jusqu sa mort, publicada em 1795. A despeito do tom que ela j revelava no ttulo, e mais ainda no subttulo, tal obra tinha certa importncia, j que seu autor, o abade Proyart108, foi diretor do colgio Louis-le-Grand e teve sob seus olhos o jovem estudante durante oito anos. Assim sendo, os historiadores podem retirar dela alguns dados sobre a vida de Robespierre que no se encontram em outras biografias. Uma amostra do que esperava o leitor nessa obra pode ser verificada pela anlise com que Proyart descrevia os jacobinos. Conforme esse autor,
para se ter uma idia justa do que se chamava outrora Jacobinos, preciso visualizar uma monstruosa assemblia de tudo o que Paris, a Frana e os Estados vizinhos tinham de mais culpado e de mais abjeto; uma horda de aventureiros e de escroques, de homens perdidos pela luxria, arruinados por dvidas e marcados pelas leis; o mais impuro rebotalho das naes; uma seita de energmenos, cuja linguagem e a loucura somente mereceriam o desprezo, se no fosse o fato de que a atrocidade de seus atos ultrapassasse sempre a extravagncia de seus discursos.109

E a obra de Proyart seguia sendo pontuada por uma srie de espantosos absurdos. Falando do tribunal revolucionrio, ele relatava que // esse tribunal estrangulador

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Idem, p. 33. Robespierre no Ano II, Robespierre o terrorista, fixou a ateno de todo estudioso da Revoluo, determinando como seu incio de vida seria visto e julgado. Ns procuramos todo trao precoce do fanatismo futuro em seus comeos de carreira. Esta obsesso foi herdada da tradio termidoriana que primeiro aviltou e depois demonizou o Incorruptvel. JORDAN, David. The Robespierre problem. In: HAYDON, Colin e DOYLE, Willian. Robespierre. Cambridge, Cambridge University Press, 1999. P. 22-23. 106 JAURS, Jean. Histoire socialiste de la Rvolution franaise. Paris, ditions Sociales, 1969. T. VI, p. 168. 107 COURTOIS, E. B. Opus cit. p. 23. 108 NEUVGLISE, M. Le Blond de. La vie et les crimes de Robespierre, surnomm le tyran, depuis sa naissance jusqu sa mort. Augsburg, Chez Tous Les Libraires, 1795. Subttulo: Ouvrage dedi ceux qui commandent, et ceux qui obissent. Apesar de ter sido publicado sob o nome de Neuvglise, os historiadores em geral no colocam em dvida que essa obra foi escrita pelo Abb Proyart. 109 Idem, p. 81.

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espalhava tanto sangue sobre a praa da Revoluo, que, para lhe dar o escoamento, Robespierre fez construir um canal de comunicao com o grande esgoto do bairro de SaintAntoine110. No contente com esse tipo de afirmao, Proyart chegava ao paroxismo com a vulgarizao de verdadeiros delrios como o que se segue:
Robespierre, vendo os montes de cadveres aumentar todos os dias sob o ferro da guilhotina, concebeu o desejo de tornar os Mortos teis aos Vivos, e, por uma especulao digna da filantropia, ele imaginou criar um curtume de peles humanas. O estabelecimento foi feito em Meudon, e no castelo mesmo, cujas portas foram cuidadosamente fechadas curiosidade pblica. O Tirano encontrava nisso uma dupla vantagem, fornecer sapatos seus sans-culottes que no os tinham e ainda fazer esmagar sob os ps, depois de sua morte, todos aqueles que tinham sido seus inimigos durante sua vida.111

Esse tom se repetia em sua obra Louis et ses vertus. Nela, ele mais uma vez narrava o encontro entre Robespierre e Lus XVI diante do colgio Louis-le-Grand, em 1775, no momento em que este vinha de sua sagrao em Reims. Robespierre foi encarregado de fazer o discurso de boas vindas ao rei e, conforme a cerimnia, devia se ajoelhar diante do monarca112. Proyart descreve Robespierre nesse momento como a serpente que rastejava aos ps do casal real.113 Para o abb Proyart no havia dvida quanto ao controle que Robespierre exercia sobre o governo revolucionrio e sobre a Frana. Para ele, o Incorruptvel era o mestre absoluto da Frana114 e era dessa compreenso do papel de Robespierre que decorriam todas as estatsticas de Proyart sobre as execues durante o Terror. No cerne do relatrio Courtois e da biografia do abade Proyart, assim como no conjunto dos panfletos anti-robespierristas termidorianos e, como se ver, ao longo da historiografia do sculo XIX, pelo menos at Alphonse Aulard manifestava-se uma contradio fundamental. Objetivando uma condenao de Robespierre, esses textos s se sustentavam se ele estivesse associado intimamente ao Terror, isto , cabia a ele a responsabilidade principal, seno nica, sobre os atos terroristas. Da a acusao de ditadura. O paroxismo desse processo

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Idem, p. 173. Idem, p. 279-280. 112 Mais detalhes, infra, p. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 113 Citado em WALTER, Grard. Robespierre. Paris, Gallimard, 1961. T. I, La Vie. P. 27. Da obra de Proyart Louis XVI et ses vertus, t. I, P. 150-151. 114 Idem, p. 90.

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de associao entre o robespierrismo e o Terror pode ser percebido numa das mais extraordinrias e brilhantes peas de mistificao histrica que se tem notcia, o discurso feito por Jean-Lambert Tallien, em 28 de agosto de 1794, na Conveno. Nesse discurso Tallien acusou Robespierre de ter erigido o Terror em sistema. Aparentemente, tomando emprestado essa expresso de outro terrorista arrependido, Bertrand Barre, Tallien afirmou que esse sistema foi aquele de Robespierre; foi ele que colocou em prtica com a ajuda de alguns subalternos, alguns dos quais caram com ele e outros foram enterrados vivos no desprezo pblico. Continuado sua perorao Tallien afirmava que a Conveno disso foi vtima, nunca cmplice115. Por outro lado, paradoxalmente, Robespierre era visto nessas mesmas obras como uma figura poltica menor, sua grande qualidade era seguir a corrente, ou seja, seu nico mrito seria uma espcie de oportunismo, de estar no lugar certo na hora certa116. Assim, quaisquer qualidades que o arrageois pudesse ter eram menosprezadas ou desconhecidas. Mesmo seu dom da palavra, nica coisa que ele exercitou de 1789 ao 27 de julho de 1794, era caracterizado negativamente117. Segundo a tradio anti-robespierrista, o advogado de Arras era um pitre orateur, um orador medocre118. Esse paradoxo pode ser resumido pela seguinte observao de Bacsko:

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Tanto Tallien quanto Barre pareciam fazer uso da condenao que Robespierre j tinha lanado em seu ltimo discurso sobre os representantes em misso, como era o caso do prprio Tallien, os quais ele acusou de estarem estendendo o sistema de terror e de calnia. Para o discurso de Robespierre: OCR, t. X, p. 546. Quanto fala de Jean-Lambert Tallien feita na seo do 11 do frutidor do ano II (28 de agosto de 1794). Cf. Moniteur Universelle, n 343, tomo 21 de 30 de agosto de 1794. Das passagens marcantes da vida do deputado Conveno Tallien, podem-se citar a suspeita que existe sobre ele de ter participado dos Massacres de Setembro e sua atuao como representante em misso nas provncias. Essa ltima motivou a acusao de corrupo e conspirao do prprio Robespierre. 116 Esse tipo de anlise esquece a luta isolada de Robespierre contra a guerra e seu quase ostracismo por causa disso. Segundo Woloch, // Robespierre no estava sempre afinado com o tempo em momentos crticos, por exemplo, ele correu riscos ao se expor opondo-se febre da guerra em fins de 1791-comeos de 1792. WOLOCH, Isser. On the latent illiberalism of the French Revolution . Washington, American Historical Review, 155, vol. 95, n. 5, p. 1452-70, dezembro de 1990. P. 1466. 117 Franois Furet parece fazer eco a essa viso. No volume que ele organizou com Ran Havli sobre os grandes oradores da Constituinte, Robespierre no aparece. Na verdade, usou-se uma manobra j tradicional para uma historiografia revolucionria incomodada com a figura de Robespierre, manobra que consistia em esquecer o Incorruptvel. Exemplo caracterstico desse processo de esquecimento foi o dicionrio clssico de Kuscinski sobre os convencionais, no qual no existe um verbete Robespierre. Cf. FURET, Franois e HALVI, Ran. Orateurs de la Rvolution franaise. Paris, Gallimard, 1989. Tomo I, Les Constituants. Para o dicionrio de Kuscinski, ver: Kuscinski, Auguste. Dictionnaire des conventionnels. Paris, F. Rieder, 1916-1919. Publicado por Alphonse Aulard. 118 MATHIEZ, Albert. Robespierre: lhistoire et la lgende. Colloque-Mathiez, Dijon 1974, A. Hist. Rvol. Fran. Janvier-mars 1977, a. 49, n 227, p. 5-31. P. 7.

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os retratos de Robespierre hesitavam assim entre dois extremos e se fechavam em uma contradio. De uma parte, Robespierre era um ser extraordinrio; na e por sua malignidade, mas extraordinrio assim mesmo // um gnio do mal, mas um gnio apesar de tudo // De outra parte, esse mesmo discurso denegria Robespierre, o apresentava como medocre.119

Contudo, no devemos esquecer que, como observa Patrice Guenniffey, na assemblia jacobina podia-se ser brilhante, violento, jamais medocre120. O mesmo processo mitificador continuou durante o imprio napolenico. Apesar de Napoleo ter tido veleidades robespierristas numa certa poca, ele no tinha o menor interesse em se ver confundido com Robespierre quando assumiu o poder. Assim, escritores como Lacretelle, Nougaret, Schoell e outros retomaram e difundiram os lugares-comuns da legenda anti-robespierrista. O historiador oficial do regime, Jean-Charles-Dominique Lacretelle, chamado Lacretelle, o jovem, por exemplo, afirmava que faltava talento a Robespierre, ao mesmo tempo em que fazia uma estranha mistura de carter: casto, Robespierre subitamente passara a se dedicar s mais vergonhosas orgias121. No era difcil deduzir a concordncia do regime napolenico para com essas obras, dado que elas escaparam a censura sempre vigilante desse regime. Elas assumiam, assim, um carter oficial122.

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BACSKO, Bronislaw. Comment est fait un tyran Thermidor et la lgende noire de Robespierre. In: Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P.40. 120 GUENIFFEY, Patrice. Robespierre. In: JOURDAN, Annie. Robespierre: figure-rputation. Amsterdan, Editions Rodopi, 1996. P. 5. 121 TULARD, Jean. Robespierre vu par Napolon. In: Actes du Colloque Robespierre. Paris, ditions Sociales, 1967. P. 39-40. 122 Idem, p. 40.

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II. Os historiadores da Restaurao: o abb Papon

Quando em 1815 houve a derrota definitiva do regime napolenico e os Bourbons retornaram ao poder, a maneira com que se retratava o robespierrismo no mudou muito em relao ao perodo anterior. O ambiente poltico da Frana de ento foi marcado pela tentativa de restaurao de alguns aspectos do Antigo Regime, tentativa essa que fracassou em grande parte. Mas, quanto mentalidade poltica, a monarquia dos Bourbons pareceu ter tido mais sucesso. Herdando toda a legenda anti-robespierrista construda depois do 9 Termidor, o discurso oficial da Restaurao acrescentou a essa legenda seus prprios elementos. Ambiente fechado s idias e aos homens da Revoluo, essa poca foi bem representada na literatura pelo velho convencional dos Miserveis de Victor Hugo e a aura de tabu que o envolve. Pensar a Revoluo para os ultras era um verdadeiro pesadelo, composto pelo fim dos privilgios, pelo regicdio e pelo regime democrtico, e esse ltimo, o que pior, confundiu-se com a condenao a morte do rei. E quem encarnou tudo isso, Robespierre, no devia ter seu nome nem mesmo pronunciado. Assim, ser partidrio da democracia como da repblica, seu sinnimo, era ser visto por aqueles que pretendiam retomar o Antigo Regime, por sobre os escombros do Estado napolenico, como uma espcie de partidrio do demnio. Maurice Agulhon salienta que por volta de 1815 ser republicano era ser partidrio da guilhotina e do maximum, um opressor que policia pessoas e bens, um homem de sangue123. Como a palavra repblica estava associada a esse sentido negativo, essa dimenso negativa aumentava ainda mais se lembrarmos que, alm de tudo, Robespierre foi o nico a usar a palavra democracia de forma explicitamente positiva durante a Revoluo124. Isso era o suficiente para que setores conservadores dessa poca associassem palavra uma carga negativa insupervel. Nesse ambiente histrico de retrao do republicanismo, pode-se imaginar que o relatrio do convencional Courtois, a biografia do abade Proyart e tantos outros textos do mesmo tipo tivessem dado o tom sobre o papel de Robespierre.

123 124

AGULHON, Maurice. 1848, o aprendizado da Repblica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991. Pg. 11. Ver supra, nota 16. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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Exemplo caracterstico desse perodo foi a Histoire de la Rvolution de France, de Jean-Pierre Papon125, publicada em 1815, mas escrita durante a poca de Napoleo. Este autor fazia a condenao padro do personagem, associando suas convices polticas democrticas ao orgulho e ao esprito de dominao e, portanto, ao seu suposto desejo que era se tornar ditador126. Alm disso, a anlise que Papon repetia os clichs habituais que j tinham sido criados pelos adversrios de Robespierre poca da Constituinte, como a acusao de que Robespierre seria sobrinho de Damiens, o homem que atentou contra a vida de Luis XV 127, ao mesmo tempo em que repetia a acusao de covardia128. Nessa linha de raciocnio, a concluso de Papon sobre Robespierre s podia ser que ele era um // homem sem nome, sem talentos, sem fortuna, sem personalidade [figure], em uma palavra sem nenhuma das qualidades que atraem // os olhares do homem razovel129. Mas aquilo que parecia verdadeiramente incomodar esse autor era a relao de proximidade de Robespierre com o povo e sua defesa da soberania popular, ou seja, da democracia. Ele era, segundo Papon, o homem da populaa130. Como se pode ver pela seqncia do texto de Papon, populace significava para ele sans-culottes. Nesse requisitrio contra a identidade de Robespierre com o povo, Papon afirmou que Robespierre distorcia o sentido das palavras, dando o nome de povo e de bons cidados a esse conjunto de bandidos, e os familiarizou to bem com essas denominaes, que eles as apropriaram exclusivamente. Em conseqncia, eles se acostumaram em acreditar que a soberania lhes pertencia, pois eles eram essencialmente o povo; que cabia a eles traar os limites da liberdade, estender esse nivelamento que, sob o nome de igualdade, devia levar a

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PAPON, Jean Pierre Papon (dito Abb). Histoire de la Rvolution de France, depuis louverture des tats Gneraux (mai 1789) jusquau 18 brumaire (novembre 1799). Paris, Poulet, 1815. 126 Idem, T. IV, p. 338. Essa argumentao de Papon parece ser um eco daquela feita por um dos idelogos, Pierre Claude Franois Daunou j em agosto de 1794. Nela Daunou, afirmava: em boa hora ele alterou a significao da palavra povo, atribuindo parte menos instruda da sociedade os caracteres e os direitos da sociedade inteira. Ele tambm exaltava sem cessar a justia e as luzes do povo; ningum tinha o direito de ser mais sbio do que o povo //, a revoluo s podia ter fim no momento em que no haveri a mais intermedirios entre o povo e seus verdadeiros amigos. Robespierre fazia desse povo uma divindade, do patriotismo uma religio, da revoluo um fanatismo do qual ele exercia o pontificado supremo. Citado em: BACSKO, Bronislaw. Comment est fait un tyran Thermidor et la lgende noire de Robespierre. In: Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 40. 127 Idem, T. IV, p. 331. Essa era uma acusao comum dos jornais realistas, como a Gazette de Paris. Cf. OCR, t. VI, p. 564. 128 // pois desde que havia perigo, satisfeito de pregar o assassinato e de incitar desordem, ele se escondia, como ele fez no 10 de agosto, tanto ele era covarde. Idem, p. 337 -8. 129 Idem, T. IV, p. 338-9. 130 Idem, T. IV, p. 333.

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uma nova diviso nas fortunas. Robespierre foi um daqueles que mais contriburam para fazer nascer essas pretenses entre os sans-culottes, por sua doutrina e sua conduta; de maneira que o povo, colocando nele sua esperana, tornou-se o instrumento mais poderoso de seus projetos.131 Conforme observou Jacques Godechot, apesar de combater Robespierre, Papon mostrou que ele tinha a paixo da igualdade, no s poltica, mas tambm econmica132. Na verdade, era esse ponto que causava um grande incmodo historiografia do tipo da de Papon. Desse modo, as afirmaes de Papon se calcaram, sobretudo, numa crtica ao projeto poltico popular dos robespierristas. Podemos perceber isso inclusive em sua crtica da linguagem do robespierrismo. Segundo ele, a transformao da palavra povo, transportada, como eu o disse, assemblia impura dos sans-culottes, aportou uma mudana em sua linguagem133. Em sua crtica da linguagem revolucionria, parece ecoar as palavras de Brissot, que tratou da distino entre povo e plebe romana, transpondo as distines que estes termos possuam na sociedade da Roma Antiga para a sociedade da Revoluo, na qual a linha divisria passava entre os proprietrios e a arraia mida. Conforme Brissot, no momento em que
a tirania foi abaixo, que o trono est dissolvido, quem que nos ameaa de insurreio? No o povo, populus, ele se insurgiria contra si mesmo; a plebe, plebs, que, pobre e desejosa de riquezas, quer tir-las dos proprietrios, seja por sedies, seja por leis que ele quer ditar aos representantes de todo o povo.134

131 132

Idem, T. IV, p. 334. Grifado no original. GODECHOT, Jacques. LHistoriographie franaise de Robespierre. Actes du Colloque Robespierre. Paris, ditions Sociales, 1967. P. 168-69. 133 PAPON, Jean Pierre. Opus cit. T. IV, p. 335. Grifado no original. 134 Citado em: JAUME, Lucien. Le discours jacobin et la dmocratie. Paris, Fayard, 1989. Pg. 71.

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III. Os historiadores da Restaurao: Madame de Stal

Uma obra de um nvel superior da do Abb Papon so as Considrations sur la Rvolution franaise de Madame de Stal, inteligente observadora dos acontecimentos da Revoluo. Diferentemente de Papon, ela chegou a se encontrar com Robespierre poca dos Estados Gerais, quando Necker, seu pai, concedeu-lhe uma entrevista. O contedo poltico da obra de Madame de Stal antecipava o liberalismo da Restaurao e da monarquia de julho135. Era, assim, um discurso poltico liberal duro136, no aceitando qualquer forma de restrio propriedade e tendo um profundo ressentimento em relao ao povo. O tratamento histrico dispensado pela filha de Necker aos principais acontecimentos da Revoluo era caracterizado por consideraes muito subjetivas, a comear pelo papel excessivo que seu pai tinha em sua histria da Revoluo. Esse tipo de considerao iria caracterizar, por exemplo, sua maneira de ver o Comit de Salvao Pblica. Conforme Stal, se se excetua a conduta da guerra, a direo dos negcios apenas era uma mistura de grosseria e de ferocidade, na qual no se pode descobrir nenhum plano, fora aquele de fazer massacrar a metade da nao por outra137. Por outro lado, Madame de Stal fez anlises que historiadores posteriores deram grande importncia. Sua viso das causas do Terror so desse gnero. Segundo Viallaneix, ela foi a primeira a colocar // o problema do Terror que dividiu os espritos ao longo de todo o sculo XIX, apresentando-o como um acesso de loucura coletiva. Ela desculpou Robespierre. Deve-se condenar o carrasco que uma sociedade suporta e encoraja?138

135

o liberalismo de Germaine de Stal , com efeito, aquele dos liberais da Restaurao e da monarquia de julho //. GODECHOT, Jacques. Introduo. In: STAL, Germaine Necker, dita Madame de. Considrations sur la Rvolution franaise. Paris, Tallandier, 1983. P. 31. Originalmente o livro de Madame de Stael foi publicado postumamente em 1818. 136 Idem, ibidem. 137 STAL, Germaine Necker, dita Madame de. Considrations sur la Rvolution franaise. Paris, Tallandier, 1983. P. 306. Quanto a esse subjetivismo, so conhecidas as observaes severas de Stendhal e Manzoni. O primeiro disse que o nico mrito da autora das Consideraes foi de bem pintar os homens com quem ela jantou, o que levava o grande escritor francs a concluir sarcasticamente que os talentos necessrios para encetar um bom romance so um pouco diferentes daqueles que preciso para escrever a histria. Citado em: CONFALONIERI, Luca Baldini. Images de Robespierre dans les crits de Manzoni. In: EHRARD, Jean (org.). Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 422, nota 61. 138 VIALLANEIX, Paul. La voie royale, essai sur lide de peuple dans luvre de Michelet . Paris, Flammarion, 1971. P. 210.

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A originalidade de sua viso do Terror residia no fato de que ela o enraizou no contexto do Antigo Regime e no como uma excepcionalidade da Revoluo. Podemos ver isso quando ela se interrogava: // e de onde vinha ento os pendores desordenados que foram to violentamente desenvolvidos nos primeiros anos da Revoluo, se no fosse de cem anos de superstio e de arbitrrio?139 Essa sua maneira de ver os desregramentos provocados pelos primeiros anos da Revoluo se assemelhava muito avaliao feita por Graccus Babeuf desses mesmos acontecimentos do incio da Revoluo. O jornalista picardo, escrevendo para sua mulher a respeito dos tumultos polticos da capital em julho de 1789, afirmava profeticamente: tudo isso, minha pobre mulher, ter, ao que parece, conseqncias terrveis. Continuando seu comentrio, ele se indagava
// o furor do povo esta longe de ser apaziguado pela morte do Governador da Bastilha, e a demolio dessa infernal priso // Eu compreendo que o povo faa justia, eu aprovo essa justia quando ela satisfeita pelo aniquilamento dos culpados, mas ela hoje poderia no ser cruel?

A resposta que ele dava essa indagao era extraordinariamente semelhante s reflexes de Stal, ao fazer tambm apelo continuidade entre Antigo Regime e Revoluo: os suplcios de todos os gneros, o esquartejamento, a tortura, a roda, as fogueiras, o chicote, as forcas, os carrascos multiplicados em todas as direes, nos engendraram hbitos muito malficos!140

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STAL, Germaine Necker, dita Madame de. Considrations sur la Rvolution franaise. Paris, Tallandier, 1983. P. 304. 140 Cf. DOMMANGET, Maurice. Pages choisies de Babeuf. Paris, Librairie Armand Colin, 1935. P. 74-75. E tambm: LEGRAND, Robert. Babeuf et ses compagnons de route. Paris, Socit des tudes Robespierristes, 1981. P. 12. A viso da continuidade entre o Terror revolucionrio e o do Antigo Regime bastante recorrente entre os prprios homens que viveram a Revoluo. Alm de Madame de Stal podemos citar os redatores do jornal Voyages de lopinion dans les quatre parties du monde, que em 1789, em seu nmero 1, afirmavam que: como homem e como cidado, deve-se detestar tais excessos mas, pensando nisso com o sangue-frio de um poltico, era quase impossvel que no fossem cometidos; as sesses de justia nos parlamentos, a audincia do rei nos Estados Gerais, tudo havia acostumado o povo a ver a fora assumir o lugar da lei. Os abusos do poder popular sucederam-se necessariamente aos abusos do poder ministerial; a raiva do povo o contraponto do despotismo. Citado em: NASCIMENTO, Milton Meira do. Opinio pblica e revoluo. So Paulo, Nova Stella/EDUSP, 1989. P. 67. Mais tarde coube a Tocqueville retomar em suas anlises da Revoluo essas idias. Conceitualizando ele afirmava que a Revoluo Francesa nada mais que trevas ser para quem s quiser examin-la ela prpria: nos tempos que a antecedem que preciso procurar a nica luz capaz de ilumin-la. Sem uma viso ntida da antiga sociedade, das suas leis, dos seus vcios, dos seus preconceitos, das suas misrias, da sua grandeza, nunca se chegar a compreender o que os franceses fizeram no decorrer dos sessenta

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Contudo, a avaliao de Stal sobre o robespierrismo retomou, em parte, os clichs anti-robespierristas. Ao mesmo tempo, ela manifestou uma tomada de posio ideolgica bem clara, na qual sobressai uma condenao dos jacobinos em benefcio dos girondinos. Para ela, os ltimos homens que, nesses tempos, eram ainda dignos de ocupar um lugar na histria, foram os girondinos. Eles sentiam sem dvida no fundo do corao um vivo arrependimento dos meios que eles tinham empregado para derrubar o trono141. J os jacobinos eram condenados sem apelao. Ela procedia distino historiogrfica habitual entre os dois principais montanheses, sem vantagens para nenhum dos dois: Danton era um faccioso, Robespierre um hipcrita //142. Contudo, a filha de Necker reforava a viso termidoriana do Robespierre sedento de poder. Assim, se
Danton queria o prazer, Robespierre somente o poder. Ele enviava ao cadafalso uns como contra-revolucionrios, outros como ultra-revolucionrios. Havia alguma coisa de misterioso em sua maneira de ser, que fazia planar um terror desconhecido no meio do terror ostensivo que o governo proclamava. Nunca ele adotou os meios de popularidade geralmente percebidos ento: ele no se vestia mal; ao contrrio, ele usava p em seus cabelos, suas roupas eram cuidadas e sua atitude no tinha nada de familiar. O desejo de dominar o levava, sem dvida, a se distinguir dos outros no momento mesmo em que se queria em tudo a igualdade. Percebia-se tambm os traos de um desejo secreto, em seus discursos obscuros que ele fazia na Conveno, e que lembravam, a certos respeitos, aqueles de Cromwell. Entretanto, s um chefe militar poderia tornar-se ditador. Mas ento o poder civil era bem mais influente que o poder militar; o esprito republicano estigmatizava com a desconfiana todos os generais vitoriosos; os prprios soldados entregavam seus chefes, no momento mesmo em que se elevava a menor inquietude sobre sua boa f.143

No entanto, sua viso da queda de Robespierre era pelo menos curiosa. Segundo ela,
os dogmas polticos, se esse nome pode convir a tais desvios, reinavam ento e no os homens. Via-se alguma coisa de abstrato na autoridade, para que todo mundo nela supusesse tomar parte. Robespierre tinha adquirido a reputao de uma alta virtude democrtica; acreditavam-no incapaz de uma vida pessoal: desde que suspeitaram-na, seu poder foi comprometido.144

Robespierre, assim, ao celebrar a festa do Ser Supremo, quis tirar partido pessoal de uma religio arrumada a sua maneira145. Madame de Stal, comentando o cortejo da festa

anos que se seguiram sua queda, e esta viso ainda no ser suficiente para penetrar at o cerne da nossa nao. O Antigo Regime e a Revoluo. Edio brasileira, p. 188. 141 STAL, Germaine Necker, dita Madame de. Considrations sur la Rvolution franaise. Paris, Tallandier, 1983. Introduo e notas de Jacques Godechot. P. 305. 142 Idem, P. 314. 143 Idem, ibidem. 144 Idem, ibidem. 145 Idem, ibidem

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do Ser Supremo, dizia que na procisso dessa festa mpia, Robespierre teve a atitude de passar frente do cortejo, para fazer valer sua preeminncia sobre seus colegas e desde ento ele se perdeu. Analisando essa passagem, o escritor italiano Alessandro Manzoni afirmava:
como se pode esquecer e negligenciar a esse ponto os fatos ao mesmo tempo em que se quer dar tanta eficcia aos mais pequenos? Enquanto presidente da Conveno [Manzoni lembra aqui a eleio de Robespierre para a presidncia mensal da Conveno], ele devia caminhar em sua cabea; estava no cerimonial regulado por um decreto. Se disse, o teriam mesmo, eu creio, reprovado, no 9 do termidor, que ele tinha afetado ficar alguns passos frente da Conveno; nesse caso, esta somente tinha que andar mais rpido para o alcanar. Mas o que seria a histria se uma tal circunstncia tivesse sido a perda de um homem que 146 era um sistema .

Todavia, se sua viso do incio do Terror tinha bastante originalidade, sua viso do governo revolucionrio era equivocada. Creditando o terror parcialmente guerra, ela imaginava que o episdio mais violento do Terror tinha sido motivado por causa das paixes dos homens. Isso porque para ela quando esse episdio se desenrola (1793), o sucesso militar dos exrcitos revolucionrios j tinha permitido colocar a paz no horizonte, esquecendo, entretanto, que a guerra continuou durante todo o perodo do governo revolucionrio. Contudo, Madame de Stel traou um retrato sem meias medidas sobre o que ela pensava de Robespierre. Ela reteve do contato pessoal com o Incorruptvel alguns elementos que lembravam a legenda negra construda pelos escritores do perodo termidoriano e diretorial. Esse retrato caracterizava-se pela subjetividade da anlise dos traos do personagem, bem ao gosto dessa legenda. Eles // eram ignbeis, sua tez plida, suas veias de uma cor verde147. Na verdade, ela reproduzia um dos contedos caractersticos do antirobespierrismo, a saber, a identificao de Robespierre monstruosidade ou feira. Nesse aspecto, ela voltava a reproduzir uma viso subjetiva sobre o arrageois, j que as fontes no corroboravam essa imagem do Incorruptvel148. Por outro lado, ela entremeava s anlises subjetivas, anlises que perpassavam uma certa perplexidade diante do cidado de Arras: [Robespierre] no era, entretanto, nem mais

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Citado em: CONFALONIERI, Luca Baldini. Images de Robespierre dans les crits de Manzoni . In: EHRARD, Jean (org.). Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 424. 147 STAL, Germaine Necker, dita Madame de. Opus cit. P. 313-314. Godechot afirmava que Madame de Stal, ao descrever dessa forma o Incorruptvel, dava credibilidade legenda negra. Idem, p. 644, nota 142. 148 Cf. FLEISCHMANN, Hector. Robespierre et le femmes. Paris, Albin Michel, 1909.

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hbil nem mais eloqente que os outros; mas seu fanatismo poltico tinha um carter de calma e de austeridade que o fazia ser temido por todos os seus colegas149. Associado a essas perplexidades, vinha uma condenao de Robespierre, em tom condescendente, pelo que ela chamava de suas teses absurdas: seu desejo de igualar as fortunas e as classes, ou seja, seu lado nivelador (como diria o convencional Courtois):
Eu conversei com ele uma vez na casa de meu pai em 1789, quando o conhecamos apenas como um advogado do Artois, extremado em seus princpios democrticos. Ele sustentava as teses mais absurdas com um sangue frio que tinha um ar de convico e eu acreditaria fortemente que, nos comeos da revoluo, ele tinha adotado de boa f, sobre a igualdade de fortunas tanto quanto sobre aquela de status [rangs], certas idias apanhadas em suas leituras, e com as quais seu carter invejoso e medocre se armava com prazer.150

Concluindo essa anlise, ela fazia a avaliao tpica sobre o personagem, a j velha acusao de ambio: ele tornou-se ambicioso quando triunfou sobre seu rival em demagogia, Danton, o Mirabeau da populaa.151 No havia dvida que ela via com a maior hostilidade os acontecimentos do Terror, que atribua ao fanatismo poltico. Um sentimento de perturbao caracterizava seus comentrios sobre essa poca, em relao qual ela dizia ao leitor que ns passaremos, o mais rapidamente que ns ser possvel, sobre essa crise horrvel, nas quais nenhum homem deve fixar a ateno, nenhuma circunstncia poderia excitar o interesse //152 Entretanto, ela reconhecia que nenhum nome restar dessa poca exceto Robespierre153.

149 150

STAL, Germaine Necker, dita Madame de. Opus cit. P. 313-314. Idem, ibidem. 151 Idem, ibidem. 152 Idem, p. 301. 153 Idem, p. 313.

45 Captulo III Os historiadores liberais da Restaurao

I. Adolphe Thiers

Na historiografia da Revoluo, o advento dos historiadores liberais da poca da Restaurao constituiu um momento fundamental. Isso era to evidente que Engels, a propsito de Auguste Mignet, afirmava que ele fazia uma historiografia de nova escola 154. O mesmo tambm pode ser dito dos trabalhos sobre a Revoluo de Augustin Thierry, Franois Guizot, e do gmeo siams155 de Auguste Mignet, Adolphe Thiers. Todos esses trabalhos implicaram numa mudana considervel da viso que se tinha at ento dos acontecimentos de 1789, medida que conseguiram ultrapassar, entre outras coisas, a viso mtico-ideolgica da Revoluo. Fruto dialtico da relao entre dois acontecimentos, a Revoluo Francesa e a monarquia restaurada dos Bourbons156, essa historiografia fez uma opo clara pela defesa do processo revolucionrio de 1789, visto como um elemento de positividade na histria. Ancorada no desejo de refutar as tentativas de retomada do absolutismo aps a ascenso de Carlos X157 ao trono em 1824, a historiografia liberal da Restaurao deu luta de classes, pela primeira vez, contornos de conceito histrico158. Atravs desse conceito, os historiadores liberais defenderam o projeto revolucionrio, medida que esse era uma conseqncia da luta pela ampliao do poder das classes mdias e, dessa forma, uma manifestao do progresso frente sociedade do Antigo Regime e a sua estrutura de

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BRUHAT, Jean. La rvolution franaise et la formation de la pense de Marx . Paris, AHRF, 38 ano, n. 184, abril-junho de 1966. P. 125-170. P. 142-143, nota 47. 155 Macmanners chama Thiers e Mignet de os irmos siameses dos estudos revolucionrios. MACMANNERS, J. The historiography of the French Revolution . In. GOODWIN, A. (ed.). The american and french revolutions. Cambridge, Cambridge University Press, 1965. The New Cambridge Modern History. vol. VIII, P. 627. 156 Comentando o trabalho desses historiadores, McManners afirma que Franceses estavam agora confrontando a histria porque a histria, na forma de Revoluo, os estava confrontando. MACMANNERS, J. The historiography of the French Revolution. In. GOODWIN, A.(ed.). The american and french revolutions. Cambridge, Cambridge University Press, 1965. The New Cambridge Modern History. vol. VIII. P. 625. 157 Publicadas no perodo de plena reao poltica, as obras de Thiers e Mignet atuam como uma mquina de guerra contra o governo de Carlos X. GRARD, Alice. A Revoluo Francesa: mitos e interpretaes. 2 ed. So Paulo, Editora Perspectiva, 1999. P. 43. 158 PIGUET, Marie-France. Classe. Histoire du mot et gense du concept: des physiocrates aux historiens de la Restauration. Lyon, Presses Universitaires de Lyon, 1996. Captulo 6.

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privilgios. Entre outras coisas, isso implicou tanto para Thiers quanto para Mignet uma avaliao da Revoluo como um passo na evoluo rumo liberdade, para a qual o Terror foi um mal necessrio159. Contudo, quanto ao aspecto propriamente ideolgico, a busca de um caminho entre os excessos da repblica jacobina e os excessos da monarquia restaurada fez com que esses historiadores definissem a liberdade de forma limitada, afastando-se, ao mesmo tempo, de qualquer projeto igualitrio. Desse modo, eles eram partidrios de frmulas polticas do tipo monarquia constitucional ou repblica censitria. Num quadro historiogrfico composto por esses elementos, o papel de Robespierre durante a Revoluo ainda era analisado, no mnimo, com acrimnia. Como tratar historicamente o personagem fundamental do ano II? Os grandes historiadores liberais da dcada de 1820, apesar de demonstrarem clara seriedade profissional e arrojo poltico o que significa dizer que, alm de defend-la, para eles a Revoluo era um todo160 prosseguiram, de certa forma, o requisitrio termidoriano de condenao do Incorruptvel. A comear por Thiers. Desejoso de fazer valer as garantias liberais originrias da Revoluo e o primado poltico da classe mdia, Adolphe Thiers era, conforme Godechot 161, hostil Repblica democrtica do ano II e ao Terror. Para ele a liberdade era aquela de uma sociedade dirigida por uma elite apoiando-se sobre os votos limitados das classes esclarecidas162. Partindo desse ponto-de-vista, Thiers construiu uma histria da Revoluo em que sua viso ideolgica se acomodava naturalmente com o projeto poltico girondino. Desse modo, sua anlise do processo revolucionrio construiu-se apoiada na preferncia pelos girondinos em detrimento dos jacobinos e, entre esses, era o robespierrismo o alvo principal. Apesar dos historiadores liberais da Restaurao terem adotado instrumentais tericos de nova escola, os quais faziam com que eles escapassem da mitificao do perodo anterior, cabe para eles tambm a frmula que Grard Walter aplicou a outros historiadores da

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Cf. BETOURN, Olivier e HARDIG, Aglaia I. Penser lhistoire de la Rvolution. Paris, ditions la Dcouverte, 1989. P. 52. 160 Idem, ibidem. 161 GODECHOT, Jacques. Lhistoriographie franaise de Robespierre. In: Actes du colloque Robespierre. Paris, ditions Sociales, 1967. P. 170. 162 WALCH, Jean. Les matres de lhistoire 1815-1850. Augustin Thierry, Mignet, Guizot, Thiers, Michelet, Edouard Quinet. Paris-Genebra, Champion-Slatkne, 1986. P. 192.

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Revoluo, isto , de que passagens de suas obras pareciam ensaios de psicologia intuitiva aplicada em matria historiogrfica163. Isso porque Thiers, mais do que Mignet, como veremos a seguir, alimentava-se e alimentava a legenda anti-robespierrista e, por via de conseqncia, pontuava sua obra com anlises subjetivas de Robespierre, limitando muito, no tocante a nosso personagem, a margem para se conhecer suas idias. Isso se evidenciava mais ainda nas passagens em que ele comparava especificamente os girondinos e Robespierre. Nessas passagens a adjetivao dos personagens ganhava um tom francamente subjetivo. Desse modo, as reaes polticas de Robespierre eram retratadas como a manifestao da inveja e do cime. Com efeito, Robespierre era descrito nos comeos da Conveno como algum que somente era ento um ciumento, mas ele no tinha bastante grandeza para ser um ambicioso164. Porm, quanto aos girondinos, suas diferenas para com Robespierre eram uma questo de clera e de irritao, que Thiers desculpava afirmando que eles:
// se encolerizavam impiedosamente contra Robespierre, porque o sucesso do que se chamava sua virtude e sua eloqncia os irritava muito; eles tinham por ele o ressentimento que sofre a verdadeira superioridade contra a mediocridade orgulhosa e muito celebrada.165

Mesmo durante a Constituinte, momento em que o deputado de Arras foi, ao final dos seus trabalhos, aclamado pelo povo, Thiers no deixava de avali-lo negativamente em relao aos futuros girondinos. Se Robespierre era retratado de uma forma mais positiva do que Marat Robespierre teria sido mais capaz [que Marat], parque ele tinha feito nos jacobinos uma clientela de ouvintes, ordinariamente mais ativa que uma clientela de leitores; mas ele tambm no tinha todas as qualidades necessrias a comparao com os brissotistas lhe era desfavorvel166. Ao mesmo tempo, Thiers retomava a legenda anti-robespierrista em muitos aspectos. Ele repisava, por exemplo, o tema da mediocridade do cidado de Arras:
Robespierre, medocre advogado de Arras, foi deputado por essa cidade aos Estados Gerais. L, ele se aliou com Ption e Buzot, e sustentava com afetao as opinies que estes defendiam com uma convico profunda e calma. Ele parecia antes ridculo pela gravidade de sua alocuo e a pobreza de sua eloqncia.167

163 164

WALTER, Grard. Hbert et le Pre Duchesne. Paris, J.-B. Janin, 1946. P. 313. THIERS, Adolphe. Histoire de la Rvolution franaise. Paris, Furne e Cia, 1865. T. I, p. 330. 165 Idem, T. I, p. 330. 166 Idem, t. I, p. 251. 167 Idem, ibidem.

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Esse tipo de anlise continuou ao longo de toda a Histoire de la Rvolution franaise. Na anlise da crtica de Robespierre ao sistema burgus dos girondinos, no momento em que, na primavera de 1793, acirravam-se os conflitos entre estes e os jacobinos, a atitude de Robespierre era tratada como difamao.168 Se o julgamento poltico era negativo, a viso do personagem no deixava de ter um tom quase sempre custico. Para Thiers, ele era um dos seres mais odiosos que tinh am dominado os homens //. E ele seria um dos mais vis se ele no tivesse tido uma convico forte e uma integridade reconhecida.169 Porm, Thiers no deixava de considerar positivamente certos aspectos do personagem. Assim,
no meio dessa desordem de opinies, uma reputao mantinha-se sempre inacessvel aos ataques, era a de Robespierre. Ele certamente nunca teve indulgncia para com os indivduos; ele no tinha gostado de nenhum proscrito, nem freqentou nenhum general, nenhum financista ou deputado. No se poderia acus-lo de ter tido nenhum prazer com a revoluo, pois ele vivia obscuramente junto a um marceneiro, e entretinha, diz-se, com uma de suas filhas, uma relao, de qualquer maneira, ignorada. Severo, reservado, ntegro, ele era e passava por incorruptvel. Somente se poderia lhe reprovar o orgulho, espcie de vcio que no suja como a corrupo, mas que faz grandes males nas discrdias civis, e que se torna terrvel junto aos homens austeros, aos devotos religiosos ou polticos, porque sendo sua nica paixo, eles a satisfazem sem distrao e sem piedade..170

O mesmo procedimento psicolgico apontado mais acima se repetia quando era analisada a atitude de Robespierre durante o drama do germinal171, o episdio poltico que levou a condenao de Danton. Assim, para explicar a tomada de posio de Robespierre frente aos Indulgentes, Thiers de novo apresentava a suposta alma ciumenta172 do personagem como um dos elementos que levaram Robespierre a agir da forma como agiu contra Danton. A mesma avaliao j tinha aparecido quando da disputa entre Robespierre e Louvet durante o Legislativo. Quando Robespierre acusou este ltimo, a compreenso de Thiers se resumiu a afirmar que o ciumento Robespierre o denunciou imediatamente173. Mesmo num dos momentos fundamentais da carreira do advogado de Arras, o julgamento de Thiers segue os mesmos passos. Tratava-se de sua moo vitoriosa pela no

168 169

THIERS, Adolphe. Histoire de la Rvolution franaise. Paris, Furne e cia, 1865. P. 490-492. Idem, t. I, p. 92. 170 Idem, t. I, p. 587. 171 Expresso de Soboul. SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793-9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P. 761 e seguintes. 172 Idem, t. I, p. 771. 173 Idem, t. I, p. 184.

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reelegibilidade, e era novamente a inveja que teria motivado Robespierre a propor tal moo. Thiers repetiu, em parte, os mesmos clichs anteriormente difundidos pelos termidorianos. Inclusive a idia cara aos homens desse regime de que, alm de tudo, faltava a Robespierre a coragem. Como, por sua vez, esse tipo de concepo era tpica dos girondinos foi Vergniaud quem primeiro publicamente usou esse tipo de argumento contra Robespierre Thiers parece apenas reproduzi-la automaticamente. Foi dessa forma que ele julgou a ausncia de Robespierre nas aes que levaram Revoluo do 10 de agosto. Para Thiers, Robespierre era um devoto // se escondendo de dia do perigo; aparecendo para se fazer adorar depois da vitria conseguida por outros174.

174

Idem, t. II, p. 92. Thiers deveria ter revisado esse tipo de afirmao luz do que Tocqueville escreveu, em seus Souvenirs, sobre seu comportamento no dia 24 de fevereiro de 1848. TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranas de 1848. So Paulo, Companhia das Letras, 1991. P.79.

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II. Auguste Mignet: o robespierrismo e a Revoluo da multido

Falando para seus contemporneos por meio da Revoluo, Mignet preocupava-se, de uma certa forma, que a histria funcionasse a partir da frmula ciceroniana da histria mestra da vida. Desse modo, um dos ensinamentos que a Revoluo podia dar aos homens do seu tempo, e sabemos que Mignet dialogava diretamente com a situao poltica da Restaurao, era que no se devia opor uma resistncia fantica quelas inovaes fundamentais que aparecem na histria com o passar dos sculos. Esse era o caso do advento das classes mdias e do regime econmico e poltico que elas encarnavam. Resistir a essa inovao acabou levando a uma espiral de radicalizao, a qual trazia personagens indesejveis cena da Histria. Assim, ele pretendia que o exemplo da Revoluo pudesse ensinar // que em revoluo tudo depende de uma primeira recusa e de uma primeira luta! Para que uma inovao seja pacfica, preciso que ela no seja contestada: seno, a guerra se declara e a revoluo se estende, porque o povo inteiro se compromete para defend-la. No seguindo esse ensinamento, o que aconteceria seria que // quando a sociedade assim modificada em seus fundamentos, so os homens mais audaciosos que triunfam, e, no lugar dos reformadores prudentes e moderados, tm-se reformadores extremos e inflexveis.175 Era nesse contexto que aparecia, na histria de Mignet, o robespierrismo e o que ele chamava de a Revoluo da multido176, a qual era fruto do fanatismo, no sentido de visionrio e inspirado, e da pobreza intelectual177. A revoluo da multido era a maneira como Mignet caracterizava a Revoluo do 10 de agosto de 1792, a qual tinha colocado no centro da revoluo os proletrios178. Essa Revoluo viria a estabelecer em 1793, por meio do poder dos montanheses, um regime constitucional sob o signo da multido. Assim, a

175

MIGNET, Franois Auguste. Histoire de la Rvolution franaise depuis 1789 jusquen 1814. Paris, Firmin Didot, 1824. T. II, p. 58-59. 176 L [em Lyon], como em outras partes, quis -se, depois do 10 de agosto, fazer a revoluo da multido, e estabelecer seu governo. MIGNET, F. A. Histoire de la Rvolution franaise depuis 1789 jusquen 1814. Paris, Firmin Didot, 1824. T. II, p. 5. 177 Mignet defendia a idia de que a multido devia ser excluda da soberania medida que ela ignorava a natureza e os limites da vida poltica. KNIBIEHLER, Yvonne. Naissance des sciences humaine: Mignet et lhistoire philosophique au XIXeme sicle. Paris, Flammarion, 1973. P. 161-2. 178 Expresso do prprio Mignet.

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crtica histrica de Mignet recaa justamente sobre a radicalizao democrtica que se iniciou em 1792. Como adepto de uma forma moderada de governo, Mignet preferia o projeto constitucional encarnado na Constituio de 1791. Pode-se ver isso em sua crtica da constituio de 1793. Dizia ele que em alguns dias essa constituio nova foi adotada na Conveno, e submetida aceitao das assemblias primrias. Concebe-se facilmente o que ela devia ser das idias que ento reinavam sobre o governo democrtico.179 Por outro lado, a Constituio de 1791 tinha um outro carter. Ele a apresentava dessa forma:
Os constituintes passavam por aristocratas: a lei que eles tinham estabelecido era considerada como uma infrao aos direitos do povo, porque ela impunha condies para o exerccio dos direitos polticos; porque ela no consagrava a igualdade mais absoluta; porque ela estabelecia a nomeao dos deputados e dos magistrados pelos eleitores, e esses eleitores pelo povo; porque ela limitava em certos casos a soberania nacional, excluindo uma parte dos cidados ativos das grandes funes pblicas, e os proletrios das funes de cidados ativos; enfim, porque no lugar de fixar por base nica dos direitos a populao, ela a combinava em todas essas operaes com a fortuna.180

Concluindo, ele afirmava que a lei constitucional de 1793 estabelecia o puro regime da multido: no somente ela reconhecia o povo como a fonte de todos os poderes, mas tambm ela lhos delegava o exerccio. Uma soberania sem limites //.181 Portanto, assim como Thiers, Auguste Mignet no era simptico ao Incorruptvel e aos jacobinos. Contudo, ele reconhecia o papel fundamental dos montanheses no processo revolucionrio. Mesmo tendo uma ntida preferncia pelos girondinos, Mignet era consciente da circunstncia excepcional da Revoluo e aprovaria as palavras de Regis Debray, o qual dizia que nas crises desesperadas, solues centristas so inoperantes182. Mignet deixava claro que, sem os montanheses, a Frana no teria obtido as conquistas fundamentais que compuseram a agenda da liberdade e da civilizao.
duvidoso que os Girondinos tivessem triunfado, mesmo se mostrando unidos, e sobretudo que triunfando eles tivessem salvado a Revoluo. Como eles teriam feito com leis justas o que os Montanheses fizeram com medidas violentas? Como eles teriam vencido os inimigos estrangeiros sem fanatismo, comprimido os partidos sem amedrontar,

179

MIGNET, Franois Auguste. Histoire de la Rvolution franaise depuis 1789 jusquen 1814 . Paris, Firmin Didot, 1824. T. II, p. 11-12. 180 Idem, ibidem. 181 Idem, t. II, p. 12. 182 Citado em: KAPLAN, Steve. Adieu 89. Paris, Fayard, 1993. P. 721.

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alimentado a multido sem o maximum, alimentado os exrcitos sem requisio? Se o 31 de Maio tivesse tido lugar em sentido inverso, ter-se-ia visto provavelmente desde ento o que se mostrou mais tarde, a diminuio da ao revolucionria, os ataques redobrados da Europa, a retomada das armas de parte de todos os partidos, as jornadas de prairial, sem poder rechaar a multido; as jornadas de vendemirio, sem poder rechaar os realistas, a invaso dos coalisados, e, com base na poltica em uso nessa poca, a fragmentao da Frana. A repblica no era bastante poderosa para suportar a tantos ataques, como ela o foi depois da reao de termidor.183

Assim, o Terror era justificado pela situao histrica vivida pela Frana revolucionria, no momento em que a Europa e a Revoluo se confrontaram quando a guerra foi declarada, assim como pela idia da resistncia oferecida pelo Antigo Regime, o que Mignet analisava por meio da sua idia de que a primeira recusa engendrara a primeira luta e da por diante todo o edifcio social fora perturbado pela revoluo da multido. Dessa avaliao saa uma clara justificativa do Terror e do papel dos montanheses e, com eles, o de Robespierre. Contudo, seu julgamento poltico dos robespierristas era bem claro. Concebendo a impossibilidade nos velhos e grandes estados da liberdade democrtica184, Mignet afirmava que Saint-Just e Robespierre queriam fazer uma repblica maneira dos antigos185:
Robespierre e Saint-Just deram o plano dessa democracia, da qual eles professavam os princpios em todos os seus discursos; eles queriam mudar os costumes, o esprito e os hbitos da Frana; eles queriam faz-la uma repblica maneira dos antigos. A dominao do povo, dos magistrados sem orgulho, cidados sem vcios, a fraternidade das relaes, o culto da virtude, a simplicidade das maneiras, a austeridade dos caracteres; eis o que eles pretendiam estabelecer.186

Depois dessa caracterizao do robespierrismo, Mignet fazia uma relao dos hbitos, costumes e atitudes que ele queria implantar, como a liberdade e igualdade, indivisibilidade, salvao pblica, culto do Ser Supremo, probidade, modstia, bom senso. E conclui: tal era o smbolo dessa democracia. O fanatismo no poderia ir mais longe187. No decorrer de sua obra, ele fazia desses hbitos e costumes as justificativas utilizadas pelo robespierrismo para liquidar um a um seus adversrios. Numa palavra, foi esse sistema que gerou os excessos do terror.

183

MIGNET, Franois Auguste. Histoire de la Rvolution franaise depuis 1789 jusquen 1814 . Paris, Firmin Didot, 1824. T. II, p. 2. Grifado no original. 184 Idem, t. II, p. 191-7. 185 Idem, t. II, p. 61. 186 Idem, t. II, p. 61. 187 Idem, t. II, p. 61-2.

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Aqui mais uma vez se repete o debate entre antigos e modernos, como se ver ao longo da historiografia da Revoluo e do robespierrismo. De uma certa forma, ele j tinha aparecido mesmo durante a Revoluo, no embate entre Vergniaud e Robespierre de maio de 1793, evocado por Jaurs em sua comparao desses dois personagens 188. Em parte, o que estava implcito nesse debate era a incompatibilidade do projeto liberal dos homens da Restaurao com o projeto poltico robespierrista. Para homens como Mignet e Thiers, escrevendo a partir de uma poca em que a Revoluo ainda era histria recente, o republicanismo robespierrista era visto como a tentativa de instaurar o governo direto do povo e perturbar assim toda uma concepo poltica baseada numa idia de sociedade em que o poder poltico estivesse nas mos da classe mdia, sob um governo de juste milieu. Da a condenao do robespierrismo, por desejar construir uma repblica maneira dos antigos e do radicalismo excessivo, metafsico da Revoluo na sua fase central189. Conforme Mignet, Robespierre possua o apoio de
uma seita imensa e fantica, da qual ele tinha pedido o governo e sustentado os princpios desde o fim da Constituinte. Essa seita tinha sua origem no sculo XVIII, da qual ela representava certas opinies. Ela tinha por smbolo em poltica a soberania absoluta do Contrat social de Jean-Jacques Rousseau, e na crena do desmo da Profisso de f do vicrio saboiano; ela conseguiu mais tarde realiz-los por um momento na constituio de 93 e no culto do Ser Supremo. Houve, em diversas pocas da revoluo, mais sistema e fanatismo que se acreditava.190

Mignet no colocava em questo a acusao girondina e depois termidoriana de que Robespierre aspirava ditadura. Podemos ver isso no retrato que ele fez de Bertrand Barre191. Para ele, Barre era um homem que teria se dedicado ao regime do Terror no por fanatismo ou por crueldade. Porm, a atitude de Robespierre no deixava dvidas: Robespierre era algum que ambicionava a tirania. Assim ele tinha qualidades para a tirania: uma alma sem nenhuma grandeza, verdade, mas pouco comum; a vantagem de uma nica paixo, as aparncias do patriotismo, uma reputao merecida de incorruptibilidade, uma vida austera, e nenhuma averso pelo sangue.192

188 189

Ver infra, p. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx. CALVI, Lucien. Dun rpublicanisme lautre: Georg Friedrich Redmann, lecteur de Benjamin C onstant. Grenoble, Chroniques Allemandes/Revue Annuel CERRAC, 1993. P. 143-158. 190 MIGNET, F. A. Opus cit. T. I, p. 324. 191 Idem, p. 66. 192 Idem, t. I, p. 323-4.

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Outra caracterstica comum da histria de Mignet com a legenda anti-robespierrista dos termidorianos e da historiografia da Restaurao era o julgamento de Robespierre por meio do lugar comum de ver nele um homem sem grandes qualidades, salvo a ambio e a demagogia. Para ele, Robespierre // foi uma prova que no meio dos problemas civis no com o esprito que se faz a fortuna poltica, mas com a conduta, e que a mediocridade que obstinada mais potente que o gnio que se interrompe.193 Ao mesmo tempo, sua carreira poltica era justificada por sua vaidade. Conforme Mignet, Robespierre associava sempre a causa da vaidade quela da multido194. Continuando esse raciocnio, Mignet caracterizou o arrageois como algum dotado de um esprito de contradio derivado de seu amor prprio e da vaidade. Assim, durante a Assemblia Constituinte, ele se mostrou reformador exagerado para se fazer notar diante de personagens clebres; durante o Legislativo, ele se fez constitucional195 porque seus rivais eram inovadores; e se ele defendeu a paz, foi porque seus adversrios defenderam a guerra196. Repetia-se com Mignet a contradio que encontramos na legenda anti-robespierrista. Descrito como medocre, Robespierre assim mesmo era apontado como o detentor de todo o poder sobre a Conveno e sobre o Comit de Salvao Pblica197. Para ele, o triunvirato (Saint-Just, Couthon e Robespierre) detivera todo o poder sobre o governo revolucionrio. Nas palavras de Mignet: // o triunvirato governou soberanamente a Conveno e o Comit mesmo. A ascendncia ditatorial de Robespierre era tanta que qualquer murmrio ou hesitao diante desse poder Robespierre se mostrava, e com uma palavra ele fazia tudo retornar ao silncio e ao terror198. Contudo, apesar de Mignet ser um historiador anti-robespierrista, ele no deixou de concluir sua narrativa do Termidor de uma forma bastante curiosa. Antecipou, de certa forma, os historiadores posteriores que viram em Robespierre um moderado frente aos outros membros do governo revolucionrio. Segundo Mignet, com Robespierre

193

Idem, t. I, p. 323-4. Cf. KNIBIEHLER, Yvonne. Naissance des sciences humaine: Mignet et lhistoire philosophique au XIXeme sicle. Paris, Flammarion, 1973. P. 158-9. 194 Idem, ibidem. 195 O jornal publicado por Robespierre nessa poca levava o ttulo de Defensor da Constituio. 196 MIGNET, F. A. Opus cit. T. I, p. 323. Edio de 1833. 197 Idem, t. II, p. 64. 198 Idem, t. II, p. 64. Constata-se a diferena entre essa opinio e a de Louis Blanc, citada mais abaixo, na qual o revolucionrio de 1848 relativizou de forma convincente o poder dos robespierristas no seio do governo revolucionrio. Cf. p. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx.

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acabou o reino do Terror, a despeito de que ele no fosse em seu partido o maior zelador desse sistema. Se ele buscava a supremacia, depois de t-la obtido ser-lhe-ia necessrio a moderao, e o Terror que cessou por sua queda, teria igualmente cessado por seu triunfo.199

No caso de Mignet, mais do que no de Thiers, revelava-se uma caracterstica de muitos historiadores frente Revoluo e a Robespierre. A primeira era analis-la com grande objetividade: ponto por ponto suas anlises so marcadas pela erudio e a inteligncia. Porm, ele no tinha nenhuma simpatia pelo Incorruptvel. Da concluses contraditrias como a que acabamos de citar.

199

Mignet, F. A. Opus cit. T. II, p. 103.

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Captulo IV A historiografia republicana de 1847: Lamartine, Esquiros, Michelet e Louis Blanc.

I. Alphonse de Lamartine e a normalizao da imagem de Robespierre

Outro momento importante na histria francesa e na historiografia da Revoluo foi a dcada de 1840. Assim como a Restaurao, a Monarquia de Julho excluiu largos setores da populao francesa do centro decisrio e no conseguiu balancear os diversos interesses sociais e polticos que a Revoluo tinha desencadeado. medida que essa dcada avanava, a caducidade do regime liberal de 1830 foi sendo resolvida por um processo poltico que acabou na Revoluo de 1848. Verdadeiras obras primas historiogrficas que sero fundamentais para a compreenso do processo revolucionrio de 1789 e da historiografia robespierrista foram publicadas nesse momento. Mais precisamente, no ano de 1847 ocorreu uma verdadeira revoluo historiogrfica com a publicao das histrias de Louis Blanc, Jules Michelet e Alphonse de Lamartine sem falar na de Alphonse Esquiros (Histoire des Montagnards) tambm do mesmo ano, mas menos conhecida. Alphonse de Lamartine, como tantos outros desgostosos com o regime de Lus Felipe, converteu-se ao republicanismo e passou para a oposio a esse regime em 1843200, no momento em que a monarquia de julho atingiu o seu momento mais conservador, no ministrio Guizot. Foi nesse contexto pessoal e poltico que ele escreveu sua Histoire des Girondins. O advento dessa obra foi um momento fundamental na historiografia revolucionria e, em particular, para a histria do robespierrismo. Na histria de Alphonse de Lamartine, que causou uma enorme sensao e foi considerada com exagero uma das causas da Revoluo de 1848201, Robespierre foi retratado sem os lugares comuns da legenda antirobespierrista e isso provocou um verdadeiro escndalo.

200

Conforme Maurice Agulhon, pela via romntica. Cf. AGULHON, Maurice. 1848, o aprendizado da Repblica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991. p. 26. 201 // segundo muitos historiadores, contemporneos ou posteriores, contribuiu para a derrubada do rei Lus Felipe na revoluo de fevereiro de 1848. FORTESCUE, Willian. Alphonse de Lamartine. In:

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Qual a razo para esse escndalo? Outros autores j tinham comeado ao longo da dcada de 1830 um processo de desmistificao da viso que se tinha sobre Robespierre, incluindo o prprio Louis Blanc202. Como afirmou Willian Fortescue, uma interpretao similar de Lamartine // j tinha sido avanada por Buchez e Roux, por Tissot, Cabet, Louis Blanc e Alphonse Esquiros203. Pode-se tambm acrescentar a essa lista, o socialista utpico Albert Laponneraye204, que recolheu as lembranas da irm do Incorruptvel, Charlotte Robespierre, e, entre uma e outra estadia na priso205, iniciou o processo de publicao das obras completas de Robespierre. Contudo, nenhum desses autores possua a respeitabilidade poltica, a fama literria de Lamartine e nenhuma de suas obras alcanou a vendagem da Histoire des Girondins. A maneira como a Histoire des Girondins foi lida causou uma enorme surpresa para seu prprio autor. De todas as partes partiram um s entendimento: seu livro teria dado grande relevncia a Robespierre, o teria mesmo absolvido. Numa palavra, a Histria dos girondinos o teria reabilitado. Desse modo, ele viu as pessoas que lhe eram mais prximas, sobretudo os conservadores, atacarem a obra, achando-a escandalosa, j que a leram como um livro que fazia a apologia da Revoluo206. E para sua surpresa viu os homens de esquerda, como Alexandre Auguste Ledru-Rollin, aplaudirem a obra. Ledru-Rollin, que da a pouco seria colega de Lamartine na junta de governo provisria da Revoluo de 1848, construiu um aforismo definitivo sobre a Histoire des Girondins. Conforme Ledru-Rollin, o imenso servio que Lamartine fez Repblica foi que se pode presentemente discutir Robespierre sem ser tomado por um antropfago207.

BONGIOVANNI, Bruno e GUERCI, Luciano. (orgs.) Lalbero della Rivoluzione. Le interpretazioni della Rivoluzione Francese. Turim, Giulio Einaudi, 1989. P. 349. Entre esses contemporneos pode-se citar Tocqueville. Cf. o seu livro Lembranas de 1848. So Paulo, Companhia das Letras, 1991. P. 94. 202 Quanto a Louis Blanc, alm de ele ser menos conhecido que Lamartine, sua Histria da Revoluo apenas teve incio em 1847, quando so publicados os dois primeiros volumes de uma srie de treze. 203 FORTESCUE, Willian. Alphonse de Lamartine. In: BONGIOVANNI, Bruno e GUERCI, Luciano. (orgs.) Lalbero della Rivoluzione. Le interpretazioni della Rivoluzione Francese. Turim, Giulio Einaudi, 1989. P. 353. 204 Laponneraye era apelidado pelo bibligrafo Joseph Marie Qurard de robespierroltre. Cf. WALTER, Grard. Robespierre. Paris, Gallimard, 1961. T. II, p. 176. 205 Nas palavras geniais de Grard Walter, Laponneraye foi um pensionista inamovvel das prises de Lus Felipe. WALTER, Grard. Opus cit. T. II, p. 176. 206 COURT, Antoine. Lauteur des Girondins ou les cent-vingt jours de Lamartine. Saint-Etienne, CIEREC/Univesit de Saint-Etienne, 1988. P. 71. 207 Citado em COURT, Antoine. Les girondins de Lamartine. Neyzac, ditions du Roure, 1990. P. 1.

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O abalo causado pelo livro de Lamartine residira no fato de que ele foi o primeiro a reabrir o processo julgado, sem defesa de Robespierre e isso diante de um vasto pretrio que nada preparou para uma reviso, ainda menos para uma defesa208. Desse modo, mais do que o questionamento historiogrfico levantado por Lamartine a propsito do papel de Robespierre durante a Revoluo o crime de Lamartine foi atrapalhar uma imagerie conservada durante meio sculo com vigilncia e intransigncia: entre seus reprovadores e seus canonizadores, ele reduziu as distncias209. E, nesse momento da histria francesa, o nome de Robespierre ainda tinha o dom de assustar, entre outras razes, porque para todas as famlias conservadores o nome de Robespierre soava uma ameaa para a propriedade.210 O que tinha de especial a histria escrita por Lamartine? Logo de sada, pelo ttulo, o leitor da obra de Lamartine imaginava que iria ler uma histria da Revoluo, na qual os protagonistas seriam os girondinos. Na verdade, essa histria tinha como personagem principal Robespierre, e isso era to evidente que ela acabava no no 2 de junho de 1793, dia da queda dos girondinos, mas no 9 de termidor (27 de julho de 1794), dia da queda de Robespierre211. Acontecia, assim, com Lamartine, um fenmeno comum a muitos historiadores que tentaram plasmar a Revoluo em um outro personagem que no Robespierre. Esses historiadores acabaram fazendo um esforo enorme de desconstruo de Robespierre para erigir outro personagem como o centro da Revoluo e esse esforo, quando se tratava de escritores da envergadura de um Lamartine, acabava levando a uma viso bastante sbria sobre o Incorruptvel212. Como afirmou Petitgard, Lamartine fascinado pelo personagem o via bastante objetivamente213. Essa objetividade chegou a incomodar o prprio Michelet, que

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COURT, Antoine. Les girondins de Lamartine. Neyzac, ditions du Roure, 1990. P. 148. A expresso julgado, sem defesa [jug, non plaid] de Jean Jacques Rgis de Cambacres, na qual ele evocava o fato de que Robespierre no foi julgado formalmente. Cf. MATHIEZ, Albert. Robespierre: lhistoire et la lgende. In: Colloque-Mathiez (Dijon 1974). AHRF, a. 49, n 227, p. 5-31, janvier-mars 1977. P. 8. 209 Idem, p. 151. 210 Idem, ibidem. 211 O que vai se repetir com Michelet, como veremos a seguir. 212 No caso de Lamartine essa questo possui um tom anedtico. Sua mulher chegou a temer sua admirao pelo advogado de Arras. GODECHOT, Jacques. LHistoriographie franaise de Robespierre. In: Actes du colloque Robespierre. Paris, ditions Sociales, 1967. P. 176. 213 PETITGARD, Robert. Robespierre: lhomme de la vertu. Paris, Contrat Social, vol II, n. 1, p. 19-26, janeiro de 1988. P. 24. Como sempre, Franois Crouzet faz observaes eivadas de m f. Conforme este autor, robespierristas tentaram tambm transformar Lamartine em um admirador fascinado por Robespierre; eles

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lamentava que Lamartine tivesse personificado a Revoluo em Robespierre214. E era bvio que essa objetividade incomodava sobremaneira aos contemporneos do autor. Antes de Lamartine, parecia imperar, afora nos meios democrticos radicais marginais, o pensamento do antigo ministro de Lus XVI, Necker, sobre o tratamento que se deveria dispensar a Robespierre. Segundo ele, como o advogado de Arras no era um homem, mas sim um monstro, talvez fosse importante para a honra da humanidade consider-lo como um ser fora da natureza, e com o qual, mesmo pelo estudo e pela observao, no se poderia ter nenhuma relao215. O prprio autor da Histria dos girondinos explicitava honestamente, de sada, na sua obra as preocupaes inerentes ao trabalho que pretendia realizar e, ao mesmo tempo, o definia como uma tarefa objetiva. Assim, como que se desculpando da obra que ia comear a empreender e para negar o tipo de pensamento enunciado por Necker, Lamartine afirmava que
h abismos que no se ousa sondar e caracteres que no se quer aprofundar, de medo de encontrar muitas trevas e muito horror; mas a histria, que tem o olho impassvel do tempo, no deve se paralisar diante desses terrores, ela deve compreender o que ela se encarrega de contar.216

Era a que residia a especificidade da obra de Lamartine em relao aos demais trabalhos historiogrficos anteriores. Como observa Willian Fortescue, o retrato que Lamartine fez
de Robespierre um misto de elogio e de acusao. Robespierre louvado por seu idealismo, a sua independncia poltica e a sua oposio poltica de guerra dos

fecharam os olhos (talvez deliberadamente) a algumas explcitas condenaes desse ltimo. Isso no verdade. A afirmao de que Lamartine estaria fascinado por Robespierre partiu dos setores conservadores e moderados quando seu livro veio a pblico, e contaminou mesmo sua mulher como podemos ver na nota anterior. Alm disso, mesmo num livro dirigido por Furet e Ozouf essa idia sobre a obra de Lamartine repetida. Para a viso dos setores conservadores e moderados ver. Court, Antoine. Opus cit. P. 159. O livro de Furet e Ozouf: La gironde et les girondins. Paris, Payot, 1991. Captulo de Paul Viallaneix sobre Michelet et les Girondins. A afirmao de Crouzet encontra-se em: French Historiens and Robespierre. In: HAYDON, Colin e DOYLE, Willian. Robespierre. Cambridge, Cambridge University Press, 1999. P. 258, nota 09. 214 COURT, Antoine. Opus cit. P. 154. 215 Citado em: WALTER, Grard. Robespierre. Paris, Gallimard, 1962. T. II, LOeuvre, p. 158 -9. 216 LAMARTINE, Alphonse. Histoire des Girondins. Paris, Librairie Plon, 1984. Introduo e notas de JeanPierre Jacques. T. I, p. 55. Em 1861, em sua Crtica dos Girondinos, Lamartine voltaria a tocar nessa questo. Ele explicou a seus leitores: deve-se justia mesmo quele que se reprova, e, se h uma virtude misturada por acaso ao crime em um homem justamente detestado por seus inimigos ou por suas vtimas, no preciso negar esse amlgama monstruoso, mas freqentemente real; preciso separar, com uma sinceridade leal, essa virtude do crime, e dizer histria: tal era a virtude, tal era o crime; e tais, crime e virtude, eram o homem. Citado em WALTER, Grard. Robespierre. Paris, Gallimard, 1961. T. II, LOeuvre, p. 180.

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girondinos, mas Lamartine o acusa de ter insistido sobre a pena de morte para Lus XVI, de ter tolerado o Terror e de se ter preocupado muito com sua popularidade e com sua posio poltica. No conjunto, porm, um retrato extremamente favorvel.217

Podemos perceber isso pelo contraste com o tratamento dispensado a outros personagens por nosso autor. Marat era tratado como um monstro sanguinrio e Robespierre e esse era um dos elementos de fora da anlise de Lamartine sobre Robespierre era descrito como algum que tentara moderar o Terror, a partir de junho de 1794218. Quanto aos problemas histricos propriamente ditos, um deles, a relao entre o robespierrismo e o Terror, Lamartine desenvolveu duas interpretaes importantes, ambas significativas para o entendimento do robespierrismo. A primeira estava relacionada explicao da causa do Terror. Para Lamartine, esse fenmeno podia ser explicado pelo que veio a ser conhecido como a teoria das circunstncias. Alm disso, ele acrescentava a essa explicao as rivalidades interpessoais e contestava a idia de que o Terror tivesse se tornado um sistema de governo219. Rebatia, dessa maneira, por antecipao, uma srie de historiadores que faro dessa idia, criada por Tallien, um dos principais terroristas e um dos responsveis pela queda de Robespierre220, elemento fundamental de suas anlises. A segunda interpretao era baseada na viso de Robespierre como um moderado que tentara limitar o Terror. Segundo ele, o terror foi, pois, bem menos inventado por Robespierre e por Danton contra os inimigos interiores da Repblica que contra os excessos e as anarquias da prpria Revoluo221. Lamartine tambm percorreu vrios pontos da legenda anti-robespierrista.

Desconstruiu por exemplo, a concepo de que Robespierre seria um demagogo. Assim, falando da caracterstica de alguns revolucionrios (Danton, Marat, Hbert) que adotavam os hbitos da linguagem popular, Lamartine afirmava que Robespierre nunca desceu at esse ponto. Ele no conquistava o povo por seus vis instintos, mas pela razo222.

217

FORTESCUE, Willian. Alphonse de Lamartine. In: BONGIOVANNI, Bruno e GUERCI, Luciano. (orgs.) Lalbero della Rivoluzione. Le interpretazioni della Rivoluzione Francese. Turim, Giulio Einaudi, 1989. P. 353. 218 Idem, ibidem 219 LAMARTINE, Alphonse. Opus cit. T. II, p. 470. 220 Ver nota 41.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 221 LAMARTINE, Alphonse de. Opus cit. T. II, p. 470. Grifado no original. 222 Idem, T. I, p. 165.

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Quanto a outro ponto importante da legenda anti-robespierrista, a ambio de Robespierre de tornar-se ditador, Lamartine oferece uma refutao ainda mais veemente. Segundo ele, o fim de Robespierre era a
soberania representativa de todos os cidados, extrada em uma eleio to ampla quanto o prprio povo, e agindo pelo povo e para o povo em um conselho eletivo que seria todo o governo. A ambio de Robespierre, to freqentemente caluniada ento e depois, no ia alm disso.223

Ele fechava essa questo sem tergiversaes, Robespierre no aspirava ser o mestre224. A anlise de Lamartine das concepes sociais e polticas do robespierrismo foi outro ponto notvel da Histria dos girondinos. Para espanto de seus contemporneos, Lamartine fez um elogio candente da Declarao de Direitos de Robespierre, concluindo de forma mais espantosa ainda:
// se a cincia faltava declarao des direitos de Jean-Jacques Rousseau e de Robespierre, o esprito social, filosfico e cristo respirava em cada uma de suas frmulas. Era o ideal de igualdade e de fraternidade entre os homens. Era a verdade das relaes entre Estado e os cidados. Era a sociedade intelectual e moral, no lugar da sociedade egosta e tirnica; o Estado tornava-se famlia humana, a ptria me, no lugar de madrasta, de todos os seus filhos. Um instinto seguro advertia Robespierre e seus discpulos de se limitar a esse projeto de organizao da sociedade que podia se realizar imediatamente. Eles respeitavam a famlia e a propriedade. Semelhante aos arquitetos da Antigidade, que, batizando aos deuses um templo, conservavam sempre no edifcio novo algumas partes de parede ou algumas pilastras do velho edifcio, Robespierre conservava as tradies da antiga sociedade na nova. Ele iria to longe quanto a reforma permitisse. Ele parava na utopia. Ele dava Deus por fonte e por garantia de todos os direitos. Sentia-se desde as primeiras palavras que ele remontaria verdade suprema, para da extrair as verdades secundrias. Para refutar suas doutrinas, seria necessrio assim comear por refutar Deus.225

Esse apelo transcendncia era outro trao fundamental da historiografia de Lamartine. Para ele, o advento democrtico era o elemento essencial da Revoluo e tinha uma relao com a histria do cristianismo:
O que se podia entrever ento da Revoluo Francesa anunciava o que havia de maior no mundo: o advento de uma idia nova no gnero humano, a idia democrtica, e mais tarde o governo democrtico. Essa idia era uma conseqncia do cristianismo. O cristianismo, encontrando os homens escravizados e degradados sobre toda a terra, tinha-se levantado na queda do Imprio romano como uma vingana, mas sob a forma de uma resignao. Ele tinha proclamado as trs palavras que repetiria a dois mil anos de distncia a filosofia

223 224

Idem, T. II, p. 445. Idem, ibidem. 225 Idem, p. 281.

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francesa: liberdade, igualdade, fraternidade dos homens. Mas ele tinha escondido por um tempo esse dogma no fundo da alma dos cristos.226

E o responsvel por essa relao cristianismo/Revoluo era, no entender de Lamartine, Robespierre, j que ele tinha por inspirao o ensinamento do cristianismo. Notando esse aspecto, Willian Fortecue disse que para Lamartine,
Robespierre, inspirado pelos ensinamentos do cristianismo e pelos escritos de Rousseau, procurou colocar em prtica os princpios da liberdade, igualdade e fraternidade atravs dos instrumentos da democracia poltica, de uma mais igual distribuio da riqueza e de um sistema geral de instruo elementar.227

Lamartine avalia o papel poltico do robespierrismo dando relevncia a construo de um projeto democrtico baseado numa inspirao tica, que no poderia deixar de ser crist. Robespierre era algum que tinha um
objetivo em sua vida, e esse objetivo era grande: era o reino da razo pela democracia. Havia um motor, e este motor era divino: era a sede da verdade e da justia nas leis. Havia uma ao, e esta ao era meritria: era o combate at a morte contra o vcio, a mentira e o despotismo.228

Segundo Fortescue, na Histria dos girondinos Lamartine definia essencialmente a Revoluo Francesa como a evoluo de um novo conceito, aquele de democracia e, mais tarde, de governo democrtico229. Assim, o ponto de partida de Lamartine era bem diferente do de Michelet, para quem a combinao da religio com a democracia era algo completamente incompatvel. Ao contrrio, para o nosso autor tal conceito tinha uma origem crist e tinha sido formulado por Fnelon, Montesquieu, Rousseau, Voltaire e outros seus discpulos //230. Lamartine afirmava que a filosofia que precedeu um sculo Revoluo era ctica em aparncia, mas crente na realidade. Essa filosofia s se interessava pelas reformas exteriores e pelos dogmas sobrenaturais do cristianismo, adotando com paixo sua moral e seu senso social.231 Por fim, a avaliao de Lamartine do robespierrismo, apesar de seus contemporneos no concordarem, era bastante equilibrada. Para Lamartine, Robespierre foi o responsvel

226 227

LAMARTINE, Alphonse. Opus cit. T. I, p. 38. FORTESCUE, Willian. Opus cit. 353. 228 LAMARTINE, Alphonse. Opus cit. T. II, p. 921. 229 FORTESCUE, Willian. Opus cit. p. 350. 230 Idem, ibidem. 231 LAMARTINE, Alphonse. Opus cit. T. I, p. 38.

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pelo Terror, da a condenao final do personagem. Conforme nosso autor, Robespierre esperava redimir mais tarde o que no se redime jamais: o crime presente pela santidade das instituies futuras232.

232

Idem, T. II, p. 921.

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II. Alphonse Esquiros e o Cristo-povo.

O petit romantique Alphonse Esquiros fez parte da gerao de historiadores que se formaram sob a monarquia de Julho e que, coincidentemente, fizeram sua estria como historiadores da Revoluo no ano de 1847. Das duas obras efetivamente finalizadas nesse ano, os Girondinos de Lamartine e os seus Montanheses, foi esta ltima que concebeu uma histria da Revoluo francamente favorvel aos robespierristas e seus companheiros montanheses. Nesse sentido, a obra de Esquiros foi, em parte, uma tentativa de refutao do trabalho de Lamartine, a comear pelo ttulo da obra. Ao primeiro contato do leitor com sua obra, percebe-se que os girondinos cedem o lugar de protagonistas da Revoluo aos montanheses. E obvio, no jogo das comparaes entre girondinos e montanheses, Esquiros deu a esses ltimos, com razo, o papel fundamental no processo revolucionrio. Conforme Esquiros,
// os girondinos no tiveram no grande drama revolucionrio somente um papel rpido e subordinado. No somente a Montanha sobreviveu, mas ainda em seu seio, no meio dos 233 raios e das tempestades, que se revelaram os orculos do esprito humano transfigurado.

Ao longo da obra de Esquiros, o carter dessa anlise no varia. Seu contedo era uma verdadeira tentativa de demolio dos girondinos. Na Histria dos montanheses, o espao dos girondinos era reduzido, cabendo-lhes um tratamento bastante acrimonioso. Esquiros vai desde a dvida sobre o carter do seu republicanismo at a condenao da personalidade de cada um dos girondinos. De acordo com Esquiros,
em suas idias, a forma republicana no era o corpo, nem a vestimenta da democracia; era a toga romana jogada sobre uma nova classe de libertos. A abolio da realeza na Frana consumava a humilhao e a runa dessas famlias patrcias que ainda abrigavam suas esperanas sombra do trono. A poltica dos girondinos era, pois, como aquela dos constituintes, uma poltica do egosmo; eles somente buscavam apoiar a vitria da classe mdia sobre o povo, enquanto os Feuillants, isto , os homens da alta burguesia, queriam 234 associar sua causa quela das antigas classes privilegiadas.

O mesmo tom continuou na caracterizao dos homens da Gironda. Comeando por comentar a reputao de seu lder mais importante, Brissot, Esquiros dizia que ela era

233 234

ESQUIROS, Alphonse. Histoire de Montagnards. Paris, Garnier-Frres Libraires-diteurs, 1903. P. I. Idem, p. 320.

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proverbial: dizia-se brissoter para dizer escroquer235. Sua anlise segue no mesmo diapaso. Ele desqualificava acidamente cada um dos girondinos. Assim, a intriga, era Brissot; a hipocrisia, era Ption; a traio, era Dumouriez; a dissimulao, era Louvet.236 Para finalizar, ele afirmava que a liberdade era para eles somente uma figura de retrica.237 Esse cinismo dos girondinos estava por trs da aliana que eles pretenderam estabelecer entre a burguesia e a multido. Tal aliana era superficial e se desfaria aps a vitria na guerra. Para os girondinos, o povo era s uma espcie de instrumento poltico.238 Nas prprias palavras de Esquiros, o povo era em sua poltica um instrumento, um ariete com a ajuda do qual eles pretendiam atacar as ltimas defesas de uma aristocracia ligada ao trono.239 Isso estava ligado a concepo poltica dos girondinos, os quais no tinham apreo pela igualdade. Conforme o nosso autor, os girondinos eram dotados de um esprito de categoria que penetrava todas as medidas estreitas que eles propuseram, sendo sempre a diviso dos cidados pelos signos, pela diferena das denominaes e das armas.240 J os montanheses eram diferentes a esse respeito dos girondinos, j que pretendiam uma verdadeira fuso com o povo. A Montanha, para Esquiros, foi a salvadora do territrio francs da invaso estrangeira, assim como renovou o sentimento religioso, destruiu as faces abjetas e assegurou o respeito soberania nacional:
Ss, no meio de tantos agentes de decomposio, eles conseguiram manter a Repblica Una e Indivisvel // por trs de todos esses males provisrios, eles pressentiam a terra prometida da humanidade. Como todos os grandes legisladores, Moiss, Maom, que retiraram os povos da servido, eles queriam impor com viva fora a felicidade da nao francesa.241

E sua virtude cvica os desculpava at de seus erros: os montanheses tiveram, quase todos, uma virtude civil que redime bastante os erros, o desinteresse. Ao menos eles no eram nem sanguessugas do povo, nem ladres.242 Outro ponto da crtica de Esquiros obra de Lamartine foi o tipo de relao que o autor da Histria dos girondinos estabeleceu entre o cristianismo e a Revoluo. A idia, cara

235

Idem, p. 308. Na verdade, era corrente usar a palavra brissoter com o sentido de intrigar, pelo menos entre os montanheses. Cf. OCR, t. V, p. 111, nota 34. 236 Idem, p. 314. 237 Idem, ibidem. 238 Idem, p. 323. 239 Idem, p. 323. 240 Idem, ibidem. 241 Idem, p.420.

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a Lamartine, de buscar a origem da democracia no cristianismo era refutada com certa impacincia por Esquiros. Para ele, alguns escritos modernos olhavam a democracia como o desenvolvimento necessrio das idias crists: para eles a Revoluo francesa tinha sado do Evangelho; o que eu digo? Era o prprio Evangelho encarnado em um fato.243 Ele reconhecia na democracia e no cristianismo os dois maiores fatos histricos desde o nascimento do mundo: o cristianismo trouxe sem objeo Revoluo Francesa um princpio, a igualdade dos homens diante de Deus; um sentimento, a fraternidade. Era muito sem dvida, mas isso foi tudo.244 Era tudo, porque quanto liberdade, no sentido viril e nacional, segundo o entendimento de Esquiros, ela adveio da filosofia do sculo XVIII, j que a religio crist propiciava uma espcie de liberdade passiva.245 Contudo, mais ainda do que Lamartine, a concepo de Esquiros sobre o processo revolucionrio de 1789 no se afastava de uma tentativa de associar o cristianismo Revoluo. Ele via a Frana como devotada salvao universal, como uma nao-cristo246 e a Revoluo como uma espcie de saga do Christ-peuple:
A revoluo estava no povo; era seu corao, sua fonte. Os homens que se mantiveram ento mais perto da massa foram aqueles que participaram mais do esprito da liberdade. O povo teve o papel no grande drama revolucionrio do corao nas tragdias antigas: ele aconselha, inspira, conduz. Em todas as situaes embaraantes e patticas, ele intervm. Nada se resolve sem ele. No fim dessa peripcia, ele se apaga e deixa aos atores de renome as honras do triunfo. Sua influncia annima se assemelha quela de Deus, que no visto em nenhuma parte e est em todos os lugares.247

J a viso de Esquiros do conjunto da histria tinha por base uma dinmica evolutiva caracterizada pela gradual emergncia, desenvolvimento e progresso do peuple.248 Nesse processo, o papel mais importante era o da classe operria. A liderana necessria para fazer a travessia do deserto cabia aos montanheses, j que eles eram os mais importantes representantes da liberdade e da dinmica do progresso da

242 243

Idem, p. 691. Idem, p. III-IV. 244 Idem, p. XVI. 245 Idem, p. XVI-XVII. Quanto a esse ponto, existe um contraste marcante entre os dois autores. Lamartine afirmava que a filosofia que precedeu de um sculo a Revoluo era ctica em aparncia mas crente na realidade. E essa filosofia s se interessava pelas reformas exteriores e aos dogmas sobrenaturais do cristianismo, e adotava com paixo sua moral e seu senso social. LAMARTINE, Alphonse de. Opus cit. T. I, p. 38. 246 Cf. ZIELONKA, Antony. Alphonse Esquiros: a story of his works. Paris-Genve, Champion-Slatkine, 1985. P. 191. 247 ESQUIROS, Alphonse. Opus cit. p. LVIII. 248 ZIELONKA, Antony. Opus cit. p. 140.

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sociedade, nos escritos de Esquiros //.249 E o papel de Robespierre entre os montanheses era evidente. De acordo com Zielonka, ao espontneo movimento de massa da Revoluo precisava ser dado uma direo e uma forma de controle por homens que interpretavam o progresso da histria. Ela precisava de lderes tais como Robespierre.250 Assim, Esquiros assegurou um papel fundamental ao Incorruptvel nesse processo, medida que ele, em ltima instncia, encarnou a concepo republicana que estava por trs da Revoluo. Conforme o autor da Histria dos montanheses, o objetivo ntimo do pensamento de Robespierre era assegurar a existncia da Repblica, fazer cessar esse estado de incerteza que entregava a fortuna pblica aos intrigantes e as cabeas ao cutelo, retomar uma aliana sria entre o homem e Deus, um tipo de concordata, para a qual o Evangelho devia ser o liame //.251 Contudo, a Revoluo conduzida pelos montanheses tinha um carter de totalidade e era nesse contexto que o Terror era explicado na Histria dos montanheses. Conforme Esquiros, se vs admitistes uma vez a Revoluo, preciso admiti-la plena, inteira, lgica, envolvida por todas as condies necessrias que devem estabelec-la e perpetu-la, a despeito dos ataques de seus inimigos. Todavia, se ele avanava a teoria das circunstncias como forma de entender o carter necessrio do Terror, afirmando que o que se designava com o nome de Terror era o conjunto de meios violentos com a ajuda dos quais os montanheses queriam conter as faces, afastar a guerra e fundar a repblica, isto , o reino da justia da humanidade, ele no deixava de aprofundar essa idia comparando a Frana com a Amrica:
havia de resto m f em sustentar que esses rigores fossem prprios ao governo da multido. A democracia se constituiu na Amrica pacificamente. Se na Frana ela no estabeleceu da mesma maneira seu reino sobre uma base tranqila, foi culpa de seus inimigos que, a atacaram sem cessar pelo flanco, a tornaram furiosa. fora resistiu-se 252 pela fora, ao gldio pelo gldio, insurreio pelo cadafalso.

Outra idia ainda mais radical defendida por Esquiros era que o Terror era um mtodo revolucionrio de combate de classe para impor aos ricos o fim dos seus privilgios:
esse sistema assemelhava-se na cabea de Robespierre e de Saint-Just uma idia fixa: o bem pblico, segundo eles, devia ser imposto com viva fora aos homens sempre egostas;
249 250

Idem, p. 141. Idem, p. 145-6. 251 ESQUIROS, Alphonse. Opus cit. p. 677. 252 Idem, p. 621.

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de outra maneira, diziam eles, o pequeno nmero de cidados ricos e acostumados aos privilgios se uniro contra o fraco, e oporo constitucionalmente felicidade das massas uma resistncia eterna.253

Como podemos ver, Esquiros admitia a idia de que o Terror fosse um sistema. Entretanto, ele afirmava que os excessos cometidos deveu-se a alguns homens somente.254 Atacado, o governo revolucionrio se defendeu. Isso levou esse governo a colocar meios poderosos nas mos de seus agentes, os quais muitas vezes abusaram desses meios.255 Se, como dissemos, Esquiros tentou refutar muitas das idias de Lamartine, em pelo menos um aspecto sua Histria dos montanheses se assemelhava Histria dos girondinos. Quando avaliou o papel de Robespierre sobre o Terror, Esquiros afirmou que o Incorruptvel queria parar o Terror. Porm, dava ao fracasso dessa tentativa uma dimenso fantasmagrica, j que o Terror semelhante s criaes fantsticas da alquimia, // desafiava a mo que lhe tinha dado a existncia.256 Assim, a lei do Prairial foi concebida como uma espcie de ltimo suplcio. Querendo acabar com o Terror, Robespierre ameaou aqueles membros do Comit de Salvao Pblica e da Conveno responsveis pelos excessos. Esquiros terminava sua histria com um tom francamente evanglico. A saga de Robespierre e seus companheiros terminou em sacrifcio, como o do Cristo na cruz. Seu sacrifcio, segundo Esquiros, foi o 9 de termidor, quando Robespierre e seus adeptos foram massacrados aos milhares.

253 254

Idem, p. 612. Idem, p. 620. 255 Idem, p. 620-21. 256 Idem, p. 676-7.

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III. Jules Michelet Ns seguiremos a via real [popular]. Nascido povo, ns iremos ao povo257. Era essa concepo que embasava a viso de histria de Michelet. E isso no era diferente em relao sua obra sobre a Revoluo. Nela, era a interveno do povo que determinava a importncia dos acontecimentos.258 Como observou Soboul, o povo o ator principal na Histria da Revoluo Francesa. No os sans-culottes, mas o povo do qual nenhuma definio e nenhuma anlise tentada: o povo, isto , o conjunto da nao erigida, como a Frana, numa pessoa mstica259. Partindo da idia de que o povo era o ator principal da Revoluo, foi em Danton que ele tentou plasmar esta ltima. Danton era, assim, descrito como de raa agrcola, por trs do tribuno, do grande orador, havia um rude campons.260 Michelet fazia-se, assim, herdeiro da idia de Auguste Comte261 de fazer ancorar a repblica em um revolucionrio menos sanguinrio do que aquele que Louis Blanc e Esquiros no tiveram dvida em tornar protagonista de suas histrias. Para tanto, Michelet se colocou a tarefa de encontrar as provas necessrias para justificar essa ncora. Danton, portanto, era diferente de Robespierre e dos jacobinos. Estes pertenciam ao sculo XVIII, a Rousseau, burguesia filosfica; eles eram todos espritos de anlise e de lgica. Enfim, eram datados. J Danton, conforme Michelet, ele // era uma fora

257

MICHELET, Jules. Histoire de la Rvolution Franaise. Paris, Gallimard/ditions de la Pliade, 1952. T. I, p. 282. 258 VIALLANEIX, Paul. La voie royale, essai sur lide de peuple dans loeuvre de Michelet . Paris, Flammarion, 1971. P. 298. 259 SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793-9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P. 5. 260 MICHELET, Jules. Opus cit. T. I, p. 1284. 261 Foi Auguste Comte que parece ter sido o primeiro, em seu Systme de politique positive, a tentar reconciliar com a Repblica e a democracia todos aqueles que tinham sido amedrontados pelo Terror. Foi ele que fez de Danton o heri da Revoluo republicana, foi ele que apresentou um Danton fundador da Repblica [] um Danton que se opusera a Robespierre. GODECHOT, Jacques. Lhistoriographie franaise de Robespierre. In: Actes du colloque Robespierre. Paris, ditions Sociales, 1967. P. 168. Cf. tambm GRARD, Alice. A Revoluo Francesa: mitos e interpretaes. 2 ed. So Paulo, Editora Perspectiva, 1999. P. 65-66. curioso o dantonismo de Auguste Comte. Para quem vai fazer da virtude um dos elementos do seu republicanismo, a escolha da figura corrupta de Danton como o heri epnimo do positivismo no poderia ser mais estranha.

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orgnica: diferena profunda de natureza e de mtodo, que devia torn-los irreconciliveis ainda mais do que seu dio.262 Se os jacobinos eram homens do sculo XVIII, Danton, ao contrrio, no era um homem de seu sculo. Danton era imvel como o oceano, eterno como o campons da Frana: tudo muda, ele no muda263. Aqui cabe uma pergunta impertinente: se Danton tinha um esprito eterno, o que ele estava fazendo numa revoluo? Se Danton tinha esse enraizamento popular, Robespierre era exatamente o contrrio. Ele era todo beletrista // todo cultura e todo arte, a cem lguas da natureza, do instinto, da inspirao. A bonomia, como disse muito bem o jornalista mais acima [Brissot], alguma coisa de ingnuo e de profundo que faz compreender as massas, faltava-lhe totalmente.264 Outra caracterstica de Maximilien, importante para Michelet conden-lo ao mesmo tempo em que ao Terror, era a idia de que ele s era dotado de idias abstratas. Segundo Michelet
// Robespierre, o direito abstrato, absoluto. Contra [as] solues bastardas, anglo francesas, soi-disant constitucionais, ele apresentava teorias, no especialmente francesas, mas gerais, universais, com base no Contrato social, o ideal legislativo de Rousseau e de Mably.265

Desse modo, Robespierre e os montanheses cometeram o pech dabstraction. Essa idia tambm j tinha sido utilizada por Michelet para explicar a decadncia da Igreja e a perda da importncia do cristianismo. Michelet afirmava que a Igreja passara da jovem vitalidade popular s abstraes de escola, a santo Toms266. Segundo Viallaneix, Michelet estabelecia, assim, uma ligao estreita entre a abstraction filosfica e a tirania. Essa lei histrica, segundo esse mesmo autor, // se verificaria tristemente na carreira de um Robespierre.267 Essa caracterizao do pensamento poltico robespierrisa era importante para entender o fracasso da repblica revolucionria. o que podemos entender por meio da observao de Viallaneix de que Michelet tinha o hbito de apresentar em sua obra Histria da Frana todo

262 263

Idem, ibidem. Idem, t. I, p. 1284. 264 MICHELET, Jules. Histoire de la Rvolution Franaise. Paris, Gallimard/ditions de la Pliade, 1952. T. I, p. 872. 265 Idem, t. I, p. 483. 266 Michelet citado em: VIALLANEIX, Paul. La voie royale, essai sur lide de peuple dans loeuvre de Michelet. Paris, Flammarion, 1971. P. 308.

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acontecimento considervel como o signo de uma inteno, de um sentimento ou de uma ao populares.268 Eram caractersticos desse processo todos os grandes acontecimentos: monarquia, cristianismo, revoluo. Michelet chegava ao mesmo diagnstico sobre o fracasso da democracia. Segundo Viallaneix, Michelet
// descobrir ento que a Repblica, ela tambm, pode trair o povo. Apenas a revoluo terminada, o novo regime foi tentado em ser-lhe infiel. Bem que a nao unnime a justifique, bem que os federados a santifiquem, de alguma maneira, por sua fraternal reunio, ele mantm, renovando o erro da Igreja medieval, um corpo de falso sbios, que pretendiam estabelecer a ortodoxia democrtica. Esses clrigos reinavam sobre os clubes e 269 entre eles se recrutavam os homens de governo.

Assim, pergunta: quais as razes que levaram a Repblica Francesa a acabar no tirnico Bonaparte?, Michelet respondia afirmando que como todo outro regime, a democracia cai quando ela cessa de se apoiar sobre o consentimento do povo.270 Desse modo, a ciso que se estabelece entre o povo e os revolucionrios se produz medida em estes ltimos se erigiram em donos de um suposto conhecimento poltico que o povo no detm, um conhecimento abstrato, sem ligao com os interesses populares. Numa palavra, os jacobinos combateram a aristocracia de sangue e acabaram se transformando numa aristocracia de doutores.271 Como observa Viallaneix, Michelet afirmava que eles teriam passado a ter o hbito de
falar em nome do povo, que eles conheciam mal e que logo desprezariam. Eles acreditavam que a razo deve vir de cima, do mais alto, isto , deles mesmos, que ela tombasse sobre o simples povo da cabea do filsofo e do sbio. Girondinos e montanheses, quais quer que sejam os mritos de tal ou tal dentre eles, compunham assim uma aristocracia no seio de um regime que no devia tolerar nenhuma. Em nome de seu saber discutvel, eles empreenderam fazer a felicidade dos cidados sem os consultar e, se fosse preciso, contra sua vontade.272

Quem mais seno Robespierre era o representante tpico dessa aristocracia? Seus discursos eram somente a moral, o interesse do povo, os princpios, sempre os princpios.273 Contudo, Michelet cometia aqui uma contradio. Se ele condenou a abstrao, um discurso sem vida como forma de afastar o povo da Revoluo, ele prprio afirmou que com esse

267 268

Idem, ibidem. Idem, p. 301. 269 Idem, p. 318. 270 Idem, 318. 271 MICHELET, Jules. Opus cit. t. I, p. 301. 272 Viallaneix, Paul. Opus cit. p. 318. 273 MICHELET, Jules. Opus cit. t. I, p. 489.

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discurso Robespierre acabou por se tornar popular. Desse modo, mesmo com esse discurso seco, baseado nos princpios, Robespierre acabou por no ser arbitrrio e atingir o corao do povo. Conforme Michelet,
// a despeito de todas essas circunstncias pouco prprias a popularizar, o povo to faminto e sedento de direito, que o orador dos princpios, o homem do direito absoluto, o homem que professava a virtude, e cuja figura sria e triste parecia sua imagem, tornou-se o favorito do povo.274

De qualquer forma, Michelet ficava a um passo de poder caracterizar o Terror como algo produzido exclusivamente por essa aristocracia revolucionria. Para isso, ele fez uso da idia da relao entre abstrao e tirania. A Revoluo em seu incio glorioso foi fruto do povo: uma coisa que preciso dizer a todos, que muito fcil estabelecer, que a poca humana e benevolente de nossa Revoluo tem por ator o povo mesmo, o povo inteiro, todo mundo 275. J o Terror, ao contrrio, a poca das violncias, a poca dos atos sanguinrios para a qual mais tarde o perigo a empurrou, somente teve por atores um nmero de homens mnimo, infinitamente pequeno.276 Ao fazer o elogio do regime constitucional de 1791 e as eleies que o seguiram (livre escolha do povo), Michelet preparou o caminho para atacar o terror e o desvio robespierrista. Nesse elogio, havia tambm uma apreciao da constituio de 1791 e do tipo de regime que o agradava. Conforme Michelet, a Constituio de 91 // na verdade, deixava o poder pblico muito fraco, compactando muito pouco o liame poltico, restringindo pouco, reprimindo pouco, ela fez por isso mesmo um apelo imenso moralidade individual.277 O cenrio estava preparado para mostrar Robespierre como o representante principal da poca do Terror. Se abstrao e tirania formavam um par, nada mais lgico que Robespierre e Terror formassem outro. Foi, dessa forma, que Michelet analisou o robespierrismo. Para fundamentar sua concepo da Revoluo, Michelet realizou uma verdadeira batalha contra Robespierre em sua vasta obra, tentando fazer de Danton o verdadeiro

274 275

Idem, ibidem. Prefcio de 1847 (p. 13 de 2 edio 1868). Citado em: SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793-9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P. 5, nota 15. 276 Prefcio de 1847 (p. 13 de 2 edio 1868). SOBOUL, Albert. Opus cit. p. 5, nota 15. Ponto de vista contestvel, diz Soboul. 277 Idem, t. I, p. 761.

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protagonista de 1789. Para ele, se Danton encarnou a tragdia revolucionria, Marat e Robespierre comprometeram a Revoluo.278. Porm, essa tentativa no teve muito sucesso. Na histria de Michelet, curiosamente, Danton era um protagonista que aparecia menos quando comparado ao coadjuvante Robespierre e, para corroborar isso, sua histria no acabava na crise do germinal mas no dia da morte do Incorruptvel. O contedo da anlise de Michelet sobre Robespierre caracterizava-se por seu antirobespierrismo de esquerda279. E isso chegava a ser uma questo desesperada. Nutrido de uma repulso-fascinao280 pelo personagem, Michelet explicitava isso claramente em algumas passagens de suas obras sobre Robespierre, como as seguintes:
Robespierre no tinha a audcia poltica, o sentimento da fora que faz com que se tome a autoridade. Ele tambm no tinha o alto el especulativo, ele seguia de muito perto seus mestres, Rousseau et Mably. Faltava-lhe enfim o conhecimento variado dos homens e das 281 coisas, ele conhecia pouco a histria, pouco o mundo europeu. // ele tinha o ar na tribuna de um triste bastardo de Rousseau, concebido em um mal 282 dia. Em revanche, ele tinha, entre todos, a vontade perseverante, um trabalho consciencioso, admirvel, que no se desmentiu jamais.283 Quem acreditaria? O maior vazio nessa mesa de madeira branca, da qual meu livro se vai agora e onde eu permaneo s, de no ver mais nela meu plido companheiro, o mais fiel de todos, que, de 89 ao termidor, no tinha me deixado; homem de grande vontade, laborioso como eu e pobre como eu, com quem, cada manh, eu tive tantas speras 284 discusses.

O contedo da anlise histrica de Michelet sobre o robespierrismo lembrava o tom da legenda anti-robespierrista, sobretudo na utilizao dos adjetivos. Robespierre era: padre, santo dos santos, papa, rei, tirano. Desse modo, ele retomava algumas das idias que se tornaram correntes na mitologia sobre o personagem, algumas pura fantasia, outras mero subjetivismo.

278 279

MICHELET, Jules. Opus cit. t. I, p. 283. Expresso de Maurice AGULHON. Cf. Robespierre posthume: le mythe et le symbole. In: JESSENNE, JeanPierre et alli. (ed.) Robespierre: de la nation artsienne la Rpublique et aux nations (Actes du colloque dArras). Lille, Imprimerie de luniversit Charles de Gaulle -Lille III, 1994. P. 445. 280 Expresso de Jean Ehrard. Cf. EHRARD, Jean. Entre Marx e Jaurs: le Robespierre de Jaurs. In: EHRARD, Jean. Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 145. 281 MICHELET, Jules. Histoire de la Rvolution Franaise. Paris, Gallimard/ditions de la Pliade, 1952. T. I, p. 489. 282 Idem, t. I, p. 865. 283 Idem, t. I, p. 489-90.

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Assim era sua maneira de descrever Robespierre, com a velha frmula do oportunismo e da falta de audcia. Segundo Michelet, Robespierre, na verdade, tinha avanado, fora de nada fazer. Seus adversrios ou seus rivais, se imolavam uns aos outros, trabalhavam para ele e o elevavam sempre285. No entanto, o objetivo da historiografia de Michelet no foi, certamente, negar o papel republicano do Incorruptvel, mas de diminuir sua importncia. Tanto assim era que ele situava Robespierre entre aqueles que ele chamava de republicanos clssicos, qualificao que ele utilizava para diferenciar revolucionrios como Maximilien dos republicanos romnticos, ou seja, dos socialistas286. Estes tentaram questionar o direito propriedade que os jacobinos no colocavam em jogo287. As caracterizaes de Robespierre como papa e como rei (sua paupot nos jacobinos e sua royaut no Comit de Salvao Pblica288) eram um recurso claro de Michelet para estabelecer a prevalncia de Robespierre no seio do governo revolucionrio. Numa palavra, para Michelet, ele era o tirano. Quanto a esse ponto de sua anlise, Michelet repete os erros da historiografia da Restaurao. Pelo menos desde Louis Blanc289, era sabido que a posio de Robespierre, no contexto do governo revolucionrio, nada tinha a ver com ditadura. Sua posio era de ascendncia mais do que de domnio. Se ditadura havia, ela era coletiva. A razo para a complexa averso de Michelet por Robespierre pode ser explicada, em grande parte, por sua condio de historiador do sculo XIX e de seu republicanismo. Essas duas condies fizeram de Michelet um veemente defensor do Estado laico290. Desse modo, a apreciao do papel de Robespierre foi submetida idia de que ele fosse um adversrio desse Estado291. Da o acento custico com que ele analisava o carter do Incorruptvel, o qual,

284 285

OCR, t. VI, p. IX. MICHELET, Jules. Opus cit. T. I, p. 1268. 286 Idem, t. II, p. 438. 287 Pois, como Marat e Robespierre, como tudo o que se pode chamar a Revoluo Clssica, Saint-Just defendia a propriedade. Idem, t. II, p. 766. 288 Idem, t. I., livro XIV, captulo V e livro XV, captulo I. 289 Ver supra, p. 56. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 290 O homem de esquerda na Frana do sculo XIX foi um partidrio de 1789 e da Revoluo global (bem secundrio, a esse respeito, o fato de ser entusiasta de 1793 ou de ser um aderente mais ou menos reticente) e, porque ele foi um partidrio de 1789, ele foi um partidrio, no mnimo, da es trita laicidade do Estado. AGULHON, Maurice. Histoire vagabonde. Paris, Gallimard, 1988. T. 2. Captulo: La droite et la gauche. 291 SOBOUL, Albert. Robespierre ou les contradictions du jacobinisme . AHRF, a. 50, n 231, p. 1-19, 1978. P. 2.

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conforme Michelet, tinha nascido padre292. Para Michelet, Robespierre tinha uma natureza mais de padre do que de revolucionrio, uma poltica religiosa que representava mais uma posio contra revolucionria por que clerical, bigotta. Seu discurso girava sempre em torno de elementos como: o direito, no das coisas (das propriedades, dos feudos) mas o direito dos homens, o direito igual das almas humanas, princpio essencialmente espiritualista //.293 Robespierre era assim descrito como uma figura que s tinha a capacidade de produzir abstraes, sem nenhum senso prtico. Ele era o
// testemunho fiel dos princpios, e sempre protestando por eles, ele se explicava raramente sobre a aplicao, no se aventurava sobre terreno escabroso das vias e meios. Ele disse o que se devia fazer, raramente, muito raramente, como se podia faz-lo. a, portanto, que a poltica engaja mais sua responsabilidade, a que os eventos vinham 294 freqentemente desmenti-lo e convenc-lo do erro.

Contudo, o vaticnio final das apreciaes histricas de Michelet sobre o Incorruptvel acabava entrando em contradio com sua vontade de colocar em xeque o papel que ele tivera durante a Revoluo e deixava uma espcie de absolvio do arrageois para o leitor:
Robespierre tinha no corao o ideal da democracia; ele queria menos o poder que a autoridade moral, em benefcio da igualdade. O que ele ambicionava realmente toda sua vida era ser o ditador das almas e o rei dos espritos por uma triunfante frmula que resumiria a f jacobina, e diante da qual girondinos, Cordeliers, a Frana, o mundo, tombariam de joelhos //295

292 293

MICHELET, Jules. Opus cit. T. I, p. 865. Idem, t. I, p. 484. Grifado no original. 294 Idem, t. I, p. 484. Grifado no original. 295 Idem, t. II, p. 422.

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IV. Louis Blanc e as razes da social democracia

A obra de Louis Blanc possua ntidas diferenas em relao aos outros autores de sua gerao (Lamartine e Michelet). Como eles, ele comeou sua histria da Revoluo Francesa s vsperas da Revoluo de 1848, mas, diferentemente deles, ele concluiu os doze volumes que compem sua obra fora da Frana, em seu exlio em Londres. Exlio esse justamente provocado pelo tipo de envolvimento que ele teve com aquela Revoluo. Comprometido no s com a forma do regime a ser instalado em 1848 mas tambm com a resposta que esse regime deveria dar chamada questo social, precursor da oficina social, o socialista Louis Blanc valorizou sobremaneira em sua histria da Revoluo de 1789 a maneira como os revolucionrios tentaram resolver os problemas sociais do seu tempo. Nesse sentido, ele viu a Revoluo como origem do que poderamos chamar em nosso tempo de um estado social-democrata. Outra diferena fundamental com os outros dois grandes escritores de sua gerao foi que Blanc no era um robespierrista inconsciente como Lamartine ou um anti-robespierrista como Michelet. Ele escreveu, como afirmava Franois Crouzet, a nica grande obra do sculo XIX que era favorvel a Robespierre296. O que se poderia esperar de Blanc em relao ao Incorruptvel podia ser visto desde o princpio de sua obra, pois retirou Robespierre do anonimato por meio de uma clebre descrio do deputado de Arras entre o cortejo dos deputados reunidos para a cerimnia de abertura dos Estados Gerais:
Um s, no cortgio, um s pressentia ento, iluminado que era por sua convico, as conseqncias supremas. Ora, ele se encontrava entre os mais obscuros; ele era daqueles que os passantes demandavam o nome; e sua postura rgida afastava todo propsito familiar, ele andava retirado em si mesmo e como distrado da agitao ambiente pelo silncio de seus pensamentos.297

Porm, no devemos nos enganar do que nos espera a seguir na obra de Louis Blanc. Num dos trabalhos mais brilhantes sobre a histria revolucionria, o tratamento dado

296 297

CROUZET, Franois. Opus cit. P. 264. BLANC, Louis. Histoire de la Rvolution Franaise. Paris, Docks de la Librairie, s/d (1870). t. I, p. 100.

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Revoluo e a Robespierre298 no se limitava ao partidarismo fcil, ao contrrio, havia nele uma anlise bastante complexa. Assim sendo, Blanc realizou uma tentativa de refutao das teses anti-robespierristas mais tradicionais e uma conceitualizao do pensamento robespierrista como o prottipo de um projeto social-democrata. A acusao habitual da legenda anti-robespierrista de que Robespierre foi um ditador e de que ele foi o responsvel exclusivo pelo Terror, acusaes que na historiografia revolucionria eram geminadas, Blanc tentou refutar claramente. Para ele a idia de que o Incorruptvel era uma figura isolada no seio do governo revolucionrio e que no poderia ser considerado ditador ou o responsvel principal pelos atos do governo revolucionrio era algo indiscutvel. Conforme Blanc, o homem
// do qual, com tanta astcia, se proclamava a onipotncia, apenas tinha no manejo efetivo do poder uma parte muito limitada. exceo de Saint-Just, quase sempre em misso, e do paraltico Couthon, freqentemente ausente, o Comit de Salvao Pblica integralmente lhe era hostil; ele contava no Comit de Segurana Geral, salvo David e Lebas, tantos inimigos mortais quantos eram os membros. O agente mais temvel do Tribunal revolucionrio, Fouquier-Tinville, nutria contra ele um dio profundo, e tinha ali certamente uma influncia bem capaz de contrabalanar aquela de Dumas. verdade que Robespierre, na Comuna, apoiava-se sobre Payan; mas, desde a morte de Chaumette e de Hbert, a Comuna tinha perdido sua importncia poltica. Restava pois o clube dos Jacobinos, no qual ele dominava pela palavra, e a Conveno, sobre a qual ele no exercia, depois de tudo, outro imprio que aquele da eloqncia unida a um grande carter. Na realidade, ele somente tinha as aparncias de um poder cujos mecanismos estavam entre as mos de seus inimigos.299

Alm disso, Louis Blanc levou s ltimas conseqncias essa argumentao, aprofundando as idias de Mignet e de Lamartine a respeito da tentativa dos robespierristas de parar o Terror. Segundo ele, se desenhava dia a dia mais vivamente a poltica do partido robespierrista, que era de suspender o Terror, sem entretanto nada fazer que desse aos realistas a esperana de atingir a Revoluo300. Assim, o projeto poltico de Robespierre e de seus amigos teria como objetivo dar // segurana a todas as classes de cidados, de liberar

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Porm, a histria de Louis Blanc seguia sua maneira particular de definir o papel do indivduo na histria. Ele afirmava que a fora que os indivduos poderosos possuem, eles somente a extraem deles mesmos numa parte muito pequena: eles a obtm, sobretudo, do meio que os envolve. Sua vida apenas uma concentrao da vida coletiva no seio da qual eles esto mergulhados. Citado em: RIGNEY, Ann. Robespierre et ses synonymes. In: JOURDAN, Annie. Robespierre: figure-rputation. Amsterdan, Editions Rodopi, 1996. P. 207. 299 BLANC, Louis. Histoire de la Rvolution Franaise. Paris, Docks de la Librairie, s/d (1870). T. II, p. 504505. 300 Idem, t. II, p. 528.

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os suspeitos, de dar a mo aos restos da gironda, e de pacificar as antigas faces pela fuso geral, eis o que sabiam vrios membros da Conveno //.301 Outra forma de combater os historiadores anti-robespierristas, em particular Michelet, era a negao de Blanc de que o Terror fosse um sistema. Nesse sentido, ele antecipava Aulard. Com veemncia ele afirmava: no, no, o governo do Terror no foi o produto de um systme302. Assim, ele defendia claramente a teoria das circunstncias. O Terror // saiu, todo armado e fatalmente, das entranhas da situao: as injustias do passado o tinham concebido, as lutas prodigiosas e os perigos sem exemplo do presente o engendraram. E veja o que aconteceu.303 Para conseguir seu intento negar a responsabilidade exclusiva dos robespierristas pelo Terror ele chegou a produzir uma verdadeira taxionomia entre os revolucionrios a respeito do Terror. Havia aqueles para quem o Terror servi[ndo] s paixes ou satisfa[zendo] o carter violento, buscaram nele um abominvel ponto de apoio. Assim foram Hbert, Ronsin, Fouch, Collot-dHrbois, Carrier304 ; outros tinham uma inclinao // natural para com a clemncia //, inclinao que associavam a convices desgastadas. Estes recuaram // para fugir vista do cadafalso, at a contra-revoluo. Assim foram Danton e Camille Desmoulins.305 Em relao ao caso dos robespierristas, ele defendia a tese de que eles, ao mesmo tempo em que mantinham-se apegados ao ideal revolucionrio, para o qual o Terror foi fundamental, buscaram moder-lo. Blanc retomava, de certa forma, a idia do prprio Robespierre da relao entre virtude e Terror. Citando as prprias palavras de Robespierre, ele dizia que havia
// aqueles que, queriam que a Revoluo se divorciasse do furor sem nada perder de sua energia, pronunciaram-se tanto contra o moderantismo, que est para a moderao como a impotncia est para a castidade, e contra o excesso, que se assemelha energia como a 306 hidropisia sade. Eu nomeio Robespierre, Saint-Just e Couthon.

Seguindo o mesmo raciocnio, Blanc desenvolveu a idia de que uma srie de revolucionrios (Hbert, Ronsin, Collot-dHerbois, Billaud-Varenne e tantos outros), os quais
301 302

Idem, t. II, p. 531. Idem, t. II, p. 375. Grifo do autor. 303 Idem, ibidem. 304 Idem, ibidem. 305 Idem, Ibidem. 306 Idem, ibidem.

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ele chamava de partido dos terroristas, s tinham como freio Robespierre, com o apoio de Saint-Just e Couthon. Ele sintetizava: uma palavra resumia ento o hbertismo: era Terror. Os robespierristas lhe opuseram Justia, e os dantonistas a palavra clemncia.307 Quanto lei do Prairial, a acusao mais pesada que recaa sobre os robespierristas, Blanc no deixava de demonstrar sua rejeio e seu espanto frente a ela. Contudo, ele tentava justificar a ao de Robespierre e seus companheiros, afirmando que o arrageois tentara com a lei do Prairial evitar as manobras judicirias que s beneficiavam os ricos. Para ele Robespierre partia do ponto de vista, talvez verdadeiro em certas circunstncias, mas cheio de perigos, que as formas apenas asseguram uma proteo efetiva aos culpados poderosos.308 Porm, Blanc notava com grande acuidade que a nica objeo lei do Prairial pelos colegas convencionais de Robespierre (podemos acrescentar, aqueles que vo acusar os robespierristas de serem os nicos responsveis por essa lei) foi em relao ao contedo da lei que tratava das pessoas que deveriam ser trazidas ao tribunal revolucionrio, o qual era dbio o suficiente para suscitar a dvida de que, a partir de ento, os Comits podiam acusar sem a permisso da Conveno seus prprios membros, o que contrariava disposies anteriores309. Quanto ao programa social que norteava a Revoluo e os seus diversos grupos, Blanc o analisou por meio de sua teoria dos trs grandes princpios. Segundo ela, a Revoluo teria sido fruto do individualismo e da fraternidade, um dos trs grandes princpios que dividiam o mundo e a histria, junto com o princpio de autoridade. O princpio individualista era a caracterstica principal dos girondinos e a fraternidade o princpio que norteava a poltica dos jacobinos. A fraternidade era o princpio que // olhando como solidrios os membros da grande famlia, tende a organizar um dia as sociedades, obra dos homens, sobre o modelo do corpo humano, obra de Deus, e funda o poder de governar sobre a persuaso, sobre o voluntrio assentimento dos coraes310. Outro ponto fundamental da reflexo de Blanc sobre a Revoluo era sua idia sobre a ditadura revolucionria. em relao essa questo que Cesare Vetter311 afirma existir uma aporia no pensamento de Blanc. Segundo esse autor, a compreenso de Louis Blanc sobre o

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Idem, p. 423. Grifado no original. Idem, t. II, p. 483-4. Grifado no original. 309 Idem, t. II, p. 487. 310 BLANC, Louis. Histoire de la Rvolution Franaise. Paris, Docks de la Librairie, s/d (1970). T. I, p. XXIX. 311 VETTER, Cesare. Il dispotismo della libert: dittatura e rivoluzione delliluminismo al 1848 . Milo, Francoangeli Storia, 1993. P. 80.

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governo revolucionrio se fazia por meio de uma contradio: ao mesmo tempo em que defendia a idia de que a ditadura do ano II foi um evento de exceo e irrepetvel, Blanc via a ditadura como um modelo que poderia se repetir em situaes de grave crise poltico-social. Essa interpretao no o impedia de fazer uma clara condenao do Terror, no admitindo que esse regime pudesse ter salvado a Frana312. Outra importante contribuio de Louis Blanc historiografia da Revoluo e do robespierrismo foi sua teoria geral da Revoluo. Nela se destacava uma concepo inovadora, de que o processo revolucionrio de 1789 poderia ser dividido em dois momentos, sendo o segundo, o ano II, o momento mais positivo. Conforme Madeleine Rebrioux, Louis Blanc // sustenta com grande energia a teoria dita das duas revolues 313. Havia ento // uma, marcada pelos traos de Voltaire, ser facilmente vitoriosa e semelhante quase a uma festa do que a um combate [1789]; a outra, [1793] sada de Jean-Jacques, somente ter uma majestade fnebre e terminar numa catstrofe.314 Assim, a Revoluo era dividida em duas: uma baseada na burguesia, a outra no povo. Esta ltima contrastava com a primeira, a dos girondinos, para os quais a sociedade no outra coisa seno um sistema de garantia entre os indivduos.315 J a segunda, capitaneada pelos montanheses, entre os quais a ascendncia do robespierrismo era bvia para Louis Blanc, contrastava com a revoluo burguesa porque para a revoluo baseada no povo era a // coeso do corpo social, nascida da fraternidade e fundada sobre a solidariedade, que era essencial 316. Blanc via nas diferenas religiosas que separavam os montanheses e os girondinos o ponto de partida que os separava nos contedos sociais. Os girondinos rejeitavam qualquer apelo providncia divina; os montanheses faziam a defesa de uma fora divina superior confortando a condio humana. Estas duas concepes religiosas estavam relacionadas s opes poltico-sociais que cada um defendia. A ausncia de um espiritualismo girondino os conduzia defesa do princpio individualista:

312 313

Idem, p. 80. REBRIOUX, Madeleine. Louis Blanc. In: BONGIOVANNI, Bruno e GUERCI, Luciano. (orgs.) Lalbero della Rivoluzioni. Le interpretazioni della Rivoluzioni francese. Turim, Giulio Einaudi Editore, 1989. P. 62. 314 BLANC, Louis. Opus cit. t. I, p. 9. 315 REBRIOUX, Madeleine. Opus cit. p. 65. 316 Idem, ibidem.

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Qual era o princpio dos girondinos? O individualismo puro. Qual era o estado social que demandavam suas aspiraes? Um sistema bem combinado de garantias. Que um quadro fosse construdo no qual o forte e o fraco, o rico e o pobre, o sbio e o ignorante, viessem a se movimentar to livremente quanto possvel, mas com a diversidade das chances ligadas desigualdade de suas foras naturais ou de seus recursos adquiridos, o ideal dos girondinos no ia alm. Portanto, nada de despotismo com face humana em sua doutrina, mas tambm nada de proteo social; a cada um cabia prover o seu prprio destino, em sua esfera particular e fazendo o seu melhor! Se acontecesse que os fardos no fossem proporcionais s foras, tanto pior para os fracos!317

Para ele, essa ausncia de uma defesa de garantias sociais por parte dos girondinos estava ligada a seu atesmo:
Ora, porque aqueles que afastavam a noo de um poder tutelar entre os homens teriam admitido aquele de um poder tutelar nos cus? Eles estariam bem perto de ser ateus, se fosse lgico, os quais, desconhecendo a ligao misteriosa dos seres, reduzem tudo existncia individual //318

J no caso dos montanheses, seu espiritualismo explicava sua defesa dessas mesmas garantias. O tipo montanhs // seria espontaneamente pantesta, que, generalizando a vida, reencontra a sua na dos outros319. Assim, os robespierristas, acreditavam haver a necessidade de uma alta sano moral para a idia de que a interveno de um poder ativo e justo era requerida l onde havia fracos para proteger, pobres para alimentar, infelizes para salvar, no somente da opresso, mas do abandono320. Por via de conseqncia dessa viso espiritualista, eles buscaram combater a pobreza desenvolvendo uma poltica de direitos que deveria desembocar numa prtica de proteo social garantida pelo Estado. Como observa Blanc:
Eles sabiam que ao doente que se vira gemendo sobre seu leito de dor importa pouco saber que existe o direito de ser curado, se ele no curado; eles sabiam que o direito de andar, reconhecido ao paraltico, apenas derriso da parte de quem no lhe estende a mo; eles sabiam que as destruies da misria tem por principal obstculo a misria mesmo, despotismo mais terrvel que qualquer um daqueles que portam o nome de homem, e contra o qual um triste preservativo a doutrina gelada do cada um em seu lugar, cada um por si; deixar passar, deixar fazer deixar morrer!321

Dessa forma, Robespierre e seus companheiros no se limitaram a uma defesa retrica dos direitos polticos, mas tambm compreenderam a necessidade de por em prtica uma srie de medidas sociais. Assim, foram institudos o maximum de preos, a assistncia aos patriotas, o culto da virtude e do Ser Supremo // tudo graas a um poder ativo necessrio

317 318

Idem, t. II, p. 245. Idem, ibidem. 319 Idem, ibidem. 320 Idem, t. II, p. 246.

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l onde havia fracos para proteger: em suma, um estado democrtico322. Eles preconizaram, portanto, o que viria a ser conhecido mais tarde como um estado do bem estar social e que Blanc designava pura e simplesmente pela expresso estado democrtico, o qual implicava necessariamente na igualdade poltica mas tambm na igualdade social, na possibilidade de todos gozarem do bem estar coletivo323.

321 322

Idem, ibidem. Grifado no original. REBRIOUX, Madeleine. Opus cit. P. 65. 323 BRACCO, Fabrizio. Louis Blanc, dalla democcrazia politica alla democrazia sociale 1830-1840. Florena, Centro Editoriale Toscano, 1983. P. 78.

83 Captulo V A Terceira Repblica e o robespierrismo: Taine, Aulard e Jaurs

I. Taine: a rejeio da Revoluo pelo medo Era uma escolstica de pedantes recitada com uma nfase de energmenos. Com classificaes dos revolucionrios como essa, Hyppolyte Taine atraiu muitos leitores e admiradores. Se pudssemos utilizar uma metfora psicanaltica, sendo, dessa forma, um pouco como o prprio Taine, diramos que essa raiva verborrgica era fruto de uma espcie de histria do medo. Assim como Hobbes produziu um pensamento poltico baseado no medo da guerra civil poltico-religiosa, Hippolyte Taine tambm foi marcado pelo medo da guerra civil, s que, no seu caso, pela guerra civil poltico-social: a Comuna de Paris de 1871. No sendo, no comeo de sua carreira literria, um conservador em poltica, Taine mudou a partir daquele acontecimento. Ele o desesperou324. A partir da, passou a ter uma viso poltica francamente conservadora, que se refletia em concepes como a negao do direito ao voto universal, considerado o ninho do monstro demaggico325, e na defesa do direito propriedade. E isso a tal ponto, que ele inclua esse ltimo como elemento de coeso da sociedade tanto quanto a proibio do incesto e do canibalismo326. O choque causado pela Comuna fez de Taine, entre todos os grandes historiadores franceses do sculo XIX, talvez o nico francamente contrrio Revoluo. Contudo, ele fez causa comum com todos os historiadores partidrios da Revoluo quanto ao desejo de fazer uma busca das origens para explicar o presente. Assim, ele afirmou: foi porque, quando ns quisemos compreender nossa situao presente, nossos olhares estiveram sempre voltados para a crise terrvel e fecunda pela qual o Antigo Regime produziu a Revoluo e a Revoluo o novo Regime 327.

324

AULARD, Alphonse. Taine, historiens de la Rvolutiion franaise. Paris, Librairie Armand Colin, 1907. P. 15. 325 Idem, p. 16. 326 TAINE, Hippolyte. Les origines de la France contemporaine. Paris, Robert Lafont, 1986. P. 156. 327 TAINE, Hippolyte, Opus cit. t. I, p. 5.

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Como que demarcando uma posio frente historiografia anterior, a histria de Hippolyte Taine foi uma tentativa de construir uma histria cientfica. Para ele, a histria era um objeto explicvel tanto quanto a natureza. Dizendo de outra forma, as descobertas cientficas permitiram ao homem, durante os sculos XVII e XVIII, conhecer melhor as regularidades do comportamento do mundo natural. Os mesmos procedimentos tambm podiam ser aplicados ao homem.328 Tratando do Antigo Regime, da Revoluo, do Regime Novo, ele afirmava que iria // descrever esses trs estados com exatido. Eu ouso declarar aqui que no tenho outro fim; permitir-se- a um historiador agir como naturalista; eu estava diante de meu sujeito como diante da metamorfose de um inseto.329 Sua histria cientfica era permeada de um jargo no mnimo estranho: histria natural da alma, patologia mental, entre outros. Na verdade, essa era um pouco a linguagem do cientificismo do sculo XIX. Desse modo, sua histria foi marcada por uma sustentao baseada na concepo de cincia desse sculo, que influenciou homens da cena poltica e cultural das mais diversas tendncias ideolgicas. Alm de Taine, essa preocupao pode ser encontrada em Marx, que pretendia dedicar O Capital a Charles Darwin; e em mile Zola justificando, na Besta Humana, os caracteres de seus personagens com base nas idias de Lombroso. Partindo dessas concepes, Taine pretendia que a cincia fosse um elemento fundamental para a compreenso da histria. Ao mesmo tempo, ele afirmava que era a incapacidade de usar de forma adequada as conquistas cientficas dos dois ltimos sculos antes da Revoluo que permitiu o aparecimento de um pensamento revolucionrio. Este estava na raiz do que aconteceu em 1789. Foi a incompreenso do que ele chamava de esprito clssico em relao a tais conquistas que produziu a filosofia do sculo XVIII e as doutrinas da Revoluo.330 Para Taine, o esprito clssico foi uma forma fixa. Essa forma foi o molde do qual saem todos os discursos, todos os escritos, at as frases e o vocabulrio da Revoluo. 331 O que foi esse esprito clssico? Uma certa razo, a razo raciocinante [raisonnante], aquela // que quer pensar com menos preparao e mais comodidade que se possa, que se

328 329

TAINE, Hippolyte. Les origines de la France contemporaine. Paris, Robert Lafont, 1986. P. 129 e segs. Idem, t. I, p. 5. 330 Idem, t. I, p. 140. 331 Idem, ibidem.

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contenta com o que tem, que no pensa em aument-lo ou em renov-lo, que no sabe ou no quer abraar a plenitude e a complexidade das coisas reais.332 Foi essa doutrina que permitiu a formulao de um pensamento como o de Rousseau, que visava questionar a tradio e a autoridade com base na idia do direito natural. Esse tipo de pensamento passou s camadas mdias da populao francesa e tambm aos setores populares. No caso desses ltimos, a noo mais importante que eles absorveram foi o dogma da soberania popular. Conforme Taine, esse dogma permitia todo tipo de exploso e de atentado popular333. Foi com base nesse dogma que Robespierre desculpou as jacqueries, recusou que se chamasse de bandidos os incendirios de castelo, justificou os insurgentes de Soissons, de Nancy, dAvignon, das colnias.334 No captulo de onde so tiradas essas referncias, A conquista jacobina: primeira etapa, Taine analisava os jacobinos, ou melhor, o que ele chamava o esprito jacobino. E como nasceu esse esprito? Do amor prprio exagerado e do raciocnio dogmtico. Para demonstrar sua tese, ele relatava o orgulho ferido do burgus diante da nobreza. Isso somado s teorias do Contrato social, resultava no tpico jacobino. Como afirmou Jaurs, Taine // parece somente ter visto no movimento burgus um acesso de vaidade ou de tola exaltao filosfica. O burgus de cidade pequena sofreu no seu amor-prprio dos desdens do nobre. Ele leu Jean-Jacques e ele se fez jacobino: eis toda a Revoluo.335 Partindo dessa concepo, no se podia esperar de Taine outra coisa seno a seguinte descrio dos jacobinos:
// estes so os nossos jacobinos: eles nascem na decomposio social, como champinhons no hmus que fermenta. Consideremos sua estrutura ntima: eles tm uma, como outrora os puritanos, e apenas temos que seguir seu dogma a fundo, como uma sonda, para descer neles at a camada psicolgica em que o equilbrio normal das faculdades e dos sentimentos foi revertido.336

Sua descrio do tipo jacobino parecia mais a descrio de um personagem de 1984 de George Orwell, avant la lettre:
// construo lgica de um tipo humano reduzido, esforo para nele adaptar o indivduo vivo, ingerncia da autoridade pblica em todas as provncias da vida privada, coero

332 333

Idem, t. I, p. 145. Idem, t. II, p. 567-8. 334 Idem, t. I, p. 569. 335 JAURS, Jean. Histoire socialiste de la Rvolution Franaise. Paris, ditions Sociales, 1969. T. I., p. 111. 336 TAINE, Hippolyte. Opus cit. T.I, p. 575.

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exercida sobre o travalho, as trocas e a propriedade, sobre a famlia e a educao, sobre a religio, os hbitos e os sentimentos, sacrifcio dos particulares comunidade, onipotncia do Estado, tal era a concepo jacobina.337

Aqui a histria cientfica de Taine tem mais de subjetividade do que qualquer outra coisa. Nessa passagem, ele confunde medidas emergenciais com princpios polticos. Se tivesse lido Saint-Just com mais ateno, saberia que o estado ideal para os jacobinos era aquele no qual a
// vida civil a mais natural, ela que preciso cultivar com mais cuidado. A liberdade do povo est em sua vida privada, no a pertubes, somente pertubes os ingratos e os criminosos. Que o governo no seja uma autoridade para o cidado, que ele seja para ele um rgo de harmonia, que ele somente seja uma fora para proteger esse estado de simplicidade contra a fora mesmo.338

Para Taine, evidentemente, Robespierre era quem representava melhor esse esprito jacobino. Dos trs grandes nomes montanheses, Marat, Danton e Robespierre, este ltimo foi o melhor dotado da raison raisonnante. Ele explicava porqu. No podia ser Marat, j que // no se toma por guia um manaco homicida ; tambm no podia ser Danton porque // no se confia sem repugnncia a um aougueiro poltico. Assim, a Revoluo precisava de um outro intrprete
tendo como ela uma aparncia especial, e tal era Robespierre, com seu costume irreprochvel, seus cabelos bem empoados [poudrs], sua veste bem cuidada, com seus hbitos corretos, seu tom dogmtico, seu estilo estudado e plido. Nenhum esprito, por sua mediocridade e sua insuficincia, achava-se to conforme ao esprito do tempo; ao contrrio do homem de Estado, ele plana no espao vazio, entre as abstraes, sempre cavalo sobre os princpios, incapaz deles descer, e de colocar o p na prtica.339

Feito esse caminho na obra de Taine, observamos em sua obra uma total falta de complacncia para com o Incorruptvel, pois, segundo ele, o advogado de Arras era o depositrio de toda a concepo maniquesta que a Revoluo produziu:
// de uma ponta outra da revoluo, Robespierre ser sempre, aos olhos de Robespierre, o incomparvel, o nico puro, o infalvel, o impecvel; nunca homem manteve to corretamente e to constantemente sob seu nariz o porta-incenso que ele enchia com seus prprios elogios. esse nvel, o orgulho pode beber a teoria at o fundo, to repugnante quanto seja o resduo [lie], to mortais quanto sejam os efeitos sobre aqueles mesmos que enfrentam a nusea para engolir seu veneno. Pois, j que a virtude no podia resistir-lhe sem crime. Interpretados por ele, a teoria divide os franceses em dois grupos: de um lado, os aristocratas,

337 338

Idem, t. II, p. 75. SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. Fragments dinstitutions rpublicaines. In: Oeuvres Compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 968. 339 Idem, t. II, 112-3.

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os fanticos, os egostas, os homens corrompidos, logo, os maus cidados; de outro lado, os patriotas, os filosficos340, os homens virtuosos, isto , as pessoas da seita.341

Dando um passo alm, Taine caiu na reproduo das mais insanas fantasias do Abb Proyart, como o hino que, conforme ele, Robespierre tinha composto e que seus adeptos entoavam: Robespierre unicamente encontrou a forma ideal do cidado. Robespierre unicamente a preencheu exatamente, sem excesso nem lacuna. Robespierre unicamente digno e capaz de conduzir a Revoluo.342 Para provar que Robespierre era um sanguinrio, Taine o acusou de ter apoiado expressamente os afogamentos de Nantes e os principais massacres executados por Carrier, Turreaux, etc.343 O que era falso. Como afirmou Aulard, foi exatamente o contrrio que aconteceu: o Comit de Salvao Pblica desautorizou Carrier, o convocou, e foi precisamente Robespierre que, por meio de seu amigo, o jovem Jullien, foi o principal autor dessa convocao.344 Na verdade, Taine pretendia produzir um tipo de histria que tinha por objetivo a cientificidade, mas que, na maior parte das vezes, s conseguia ser uma espcie de histria literria, pois misturava acontecimentos que ocorreram em datas diversas sem alertar o leitor, usava memrias de inimigos dos revolucionrios sem relativizar seu testemunho, omitia passagens de textos e no dando as referncias ao p da pgina de outras passagens coisa que um escritor menos cientfico como Louis Blanc naquela altura j tinha ensinado a todos os historiadores , adjetivava personagens histricos com expresses do tipo: manaco homicida. Isso tudo estava longe de construir uma histria que se arrogava no ter nenhum tipo de parti-pris. Assim, a apreciao mais sbria da obra de Taine, com a qual compartilhamos, foi aquela emitida por Seignobos: Taine era o espectador, o narrador de um duelo; suprimindo um dos dois adversrios, ele deu aos atos do outro o aspecto da gesticulao de um louco345.

340

Taine desconhece elementarmente a desconfiana que Robespierre tinha em relao aos filsofos. Cf. Michelet, Jules. Opus cit. P. t. I, p. 872. 341 TAINE, Hippolyte. Opus cit. T. I, p. 582. Aulard, que escreveu um livro que desmonta a histria de Taine, quando se tratava de Robespierre, em certos momentos, pouco difere de Taine. Cf. sua anlise de Robespierre p. 104. 342 Idem, p. 120. 343 Idem, t. II, p. 124, nota 1. 344 AULARD, Alphonse. Opus cit. p. 265. 345 Citado em JAURS. Histoire socialiste de la Rvolution Franaise. Paris, ditions Sociales, 1969. T. II., p. 415, nota 44.

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II. Robespierre no contexto do radicalismo de Alphonse Aulard e da consolidao da Terceira Repblica.

Em 1886, iniciou-se o que veio a ser conhecido mais tarde como a historiografia universitria da Revoluo, j que a prefeitura de Paris criou um curso de histria da Revoluo Francesa na Sorbonne. Cinco anos depois esse curso transformou-se em ctedra. Esse acontecimento marcou uma virada nos estudos sobre a Revoluo, os quais passaram a ser embasados numa pesquisa verdadeiramente acadmica. O primeiro historiador a ocupar essa ctedra foi Alphonse Aulard. Historiador liberal de inspirao radical346, Aulard pretendia ser o mentor poltico do partido radical, que durante a dcada de 1880 e seguintes teve um papel dominante na poltica francesa da Terceira Repblica. Assim, ele fez o mesmo movimento de seus antecessores: presente e passado dialogavam entre si. Desse dilogo saiu sua avaliao da Revoluo e do Incorruptvel. Repblica ainda nos seus comeos, a Terceira Repblica por meio de seus lderes no queria ferir as susceptibilidades da burguesia e colocar em risco sua estabilizao. Com uma clebre frase, Georges Clemenceau, um dos lderes do partido radical, definiu bem a poltica da Terceira Repblica em relao Revoluo e em particular a Robespierre: a Revoluo era um bloco, com uma continuidade entre 1791 e 1793. Porm, Clemenceau e os radicais eram fortemente contrrios ao robespierrismo, pois ele evocava, para os setores burgueses, as ainda recentes cenas da Comuna de 1871 e, dessa maneira, dificultava a consolidao republicana em curso347. Foi com esse pano de fundo poltico que Alphonse Aulard escreveu sua Histoire politique de la Rvolution franaise. Para alm de um certo folclore evocado pela obra de Aulard por causa do seu conflito com Mathiez, o qual foi travestido no conflito dos

346

BURGIO, Alberto, GARGANO, Antonio e VOVELLE, Michel. Robespierre. Duecento anni dopo. Npoles, La Citt del Sole, 1996. P. 89. 347 Parecia que os homens da Terceira Repblica tinham em mente a frase de Lamartine ele [Robespierre] inspira ao futuro o medo do reino do povo, a repugnncia instituio da Repblica, a dvida sobre a liberdade . LAMARTINE, Alphonse. Opus cit. P. 921.

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personagens Danton-Robespierre seu trabalho pode ser considerado como a primeira obra de histria das idias polticas da Revoluo348. Aulard, o republicano do ano II349, como ele mesmo se comprazia em se autodenominar, embasou seu trabalho de historiador tendo subjacente essa idia que a Revoluo era um bloco, mas certamente um bloco que precisava ser representado por uma figura mais palatvel aos gostos burgueses. No caso, a figura adequada era Danton, que foi em um momento o homem nacional, se se pode dizer, o chefe da defesa militar, o arauto do patriotismo, sobretudo em setembro de 1792350. Tendo Danton como heri fundador, a Terceira Repblica poderia tentar conciliar burguesia e Revoluo. Nada melhor para buscar essa conciliao que um historiador que escrevia que Danton procede de Mirabeau, como Cambeta proceder de Danton351. Assim, a Terceira Repblica podia festejar o centenrio da Revoluo sem agastar a burguesia, to importante para a consolidao definitiva do regime republicano. Desse modo, o dantonismo de Aulard que no se resumia a ser somente um culto personalidade, mas tinha a funo ideolgica que descrevemos era uma retomada das idias de Comte e, nesse aspecto, ele era continuador da historiografia de Michelet. Tendo esse quadro como pano de fundo, a Histoire politique de la Rvolution franaise de Aulard foi centrada no contraste Danton-Robespierre, que iria nortear sua interpretao do processo revolucionrio. Desse modo, os caracteres dos dois personagens eram apresentados de forma que o leitor tivesse a impresso desejada pelo autor, isto , que Danton era um revolucionrio muito mais aceitvel do que o advogado de Arras, a comear pela tipologia dos caracteres polticos dos dois personagens. Danton era descrito como o oportunista352, no bom sentido da expresso, claro:
// em poltica, Danton no tem um sistema, se no se conduzir segundo a razo, ou antes segundo a razo esclarecida pela histria. Ele democrata, mas no prope nenhum outro programa de organizao da democracia que no seja a instruo pblica. Ele nunca antecipa a opinio. um republicano do amanh. Pois j que a repblica existe, aceitemo-

348

Conforme observao de Claude Nicolet. Cf. Lide rpublicaine en France (1789-1924). Paris, Gallimard, 1994. P. 97. 349 VOVELLE, Michel. Robespierre dans lhistoriographie universitaire rpublicaine (Aulard, Mathiez, Lefebvre, Soboul). In: Images de Robespierre. Actes du colloque International de Naples. Napoles, Vivarium 1996. P. 166. 350 AULARD, Alphonse. Histoire politique de la Rvolution franaise. Paris, 1901. P. 425. 351 Idem, p. 425. 352 Idem, p. 425.

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la, salvemos por ela a ptria e a revoluo. Seu mtodo agir no dia a dia, resolvendo imediatamente as dificuldades, de uma maneira emprica, a medida em que elas se apresentam.353

Quanto s concepes religiosas de Danton, ponto fundamental das diferenas entre ele e Robespierre, Aulard novamente apresentava Danton sem nenhuma idia preconcebida, mais prximo de algum que pensava sobre o tema como um radical da Terceira Repblica:
// antes ateu, ele diz ao Tribunal revolucionrio: minha residncia ser logo no vazio. Se ele fala uma ou duas vezes do Deus do universo e do Ser supremo, sente -se que se trata do Deus amplo de Diderot. Ele no filosofa. Ele no pensa, como Robespierre, em mudar a alma da nao. Deixar ao povo seus padres, impedir que estes faam muito mal ao Estado, disseminar a instruo, se fiar no tempo, e, esperando, pois a massa da nao catlica, no ferir o sentimento religioso, mesmo pela separao da Igreja e do Estado, que, 354 boa em si, seria prematura em 1792 ou em 1793.

Pelo contrrio, Robespierre fazia da religio um elemento para sua dominao poltica. Desde sempre, segundo Aulard, ele teve a inteno de criar uma religio que fosse seguida por toda a Frana: em Robespierre, o fundo do homem, era a crena no neo-cristianismo de Rousseau, na religio do Vigrio saboiano, e seu fim supremo, ento secreto, era fazer dessa religio a religio da Frana. Danton, por outro lado, no tem o ar de acreditar na imortalidade da alma, um desses dogmas essenciais, segundo seu rival, sociedade355. Outro trao de Danton era o seu talento para a negociao poltica, j que ele seguia uma poltica de conciliao, com vistas a formar, com os elementos prudentes da gironda e da montanha, um terceiro partido que, ajudado do centro, teria tido a maioria na Conveno e teria governado356. J Robespierre, assim como Marat, so vistos como incapazes de aceitar a negociao. Eles representavam na montanha, a tendncia intransigente, a poltica violenta que consistia em destruir materialmente o partido adverso357. Quanto s caractersticas polticas de Robespierre, Aulard comeou fazendo-lhe um candente elogio, atestando sua incorruptibilidade:
// o povo teve outros advogados, outros amigos, mas ele no teve quem mostrasse uma estima to viva, to imperturbvel, das virtudes do povo. O democrata Condorcet acreditava que o povo seria bom, quando o tivessem instrudo; o democrata Marat tinha o povo por frvolo e o tratava como criana: Robespierre acreditava o povo maior, razovel, virtuoso; ele dizia mesmo que toda razo, toda virtude residia no povo. Ele proclamava que
353 354

Idem, p. 424. Idem, p. 424 355 idem, ibidem 356 Idem, ibidem. 357 Idem, ibidem.

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o povo nunca erra. Era seu tema oratrio, nos jacobinos e na Conveno. E ele era sincero, e ele via o povo assim, vivo entre os trabalhadores irreprochveis, instrudos, generosos, os Duplays. Essa sinceridade, sua perfeita probidade, sua austeridade fazia dele, aos olhos do povo, o Incorruptvel.358

Contudo, feito o elogio, passa-se crtica acerba. Robespierre era ento descrito de uma forma que Taine no se negaria a dar sua concordncia:
// a virtude! Toda a poltica, segundo Robespierre, deve tender a estabelecer o reino da virtude, em aniquilar o vcio. Ele raciocina assim: aqueles que se enganam so viciosos, aqueles que so virtuosos tm razo; o erro uma corrupo do corao, o erro no pode ser sincero, o erro sempre mentira. H somente dois partidos: os bons e os maus cidados. Concluso: preciso eliminar da cidade aqueles que no pensam como ns: so criminosos, insociveis. Eliminemos hoje os girondinos: amanh ns eliminaremos os hbertistas, os dantonistas.359 H uma verdade poltica. Qualquer um que dela se afasta, pouco que seja, inimigo do povo. E como distinguir essa verdade, essa linha tnue? Verse-, se se honesto. E de resto Robespierre a mostra ao povo: este somente tem que seguir Robespierre: ele , ele deve ser o ministro da verdade, o ditador da verdade.360

Contudo, o mesmo movimento que fez com que Aulard fizesse uma espcie de apologia de Danton e de sua capacidade de representar uma Revoluo sem derrapagens, o levou a ter uma viso bastante balanceada de uma das questes principais da historiografia do robespierrismo, a saber, sua relao com o Terror. Para ele, a Revoluo jamais erigiu o Terror em sistema.
Compreende-se tambm Terror um sistema poltico que se acredita descobrir na repblica democrtica. Ns vimos, entretanto, que no houve nada de sistemtico na criao do governo revolucionrio. Quase todos os fatos acima relatados mostram que o governo no foi a aplicao de nenhum sistema, de nenhuma idia preconcebida, ele se formou empiricamente, no dia a dia, de elementos impostos pelas necessidades sucessivas da defesa nacional, em um povo em guerra contra a Europa, todos inteiramente armados para defender sua existncia, em um pas que tinha se tornado como que um vasto campo militar. O governo revolucionrio, expediente de guerra, era sem cessar anunciado como devendo ter fim com a guerra.361

Aulard evocava aqui o testemunho de Marie-Joseph Chnier:

preciso convir, uma monarquia de quatorze sculos, mudada subitamente em repblica, uma guerra contra a metade da Europa, uma vasta guerra civil no interior, so estas as ligeiras circunstncias que podem bem justificar temporariamente algumas medidas que seriam substitudas na calma de um tempo mais feliz.362

358 359

Idem, p, 422. Idem, p. 422-3. Aulard deveria ter prestado mais ateno a essa sua anlise. Ela lembra muito a de Taine, o qual ele combateu encarniadamente. 360 Idem, p. 423. 361 Idem, p. 357-8. 362 Citado em: Aulard. Opus cit. P. 358, nota 1.

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Assim sendo, o Terror era explicado pela teoria das circunstncias, da qual Aulard foi um dos principais defensores363: ela [a Conveno] queria que a Frana vivesse, que a Europa sentisse que, se ela empregava meios to contrrios aos princpios da Revoluo, era porque as circunstncias a isso a foravam. Aulard afirmava que o aparato terrorista foi construdo ao sabor do momento, no diaa-dia revolucionrio. medida que o uso do terror foi motivado pelas circunstncias graves que a Frana revolucionria viveu durante os anos de 1793-94, Aulard pintava com cores menos fortes o papel de Robespierre no conjunto desse processo. Ao mesmo tempo, ele analisava o chamado Grande Terror, produzido pela lei do Prairial, partindo da idia que a responsabilidade por sua origem fora coletiva, e ele no podia ser debitado exclusivamente a Robespierre, j que ele nem mesmo assinou a maior parte das listas de execuo. Ele lembrava, tambm, que Robespierre esteve pouco presente s reunies do Comit de Salvao Pblica durante esse momento, e as listas de execuo raramente trazem a assinatura de Robespierre364. Todavia, ele no poupava Robespierre nesse processo. Ele teria sido o responsvel por sua escalada sangrenta, confundido que foi o Terror com uma luta de faces, na qual Robespierre sacrificou os dantonistas e os hbertistas por sua ambio pessoal.365 Porm, h aqui uma contradio. Conforme Aulard, Robespierre se serviu do Tribunal Revolucionrio para condenar seus adversrios, hbertistas e dantonistas, e quando a ditadura do Comit de Salvao Pblica tornou-se a ditadura de Robespierre, o Terror acelerou-se por meio da Lei do Prairial. Mas devemos lembrar que Aulard afirmou que nesse momento Robespierre estava ausente desse Comit 366 Outro ponto importante da anlise de Aulard era o menosprezo que ele devotava s idias de Robespierre, como, por exemplo, sua Declarao de Direitos de abril de 1793. Segundo ele, essas idias eram apenas questo de ttica poltica. Se Robespierre fez uma Declarao de Direitos mais radical que a dos girondinos, Aulard creditava isso ao fato de que Robespierre tinha fingido ser socialista para parecer mais democrata que os girondinos367. Assim, na histria de Aulard no h espao em matria de idias para o Robespierre homem

363 364

AULARD, Alphonse. Opus cit. P. 357. VOVELLE, Michel. Opus cit. P. 171. 365 AULARD, Alphonse. Opus cit. P. 362. 366 Idem, p. 362-3.

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princpio368, ou ele era um oportunista ou se comportava como um menino mimado. Por birra, diante de adversrios que apresentavam um projeto democrtico, ele s poderia marcar sua posio indo alm, produzindo um projeto socialista. Alm disso, Aulard colocava em questo a sinceridade das idias polticas de Robespierre. Para ele, a adeso de Robespierre Repblica foi feita aps o 10 de agosto contra a sua vontade, j que Robespierre visto to teimosamente monarquista, no acreditou mais poder resistir corrente de opinio que se formou contra a monarquia369. Para Aulard, Robespierre de forma alguma tomou parte na luta contra a monarquia, pois teria formalmente negado, em toda ocasio, o republicanismo. Porm, Aulard honestamente reconhece que Robespierre no voltaria mais atrs, e ele permaneceria fiel essa repblica da qual ele tinha sido o adversrio at o 10 agosto370. Contudo, mais que preocupado com questes de natureza poltica e social, pois no fazia muita diferena entre girondinos e montanheses, Aulard se preocupava com o problema religioso durante a Revoluo. Ele fez da diferena entre Robespierre e os girondinos uma questo de orgulho religioso ferido. Assim, Robespierre teria se indisposto com os girondinos por causa das crticas e brincadeiras de Guadet e da acusao do jornal Chronique de Paris de que ele era um padre e no seria jamais outra coisa371. Como dissemos mais acima, Aulard afirmava que Robespierre queria fazer de sua religio a religio da Frana. Ele o acusava, na verdade, de ser o promotor de uma religio de Estado372.

367 368

Idem, p. 291. Expresso de Lamartine, segundo o qual havia // homens pocas como Mirabeau, ho mens princpios como Robespierre. LAMARTINE, Alphonse. Histoire des Girondins. Paris, Librairie Plon, 1984. Introduo e notas de Jean-Pierre Jacques. T. I, p. 267. 369 AULARD, Alphonse. Opus cit. P. 235. 370 Idem, ibidem. 371 AULARD, A. Opus cit. P. 423. 372 BURGIO, Alberto, GARGANO, Antonio e VOVELLE, Michel. Robespierre. Duecento anni dopo. Npoles, La Citt del Sole, 1996. P. 92.

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III. Marx contra Rousseau: a historiografia de Jean Jaurs e o robespierrismo

Se a historiografia de Aulard foi paralela ao surgimento dos estudos universitrios na historiografia da Revoluo, marco crucial para uma abordagem cientfica da pesquisa histrica do processo revolucionrio, o advento da Histoire socialiste de la Rvolution franaise de Jean Jaurs foi, da mesma forma, um marco fundamental para essa historiografia. Jaurs produziu uma mudana no eixo nos estudos revolucionrios, os quais passaram a ter como uma de suas preocupaes fundamentais as questes econmicas e sociais. Sua contribuio metodolgica e terica inovadora foi fruto de uma aproximao com a teoria marxista, o que permitiu que a empreitada historiogrfica jauressiana tivesse como fundamento a tentativa de centralizar a anlise da Revoluo nas questes econmicas e sociais mais que na tradicional leitura poltica e, dessa forma, sua histria socialista seguiu caminhos radicalmente diferentes da preocupao da historiografia revolucionria at ento. Por outro lado, Jaurs trabalhou num contexto em que a repblica j tinha sido consolidada e sua preocupao centrava-se mais na questo do aprofundamento da democracia e do que isso podia trazer para a conquista do socialismo. Isso porque
// Jaurs estava convencido que o socialismo na Frana somente era possvel por um reforo constante da democracia. Nisso ele via o nico meio para o proletariado se libertar como se libertou a burguesia, o nico meio para o proletariado se confundir um dia com a 373 humanidade.

Essa compreenso de que somente por meio da democracia se poderia chegar libertao social dos setores populares fez do trabalho de Jaurs um passo fundamental para o conhecimento do pensamento poltico do robespierrismo, medida que ele tomou a peito um dos cernes desse pensamento, isto , a relao entre a democracia e a ampliao dos direitos sociais dos setores populares, ou seja, do programa de igualizao social. Dois pontos podem ser retidos do tratamento histrico dado por Jaurs a Robespierre. O primeiro diz respeito ao papel do personagem. Na Histoire socialiste de la Rvolution franaise, Robespierre foi muitas vezes avaliado com as prevenes do historiador que vimos

373

REBRIOUX, Madeleine. Jaurs, historien de la Rvolution franaise. Paris, AHRF, 38o ano, n. 184, p. 171195, abril-junho de 1966. P. 192.

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acima374, mas Jaurs escapava freqentemente dessas prevenes. Mesmo sendo um praticante do mtodo marxista na historiografia revolucionria, Jaurs deu um largo tratamento aos personagens que dominaram a cena da Revoluo, j que no excluiu os homens da luta dos homens375. Isso se explicava tambm no porque Jaurs estivesse em busca de um personagem que identificasse toda a Revoluo, como Michelet com seu Danton, mas porque, para ele, cada fase da Revoluo encontrava um homem que a encarnava.376
Mas no de uma exasperao sectria, do poder e larga evoluo da democracia que o socialismo sair: e eis porque, a cada um dos momentos da Revoluo Francesa, eu me pergunto: qual a poltica que serve melhor toda a Revoluo, toda a democracia? Ora, 377 agora a poltica de Robespierre!

Desse modo, Robespierre foi a figura central da Histoire socialiste a partir da queda dos girondinos no 2 de junho de 1793. Um segundo ponto estava relacionado s preocupaes polticas da Belle poque. Essas explicavam, em parte, suas escolhas tericas. Assim, a anlise do papel poltico de Robespierre passava por algumas questes que eram fundamentais nessa poca. Entre elas o problema da paz, pela qual Jaurs acabou dando, literalmente, sua prpria vida, assim como a questo da democracia e do socialismo. Na descrio do carter poltico do personagem, Jaurs contraps-se viso comum de que o advogado de Arras apenas estaria voltado para questes abstratas, dotado de um esprito puro, numa palavra, um idealista378. Tal era uma das idias sobre o Incorruptvel que Jules Michelet, entre outros historiadores, tentou passar a seus leitores. Para o autor da Histoire socialiste, Robespierre no era, pois, nem um utpico nem um esprito vago, mas o terico inflexvel da soberania nacional e da democracia379. Ele prossegue essa avaliao positiva do realismo robespierrista quando julga o papel de Robespierre no momento que a Revoluo pretendia ultrapassar as fronteiras da Frana, ou seja, quando amplos setores polticos desejaram que a Frana declarasse guerra s potncias

374 375

Jacques Godechot. Apud REBRIOUX, Madeleine. Opus cit. p. 193. REBRIOUX, Madeleine. Jaurs et Robespierre. In: Actes du Colloque Robespierre. Paris, Socit des tudes Robespierristes, 1967. P. 191. 376 REBRIOUX, Madeleine. Opus cit. P. 196. A famosa frase de Jaurs confirma essa concepo: Robespierre era uma causa. Aqui, sob o sol de junho de 93 que esquenta sua dura batalha, eu estou com Robespierre, e do lado dele que eu vou me sentar nos jacobinos. JAURS, Jean. Opus cit. T. VI, p. 202-203. 377 JAURS, Jean. Histoire socialiste de la Rvolution Franaise. Paris, ditions Sociales, 1969. T. VI., p. 204. 378 Idem, T. VI, p. 308. 379 Idem, T. I, p. 574.

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europias. A recusa de Robespierre em seguir a grande maioria da nao no entusiasmo belicista foi vista como um ponto alto em sua carreira. Jaurs no limitava sua satisfao: // mas que sentido maravilhoso da realidade, sobretudo que sentido das dificuldades, dos obstculos nesse homem que de hbito se qualifica de idelogo, de terico abstrato!380. Nesses elogios critica robespierrista dos missionrios armados381, sobressaa nitidamente a preocupao do militante pacifista da Belle poque. Outra considerao de Jaurs sobre o realismo robespierrista era sobre sua viso da democracia. Justamente por no ser um utopista ou um esprito vago, Robespierre rejeitava, segundo Jaurs, a concepo rousseausta de que a democracia era inadequada aos grandes estados. Segundo ele, Robespierre acreditava que a democracia podia ser estabelecida em naes como a Frana com a nica condio de aceitar uma concentrao de poder mais forte que nas pequenas repblicas382. Podemos ver porque a obra de Jaurs foi a origem de uma corrente interpretativa que se apoiava na afirmao de que o robespierrismo se caracterizava como um meio termo entre a democracia pura e o governo representativo383. O tribuno socialista contestou de forma convincente e veemente a noo de que Robespierre mudava ao sabor do momento. Conforme Jaurs, durante o perodo da Constituinte, Robespierre manteve-se apegado aos valores democrticos e aos limites constitucionais diante das rivalidades dos partidos e dos homens. Jaurs ressaltava assim a firmeza poltica de Robespierre que atravs de todos esses dilaceramentos, // caminha[va] com seu inflexvel ideal de democracia384 no rumo de uma repblica democrtica. Ao avaliar o pensamento poltico de Robespierre, Jaurs levantava um problema crucial: a relao entre a concepo democrtica de Robespierre e as questes sociais. Esse problema apareceu no desenrolar de sua histria no momento em que analisava a evoluo poltica do personagem. Diferentemente de uma interpretao atual385 que expe a idia de um discurso jacobino, leia-se robespierrista, de oposio e de poder, para Jaurs foi a dinmica revolucionria que levou Robespierre a reagir politicamente como fez. Segundo ele,

380 381

Idem, t. II, p. 188. Ver infra, p. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 382 Idem, ibidem. 383 o caso de CATTANEO. Cf. o seu Libert e virt nel pensiero poltico de Robespierre. Milan, Ist. ed. Cisalpino, 1968. E cisalpina/goliardica, 1986. 384 Idem, T. I, p. 839. 385 JAUME, Lucien. Le discours jacobin et la dmocratie. Paris, Fayard, 1989. Captulo II.

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// se a realeza tivesse seguido os conselhos de gnio que lhe dava Mirabeau, se Louis XVI tivesse desarmado a desconfiana da Nao por uma adeso sem reserva aos princpios essenciais da Revoluo, e pela prtica manifestamente leal da Constituio, Robespierre teria sido, na Revoluo, apenas um poderoso doutrinrio da democracia. Ele teria lembrado sem cessar seu princpio: ele teria talvez impedido a Constituio de se pender muito para uma oligarquia burguesa. Mas ele no teria dirigido os acontecimentos e realizado plenamente sua frmula. Unicamente, o lento crescimento econmico do proletariado industrial, a lenta difuso das luzes entre o povo teria transformado pouca a pouco a Revoluo em democracia.386

Preocupado com a poltica do Bloc des gauches, que no se caracterizava s na tentativa de consolidar de vez a Repblica, mas em ampliar e aprofundar seu significado, Jaurs fez uma avaliao do Incorruptvel diferente de seus principais antecessores. Acreditando que a afirmao e a ampliao da democracia permitiria o aparecimento do socialismo preocupao fundamental por trs do Bloco das esquerdas Jaurs se interessou pelo papel de Robespierre como o homem da democracia poltica total, aquele a quem obseda uma nica idia, a soberania nacional integral: ela s pode existir se dela participarem todos os cidados e os mais desprotegidos387. Robespierre era, assim, na viso jauressiana, um antecipador. Segundo o autor da Histria socialista, Robespierre concebeu durante a Revoluo // um sistema de democracia cujo desenvolvimento lgico concordou com o movimento geral da Revoluo e toda a histria da Frana, nos ltimos 120 anos, foi a justificao evidente.388 Para Jaurs, Robespierre no era um pensador abstrato, como vimos. Apesar disso, seu pensamento era incapaz de deixar a dimenso poltica e, portanto, Robespierre teria acreditado que a democracia poltica bastaria, por seu prprio funcionamento, em realizar a democracia social, uma democracia modesta, idlica, que ignorava as grandes fortunas e o proletariado389. Desse modo, ele
// no era de nenhuma maneira socialista ou comunista; sua maior audcia social, em 1789, foi pedir que se retomasse aos senhores os bens das comunidades usurpadas por eles

386

JAURS, Jean. Opus cit. T. I., p. 840. Frderic Moret levanta a hiptese de que Jaurs estimava que Robespierre, se o curso da Revoluo no o tivesse empurrado para frente, no teria ultrapassado o estgio de pensador poltico. Cf. MORET, Frderic. Puissant doctrinaire de la dmocratie ou amour-propre irritable et souffrant: Maximilien Robespierre devant lhistoire socialiste de la Rvolution Franaise de Jean Jaurs . Paris, Bulletin de la Socit dtudes Jaursie nnes, n. 127-128, outubro de 1992-maro de 1993. P. 4-12. 387 Citado em: REBRIOUX, Madeleine. Opus cit. P. 194. 388 Idem, p. 203. 389 Citado em: RBERIOUX, Madeleine. Opus cit. P. 203-204.

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e que se restabelecesse os prados e os bosques que tinham sido substitudos, depois da diviso, pela cultura do trigo.390

Concebendo a ideologia robespierrista dessa forma, Jaurs conclua que Robespierre no teria dado a importncia necessria s questes econmicas e sociais. Assim, analisando a lei le Chapelier, a qual no estava convencido de ter sido feita para desarmar o proletariado, ele indagava: // como explicar em todo caso o silncio completo de Robespierre? Eu entendo que ele no fosse um socialista; mais era um democrata e ele se apoiava antes sobre o povo dos artesos e dos trabalhadores que sobre a burguesia industrial.391 Para Jaurs, a nica forma de explicar essa omisso de Robespierre era compreender o temor que ele tinha da volta das corporaes392. Contudo, essa preocupao tambm era comum esquerda revolucionria. Marat dizia que a abolio das corporaes iria liquidar as manufaturas e assim todos poderiam trabalhar por conta prpria, havendo uma multido de pequenos patres e ningum querendo ser operrio. Logo, no haveria a grande indstria393. E talvez aqui ns tenhamos a chave do problema. Segundo Florence Gauthier394, no se pode entender a posio de Robespierre frente lei Le Chapelier (14 de junho de 1791), se no se levar em considerao que essa lei foi um complemento da lei Marcial. Segundo ela, durante a Revoluo no se distinguia a lei Marcial da lei Le Chapelier, essa fazendo parte do conjunto daquela. Mais ampla, a lei Marcial era um instituto legal que visava punir um conjunto de manifestaes sociais, como, por exemplo, a luta contra certos resqucios feudais. Robespierre teria a percepo, comum aos homens da Revoluo, que o direito de greve fazia parte de um conjunto de aes como a revolta agrria, os motins da fome o qual a lei marcial visava e essa, por sua vez, foi denunciada por Robespierre. Segundo Gauthier, Robespierre denuncia a lei marcial sob todas as suas formas, e no estabelece hierarquia na represso do movimento popular395. Como Jaurs critica a especializao do robespierrismo nas questes polticas, ele traa um retrato do robespierrismo social com grande acrimnia. Entre outras coisas, faz uma crtica severa a certos aspectos desse programa, como, por exemplo, a tpica condenao
390 391

JAURS, Jean. Opus cit. T. I, p. 572. idem, p. 907. 392 Idem, T. I, p. 911. 393 Idem, T. I., p. 928. 394 GAUTHIER, Florence. Thiomphe et mort du droit naturel en rvolution 1789-1795-1802. Paris, PUF, 1992. 62-63. 395 Idem, p. 64.

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robespierrista da riqueza, uma das dvidas do robespierrismo para com Rousseau e o republicanismo clssico. Nesse ponto, como afirmava Jean Ehrard396, o tribuno socialista colocava Marx contra Rousseau. O autor da Histria Socialista levantava a questo: por que considerar a riqueza como corrompedora essencialmente, no lugar de buscar assegurar a participao de todos nas foras e nas alegrias da vida?. Ele prosseguia analisando no mesmo tom as atitudes robespierristas, que para ele pareciam // considerar que a misria do povo a condio de seu desinteresse. Dir-se-ia que ele aplica Revoluo as palavras do Evangelho: os pobres unicamente entraro no reino de Deus! 397 Desse modo, Jaurs colocava em xeque a crtica de Robespierre riqueza e sua valorizao da pobreza398. Assim, ele dizia que
// o que entristece desde agora na exposio do pensamento social de Robespierre, que ele comunica um tipo de aridez, o parti pris virtuoso contra a riqueza. Sim, ela tem seus vcios, mas a pobreza tambm tem os seus, mesmo quando ela no se abaixou at a misria. Ela freqentemente srdida de esprito, rotineira e estreita. pueril opor cabana de Fabricius o palcio de Crassus. O mundo, o que quer que se faa, fascinado pelo brilho dos palcios: preciso ampli-los para que toda a humanidade deles tenha orgulho. Certamente Robespierre no quer proscrever a opulncia: mas ele a desdenha e ele quase a despreza, como se ela no fosse a forma, antes necessariamente oligrquica, mais tarde social, popular e comum, do poder do homem sobre as coisas, o signo de seu domnio sobre o universo. O que teria sido grande e belo teria sido chamar em socorro da Revoluo todas as foras de produo, da arte, da riqueza, e dizer: as medidas que ns tomaremos para que todos os cidados tenham uma parte desse bem-estar crescente, dessa riqueza humana crescente, somar-se- ao desenvolvimento da riqueza bem longe de 399 contrari-la.

Ou seja, o Incorruptvel no pressentiu nada da evoluo econmica nem do socialismo400. Por outro lado, Jaurs fazia um elogio candente do pensamento de Vergniaud. Esse brilhante girondino fez uma ampla defesa do regime econmico burgus, na qual contrastava a virtude antiga, a de Montesquieu e a de Rousseau, a uma virtude burguesa. Segundo Vergniaud,

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EHRARD, Jean. Entre Marx et Plutarque: le Robespierre de Jaurs. In: EHRARD, Jean. Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 147. 397 JAURS, Jean. Opus cit. T. II, p. 468. 398 Idem, T. II, p. 468. 399 Idem, T. VI, p. 140. Isso parece quase um programa econmico keynesiano! 400 Idem, ibidem. Jaurs mesma referncia.

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Rousseau, Montesquieu, e todos os homens que escreveram sobre os governos, nos dizem que a igualdade da democracia se apaga l onde o luxo se introduz; que as Repblicas somente podem se sustentar por meio da virtude, e que a virtude se corrompe por meio da riqueza. Vs pensais que essas mximas aplicadas apenas por seus autores a Estados circunscritos, como as Repblicas da Grcia, em estreitos limites, devem s-lo rigorosamente e sem modificaes Repblica francesa? Vs quereis criar-lhe um governo austero, pobre e guerreiro como aquele de Esparta?401

A importncia que a avaliao de Jaurs deu ao discurso do girondino era clara. Para ele, Vergniaud
// traou o quadro magnfico das democracias modernas, variadas e complexas, obrigadas, todas em conjunto de se precaver contra as tiranias armadas que subsistem no mundo e, sem cessar, de fazer jorrar mais abundante a atividade da paz, cuidadosas de prevenir a extrema desigualdade das fortunas, mas abrindo aos indivduos e sociedade inteira perspectivas de riqueza e de brilho. Sim, magnfica imagem da democracia ainda burguesa, brilhante e necessrio corretivo da secura do ideal de Robespierre; programa admirvel se somente Vergniaud tivesse pressentido que, pelo duplo esforo combinado da democracia e da riqueza, um dia todo o povo trabalhador participaria da grande festa harmoniosa da vida //402

Jean Ehrard avana uma explicao para as razes que levaram Jaurs a esse julgamento severo do pensamento social robespierrista. Segundo ele,
// nada em Robespierre mais estranho para Jaurs que o tema da frugalidade virtuosa. dizer pouco que a idia o irrite: ela o exaspera. Tudo o que podia conter de inovador e de profundo na crtica rousseausta da alienao pelo ter e o parecer parece lhe escapar. Em uma Frana que aquela de Zola o espectro cotidiano dos efeitos morais da misria no incita, na verdade, idealizar a pobreza. Isso devia ser diferente um sculo mais cedo, num tempo de desigualdades ainda bem mais fortes? E se se recusa a desigualdade, porque seria preciso igualiz-la por baixo, quando o progresso tcnico e econmico abre humanidade as esperanas indefinidas? Herdeiro das Luzes, Jaurs relana sua maneira contra Robespierre, o processo de obscurantismo intentado a Jean-Jacques por Voltaire e os enciclopedistas: a ele no se far andar sobre quatro patas! por isso que ele recusa energicamente o falso dilema no qual se fechou Robespierre: seja a virtude dos fracos, seja o egosmo dos ricos.403

Contudo, esse questo no se reduzia a uma incompreenso do progresso social e tcnico, ao qual, de resto, Robespierre no era refratrio. A ns parece mais adequado ver esse problema em sua dimenso mais apropriada: a poltica. A idia da frugalidade estava
401

VERGNIAUD, Louis Victorien. Le projet de Constitution (8 mai 1793). In: Les grands orateurs rpublicaines. Mnaco, Les ditions Hemera, 1950. P. 228. O mesmo argumento j tinha sido adiantado pelos jornais girondinos. Ver, por exemplo, o tratamento dado a Robespierre pelo Chronique de Paris: o texto de seus sermes aquele do Cristo: preciso despojar todos os bandidos burgueses de Jerusalm para vestir os sans-culottes. Ele vive de pouco. Ele no conhece as necessidades. 402 Idem, T. VI, p. 141. 403 EHRARD, Jean. Opus cit. P. 146-7.

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relacionada ao combate corrupo e, obviamente, aos desnveis sociais. Tudo isso, por sua vez, dizia respeito ao problema de evitar a preponderncia, dentro da repblica, de um grupo social sobre o outro, de permitir mesmo a existncia desse regime poltico, o qual a excessiva diferenciao social impediria. Como observa Georges Lefebvre, Robespierre, como Saint-Just, da qual as Instituies republicanas se mostram particularmente explcitas, estimava, na esteira de Rousseau, que a liberdade e a igualdade civil e poltica se apagavam para a maioria dos cidados a medida em que se exagera a desigualdade social404. Jaurs fez assim uma clara opo pelo pensamento girondino (que representava uma filosofia do progresso econmico) em detrimento do robespierrismo, que ele compreendeu, ao nosso ver, equivocadamente, pois o caracterizava como um ataque riqueza e ao progresso. Aqui, embrionariamente, ele antecipou a idia de Georges Lefebvre sobre o pensamento passadista de certos grupos da Revoluo. Isso no era um equvoco para quem pensava que o aprofundamento da democracia traria o socialismo? No para Jaurs. Nesse ponto do pensamento jauressiano, Marx prevalece contra Rousseau405. Como bom roussseausta, Robespierre parece se fixar numa sociedade amarga e triste na qual a riqueza crescente de uns no seria abolida, mas controlada e equilibrada pelo poder poltico de uma massa desafiante e pobre406. Conforme Ehrard, uma tal sociedade estaria evidentemente nas antpodas da organizao social igualitria e fraternal, na prosperidade compartilhada, para o advento da qual milita o tribuno socialista407. De qualquer forma, deve-se repetir que a crtica riqueza feita pelo robespierrismo no pode ser entendida como um ataque moralizador em relao ao luxo, vida na Perspolis, ou seja, se nos situarmos apenas na dimenso moral dessa crtica. Para compreender essa noo cara ao robespierrismo da frugalidade, do ascetismo material, preciso levar em considerao o que significava para os revolucionrios de 1789, ligados a Robespierre, a importncia que a limitao das desigualdades sociais tinha para seu pensamento poltico e seu significado para a construo da sociedade democrtica que eles almejavam. Nesse ponto,
404

Cf. La Rvolution franaise. 7a ed. Paris, PUF, 1989. P. 408. Veja tambm as consideraes de Lemay. Assim ele detecta o inimigo no seio mesmo do Terceiro Estado, no acordando nenhum papel aos benefcios do enriquecimento geral da populao pela agricultura, o comrcio ou a indstria. LEMAY, Edna Hinde. Une voix dissonante lAssemble Constituante: le proselytisme de Robespierre . AHRF, a. 53, n 245, p.390-404, 1981. P. 398. 405 EHRARD, Jean. Opus cit. p. 147. 406 JAURS, Jean. Opus cit. T. II, p. 468. 407 EHRARD, Jean. Opus cit. P. 148.

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o robespierrismo era tributrio de uma corrente do republicanismo para a qual o desequilbrio econmico causado pelo desenvolvimento, numa linguagem atual, das formas pr-capitalistas de produo (comrcio, luxo), produziria um efeito nefasto sobre a organizao social e, por meio dessa, da organizao poltica. Na verdade, o robespierrismo estava profundamente ligado noo que a independncia econmica era a condio para a liberdade poltica, independncia que s podia ser alcanada, na viso de mundo de ento, atravs das pequenas propriedades urbanas e rurais. Robespierre subscrevia, sem hesitao, a idia de Saint-Just de que era preciso que o homem vivesse independente408.

408

SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. Oeuvres Compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 935.

103 Captulo VI A historiografia universitria

I. Albert Mathiez

No sculo XX, historiadores como Albert Mathiez, Georges Lefebvre e Albert Soboul foram os herdeiros naturais daquilo que chamamos de a agenda jauressiana. Como vimos, tal agenda caracterizou-se pela mudana de eixo produzida pela empreitada historiogrfica de Jean Jaurs, a qual, num momento de consolidao da repblica, as questes polticas cederam passo aos problemas de natureza social e econmica. Seguindo a tendncia da agenda jauressiana, esses historiadores centraram sua anlise no programa social revolucionrio. Quanto a Robespierre, os trabalhos desses historiadores buscaram esclarecer o papel do robespierrismo na determinao desse programa. Assim, o projeto democrtico robespierrista foi problematizado a partir de idias tais como o robespierrismo enquanto precursor do socialismo (Mathiez) ou enquanto formulador da democracia social (Lefebvre). A princpio poderia parecer estranho que historiadores voltados para os problemas da carestia (Mathiez), da histria camponesa (Lefebvre) e dos movimentos populares urbanos (Soboul) pudessem aportar algum elemento significativo para uma discusso sobre o pensamento poltico robespierrista. No caso de Mathiez, isso fcil ser explicado. Apesar de seu livro La vie chre et le mouvement social sous la Terreur409, ser uma obra de grande importncia (e que segue mais de perto a obra de Jaurs), seu trabalho, ou melhor, sua vida, foi dedicada a oferecer todas as provas que pudessem absolver Robespierre perante a histria. Contudo, no momento em que seus trabalhos escaparam da hagiografia, eles deram uma contribuio significativa para o entendimento do papel de Robespierre durante a Revoluo. Muitas de suas idias acabaram sendo aceitas ou confirmadas por vrios historiadores posteriores. Sua anlise do papel de Robespierre na acusao de Danton foi, por exemplo,

409

MATHIEZ, Albert. La vie chre et le mouvement social sous la Terreur. Paris, Payot, 1927.

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seguida por uma srie de historiadores410, assim como tambm sua cabal comprovao da venalidade deste ltimo. Mathiez, o doutrinrio da repblica pura e dura411, estava sempre pronto a entender e encontrar uma explicao plausvel para a conduta de Robespierre ao longo da Revoluo, s vezes de forma simplista. Mas sua apreciao da Revoluo com base nos acontecimentos que ele prprio viveu em sua poca tiveram um grande importncia, em particular, sua experincia com o governo de guerra entre 1914-1918, possibilitou entender melhor o governo de salvao pblica em 1793 e os limites que a liberdade pode sofrer num tal contexto. Em contrapartida, em relao ao pensamento poltico de Robespierre Mathiez avanou explicaes pouco satisfatrias. Desse modo, Robespierre foi consagrado por seu percurso de democrata, e o momento crucial desse percurso foi sua defesa do voto universal. Todavia, segundo Mathiez, Robespierre recusou-se por diversas vezes, nos fatos e nas idias, a admitir que os problemas polticos pudessem ser diretamente decididos pelo povo. A razo para isso foi que Robespierre sabia que sua [do povo] capacidade poltica era ainda muito restrita para que se pudesse estabelecer de um s golpe sem perigo o governo direto, o qual talvez fosse o fim da evoluo lgica da democracia.412 Mais insatisfatrio ainda foi sua tentativa de ver em Robespierre um proto-socialista. Como afirma Cattaneo413, Mathiez via em Robespierre um precursor do socialismo. Desse modo, ele tentou construir uma viso do robespierrismo que o colocava nas antpodas das idias da burguesia girondina. Quando, no discurso de 2 de dezembro de 1792, a propsito do problema dos problemas de abastecimento, Robespierre afirmou que eles [os comerciantes] no colocavam nenhuma diferena entre o comrcio do trigo e aquele do ndigo414, Mathiez se apressou em afirmar que o cidado de Arras atacava o dolo do dia, o dogma da liberdade econmica415, vendo nisso as razes de uma concepo socialista da economia. Com o mesmo intuito chega a recorrer s idias de Babeuf. Segundo Mathiez, o jornalista do Tribuno do Povo classificou Robespierre de agrairien, partidrio da lei agrria.
410 411

Cf. David Jordan citado mais acima, p. 14. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx Expresso de Alice Grard. Cf. Opus cit. P. 87. 412 MATHIEZ, Albert. Etudes sur Robespierre, 1758-1794. Paris, Editions Sociales, 1988. p.27. 413 CATTANEO, Mario A. Libert e virt nel pensiero poltico di Robespierre. Milo-Varese, Instituto Editoriale Cisalpino, 1968. P. 165. 414 MATHIEZ, Albert. La politique sociale de Robespierre. Paris, Annales Rvolutionnaires, p. 551-563, 1913. P. 561-563. 415 MATHIEZ, Albert. Autour de Robespierre. Paris, Payot, 1926. P. 245

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Isso queria dizer, dizia Mathiez, comunista416. Essa idia seria posteriormente defendida por Mathiez em sua sntese sobre a Revoluo. Nela, ele afirmou que quando adveio o 9 de termidor, os robespierristas j tinha se engajado profundamente na via que conduz ao comunismo417. Contudo, Mathiez, herdeiro de Jaurs, reforava freqentemente a idia desse ltimo de que a maior contribuio do robespierrismo foi sua defesa da democracia. Segundo ele, robespierrismo e democracia foram uma e nica coisa no esprito de nossos pais at depois de 1848418. Quanto s idias religiosas de Robespierre, Mathiez chegou ao ponto central da concepo robespierrista da religiosidade. Nesse ponto, retomava as idias de Louis Blanc e superava as frgeis argumentaes de seu rival, Aulard. Assim, o culto do Ser Supremo foi avaliado por meio da idia rousseausta do culto cvico, imprescindvel repblica. Robespierre foi considerado assim // o precursor consciente e lcido de uma tica cvica, sem a qual, sabe-se desde Montesquieu, as repblicas no podem sobreviver, valores que conviria hoje ainda exaltar419.

416 417

Idem, p. 244. Ver supra, p. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx MATHIEZ, Albert. Le Directoire. Paris, Colin, 1934. P. 161. 418 MATHIEZ, Albert. Etudes sur Robespierre, 1758-1794. Paris, ditions Sociales, 1988. P. 231. 419 VOVELLE, Michel. Robespierre dans lhistoriographie rpublicaine. In: EHRARD, Jean. Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 182-3.

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II. Georges Lefebvre: robespierrismo e passadismo.

Com a historiografia do mais clebre historiador da Revoluo, Georges Lefebvre, chegamos ao centro dos questionamentos que conduziram s investigaes desse trabalho. Isto porque as anlises deste historiador acerca dos robespierristas e suas idias levantaram uma srie de questes que este trabalho retoma em sua Segunda Parte, em particular sobre o iderio democrtico robespierrista. De origem popular, autor de verdadeiras obras primas histricas, Lefebvre deu uma contribuio extraordinria para os estudos do campesinato em sua tese Les paysans du nord, assim como tambm contribuiu para definir a natureza do programa poltico e social dos diversos grupos que se envolveram nos acontecimentos de 1789, ao fazer sua clebre diviso da Revoluo em quatro revolues: aristocrtica, burguesa, popular e camponesa. Quanto a avaliao da trajetria revolucionria de Robespierre este historiador chegou a concluso de que os Robespierre e seus companheiros eram defensores de um ideal revolucionrio passadista. Isto porque concebiam uma democracia de pequenos proprietrios incompatvel com a sociedade capitalista que a Revoluo anunciava. Ao mesmo tempo, este historiador acabou por situ-los no interior da nica vertente revolucionria porteuse davenir, o liberalismo, mesmo que algumas de suas atitudes os fizesse parecer um tanto relutantes em se encaixar nessa vertente. Assim, Robespierre ns foi apresentado em alguns trabalhos do autor do Grande medo como sendo, acima de tudo, o representante da democracia poltica420. Desde o comeo de sua carreira essa trajetria se afirmaria. Isso podia ser corroborado pela luta conduzida por Robespierre nos primeiros anos da Revoluo contra o censo eleitoral e em defesa da monarquia. Essa defesa de um regime misto, combinao de monarquia e democracia, a qual foi sintetizada pela expresso cunhada pelo prprio Robespierre monarquia popular421, levou Lefebvre a afirmar que Robespierre defendia uma monarquia com sufrgio universal422.

420 421

LEFEBVRE, Georges. tudes sur la Rvolution franaise. Paris, PUF, 1954. P. 96. Sur les troubles des campagnes (22 de fevereiro de 1790). OCR, t. VI, P. 265. 422 LEFEBVRE, Georges. Opus cit. P. 96.

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Desse modo, a natureza da concepo poltica de Robespierre, nascida j na primeira fase da carreira revolucionria do Incorruptvel, foi voltada mais para a noo de democracia que de repblica. Portanto, Robespierre no se preocupava muito com a forma de regime de governo, pois concebia a idia de uma monarquia com sufrgio universal. Da, conforme Lefebvre, a negao do valor por Robespierre dos regimes republicanos de Veneza, da Sua, das Provncias Unidas e dos Estados Unidos, todos considerados oligarquias423. Quanto s idias sociais e econmicas de Robespierre, as anlises de Lefebvre pareciam ver nelas a contrapartida lgica de um pensamento poltico democrtico. Segundo ele, o Incorruptvel sustentava // que nem o nascimento nem o dinheiro poderia ser a medida dos talentos, da dignidade e dos direitos do cidado: ora, tal o princpio fundamental da democracia.424 Com o avanar do processo revolucionrio, quando se afirmar com mais clareza a opo de Robespierre tambm pelo regime republicano, suas idias scio-econmicas adquiririam ainda mais coerncia com suas opes polticas. isso que Lefebvre ressaltava ao afirmar que
Robespierre, como Saint-Just, cujas Institutions rpublicaines se mostram particularmente explcitas, estimava, na esteira de Rousseau, que a liberdade e a igualdade civil e poltica se apagavam para a maioria dos cidados na medida em que se exagera a desigualdade social.425

Nesse sentido, a funo da repblica era buscar // de uma parte, limitar as fortunas e multiplicar os pequenos proprietrios, de outra parte, dar a todos os meios de se elevar na sociedade graas instruo, e aos deserdados uma certa segurana por uma assistncia nacional apropriada.426 Em sua obra Questes agrrias no tempo do Terror, Lefebvre j tinha analisado esse ponto central do pensamento robespierrista. Comentando as leis do ventoso e as idias de Saint-Just, ele afirmou que
// um regime poltico no vivel se ele tem contra ele aqueles que tm em mo a autoridade social pela possesso dos capitais e a direo da economia nacional. Seria

423 424

Idem, p. 96. Idem, p. 95. 425 LEFEVBRE, Georges. La Rvolution franaise. 7a ed. Paris, PUF, 1989. P. 408. Edio brasileira, p. 356. 426 Idem, ibidem. Edio brasileira, p. 356.

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necessrio que a repblica do ano II despojasse a aristocracia do Antigo Regime e a burguesia censitria, ou que ela acabasse.427

Outra considerao de Lefebvre de que Robespierre almejava a construo de uma democracia social integral, aproximando-se assim do iderio sans-culotte428, o que fez dele, alm do mais famoso dos apstolos da democracia, tambm o // da Repblica, tal como ns a concebemos, a qual no somente uma forma de governo, mas um regime cujo objeto realizar a igualdade e que no teria sentido se no fosse democrtico e social.429 Georges Lefebvre ressaltava, assim, as referncias clssicas do republicanismo de Robespierre. Ele constatava que o poltico para os robespierristas englobava tambm as noes scio-econmicas430, como tinha sido a caracterstica e continuaria a s-lo do republicanismo. Por via de conseqncia, o robespierrismo no admitia que a riqueza fosse o parmetro para determinar os direitos do cidado, supondo, como conseqncia dessa viso, a democracia como um regime de igualdade social. Assim, o ideal dos robespierristas era de uma democracia de pequenos proprietrios autnomos, camponeses e artesos independentes que trabalhassem e comercializassem livremente. Nesse contexto, o Estado atuaria por meio do imposto progressivo e de leis sucessrias, impedindo a constituio de fortunas excessivas. Conforme Lefebvre, cabia tambm ao Estado favorecer, por todos os meios, o desenvolvimento da pequena propriedade, alm da iniciativa individual, mantendo a liberdade de trabalho e se resignando com uma certa desigualdade social. Esse tipo de pensamento podia ser encontrado entre democratas intervencionistas e socialistas utpicos431. Apesar de ter dado grande relevo a esse aspecto do republicanismo robespierrista, Georges Lefebvre no fez disso a porta de entrada de um projeto poltico portador de futuro, projeto esse que idealizou e levou a execuo, mesmo parcialmente, medidas sociais que antecipariam, de certa forma, a social-democracia. Nesse sentido, este historiador parecia no levar em conta a sua prpria considerao de que a poltica preconizada pelos robespierristas visava dar aos deserdados uma certa segurana por uma assistncia nacional apropriada e o
427

LEFEVBRE, Georges. Questions agraires au temps de la Terreur. Paris, ditions du C.T.H.S., 1954. P. 6364. 428 LEFEBVRE, Georges. tudes sur la Rvolution franaise. Paris, PUF, 1954. P. 97. 429 Idem, p. 96 430 LEFEBVRE, Georges. tudes sur la Rvolution franaise. Paris, PUF, 1954. P. 95. 431431 LEFEVBRE, Georges. Questions agraires au temps de la Terreur. Paris, ditions du C.T.H.S., 1989. P. 172-3.

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quanto essa poltica dos direitos sociais possua ento, como depois, um grande alcance renovador. Ao contrrio, os robespierristas, assim como a sans-culotterie e certas tendncias do campesinato, acabaram sendo considerados como defensores de solues polticas saudosistas por conceber um projeto econmico-social que se ancorava em condies de realizao existentes no passado, mas j em vias de desaparecer frente dinmica capitalista do sculo XVIII. Especificamente quanto aos robespierristas, seu ideal seria // de uma democracia social de pequenos produtores independentes, camponeses e artesos, sem que se dessem conta que, contraditria com a liberdade concorrencial da economia, a qual assegurava o futuro concentrao capitalista, esse ideal no podia se realizar.432 Assim, alm de considerar os robespierristas como defensores de uma repblica democrtica e igualitria, os robespierristas emergem como passadistas em outras passagens dos textos de Lefebvre, o que no era contraditrio em seu esquema interpretativo. Contudo, nesses textos tambm emerge um Robespierre adepto da economia liberal. Lefebvre afirmava que os montanheses, a incluso os robespierristas, no tinham uma compreenso profunda dos problemas agrrios, pois no eram camponeses e pertenciam burguesia que tinha lido os economistas. A combinao desses fatores fez com que os montanheses desconhecessem os problemas dos camponeses menos favorecidos e fossem adeptos da economia liberal 433, assim como tambm no aceitaram de bom grado a economia dirigida. Na verdade, nesse ponto reside uma certa incongruncia. Como ser visto, nossa argumentao vai de encontro justamente a essa tentativa de incluir os robespierristas entre aqueles que foram relutantes defensores do dirigismo econmico, isto , entre aqueles que se inseriam na tradio liberal, justamente aqueles que como o prprio Lefebvre afirmava serem os defensores de uma democracia de pequenos proprietrios.

432

LEFEVBRE, Georges. La Rvolution franaise. 7a ed. Paris, PUF, 1989. P. 408-409. Edio brasileira, p. 356. 433 LEFEVBRE, Georges. Questions agraires au temps de la Terreur. Paris, ditions du C.T.H.S., 1989. P. 172.

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III. Albert Soboul: histria popular e robespierrismo Considerado pioneiro na tentativa de escrever uma histria vinda de baixo, o seu monumental Les sans-culottes parisiens en lan II, Albert Soboul deu contribuies definitivas para o entendimento da histria do movimento popular durante a Revoluo, assim como tambm foi decisivo para que a historiografia universitria da Revoluo se identificasse a uma concepo geral do processo revolucionrio de 1789, para a qual o conceito de revoluo burguesa era uma de suas chaves principais. , portanto, na relao, de um lado, com o desenvolvimento da revoluo burguesa, do outro, com o movimento popular, que emerge o papel de Robespierre nos trabalhos de Soboul. Soboul segue, em parte, as hipteses levantadas pelo seu mestre, Georges Lefebvre, para caracterizar esse papel. Quanto definio deste papel, Soboul afirmava que o princpio fundamental da democracia poltica e social lhe era de alguma maneira inata434. Porm, para Soboul, esse princpio era direcionado pelos interesses da revoluo burguesa435. Dessa maneira, Robespierre teria se oposto ao sans-culottismo porque, ao fim e ao cabo, ele apoiava a democracia liberal tal como a concebia a burguesia436. Assim, o que estava em jogo durante o processo revolucionrio era a luta entre duas concepes polticas: a concepo burguesa e a concepo sans-culotte. Tal luta tinha produzido um nico contraste poltico possvel, entre a democracia direta e a democracia liberal. Isso era possvel de ser constatado no contexto da formao do governo revolucionrio e da definio do poder do Comit de Salvao Pblica. Foi nesse contexto que o papel histrico de Robespierre foi compreendido e seria impossvel entend-lo sem levar em considerao a dinmica capitalista que estava por trs da Revoluo. Desse modo, durante a formao do governo revolucionrio tal papel teve a

434

SOBOUL, Albert. Robespierre ou les contradictions du jacobinisme . AHRF, a. 50, n 231, p. 1-19, 1978. P. Idem, p. 6. Idem, p. 7.

5.
435 436

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funo de tranqilizar as classes mdias e os proprietrios, rejeitando as medidas de exceo e de terror que reclamavam os extremistas.437 Tem claramente esse objetivo as aes contra a oposio de esquerda, hbertistas e enrags (enraivecidos), efetivadas durante a tomada de poder pelos montanheses em junho de 1793 e a formao do governo revolucionrio nos meses subseqentes, quando apareceram as diferenas que separavam internamente o bloco sans-culotte/jacobino. Tais diferenas se manifestaram sobretudo na luta entre os montanheses e os lderes da sans-culotterie, enraivecidos e hbertistas, descritos na obra de Soboul como sendo mais prximos das aspiraes do movimento popular. Esta luta teve por cenrio o estado de guerra e a criao do governo revolucionrio. Apesar de Robespierre manejar politicamente as duas tendncias contraditrias da burguesia e da sans-culotterie, sua posio inicial subordinava // tudo s exigncias da defesa nacional, o Comit no pretendia ceder nem s reivindicaes populares em detrimento da unidade revolucionria, nem s reclamaes moderadas s expensas da economia dirigida necessria para sustentar o esforo de guerra //.438 Contudo, Robespierre se inclinava tendncia de fundo desse processo, a qual faria prevalecer o projeto burgus sobre o dos setores populares, tendncia essa que o governo revolucionrio, em ltima instncia, veio a garantir. Conforme Soboul, a // oposio se manifestava entretanto rapidamente entre governo revolucionrio e sans-culotterie parisiense. Se ela nasceu das conseqncias da guerra, ela no traduzia menos as tendncias irredutveis das duas categorias sociais diferentes. Detalhando esse processo, Soboul demonstrou que
no plano poltico, a guerra exigia um governo autoritrio, e os sans-culottes tinham bem conscincia disso pois eles contriburam para sua criao. Mas, dessa maneira, a guerra e suas exigncias entravam em contradio com a democracia que montanheses e sansculottes invocavam. Alm disso, a democracia, tal como os sans-culottes a praticavam, tendia espontaneamente para o governo direto cuja fraqueza incompatvel com a conduta da guerra. Os sans-culottes tinham reclamado um governo forte que esmagaria a aristocracia; eles no tinham percebido que para vencer o governo seria obrigado a forlos a obedecer e enquadrar seus passos.439

437

SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793-9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P. 38. 438 Idem, p. 404. 439 Idem, p. 1025-1026.

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Isto pode ser melhor entendido no confronto dos montanheses com a liderana sansculotte, na figura dos enraivecidos Leclerc, Varlet e Roux. Conforme Soboul, Robespierre se queixava dos homens novos440, isto , ele atacava Roux e Leclerc, os enraivecidos, quando estes ltimos tentaram uma poltica extremista, incompatvel com o governo revolucionrio. As medidas de salvao pblica defendidas por Robespierre foram atacadas por Leclerc. Segundo este ltimo, o Comit de Salvao Pblica estava se transformando num Capeto com nove cabeas e num nonunvirato441. O cerne dessa luta estava na confrontao entre duas modalidades de democracia. Uma que Leclerc defendia, assim como tambm os sans-culottes, e que // era hostil ao regime representativo e pendia para um sistema de democracia direta: um povo representado no livre //442. Essa tambm era a mesma modalidade de democracia que Varlet // se fazia o intrprete: o povo pode se reunir onde e quando ele quiser, sua soberania no pode se limitar443. A outra era aquela representada pelo governo revolucionrio. Com efeito, questo: como conciliar as exigncias da soberania popular, tal como a concebia os militantes secionrios, e as necessidades do governo revolucionrio totalmente absorvido pela poltica de defesa nacional, Soboul respondia que o governo de exceo do Comit de Salvao Pblica estava subsumido revoluo burguesa e sua concepo poltica se acomodava, portanto, democracia liberal444. Que esta ltima tenha tido ardorosos defensores durante a Revoluo era patente. L estavam os girondinos e muitos montanheses para provar isso. Porm, o problema era fazer do robespierrismo um dos defensores da democracia liberal. O prprio Soboul manifestava a dificuldade de entender o programa social e poltico dos grupos de esquerda e do robespierrismo. Como ele observa,
// eles se posicionam contra a concentrao dos meios de produo; mas eles mesmos so proprietrios. Quando os mais avanados reclamavam, no ano II, o mximo das fortunas, a contradio entre sua posio social e essa reivindicao lhes escapava. As

440 441

Idem, p. 140. Idem, ibidem. 442 Idem, p. 145. 443 Idem, p. 187. No dia 17 de setembro de 1793, Varlet props uma petio para revogar o decreto de 9 de setembro do mesmo ano que diminua o nmero de assemblias por seo a duas por semana. 444 SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793-9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P. 515.

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reivindicaes desses artesos se sublimaram em queixas apaixonadas, em els de revolta, sem jamais se precisar em um programa coerente; o mesmo acontecia com os homens e os grupos polticos que participaram de sua mentalidade: assim foram Jacques Roux, Hbert, e tambm Robespierre e Saint-Just.445

O fato de os trabalhadores-proprietrios no verem uma contradio em reivindicar o limite para a riqueza deriva de que para eles, talvez, no houvesse contradio. Primeiro, podemos especular sobre a repercusso das idias rousseaustas sobre a limitao da riqueza no meio popular; segundo, o prprio movimento econmico pr-capitalista, sua economia moral446, tinha uma compreenso poltica que visava limitar a acumulao e a concentrao de capital; terceiro, seu programa era coerente, nem mesmo podemos dizer que era utpico para isso basta lembrarmos a luta dos movimentos sociais ao longo dos sculos XIX e XX por formas de melhoria das condies vida, tais como limitao da jornada de trabalho, frias, assistncia sade, sem falar na progressividade do imposto, as quais foram, mesmo que indiretamente, um limite riqueza e tiveram sua raiz na poltica social revolucionria. Quanto ao programa social de Robespierre, Soboul identificava sua importante contribuio. Aqui ele retomava as anlises de Georges Lefebvre, que afirmava que o ideal social dos robespierristas era uma sociedade de pequenos proprietrios independentes. Da a preocupao de Robespierre em colocar um limite ao direito de propriedade em sua proposta de Declarao de Direitos de 1793, na qual ela passava da condio de um direito natural imprescritvel condio de um direito social submetido lei447. Contudo, Soboul afirmava que Robespierre era adepto da economia liberal 448. Emerge nesse ponto a contradio no seio do robespierrismo: defensor, ao mesmo tempo, de uma repblica igualitria e do liberalismo econmico. Essa contradio, Soboul reconhecia como sendo do sculo XVIII, da qual Robespierre e seus partidrios no conseguiram escapar. No entanto, para Soboul, ao fim e ao cabo, Robespierre se rende s concepes da ideologia burguesa. Falando dos sans-culottes, ele afirmava que suas prticas populares no os

445 446

Idem, p. 453. Ver: THOMPSON, Edward Palmer. Lconomie morale de la foule dans lAnglaterre du XVIIIe sicle . In: THOMPSON, Edward Palmer et alli. La guerre du bl au XVIIIe sicle. Paris, Les ditions de la Passion, 1988. 447 SOBOUL, Albert. Robespierre ou les contradictions du jacobinisme . AHRF, a. 50, n 231, p. 1-19, 1978. P. 10. 448 Idem, p. 11

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conduziam em direo a democracia liberal tal como a concebia a burg uesia e na qual se apoiava finalmente Robespierre.449 Isso tambm podia ser constatado na prpria linguagem oficial do governo revolucionrio. Segundo Soboul, mesmo a expresso de soberania popular, que se tinha sido feito um tal uso em 1792 e 1793, desaparecia no ano II do vocabulrio poltico governamental / /.450 Na verdade, talvez isso fosse o mesmo caso de uma inclinao dos princpios frente s circunstncias graves da guerra, que Soboul mesmo j tinha constatado em relao sansculotterie quando afirmou que qualquer que tenha sido a convico popular em matria de soberania, no se pode entretanto esconder que os princpios mais solenemente proclamados se inclinavam s circunstncias.451 Apesar de Robespierre subordinar o direito propriedade ao direito existncia452, Soboul afirmava que diante dos problemas da regulamentao e da taxao, Robespierre manteve um significativo silncio. Conforme nosso autor,
// havia nele muita profundidade poltica para que, apesar de seu amor pelo povo, ele subestimasse a balana de foras sociais e negligenciasse os interesses da burguesia. Por trs das aparncias que cercavam as declaraes unnimes, a oposio dos interesses 453 permanecia irredutvel.

Soboul perguntava: mas entre as exigncias contraditrias, onde encontrar exatamente o ponto de equilbrio? Segundo ele, Robespierre no via outro recurso que no fosse a virtude. Isso podia ser visto em seu relatrio sobre Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention Nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique de 17 de pluvioso do ano II (5 de fevereiro de 1794). Soboul atribuiu a outra caracterstica da biografia poltica de Robespierre esse recurso virtude. O fato que ele era /.../ incapaz de uma anlise precisa das realidades econmicas e sociais de seu tempo.454 Desse modo, os robespierristas acabaram por conceber um regime que repousava sobre uma concepo espiritualista das relaes sociais e da democracia; as

449 450

Idem, p. 7. SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793-9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P. 515. 451 Idem, p. 520. 452 Idem, p. 469. 453 Idem, p. 471. 454 SOBOUL, Albert. A Revoluo Francesa. 3a ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981. P. 361.

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conseqncias disso lhe foram fatais.455 Essa concepo espiritualista os dotava de uma viso poltica que no permitia que eles subestimassem a balana das foras sociais e negligenciassem o papel preponderante da burguesia na luta contra a aristocracia e o Antigo Regime456. Assim, Robespierre cumpria um papel inevitvel:
havia sobre esse ponto oposio fundamental entre burguesia mesma jacobina e sansculotterie parisiense. Chefe de uma Revoluo com sustentao popular, mas com direo burguesa, estava excludo que Robespierre se pronunciasse por uma prtica popular da democracia poltica.457

Ou seja, havia um limite de classe o qual Robespierre no conseguia ultrapassar. Porm, como afirma um antigo discpulo de Soboul, Robespierre
// valorizava no direito natural o direito existncia como condio de tod as as construes polticas e de direito positivo. Eis a originalidade. Ora, essa escolha era incompatvel com um compromisso qualquer, eu diria um compromisso burgus. //. Tornou-se uma questo de princpio.

Mazauric foi mais claro ainda ao dizer que Albert Soboul falava outrora de limite de classe; a expresso me parece hoje uma frmula fora de moda: o pensamento de Robespierre era um pensamento em marcha.458

455 456

Idem, p. 362. Idem, p. 361. 457 SOBOUL, Albert. Robespierre ou les contradictions du jacobinisme . AHRF, a. 50, n 231, p. 1-19, 1978. P. 10. 458 MAZAURIC, Claude. Les choix conomiques et sociaux: prliminaires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Robespierre: de la nation artsienne la Rpublique et aux nations (Actes du colloque dArras) . Lille, Imprimerie de lUniversit Charles de Gaulle -Lille III, 1994. P.232-233.

116 Captulo VII Dois contrapontos ao robespierrismo da historiografia universitria: Pierre Gaxotte e Daniel Gurin
I. Pierre Gaxotte e a persistncia da viso historiogrfica monarquista no sculo XX

O historiador Pierre Gaxotte (1895-1982) foi, ao longo de boa parte do sculo XX, o estandarte historiogrfico dos que se opuseram historiografia revolucionria da Sorbonne. De tradio monarquista e nacionalista,Gaxotte foi um historiador de extrema direita, integrante da Action franaise. No entanto, ele no foi colaboracionista459. Assim, no de se estranhar que ele fizesse um percurso diferente na explicao e apresentao do processo revolucionrio. Para ele, a Revoluo emergiu quando a Frana vivia um contexto histrico positivo. Gaxotte dava a entender, assim, que a Revoluo foi algo dispensvel. Um quadro idlico dos reis absolutistas franceses e do sculo XVIII como um sculo de prosperidade era o que nos apresentou esse autor como introduo a sua obra. Como que retomando Taine, Gaxotte fez suceder a esse quadro introdutrio a anarquia, justamente o ttulo do captulo que d incio ao tratamento dos acontecimentos de 1788 em diante. Ecoavam na obra de Gaxotte as avaliaes tpicas da historiografia do sculo XIX, por exemplo, quando tratava do problema da propriedade. Assim, Robespierre e seus companheiros so acusados de comunistas ou de terem se submetido s idias comunistas de outros grupos revolucionrios (enrags). Da mesma forma, se no inverno de 1792, Robespierre ou Marat ainda no eram comunistas, era s por ttica poltica. Gaxotte, contra grande parte da historiografia da Revoluo, fez afirmaes extremamente controversas para provar sua anlise sobre o programa social robespierrista. Ele chegou a qualificar o desejo de vender os bens nacionais como uma forma explcita de atacar a propriedade. Como as idias pioneiras, mesmo que muito vagas, de comunizao partiram

459

Cf. BETOURN, Olivier e HARDIG, Aglaia I. Penser lhistoire de la Rvolution. Paris, ditions la Dcouverte, 1989. P. 153-4.

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dos grupos mais radicais como, por exemplo, os enrags, o movimento da anlise de Gaxotte faz dos robespierristas um grupo prximo das idias desses grupos460. Outra apreciao equivocada desse historiador diz respeito justamente aos enrags. Em seu desejo de amalgamar os grupos que defenderam posies mais extremadas com os montanheses, ele caracterizou os enrags como a extrema-esquerda desses ltimos. Na verdade, eles no pertenceram nem formalmente, nem ideologicamente aos montanheses. Isso porque esses ltimos formavam um grupo parlamentar e nenhum dos enraivecidos foi deputado Conveno. Quanto ideologia, as idias radicais de Roux, Leclerc e Varlet no tinham nenhum eco para a grande maioria dos montanheses. Pelo contrrio, eles os combateram e os levaram priso ou ao ostracismo. Apesar de uma clara oposio ao robespierrismo, Gaxotte fez uma anlise bastante objetiva da vida pr-revolucionria de Robespierre. Para ele, o Incorruptvel no era nessa poca nem o monstro em estado embrionrio da legenda nem o messias marcado com o sinal divino.461 Porm, a complacncia com o Incorruptvel terminava a. Gaxotte, seguindo Michelet, fez de Robespierre um homem de clube. No caso, o clube jacobino. Incapaz de ter uma vida real, ele era adequado a essa pequena reproduo do mundo real que era o clube jacobino.462 Contudo, a apreciao de Gaxotte comete erros elementares. No af de condenar a Revoluo, ele no percebeu que Robespierre era capaz, para defender o projeto revolucionrio jacobino, de se livrar de seus inimigos, mesmo gauche. Desse modo, no vale para Robespierre a idia de Gaxotte de que ele // ele compreendeu, sentiu, adivinhou que a lei dos movimentos revolucionrios era: nenhum inimigo esquerda.463 Ele tambm no deixava de ter, como Michelet, seus rasgos contraditrios. Quase conclua sobre a carreira poltica de Robespierre afirmando sua moderao e seu esprito de conciliao: // sem dvida sentia a necessidade de uma pausa que permitiria Repblica de se assentar, de se dar instituies durveis, de organizar a instruo pblica, sem dvida mesmo de negociar a paz.464

460 461

GAXOTTE, Pierre. La Rvolution franaise. Bruxelles, ditions Complexe, 1988. P. 23. Idem, p. 326. 462 Idem, p. 327. 463 Idem, p. 288. 464 Idem, p. 350.

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II. Daniel Gurin: uma oposio historiogrfica de esquerda

Com Daniel Gurin nos encontramos com a idia de que a Revoluo Francesa foi, no interior de uma revoluo burguesa, uma luta de classes, cujos protagonistas foram os bras nus e a burguesia. Em suas palavras, // na Revoluo Francesa, ns o mostraremos, combinam-se uma revoluo burguesa e um embrio de revoluo antiburguesa, que ns chamamos revoluo proletria, apesar de que este ltimo termo, aplicado aos trabalhos de 1793, seja um pouco anacrnico //.465 Desse modo, a Revoluo do ano II teria sido uma revoluo proletria abortada pelos robespierristas. Essa Revoluo, o momento em que os bras nus entraram em cena, foi controlada e por fim liquidada justamente por meio da ao da burguesia revolucionria capitaneada por Robespierre:
Para ter sucesso na operao que iria provocar a interrupo brusca depois o recuo da Revoluo, seria necessrio para a burguesia revolucionria um slido ponto de apoio na opinio. O movimento das massas desencadeara-se com um vigor extremo. Ao enfrent-lo, arriscava-se a ser levado como uma palha. Para avanar contra a corrente, seria preciso homens tendo os ps solidamente mergulhados nas camadas da torrente, homens conhecidos do povo e conhecendo o povo.466

Robespierre era o homem certo para esse papel porque Robespierre de todos os personagens da Revoluo, era o mais popular. Ele no tinha sido ainda desmascarado. Os bras nus ainda no o tinham pegado em flagrante delito de moderantismo.467 Com Gurin retomamos um tipo de avaliao do robespierrismo de uma longa trajetria dentro da historiografia de esquerda, ainda que minoritria, de considerar o cidado de Arras o responsvel pelo fracasso do movimento popular. Desse modo, Gurin fez parte de

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GURIN, Daniel. La lutte de classes sous la Premire Rpublique: Bourgeois et Bras Nus (1793 -1797). Paris, Gallimard, 1946. Vol. I, p. 1-2. Outro era o ponto-de-vista de Soboul. Segundo ele, nem pelo pensamento, nem pela ao, os trabalhadores podia m constituir sob a Revoluo um elemento independente. SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793-9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P453. 466 Idem, t. I, p. 372. 467 GURIN, Daniel. La lutte de classes sous la Premire Rpublique: Bourgeois et Bras Nus (1793 -1797). Paris, Gallimard, 1946. Vol. I, p. 372.

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uma tendncia historiogrfica que acusou Robespierre de pecar por falta de radicalismo, no por excesso, como afirmou Maurice Agulhon468. Boa parte das anlises de Gurin concentrou-se na tentativa de demonstrar a derrota de Robespierre frente burguesia revolucionria. Como ele explicou a derrota de Robespierre no 9 Termidor? Para responder essa pergunta, Gurin colocou em curso uma srie de questes no menos polmicas do que sua viso de uma revoluo proletria no ano II. Entre elas, a questo religiosa e o problema da guerra. Quanto primeira, Gurin afirmava a importncia do papel da religio como protetora da ordem social. Da que a descristianizao de 1793 foi barrada, pela frente DantonRobespierre, como forma de impedir a destruio de uma das bases sobre a qual repousava a dominao da burguesia, a religio. No limitando seu poder de polemizar, Gurin tambm afirmava que, a princpio, os sans-culottes foram atrados para a descristianizao por setores da burguesia afim de desvi-los da luta sobre o plano econmico e social469. Inclusive ele ressaltava o papel do procurador da Comuna de Paris, Pierre Gaspard Chaumette, nesse processo de desviar a ateno dos sans-culottes de seus problemas sociais.470 Na verdade, o papel de Robespierre nesse processo foi mais uma vez motivado por sua tentativa de preservar a unio da frente revolucionria. Sua preocupao maior parece ter sido no provocar irritaes no sentimento religioso da massa popular, majoritariamente crente, do que impedir que as bases de dominao da burguesia fossem perturbadas pela descristianizao. Se Robespierre teve esse papel de limitar o furor da descristianizao, garantindo a existncia de formas tradicionais de crena religiosa, cometeu um erro ao achar que poderia erigir um culto cvico. A comeam as razes que explicavam, segundo Gurin, sua derrota.

468 469

Ver acima. GURIN, Daniel. Opus cit. T. I, p. 426. Segundo Soboul, no se poderia, a respeito de tudo isso, falar de presso popular; o povo esteve ausente dessas jornadas decisivas de 16 e 17 de brumrio do ano II; a descristianizao lhes foi sugerida por homens que lhe eram estranhos. Cf. SOBOUL, Albert. Les sans-culottes parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793-9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P. 291. Grifado no original. 470 Soboul criticou essa posio de Gurin com base no argumento de que o movimento de descristianizao foi fruto de indivduos de fora da sans-culotterie, como Cloots e Pereira, e que s uma minoria do movimento popular tinha verdadeiros sentimentos anti-religiosos, enquanto a grande maioria continuava apegada tradio religiosa. O prprio papel de Chaumette no processo descristianizador foi contestado por Soboul. Segundo ele, Chaumette j tinha sado da regio da Nivre quando Fouch nela desencadeou esse movimento. Em Paris, Chaumette s tomou a frente do movimento quando ele j tinha comeado. SOBOUL, Albert. Les sans-culottes

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Com o culto do Ser Supremo, Robespierre alarmou a burguesia revolucionria e ela // no seguiu Robespierre de boa vontade nessa tentativa de restaurao religiosa, seja porque ela temia um retorno ofensivo da antiga Igreja seja porque ela temia que ele explorasse o novo culto com fins pessoais.471 Desse modo, a burguesia teria se separado de Robespierre porque o culto do Ser Supremo constituiu um encorajamento excessivo ao catolicismo, o que serviria s ambies de Robespierre, mas, sobretudo, porque era uma etapa na direo da restaurao da Igreja e ela temia ter de restituir um dia aos homens noirs as imensas riquezas que ela lhes havia despojados472. Georges Lefebvre criticou a afirmao de Gurin que Robespierre instituiu o culto do Ser Supremo para salvar a propriedade, ao lembrar que afirmao no levava em considerao o desmo espiritualista de Robespierre e sua convico de que a democracia no era possvel sem a virtude.473 Outra razo importante para que a burguesia revolucionria se desfizesse de Robespierre foi porque ele queria fazer a paz. Conforme a tese de Gurin, Robespierre teria chegado ao poder por causa da guerra revolucionria. Adequado a esse tipo de guerra, ele se viu em maus lenis quando a guerra revolucionria se transformou em guerra de conquistas474. Interpretando o projeto poltico robespierrista, nosso autor afirmou que Maximilien imaginava que esse tipo de guerra colocaria no poder os grandes burgueses girondinos e os generais vitoriosos475. Vivendo esse drama, Robespierre passou a defender a paz, nica forma de garantir seu poder pessoal. Conforme Gurin, assim, na vspera de termidor, o conflito fundamental entre os robespierristas e a maioria dos Comits parecia ser a respeito da conduta da guerra.476 Assim tanto o culto do Ser Supremo como as diferenas em relao guerra acabaram levando a burguesia a se desfazer de Robespierre.

parisiens en lan II. Histoire politique et sociale des sections de Paris (2 de juin 1793 -9 thermidor an II). Paris, Impremerie Henri Potier, 1958. P. 287 e 291. 471 GURIN, Daniel. Opua cit. T. II, p. 226. 472 Idem, t. II, 227. 473 LEFEBVRE, Georges. Resenha de GURIN, Daniel. La lutte de classes sous la Premire Rpublique: Bourgeois et Bras Nus (1793-1797). AHRF, Socits des tudes Robespierristes, 1947 474 GURIN, Daniel. Opus cit. T. II, p. 232 e 241. 475 Idem, t. II, p. 233. 476 Idem, t. II, p. 259.

121 Captulo VIII A historiografia revisionista francesa

I. Franois Furet e o robespierrismo

Partindo de uma perspectiva interpretativa diferente da tradio historiogrfica universitria, o historiador Franois Furet construiu uma crtica dos seus cnones que, se em muitos aspectos no era inovadora477, teve ao menos o mrito de suscitar um grande debate sobre o processo revolucionrio de 1789 e de sua abordagem por aquela historiografia. Tal perspectiva foi construda com base em alguns pressupostos tericos, dentre os quais, a substituio da histria social pela histria poltica com forte vis intelectual possui uma funo primordial. Partindo dessa perspectiva, Furet defendeu a idia de que a
Revoluo enquanto acontecimento uma modalidade da ao histrica; uma dinmica que pode ser chamada de poltica, ideolgica ou cultural, para dizer que seu poder multiplicado de mobilizao dos homens e de ao sobre as coisas passa por um 478 superinvestimento de sentido .

Sua concepo de histria, portanto, fundamentou-se numa srie de noes, como o primado da poltica sobre o social, ou mesmo a excluso desse ltimo, o uso da noo de imaginrio poltico e, sobretudo, de cultura poltica, em relao qual Furet desenvolveria a verso mais pura479. Da a crtica ou o elogio a essa historiografia de que para ela tudo o que se pensou vale mais que o tudo o que se passou480.

477

Sua crtica ao conceito de revoluo burguesa, por exemplo, tinha por antecedente a crtica de Alfred Cobban. Pode-se encontrar essa avaliao em: SOL, Jacques. A Revoluo Francesa em questes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1988. 478 FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 37. Grifado no original. 479 Colin Lucas define assim a noo de cultura poltica: esta se definiu essencialmente como um conjunto de discursos, de prticas simblicas e de jogos institucionais pelos quais a natureza do projeto revolucionrio, sua legitimidade e seus valores cvicos vm a ser definido. // Nuances importantes existem entre os historiadores (sobretudo entre os anglfonos) que buscam tirar proveito dos elementos do tema cultura poltica em sua interpretao da Revoluo. Na verso mais pura dessa interpretao, o discurso domina tudo. Apenas h o poltico. A Revoluo inventa o furor ab novo. Seu projeto social em realidade um projeto poltico, do qual trata-se de explorar as conseqncias da tenso entre a soberania absoluta da nao indivisvel e a igualdade absoluta dos direitos dos indivduos. Para um Furet ou um Baker, a resoluo dessa tenso somente pode se fazer no discurso, somente pode se fazer discursivamente. Lembremos a observao de Hardig e Btourn a propsito de Furet, mas que tambm vale para Baker e o prprio Lucas: essa anlise mecanicista, que d s estruturas mentais o primado sobre o acontecimento da parte de um campeo da luta contra o determinismo marxista faz sorrir um pouco. Os textos citados encontram-se respectivamente em: LUCAS, Colin. Homme

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Com base nessas noes, algumas mudanas em relao ao enfoque clssico da Revoluo marcaram significativamente o trabalho de Franois Furet. Uma delas est relacionada cronologia da Revoluo. Trata-se da incansvel repetio feita por esse autor de que as transformaes bsicas em relao monarquia j estavam dadas desde 1787 ou, no mais tardar, em 1789, como se pode ver pelas observaes seguintes: // uma revoluo teve lugar antes da Revoluo, operada pela monarquia, que deu lugar sociedade renunciando sua natureza.481 e tudo foi dito no comeo de agosto com a abolio do regime feudal482. Desse modo, a Revoluo propriamente dita no o processo que leva derrocada da monarquia absoluta, mas sim o que se desenrola no vazio deixado por esta. Atuando no interior desse vazio de poder, a Revoluo se manifestava por meio de uma ideologia especfica, a ideologia revolucionria, que no outra coisa seno a democracia pura483. Aqui devemos lembrar que o uso feito por Furet da expresso democracia pura veio da influncia dos escritos de Tocqueville sobre esse autor. Ele faz da democracia pura ou revolucionria apenas um contedo pleno de negatividade, j que essa ideologia produz a ausncia de representao poltica, e, consequentemente, a idia de que a poltica democrtica tem virtualidades despticas, ou como s vezes, de forma ligeira, ele chegou a afirmar, totalitrias484. No desenvolvimento dessas anlises, a democracia pura levava inexoravelmente ao Terror, que foi o aspecto que permitiu condenar todo o processo revolucionrio e, por ricochete, da democracia revolucionria. Contudo, para se ter essa viso do Terror, foi preciso desmontar a chamada teoria das circunstncias, cara praticamente toda a historiografia liberal e republicana da Revoluo. Para tanto, Furet afirmou que o Terror faz parte da

politique et culture politique. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Robespierre: de la nation artsienne la Rpublique et aux nations (Actes du colloque dArras). Lille, Imprimerie de lUniversit Charles de Gaulle Lille III, 1994. BETOURN, Olivier e HARDIG, Aglaia I. Penser lhistoire de la Rvolution. Paris, ditions la Dcouverte, 1989. P. 24-25. 480 AGULHON, Maurice. Citado em: KAPLAN, Steven I. Adieu 1989. Paris, Fayard, 1993. P. 717. 481 FURET, Franois. La Rvolution 1770-1814. Paris, Hachette, 1988. T. I, p. 83. 482 FURET, Franois. Fodalit. FURET, Franois e OZOUF, Mona. Dicionrio crtico da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. P. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX 483 Sol afirma que tal despotismo semitico esquece, em seu monismo abstrato, digno do prisma marxista da economia, as realidades e limitaes da luta de classes, das relaes internacionais, das alianas internas e da construo do Estado. SOL, Jacques. A Revoluo Francesa em questes. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1988. P. 105. 484 KAPLAN, Steven I. Adieu 1989. Paris, Fayard, 1993. P. 686.

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ideologia revolucionria485, j que no seria algo externo Revoluo, e no como uma escalada de reaes populares aos acontecimentos que a contrariam ou assediam486. Antes de tudo, o terror era dependente de um elemento do imaginrio revolucionrio, a idia de conspirao, fundamental para a formao de uma mentalidade maniquesta e violenta. Nutrido por essa idia, que aparece mesmo antes de a Revoluo ter srios inimigos, o Terror no estaria associado s famigeradas circunstncias. Assim, o Terror era visto como um elemento consubstancial Revoluo, o qual teria se desenvolvido mesmo quando os grandes perigos pareciam conjurados, como por exemplo, a queda das faces, a superao dos problemas militares, a guerra na Vendia esmagada e quando j nenhum exrcito estrangeiro ameaava o territrio francs. Assim, escrevendo sobre a primavera de 1794, Furet observava que ento o Terror
// retoma novamente na primavera, sob a ditadura de Robespierre, quando mais nada ameaava a Revoluo no interior e que os exrcitos da Repblica retomam a ofensiva sobre as fronteiras: a lei de prairial e o Grande Terror perderam toda aparncia de relao com a salvao pblica.

Todavia, essa interpretao furetiana do Terror produziu um sem nmero de respostas. Steven Kaplan, por exemplo, se perguntava:
verdadeiramente possvel imaginar que ento a Revoluo no estivesse mais em perigo? Tenses to profundas e to agudas quanto aquelas que marcaram em 1793 as vidas tanto privadas quanto pblicas se dissiparam to rapidamente quanto o deixa entender a objetivao retrospectiva?

E o mesmo autor responde: pens-lo seria, nos parece, ter da experincia psicolgica tanto quanto da scio-econmica une viso grosseiramente mecanicista 487.

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FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 78. Idem, ibidem. 487 KAPLAN, Steven. Opus cit. p. 711. Furet parece vtima da mesma atitude que Seingobos acusava Taine de praticar, quando ignora deliberadamente a fora do adversrio e s v um lado do processo revolucionrio, dando a impresso de que os revolucionrios estavam alucinados com fantasmas ao meio dia. Berger e Maler retomam essa crtica: Circunstncias atenuantes? Furet desconfia, com razo, da explicao por meio das circunstncias, quand elas somente tm visivelmente por funo atenuar responsabilidades e de minimizar massacres e desastres, com o risco ainda de torn-las incompreensveis. Mas sob a cobertura de recusar o libi das circunstncias, exorciza-se, quando se quer e quando preciso, o papel dos adversrios da Revoluo em sua escalada paroxstica. No so mais que pobres figurantes inativos e impotentes. Da mesma forma, a idia de compl, apresentada como uma realidade consistente e explicativa, geralmente no tem Furet o mostra a propsito da Revoluo Francesa outra realidade e eficcia que aquela do imaginrio que ela permite tecer. Mas para se contrapor tese do compl contra-revolucionrio, no somente a tese do compl que Furet recusa, mas, cada vez mais, a fora do inimigo. O imaginrio da Revoluo Francesa tem ento lugar de explicao ltima. O imaginrio no somente veste as circunstncias, mas decide de seu peso, decidindo sobre aquelas que lhe servem de libi. Por sua vez, a interao entre o imaginrio e as circunstncias reduzida a um de seus plos:

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Outra objeo contestao de Furet de uma explicao externa Revoluo para o Terror veio de Maurice Agulhon. Partindo da idia de que desde sempre houve por parte da monarquia, como era natural, uma rejeio da Revoluo e mesmo, se se pode dizer assim, da negociao, Agulhon notava que a
// a Revoluo de 1789 foi violenta porque ela foi atacada. Suas exigncias mais simples ou ao menos as mais pacficas (a reunio das trs ordens para formar uma Assemblia Nacional, o desejo de dar uma constituio), o rei e os privilgios os recusaram logo de sada, somente concordaram de m vontade, pois, desde o 11 de julho de 1789, tentou-se colocar a fora na balana (a demisso de Necker e apelo s tropas em volta de Paris). A Contra-Revoluo, ou no mnimo a no-aceitao da Revoluo precedeu a violncia revolucionria, e essa no-aceitao sem cessar agravada (intriga e duplo jogo, conspirao e emigrao-apelo ao estrangeiro) recusar mesmo a revoluo puramente jurdica, e simplesmente modernizante dos constituintes em seus incios. A Revoluo tornou-se violenta porque ela foi recusada no que ela tinha mesmo de mais evidentemente legtima.488

Quanto a Robespierre, a anlise de seu papel durante a Revoluo dependia da viso geral da Revoluo como um acontecimento poltico, isto , um acontecimento em que a noo de cultura poltica, assim como o imaginrio poltico, tiveram um papel fundamental. Nos comentrios de Furet sobre a Revoluo, Robespierre aparece como um habilidoso mestre da manobra poltica:
// sem exercer sobre seus colegas a menor preeminncia de direito, ele se beneficia de uma autoridade moral que seu passado de opositor e sua ausncia de comprometimentos lhe prepararam. Seu gnio e suas pequenezas igualmente o serviram. Longe de ser um doutrinrio, era um ttico notvel, um poltico expert na escolha do momento oportuno, hbil em distinguir o possvel e a aventura, apto a seguir a opinio popular ou parlamentar 489 sem se deixar ultrapassar por ela.

Mas, logo Furet retoma a viso tradicional sobre o papel do advogado de Arras durante o processo revolucionrio, viso essa ciosamente desenvolvida desde Termidor. Desse modo, Furet parece concordar que muito da viso que se tem de Robespierre foi fruto de uma distoro produzida por um anti-robespierrismo nutrido pelo subjetivismo da anlise historiogrfica, j que poucos foram to deformados pelo dio quanto Maximilien Robespierre. Esse dio transformou em demagogo esse homem de gabinete, em sanguinrio

no so jamais as circunstncias que alimentam o imaginrio e lhe emprestam sua fora. Sob a cobertura de recusar as circunstncias atenuantes, atenua-se o peso das circunstncias. Pois se trata sempre, para Furet, de inocentar a hostilidade em relao emancipao ou Revoluo // BERGER, Denis e MALER, Henri. Une certaine ide du communisme: rpliques Franois Furet . Paris, ditions du Flin, 1996. P. 163-4. 488 AGULHON, Maurice. Histoire vagabonde II. Idologies et politique dans la France du XIXeme sicle. Paris, Gallimard, 1988. P. 238.

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esse moderado, em ditador esse hbil parlamentar, em detrator da religio esse desta intransigente490. Contudo, rapidamente seus argumentos retomam os mitos perpassados pela legenda anti-robespierrista, j que sua historiografia tomou, em parte, a representao histrica pela histria. A comear por construes do tipo: // de sua pregao sobre os bons e os maus que se alimenta a guilhotina; o poder formidvel que essa pregao lhe d de definir o povo que lota as prises.491 O leitor desatento novamente se depara com o Robespierre buveur de sang dos termidorianos, j que a impresso que se tem que s a Robespierre cabia a responsabilidade de decidir quem seria preso ou executado. E um leitor mais atento tambm se depara com outro mecanismo de anlise que consiste em fazer de Robespierre uma figura genial para justificar sua maestria revolucionria. Assim, Robespierre no a figura plida descrita em outras passagens de obra de Furet, mas o inventor da poltica de igualdade: Robespierre s se torna Robespierre no momento em que lhe necessrio conquistar seu lugar de deputado no Terceiro Estado de Arras: o jovem conformista inventou o discurso da igualdade492 Nessas avaliaes do advogado de Arras ressoavam significativamente historiadores que Furet considerava como os verdadeiros formuladores de uma interpretao da Revoluo. Como no lembrar um deles? Taine, na passagem abaixo, sobressai uma viso unvoca da revoluo e do robespierrismo: // como a prpria Revoluo, Robespierre s conhece os bons e os maus, patriotas e culpados, a palavra pblica da vigilncia e a conspirao oculta dos ministros.493 Alm disso, para justificar sua anlise do Terror, o qual avanou num paroxismo at a lei do Prairial, ele precisou ao mesmo tempo repetir o velho discurso termidoriano de que esse

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FURET, Franois e RICHET, Denis. La Rvolution franaise. Paris, Hachette/Pluriel, 1966. P. 222. Idem, p. 221. 491 FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 75. 492 FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 59. Mais adiante em seu trabalho aqui citado, Robespierre j no tinha essa genialidade toda: // os processos resolvidos sem brilho, a Academia de Arras, a poesia para damas, no h nada nessa vida, at a crise revolucionria, que no se parece com todas as outras. Cf. idem, p. 74. 493 Idem, p. 84. Tal avaliao no est em contradio com aquela mesma afirmao, citada mais acima, de que Maximilien tinha sido um moderado?

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momento era quando a figura mais pura desse discurso494, Robespierre, tornou-se ditador. E a somos novamente submetidos tpica contradio furetiana. Numa outra passagem de suas obras, Robespierre j no era mais o ditador. Desse modo, discutindo a natureza da tomada de poder pela ditadura de Salvao Pblica, Furet afirmava que, independente da discusso sobre em que sentido essa ditadura era popular, a tomada de poder em seu interior era oligrquica495. Quanto ao robespierrismo propriamente dito, isto , a avaliao do pensamento poltico de Robespierre, o republicanismo robespierrista , no mnimo, menosprezado. Furet tanto em seu livro sobre os grandes oradores da Constituinte quanto no seu outro livro Le sicle de lavnement rpublicain, o robespierrismo no aparece, a no ser muito secundariamente. Uma das hipteses para entendermos isto que Furet, usando as noes de cultura poltica e de imaginrio poltico, privilegiou uma viso discursiva desses contedos, para a qual o binmio igualdade e liberdade perdem seu lugar no processo histrico do republicanismo. No se trata mais de discutir que respostas o robespierrismo deu aos problemas do autogoverno, da virtude poltica, da participao popular, mas sim entender seu funcionamento enquanto um discurso e uma ideologia demaggica, mergulhada na abstrao e no fanatismo. Assim, comentando a expresso de Robespierre, de onde vem o mal? Dos burgueses, a qual foi escrita s vsperas do 2 de junho, Furet afirmava que, alm de sua significao poltica, importava mais ainda a significao metafsica dessa expresso: // para Robespierre e Saint-Just a Revoluo burguesa, a qual eles deram luz, porta nela o mal absoluto, esse luxo, essa comodidade, esse atesmo, esse individualismo do interesse que eles detestam.496 Assim, a idia de igualdade robespierrista avaliada apenas enquanto um discurso, pois s cumpriria uma funo dentro da ideologia revolucionria. Desse modo, tal idia no se enraizaria numa tradio republicana, medida que s tinha a funo de existir enquanto instrumento para a tomada do poder. Da que para Robespierre no havia // nenhuma

494 495

Idem, p. 98. FURET. F. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 79. 496 FURET, Franois e RICHET, Denis. La Rvolution franaise. Paris, Hachette/Pluriel, 1966. P. 222-3.

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distncia entre a luta pelo poder e la luta pelos interesses do povo, que coincidem por definio.497 Furet continua:
// a metafsica robespierrista no um parntese da histria da Revoluo, mas um tipo de autoridade pblica que somente o fenmeno revolucionrio tornou possvel e lgico. Lugar das lutas pelo poder, instrumento de diferenciao dos grupos polticos, meio de integrao das massas ao novo Estado, a ideologia acaba sendo, por alguns meses, coextensiva ao prprio governo. Desde ento qualquer debate perde sua razo de ser, pois no h mais espao a ocupar entre a idia e o poder, e nenhum lugar para a poltica, alm 498 do consenso ou da morte.

O final da anlise no texto de Furet confirmaria o objetivo inicial da tentativa de conceber a ideologia revolucionria robespierrista como uma metafsica, predicao sobre o bem e o mal, cujo nico resultado era a ausncia da mediao poltica. Na ausncia dessa, a exigncia de consenso era uma condio fundamental, caso contrrio s restava mandar os recalcitrantes para a morte. Porm, aqui devemos perguntar: em que lugar deveramos colocar os 73 convencionais girondinos que no morreram porque Robespierre correu o risco de desagradar esquerda mais extremada, evitando que eles fossem julgados? Podemos ver, desse modo, que o discurso no era sempre uma predicao demaggica e sanguinria. Quanto luta pelos interesses do povo, o robespierrismo ajudou, no momento fundador que era a Revoluo, a construir a noo moderna de povo, redefinindo-a com base em uma acepo universal e positiva frente idia de aristocracia. Como afirmava Jaurs,
o povo propriamente dito no tem interesses contrrios queles da nao, e eis porque a soberania da Nao torna-se rpido, no pensamento de Robespierre, a soberania do povo. // o povo, para Robespierre, representava, a cada crise da Revoluo, o conjunto dos cidados que no tinham nenhum interesse em limitar a soberania da Nao e em contrariar seu pleno exerccio. Dessa forma, sob sua poltica puramente democrtica comea a penetrar uma poltica de classe, mas incerta como os lineamentos mesmos das classes.499

Essa viso do robespierrismo se repete com freqncia na historia de Franois Furet. Nela, seu papel s pode se encontrar dentro desse discurso metafsico, maniquesta e moralizante. Mesmo quando Robespierre se pronuncia contra a possibilidade da Frana revolucionria declarar guerra s monarquias europias que acolhiam os nobres emigrados e pareciam ameaar seus interesses foi por ter visto nos revolucionrios que a defendiam um

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FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 74. Idem, p. 85. 499 JAURS, Jean. Opus cit. T. I, p. 572-3. Cf. tambm a viso de Lemay: denunciar os ricos, exaltar os pobres no era novo, mas acordar o primeiro lugar ao povo e sua vontad e no sistema poltico o era. LEMAY, Edna

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acordo para tomar o poder e trair a Revoluo. O argumento subjetivo faz uma verdadeira manobra para no ver outras razes que no sejam uma viso maniquesta e conspiratria. Assim, a avaliao feita por Robespierre de que a guerra no seria algo fcil, dado o despreparo das tropas francesas e o fato de seu comando estar nas mos de um oficialato nobre, assim como sua extraoridinria viso poltica de que os povos estrangeiros no receberiam bem missionrios com armas na mo, s podia funcionar no interior desse discurso revolucionrio, por mais objetividade que eles pudessem ter e que demonstraram possuir quando do desencadear da guerra. E aqui chegamos a um ponto importante: o problema de uma historiografia presa excessivamente conceituao, j que os dados que utiliza no se prestam conceituao na medida em que so historicamente equivocados. Assim, s podemos nos espantar quando Furet afirma que o julgamento de Danton tem seu precedente na tentativa de fazer uma acusao formal de Mirabeau por sua participao nas jornadas de outubro de 1789 (a volta do rei de Versalhes para Paris), o que provaria desde o comeo a lgica terrorista revolucionria. Isto porque quem tentou fazer essa acusao foram os conservadores, um grupo sobre o qual pode se dizer tudo, menos que estivesse imbudo de uma ideologia revolucionria500. A nosso ver, este um dos exemplos tpicos de uma de suas tores historiogrficas501.

Hinde. Une voix dissonante lAssemble Constituante: le proselytisme de Robespierre . AHRF, a.53, n 245, p. 390-404, 1981. P. 397. 500 FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 79. Em 14 de outubro de 1789, a Assemblia Constituinte autorizou o Chtelet a abrir uma information sobre as jornadas de outubro. O tribunal do Chtelet era um sobrevivente das estruturas jurdicas do Antigo Regime e que, enquanto a Revoluo no colocava em funcionamento seu novo ordenamento jurdico, continuou funcionando na prtica. De qualquer forma, o importante a se ressaltar que esse tribunal era composto por pessoas ligadas monarquia e se norteava por procedimentos jurdicos do tipo antigo regime. Assim, quando o lieutenant du roi au Chtelet, com base na autorizao da Assemblia, produziu um requisitrio contra Mirabeau, nem de longe isso poderia ser visto como uma manifestao com a mesma natureza dos embates revolucionrios posteriores. Ao contrrio, isso foi uma tpica tentativa das foras contra-revolucionrias em atacar aquele que, naquele momento, era um dos principais representantes do partido patriota. Portanto, no era o caso de se dizer desse episdio que a Revoluo, como Saturno (Cronos), devorava seus filhos. 501 Expresso de Modesto Florenzano. Ver o seu: Franois Furet, historiador da Revoluo Francesa . Revista de Histria, n o 132, 1o semestre de 1995. P. 105-6.

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SEGUNDA PARTE A TEORIA DA DEMOCRACIA ROBESPIERRISTA: DO REPUBLICANISMO CLSSICO DEMOCRACIA SOCIAL

131 Captulo I Republicanismo clssico e robespierrismo

I. Republicanismo clssico, liberalismo e Revoluo Francesa.

O historiador russo Viktor Daline, num artigo em que analisava a viso de Graccus Babeuf sobre Robespierre, chegou a uma concluso clebre sobre um dos momentos centrais da carreira do advogado de Arras: a Declarao de Direitos de Robespierre assim como os decretos do ventoso constituem o mximo que podia e queria atingir os idelogos e polticos pequeno-burgueses do sculo XVIII mais avanados e mais sinceros502. No outro plo ideolgico, o tambm historiador Patrice Gueniffey, observa, em seu livro La politique de la Terreur, que o republicanismo robespierrista era // burgus e conservador503. Tradies historiogrficas diferentes concluses semelhantes: o robespierrismo, ao fim e ao cabo, no passaria de uma variante do pensamento burgus em poca de Revoluo. Mas a historiografia pode ser mais sutil e menos unilateral nas atribuies dos interesses sociais. Assim, o robespierrismo poderia ser algo mais complexo e combinar concepes ideolgicas de grupos sociais antagnicos. Ele seria o prisioneiro de suas contradies, dos famosos limites504 histricos em que Albert Soboul parecia t-lo encerrado. Assim, ele observava:
// Robespierre, como Saint-Just, continuou prisioneiro de suas contradies: estavam por demais conscientes dos interesses da burguesia para se ligarem totalmente sansculotterie, e bastante atentos s necessidades dos sans-culottes para merecer misericrdia da burguesia.505

Aqui comea o estudo que essa parte de nosso trabalho se prope realizar. Partindo do pressuposto de que sobre a segunda parte da observao de Soboul, isto , de que os robespierristas eram atentos s necessidades dos sans-culottes, resta pouco a dizer, se se

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DALINE, Viktor. Robespierre et Danton vus par Babeuf. Paris, AHRF, t. 32, p. 388-410, 1960. P. 397. GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence rvolutionnaire . Paris, Fayard, 2000. P. 327. 504 Mesmo um discpulo de Soboul, outrora seu escudeiro na disputa com Furet, Claude Mazauric muito reticente quando considera tais limites: // preciso considerar tambm os limites da atitude de Robespierre. A. Soboul falava em um outro momento de limite de classe; a expresso me parece hoje uma frmula fora de moda: o pensamento de Robespierre era um pensamento em marcha. Mazauric, Claude. Les choix conomiques et sociaux: preliminaires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Opus cit. P. 232.

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pretendesse com ela incluir os robespierristas entre os socialistas506, viso que parece se confirmar pela pesquisa emprica desde Jaurs507 e do prprio Soboul. J quanto primeira parte da observao desse historiador, assim como tambm quanto s concluses de Daline e Gueniffey muita coisa, a nosso ver, merece ainda ser esclarecida. Com efeito, para fazer com que as idias polticas robespierristas correspondam, quanto ao essencial, com o pensamento poltico da burguesia preciso, antes de tudo, estabelecer sua identidade com o programa que j tinha sido apresentado desde julho de 1789 por Emmanuel Joseph Sieys. Em seu relatrio Prliminaire de la Constitution, reconnoissance et exposition raisonne des droits de lhomme et du citoyen, o autor do Que o Terceiro Estado exporia os fundamentos da linguagem poltica dos liberais franceses dali para frente. Foi nesse texto que ele inventou a famosa diferenciao entre cidados ativos e passivos, que no era outra coisa seno a separao entre direitos naturais e civis, os primeiros chamados por Sieys de direitos passivos e os outros de direitos ativos508. Estes ltimos, como consagrava Sieys no artigo vigsimo sexto do seu projeto de Declarao de Direitos, so exercidos por aqueles cidados que tm pela coisa pblica interesse com capacidade509. Contudo, foi se contrapondo a esse programa que o robespierrismo se afirmou desde o princpio. Sua luta contra o racismo eleitoral510 est na raiz da tradio do republicanismo francs, o qual // nunca aceitou a idia de que a sociedade civil, pelo exerccio sem limites dos direitos individuais, pelo esprito de empresa e as leis do mercado, podia funcionar

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SOBOUL, Albert. A Revoluo Francesa. 3a ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981. P. 362. certo que se possa falar de uma linha de continuidade entre jacobinismo e socialismo quanto ao mtodo poltico para a tomada do poder. Assim, por meio da reinterpretao do jacobinismo feita pelo babovismo, transmitida s sociedades secretas e a Blanqui durante a poca da Restaurao, o jacobinismo foi reapropriado pelos partidos socialistas revolucionrios do sculo XX. Cf. BUONARROTI, Philippe. Conspiration pour lgalit dite de Babeuf. Paris, ditions Sociales, 1957. KONDRATIEVA, Tamara. Bolcheviks et jacobins. Itinraire des analogies. Paris, ditions Payot, 1989. 507 Jaurs afirmava que Robespierre no era, de forma alguma, socialista ou comunista. JAURS, Jean. Opus cit. T. I, p. 572. 508 Todos os habitantes de um pas devem nele gozar dos direitos de cidado passivo: todos tm direito proteo de sua pessoa, de sua propriedade, de sua liberdade, etc., mas todos no tm o direito de tomar parte ativa na formao dos poderes pblicos; no so todos cidados ativos. Prliminaire de la Constitution, reconnoissance et exposition raisonne des droits de lhomme et du citoyen . In: SIEYS, Emmanuel-Joseph. crits politiques. Paris, ditions des Archives Contemporaines, 1994. P. 199. Grifos do autor. 509 Idem, p. 205. Conforme Lucien Jaume, interesse era o estatuto social e econmico, capacidade designava essencialmente a instruo. JAUME, Lucien. chec du libralisme. Les jacobins et ltat. Paris, ditions Kim, 1990. P. 34. 510 Ver infra, p. 226, nota 879.

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sozinha e assegurar o bem comum511. Ademais, o bem comum para o jacobinismo robespierrista s podia ser alcanado por meio de um programa poltico baseado na concepo de uma cidadania de participao, a qual faz da poltica dos republicanos // uma poltica antiga, uma poltica de participao no poder, mesmo se , sob a Repblica, por intermdio dos representantes; no uma poltica de limitao dos poderes, como aquela dos anglosaxes e dos liberais.512 Mais ainda. O robespierrismo a um s tempo defendeu os direitos individuais, polticos e sociais513, assim como tambm um programa social de democratizao da propriedade, o que lhe deu uma natureza que dificilmente poderia ser includa na tradio poltica do liberalismo enunciada por Sieys. Nem mesmo seria admissvel usarmos a terminologia empregada pelos herdeiros atuais da historiografia universitria da Revoluo, capitaneada por Florence Gauthier, Franoise Brunel, Jean-Pierre Gross514, entre outros, que apesar de permitirem uma compreenso muito importante do programa poltico dos robespierristas em relao qual nosso trabalho permanece sendo muito dependente insistem em usar a noo de liberalismo para classific-lo. Aparentemente numa tentativa de dar respeitabilidade ao jacobinismo robespierrista e, ao mesmo tempo, combater a escola furetiana, acabou incluindo tambm o advogado de Arras e seus companheiros na tradio do liberalismo. Com efeito, tais historiadores chamam o robespierrismo de liberalismo igualitrio ou liberalismo poltico de direito natural universal. Jean-Pierre Gross, por exemplo, usa o argumento de que a defesa robespierrista dos direitos civis, incluindo a o gozo do direito de propriedade, permite responder positivamente se Robespierre mereceria o qualificativo de liberal515.

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NICOLET, Claude. La rpublique en France, Etat des lieux. Paris, Seuil, 1992. P. 33. NICOLET, Claude. Lide republicaine en France (1789-1924). Essai dhistoire critique. Paris, Gallimard, 1994. P. 357. 513 Para o jacobinismo robespierrista, a cidadania s fazia sentido se fosse composta pelos trs elementos, civil, poltico e social, os quais o pensamento jurdico posterior veio a dividir. Se esses direitos foram alcanados em etapas histricas diferentes, do fim do sculo XVIII at o sculo XX, como defende Marshall, o certo que o programa poltico daquela corrente revolucionria j os concebia e defendia como um bloco. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967. P. 63 e segs. 514 Ver bibliografia. 515 GROSS, Jean-Pierre. galitarisme jacobin et droits de lhomme. 1793-1794. (la Grande famille et la Terreur). Paris, Arcantres, 2000. P. 41. Mario Cattaneo falava do pertencimento de Robespierre tradio do radicalismo, do liberalismo de esquerda. CATTANEO, Mario Alessandro. Libert e Virt nel pensiero poltico di Robespierre. Milo-Varese, Instituto Editoriale Cisalpino, 1968. P. 220.

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A nosso ver preciso buscar localizar o robespierrismo numa outra tradio para que se possa tentar dar mais preciso sua teoria da democracia. Em se tratando da histria da Frana esse um caminho evidente, j que quem quer se debruce sobre as lutas sociais que marcaram a histria desse pas entre a Revoluo de 1830 e a instalao da Segunda Repblica em 1848, e os respectivos iderios polticos dos grupos que estiveram envolvidos nessas lutas, depara-se com uma especificidade, qual seja, a natureza hegemnica do iderio republicano como referencial ideolgico para essas lutas516. Na verdade, o republicanismo era todo um programa para a maior parte daqueles que lutaram pela implantao de projetos de reformas polticas e sociais durante essa fase da histria da Frana. E a una e indivisvel era entendida como uma repblica que deveria ser democrtica e social, o que significava dar uma resposta tanto poltica quanto scio-econmica para as angstias dessa poca de dupla revoluo. A natureza assim assumida pelo republicanismo na histria da Frana teve, como no poderia deixar de ser, seu nascedouro na Primeira Repblica francesa e nos seus formuladores, os jacobinos. Desse modo, uma via ligou os robespierristas aos defensores da repblica democrtica e social de 1848, aos que a gria da poca chamava de dmoc-soc517. E uma outra via ligou o republicanismo robespierrista tradio republicana do Perodo Moderno e a uma de suas caractersticas marcantes, o republicanismo clssico. percorrendo essa segunda via que a historiografia do fenmeno jacobino ganha em preciso, j que por meio dela podemos entender melhor sua recusa em encarar como o fim exclusivo da associao civil a prosperidade econmica, constituindo como seu programa a liberao do indivduo frente a qualquer dependncia, inclusive e principalmente, a dependncia de ordem material. Tal programa se afirmou na segunda metade do sculo XVIII e durante a Revoluo, constituindo o que Jean-Fabien Spitz chama de momento neoclssico518.

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Num certo sentido, o republicanismo teve para os movimentos sociais do sculo XIX o mesmo papel que a histria da Revoluo, pois como afirma Tony Judt, // a histri a revolucionria francesa, em um sentido real, substitui uma grande parte da pesquisa e da teoria poltica da esquerda francesa. Citado em: HOBSBAWM, Erich J. Ecos da marselhesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. P. 114. 517 AGULHON, Maurice. 1848, o aprendizado da Repblica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991. P. 95. 518 SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 1770 1830. Paris, VRIN/EHESS, 2000. P. 22. Mais detalhes, a seguir.

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Portanto, num certo sentido, as dvidas jacobinas so muito maiores para com Maquiavel do que para com Locke. Com efeito, se no caso ingls ou norte-americano existe uma dificuldade de separar o liberalismo do republicanismo, essa questo oferece menor dificuldade quando se chega ao solo francs. E isto assim, como diz Johnson Kent Wright, em parte porque:
// a caracterstica do republicanismo francs do sculo XVIII, em qualquer perspectiva comparativa, foi seu simples radicalismo, em vrios de seus aspectos: sua mudana de ateno de modelos romanos para as mais primitivas cidades-estados gregas, sua elevada hostilidade ao comrcio e ao capital, seu comprometimento bem maior com os ideais igualitrios e comunitaristas. possvel questionar as credenciais republicanas de um Harrington ou de um Madison mas isso parece muito menos plausvel a respeito de um Mably ou de um Robespierre, nenhum dos dois pode por sua vez ser confundido com liberais de qualquer tipo.519

519

WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably. Stanford, Stanford University Press, 1997. P. 208. Grifado no original.

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II. O momento neoclssico

A histria do republicanismo moderno teve seus momentos fundamentais em trs etapas sucessivas: o Renascimento, as revolues inglesas do sculo XVII e os acontecimentos do sculo Ilustrado tanto na Amrica anglo-saxnica quanto na Frana. A crtica e a superao das formas tradicionais de organizao poltica originadas na sociedade feudal criaram o campo propcio para o surgimento dessa histria e o seu entrelaamento e oposio com uma outra linguagem poltica que, assim como ele, ajudou a dar forma as sociedades europias, o liberalismo. Assim, com base nessa oposio que podemos compreender mais profundamente as caractersticas do republicanismo, sua especificidade e sua relao com o processo revolucionrio de 1789. Assim, quando voltamos nossa curiosidade para entendermos como ressurgiu na histria europia a partir da Baixa Idade Mdia as formas republicanas de estado nos vem mente inevitavelmente a frmula de Claude Nicolet: a Repblica somente se faz contra os reinos520. Por meio dela, o historiador da Roma antiga nos lembra como emergiu a Repblica no contexto da Revoluo e suas idas e vindas ao longo do sculo XIX. primeira vista, essa frmula pareceria bvia demais, j que a dicotomia monarquia-repblica deveria ter um carter auto-evidente nos processos histricos de transformao do governo de um para o governo de muitos, sobretudo depois que Maquiavel renovou as idias sobre as formas de regime poltico521. Contudo, s primeira vista, pois sabe-se que o republicanismo no se confunde no sculo XVIII necessariamente com uma vontade de subverter a forma de governo monrquico, mas antes com a defesa de uma tica e do estado de direito. Na verdade, Nicolet est chamando nossa ateno para o entendimento do processo de implantao de um regime republicano, por meio de seu formato revolucionrio ao fim do sculo das Luzes, como um modelo de estado de direito que se contraps aos privilgios

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NICOLET, Claude. La rpublique en France, Etat des lieux. Paris, Seuil, 1992. P. 34. Devemos nos lembrar da forma lapidar com que Maquiavel trata o tema logo no seu primeiro captulo d O prncipe: todos os Estados, todos os domnios que tiveram e tm imprio sobre os homens, foram ou so ou repblicas ou principados. Assim, Maquiavel prope // uma classificao binria e, portanto, nova, das formas de governo, passando a aristocracia a ser uma das modalidades de repblica, sendo a outra a repblica democrtica //. FLORENZANO, Modesto. Repblica (na segunda metade do sculo XVIII-histria) e republicanismo (na Segunda metade do sculo XX-historiografia). Dez/2004. Texto indito. MAQUIAVEL, Nicolau. O prncipe. So Paulo, Crculo do Livro, s/d. P. 37.

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hereditrios, aos elementos corporativos que caracterizavam as formas dos antigos regimes. Para Nicolet, o republicanismo se produziu no embate // contra toda uma tradio religiosa e monrquica, tanto a do absolutismo como quanto das leis fundamentais ou das franquias do reino, que ele constituiu e imps522. Assim, a Repblica s pde nascer contra uma monarquia, contra uma igreja, contra os corpos aristocrticos, isto , os preconceitos de nascena e os privilgios523. Como observa Mazauric, a propsito da frmula citada de Nicolet, // o estabelecimento da repblica no implicaria em nenhuma subverso automtica na ordem das relaes sociais tanto do ponto de vista do direito de propriedade quanto da distribuio do sobreproduto ou da direo da economia //524. Desse modo, na luta contra o Estado do Antigo Regime, republicanismo e liberalismo se confundiram, a medida em que priorizaram os direitos individuais como o centro de seu pensamento e ao. Nesse sentido, a busca pela superao das formas monrquicas absolutistas e das sobrevivncias feudais ancorou-se numa poltica dos direitos do homem que veio a constituir o fundamento inicial do republicanismo, assim como da chamada sntese liberal. Contudo, esse parece ser o nico ponto de confluncia entre republicanismo e liberalismo, j que este ltimo vai trilhar um caminho que tem por fundamento associar // os conceitos de direito e de lei para formular a tese da soberania legislativa estvel e consentida cuja misso de proteger uma srie de direitos individuais dados pela prpria natureza humana525. O ncleo central do liberalismo seria assim a linguagem do direito, a qual constituiu um programa poltico que tinha por premissa // a dimenso produtiva e social da existncia humana. Desde seu incio, portanto, o liberalismo afirmou a

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NICOLET, Claude. Lide rpublicaine en France (1789-1924). Essai dhistoire critique. Paris, Gallimard, 1982. P. 290. Nicolet retoma essa idia quase literalmente em seu outro livro La rpublique en France, Etat des lieux, do qual extramos a sua frmula a Repblica somente se faz contra os reinos, citada p. 05. Nesse livro Nicolet escreve que a repblica somente pde nascer de uma revoluo: contra uma monarquia, contra uma igreja, contra corpos aristocrticos, isto , tanto preconceitos de nascena quanto privilgios. Cf. p. 34. 523 Idem, ibidem. A interpretao de Claude Nicolet sobre o republicanismo que estamos evocando se confirma, pelo menos em parte, mesmo para uma poca muito recuada na histria do republicanismo moderno. Observadores como o bispo germnico Oto de Freising e o viajante judeu Benjamim de Tudela j tinham notado, durante o sculo XII, que o movimento comunal italiano caracterizava-se pela emergncia de uma oposio ao feudalismo e forma monrquica de governo. WALEY, Daniel Philip. Les rpubliques mdievales italiennes. Paris, Hachette, 1969. P 21. Cf. tambm: SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno . So Paulo, Companhia das Letras, 1996. P. 25. 524 MAZAURIC, Claude. Lidal rpublicain implique-t-il une subversion des rapports sociaux? In: VOVELLE, Michel. (dir.) Rvolution et Rpublique: lexecption franaise. Paris, ditions kim, 1994. P. 284. 525 SPITZ, Jean-Fabien. La libert politique. Paris, PUF, 1995. P. 265

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modernidade de sua concepo da existncia humana medida que contradisse os valores da virtude antiga. Como todos sabem, a virtude antiga via naquela dimenso um aspecto inferior da condio humana, ao passo que o liberalismo deu grande relevncia ao que veio a ser conhecido como o esprito do capitalismo, isto , ao trabalho, a produo, numa palavra, o econmico. Comentando essa evoluo, Spitz afirma:
// o pensamento jurdico enriqueceu, pois, nossa compreenso das mentalidades humanas e de sua histria. Porm, inversamente, porque ele se interessa antes pelas relaes dos homens com as coisas //, ele tende a reduzir as relaes que os homens estabelecem entre eles s relaes que eles mantm a propsito das coisas: situando as relaes inter-humanas sobre o terreno dos direitos que uma pessoa pode reivindicar frente a uma outra sobre tal coisa ou a tal coisa, o pensamento jurdico faz das relaes com as coisas a condio das relaes entre os homens, como se estes ltimos somente se ligassem a propsito das coisas e por seu intermdio; assim mediatizados, as relaes entre os 526 homens tendem a no ser mais do que relaes entre as coisas.

Desse modo, os que se utilizaram dessa linguagem tiveram por objetivo algo bastante diferente do que se tinha proposto o republicanismo clssico:
// quando o direito procura definir a justia, a igualdade e a vida boa, ele coloca o problema em termos de repartio: construir uma sociedade justa distribuir a cada um as coisas e os direitos que lhe cabem; a igualdade e a justia no se pensam em termos de participao igual de todos em um bem que no pode ser repartido (a atividade cvica), mas em termos da distribuio de objetos e de vantagens, como se o universo das atividades sociais fosse o lugar exclusivo da justia.527

Enquanto, por seu lado, a homologia do republicanismo moderno com uma vertente especfica do humanismo renascentista, a qual Hans Baron chamou de humanismo cvico, deu a essa tradio de pensamento uma caracterstica bastante diferente. Isto porque o paradigma cvico-humanista se contrape linguagem poltica do discurso jurdico, contestando essa linguagem // de ser impotente para consolidar a liberdade: a estabilidade da lei, a proteo do direito de propriedade e o respeito pelas liberdades pessoais no bastam para assegurar a independncia e a autonomia dos cidados //528. Desse modo, a diferenciao entre republicanismo e liberalismo pode ser melhor entendida quando remontamos histria do humanismo cvico. Com efeito, foi no processo de superao do feudalismo e das formas monrquicas de governo que surgiu uma linguagem

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SPITZ, Jean-Fabien. La face cache de la philosophie politique moderne . Paris, Critique, n. 504, 307-334, maio/1989. P. 314. 527 Idem, ibidem. 528 SPITZ, Jean-Fabien. La libert politique. Paris, PUF, 1995. P. 262.

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poltica caracterizada por uma nova filosofia do engajamento poltico e da vida ativa 529, a qual era devotada celebrao das liberdades republicanas florentinas530. Se considerarmos as objees de Skinner forma como Baron concebeu a origem do humanismo cvico531, nosso campo de abordagem do republicanismo se enriquece ainda mais. Skinner criticou a interpretao de Baron sobre as origens do humanismo cvico, interpretao que se apoiava na idia de que essas origens estariam ligadas exclusivamente luta travada pelos florentinos nos finais do sculo XIV e comeos do seguinte contra as pretenses expansionistas do Estado milans. Skinner demonstrou que os comeos dessa nova filosofia do engajamento poltico e da vida ativa no podiam ser localizados somente na crise florentina, na medida em que os contedos da tradio cvico-humanista j podiam ser observados, a partir do sculo XI, nas lutas travadas pelas cidades-repblicas italianas tanto contra o Sacro Imprio como contra o Papado, e no sculo XIV com o humanismo petrarquiano. Assim, as razes do moderno republicanismo podem ser encontradas na luta pela independncia das comunas medievais italianas. Nesse contexto, o pensamento poltico de Marslio de Pdua (1275/1280-1343) e de Bartolo de Saxoferrato (1314-57) so de uma enorme importncia. O pensamento poltico de Marslio de Pdua emerge no contexto da disputa entre o papa e as cidades-repblicas italianas. O pensamento poltico dominante durante a poca medieval estabelecia que no havia separao entre o poder temporal e o poder religioso. A autoridade pontifcia, portanto, no se limitava ao terreno religioso, possuindo o direito de se imiscuir nos assuntos polticos profanos, e no caso concreto das comunas italianas, exigindo, entre outras coisas, que os seus sacerdotes ficassem fora do alcance legal dos magistrados republicanos. Assim sendo, a pretenso dessas comunas de conquistarem ou manterem sua independncia encontrava-se formalmente contestada. nesse contexto que aparece o pensamento de Marslio. Em apoio luta das comunas italianas contra a soberania papal, Marslio de Pdua teve que produzir uma ruptura com o pensamento teolgico-poltico que caracterizava a Idade Mdia at ento. No Defensor Pacis, Marslio expressou a concepo de que na Igreja e no mundo civil a autoridade pertence ao

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BARON, Hans. The crisis of the early Italian Renaissance. Princeton, Princeton University Press, 1966. P. 459. 530 SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno. So Paulo, Companhia das Letras, 1996. P. 93.

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povo532, contrapondo, ao fundamento transcendente do poder, um fundamento terreno. Assim, Marslio passou da frmula omnis potestas a Deo, todo poder deriva de Deus, para a frmula omnis potestas a populo, todo poder deriva do povo533. Dessa frmula Marslio extraiu a defesa clara da origem humana das leis534. Marslio, ao se diferenciar das teses polticas consagradas at ento, entrou em choque com o pensamento do principal formulador dessas teses, santo Toms de Aquino. Este pensador cristo afirmava que uma sociedade poltica legtima tem o consentimento do povo, mas este no delegava e sim alienava a autoridade soberana que originalmente detinha535. Contrariamente s teses tomistas, Marslio defendia que o corpo inteiro dos cidados sempre conservou a soberania legislativa. O legislador era associado ao conjunto dos cidados. Em suas palavras,
que o legislador, quer dizer a causa eficiente, primeira e especfica da lei, o povo ou conjunto dos cidados, ou sua parte preponderante (valentior pars) por sua eleio ou sua vontade expressa oralmente no seio da assemblia geral dos cidados, ou prescrevendo ou determinando que alguma coisa seja feita ou omitida no que toca aos atos humanos, sob 536 pena de sano ou punio temporal.

Assim, as leis s teriam validade se aprovadas pelo corpo inteiro dos cidados537. Segundo ele, o poder efetivo de instituir ou eleger um Governo diz respeito ao legislador ou a todo o corpo dos cidados, assim como lhe diz respeito o poder de fazer leis //538. Nesse debate, Marslio veio a ter o apoio do jurista Bartolo de Saxoferrato. Como Marslio, este tambm defendia o princpio da inalienabilidade da soberania popular. Isso ficou claro na discusso sobre a questo-chave de como garantir a paz e evitar a luta de faces e a discrdia. Bartolo afirmava em oposio corrente de pensamento que se enraizava em Aristteles, passando por revolucionrios como Rabaut de Saint-tienne,

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Idem, p. 91-105. GAUDEMET, Jean. Conciliarismo. In: BOBBIO, Norbert, MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Opus cit. p. 211. 533 SARTORI, Giovanni. A Teoria da democracia revisitada. O debate contemporneo. So Paulo, tica, 1994. P. 50 534 BIGNOTTO, Newton. Opus cit. P. 38-9. 535 Cf. SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno . So Paulo, Companhia das Letras, 1996. p. 82. 536 Citado em: BIGNOTTO, Newton. Opus cit. P. 43. 537 BIGNOTTO, Newton. Opus cit. P. 45-46. 538 Apud BOBBIO, Norberto. In: BOBBIO, Norberto, MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. 2 ed., Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1986. p. 321.

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chegando at a cientistas polticos dos dias atuais, como Giovanni Sartori539, que afirmavam que a razo principal para se temer a democracia est em que esta provocava a luta de faces e no era capaz de produzir a paz pblica que a luta contra o facciosismo teria sucesso quando se impedisse a diviso do poder entre diversos magistrados. Como afirma Skinner, ambos defenderam uma soluo muito radical: que o governante seja o corpo inteiro do povo, de modo que, j por princpio, nenhuma luta intestina possa prosperar540. Para Bartolo era ponto pacfico que todos os poderes concedidos a um governante no ensejo de criao de um organismo poltico legtimo haviam originalmente estado em posse do prprio povo541. Bartolo compartilhava com Marslio a idia de que o melhor regime para o Regnum Italicum era a forma de governo republicana. Os populistas Marslio e Bartolo fizeram da soberania popular a frmula bsica para solucionar os problemas que afligiram as cidades-repblicas italianas. Ambos os autores tomaram o cuidado, no desenvolvimento do seu pensamento, em propor solues tcnicas para que o exerccio do poder por uma autoridade delegada (valentiorem partem542 na linguagem de Marslio) no levasse a um processo de alienao. Segundo Skinner so trs as solues propostas. 1) a eleio: toda autoridade deveria ser eleita; 2) toda autoridade deveria possuir uma delegao de poder tendo como limite a lei; 3) a capacidade dos eleitores de demitir seus magistrados a qualquer momento543. Desse modo, a retomada do republicanismo clssico durante a Baixa Idade Mdia j colocava de sada a questo de uma cidadania de participao, que os humanistas cvicos dos fins do sculo XIV e comeos do seguinte teriam todo o cuidado de exaltar mais ainda e que ganharia uma dimenso definitiva com a obra de Maquiavel. Assim, antes de constiturem uma vertente do pensamento poltico da Ilustrao na Frana, as idias maquiavelianas de defesa da igualdade e da independncia, o equilbrio dos poderes e da liberdade, a recusa de uma representao que derivasse para a profissionalizao, a rejeio dos exrcitos

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SARTORI, Giovanni. A Teoria da democracia revisitada. As questes Clssicas. So Paulo, tica, 1994. P. 35-42. 540 SKINNER, Quentin. Opus cit. P. 81-82. 541 Idem, p. 456. 542 A parte de maior valor. Ver: SABINE, George H. Histria de la teoria poltica. Ciudad de Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1994. P. 239. 543 Nossos dois autores [Marslio e Bartolo] j esto preparados para sustentar que a soberania reside no povo, que este apenas a delega sem nunca a alienar, e que por isso nenhum governante legtimo jamais pode desfrutar

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permanentes, a rotao das funes, a renovao freqente dos parlamentos, entre outras, passariam antes pelos sditos da monarquia inglesa544. Diante do aumenta das disparidades de fortuna numa sociedade em rota direo para se tornar uma economia capitalista, os anglo-saxes cultivaram uma linguagem poltica que defendia que se deveria reduzir a poltica tica se no se quisesse que ela se reduzisse corrupo545. Assim, a linguagem poltica do republicanismo vai colocar no fundamento tico da poltica o elemento essencial para qualquer sociedade poltica. Da sua valorizao da vida ativa, da participao poltica, em marcante contraste com a sntese liberal que fundamenta as democracias modernas, as quais, por sua vez, vem os elementos daquela valorizao como um penoso fardo, como nascedouro da discrdia e da instabilidade, quando no da poltica totalitria546. Em decorrncia da linguagem do direito adotada pela sntese liberal, vale ressaltar uma diferena ainda mais marcante entre o liberalismo e o republicanismo. Como vimos, para os defensores do pensamento liberal, a contestao da monarquia absoluta no colocava em xeque o problema da propriedade e da dinmica da economia de mercado, o que a princpio era o caso do prprio republicanismo. Contudo, este tambm postulou uma definio poltica das relaes econmicas e sociais547, isto , o republicanismo se ops idia de que as relaes econmicas e sociais pudessem ser um fim em si da poltica, vendo nessas relaes uma condio subordinada, que permitiria aos cidados gozar da independncia necessria para o exerccio de sua funo poltica548. Essa trajetria do republicanismo desembocou no sculo Ilustrado francs e veio a constituir o que Jean-Fabien Spitz chama de momento neoclssico, no qual houve a emergncia de um sem nmero de idias que tinham por princpio acentuar a dimenso

de uma condio mais elevada que a de um funcionrio nomeado por seus prprios sditos, e a quem estes, portanto, podem demitir a qualquer momento. SKINNER, Quentin. Opus cit. p. 85. 544 SPITZ, Jean-Fabien. La libert politique. Paris, PUF, 1995. P. 264. 545 Idem, ibidem. 546 Idem, p. 266. So as palavras do palatino da Posnnia, prefiro a liberdade perigosa tranqila servido, que Rousseau recomendava aos cidados ter no corao. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro terceiro, captulo IV, p . 91. Depois de j ter tratado do tema repouso versus liberdade em seu segundo discurso sobre a guerra, Robespierre o retoma no terceiro e repete essa famosa passagem de Rafael Leszczynski: portemos a divisa do Palatino da Posnnia; ela sagrada, ela n os convm. Eu prefiro as tempestades da liberdade ao repouso da escravido . Sur la guerre (11 de janeiro de 1792). OCR, t. VIII, p. 109. Grifos no original. 547 NICOLET, Claude. La rpublicaine en France, tat des lieux. Paris, Seuil, 1992. P. 36-38. 548 SPITZ, Jean-Fabien. Opus cit. P. 255.

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perversa // que consiste em definir de maneira exclusiva o fim da associao civil pelo desenvolvimento da prosperidade549. Assim, o momento neoclssico formulava,
// o projeto de libertao do indivduo em termos que exigiam que a igualdade dos direitos fosse apoiada sobre os meios da independncia material e mostrando que a desigualdade das fortunas , quando ela ameaa essa independncia, criadora de males polticos e morais destrutores da liberdade autntica.550

Essa ressurgncia das idias clssicas de repblica foi bem representada pelas idias de Rousseau e de Mably551, os quais praticamente definiram os termos por meio dos quais os revolucionrios mais extremistas de 1789 conceberiam sua teoria poltica. Desse modo, as diferenas entre o republicanismo e o paradigma liberal constituram o pano de fundo das principais tendncias polticas revolucionrias. Se excetuarmos os monarchiens, cujo saudosismo poltico fazia deles os nicos defensores de um projeto poltico ancien rgime em vias de desaparecer, as demais tendncias polticas que constituram a frente patritica de 1789 se definiram com base nessas duas linguagens polticas552. De um lado, estavam os que achavam que o bem comum s podia ser assegurado pelo automatismo das leis naturais e que a felicidade pblica se compunha exclusivamente da felicidade individual553; do outro, aqueles que achavam que o bem comum s poderia ser assegurado

549

SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 1770 1830. Paris, VRIN/EHESS, 2000. P. 22. 550 SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 17701830. Paris, Vrin/EHESS, 2000. P. 13. 551 No toa que dos dois nomes que esto sob a mira da crtica de Constant em seu texto Da liberdade dos antigos comparada a dos modernos, Rousseau e Mably, sobre este ltimo que recai a maior ateno. Como ele escreveu no a Rousseau, como se ver, que principalmente se deve atribuir o erro que eu vou combater; ele pertence bem mais a um de seus sucessores, menos eloqente, mas no menos austero, e mil vezes mais exagerado. Este ltimo, o abade Mably // Ele detestava a liberdade individual como se detesta um inimigo pessoal //. CONSTANT, Benjamin. De la libert des anciens compare celle des modernes. In: crits politiques. Paris, Gallimard, 1997. P. 605. 552 A nosso ver, mais do que o Terror poltico, o pomo de discrdia entre esses grupos estava na soluo proposta para a questo social. Excetuando o caso daqueles que tiveram o medo de serem os prximos a perder a cabea os ultraterroristas comprometidos com a corrupo e os excessos, como Barras e Tallien, os quais paradoxalmente foram fundamentais para acabar com o Terror era o Terror social e econmico que mais separava os robespierristas das outras tendncias revolucionrias, todas demonstrando poucos escrpulos em derramar sangue. Nesse sentido, nos parece insupervel a afirmao de Labrousse de que se o advento nacional radicaliza e coliga as foras revolucionrias, o advento social radicaliza-as, mas divide-as. LABROUSSE, Ernest. O sculo XVIII: a sociedade do sculo XVIII perante a Revoluo In: CROUZET, Maurice. Histria geral das civilizaes. So Paulo, Bertrand Brasil, 1995. Volume XII, p. 126. 553 Idia explicitamente defendida por Courtois, personagem que foi encarregado pelos termidorianos de fazer justamente o relatrio dos papis de Robespierre, mas que produz um verdadeiro balano do robespierrismo e demarcava as posies da burguesia em relao a essa corrente revolucionria. Cf. COURTOIS. E. B. Opus cit. P. 03.

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pela adeso ativa de cada um no seio de uma comunidade poltica554. essa diferena que ao fim e ao cabo caracterizou a dissenso e finalmente o antagonismo insupervel no seio do partido patriota. Como exemplos da primeira tendncia podemos elencar os revolucionrios como Sieys, os girondinos e seus herdeiros posteriores, os diretoriais, que abraaram essa linguagem caracterstica da sntese liberal. Assim, a tentativa de modernizao da poltica feita por esses grupos durante a Revoluo fala por si s sobre as razes que os levaram a ver com profunda desconfiana o uso do vocabulrio da virtude antiga e as solues polticas influenciadas pela tradio republicana clssica. Com efeito, os grupos que eram adeptos da monarquia constitucional ou de uma espcie de repblica moderada, antes mesmo dos embates mais radicais que viriam tona no ano I e no II, j tinham demonstrado que quando eles aparentavam ter uma erudio marcada pelo estudo dos antigos no queriam com isso significar a adeso aos corolrios polticos da virtude clssica. Desse modo, Sieys, desde o princpio da Revoluo, j manifestara sua posio em relao herana poltica clssica. Com efeito, no seu posicionamento sobre o veto real, ele dizia que os povos europeus modernos se pareciam bem pouco com os povos antigos555. O que o levava a uma posio bem diferente das posies dos grupos radicais, negando de uma s vez tanto a democracia quanto o direito do voto popular:
O povo ou nao somente pode ter uma voz, aquela da legislatura nacional //. A expresso apelo ao povo pois ruim, enquanto ela impoliticamente pronunciada. O povo, eu o repito, em um pas que no uma democracia (e a Frana no poderia s-lo), o povo apenas pode falar, apenas pode agir por meio de seus representantes.556

A esse respeito, mais contundente ainda so as idias defendidas pelo mais brilhante orador brissotista, Pierre-Victorin Vergniaud.
Rousseau, Montesquieu, e todos os homens que escreveram sobre os governos, nos dizem que a igualdade da democracia se apaga l onde o luxo se introduz; que as Republicas somente podem se sustentar por meio da virtude, e que a virtude se corrompe por meio da riqueza. Vs pensais que essas mximas aplicadas apenas por seus autores a Estados circunscritos, como as Repblicas da Grcia, em estreitos limites, devem s-lo

554 555

NICOLET, Claude. La rpublicaine en France, Etat des lieux. Paris, Seuil, 1992. P. 33. Dire sur la question du veto royal. In: SIEYS, Emmanuel-Joseph. Ecrits politiques. Bruxelas, ditions des Archives Contemporaines, 1994. P. 236 556 Idem, P. 238.

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rigorosamente e sem modificaes Repblica francesa? Vs quereis criar-lhe um governo austero, pobre e guerreiro como aquele de Esparta?557

Na segunda tendncia encontram-se os que se apoiavam na ideologia rousseausta, elemento fundamental na transmisso da tradio do republicanismo clssico, como o conjunto da sans-culotterie, os enraivecidos, os hbertistas, os robespierristas e o caracterstico humanismo cvico daquele que, j pelo surnom, indicava sua ligao com a virtude antiga, Graccus Babeuf. Portanto, os que foram acusados de fazer um verdadeiro culto da Antigidade, mas que, como veremos a seguir, tal culto, quando se trata dos robespierristas, no tinha a dimenso de fazer reviver os ureos tempos antigos como a fala de Vergniaud nos induz a pensar.

557

VERGNIAUD, Louis Victorien. Le projet de Constitution (8 mai 1793). In: Les grands orateurs rpublicaines. Mnaco, Les ditions Hemera, 1950. P. 228.

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III. O culto da Antigidade e o republicanismo clssico

O uso dos contedos do republicanismo clssico pelos revolucionrios teve na exemplificao com base nos personagens, nas passagens e nas solues polticas da Antigidade Clssica seu aspecto mais evidente. O chamado culto da Antigidade558 era um hbito usual para os homens de 1789. Por meio desse culto, os revolucionrios acusavam-se ou defendiam-se, davam colorido aos seus discursos ou propunham solues polticas utilizando-se dos nomes de Demstenes ou Csar, de expresses como tirania ou ditadura, defendiam o tribunato como uma sada institucional ou davam curso quilo que veio a ser conhecido como o mito esparciata. Assim, muitas correntes polticas enderearam uma crtica ao pensamento poltico jacobino ou robespierrista cujo contedo tem um certo qu de derriso quando se trata do uso do vocabulrio da virtude clssica. Todavia, para alm da caricatura, a crtica da id ia de liberdade antiga e do culto da Antigidade foi o ponto de convergncia tanto dos grupos moderados durante a Revoluo quanto, posteriormente a ela, dos liberais e dos marxistas quando se tratava de analisar o pensamento poltico revolucionrio radical. Tal viso transparece, em parte, na crtica de Marx ao robespierrismo, como se pode ver em passagens como a do 18 Brumrio de Lus Bonaparte, em que ele afirmava que Robespierre e Saint-Just, entre outros, // desempenharam a tarefa de sua poca, a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases romanas.559. Assim como tambm permeia significativamente o livro citado de Harold Parker. Nele encontramos afirmaes do tipo: // Robespierre, Saint-Just, e numa menor

558

PARKER, Harold T. The cult of Antiquity and the French revolutionaries. A study in the development of the revolutionary spirit. Chicago, the University of Chicago Press, s/d. 559 MARX, Karl. O 18 Brumrio e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. P. 18. Quanto a isso, Labica comenta: Marx projetava escrever uma histria da Conveno, para a qual ele tinha reunido uma documentao considervel; pode-se adivinhar o lugar que nela teria tido Robespierre. Entretanto, os julgamentos que exprimiu sublinham toda uma outra problemtica. O Incorruptvel teria feito desandar sua prpria modernidade, confundindo 1789 com a Antigidade, e, no fim das contas, conduzido uma revoluo burguesa. O que no verdade, quaisquer que sejam os argumentos da historiografia marxista, ns o veremos, que do resultado da revoluo fez-se a contra-revoluo de 1794. LABICA, Georges. Opus cit. P. 15.

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extenso Billaud-Varenne pareciam vidos em fazer reviver as instituies e os belos dias da Grcia de Esparta560.

Na verdade, a crtica ao uso do vocabulrio da virtude antiga antecede a Revoluo. Seu nascedouro pode ser encontrado j nas anlises de Bossuet sobre a liberdade antiga em seu Discours sur lhistoire universelle561, assim como tambm nas crticas endereadas por Voltaire a Rousseau. Nesse ponto, o famoso discurso de Benjamin Constant De la libert des anciens compare a celle des modernes, pode ser considerado uma sntese de pelo menos dois sculos de reflexes sobre essa questo. Contudo, ultrapassado o tom de escrnio que norteava a batalha dos antigos e dos modernos, possvel por meio da anlise do vocabulrio da virtude antiga conseguirmos chegar natureza da recepo do republicanismo clssico pelos diversos contendores dessa batalha ao longo do sculo XVIII e com base nisso perceber as mais importantes divergncias entre eles, em particular, no que tange aos homens da Revoluo. Conforme Claude Nicolet,
a leitura da literatura poltica // da poca revolucionria mostra que as aluses ou as referncias da Antigidade eram um pouco mais que uma moda: no plano ideolgico e cultural, seja para com ela se identificar ou para dela se demarcar, pensa-se em Esparta, em 562 Atenas e em Roma de maneira insistente e contnua.

Se, por um lado, com esse apelo Antigidade, os revolucionrios franceses s fizeram obedecer ao espirito do seu sculo563, impregnado que estavam pela cultura clssica, na qual diversos grupos sociais estavam imersos, por outro, o processo histrico do Settecento riformatore564 francs fez emergir uma referncia ideolgica muito particular, a saber, os homens que ento propugnavam um programa reformista buscaram legitim-lo fora dos quadros do pensamento tradicional e foram levados a aproxim-lo dos exemplos polticos da Antigidade clssica. Como observa Henri Morel,
// o recurso Antigidade , pois, primeiramente a procura de uma nova legitimidade, de um novo sistema de valor fundado sobre a histria, ou antes, os exemplos que forneciam

560 561

PARKER, Harold T. Opus cit. P. 162. Cf. SPITZ, Jean-Fabien. La libert politique: essai de gnalogie conceptuelle. Paris, PUF, 1995. P. 273. 562 NICOLET, Claude. La rpublicaine en France, Etat des lieux. Paris, Seuil, 1992. P. 135. 563 Idem, p. 136. 564 Ttulo da obra enciclopdica de Franco Venturi.

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uma histria que foi totalmente estrangeira Frana, sua monarquia, sua religio e a suas estruturas sociais, dito de outra maneira as repblicas gregas e romanas.565

Foi nesse quadro de pensamento que se formaram os homens que se tornariam os principais personagens de 1789. Indo dos moderados da Constituinte, passando pelos girondinos e chegando aos montanheses e jacobinos. Contudo, o que gostaramos de ressaltar aqui que, quanto ao caso especfico de Robespierre, suas referncias clssicas nada tiveram a ver com o desejo de fazer reviver os ureos tempos antigos. Ele o caso que se encaixa exemplarmente na concluso a que chegou Franois Hartog sobre a batalha dos antigos e dos modernos:
a Revoluo Francesa pode ser vista como a ltima grande disputa sobre os antigos e os modernos: disputa poltica, focalizada sobre o problema da liberdade. Na qual, porm, cada um reivindicava, no fundo, a prpria modernidade. Os revolucionrios, os jacobinos se queriam decisivamente modernos e, se faziam apelo repblica antiga era justamente pelo motivo de se tornar plenamente modernos.566

Desse modo, podemos dizer que o vocabulrio cvico robespierrista era moderno apesar de // seus emprstimos clssicos, pois ele [se] enderea[va] aos problemas que nasceram do desenvolvimento mesmo das sociedades mercantis e liberais //567. Isso no poderia ser diferente para quem, procedendo a um balano das transformaes revolucionrias, fazia uma clara defesa do valor positivo do progresso, dizendo que o mundo mudou, ele deve mudar ainda568. Assim como tambm, ao fazer sua famosa exposio sobre a teoria revolucionria, afirmava que a teoria do governo revolucionrio to nova quanto a revoluo que a produziu, e, portanto, no adiantava procur-la nos livros dos escritores polticos, // que no previram essa revoluo //569. E quanto a repblica que ele

565

MOREL, Henri. Le poids de lantiquit sur la Rvolution franaise . In: GANZIN, Michel. Linfluence de lantiquit sur la pense politique europenne (XVI-XIXme sicles). Aix-en-Provence, Presses Universitaires de Aix-en-Marseille, 1996. P. 314. Idia semelhante j tinha sido formulada por Franco Venturi. Segundo ele, os philosophes, os girondinos e os jacobinos olhavam para Camilo e para Brutus justamente porque na histria dos franceses havia pouco ou nada que lhes pudesse servir de modelo ou inspirao. VENTURI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo. Bauru, EDUSC, 2003. P. 53. 566 ARMANDI, Marco. (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma, Editori Riuniti, 1999. P. 147, nota 04. 567 SPITZ, Jean-Fabien. La face cache de la philosophie politique moderne. Paris, Critique, n. 504, 307-334, maio/1989. P. 334. 568 Sur les rapports des ides religieuses et morales avec les principes rpublicains, et sur les ftes nationales (18 de Floreal do ano II, 7 de maio de 1794). OCR, t. X, p. 444. 569 Rapport sur les principes du Gouvernement rvolutionnaire, fait au nom du Comit de Salut Public (25 de dezembro de 1793). OCR, t. X, p. 274.

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pretendia ver instaurada na Frana, ela no seria moldada como a de esparta pois no queria // dar-lhe nem a austeridade, nem a corrupo dos claustros570. Dessa forma, sua utilizao de exemplos polticos da Antigidade Clssica funcionavam como uma forma erudita de argumentao e como um dilogo com contedos polticos que eram uma herana comum para os homens do Perodo Moderno e que, em parte, Maximilien ajudaria a renovar. Mesmo seu companheiro de lutas, Saint-Just, conhecido a esse respeito por ter pronunciado a famosa frase // o mundo ficou vazio depois dos romanos; e sua memria o preenche, e profetisa ainda a liberdade //571 e que conclamou os revolucionrios para serem romanos, e no trtaros, fazia a seguinte reflexo:
No duvide, tudo o que existe a nossa volta deve mudar e acabar, porque tudo que existe a nossa volta injusto; a vitria e a liberdade cobriro o mundo. Nada desprezes, mas no imites nada do que se passou antes de ns: o herosmo no tem modelos. assim, eu o repito, que vs fundareis um poderoso imprio, com a audcia do gnio e o poder da justia e da verdade.572

Pode-se, assim, extrapolar para os robespierristas a mesma concluso a que se chegou sobre a tradio republicana inglesa e norte-americana, isto , de que os republicanos anglosaxos.
// no recorreram ao vocabulrio da virtude clssica somente para disfarar suas aspiraes burguesas em sentimentos elevados, mas eles pensaram a realidade na qual eles se encontravam, e as tarefas que ela lhes impunha, segundo os conceitos do republicanismo clssico; suas aes e as solues que eles colocaram em prtica portam a marca dessa convico.573

Assim, a retomada da tradio de pensamento antigo e renascentista pelos homens do sculo Ilustrado e pelos revolucionrios produziu, como vimos, o momento neoclssico, algo que era mais importante do que a caricatura pode nos revelar. O passado foi utilizado como um repositrio de modelos tericos alternativos, os quais propiciavam uma nova

570

Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention Nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique. OCR, t. X, p. 354-5. Edio brasileira: cf. ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. P. 147. 571 Rapport sur la conjuration ourdie depuis plusieurs annes par les factions criminelles (11 de germinal do ano II-31 de maro de 1794). In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 778. 572 Rapport sur la police gnrale, sur la justice, le commerce, la lgislation et les crimes des factions, prsent la Convention nationale dans la sance du 26 de germinal an II (15 de abril de 1792). In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 819. 573 SPITZ, Jean-Fabien. Prface. In: POCOCK, John. G. A. Le moment machiavlien. Paris, PUF, 1997. P. XL. Grifado no original.

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legitimidade poltica para a poltica de contestao do passado feudal e da monarquia absoluta que estava em curso. Com efeito, os jacobinos foram o nascedouro daquela tradio que pretendia // confundir os dois contratos (aquele que, pelos direitos naturais, afirma a eminente dignidade dos indivduos e aquele que, pela intermediao da cidadania ativa, exige a participao de todos na vontade geral). Assim como tambm pretenderam
// reconciliar a liberdade dos modernos, individualista, possessiva e empreendedora, e a liberdade dos antigos, que implica exerccio real do poder e prtica das virtudes cvicas. Este ltimo ponto no foi somente o sonho utopista e passageiro dos jacobinos: pela proclamao, desde 1848, do sufrgio universal, a repblica francesa dele tentou se aproximar o mais possvel. 574

Para uma vertente, por assim dizer, mais radical dessa tradio, aquela que levou s ltimas conseqncias tanto esse referencial republicano clssico quanto o rousseausmo, a democracia foi o ponto de chegada desse projeto reformista. Isso pode ser exemplificado j no incio da Revoluo pelo movimento secionrio que, mesmo tendo ento as sees controladas pela pequena burguesia, defendia radicalmente os princpios da democracia pura575, mas tambm e principalmente por Robespierre a despeito de que ele no defendesse esse tipo de democracia, j que ele vai inovar quanto a definio dessa forma de regime poltico. Porm, isso o que comearemos a ver a seguir.

574 575

Idem, p. 32-33 GENTY, Maurice. Lapprentissage de la citoyennet. Paris, Messidor/ditions Sociales, 1987.

151 Captulo II Robespierre primeiros tempos: da repblica das letras revoluo republicana
I. Reforma e revoluo: de Montesquieu a Rousseau

Falando do esprito da Revoluo, que teria aparecido na crise de 1788 e se manifestado durante a preparao dos Cahiers de Dolances e dos trabalhos dos Estados Gerais, Tocqueville comentava que:
no comeo, somente se fala de melhor perdoar os poderes, de melhor ajustar as relaes de classes; logo anda-se, corre-se, precipita-se em direo idia da pura democracia. No incio, Montesquieu que se cita e que se comenta; no fim, apenas se fala de Rousseau. Ele tornou-se e ele vai permanecer o preceptor nico da Revoluo em sua primeira poca.576

De certa forma, essa poderia ser a concluso sobre a formao do pensamento poltico robespierrista na sua fase pr-revolucionria. Profundamente influenciado pelo baro de la Brde, convencido da possibilidade de regenerao da monarquia como a maioria dos franceses seus contemporneos, o jovem advogado de Arras fazia do autor do Esprito das leis uma referncia obrigatria para seu pensamento poltico. Se durante a instalao do processo revolucionrio, ele veio a se tornar quase um duplo do cidado de Genebra, em seus escritos pr-revolucionrios ele era predominantemente influenciado por Montesquieu. Curiosamente, aquele que foi chamado de o cidado de Arras, Rousseau no poder577 e o Contrato social em forma de homem578 eptetos que tm um tom derrisrio na maior parte das vezes, mas que tambm nos revelam, como era o caso do primeiro deles579, como j era marcante a identidade de Robespierre com Rousseau a ponto de no escapar aos contemporneos desenvolveu freqentemente verdadeiras parfrases de Montesquieu nos diversos textos que escreveu antes da Revoluo. No entanto, essa curiosidade s aparente.

576

TOCQUEVILLE, Alexis. Lancien Rgime et la Rvolution. Paris, Gallimard, 1980. Obras Completas. T. II, livre II, chap. V, p. 106-7. 577 Korngold dizia que Robespierre poderia ser chamado de Rousseau au pouvoir. KORNGOLD, Ralph. Robespierre: le premier des dictateurs modernes. Paris, Payot, 1936. P. 26. 578 Expresso P. Lanfrey. Cf. GODECHOT, Jacques. Lhistoriographie franaise de Robespierre. In: Actes du colloque Robespierre. Paris, ditions Sociales, 1967. P. 181. 579 Ver infra, p. 147, nota 592.

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Como veremos, o jovem Robespierre, como o conjunto dos franceses, partilhava de uma viso reformista e regeneradora da monarquia que encontrava no pensamento poltico de Montesquieu um amparo seguro. Alis, este aspecto da influncia de Montesquieu que nos deixa entrever a passagem citada de Tocqueville. Assim, no exagerar caracterizar o ento jovem advogado, como se tem feito, como um // discpulo fervoroso e fiel de Montesquieu 580. A influncia da leitura do autor do Esprito das leis marcou o pensamento pr-revolucionrio de Robespierre quando ele dava seus primeiros passos como um filsofo diletante. Foi dela que ele retirou a teoria da honra, alma do governo monrquico, a qual se pode ver claramente em seu Discours sur les peines infamentes581. Com efeito, alguns aspectos da realidade do Antigo Regime eram analisados nesse discurso com base nas concepes de Montesquieu, como sua tipologia das formas de governo: monarquia, repblica e despotismo. Alm disso, Robespierre demonstrou ser consciente e partidrio de um dos elementos centrais do pensamento de Montesquieu, a saber, sua idia de balano de poderes, como se pode ver em sua memria judiciria do caso Franois Dteuf de 1783. Nesse texto, ao definir a importncia do papel do clero nas monarquias modernas, ele o caracterizava como um corpo intermedirio que, enquanto tal, seria uma garantia de que a monarquia no se transformaria em despotismo. Ele comentava que o poltico esclarecido (referncia a Montesquieu) // v no Clero das Monarquias modernas um corpo intermedirio, cuja existncia provem da constituio, e que no se pode abat-lo sem comprometer os limites que separam a monarquia do despotismo582. Mesmo suas idias sobre a noo de virtude republicana, segundo George Rud, viriam de Montesquieu e no do seu estudo dos clssicos583. O que no significa que elas no devessem nada a Rousseau. Pelo contrrio, Rousseau tambm foi bastante influenciado por

580 581

DESPREZ, Eugne e LESUEUR, mile. Introduo. In: OCR. T. I, p. 13. Idem, ibidem. 582 Mmoire pour Franois Dteuf (novembro de 1783). OCR, t. II, p. 235. Mais detalhes sobre o caso Dteuf, ver infra, p. 155. 583 RUD, George. RUD, George. Robespierre: portrait of a revolutionary democrat. Nova York, the Viking Press, 1976. P. 96. Mario Cattaneo j tinha feito essa mesma constatao, isto , que a idia de virtude de Robespierre derivava antes de tudo de Montesquieu. CATTANEO, Mario Alessandro. Libert e Virt nel pensiero poltico di Robespierre. Milo-Varese, Instituto Editoriale Cisalpino, 1968. P. 122.

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Montesquieu em suas idias sobre a virtude584 e foram os desdobramentos rousseaustas da idia de virtude que certamente mais tocaram o pensamento poltico robespierrista. De todo modo, o prprio Maximilien explicitou sua dvida para com Montesquieu no j citado Discurso sobre as penas infamantes, sua primeira tentativa nos tradicionais concursos acadmicos da poca. Nesse discurso, ele afirmava que a energia essencial das repblicas a virtude, como provou o autor do Esprito das leis, isto , a virtude poltica, que no outra coisa seno o amor das leis e da ptria //585. Como poderamos entender essa maior aproximao com o pensamento de Montesquieu e no com o de Rousseau, o qual durante o processo da Revoluo vai se tornar quase seu alter-ego? A resposta a essa pergunta importante preliminarmente porque nos ajuda a entender, entre outras coisas, a dinmica do pensamento poltico pr-revolucionrio robespierrista e o quanto ela era tributria da conjuntura histrica dos ltimos decnios do Sculo das Luzes e, em particular, do da dcada de 1780. Ao mesmo tempo, a resposta a essa questo tambm nos permite ver como Maximilien, rejeitando a idia de que a regenerao da sociedade francesa passasse pela revoluo, no guardava nenhuma aproximao com qualquer tipo de voluntarismo revolucionrio. Dessa forma, compreender a influncia do pensamento de Montesquieu sobre o jovem Robespierre passa necessariamente pelas particularidades polticas da conjuntura histrica do Sculo Ilustrado, a qual foi marcada pela emergncia do que Michel Ganzin chama de a ambigidade do esprito do sculo, que o resultado de um programa reformista que se insere no quadro do absolutismo monrquico //586. Enquanto um jovem formado nesse ambiente poltico, Robespierre era mesmo uma manifestao exemplar dessa ambigidade. Com efeito, o jovem advogado combinou em vrias passagens de seus escritos uma eloqente defesa das reformas sociais e polticas com a idia de que tais reformas deveriam se produzir dentro e por meio da monarquia. Isso fica bem claro em sua ltima grande atuao judiciria, o caso Dupond (1789), no qual Robespierre, ao mesmo tempo em que constatava a
584

JAGGI, Yvette. Robespierre et la volont gnrale. Genebra, tudes de lettres, Srie 2, t. 9, n 1, p. 19-51, 1966. P. 44. 585 Discours sur les peines infamentes (1784). OCR. T. I, p. 24. 586 GANZIN, Michel. Lemergence du concept moderne de rvolution (1789-1794). In: GANZIN, Michel. Linfluence de lantiquit sur la pense politique europenne (XVI-XIXme sicles). Aix-en-Provence, Presses Universitaires de Aix-en-Marseille, 1996. P. 342. Essa ambigidade pode ser percebida em certas passagens emblemticas dos escritos pr-revolucionrios de Robespierre, como a do seu Discours sur les peines infamantes. Ver infra, p. 156. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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necessidade de reformar a sociedade francesa, fazia um apelo pela salvao do pas direcionado a Lus XVI587. Assim, no momento em que ele parecia transitar entre as concepes de uma monarquia regenerada e a defesa de uma espcie de governo misto588, o que vai se dar nos primeiros momentos do processo revolucionrio, essa sua ltima memria como advogado ainda nos revela como Robespierre acompanhava a maioria dos seus compatriotas enquanto partidrio de uma monarquia temperada. Tendo como uma de suas referncias principais o pensamento de Montesquieu, a remodelao da monarquia absoluta na direo de uma monarquia que aceitasse a restrio do poder do rei em benefcio de uma assemblia ou de corpos intermedirios parecia seduzir o conjunto dos franceses, mesmo que a maior parte deles no justificasse tal remodelao apoiando-se em argumentos teoricamente mais complexos, tais como a idia de que um regime monrquico era o que melhor se adequava a um grande estado. Na verdade, tal remodelao se combinava com o respeito e mesmo a devoo pela monarquia. Com efeito, o sentimento majoritrio da sociedade francesa no momento em que ela se encaminhava para a Revoluo indicava tanto essa devoo quanto esse respeito pela monarquia e o seu inquestionvel desejo de v-la mantida, como transparece nos Cahiers de Dolances (Cadernos de Queixas)589. Tais Cadernos foram o mais profundo conjunto de reivindicaes reformistas feito at ento pelos franceses e realizado sob um clima intelectual que bem resumido nas palavras de Marcel Dorigny, segundo quem
// a pessoa e a instituio reais eram veneradas pelas multides e pareciam para muitos, entre eles os reformadores mais esclarecidos, como a ltima esperana de regenerao 590 social e poltica, mesmo moral, de um pas em crise profunda h j vrios decnios.

Desse modo, o desejo de reforma dos franceses dos fins do Antigo Regime buscava se adequar aos limites de uma morigerao da monarquia, a qual era o ponto mximo a que poderia concordar uma mentalidade popular ainda ligada ao que Roger Barny chama de o
587 588

WALTER, Grard. Robespierre. Paris, Gallimard, 1961. T. I, p. 65. Ver infra, p. 198 em diante. 589 Nas palavras de Georges Lefebvre, todos se caracterizavam por serem // monarquistas; nem sequer contestam ao rei a iniciativa e a sano das leis, nem sobretudo a integralidade do poder executivo, especialmente a livre escolha dos ministros, o direito de paz e guerra e a concluso de tratados. Cf. LEFEBVRE, Georges. O surgimento da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 90. 590 DORIGNY, Marcel. La Rpublique avant la Rpublique. Quels modles pour quelle Rpublique? In: VOVELLE, Michel. (dir.) Rvolution et Rpublique: lexecption franaise. Paris, ditions kim, 1994. P. 109.

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tema da unidade entre o rei e seu povo, isto , o rei s pode querer o bem da nao, j que o interesse da nao e o do soberano so idnticos. Nessa mesma linha vo as argumentaes de Franois Furet, para quem a sociedade francesa do Antigo Regime permanecia no interior da legitimidade poltica tradicional: a melhor prova disso a freqncia do tema do bom rei e dos maus ministros, tpica da representao absoluta da monarquia591. Essa legitimidade tradicional ainda tinha uma grande penetrao nos momentos iniciais da Revoluo Francesa, como pode ser visto na linguagem poltica utilizada pelos revolucionrios, na qual eles preservavam de seus ataques a monarquia e o rei. Da o recurso a expresses correntes poca da crise dos parlamentos, em meados do sculo XVIII, quando quem era visado pela oposio parlamentar no era o rei, mas sim o despotismo ministerial592. Tal linguagem transparece nas prprias palavras de Maximilien, j ento deputado, para quem no se podia esquecer que a revoluo no outra coisa que o combate da liberdade contra o poder ministerial e aristocrtico593. De forma mais marcante ainda se pode ver em seus escritos pr-revolucionrios essa correlao ambgua entre reforma e monarquia, como no j citado caso Dupond. Com efeito, na digresso final desse caso, Robespierre combinava a idia sempre recorrente do bom rei com a da nation assemble, a qual aquele devia respeitar (at por ser um bom rei!).594

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BARNY, Roger. Les contradictions de lidologie rvolutionnaire des droits de lhomme (1789 -1796). Besanon, Annales Littraires de lUniversit de Besanon/Les Belles Lettres, 1993. P. 09; FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 57-8. 592 CHALINE, Olivier. Parlements. In: BLY, Lucien. (dir.) Dictionnaire de lAncien Rgime. Paris, PUF, 1996. P. 964. 593 Sur les troubles de campagnes (22 de fevereiro de 1790). OCR, t. VI, p. 244. Nas prprias palavras de Robespierre o rei cercado de aristocratas que o enganam e afastam sempre a verdade de sua pessoa. Sur la libert des sances de lAssemble Nationale (24 de julho de 1789). OCR, t. VI, p. 35. Assim como tambm para se evitar ataques figura do rei, Robespierre utilizava-se da imagem de que o despotismo ministerial falava pela boca do rei, mas no era o prprio rei. Cf. Sur les pouvoirs des commissaires du Pouvoir Excutif (29 de maro de 1790). OCR, t. VI, p. 290. 594 ROBESPIERRE, Maximilien. Mmoire pour le sieur Louis-Marie-Hyacinte Dupond, dtenu pendant 12 ans dans une prison, en vertu de Lettres de Cachet, interdit durant sa captivit, spoli par une suite vexations qui embrasse le cours de plus de 20 ans. Arras, Impremerrie de la Veuve M. Nicolas, 1789. P. 83-4. Roger Barny afirma que os escritos pr-revolucionrios de Robespierre revelam seu conformismo frente monarquia. Contudo, essa questo s seria importante se em algum momento a idia de uma transformao radical da realidade tivesse sido colocada e correspondesse a uma mudana de regime. Ao contrrio, o que todos ento falavam era em reformar a monarquia e, quanto a isso, Robespierre acompanhava a corrente. BARNY, Roger. Robespierre et les Lumires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Robespierre: de la nation artsienne la Rpublique et aux nations (Actes du colloque dArras) . Lille, Imprimerie de lUniversit Charles de GaulleLille III, 1994. P. 46.

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Assim, foi nesse contexto histrico que o jovem advogado adquiriu os principais elementos de seu pensamento poltico, o mesmo contexto em que emergiu esse projeto poltico ambguo, caracterizado ao mesmo tempo pela contestao e pela aceitao da monarquia. Luciano Guerci resume tal contexto, lembrando que
// no meio desta grande efervescncia, havia quem chegava a [faze r] contestaes radicais e quem, apesar de querer reformas incisivas, desconfiava dos mpetos inovadores ousados demais; mas, o que importa destacar aqui que, alm das divergncias e at das cises no interior do parti philosophique, era comum a vontade de debater, mudar, construir ou reconstruir: portanto, utopia e reforma nascem a partir do mesmo 595 comprometimento critico, da mesma nsia de liberdade.

Essa nsia de liberdade constituiu-se naquilo que vai ser chamado de uma verdadeira poltica de contestao596. certo que essa era uma poltica reformista, mas ela no deixava de propor alternativas que, caso fossem postas em prtica, comeariam a colocar em xeque o funcionamento da monarquia absoluta. Mesmo contemporneos, como Madame dpinay, falavam do mal irreparvel dessa poltica de contestao pblica, acrescentando que a sabedoria assim adquirida pelos povos mais cedo ou mais tarde deveria produzir rvolutions597. De todo modo, a dinmica dessa relao ambgua entre reformismo poltico e monarquia absoluta no pde ser resolvida no contexto poltico do Antigo Regime. Apesar dos homens dessa poca terem a iluso do contrrio, como era o caso do prprio Robespierre, o qual em uma passagem famosa afirmava que no se devia // mudar todo o sistema de nossa legislao; de buscar o remdio de um mal particular em uma revoluo geral freqentemente perigosa //598.

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GUERCI, Luciano. Libart degli antichi e libert dei moderni. Sparta e i philosophes nella Francia del Settecento. Npoles, Guida Editore, 1978. P. 48. 596 BAKER, Keith Michael. Au tribunal de lopinion: essais sur limaginaire politique au XVIIIeme sicle . Paris, Payot, 1993. P. 221 e segs. 597 BAKER, Keith Michael. Politique et opinion publique sous lAncien Rgime . Annales ESC, n 1, p. 41-71, janeiro-fevereiro de 1987. P.43. Essas anlises podem ser encontradas tambm no livro Au tribunal de lopinion. Paris, Payot, 1993. P. 224. Nele, Baker retoma esse artigo. 598 Discours sur les peines infamantes (1784). OCR, t. I, p. 42. Como se pode ver, o jovem Robespierre era mais um caso que confirma as palavras de Martial Guroult de que antes de 1789, a razo prtica reformista. Citado em: GRARD, Alice. A Revoluo Francesa: mitos e interpretaes. 2 ed. So Paulo, Editora Perspectiva, 1999. P. 16.

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Contudo, nos momentos iniciais da Revoluo, poderamos dizer, nos prolongamentos daquilo que j foi chamado de Revoluo Aristocrtica por Georges Lefebvre599, a tentativa de reforma da monarquia centrada no resgate do antigo papel poltico da nobreza, o que implicava na idia de valorizar os corpos intermedirios e a diviso dos poderes, foi visto pelo partido patriota como um programa inaceitvel. Este partido rejeitou em bloco tanto esse programa quanto o pensamento de Montesquieu, ao qual faziam apelo os nobres conservadores. Desse modo, os revolucionrios acabaram por estabelecer um afastamento do pensamento de Montesquieu, bem na linha das crticas que lhe foram endereadas pelas cartas apcrifas atribudas a Helvtius, nas quais se afirmava que as idias contidas no Esprito das leis tendiam a justificar a ordem estabelecida e o regime dos privilgios600. Montesquieu recebeu, assim, o rtulo de primeiro autor aristocrata601, j que os revolucionrios, tanto quanto seus adversrios, lembravam-se de sua afirmativa de que a mxima fundamental do regime monrquico era que sem monarca, no h nobreza; sem nobreza, no h monarca, mxima essa evocada, por exemplo, por um dos campees da reao, o abade Maury.602. Diante da apropriao das idias de Montesquieu feitas pela nobreza, a grande maioria dos revolucionrios delas se afastou em nome de uma monarquia constitucional que tinha por base justamente o fim das ordens e o estabelecimento da igualdade jurdica. E mais, a reforma da monarquia assim pretendida pelo partido patriota fazia apelo justamente s idias de Rousseau, indo ao encontro da defesa da soberania popular e da primazia do legislativo sobre o executivo preconizado pelo autor do Contrato social603.

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LEFEBVRE, Georges. O surgimento da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. Primeira parte. 600 STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. So Paulo, Companhia das Letras, 1990. P. 159, nota nica. Entre outras coisas, dizia o falso Hlvetius: o senhor v que, por intermedirios, eu entendo os me mbros dessa vasta aristocracia de nobres e de sacerdotes cuja cabea est em Versalhes, que usurpa e multiplica vontade quase todas as funes do poder graas unicamente ao privilgio de nascimento, sem direito, sem talento, sem mrito, e que retm em sua dependncia at mesmo o soberano, o qual ela sabe fazer querer e mudar de ministros segundo o que convm aos seus interesses. HLVETIUS, Claude-Adrien. Hlvetius a Montesquieu. In: STAROBINSKI, Jean. Opus cit. P. 185. 601 Ver infra, p. 143. 602 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, baro de. O esprito das leis. So Paulo, Martins Fontes, 1996. P. 26. Para o abade Maury, cf. OZOUF, Mona. Igualdade. In: FURET, Franois e OZOUF, Mona. Dicionrio crtico da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. P. 745. 603 BARNY, Roger. Le droit naturel l preuve de lhistoire: Jean -Jacques Rousseau dans la Rvolution. Paris, Les Belles Lettres, 1995. P. 287.

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Assim se fechava o ciclo descrito por Tocqueville, isto , o pensamento poltico rousseausta ultrapassou o de Montesquieu na mentalidade revolucionria do partido patriota, ficando as idias do autor do Esprito das leis relegadas a fundamentar as concepes polticas dos grupos conservadores604. A impossibilidade de utilizao do pensamento poltico de Montesquieu como uma ideologia revolucionria nos momentos iniciais do processo revolucionrio se refletiu tambm na diminuio de sua influncia sobre Robespierre. Como no caso de Robespierre esse distanciamento no se limitou ao debate sobre o papel das ordens e do balano dos poderes na sociedade francesa, mas estava em continuidade com suas opes polticas pr-revolucionrias, as quais podemos identificar por meio do que chamaremos sua demofilia605, devemos nos voltar para as origens polticas de Robespierre e para o papel que a relao entre a repblica das letras e o republicanismo teve em sua formao. Contudo, antes de passarmos a essa discusso devemos antes lembrar um ponto importante quanto relao de Robespierre com o pensamento de Montesquieu. Assim, se Jean-Jacques tornou-se o inspirador de Robespierre e aquele com quem ele estabeleceu uma efetiva relao de identidade e, em decorrncia disso, o carter da personalidade e o pensamento poltico de Rousseau foram fundamentais para sua formao enquanto revolucionrio606 isso no significou que, ao longo da Revoluo, Robespierre deixasse de fazer referncias diretas ou indiretas que demonstravam claramente sua admirao e respeito pelo pensamento poltico de Montesquieu. Isso no poderia ser diferente, at porque Montesquieu teve um papel central na histria do humanismo cvico francs, e no porque ele fosse republicano em qualquer sentido do termo, mas sim porque ele estabeleceu os termos com que o republicanismo foi discutido pelo resto do sculo 607. por isso que se pode falar

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Comentando a penetrao do pensamento de Montesquieu entre os revolucionrios, Barny afirma que ela apresentava uma originalidade. Se o pensamento de vrios autores do sculo XVIII, principalmente o de Rousseau, utilizado tanto pelos patriotas quanto pelos aristocratas, Montesquieu parece utilizado quase exclusivamente pelos contra-revolucionrios, que bebem [puisent] abundantemente no Esprito das leis, e so os patriotas que respondem, no para disputar o adversrio mas, salvo excees, para o condenar na qualidade de primeiro autor aristocrtico. BARNY, Roger. Montesquieu dans la Rvolution franaise. In: BARNY, Roger. Le droit naturel l preuve de lhistoire: Jean-Jacques Rousseau dans la Rvolution. Paris, Les Belles Lettres, 1995. p. 269. 605 Ver infra, p. 159 em diante. 606 BARNY, Roger. Robespierre et les Lumires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 46. Barny lembra tambm que os prprios partidrios de Robespierre faziam essa identificao. Cf. Opus cit. P. 47. 607 Essa uma concluso de Wright com base nas anlises de Judith Shklar. Contudo no um posio isolada. Alberto Burgio observa que Montesquieu transmite ao sculo das Luzes e da Revoluo uma diviso de questes e categorias que contm todo o debate poltico. Mesmo seus opositores mais firmes, os Voltaire, os Rousseau, os Robespierre, // parecem impotentes em se desenredar da rede de princpios e conceitos tramada

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de um Montesquieu dos jacobinos como se fala de um Rousseau dos jacobinos, j que o autor do Esprito das leis estabeleceu para os jacobinos os quadros da // reflexo sobre a histria antiga, sobre o modelo antigo de repblica, sobre a virtude republicana, sobre o controle da paixo608. Como exemplo dessa admirao robespierrista, pode ser citada a conhecida passagem de seu discurso Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention Nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique, na qual ele se utilizava quase literalmente da definio de democracia feita por Montesquieu no Esprito das leis609. Assim, no tocante a Robespierre, a influncia de Montesquieu no se apaga depois de 89, quando a de Rousseau torna-se dominante, a despeito da reputao detestvel daquele junto aos patriotas: primeiro autor aristocrata610. Isso fazia do advogado de Arras um caso raro entre os revolucionrios.

no Espirito. Cf. respectivamente: WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably. Stanford, Stanford University Press, 1997. P. 202. SHKLAR, Judith. Montesquieu and the new republicanism. In: BOCK, Gisela, SKINNER, Quentin e VIROLI, Maurizio. Machiavelli and republicanism. Cambridge, Cambridge University Press, 1990. P. 265-279. Alberto Burgio. Citado em: ARMANDI, Marco. (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma, Editori Riuniti, 1999. P. xxxvi. 608 Concluses de Paolo Viola. Citado em: ARMANDI, Marco. (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma, Editori Riuniti, 1999. P. 160, nota 59. 609 Para o texto de Montesquieu, cf. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O esprito das leis. So Paulo, Martins Fontes, 2000. Livro segundo, captulo II, p. 19. Para a passagem de Robespierre, ver: OCR, t. X, p. 353. Traduo brasileira: ROBESPIERRE, Maximilien de. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. P. 141 e segs. Para a citao da passagem, ver infra, p. 219. 610 BARNY, Roger. Robespierre et les Lumires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.). Opus cit. P. 50.

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II. O papel da repblica das letras e a formao do pensamento poltico pr-revolucionrio robespierrista.

1. Diferentemente de Jean-Jacques Rousseau que, conforme Starobinski, nunca teve o desejo de abandonar a si mesmo e de sair para o mundo da ao611, Robespierre pde fazer a passagem que o transformaria num revolucionrio. Houve, assim, uma tomada de posio poltica que antecedeu o processo revolucionrio, tomada de posio esta que esteve relacionada com sua formao enquanto um jovem da Era do Iluminismo e com a identidade do advogado idealista, que antes fora um estudante pobre em Paris, e o povo mido das cidades e dos campos do Artois. Variadas so as hipteses explicativas para justificar essa tomada de posio. Apesar de algumas delas serem das do tipo que George Rud chama de psico-histria612, no devemos menosprez-las. Isso por que uma poca to desprovida de testemunhos documentais como foi a da juventude de Robespierre leva o historiador, s vezes, a socorrerse de hipteses de uma outra natureza que no seja apoiada estritamente na documentao de tipo tradicional, o que nem por isso deixa de lanar alguma luz sobre o personagem estudado. Comecemos pela menos consistente dessas hipteses explicativas. ela a que para demonstrar o enraivecimento613 robespierrista pr-revolucionrio, ou seja, sua simpatia pelos mais humildes e uma possvel oposio monarquia j nessa poca, invocava supostos traos do carter do personagem, como sua inveja, sua ambio ou seu ressentimento. ela que deu origem // a imagem de um Robespierre complexado, que se tornou irascvel e invejoso devido sua juventude marcada por humilhaes614. Aqui um parnteses: o curioso de tal estilo de anlise no tanto que ela norteie verses da Revoluo como a que pode ser vista no relatrio Courtois615, mas que ela
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STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparncia e o obstculo. So Paulo, Companhia das Letras, 1991. P. 46. 612 RUD, George. Opus cit. P. 15. 613 Esse termo, muito em voga durante a Revoluo, antes de designar o grupo formado em 1792-3 por Jacques Roux, Thophile Leclerc e Jean Varlet, foi utilizado, durante a Constituinte, para caracterizar os jacobinos mais radicais. Contudo, esse qualificativo j tinha sido empregado pelo jornal Les Affiches dArtois, du Boulonnois et du Calaisis, no dia 1o de maio de 1789, para designar um dos deputados recm eleitos do Artois para os Estados Gerais, nada mais nada menos que o prprio Robespierre! Cf. OCR, t. VI, p. 21, nota 3. 614 GRARD, Alice. A Revoluo Francesa: mitos e interpretaes. 2 ed. So Paulo, Editora Perspectiva, 1999. P. 33. 615 Ver supra, p. 18.

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repercuta mesmo numa historiografia acadmica de grande envergadura, como se pode ver, por exemplo, nas anlises de Alphonse Aulard sobre o projeto de Declarao de Direitos robespierrista616. Seguindo esse tipo de anlise, Aulard apenas requentava a maneira como a legenda antirobespierrista costumava analisar a carreira pr-revolucionria de Maximilien. Desse modo, podia-se explicar suas atitudes polticas fazendo uso de passagens de sua vida, como o acaso extraordinrio que o colocou frente a frente, aos dezessete anos, com Lus XVI, em junho de 1775, quando este entrava em Paris vindo de sua sagrao em Reims. Cabia tradicionalmente a um estudante do Louis-le-Grand obviamente escolhido entre os mais brilhantes fazer uma saudao ao monarca nesse dia. Robespierre foi o estudante escolhido. a que comea o fato anedtico. Assim, o estudante pobre, em humilde prostrao diante do casal real, ainda mais que em dia chuvoso e sem obter nem mesmo um simples assentimento do monarca para sua perorao o que levou George Rud a afirmar que tal encontro poderia ter sido no momento em que se desenrolava algo mais humilhante do que recompensador617 sentiu-se rebaixado e adquiriu os germes da revolta que o fariam mais tarde um revolucionrio.618 Mesmo que concordssemos com as consideraes de George Rud, no mnimo um exagero transformar essa possvel humilhao momentnea na razo para um ressentimento contra a monarquia e numa obsesso por causas de oposio. Com mais probabilidade de acerto a participao nessa cerimnia tradicional deveria ser analisada como um momento de distino para o aluno escolhido. Numa sociedade marcada por atos de precedncia e etiqueta to formais como era a sociedade do Antigo Regime, o estudante escolhido para essa cerimnia s poderia ver sua participao como um motivo de orgulho e no de ressentimento permanente. Se assim no fosse, por que Robespierre, ao voltar para o Artois, tornar-se-ia durante toda a dcada de 1780 um frugal provedor de famlia e pacfico membro de grmios ltero-culturais, fazendo maus versos gentilmente619 nos Rosati, e aqui e ali elogiosas conclamaes ao rei.
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Ver supra, Primeira Parte, p. 77. Rud considera o episdio humilhante, mas no faz dele uma causa para futuros complexos e ressentimentos. RUD, George. Opus cit. P. 16. 618 E curioso como esse tipo de explicao ainda ecoe at em escritores atuais. Esse o caso J. L. Carr, para quem: a preparao do mrtir j tinha comeado nessa rua de Paris encharcada pela chuva e o jovem nunca esqueceu totalmente a vergonha que ele sentiu durante estes terrveis momentos de desespero. CARR, J. L. Robespierre, the force of circumstance. Londres, Constable, 1972. P. 14. 619 Expresso de Labica. Cf. LABICA, Georges. Robespierre: une politique de la philosophie . Paris, PUF, 1990.

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Por esse caminho da psico-histria, outras hipteses so mais consistentes. Jacques Goulet620, tendo em mente a infncia desprotegida de Robespierre, defende a hiptese de que foram as dificuldades afetivas (sua orfandade na prtica e a obrigao da decorrente de passar a ter responsabilidades sobre seus irmos) que aproximaram o jovem advogado dos humildes e o fizeram cultivar uma viso sentimental da justia. J Max Gallo desenvolve uma hiptese diferente em seu curioso trabalho biogrfico sobre Robespierre621. Neste trabalho, ele faz consideraes freudianas sobre a infncia do Incorruptvel, notadamente quanto a seu suposto sentimento de culpa em relao a seu pai, o que explicaria sua expectativa por martrio e seu desejo de morte. Ele parte da considerao de que como advogado Robespierre se sentia frustrado para realizar suas ambies, o que o teria levado a buscar um caminho alternativo para satisfazer tais ambies. Esse caminho acabou por se encontrar com a grande rota que o levaria Revoluo. De uma certa forma, Max Gallo acompanha as explicaes que j tinham sido avanadas por Grard Walter622. Para este historiador foi a marginalizao profissional de Robespierre, a diminuio de seu espao de trabalho, que o levou a se chocar com o meio jurdico local. Para justificar tal interpretao, G. Walter utilizou a Lettre adresse par un avocat au Conseil dArtois son ami avocat au Parlement de Douai623, na qual o jovem advogado de Arras fazia um apanhado de seus ressentimentos para com o meio jurdico local, sobretudo das dificuldades de um advogado em incio de carreira nele se estabelecer. Assim se explicaria seu desejo de almejar um lugar ao sol, pleiteando a condio de deputado na futura Assemblia dos Estados Gerais. Levado oposio, o embate robespierrista com a

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GOULET, Jacques. Le discours de Robespierre: la parole du pouvoir. Paris, 1981. P. 79. Tese de doutorado. GALLO, Max. Maximilien Robespierre. Histoire dune solitude. Paris, Librairie Acadmique Perrin, 1968. P. 56 e segs. Quanto a essas conjecturas de Gallo, como sua argumentao de que Maximilien tinha um gosto pelo sacrifcio expiatrio, nascido do remorso que ele teria de faltas cometidas contra o pai na infncia, Henri Guillemin contraps uma outra conjectura: no seria mais fcil, ao invs disso, supor em Maximilien a preocupao de reparar, junto ao seu meio de origem, por sua conduta irrepreensvel e pela demonstrao de seus mritos, a imagem deplorvel deixada por seu pai?. Mas o prprio Guillemin se apressa em afirmar que a sua hiptese tambm se situa no campo da conjectura. GUILLEMIN, Henri. Robespierre, poltico e mstico. Porto Alegre, L&PM, 1989. P. 20. 622 WALTER, Grard. Opus cit. T. I, p. 58. 623 Idem, ibidem. O significado dessa carta a mesma inquietao juvenil que est por trs do desabafo de Barnave quando, na mesma poca da Carta de Robespierre, ele dizia que todos os caminhos esto fechados. Contudo, o resultado dessa inquietao teve uma conseqncia bem diferente em cada caso, como se pode ver pelo futuro dos dois jovens, o Feuillant Barnave e o Jacobino Robespierre. Para a expresso de Barnave cf. LEFEBVRE, Georges. O surgimento da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 69.

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sociedade estabelecida de Arras foi marcado, claro, por um programa poltico que s poderia ser radical. Todavia, tanto a explicao de Max Gallo quanto de Grard Walter encontram dificuldades em se sustentar, principalmente porque Robespierre no era um advogado com poucas causas no momento em que a Frana se aproximava da grande crise revolucionria. Ele se ocupava de 13 dossis no primeiro semestre de 1789, mais ou menos a metade do que ele defendia anualmente. Como observa Mazauric624, ele tinha um futuro na elite de proprietrios rurais de Arras. A nosso ver, a tomada de posio poltica de Maximilien passa tambm e principalmente por outras explicaes. Assim, para compreendermos os caminhos que levaram o arrageois a adotar as posies que adotou preciso investigar sua condio de homem formado na Era das Luzes, a maneira como ele levou adiante o legado das influncias do movimento iluminista, suas ambigidades, e a forma como esse todo foi absorvido por um estudante que vivia de bolsa e que depois se tornou um advogado pequeno burgus com forte propenso a defender causas pouco comuns. Ao mesmo tempo, o que inegvel, esses elementos se relacionaram com seus sentimentos pessoais e seu carter. Obviamente que esses ltimos elementos so quase insondveis, dada a escassez de informaes que ns dispomos. Quanto a isso s podemos mesmo ficar no campo das conjecturas. Contudo, quanto sua carreira de homem das Luzes e como ela se relacionou com seu destino pessoal e poltico podemos caminhar por um terreno mais slido. 2. A construo da carreira pr-revolucionria e a formao do pensamento poltico do cidado de Arras625 tiveram a ver, em parte, com sua origem familiar. Como esse epteto satrico nos revela, ao fazer a associao dele com o outro cidado, o de genebra, Robespierre era natural da cidade de Arras, capital da provncia do Artois, regio junto fronteira belga. Essa cidade tinha ento perto de vinte mil habitantes. Ele era originrio de uma famlia da pequena burguesia, cujas razes remontavam ao sculo XVI e que, na poca de

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MAZAURIC, Claude. Les choix conomiques et sociaux: prliminaires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 230. 625 assim que o chamavam certos jornais contra-revolucionrios, como o Correspondence gnrale des dpartemens de France. Cf. OCR, T. VI, p. 655.

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Maximilien, j h cinco geraes tinha por ofcio a carreira dos tribunais. Foi essa tradio social e profissional que fez acrescentar ao nome da famlia a partcula nobilirquica de. Todavia, o conforto material dos de Robespierre era frgil. Durante a primeira infncia de Maximilien, as condies econmicas de sua famlia se deterioraram significativamente. A morte de sua me quando ele tinha seis anos provocou um choque profundo no seu pai, levando-o pouco a pouco a abandonar o ofcio tradicional da famlia e, por fim, a abandon-lo de vez. Esse abandono da profisso combinou-se com a deciso de partir de Arras626. Tal situao acabou levando Robespierre e seus irmos a serem entregues proteo de seu av materno e s suas tias. Nessas condies, Robespierre s conseguiu estudar graas a uma bolsa de estudos, a qual permitiu que ele fosse pensionista num dos mais tradicionais colgios franceses, seno o mais tradicional, o Louis-le-Grand. Dos onze anos at os vinte e trs, o estudante pobre627 habitou Paris, onde foi um dos mais brilhantes estudantes de sua gerao. Aps obter o grau de advogado na Universidade de Paris em 1780 e ser admitido, no ano seguinte, como praticante dessa profisso no Parlamento de Paris, singularmente preferiu retornar provncia, diferentemente de muitos de seus colegas que escolheram continuar na grande capital. Paralelo ao seu incio de carreira no Artois, relativamente bem sucedido para um advogado de pouca experincia, o futuro deputado deu seus primeiros passos na carreira de philosophe. Com efeito, assim como muitos indivduos que freqentavam os sales da capital e das provncias da Frana do Iluminismo, Robespierre foi uma espcie de filsofo diletante628. Esse caminho literrio estava profundamente imbricado com sua condio de advogado. E ele, melhor do que ningum, era consciente da amplitude poltica que o ofcio das leis havia adquirido em seu tempo. Ao rememorar sua carreira anterior Revoluo durante um dos debates da Constituinte, ele dizia que a prtica dos advogados

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Conforme Jean Massin, ele // passou a vagabundear. Cf. MASSIN, Jean. Robespierre. Aix-en-Provence, ditions Alinea, 1988. P. 12. 627 A condio social de Robespierre levou George Rud a afirmar que o que mesmo certo, e talvez mais significativo para sua futura carreira, que, desde muito cedo, ele tornou-se pessoalmente e vivamente consciente muito mais que qualquer dos outros lderes revolucionrios, com a possvel exceo de Marat do que significava ser pobre. Cf. RUD, George. Robespierre: portrait of a revolutionary democrat. Nova York, the Viking Press, 1976. P. 15. 628 Robespierre como advogado-philosophe diletante um tipo comum entre os principais revolucionrios. Este o caso tambm de Billaud-Varenne, como nos lembra Franoise Brunel. Ele como Robespierre tambm fazia parte da populao recorde de philosophes potencial. BRUNEL, Franoise. Introduction. In: BILLAUD-

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// parecia mostrar ainda os ltimos traos da liberdade exilada do resto da sociedade; que era nela que se encontrava ainda a coragem da verdade, que ousava reclamar os direitos do fraco oprimido contra os crimes do opressor poderoso; enfim, esses sentimentos generosos que no contriburam pouco para uma revoluo, que somente foi feita no governo porque 629 ela fora preparada nos espritos.

O papel dos advogados, assim como o dos homens de letras, teve uma importncia significativa no processo que levou Revoluo. Isto assim era porque uma espcie de poltica pblica, por definio, era inexistente no Antigo Regime. Na sociedade daquela poca, a poltica era um segredo do rei630 e o espao para o debate poltico com certa autonomia restringia-se, na prtica, ao tribunal e aos locais de discusso literria. Desse modo, o tribunal e a academia literria assumiram uma posio central e se intercambiaram no papel de formadores intelectuais e de educadores polticos de muitos homens durante o sculo XVIII francs. O causdico de provncia que era Robespierre foi um bom exemplo desse processo 631. Com efeito, como homem de tribunal, o futuro deputado se comportava no como um advogado que sacrificava o estilo para ganhar uma causa mas como gens de lettres que usavam o estilo para revelar enfaticamente princpios racionais632. Procedendo quase sempre a partir de uma discusso geral sobre as condies da sociedade de ento, les gens de lettres faziam da excelncia literria o meio para realizar seus interesses filosficos, como tambm para chegar verdade (jurdica). Assim, vrios casos judiciais do jovem advogado como, por exemplo, Pags, Mary Somerville, Dteuf e Dupond, esse ltimo exemplar quanto a isso, eram meios para uma discusso mais geral sobre os problemas da poca, tais como, direito da mulher, lugar do clero na sociedade e combate a certos elementos da monarquia absoluta como, por exemplo, as Lettres de Cachet. Esse aspecto do Antigo Regime foi fundamental para a formao dos futuros revolucionrios. Como chamou nossa ateno Tocqueville, no ambiente poltico das ltimas

VARENNE, Jacques-Nicolas. Principes rgnrateurs dus systme social. Paris, Publications de la Sorbonne, 1992. P. 19. 629 Sur la suppression des officiers ministriels et des avocats (14 de dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 665. 630 BAKER, Keith Michael. Politique et opinion publique sous lAncien Rgime. Paris, Annales ESC, n 1, p. 4171, janeiro-fevereiro de 1987. P. 42. 631 Como afirma Willian Doyle, Robespierre estava destinado a ser o mais famoso caso do burgus provincial de sua poca. Enquanto tal possvel repertoriar, em sua carreira pr-revolucionria, diversos elementos que compuseram a sociabilidade poltico-literria iluminista. Cf. DOYLE, Willian. The Oxford history of the French Revolution. Oxford, Oxford University Press, 1990. P. 25.

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dcadas do Antigo Regime, // a vida poltica foi violentamente comprimida na literatura //.633 Nessa questo Tocqueville parecia seguir as concluses j avanadas por Burke634 e por um dos chefes dos ultras da Restaurao, Ren Chateaubriand, o qual j havia afirmado que a Revoluo Francesa foi em parte produto dos homens de letras635. Contudo, preciso no exagerar o alcance desse tipo de explicao quando se trata dos homens que seriam escolhidos para os Estados Gerais. Quando Tocqueville afirmava que eles no tinham nenhuma idia dos perigos que acompanhavam as revolues // mais necessrias //636, preciso lembrar que a Assemblia dos Estados Gerais no era uma reunio de homens dotados de uma espcie qualquer de voluntarismo revolucionrio. Isto fica claro quando recordarmos uma passagem do discurso de defesa de Robespierre no caso Dupond (1789), j ento no contexto da convocao dos Estados Gerias, na qual ele afirmava:
E vs nao generosa, que, nica entre todos os povos do mundo, recobrou, sem revoluo funesta, sem catstrofe sangrenta, por vossa prpria magnanimidade e pelo carter virtuoso de vosso rei, esses direitos sagrados e imprescritveis //637

Ou, quando a Revoluo j parecia inevitvel, ele demonstrava seu desassossego diante da perigosa carreira que uma revoluo extraordinria vem abrir diante de ns638. Quanto inaptido para a prtica poltica que um esprito literrio parecia produzir, devemos ter ainda mais cuidados. Em relao a esse ponto devemos nos lembrar da crtica de

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JORDAN, David. The revolutionary career of Maximilien Robespierre. Nova York, The Free Press, 1985. P. 65-66. 633 TOCQUEVILLE, Alexis de. Lancien rgime et la Rvolution. Paris, Gallimard, 1952. P. 190. Edio brasileira, p. 145. Em seus Souvenirs, Tocqueville j tinha explicitado o que ele considerava como esprito literrio em poltica: // ver o engenhoso e novo mais que o verdadeiro, amar aquilo que faz um quadro interessante mais que seu carter prtico, mostrar-se muito sensvel boa interpretao e boa dico dos atores, independentemente das conseqncias da pea, pautar-se, enfim, mais pelas impresses que pelas razes. TOCQUEVILLE, Alexis de. Lembranas de 1848. So Paulo, Companhia das Letras, 1991. P. 88. 634 xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 635 Um trao distintivo de nossa revoluo, que preciso admitir a via especulativa e as doutrinas abstratas por infinitamente em suas causas. Ela foi produzida em parte por gens de lettres que, mais habitantes de Roma e de Atenas que de seu pas, buscaram trazer de volta Europa os hbitos antigos. CHATEAUBRIAND, Franois Ren de. Essai historique, politique et moral sur les rvolutions anciennes et modernes considres dans leurs rapports avec la Rvolution franaise. Paris, Gallimard (Pliade), 1978. P. 90. certo que h uma diferena importante aqui entre Tocqueville e Chateaubriand. O primeiro fez a ligao entre os literatos e sua pouca prtica dos negcios do estado, enquanto Chateaubriand fez dessa condio dos homens da poca pr-revolucionria a causa de sua defesa da liberdade antiga. 636 TOCQUEVILLE, Alexis de. Lancien rgime et la Rvolution. Paris, Gallimard, 1952. P. 190. Edio brasileira, p. 144. 637 ROBESPIERRE, Maximilien. Mmoire pour le sieur Louis-Marie-Hyacinte Dupond, dtenu pendant 12 ans dans une prison, en vertu de Lettres de Cachet, interdit durant sa captivit, spoli par une suite vexations qui embrasse le cours de plus de 20 ans. Arras, Impremerrie de la Veuve M. Nicolas, 1789. P. 75.

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Ernst Cassirer feita a Hyppolyte Taine. De uma certa forma, Taine, em sua crtica aos filsofos iluministas, foi um continuador das questes levantadas por Chateaubriand e Tocqueville639. Assim, Cassirer mostrou que
// em As origens da Frana contempornea, Taine censura aos enciclopedistas terem sido doutrinrios ingnuos, terem elaborado seu sistema poltico e social de um modo puramente sinttico e se lhe aferrarem sem levar em conta a realidade histrica concreta.

Para Cassirer, ao contrrio do que pensava Taine, ningum pode contestar nesses pensadores a sede de realidade, a flexibilidade de seu sentido das realidades. Todos querem colaborar espontaneamente, todos compreendem como longo, penoso e difcil o caminho que vai da teoria prtica640. A anlise do filsofo alemo citado foi corroborada pelos trabalhos de um dos especialistas recentes mais importantes sobre a histria do Antigo Regime, o historiador Steven L. Kaplan. Segundo as pesquisas desse historiador, para muitos homens da Revoluo uma experincia literria no significou uma deriva em direo abstrao pela reduo do poltico literatura
641

. Ao contrrio, uma enorme documentao mostra que muitos

intelectuais do sculo XVIII, profundamente engajados nos negcios pblicos e cotidianos, eram em vrios domnios homens de conhecimento e experincia 642. Essa avaliao pode ser

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ROBESPIERRE, Maximilien. Ddicace aux mnes de Jean-Jacques Rousseau. In: ROBESPIERRE, Maximilien. uvres de Maximilien Robespierre. Paris, Phnix ditions, 2000. T. I, p. 212. 639 Quanto Tocqueville, conforme J. P. Mayer, sua influncia sobre Taine evidente. Ver sua introduo ao O Antigo Regime e a Revoluo. Edio brasileira, p. 34. 640 CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas, Editora da UNICAMP, 1997. P. 353-4. Como se v, h muito j havia uma resposta antecipada as concluses, no mnimo apressadas, de Franois Furet, que numa passagem afirmava que a confuso de papis, a instalao dos homens de letras em uma funo da qual eles exercem apenas uma parte imaginria, ou seja, o magistrio de opinio, com excluso de qualquer prtica do poder, tem sua ressonncia sobre a prpria ditadura poltica. Os homens de letras tendem a substituir o fato pelo direito, o equilbrio dos interesses e a avaliao dos meios pelos princpios, e o poder e a ao pelos valores e os fins. Privados de verdadeiras liberdades, os franceses lanam-se liberdade abstrata; incapazes de experincia coletiva, sem meios de experimentar os limites da ao, orientam-se sem saber para a iluso da poltica. FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 52-53. Grifos no original. 641 KAPLAN, Steven L. Adieu 89. Paris, Librairie Arthme Fayard, 1993. P. 754. Lembremos que Kaplan especialista no Antigo Regime francs, autor de um livro recente, mas j clssico, sobre o problema do abastecimento naquela poca, Les ventres de Paris; pouvoir et approvisionnement dans la France dAncien Rgime. 642 Idem, ibidem. Cf. tambm: TACKETT, Timothy. Par la volont du peuple: comment les dputs de 1789 sont devenus rvolutionnaires. Paris, Albin Michel, 1997. P.74-6. Timothy Tackett recidivista. Em um artigo anterior ao livro citado, ele j tinha se pronunciado a favor de uma atitude muito cuidadosa, seno oposta, ao papel da idia da pouco experincia do conjunto dos homens da Constituinte como elemento explicativo do processo revolucionrio. Ver seu artigo: The constituent assembly. In: BAKER, Keith Michael. The French Revolution and the creation of modern political culture . Oxford, Pergamon, 1994. Vol. 4, The Terror, p. 3954. Mesmo um estudioso que partilha das principais teses de Franois Furet sobre a Revoluo Francesa, Patrice

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estendida a Robespierre, ao menos para que no cometamos o erro, como observava Alfred Cobban, de exagerarmos o carter abstrato de seu pensamento poltico643. De qualquer forma, foi como aprendiz de philosophe que Robespierre se inseriu no contexto das Luzes e deu os primeiros passos na carreira que o levaria aos Estados Gerais. Em seu caso, militantismo judicirio propiciava tanto quanto os sales literrios o desenvolvimento de uma filosofia diletante. Assim, no mesmo debate da Constituinte lembrado acima, ele mesmo se dava conta dessa relao:
Assim, vs deformais, vs degradais funes preciosas para a humanidade, essencialmente ligadas ao progresso do esprito pblico, ao triunfo da liberdade; assim vs fechais [os cargos judiciais a] essa escola de virtudes cvicas em que os talentos e o mrito aprendiam, defendendo a causa do cidado diante dos juzes, a defender um dia aquela do povo entre os legisladores.644

Dessa forma, por meio de seus escritos acadmicos e de suas memrias como advogado, Robespierre se inseriu numa das caractersticas de fundo da vida intelectual e social do sculo XVIII, a saber, a passagem da questo poltica como coisa privada (particular ao monarca e a seus funcionrios) para a poltica como questo pblica645. Foi nesse contexto que comeou a derrocada da idia de que o que era pblico restringia-se instituio da monarquia e o aparecimento, num crescendo, do debate pblico sobre as questes que diziam respeito sociedade e ao Estado. Essa era uma verdadeira poltica de contestao, como afirma Keith Michael Baker646, que fez com que o que at ento podia ser chamado de esfera privada adquirisse a condio de esfera pblica. Foi no contexto dessa poltica de contestao que se construiu o processo de transformao do pensamento do literato de provncia para o revolucionrio e que nos permite constatar as diferenas e continuidades existentes entre os contedos pr-revolucionrios robespierristas com os contedos do seu pensamento poltico durante o processo revolucionrio.

Gueniffey, concorda em grande parte com as concluses de Kaplan e Tackett. Ver seu livro: La politique de la Terreur. Essai sur la violence rvolutionnaire. Paris, Fayard, 2000. P. 104-106. 643 COBBAN, Alfred. Aspects of the French Revolution. Londres, Cape, 1968. P. 143. 644 Sur la suppression des officiers ministriels et des avocats (14 de dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 666. 645 Assim, nas palavras de Roger Chartier, contra a arte // do segredo, o conceito de opinio pblica apela transparncia que deve assegurar a visibilidade das intenes. CHARTIER, Roger. De lAncien Rgime la Rvolution: Le Sacre de lOpinion. In: Le Monde de la Rvolution. Paris, N 01, jan. de 1989. P. 17-18. 646 BAKER, Keith Michael. Au tribunal de lopinion: essais sur limaginaire politique au XVIIIeme sicle . Paris, Payot, 1993. P. 221 e segs.

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3. Foi no contexto dessas peculiaridades polticas da monarquia absolutista francesa que se produziu a formao de Robespierre. Durante a segunda metade do sculo XVIII se a repblica647 francesa era uma monarquia cuja poltica continuava sendo o segredo do rei e as estruturas polticas pareciam se modificar muito lentamente, o mesmo no acontecia na repblica das letras, na qual, mesmo que imaginariamente, podia-se construir um debate poltico. Era como se os sditos de Lus XVI no conseguindo se tornar verdadeiros cidados no dia a dia da repblica, ao menos tentavam ter o direito de cidade nessa outra repblica, a das letras. Para um jovem como Robespierre, cheio de veleidades literrias, a atrao da repblica das letras era irresistvel. Do tribunal de Arras, local em que ele ganhava a vida, Robespierre fez uma tribuna para suas discusses sobre as questes recorrentes do dia a dia da sociedade da segunda metade do sculo XVIII. Ele demonstrava estar, assim, preocupado com outro tribunal, o tribunal da opinio. Desse modo, muito antes de fazer um de seus mais belos discursos, o seu conhecido discurso sobre a liberdade de imprensa de 9 de maio de 1791, no qual ele afirmava que a opinio pblica era o nico juiz competente das opinies privadas, o nico censor legtimo dos escritos648, o fenmeno da opinio pblica j era para ele uma preocupao. Essa preocupao com a opinio pblica explica, ao menos em parte, seu interesse pela publicao e com a importncia da imprensa. No sendo um escritor profissional, como j eram antes da Revoluo Jacques Pierre Brissot ou Jean-Paul Marat, o jovem Robespierre no deixava de tornar pblico seus escritos como um bem sucedido advogado de provncia (foi mesmo pioneiro ao publicar, contra os hbitos correntes, seus textos profissionais antes mesmo da causa por ele defendida ter sido julgada649) e de participar de sociedades literrias, o que era ento muito comum. Ao longo da dcada de 1780, ele produziu uma srie de escritos de juventude. Nesses textos, Robespierre revelou ser um advogado que se caracterizava por uma advocacia militante. Contudo, essa advocacia militante tinha um carter poltico particular, medida que

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Ver prximo captulo. Discours sur la libert de la presse (9 de maio de 1791). OCR, t. VII, p. 326. 649 WALTER, Grard. Robespierre. Paris, Gallimard, 1961. T. I: La Vie. P. 53.

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seus casos650, muitas vezes, eram casos que o obrigavam a enfrentar os padres estabelecidos da sociedade de ordens, freqentemente ao lado dos menos favorecidos. Esses textos de juventude podem ser divididos basicamente em memrias de advogado e discursos destinados s academias literrias. Neles no h, em geral, grande originalidade de contedo651. Entretanto, o mais importante o que eles revelam ao historiador, isto , a insero de Robespierre no contexto intelectual do Sculo das Luzes e sua aproximao ou afastamento de certos elementos do programa poltico e social do movimento Iluminista. E aqui devemos fazer uma ressalva importante para o entendimento do pensamento poltico posterior de Robespierre. Sua aproximao com o movimento iluminista no fez dele certamente um liberal, j que no devemos tomar esse movimento como exclusivamente um processo de formao da mentalidade burguesa. Para compreendermos melhor as opes robespierristas, preciso romper com uma certa tradio de ver o Iluminismo como uma crua ideologia de classes 652 e que, enquanto tal, o movimento das Luzes seria um estgio fundamental da nascente sociedade capitalista, por aportar seus imprescindveis contedos culturais e filosficos. Entre utopia e reforma, afastamento e aproximao do status quo dominante, o pensamento poltico iluminista caracterizou-se por uma complexidade dificilmente contida em anlises to esquemticas. E, no caso do robespierrismo, podemos dizer que a influncia exercida pelo movimento iluminista sobre ele foi sem dvida de uma natureza particular e mais radical, influncia que se exerceu com base no que naquele movimento havia de uma tradio republicana, e essa ltima, bem entendido, via JeanJacques. Assim, no incio de sua carreira como advogado ele era um pretendente a philosophe envergando a roupagem tpica do homem das Luzes em seus escritos. Neles, Robespierre passou por alguns dos temas recorrentes do Iluminismo: a crtica dos hbitos dos religiosos, a defesa do progresso frente superstio, o reformismo social e, o que era um lugar comum

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Pelo menos os seus casos mais notrios, como os casos Dteuf, Mary Sommerville, Vissery de Boisvall (o caso do pra-raios) e Dupond. 651 Porm, o jovem advogado no deixava de enunciar algumas idias bem curiosas, como por exemplo, a criao de uma espcie de penso alimentcia para os filhos naturais. Cf. MERIAUX, R. Introduo. In: ROBESPIERRE, Maximilien. Droits et tats des Batrds. Arras, Acadmie des Sciences, Lettres et Arts, 1971. P. 81, nota 43. 652 Ver as distines entre modernidade e capitalismo e entre esse ltimo e Iluminismo feitas em: WOOD, Ellen Meiksins. A origem do capitalismo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001. P. 120.

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poltico, a crtica ao despotismo. Em especial, chamou a ateno dos historiadores a atuao de Robespierre em dois casos particulares: o caso do paratonnere e o caso Dteuf. A oportunidade de defender os valores tpicos do Iluminismo, como a afirmao do progresso, por exemplo, aparece j no princpio da carreira de Robespierre. Em 1783, Robespierre atuou no caso do paratonnere (pra-raios) de Saint-Omer, um pioneiro espcime do tipo do julgamento do macaco653. Esse caso causou certa sensao na regio do Artois e teve mesmo repercusso em Paris, onde, por meio do jornalista P.-L. de Lacretelle, foi parar nas pginas do prestigioso Mercure de France. A histria comea quando um advogado de Saint-Omer, na regio de Arras, o senhor de Vissery de Boisvall, colocou, em maio de 1780, um condutor eltrico sobre a chamin de sua casa. Passado um ms da instalao do pra-raios, o bailli local comunicou ao advogado que alguns moradores, tomados pelo pnico diante de instrumento to inslito, tinham feito uma reclamao formal contra sua instalao. A deciso da justia foi favorvel aos reclamantes. Porm, o senhor de Vissery apelou. Nesse nterim, ele foi obrigado a retirar o pra-raios. Contudo, fazendo uso de uma manobra, isto , diminuindo o tamanho da ponta do condutor, ele continuou a mant-lo. Foi nesse momento que Robespierre entrou em cena. O senhor de Vissery contratou o advogado Buissart que, por sua vez, encarregou Robespierre de fazer a defesa oral do caso. A exposio oral feita por Robespierre pode ser considerada uma pea caracterstica da defesa do progresso, da positividade do conhecimento cientfico frente tradio. Alm disso, uma curiosidade atrai nossa ateno nesse caso. Ele foi um dos acasos extraordinrios da histria ao reunir, anos antes de 1789, figuras como Condorcet, Marat e o prprio Robespierre, que ocuparo a cena principal durante a Revoluo.654 O discurso de defesa do senhor de Vissery que Robespierre foi encarregado de pronunciar estava povoado de digresses cujos contedos valorizavam as cincias e o progresso, assim como a valorizao

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O chamado Scopes monkey trial, ocorrido em 1925, foi o julgamento de um professor (John Scopes), do sul do Estados Unidos, acusado de ensinar a origem do homem por meio da teoria da evoluo das espcies de Charles Darwin e no pela teoria criacionista. Esse julgamento virou filme, Inherit the wind, dirigido por Stanley Kramer em 1960 e com Spencer Tracy no papel principal. 654 O julgamento, que provocou um passageiro mas intenso interesse, revelador no s porque reuniu, alguns anos antes da Revoluo, os nomes de Marat, Condorcet, Franklin e Robespierre, mas tambm porque animou um debate sobre o Iluminismo e religio, cincia e progresso humano, que iria continuar at a morte de Robespierre //. HUET, Marie-Hlne. Mourning glory: the will of the French Revolution . Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 1997. P. 12.

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das luzes frente ignorncia. Nesse discurso afirmava-se que o ignorante despreza as cincias; o homem frvolo apenas as olha como objetos de divertimento; o homem que pensa v nelas a fonte da felicidade da humanidade e da grandeza dos imprios655. O mesmo contexto do Iluminismo esteve por trs de outro caso defendido por Robespierre: o caso Dteuf656. Franois-Joseph Dteuf, arteso em Marchiennes, foi acusado de roubo por um religioso, Dom Brogniard, da abadia dAnchin. Na verdade, o monge buscou com essa acusao dissimular sua prpria malversao das rendas da abadia, as quais ele tinha a funo de recolher. Ao mesmo tempo, ele se vingava do arteso, j que sua irm tinha rejeitado suas pretenses sentimentais. Essa acusao causou srios problemas a Dteuf. Robespierre foi chamado para fazer a defesa do acusado. Sobressaiu de sua atuao uma ntida crtica a Igreja, mais precisamente uma crtica aos maus hbitos de certos religiosos. Robespierre tambm seguiu os caminhos literrios fora do tribunal, por meio dos concorridos concursos das academias literrias, aos quais recorriam tanto os pretendentes a philosophe do interior da Frana como tambm figuras notrias de Paris657. No foi coincidncia o fato de que foi num desses concursos que o pai intelectual do revolucionrio Robespierre, Jean-Jacques Rousseau, ganhou notoriedade, assim como o fato de que outras figuras que se tornaram importantes com a Revoluo, como Graccus Babeuf 658, deles tambm tenham participado. Sua participao nesses concursos tradicionais da poca das Luzes, no seu caso especificamente nos concursos da Academia de Metz, o jovem advogado tinha a oportunidade de manifestar as influncias tpicas que recebera do movimento iluminista, como j tinha feito em suas memrias judiciais, mas agora em textos de maior envergadura. Em 1784, Robespierre viu-se atrado em responder questo proposta pela Academia de Metz: Quelle est lorigine de lopinion qui tend sur tous les individus dune mme

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OCR, t. II, p. 144. OCR, t. II, p. 234 e segs. 657 Pouca coisa separa o pessoal da toga da minoria ambiciosa dos homens de letras e das cincias profissionais do saber, professores e bibliotecrios, para quem os concursos acadmicos um degrau em direo gloria e aos empregos. ROCHE, Daniel. Le sicle des Lumires ne Province. Acadmies et acadmiciens provinciaux 16801789. Paris, EHESS, 1978. T. I, p 338. 658 Curiosamente Babeuf participaria em 1785 do concurso promovido pela academia que Robespierre viria a presidir, a Academia de Arras. E no poderia ser outro o tema do concurso: Est-il utile en Artois de diviser les fermes ou exploitations des terres? Dans le cas de laffirmative, quelles bornes doit-on garder dans cette division? Ver: LEGRAND, Robert. Babeuf et ses compagnons de route. Paris, Socit des tudes Robespierristes, 1981. P. 05.

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famille une partie de la honte attach aux peines infamantes que subit un coupable? A resposta foi dada em seu Discours sur les peines infamantes659, seu primeiro texto de flego. Nele, ele propunha modificaes para uma questo polmica daquela poca, isto , a condenao moral que recaa sobre os parentes de um condenado a uma pena infamante660, o que lhe permitia realizar uma digresso ampla sobre a sociedade do Antigo Regime. Em seu Discurso, o jovem advogado traava uma srie de mudanas necessrias nos aspectos da lei, como a proibio do confisco dos bens dos criminosos que so condenados s penas infamantes. E, como era comum no debate poltico daquela poca, acabava-se passando a uma discusso reformista, com tons marcadamente ingnuos, pois se questionava certos problemas que s uma modificao de fundo da sociedade do Antigo Regime poderia resolver. Isso fica claro no caso das penas infamantes, j que sua discusso levava inevitavelmente a questionar a punio diferenciada por origem social, o que o jovem advogado fazia explicitamente pedindo uma pena igual para todos. Esse tipo de discurso reformista se situava no interior da j mencionada ambigidade do Antigo Regime661, j que ele nem de longe pretendia ser uma crtica monarquia. Ao contrrio, uma das solues propostas por Robespierre para acabar com a condenao moral dos familiares dos acusados s penas infamantes constitua-se no apelo ao prprio monarca. Esse poderia distinguir os parentes de algum condenado a tais penas com seu favor pessoal, ajudando assim a acabar com o preconceito que os cercava. O desenvolvimento do pensamento iluminista robespierrista continuou em seu texto sobre os Droits et tats des btards, sua segunda tentativa nesses concursos. O mesmo princpio reformista (ou iluminista, na verdade) funcionava como pano de fundo nesse texto. De passagem, podemos lembrar o quanto esse texto talvez fosse uma evocao afetiva dolorosa para o prprio Maximilien, o qual foi concebido fora de uma unio matrimonial regular662. Seu discurso tratava de um problema que tinha uma natureza dupla: moral e social.

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Discours sur les peines infamentes (1784). OCR, t. I. Eram penas infamantes aquelas que se caracterizavam por um supliciamento pblico, como, por exemplo, a roda. Esse tipo de pena tinha por conseqncia a infmia maior de tornar aquele sobre quem ela recaa incapaz de pleitear algum cargo pblico e de ser ouvido como testemunha. Cf. LAINGUI, Andr. Peines. In: BLY, Lucien. (dir.) Dictionnaire de lAncien Rgime. Paris, PUF, 1996. P. 977. 661 Ver supra, p. 137. 662 Seu pai oficializou o casamento com sua me cinco meses aps ela ter engravidado.

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Dessa forma, ele se reportava situao das moas que engravidavam quando solteiras e a questo da condio dos filhos naturais. Ele preconizava algumas solues: estabelecimento de locais adequados para o recebimento dos filhos naturais, punio pecuniria aos pais que abandonassem seus filhos por meio de uma multa, criao de uma espcie de censura pblica aos mesmos, assim como o incentivo ao casamento como forma de prevenir e de resolver o problema dos filhos naturais. Assim, com o aproximar dos ltimos anos da dcada de 1780, o jovem advogado caminhava a passos largos para a construo de um pensamento poltico que se, de qualquer forma, o situava no interior do movimento iluminista, o era no por esposar os princpios mais comuns desse movimento. A absoro dos contedos polticos de contestao da ordem estabelecida do Antigo Regime desenvolvidos por esse movimento levaram o jovem advogado a construir um programa poltico no extremo do espectro poltico das Luzes, j que ele vai dar os passos necessrios para a construo de uma poltica popular. o que veremos a seguir.

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III. A demofilia de Robespierre ou o quest-ce que le peuple robespierrista

O povo que seguia Robespierre era o povo. Robespierre encarnava o ser abstrato, o Povo, criado pela Revoluo em face do ser vivo, o homem // O povo portava em suas entranhas esse feto, o futuro. Robespierre foi seu precursor. Ele amava Robespierre como a manh ama sua estrela //. Victor Hugo663.

1. O abade Sieys escreveu, s vsperas da Revoluo, um opsculo que ficou famoso, o seu Quest-ce que le Tiers tat? Nesse escrito, um panegrico com todas as letras do Terceiro Estado, ele trazia tona a natureza desigual da sociedade de ordens do Antigo Regime e colocava na ordem do dia os conflitos sociais do Terceiro Estado com os estados privilegiados. O desvelamento das contradies daquela sociedade comeava j pela resposta dada questo colocada no ttulo, o que o Terceiro Estado?, qual, sem tergiversaes, ele respondia: o Terceiro Estado tudo664. Enquanto o conjunto dos extratos mdios da sociedade francesa durante o processo de convocao e de estabelecimento dos Estados Gerais parecia atribuir-se a representatividade da nao, ao identific-la ao Terceiro Estado e, como se veria logo a seguir, burguesia, outro foi o caminho robespierrista. O pensamento poltico pr-revolucionrio e revolucionrio robespierrista como que reverteu os contedos do texto do abade Sieys apresentando, por assim dizer, uma nova questo: quest-ce que le peuple? A resposta dada a essa questo que imaginamos foi concretamente constituda de um duplo movimento: ele respondia s pretenses da nobreza665 e mais tarde da burguesia, de representar a nao, negando-lhes essa condio por constiturem uma aristocracia de sangue e de dinheiro, o que contrariaria o

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Citado em COQUARD, Olivier. Marat e Robespierre: le rencontre de deux politiques rvolutionnaires . In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Opus cit. P. 166. 664 SIEYS, Emmanuel-Joseph. Ecrits politiques. Bruxelas, ditions des Archives Contemporaines, 1994. P. 117. 665 Aqui devemos ter em mente que Robespierre confrontou-se com os membros da nobreza do meio judicirio de Arras no momento em que pleiteava uma vaga para os Estados Gerais, como pode ser visto na redao do Caderno de Queixas dos savetiers mineurs e em seu Apelo nao artesiana. Ver a seqncia.

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princpio da vontade geral e, como afirma Edna Lemay, acordava o primeiro lugar ao povo e sua vontade no sistema poltico666. Assim, em seu Discours sur les troubles de campagnes de fevereiro de 1790, ele fazia as distines que norteariam sua concepo democrtica, ao mostrar uma Frana dividida em duas partes, o povo e a aristocracia667. Mas ele faria essa distino de forma mais explcita em seu Discours sur lorganization des gardes nationales. Se, por um lado, aqueles que defendiam a excluso do povo da guarda nacional, isto , a quase totalidade da Constituinte, nobres e burgueses inclusos, eram injustos e corrompidos; por outro, o povo era // bom, paciente, generoso // o interesse, o desejo do povo aquele da natureza, da humanidade. Continuando nessa dicotomia, ele afirmava que o desejo dos ricos e dos homens poderosos era o // da ambio, do orgulho, da cupidez, das fantasias mais extravagantes, das paixes mais funestas felicidade da sociedade. J o do povo era o interesse geral 668. O robespierrismo contraps-se, assim, noo de burguesia-nao, comum a diversos grupos conservadores e moderados da Revoluo. Essa noo pode ser vista tanto nos monarquistas constitucionais, como Barnave, o qual, defendia que o processo de enriquecimento do povo, entenda-se burguesia, elevava seu poder669; quanto tambm nos republicanos moderados, como os girondinos, os quais afirmavam a diferena entre o povo e a plebe, ou seja, ricos e pobres, levando-os a condenar a pretenso destes ltimos em controlar o poder670. Desse modo, uma das diferenas centrais entre o robespierrismo e as outras correntes polticas revolucionrias era que para o robespierrismo o regime poltico que deveria ser adotado na Frana se ancorava numa viso radicalmente diferente de quem poderia representar a nao. Na medida em que esse regime tinha por base um legislativo democrtico, essa representao deveria caber ao povo-nao e, no processo de evoluo do

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LEMAY, Edna Hinde. Une voix dissonante lAssemble Constituante: le proselytisme de Robespierre. AHRF. a. 53, n 245, p. 390-404, 1981. P. 397. 667 Sur les troubles des campagnes. OCR, t. VI, p. 239. 668 Discours sur lorganization des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, P. 625. 669 Conforme Pasquale Pasquino, Barnave concebia que // o direito de sufrgio deveria ser atribudo classe mdia que possui a uma s vez s luzes, o interesse pela coisa pblica e a independncia de fortuna. PASQUINO, Pasquale. Sieyes et linvention de la constitution en France. Paris, ditions Odile Jacob, 1998. P. 51. Barnave desenvolveu esses argumentos no livro que escreveu quando estava preso e aguardava sua execuo. Cf. BARNAVE, Antoine Pierre Joseph Marie. Introduction la Revolution Franaise. Paris, Armand Colin, 1960. Escrito originalmente em 1793, teve sua 1 edio em 1843. 670 Ver: JAUME, Lucien. Le discours jacobin et la dmocratie. Paris, Fayard, 1989. Pg. 71.

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robespierrismo, ele viria mesmo a defender de forma original que a representao da nao cabia ao povo-classe671. Essas convices foram fruto da aproximao do jovem advogado, por meio de uma advocacia popular, das reivindicaes do povo mido arrageois, como se pode constatar no incipiente contedo ideolgico de suas memrias jurdicas, assim como seus textos claramente polticos como o Caderno de Queixas dos Sapateiros Menores e seu apelo nao artesiana. Desse modo, a famosa passagem em que ele afirmava: eu no sou nem corteso, nem moderador, nem o tribuno, nem o defensor do povo; eu mesmo sou povo672, foi apenas o paroxismo de uma tomada de posio feita j h bastante tempo. Nos utilizaremos para caracterizar essa tomada de posio poltica pr-revolucionria em defesa do povo e de uma agenda poltica popular da expresso demofilia, cujo significado, simpatia pelo povo, expressa bem tal tomada de posio. Isto porque ela se caracterizava por um pensamento poltico ainda informe, que no era um pensamento poltico democrtico ou republicano-democrtico bem elaborado, como se veria, logo a seguir, durante a dinmica inicial do processo revolucionrio. Ademais, suas convices polticas populares antes da Revoluo eram antes de tudo um sentimento mais do que um projeto poltico, sendo que sua simpatia pelos pobres nessa fase de sua vida poderia ser qualificada de forma mais pertinente ainda como uma evidncia do corao673. Retomemos a seguir o trajeto dessa tomada de posio. 2. Em meio aos primeiros poemas apresentados pelo recente integrante da sociedade dos Rosati674, corria ento o ano de 1787, os quais a posteridade considerar sem maior valor literrio, um chama a curiosidade de quem busca estudar a gnese do pensamento poltico robespierrista:

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As expresses em itlico so de: LABICA, Georges. Robespierre: une politique de la philosophie. Paris, PUF, 1990. P. 29. 672 Le defenseur de la Constitution (primeiro nmero). OCR, t. V, p. 39. 673 BARNY, Roger. Robespierre et les Lumires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 48. 674 Uma espcie de grmio literrio do qual Robespierre era scio.

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O nico tormento do justo, em sua hora derradeira,/E o nico que ento me difamaria,/ ver, ao morrer, a plida e sombria inveja/destilar sobre minha face o oprbrio e a infmia,/De morrer pelo povo e de ser por ele odiado.675

A poesia parecia, assim, confirmar nesse momento da carreira do jovem advogado uma viso poltica que ele j tinha comeado a desenvolver em suas memrias de advogado e em seus discursos acadmicos. Com efeito, alguns anos antes de escrever esse poema, Robespierre j comeara a trilhar um caminho que provocaria uma mudana profunda em sua carreira. Esse caminho o levaria a trocar uma posio importante no meio social e profissional da principal cidade do Artois devemos nos lembrar que Maximilien tinha sido nomeado juiz na Sala Episcopal de Arras, com a idade de 24 anos676 por uma posio marginal a esse mesmo meio. Assim, quando ele escreveu o poema citado acima o qual, se atentarmos bem para as circunstncias do 9 do termidor, vemos nele tons premonitrios677 em que ele manifestava a sua apreenso de ser odiado pelo povo, ele j tinha marcado sua carreira por associar-se a causas que revelavam uma aproximao com o menu peuple artesiano e a construir um dos traos de sua carreira poltica mais celebrados ou atacados pela historiografia robespierrista, conforme a inclinao ideolgica de cada estudioso, aquilo que chamamos sua demofilia. Sua carreira como escritor de provncia e como postulante a uma posio poltica no seio da sociedade provinciana tiveram nessa aproximao com os grupos populares sua faceta mais importante, j que por ela que ns podemos perceber uma verdadeira continuidade entre o jovem advogado e o futuro revolucionrio. E com base nessa continuidade, podemos perceber tambm a construo do republicanismo robespierrista. Desse modo, da demofilia democracia, Robespierre deu um passo natural. Como indicador da construo da mentalidade democrtica robespierrista so de fundamental importncia os contedos dos seus escritos de 1788-9, tais como: o Cahier des Cordonniers Mineurs (Caderno dos Sapateiros Menores), seu apelo la nation artsienne sur la necessit de rformer les tats dArtois e sua memria judicial do caso Dupond. Deve-se

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OCR, t. I, p. 246. [Le seul tourment du juste, son heure dernire, /Et le seul dont alors je serai dchir,/Cest de voir, en mourant, la ple et sombre envie/Distiller sur mon front lopprobre et linfamie,/De mourir pour le peuple et den tre abhorr.] 676 Cargo de importncia no seio do ambiente judicirio da provncia na poca do Antigo Regime.

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ressaltar que os dois primeiros escritos tm grande importncia para rastrearmos a posio poltica do jovem advogado, j que eles so fruto de seu esforo para se eleger aos Estados Gerais e tambm pelo fato de que esses foram seus primeiros textos genuinamente polticos no sentido de luta poltica e que no tinham nem destinao judiciria nem acadmica. Assim, sua posio de philosophe diletante e sua dedicao a causas de oposio e mesmo populares produziram uma evoluo lgica em suas atitudes e idias polticas, o que se combinou com uma aproximao com o setor mais pobre da populao do Artois e o incipiente desenvolvimento de uma preocupao com a igualdade poltica. Como afirmamos mais acima, a rota profissional de Robespierre encaminhou-se para uma posio marginal no meio jurdico do Artois. Sem chegarmos a afirmar, como o fez sua irm, que ele tinha se tornado o // sustentculo dos oprimidos e o vingador da inocncia678 e, por causa disso, aquele que os privilegiados evitavam cada vez mais, o certo que a marginalizao do jovem advogado pode ser atestada por sua excluso das conferncias jurdicas locais para discutir as questes levantadas pela convocao dos Estados Gerais em Arras679. Essa excluso o levaria a escrever sua Lettre adresse par un avocat au Conseil dArtois son ami avocat au Parlement de Douai680. Foi no contexto dessa marginalizao que ele escreveu seu apelo la nation artsienne sur la necessit de rformer les tats dArtois, impresso pela primeira vez antes da campanha eleitoral para os Estados Gerais e, no decorrer desta campanha, novamente impresso com o acrscimo de mais algumas pginas ao texto original. Como afirmava Grard Walter681, esse pode ser considerado o primeiro panfleto verdadeiramente poltico de Robespierre. Nele, ele demonstrava embrionariamente a sua to elogiada habilidade para a ttica poltica. Nessa altura, tendo j uma certa experincia em lidar com a opinio pblica, ele direcionou seu texto para um setor especfico da sociedade. Assim, ao invs de dirigir seu texto aos ministros do rei, vangloriando-se de alguma espcie de panacia que salvaria o pas, como era natural nos escritos durante o processo das eleies

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Se se puder levar em considerao afirmaes como a de Richard Cobb de que, depois do 10 de termidor, o povo francs ficou em jbilo pela morte do tirano. 678 Charlotte Robespierre. Citada em: GROSS, Jean-Pierre. galitarisme jacobin et droits de lhomme. 1793 1794. (la Grande famille et la Terreur). Paris, Arcantres, 2000. P. 23. 679 WALTER, Grard. Opus cit. T. I, p. 58. 680 Ver supra, p. 146. 681 WALTER, Grard. Opus cit. P. 60-1.

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para os Estados Gerais, ele se dirigiu populao local da provncia do Artois e, em particular, sua populao mais humilde682. Contudo, em seu apelo nao artesiana encontramos mais do que essa habilidade ttica. H nele um embrionrio pensamento poltico que se aproxima dos contedos do pensamento poltico revolucionrio robespierrista. Sobretudo porque um dos traos marcantes desse texto era a j presente dicotomia povo-aristocracia, que nascia nesse momento de aproximao com o povo mido do Artois e que ser uma idia recorrente do deputado de Arras. Alm disso, devemos ressaltar que procedendo de um caso particular, o Estado do Artois, ele manifestava implicitamente uma crtica ao Estado francs, o que Jacques Goulet veio a chamar de paralelo estrutural entre o Estado do Artois e o Estado francs 683. Com efeito, ele retomava em escala regional todos os temas que naqueles dias eram habituais nas anlises polticas francesas em escala nacional. Assim, era passado em revista uma srie de aspectos da situao poltica francesa, entre os quais no podia faltar o problema financeiro, sendo criticado o descalabro que tinha atingido as contas pblicas do Estado do Artois pela malversao dos fundos pblicos684. No entanto, o mais importante para entender seu pensamento poltico de ento era o reflexo do debate sobre a natureza dos Estados Gerais em sua anlise da futura Assemblia dos Estados do Artois. Desse modo, ele fazia uma crtica acerba Assemblia provincial, bem na linha de uma poltica popular, ao afirmar que os membros dessa Assemblia tinham se constitudo numa aristocracia, na medida em que eles estavam se reunindo sem terem sido livremente nomeados pelo povo. Em particular, ele criticava a Assemblia do Terceiro Estado do Artois, da qual os setores camponeses no participavam. No tocante ao embasamento

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Idem, ibidem. GOULET, Jacques. Opus cit. P. 147. 684 curioso como ele atacou um potentado local, M. Desmazires, possvel rival na disputa por uma vaga aos Estados Gerais, pelo fato de que este foi encarregado de escrever uma memria histrica sobre a situao do Artois. A memria no foi feita por Demaszires, mas pelos funcionrios da Assemblia dos Estados do Artois. Mesmo assim este recebeu 3.000 libras. Robespierre considerava isso um abuso no s porque o referido deputado deu seu nome a um trabalho feito por outros, mas tambm, e principalmente, porque ele recebia 10.000 libras de remunerao enquanto representante do Terceiro Estado Assemblia ordinria do Artois, o que j deveria cobrir largamente as despesas de um tipo de trabalho que j era sua atribuio realizar regularmente. ROBESPIERRE, Maximilien. la nation artsienne: sur la ncessit de rformer les tats dArtois . Paris, BNF, Documento eletrnico. Cpia fac-smile da edio do original de 1789. P. 33. Para se ter um idia do montante elevado dessa remunerao, basta lembrarmos que na poca da Revoluo uma pessoa com uma renda anual em

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filosfico desse texto, Maximilien j utilizava as noes de direito do homem e do cidado685 para defender o direito dos eleitores revogabilidade dos mandatrios686. No sem razo, portanto, que os contedos polticos do seu apelo j foram qualificados, a despeito de sua defesa da monarquia, de ter uma inspirao republicana687. Por fim, devemos salientar que nessa sua aproximao com as aspiraes populares, mais particularmente com o campesinato, ele anteciparia uma das posies que recorrentemente defenderia ao longo do processo revolucionrio, o direito terra por parte do campesinato pobre. Em seu apelo, ele advogou uma das bandeiras mais caras do campesinato do Artois, os direitos comunais688. Emerge nesse texto aquilo que j foi mencionado mais acima, a opo robespierrista por uma das vertentes da Ilustrao que nitidamente o colocava em contraposio quela que talvez fosse sua vertente dominante, a dos grupos liberais. Assim, a defesa dos direitos comunais, que ele logo retomaria durante a Constituinte, e tambm o que discutiremos ao comentarmos a seguir o Caderno de Queixas dos sapateiros menores, sua opo pelos pobres, era a manifestao, mesmo que incipiente, de suas futuras concepes de propriedade e dos direitos sociais. Do mesmo modo que o apelo nao artesiana, o texto que ele redigiu para o Cahier de Dolances dos Corps de Cordonniers Mineurs689 da cidade de Arras veio confirmar de forma definitiva a guinada que o jovem advogado tinha dado por aquela poca em sua carreira. Nesse Caderno de Queixas ele se fez porta-voz dos interesses dos mais humildes habitantes dessa cidade. Assim, nesse texto, a defesa dos interesses sociais dos sapateiros menores j prefigura as preocupaes democrticas do futuro deputado. Vo nessa direo as suas preocupaes com a misria dos cordonniers, agravada pela dificuldade em ganhar a vida numa poca de retrao econmica provocada pelos acordos comerciais com a Inglaterra e sua crtica ao despotismo dos oficiais municipais. Quanto a essa crtica, importante ressaltar que ela permite perceber claramente a incipiente

torno de 10 000 libras poderia ser considerada rica. Cf. GROSS, Jean-Pierre. Robespierre et limpt progressif. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 289. 685 ROBESPIERRE, Maximilien. la nation artsienne: sur la ncessit de rformer les tats dArtois . Paris, BNF, Documento eletrnico. Cpia fac-smile da edio do original de 1789. P. 50. 686 Idem, p. 52. 687 GOULET, Jacques. Opus cit. P. 150. 688 Idem, p. 75.

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preocupao com um contedo poltico democrtico. Com efeito, o futuro deputado afirmava que esses representantes locais eram os mandatrios do povo e no se comportavam como tais, j que eles agiam arbitrariamente contra os cordonniers mineurs, s vezes, realizando mesmo prises. Aparece, assim, um dos traos futuros do robespierrismo, isto , a delgada linha que separava em seu pensamento poltico a manifestao de uma atitude de simpatia pelo povo de uma viso social dos embates polticos. Pode-se notar isso em sua crtica das atitudes arbitrrias dos magistrados municipais frente aos sapateiros. Ele atribuiu essa arbitrariedade condio social desses trabalhadores, ou seja, sua pobreza690. Em sua ltima memria como advogado, a memria do caso Dupond691, Robespierre tratou do drama do soldado Louis-Marie-Hyacinte Dupond, que lutou em vrias campanhas no estrangeiro e que veio a desertar. Ao retornar, depois de vrios anos, sua regio natal na Frana, e como acaba acontecendo nesse tipo de situao, causou srios constrangimentos para sua famlia, sobretudo de ordem material, e, a pedido dela, foi encarcerado. Esse foi um dos ltimos casos judiciais de Robespierre (fevereiro de 1789). Sua importncia reside no tom reformista do texto (havia mesmo uma evocao positiva do rei como reformador 692) e no que esse tom permite compreender dos elementos caractersticos do pensamento prrevolucionrio robespierrista, sobretudo sua demofilia. Esse tom reformista comeava, bvio, pelo longo ttulo do texto de Robespierre que serviu para sustentar a defesa do seu cliente. Alm disso, dado o objeto de sua disputa judicial, ele tambm fazia um apelo ao rei para acabar com as Lettres de Cachet693, ao mesmo tempo em que retomava um dos seus temos favoritos, j tratado em seu Discurso sobre as penas infamantes, ao fazer uma crtica caracterstica do Antigo Regime de estabelecer diferentes formas de punio para os condenados de acordo com sua posio social 694. Nessa

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ROBESPIERRE, Maximilien. Dolances du corps des cordonniers mineurs de la ville dArras. In. PARIS, J. A. La jeunesse de Robespierre et la convocation des tats gnraux en Artois . Arras, Rousseau-Leroy Editores, 1870. 690 Idem, P. 282. 691 ROBESPIERRE, Maximilien. Mmoire pour le sieur Louis-Marie-Hyacinte Dupond, dtenu pendant 12 ans dans une prison, en vertu de Lettres de Cachet, interdit durant sa captivit, spoli par une suite vexations qui embrasse le cours de plus de 20 ans. Arras, Impremerrie de la Veuve M. Nicolas, 1789. 692 Idem, 78. 693 Instrumento pelo qual o rei determinava, entre outras coisas, o aprisionamento de algum sem julgamento, muitas vezes a pedido da prpria famlia da pessoa a ser detida. longa a lista de casos notrios de deteno por meio das Lettres de Cachet, entre eles podemos citar o de Mirabeau e o do companheiro inseparvel de Maximilien, Saint-Just. 694 ROBESPIERRE, Maximilien. Opus cit. P. 81.

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longa pea judicial, Robespierre fazia uma defesa dos setores populares e nela estava presente sua evocao sentimental e positiva do povo (to sagrado e to majestoso695), evocao feita por meio da figura do trabalhador arteso, o qual era defendido em detrimento dos homens ricos. Entremeado ao chamamento ao bom rei repete-se o embasamento filosfico que j estava presente no seu apelo nao artesiana, as idias contratualistas. Assim, ele fazia a defesa dos direitos naturais do homem, ao mesmo tempo em que ele explicitamente apelava para Lus XVI a aceitar a vontade de seu povo, no caso, o povo reunido em assemblia696, numa referncia a futura reunio dos Estados Gerais.

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Idem, p. 87. Idem, p. 83-4.

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IV. Da demofilia democracia: o encontro com Jean-Jacques

Se Robespierre teve um encontro real ou no com Rousseau ou se teria apenas vislumbrado o cidado de Genebra, enquanto este passeava em sua ltima morada em Ermenonville, como se debate at hoje, o certo que ele no deixou de ter um verdadeiro encontro intelectual com o pensamento de Jean-Jacques697. Assim, no momento em que se desencadeou o processo revolucionrio, o jovem advogado passou a ter suas idias influenciadas por aquelas do cidado de Genebra. David Jordan resume bem essas influncias:
o dbito intelectual e emocional de Robespierre para com Rousseau complexo e profundo. No entanto, sua devoo, sua lealdade e fidelidade como um discpulo devido mais a similaridades de sentimentos de personalidade e carter do que identidade de interesses filosficos. Os pronunciamentos de Robespierre so pontuados por ecos de Rousseau, parfrases de Rousseau, citaes de Rousseau, imitaes de Rousseau, os quais revelam sua familiaridade com toda a variedade dos escritos de seu mentor, incluindo o pouco lido Contrato Social.698

A explicitao clara dessa inflexo poltica foi sua Ddicace aux mnes de JeanJacques Rousseau de abril de 1789699. Nessa homenagem, ele afirmava sua dvida pessoal para com o autor do Contrato social e a clara influncia de seu pensamento naquilo que comeava a ser o centro das preocupaes robespierristas, o problema da soberania popular e da democracia. Antes de qualquer coisa bom ressalvarmos que certamente no houve nenhuma espcie de converso religiosa, algo como uma epifania. Como observa David Jordan, se a homenagem a Rousseau registra uma fundamental alterao na vida de Robespierre, nesse caso a sua foi uma converso diferente daquela mais freqentemente registrada nas vidas de indivduos excepcionais700. Na opinio do mesmo autor, tal converso teria se dado por meio de uma bookish conversion. Em contato com o livro Confessions, Robespierre teria direcionado seu

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ROBISCO, Nathalie-Barbara. Le mythe de la rencontre avec Rousseau dans la formation du jeune Robespierre. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Opus cit. P. 35-43. 698 JORDAN, David. The revolutionary career of Maximilien Robespierre. Nova York, The Free Press, 1985. P. 31. 699 A polmica que existe sobre a data exata em que teria sido escrito esse texto nos parece pouco importante para o nosso propsito. H quem afirme que ela teria sido publicada bem depois de 1789, em 1791. Contudo, o seu contedo claro quanto a revelar a tomada de posio poltica do deputado de Arras, independente de as reflexes contidas em sua Ddicace terem sido feitas no exato momento em que essa tomada de posio ocorreu, em 1789, ou de ser apenas um testemunho retrospectivo da mesma.

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pensamento para descobrir um autntico eu, marcado pela conexo entre eloqncia e virtude, uma experincia revolucionria como essencialmente espiritual e moral701. Essa explicao nos parece frgil, ao acordar a exclusividade do papel do livro citado como gerador dessa converso. Na verdade, essa converso foi o ponto de chegada de um processo de transformao que, conforme vimos, passou pela sintonia do jovem advogado com causas sociais e polticas tpicas do movimento iluminista, por sua admirao por Montesquieu e por sua demofilia. Assim sendo, esse processo deriva // de seus prprios antecedentes, seu carter e as circunstncias sob as quais ele nasceu // mais do que simplesmente por meio da leitura isolada de um livro ou mesmo da instruo recebida dos oratorianos702. Como quer que seja, sua Ddicace fundamental para compreendermos o amadurecimento de um pensamento poltico e uma tomada de posio com base na ideologia rousseausta. certo que Robespierre deixava transparecer nesse texto que ele teria se inspirado mais no exemplo do carter de Rousseau do que na sua filosofia703, j que na homenagem a Jean-Jacques ele s mencionava uma nica obra, as Confessions. Mas duas questes precisam ser lembradas quanto a isso. De um lado, no devemos nos esquecer de que na obra do cidado de Genebra os valores ticos tm um papel fundamental para a vida poltica704. Por outro lado, se correto afirmar que a quantidade de afirmaes na Ddicace mostrava acima de tudo uma ligao afetiva de Robespierre para com Jean-Jacques, a linguagem desse texto no deixava de ser menos contundente na anlise do quadro poltico da monarquia. Quanto a isso, suas palavras finais na Ddicade no deixavam dvida quando ele comentava que se assistia agonia do despotismo e o acordar da verdadeira soberania705. O que tambm certo que ainda nesse momento, como j afirmamos mais acima, o diagnstico da poltica francesa no levava Robespierre a propor uma reverso completa do regime poltico em benefcio da repblica. Contudo, ele j associava claramente a monarquia dos Bourbons, no seu formato pr-revolucionrio, ao despotismo. Esse diagnstico da

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Idem, P. 33. Idem, ibidem. 702 RUD, George. Opus cit. P. 97. 703 HAMPSON, Norman. Je veux suivre ta trace vnre: Robespierre as a reicarnation of Rousseau . In: JOURDAN, Annie (ed.). Robespierre: figure-rputation. Amsterdan, Editions Rodopi, 1996. P. 19-20. 704 Conforme Venturi, justamente sob o aspecto tico que essa tradio republicana faz apelo aos escritores do Iluminismo //, em especial, claro, Rousseau. VENTURI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo. Bauru, EDUSC, 2003. P. 140-1. 705 Ddicace aux mnes de Jean-Jacques Rousseau. In: OCR, t. I, p. 212.

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monarquia se deu no momento em que houve uma passagem fundamental em seu pensamento poltico, no tocante definio da forma de governo a ser adotada pelos franceses. Sua converso se fez tambm por meio daquilo que ele dizia ser o nico governo que convinha Frana, a monarquia popular706. Como veremos com mais vagar, Robespierre passou a fazer depois de julho de 1789 a defesa de uma espcie de governo misto, combinao de monarquia e democracia, o qual ele defenderia at a crise provocada pela fuga do rei em junho de 1791 e mesmo at s vsperas da insurreio do 10 de agosto de 1792707. Desse modo, a tomada de posio quanto forma de governo e a adoo explcita do pensamento de Rousseau fazem parte de um s movimento, a descoberta da democracia 708. E no h dvida de que para o Demstenes de Arras709, o rousseausmo veio a ser tornar algo para alm de uma espcie de ideologia caso tomssemos essa palavra por seu significado mais simples de adeso a certas idias, no caso de Robespierre, especificamente, s concepes democrticas rousseaustas. Por outro lado, em seu caso a adoo do pensamento rousseausta ultrapassou mesmo a dimenso ideolgica, tornando-se esse pensamento um parmetro para o julgamento de si e dos homens e acontecimentos revolucionrios. Num certo sentido, poderamos dizer que o contratualismo rousseausta foi para Robespierre aquilo que para o prprio Jean-Jacques foram os princpios do direito poltico, uma espcie de escala710. No caso do cidado de Arras tal escala servia para medir seus prprios atos e o dos outros no contexto da vida poltica revolucionria.

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Sur les troubles des campagnes (22 de fevereiro de 1790). OCR, t. VI, p. 265. Ele poderia ter se utilizado de uma expresso mais sofisticada criada por Louis-Flix de Winpffen, mais conhecido como baro de Wimpfen: democracia real. Comentando os partidos e sua localizao na Assemblia Constituinte, o baro dizia que esquerda do presidente se reunia o partido dominante que fez da Frana uma democracia real. Cf. CASTALDO, Andr. Les mthodes de travail de la Constituante. Paris, PUF, 1989. P. 28, nota 81. Retomaremos isso mais abaixo. 707 Como observa Luciano Guerci, a propsito do governo misto defendido por Mably observao que tambm vale para o Incorruptvel, seu leitor no era um governo misto necessariamente na acepo polbiana. GUERCI, Luciano. Libart degli antichi e libert dei moderni. Sparta e i philosophes nella Francia del Settecento. Npoles, Guida Editore, 1978. P. 109. 708 Como observa Cobban, pela poca da reunio dos Estados Gerais, a idia de soberania democrtica estava totalmente amadurecida em sua mente, como pode ser visto pela sua contribuio aos debates constitucionais. COBBAN, Alfred. Aspects of the French Revolution. Londres, Cape, 1968. P. 143. 709 Era como o jornal satrico os Actes des Aptres o chamava. BOULOISEAU, Marc. Robespierre vu par les journaux satiriques (1789-1791). Paris, AHRF., p. 28-49, n 152, 1958. P. 34-9. 710 Essa compreenso do contratualismo rousseausta deve-se a alguns autores, entre eles Salinas Fortes. Cf. SALINAS FORTES, Luiz Roberto. Paradoxo do espetculo. Poltica e potica em Rousseau . So Paulo, Discurso Editorial, 1997. Capitulo 2. A passagem do Emlio a seguinte: antes de observar, preciso criar regras para as observaes; preciso uma escala para as medidas que tomamos. Nossos princpios de direito

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Nesse sentido, a apreciao do membro da Conveno, o girondino Dominique Joseph Garat apreciao que vindo de quem vinha tanto podia ser uma condenao quanto quase um elogio, de que o sentimento que mais feria Robespierre, e do qual ele no fazia mesmo nenhum mistrio, que o defensor do povo no pode jamais se enganar711 nos propicia magistralmente visualizar o doloroso instrumento de medio que ele se utilizava. E essa avaliao de Garat pode nos indicar outro ndice da ultrapassagem do pensamento de Montesquieu pelo rousseausmo na organizao do pensamento poltico revolucionrio robespierrista, j que se Maximilien tinha grande medo de se enganar como tribuno do povo, era certamente porque ele tinha grande dificuldade em lidar com a considerao de Montesquieu de que a prpria virtude precisa de limites712. De qualquer forma, o rousseausmo de Robespierre era caracterstico. Em mais de um aspecto Maximilien se assemelhava ao autor do Contrato social. Tanto como Jean-Jacques, ele estava inserido no contexto do Iluminismo e, da mesma forma que ele, seu pertencimento a esse momento da histria da Frana era muito complexo. Assim, para compreender o lugar de Rousseau no movimento das Luzes, devemos ter o cuidado necessrio de considerar que esse movimento, como nos mostra Timothy Tackett, no era essencialmente homogneo // ele era atravessado por numerosas tradies conflituosas. Sendo que Rousseau era a matriz de uma das vrias correntes de pensamento que tais tradies produziram, aquela que privilegia a emoo, o instinto e a vontade popular, a qual contrastava principalmente com uma outra que acentua a razo e o elitismo poltico, cuja referncia maior era Voltaire713. Da o antagonismo que nascia entre essas diversas correntes com respeito a certas questes, tais como a idia de progresso ou o papel da religio. Ademais, no caso de Rousseau, sua prpria personalidade era muita particular. Havia

poltico so essa escala. Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Emlio ou da Educao. 3a ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995. P. 553. 711 Citado em: TAINE, Hippolyte. Les origines de la France contemporaine. Paris, Robert Lafont, 1986. P. 120, nota 8. Sobre Garat, ver: MURRAY, William J. Um filsofo na Revoluo Francesa: Dominique Joseph Garat e o Journal de Paris. In: KRANTZ, Frederick (org.) A outra Histria: ideologia e protesto popular nos sculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1990. P. 144-163. 712 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O esprito das leis. So Paulo, Martins Fontes, 2000. P. 166. Montesquieu teve um antecedente ilustre. Em seus Ensaios, Michel de Montaigne j dizia que () jogam com as palavras os que dizem no haver excesso na virtude porque no h virtude sem excesso. Ele corrobora sua idia citando Tcito: no sbio o sbio, nem justo o justo, se seu amor virtude exagerado. MONTAIGNE, Michel. Ensaios. 2 ed. Braslia, Editora Universidade de Braslia/Hucitec, 1987. Livro I, captulo XXX, p. 252. 713 TACKETT, Timothy. Par la volont du peuple. Paris, Albin Michel, 1997. P. 52.

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vrios Rousseaus, dentre eles era certamente o orador republicano da sociedade virtuosa com quem Maximilien mais se identificava 714. No caso de Robespierre, se ele era influenciado por algumas das caractersticas das principais correntes iluministas, por sua defesa do progresso, por exemplo e nisso, paradoxalmente, ele est mais prximo de seu futuro adversrio Condorcet do que de Rousseau715 ele se afastava delas por duas influncias marcantes do rousseausmo, seu apego a uma espcie de religio cvica e, particularmente, por sua demofilia. Quanto a esse ltimo aspecto da influncia rousseausta, Maximilien esteve sempre na contramo dos seus companheiros nos Estados Gerais e na Constituinte. Estes eram, em larga medida, herdeiros das concepes majoritrias do movimento iluminista, as quais tinham uma viso do povo basicamente negativa. Segundo Roger Dupuy716, o Iluminismo no admitia que o povo pudesse aceder plenitude da humanidade e pretender participar da vida poltica. Basta nos lembrarmos aqui das palavras do maior rival filosfico de Rousseau, Voltaire, para quem o povo permanecer sempre ignorante e brbaro; so bois que necessitam jugo, chicote e feno717. Robespierre tambm no escapou das contradies enfrentadas pelo prprio Rousseau no tocante ao princpio da soberania da vontade geral e de que a soberania reside no povo. Conforme Salinas Fortes, se o Rousseau do Contrato desenvolveu nesse livro esse princpio como ponto fundamental de sua doutrina poltica, o mesmo no se repetiria quando ele tentaria traduzir tal doutrina para situaes histricas particulares, como foi o caso de suas Consideraes sobre o governo da Polnia718. Para este ltimo ele admitiu formas mais

714

BLUM, Carol. Rousseau and the republic of vertue: the language of politics in the French Revolution . Ithaca and London, Cornell University Press, 1986. P. 35-36. 715 Ver: LABICA, Georges. Robespierre: une politique de la philosophie . Paris, PUF, 1990. P. 102, nota 1 e BESSE, Guy. Jean-Jacques Rousseau inspirateur et matre de Maximilien Robespierre. In: Mouvement ouvrier et Rpublique. Colloque dArras, octobre 1992. Lille, ditions E. M. R., 1993. P. 10. Contudo, como veremos, a noo de progresso de Robespierre se modificou em relao quela da poca do caso do pra-raios. Jamais ser a idia liberal de um progresso tcnico sem limites. O progresso, se h, ter que estar sempre ajustado ao calibre da virtude republicana. Assim, tratava-se antes do que ele explicitamente chamava de progresso do esprito pblico, mais do que do progresso material. Mais abaixo comentaremos sua idia de progresso com base em seu discurso de 18 de floreal do ano II (7 de maio de 1794). 716 DUPUY, Roger. La politique du peuple XVIII e XX. Paris, Albin Michel, 2002. P. 19. 717 Citado em Eby, Frederick. Histria da educao moderna. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1962. P. 271. 718 SALINAS FORTES, Lus Roberto. Rousseau: da teoria prtica. So Paulo, Editora tica, 1976. P. 25 e segs. Conforme Nicolet, a concepo de constituies para a Crsega e para a Polnia fez com Rousseau adotasse uma atitude pragmtica. Cf. NICOLET, Claude. Lide republicaine en France (1789-1924). Paris, Gallimard, 1994. Nota 2, p. 283-4.

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conservadores de organizao poltica e mesmo a possibilidade da representao da soberania. Quanto a Robespierre, manifesta sua desconfiana da representao
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, sua admisso

deste instituto apenas por uma razo tcnica, como algo condicionado pela tamanho da populao e pela geografia720, negando a idia de que a vontade geral possa ser representada, mas aceitando e se conformando a uma espcie de rousseausmo adaptado aos grandes estados721. Em resumo, foi com base na influncia do rousseausmo que o robespierrismo constituiu uma agenda marcada por uma srie de referncias republicanas clssicas. So dessa natureza os principais fundamentos polticos de que ele se serviu, a saber, sua relao entre poltica e fins ticos, sua definio de utilidade em termos morais, sua f na bondade natural do povo, sua crena na utilidade social da religio civil, sua nfase na igualdade, sua assero da soberania do povo e da expresso da vontade geral e seu ideal social de uma repblica de pequenos e mdios proprietrios e artesos no corrompidos pela extrema pobreza ou riqueza.722 Portanto, foi como resultado da aproximao com o rousseausmo e, por meio dele, com o legado do republicanismo clssico, que Maximilien colocou no centro de suas preocupaes uma concepo tica da poltica. Esta marcou seu pensamento revolucionrio e fez dele um republicano antes mesmo de defender o republicanismo como forma de governo, na medida que a moral do jacobinismo robespierrista // era o civismo, a virtude, a solidariedade; isto , a primazia do interesse geral sobre o particular, das satisfaes coletivas sobre o hedonismo dos indivduos723. Portanto, foi por meio do rousseausmo que Robespierre fez da virtude cvica elemento fundamental de seu pensamento poltico e entendendo a virtude cvica como a entendia o republicanismo clssico, isto , que a virtude do indivduo a mesma que a virtude do cidado724.

719 720

George RUD. Opus cit. P. 7. Se fosse possvel que todos os indivduos da nao se reunissem, sem dvida pertenceria a eles ento o direito de julgar um de seus representantes. Se a nao pudesse julgar em corpo os representantes // mas desde que ela obrigada a se fazer representar //. Sur linviolabilit des dputs (25 de junho de 1790). OCR, t. VI, p. 431 e p. 432. Grifos nossos. No captulo seguinte, voltaremos a isso com mais vagar. 721 PASQUINO, Pasquale. Sieyes et linvention de la constitution en France . Paris, ditions Odile Jacob, 1998. P. 51. 722 Esses fundamentos polticos foram elencados por George RUD. Ver: Opus cit. P. 7. 723 NICOLET, Claude. La rpublicaine en France, Etat des lieux. Paris, Seuil, 1992. P. 172. 724 LEE, D. Citado em: HELD, David. Modelos de democracia. Madrid, Alianza Editorial, 1992. P. 33.

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Assim, a noo de virtude se constituiu num objeto supremo para Robespierre725. Essa importncia acordada noo de virtude j podia ser vista em seus escritos de juventude, como em seu Droits et tats des btards, no qual podemos ver afirmaes do tipo: assim que o bem pblico sempre o fruto da justia e da moderao. E para as naes como para os indivduos, a virtude a nica rota da felicidade.726 Desse modo, da noo de virtude se desdobraram sua defesa da frugalidade e da pobreza digna e, como veremos, da diferena entre sua idia de progresso daquela professada pelas correntes liberais. Assim, com o aproximar da Revoluo boa parte da formao do advogado de Arras j tinha se produzido. O choque com a onda revolucionria resultaria na construo de um programa poltico republicano baseado na virtude clssica, programa esse que foi construdo antes do Terror e independente dele, como tentaremos demonstrar na seqncia de nosso texto.

725 726

Expresso de Hegel. Cf. Infra, p. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx ROBESPIERRE, Maximilien. Droits et tats des btards. Arras, Acadmie des Sciences, Lettres et Arts, 1971. P. 72.

191 Captulo III O republicanismo robespierrista: entre o terico da democracia e o terico da revoluo
I. Os dois momentos maquiavelianos de Maximilien Robespierre.

E nenhum esprito esclarecido reprovar quem se tenha valido de uma ao extraordinria para instituir um reino ou uma repblica. Algum pode ser culpado pelas aes que cometeu, e desculpado pelos resultados destas. S devem ser reprovadas as aes cuja violncia tem por objetivo destruir, em vez de reparar. Nicolau Maquiavel727 Invejemos aqueles que encontraram resposta para a violncia na histria. Invejemos aqueles que fingem acreditar que um privilgio sempre reduzido pela negociao, que um privilgio se deixa sempre convencer, nunca vencer. Jean-Philippe Domecq728

1. Quem quer que seja familiarizado com a leitura dos escritos revolucionrios robespierristas poderia muito bem achar bizarro situ-lo em um momento maquiaveliano, quanto mais em dois momentos maquiavelianos, como prope este subcaptulo. Isto porque certamente saberia que nos textos revolucionrios do advogado de Arras o vocbulo maquiavlico aparece com uma freqncia quase semelhante a das palavras conspirador, intrigante, hipcrita e faccioso e com a mesma conotao negativa dessas palavras. Com efeito, Maximilien no compreendia a obra de Maquiavel da mesma forma que seu mestre Rousseau, o qual foi bastante influenciado pelo autor dO Prncipe, como demonstram as diversas citaes da obra de Maquiavel no Contrato social e, em particular, sua afirmao de

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MAQUIAVEL, Nicolau. Comentrios sobre a primeira dcada de Tito Lvio. 3 ed. Braslia, Editora da UNB, 1994. P. 49. 728 DOMECQ, Jean-Philippe. Robespierre, derniers temps. Paris, Seuil, 1984. P. 91.

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que Maquiavel // fingindo dar lies aos reis, deu-as, grandes, aos povos. O prncipe de Maquiavel o livro dos republicanos729. J o advogado de Arras parecia ter somente absorvido o conhecimento da fama pejorativa da obra de Maquiavel, bem na linhagem da legenda do Maquiavel-assassino730. A explicao para que assim fosse talvez esteja naquele outro pensamento que marcou profundamente Robespierre, o de Montesquieu. O baro de la Brde parecia ver a obra de Maquiavel da mesma forma que a maior parte de seus contemporneos. Com efeito, no vigsimo captulo do livro XXI do Esprito das leis, no qual, depois de comentar sobre os grandes golpes da autoridade, Montesquieu falava do maquiavelismo como uma doena da qual os prncipes comeavam a se curar731. Assim se pode ver em diversas passagens dos textos de Robespierre o uso, em tom condenatrio, de adjetivos derivados do nome do autor dO prncipe. Em seu clebre discurso sobre a guerra de 18 de dezembro de 1791, ele qualificava a corte e o ministrio de tourbe machiavlique. De outra feita, em 13 de maio de 1792, em plena batalha com os brissotistas dentro do Clube Jacobino, ele acusou seus adversrios de estarem urdindo um systme machiavlique. Ainda uma ltima vez e literalmente a ltima vez, j que foi em seu discurso-testamento, o do 8 do termidor do ano II ele faria uso da legenda pejorativa das idias de Maquiavel, ao acusar a direo das finanas pblicas de reduzir ao desespero os pequenos credores do Estado por meio de projets machiavliques. 732 Mas a manifestao mais evidente da viso robespierrista sobre Maquiavel encontra-se em seu discurso de 5 de fevereiro de 1794. Nesse discurso, no qual ele se referia claramente a Camille Desmoulins, o advogado de Arras afirmava:
se no tivssemos um grande esforo a cumprir, se somente se tratasse aqui dos interesses de uma faco ou de uma aristocracia nova, ns poderamos acreditar como certos

729

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro terceiro, captulo VI, p. 95. Pocock chama justamente Rousseau de o Maquiavel do sculo XVIII. Cf. POCOCK, John. Le moment machiavlien. La pense politique florentine et la tradition rpublicaine atlantique . Paris, PUF, 1997. P. 516. 730 Para uma anlise dessa legenda, ver: SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno . So Paulo, Companhia das Letras, 1996. P. 157. 731 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, baro de. O esprito das leis. So Paulo, Martins Fontes, 1996. P. 394. 732 Sur le parti que lAssemble Nationale doit prendre relativement la proposition de guerre . OCR, t. VIII, p. 58. Sur le renouvellement des traits avec les Cantons Suisses. OCR, t. VIII, P. 352. Contre les factions nouvelles et les dputs corrompus (26 de julho de 1794). OCR, t. X, p. 563.

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escritores, mais ignorantes do que perversos, que o plano da Revoluo Francesa estava escrito com todas as letras nos livros de Tcito e de Maquiavel //.733

Como poderamos ento aproximar esses dois personagens centrais do pensamento e da histria poltica modernos? Ou, por outra, como poderamos situar Robespierre na problemtica poltica que a expresso criada por Quentin Skinner e sugerida a John Pocock para dar o ttulo a sua obra, hoje clebre, sobre a histria do pensamento poltico moderno, The machiavellian moment734 caracterizada pelo equilbrio de instituies no seio de uma constituio mista, pela independncia poltica dos proprietrios de terra, pela virtude cvica dos cidados que tomam parte nos negcios pblicos e que portam eles prprios as armas735, isto , toda uma problemtica centrada na idia do humanismo cvico, na virtude antiga e no republicanismo clssico? Todavia, a filiao inelutvel, a despeito do que o prprio advogado de Arras pudesse pensar. Com efeito, dois especialistas da histria do republicanismo clssico no afirmam outra coisa. Johnson Kent Wright, comentando duas crticas importantes feitas a Pocock, uma de Jan Shapiro, outra de Perry Anderson sendo que a primeira consiste na afirmao de que poucos so os autores utilizados pelo autor do The Machiavellian moment que, lidos por um ngulo diferente daquele proposto por Pocock, no poderiam ser citados como liberais e a segunda critica a falta de conexo entre a histria do pensamento poltico e a histria propriamente dita chega a afirmar que estas crticas teriam outra feio se o The Machiavellian moment estende-se seus limites para incluir o sculo XVIII francs, tendo os

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Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention Nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique. OCR, t. X, p. 351. Edio brasileira: cf. ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. P. 142. Em seu livro On Revolution, no qual ela comentava esse discurso de Robespierre, Hannah Arendt induz o leitor ao erro ao afirmar que Robespierre tinha razo quando declarava que e transcrever imediatamente a seguir apenas o seguinte trecho do discurso de Robespierre: o plano da Revoluo Francesa fora largamente descrito nos livros // de Maquiavel. Como se pode ver no trecho que citamos, a seqncia anterior da frase indica claramente que ele se recusava a acreditar que o plano da Revoluo estivesse escrito nos livros de Maquiavel e no o contrrio, como o que d a entender Hannah Arendt. O tom de Robespierre continua a ser o mesmo em relao a Maquiavel como o tinha sido em outros momentos, o de condenao. Por outro lado, o raciocnio de Arendt inquestionvel quando ela aproximava Maquiavel e Robespierre por meio da frmula amamos mais o nosso pas do que a salvao da nossa alma. Ver: ARENDT, Hannah. Sobre a Revoluo. Lisboa, Relgio dgua Editores, 2001. P. 42-43. 734 // Quentin Skinner [leu e criticou] diversas sees do manuscrito em diversos estgios. O senhor Skinner sugeriu mesmo o ttulo, apesar de que no se deva culp-lo pelo que eu fiz dele. POCOCK, John. Le moment machiavlien. La pense politique florentine et la tradition rpublicaine atlantique. Paris, PUF, 1997. P. L. 735 SPITZ, Jean-Fabien. Preface. In: POCOCK, John. Le moment machiavlien. La pense politique florentine et la tradition rpublicaine atlantique. Paris, PUF, 1997. P. xxvi.

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nomes de Mably, Rousseau e Robespierre sido acrescidos aos de Maquiavel, Harrington e Madison736. J o grande especialista em Maquiavel, Felix Gilbert, numa resenha do mesmo livro de John Pocock, faz uma afirmao que no deixa dvidas:
mas se se pensa onde na histria europia um momento maquiaveliano ocorreu, nem a Guerra Civil Inglesa do sculo XVII nem os acontecimentos nas colnias britnicas da Amrica vm primeiro mente: pensa-se na Revoluo Francesa e nas reformas da Prssia. a que ns encontramos a esperana pelo comeo de uma nova era integral, o apelo por uma completa renovao da organizao social. a que ns temos a reivindicao por uma ativa participao na poltica para qualquer membro da sociedade, e ns observamos a criao de um exrcito de cidados. a que ns temos o apelo para uma converso para uma verdadeira virtude se este apelo pronunciado na Frana pelo virtuoso Robespierre, ou na Prssia, promovido pelos jovens militares do Tugenbund.737

Como veremos mais detidamente, j que este um dos objetivos desse trabalho, vrios elementos fundamentais do pensamento poltico robespierrista suas idias sobre o soldadocidado e a necessidade de um culto cvico, entre outras emergiram no contexto do que se poderia chamar, com todo a propriedade, de um the rousseauist moment, isto , a Revoluo de 1789. Assim, possvel encontrar as razes das idias polticas robespierristas na tradio cvico-humanista, haja vista a funo de elemento de ligao exercido pelo pensamento poltico de Jean-Jacques entre Robespierre e aquele tradio. Como antes foi dito, o cidado de Genebra foi marcadamente influenciado por Maquiavel. Em particular, no tocante s relaes entre cidadania e religio, o autor do Contrato social aprendeu com Maquiavel, como afirma Lucien Jaume, que uma repblica no pode resistir ao atesmo738. 2. Antes, porm, de passarmos discusso da teoria democrtica robespierrista gostaramos de discutir a idia de que Maximilien Robespierre passou de um momento

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WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably. Stanford, Stanford University Press, 1997. P. 208. 737 Citado em: WRIGHT, Johnson Kent. Opus cit. P. 219-220, nota 45. 738 JAUME, Lucien. Table ronde. Robespierre: la politique, la morale et le sacr . In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) opus cit. P. 432. Outro caminho que possivelmente permitiu o contato entre Robespierre e o republicanismo maquiaveliano tambm teve um carter indireto, via republicanismo ingls. No se sabe se ele teria lido o livro Discours sur le gouvernement de Algernon Sidney. Apesar de conhecer o personagem. Na sesso do clube jacobino, de 5 de dezembro de 1792, ele pediu que se substitusse o busto de Mirabeau pelo de Sidney. Ver: OCR, t. IX, p. 145. Mas, de qualquer forma, ele no teria escapado influncia das idias republicanas desse autor, assim como das de Milton e Harrington, na medida que essa influncia pde se exercer na ausncia de um conhecimento direto dos textos, pois as teses neles contidas sobre o controle democrtico dos representantes, vigilncia ativa exercida pelo povo e democracia direta tinham se tornado de

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maquiaveliano caracterizado pelo republicanismo neoclssico a um outro momento maquiaveliano durante o processo revolucionrio. assim que poderamos ler o trabalho de Joseph Ferrari, Machiavel, juge des rvolutions de notre temps739. Com efeito, uma espcie de momento maquiaveliano que forma o pano de fundo que est por trs desse livro. Joseph Ferrari, filsofo italiano que passou a viver na Frana a partir de 1838, acreditava que a obra de Maquiavel, mais do que esclarecer sobre o tempo em que ele viveu, tinha a capacidade de fazer entender o futuro. Tal futuro consistia, como se pode ver pelo ttulo de sua obra, nas revolues que se desencadearam desde 1789 na Frana e, mais tarde, tambm na Itlia. Falando da relao de Maquiavel com essas revolues, ele afirmava que nossas revolues se desenvolve[ra]m com base nas leis que ele fixou; nossas lutas so governadas por suas teorias; nossos homens so julgados de antemo pelos tipos que ele prope740. Em particular, no tocante Revoluo Francesa, qual ele dedicava o captulo intitulado A Revoluo Francesa, segundo Maquiavel, Ferrari escrevia que a partir de 89, os princpios tomam conta dos acontecimentos e se diria que Maquiavel dita as palavras, mesmo dos homens que aparecem sobre a cena da Revoluo.741 De que forma Ferrari estabelecia o paralelo entre Maquiavel e os homens da Revoluo? Justamente por meio do que poderamos chamar de um momento maquiaveliano baseado na mxima ciceroniana salus populi suprema lex est. Assim, Ferrari colocava lado a lado passagens dos textos dos revolucionrios e dos de Maquiavel, como, por exemplo, quando ele citava a passagem em que Marat afirmava que a salvao do povo era uma lei suprema e que diante dela todas as outras devem se calar e que para salvar a ptria todos os meios so bons, todos os meios so justos, todos os meios so meritrios. Na seqncia, nosso autor fazia o cotejamento com a passagem dos Discursos, na qual Maquiavel

alguma maneira um lugar comum do pensamento poltico radical do sculo XVIII. GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence revolutionnaire 1789-1794. Paris, Fayard, 2000. P. 46-9. 739 FERRARI, Joseph. Machiavel, juge des rvolutions de notre temps. Paris, Payot, 2003. Ferrari foi para Paris em 1838, com uma promessa de trabalho como editor e com uma recomendao junto a Victor Cousin. Veio mais tarde a trabalhar como professor de filosofia. Na Frana ele acabou se envolvendo no efervescente ambiente poltico das vsperas da Revoluo de 1848. Os leitores brasileiros podero ter uma idia do pensamento de Ferrari no livro de: LEFORT, Claude. Pensando o poltico: ensaios sobre democracia, revoluo e liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991. Captulo A revoluo enquanto princpio e enquanto indivduo . Em seu texto sobre Ferrari, Lefort lamenta o esquecimento que teria acometido o trabalho de Ferrari. Isso j no mais assim. A edio por ns consultada de 2003. 740 FERRARI, Joseph. Opus cit. P. 68. 741 Idem, p. 155.

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dizia que quando se trata da salvao da ptria no h justia nem injustia, nem piedade nem crueldade, nem elogio nem vergonha; so consideraes que preciso sacrificar742. Como podemos ver, o tema principal que norteia as apreciaes de Ferrari sobre a Revoluo encontra-se no que ele prprio chamava de la grand art de russir (a grande arte do xito) de Maquiavel. Porque, segundo Ferrari, dando a arte do xito, ele [Maquiavel] traa[va] as leis das revolues743. Era o prprio Maquiavel, enquanto criador dessa arte, que era chamado cena da Revoluo para julgar as aes dos revolucionrios. Por sua vez, nesse cenrio, Robespierre entrava quando, executando o preceito de Maquiavel de que sem Deus no h virtude, ele deu Frana a religio natural. Ferrari colocava ento Maquiavel a aconselhar Robespierre:
Imita Moiss, lhe diz Maquiavel; estrangule seus inimigos: Robespierre o imita, ele acelera o suplcio de seus inimigos; ele quem empurra para o tmulo Lus XVI, a gironda, o dantonismo, o hbertismo. A religio o inspira, ela lhe indica as categorias dos suspeitos, ela exige as hecatombes da corrupo, e a indignao moral da Frana se acorda com a 744 conscincia de Robespierre para reproduzir fatalmente os massacres de Moiss.

Procedendo dessa forma, Robespierre a princpio teve xito. Mas para manter esse xito era preciso seguir Maquiavel at o fim. Robespierre, como uma espcie de frei Girolamo Savonarola redivivo, devia ento se armar para ter xito, mas ele no o fez e teve que enfrentar novas resistncias. Conforme Ferrari, farsene capo [assuma a liderana] o que lhe teria aconselhado Maquiavel745. Nesse trecho de seu livro, Ferrari poderia bem estar evocando o nico encontro privado que ocorreu entre Marat e Robespierre em suas carreiras de revolucionrios (janeiro de 1792), pois o diagnstico maquiaveliano que ele produz sobre o Incorruptvel parece ser o mesmo do de Marat. Em tal encontro, Robespierre, segundo a narrativa do prprio Marat em seu Ami du Peuple, o teria acusado de defender medidas sanguinrias contra os adversrios da Revoluo, mas que ele, Robespierre, acreditava pessoalmente que fossem apenas palavras ao vento ditadas pelas circunstncias. Confrontado com essa reao de Robespierre, Marat

742

Idem, p. 156. A passagem de Maquiavel a seguinte: // nas deliberaes em que est em jogo a salvao da ptria, no se deve ter nenhuma considerao para com o justo ou o injusto, o piedoso ou o cruel, o louvvel ou o vergonhoso, seno que, deixando de lado qualquer outro respeito, deve-se seguir aquele caminho que salve a vida da ptria e mantenha sua liberdade. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre la primera dcada de Tito Livio. Madrid, Alianza Editorial, 2000. P. 433. 743 FERRARI, Joseph. Opus cit. P. 131. 744 Idem, p. 157. 745 Idem, p. 158

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lhe respondeu que ele se enganava, que o que constava em seu jornal era uma escolha poltica deliberada, a qual ele estava disposto a transformar em realidade. Diante do choque provocado por essa afirmao em Robespierre, Marat disse ao Incorruptvel que ele reunia s luzes de um sbio senador romano a integridade de um verdadeiro homem de bem e o zelo de um verdadeiro patriota, que lhe faltava igualmente a viso e a audcia de um homem de estado746. Ao afirmar que Robespierre no tinha nem a viso nem a audcia de um homem de estado, Marat constatava a incapacidade de Robespierre de ir at s ltimas conseqncias, de farseno capo, ou na linguagem de Marat, tornar-se ditador? Com efeito, Ferrari terminava sua exposio sobre o papel de Robespierre durante a Revoluo 1789 creditando seu fracasso s suas hesitaes. Robespierre teria ameaado seus adversrios durante a crise de termidor, no seguindo o preceito de Maquiavel de que melhor golpear do que ameaar. Alm disso, Robespierre, depois de ficar livre na noite do 9 de termidor, demora em fazer uma proclamao pela insurreio e quando o faz, supremo simbolismo, sua assinatura aparece pela metade na folha em que foi escrita tal proclamao: Robespierre ainda hesita; como se ele fosse o tipo de homem irresoluto de Maquiavel, ele somente assina pela metade seu nome em baixo da proclamao dos insurgentes, e antes de acab-lo ele foi preso747. 3. Por meio desse paralelo ferrariano entre as idias de Maquiavel e o processo revolucionrio francs isto , esse outro momento maquiaveliano para o qual o que importava era a arte do xito o nosso propsito foi introduzir uma discusso necessria

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COQUARD, Olivier. Marat e Robespierre: le rencontre de deux politiques rvolutionnaires . In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) opus cit. P. 158-9. Este paralelo Maquiavel-Marat tambm foi percebido por outros escritores. Este o caso de Louis Bla nc, que chamou Marat de Maquiavel sincero e furioso, assim como tambm do autor de quem tiramos essa passagem de Blanc, Patrice Gueniffey. Este historiador afirma que Maquiavel, mais que Montesquieu, o convenceu que o poder sempre conquistado pela for a ou pela fraude e que somente se pode conserv-lo por meio da fora e da fraude. Cf. GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence revolutionnaire 1789-1794. Paris, Fayard, 2000. P. 72. 747 FERRARI, Joseph. Opus cit. p. 158. O historiador Robert Palmer, como que fazendo um comentrio dessa hesitao, num registro histrico e no filosfico, afirma que o Grande Comit, apesar do Grande Terror e da lei do 22 do prairial, no executou um nmero suficiente de seus inimigos para esperar fundar um regime durvel. Os objetivos do governo revolucionrio somente podiam ser atingidos por um extermnio sistemtico do qual os revolucionrios falavam mais do que colocavam em prtica. Porque eles cresceram com o sculo XVIII e tinham sido alimentados de retrica, eles tinham tendncia, em seus discursos, a recorrer a uma linguagem exagerada. Mas, na verdade, a maior parte permanecia como que tributria de seus escrpulos humanitrios e cristos. As 40 000 vtimas do Terror, isto , 0,16 por cento da populao (essa cifra compreende aqueles que sucumbiram nas prises ou foram executados sem julgamento), so menos numerosos que as vtimas das ditaduras de hoje.

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para ressaltarmos duas questes. Uma de cunho mais terico e uma outra que diz respeito natureza da interpretao histrica da Revoluo. Vamos a elas. A primeira trata de interpretao de Lucien Jaume748 sobre o discurso jacobino. Este autor simplificou a trajetria poltica do jacobinismo, em particular a trajetria do jacobinismo robespierrista, dividindo em um antes e um depois da tomada de poder. O marco divisrio desse processo foi o fim da Conveno dita girondina ocorrida durante a Revoluo de 31 de maio-2 de junho de 1793. Com base nessa tomada de poder, fez-se tambm uma diviso no pensamento poltico jacobino e robespierrista. Assim, o historiador Lucien Jaume, seguindo esse tipo de caracterizao, divide o discurso democrtico jacobino em dois momentos: num primeiro momento, esse discurso constitui-se na luta sucessiva contra os grupos que nos primeiros anos dominaram a cena revolucionria at aquela Revoluo; num segundo momento, esse discurso adquire um novo formato com os jacobinos controlando o governo. Desse modo, haveria um discurso jacobino de oposio e um de poder. Sem entrarmos na discusso da real dimenso do poder durante o domnio do Comit de Salvao Pblica, questo polmica que implicaria em definir com preciso qual a real natureza do poder robespierrista e do seu discurso naquele momento, achamos muito mais pertinente a linha interpretativa proposta por Marco Armandi e Anna Maria Battista749, os quais trouxeram uma mudana de perspectiva interpretativa do pensamento poltico de Robespierre que achamos muito importante, ao construrem a hiptese de que esse pensamento se dividia na verdade entre o terico do princpio da democracia e o terico do governo revolucionrio. Em outras palavras, entre o terico do governo constitucional e o terico do Terror, o que implicava, como propusemos mais acima, na passagem de um momento maquiaveliano Pocockiano a um momento maquiaveliano ferrariano. Assim, poderamos dizer, sem abusar demais da interpretao, que a dinmica revolucionria, exemplarmente representada por sua figura central, fez o percurso inverso

PALMER, Robert R. Opus cit. P. 322. Como vimos, David Jordan tambm salientou esse aspecto retrico do nosso personagem, para o seu prprio azar: cf. supra, p. 13. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 748 JAUME, Lucien. Opus cit. Captulo II. Esta concepo no nova. Ivette Jaggi j chamava a ateno para esse problema. Comentando a natureza das idias polticas de Robespierre, essa autora afirmava que elas eram convenientes para algum que fazia oposio e no para um chefe de governo. Cf. JAGGI, Yvette. Robespierre et la volont gnrale. Genebra, Etudes de lettres, p. 19-51, 1966. P. 21. Na verdade, a diferena que existe entre governo constitucional e Revoluo! 749 Para as idias de Anna Maria Battista e Marco Armandi, ver: ARMANDI, Marco. (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma, Editori Riuniti, 1999. P. xxxiv-xxxv.

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realizado por Maquiavel em suas duas principais obras, o Prncipe e os Discursos, nas quais ele passava das anlises concernentes s situaes de fora, que so ligadas a fundao de um estado e sua manuteno, para a anlise da normalidade da vida sob o regime poltico ideal , a repblica750. No caso do robespierrismo, pode-se l-lo como uma corrente poltica que, num primeiro momento, os anos felizes de 1789-92, tratou do que seria a dinmica da vida sob uma constituio republicana, j num segundo momento, o Terror, ele lidou com a crise, com a necessidade de fundar o novo estado francs751. E, assim como Maquiavel, o Maximilien mais conhecido aquele que defendeu a necessidade do uso da fora nos momentos de salvao pblica, e tambm como Maquiavel, menos conhecido o defensor da repblica. Assim, e agora entramos na nossa segunda questo, ao tentarmos fazer um encontro entre a teoria do governo revolucionrio robespierrista e a teoria poltica exposta no Prncipe e nos Discursos, o que queramos era ressaltar o papel que o axioma da salus populi teve durante o processo revolucionrio e, com base nesse axioma, analisarmos a viso que os revolucionrios tinham do Terror como sendo um procedimento de exceo, viso comum mesmo burguesia constituinte, a qual indagava, por meio de um de seus principais portavozes, a propsito das primeiras mortes ocorridas durante as rebelies populares: ser que esse sangue to puro que seu derramamento to deplorado?752 Nesse sentido, Maximilien s fez continuar essa disposio de esprito da burguesia constituinte quando fez a indagao endereada aos girondinos, quando estes, entre outras coisas, o acusaram de ditadura e de ter apoiado os atos da Comuna Insurrecional do 10 de agosto, os quais os homens liderados por Brissot passaram a considerar ilegais aps as eleies para a Conveno: cidados, quereis uma revoluo sem revoluo753. Na verdade,

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Cf. ARANCN, Ana Martnez. Introduo. In: MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre la primera dcada de Tito Livio. Madrid, Alianza Editorial, 2000. P. 09-10. 751 Ele pedia que no se confundissem // a situao de um povo em revoluo, com aquela de um povo cujo governo esta fortalecido. Opinion de Maximilien Robespierre sur le jugement de Louis XVI (3 de dezembro de 1792). OCR, t. IX, p. 122. 752 Palavras de Antoine Barnave. Citado em: LEFEBVRE, Georges. 1789, o surgimento da Revoluo Francesa . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 132. 753 Reponse de Maximilien Robespierre laccusation de J.-B. Louvet (5 de novembro de 1792). OCR, t. IX, p. 89. Esse discurso tratava das acusaes que lhe foram endereadas pelo girondino Louvet. Em sua seqncia, ele afirmava que, caso se julgasse um crime as aes da Comuna Revolucionria, seus integrantes teriam o direito de dizer: se vs renegais os meios que ns empregamos para vencer, deixai -nos os frutos da vitria. Retomai vossa constituio e todas as vossas leis antigas; mas restitua-nos o preo de nossos sacrifcios e de nossos combates; devolva-nos nossos concidados, nossos irmos, nossas crianas que foram mortas pela causa comum. Idem, p. 89-90. Deve-se lembrar que no momento do embate com os girondinos estes acusaram Maximilien de ter apoiado os Massacres de Setembro. Ele respondeu a essa acusao usando, entre outros argumentos, o fato de

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o que existe de inovador na posio de Robespierre, assim como de Saint-Just e BillaudVarenne, foi compreender a dinmica particular de uma revoluo a ponto de ter concebido uma teoria da revoluo. Georges Labica chega a afirmar que Robespierre nos oferece o primeiro pensamento filosfico da Revoluo, o primeiro pensamento, no metafrico, de um objeto real, sua primeira sistematizao ou teorizao754. No caso especfico de Robespierre, contrariamente a uma impresso corrente com que a historiografia nos acostumou, sua formulao de uma teoria revolucionria foi desenvolvida ainda em sua fase como deputado Constituinte pelo Artois e no no perodo do Terror. Com efeito, em 23 de outubro de 1790, ele j defendia a idia de que a salvao pblica a primeira das leis e que a marcha das revolues no submetida s regras que convm ao estado pacfico de uma constituio estabelecida755. Com o correr do tempo, esta idia s viria a adquirir uma maior complexidade, como podemos ver em seu famoso relatrio Sobre os princpios do governo revolucionrio, no qual ele afirmava que a Revoluo a guerra da liberdade contra os seus inimigos; a Constituio o regime da liberdade vitoriosa e pacfica756. Como interregno entre passado e futuro, entre a abolio da ordem vigente anteriormente e a futura legitimidade de uma Frana regenerada de acordo com a razo e os direitos naturais, a Revoluo tinha sua prpria lgica. Uma lgica ilegal, no sentido de que a Revoluo se situava alm da antiga legitimidade e aqum da futura. nesse sentido que se pode dizer que a ilegalidade pertenc[ia] lgica interna do processo revolucionrio757.

que os girondinos, logo aps esses massacres e antes das eleies para a Conveno, terem aprovado as aes do Conselho Geral da Comuna durante aquele episdio. Em seu jornal La Sentinelle, o prprio Louvet comentava assim aqueles episdios: honra ao Conselho Geral da Comuna, ele fez soar o alarme ( tocsin), ele salvou a ptria. Cf. idem, p. 93 e, mesma p., nota 32. digno de nota que tambm a burguesia parisiense parece ter tido o mesmo julgamento dos Massacres de Setembro. GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence revolutionnaire 1789-1794. Paris, Fayard, 2000. P. 237 754 LABICA, Georges. Opus cit. P. 11. 755 Sur la mise en accusation de labb Perrotin (23 de outubro de 1790). OCR, t. VI, p. 514. 756 Rapport sur les principes du Gouvernement rvolutionnaire fait au nom du Comit de Salut Public (25 de dezembro de 1793). OCR, t. X, p. 274. Usamos a traduo de Maria Helena Franco Martins da edio brasileira desse relatrio. Cf. ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. P. 130. Numa ocasio anterior a essa ele foi mais simples: / / ns tambm no esqueceremos que os tempos de Revoluo no se assemelham aos tempos de calma, e que a poltica de nossos inimigos foi sempre de confundi-los para assassinar legalmente o povo e a liberdade. Le Dfenseur de la Constitution (o primeiro nmero foi colocado venda entre os dias 17 e 19 de maio de 1792). OCR, t. IV, p. 14. 757 LABICA, Georges. Opus cit. p. 66. Analisando as acusaes dos girondinos sobre os atos revolucionrios da Comuna Insurrecional do 10 de agosto, os quais eles consideravam como ilegais, Robespierre afirmava que todas essas coisas eram ilegais, to ilegais quanto a revoluo, quanto a queda do trono e da Bastilha, to ilegais

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4. Na teoria revolucionria robespierrista, o regime do Terror era considerado como algo provisrio e transitrio. Na verdade, s possvel afirmar o contrrio se voltarmos a analisar uma das questes que foram discutidas na Primeira Parte deste trabalho, qual seja, a relao entre robespierrismo e ditadura. Como vimos, houve uma tendncia historiogrfica para a qual era um lugar comum considerar Robespierre como um ditador, desconhecendo a natureza coletiva do poder revolucionrio, com base na Conveno e nos seus comits758. Contudo, essa relao robespierrismo-ditadura, de qualquer forma, pode ainda ser um tema para discusso se estivermos dispostos a especular se os robespierristas pretendiam prolongar seu regime de exceo, transformando-o numa verdadeira ditadura. Luciano Guerci, por exemplo, afirma
// que no se pode descartar a hiptese de que a ditadura jacobina, apresentada por seus promotores como um expediente de guerra // tendesse a se perpetuar, e que os robespierristas tivessem secretamente in animo exercitar indefinidamente o poder.759

Contudo, esse mesmo autor tambm afirma que como a experincia jacobina foi breve, ns no estamos autorizados a dar por certo que, se no fosse o 9 de termidor, a ditadura jacobina teria durado bastante tempo. Ele nos lembra que a nica prova que de fato temos sobre isso so as prprias afirmaes dos homens do Terror, os quais distinguiam constantemente entre governo revolucionrio (para os tempos de exceo) e o governo constitucional (para os tempos normais)760.

quanto a prpria liberdade. Reponse de Maximilien Robespierre laccusation de J.-B. Louvet (5 de novembro de 1792). OCR, t. IX, p. 88. 758 Franz Neumann afirma ser possvel falar de ditadura coletiva. O Comit de Salvao Pblica bem poderia se encaixar nesse modelo. Porm, a estrutura do poder durante o ano II dependia de um rgo eleito, a Conveno, que, apesar de tudo, foi capaz de reverter o poder desse Comit quando assim achou necessrio. Ver: NEUMANN, Franz. In: TRAVERSO, Enzo (org.). Le totalitarisme: le XXe sicle en dbat. Paris, Seuil, 2001. 759 GUERCI, Luciano. Giacobinismo e giacobini nella rivoluzione francese. In: SALVADORI, Massimo e TRANFAGLIA, Nicola (org.). Il modelo politico giacobino e le Rivoluzioni. Florena, La Nuova Itlia, 1984. P. 73. 760 Idem, ibidem. Claude Nicolet tem a mesma opinio. Segundo ele, os convencionais que votaram, em 1793 e 1794, votaram leis ou estabeleceram decretos abertamente opressivos, somente o fizeram precisando que se tratava precisamente de atos revolucionrios, fora do pacto constitucional. NICOLET, Claude. Lide republicaine en France (1789-1924). Paris, Gallimard, 1994. P. 415. Grifado no original. A maneira dos revolucionrios em conceber os atos revolucionrios como atos fora das regras legais estabelecidas tivera sua origem no perodo anterior, o da Constituinte, quando, segundo Georges Lefebvre, j era afirmado o car ter relativo de tais direitos [os da Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado], e j se esboava a teoria freqentemente defendida no ano II, pelo Comit de Salvao Pblica, que o estado de guerra suspende as regras constitucionais. LEFEBVRE, Georges. O surgimento da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 134. Quanto ao prprio Robespierre por um fim no perodo do Terror, ver a surpreendente concluso de Mignet a esse respeito. Cf. supra, p. 41.

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Era consensual, portanto, entre a maioria dos homens da Conveno e dos seus comits que a Revoluo devia ser encarada como um estado de guerra e que ela exigia a suspenso temporria dos direitos em certos casos e desculpavam-se mesmo excessos que levavam a morte de pessoas761. Enraizando-se nos anos felizes762, essa disposio para justificar e praticar excessos, com base na considerao que um pas livre ao se defrontar com uma ameaa vital transforma a salvao do povo em lei suprema 763, no descambou para uma prtica sistemtica do Terror at a crise provocada pela derrota na guerra em 1792 e a subseqente ameaa de invaso estrangeira. Quanto a isso, as objees de Patrice Gueniffey nos parecem frgeis. Segundo a lgica da argumentao desse historiador, uma srie de disposies legais (leis contra os emigrados, contra os padres refratrios) concebidas e aprovadas durante a Constituinte e o Legislativo, as quais prenunciavam por sua natureza suspensiva dos direitos individuais as futuras leis terroristas, conduziram a um estgio na Revoluo em que essas disposies terroristas se mesclaram com a vontade de fazer a guerra, a qual, segundo seu maior defensor, Jacques Pierre Brissot, teria a capacidade de confundindo os homens e os nveis, elevando o plebeu, abaixando o fino patrcio, somente a guerra pode[ria] igualar as cabeas e as almas764. Desse modo, a guerra regeneraria e purificaria os que a fizessem. Assim, essa funo regeneradora da guerra nada teria a ver com a defesa da Frana revolucionria frente s monarquias absolutistas europias. Com base nesse argumento, Gueniffey conclui que o terror conduziu guerra e a guerra ao terror 765. Tal argumentao conduz esse autor afirmao de que no nem a guerra estrangeira nem a guerra contra a contra-revoluo que explicam o Terror, mas as lutas fratricidas entre os partidrios da Revoluo, a concorrncia que ope os revolucionrios contra os revolucionrios a medida em que

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Nas palavras de Madame Roland, se a Assemblia Nacional no processar em regra dois homens ilustres, ou se generosos como Decius no os abaterem, estareis todos f. Citado em: LEFEBVRE, Georges. Opus cit. 132. 762 Aqui colocamos no plural a famosa expresso, no singular, com a qual Furet e Richet classificaram o ano de 1790, j que nos referimos ao conjunto dos anos do perodo da Constituinte. Ver: FURET, Franois e RICHET, Denis. La Rvolution Franaise. Paris, Hachette, 1965. P. 99. 763 Essa era a compreenso de Bertrand Barre. Cf. GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence revolutionnaire 1789-1794. Paris, Fayard, 2000. P. 171. 764 Citado em: GUENNIFFEY, Patrice. Opus cit. p. 162. 765 Idem, p. 162.

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// no se pode dizer que a guerra provoca a escalada (surenchre) alargando o teatro da Revoluo e fazendo-a ultrapassar os objetivos que eram inicialmente seus; foi, inversamente, a radicalizao da poltica revolucionria que engendrou a guerra e o terror.766

A fragilidade desse argumento reside na razo de que permanece o fato de que a segunda fase do Terror, quando, segundo Gueniffey, ele se transformou em sistema, veio depois do fato, a guerra, e foi nessas circunstncias que atuaram os robespierristas, no nico momento em que tiveram a real capacidade de interferir na conduo da Revoluo. Alm disso, no h prova emprica alguma, a no ser elucubraes, que possa permitir a afirmao de que os brissotistas queriam a guerra para derrotar os robespierristas, isto , que a guerra, na verdade, fosse um instrumento da luta entre estes dois grupos. Por outro lado, como explicar a posio de Robespierre contrria guerra? impossvel imaginar que a guerra fosse um expediente visando regenerao moral e a uniformidade da sociedade para algum que afirmou que
// a mais extravagante idia que pode nascer na cabea de um poltico acreditar que basta um povo entrar com armas na mo em um pas estrangeiro para lhe fazer adotar suas leis e sua constituio. Ningum gosta dos missionrios armados; e o primeiro conselho que a natureza e a prudncia do de expuls-los como inimigos.767

5. De qualquer forma, at julho de 1792, a teoria revolucionria robespierrista no se ancorava numa economia da violncia768, baseada no binmio virtude-terror, em que a segunda noo desse binmio teria o sentido de institucionalizao da violncia como forma de impedir as aes violentas espontneas e tambm no sentido de torn-lo uma fora coativa capaz de amedrontar e eliminar os adversrios da Revoluo. S quando se confirmar o malogro do compromisso, para retomarmos a expresso de Soboul769, foi que o robespierrismo desenvolveu uma viso profundamente pessimista dos facciosos, dos

766 767

Idem, p. 226. Sur la guerre (2 de janeiro de 1792). OCR, t. VIII, 81-82. Gueniffey, nessa avaliao, segue fielmente Furet. Este historiador j tinha afirmado que o Terror e a guerra tinham sido engendrados pelo jacobinismo. Cf. FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 87. Na verdade, a responsabilidade pela guerra, se se deve respeitar os fatos, deve ser atribuda aos brissotistas que decidiram por levar a revoluo guerra e por essa deciso passaram a se antagonizar com os robespierristas. E nesse ponto no houve nenhuma descontinuidade com os diretoriais, medida que estes so herdeiros dos brissotistas e de sua poltica de guerra. Ver infra, p. 253, outras consideraes sobre a relao entre robespierrismo e guerra. 768 Caracterizao de Sheldon Wolin para o pensamento de Maquiavel. Cf. WOLIN, Sheldon S. Poltica y perspectiva. Continuidad y cambio en el pensamiento poltico occicental . Buenos Aires, Amorrortu Editores, 196. P. 237. 769 SOBOUL, Albert. A Revoluo Francesa. 3a ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981. P. 136.

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aristocratas e dos ricos em geral, quando comea a caa aos hipcritas, a qual , por natureza, ilimitada770. nesse momento, e mais precisamente ainda, depois da queda dos girondinos, que para ele a virtude s podia existir se viesse junto com o terror, como fica claro na sua famosa passagem na qual ele afirmava que // se o motor do governo popular na paz a virtude, o motor do governo popular em revoluo , ao mesmo tempo, a virtude e o terror; a virtude, sem a qual o terror funesto; o terror, sem o qual a virtude impotente771. somente em tal perodo que o estudo lexicogrfico pode constatar a apario do binmio virtude-terror nos discursos robespierristas, j que em nenhum outro momento, do 14 de julho at a crise que vai levar Revoluo do 10 de agosto, houve a ocorrncia desse binmio em seus escritos, a despeito de o vocbulo virtude aparecer numa enorme profuso em seus textos desse perodo, assim como em seus textos posteriores772. Sua linguagem ento sempre permeada pela moderao e pelo humanismo rousseausta. De que outra maneira poderamos entender sua defesa dissonante do fim, sem restrio, da pena capital feita em 30 de maio de 1791? Entre outras razes para abolir a pena capital, Robespierre indicava que a idia do homicdio inspira bem menos o medo quando a prpria lei dela o exemplo e o espetculo; o horror do crime diminui no momento em que ela apenas o pune por outro crime773. Na verdade, tal defesa contrariava tendncias importantes da filosofia do sculo das Luzes e dos revolucionrios de 1789774. Podemos ver nela mais uma vez a influncia de Jean-

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A frase completa de Hannah Arendt a seguinte: o terror do sculo XVIII era ainda decretado em boa f e, se se tornou ilimitado, foi apenas porque a caa aos hipcritas ilimitada por natureza. ARENDT, Hannah. Sobre a Revoluo. Lisboa, Relgio dgua Editores, 2001. P. 121. 771 Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique (5 de fevereiro de 1794). OCR. T. X, p. 352. Traduo brasileira: ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. P. 149. Fazendo a ressalva de que Maquiavel no teria sido o primeiro a associar o conceito de virt qualidade militar, Skinner afirma: isso porque a disposio a lutar pela ptria, a presteza a usar da violncia por sua causa, sempre foi tida, pelos primeiros humanistas cvicos, como um elemento indispensvel da virtus do autntico cidado. SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno . So Paulo, Companhia das Letras, 1996. P. 150. 772 Na verdade, salvo engano, a nica ocorrncia desse binmio nos textos de Robespierre a mencionada nas palavras citadas. 773 Sur la peine de mort. OCR, t. VII, p. 432 e segs. Curiosamente, os contra-revolucionrios se opuseram firmemente sua proposta de acabar com a pena de morte, mandando-o preg-la nas florestas de Bondy, local que na poca tinha a fama de ser um antro de bandidos. Idem, p. 433. 774 Marat, em seu Amigo do Povo, tecia o seguinte comentrio sobre a proposio de Robespierre e de Ption para abolir a pena capital: o direito de infligir penas capitais que tem a sociedade no duvidoso, j que ele

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Jacques e, em particular, de Cesare Beccaria. E mesmo uma ultrapassagem desses dois escritores, j que sabido que Rousseau no exclua totalmente a utilizao da pena capital 775 e o Rousseau dos italianos776 que, em seu clebre livro Dos delitos e das penas, tinha proposto o fim desse tipo de pena, admitia excees abolio da pena de morte:
A morte de um cidado apenas pode ser considerada necessria por duas razes: nos instantes confusos em que nao est na dependncia de recuperar ou perder sua liberdade, nos perodos de confuso quando se substituem as leis pela desordem; e quando um cidado, embora sem a sua liberdade, pode ainda, graas as suas relaes e ao seu crdito, atentar contra a segurana pblica, podendo a sua existncia acarretar uma revoluo 777 perigosa no governo estabelecido.

A estavam as razes que Robespierre invocaria quanto ao essencial para justificar a execuo de Lus XVI. Assim, em seu discurso de 3 de dezembro de 1792, ele rememorou a famosa passagem em que ele tinha defendido o fim da pena capital, a qual, segundo suas palavras, ele continuava a detestar. Porm, como se tinha decidido pratic-la contra os delitos comuns, porque ela no seria utilizada contra os graves delitos que o monarca francs tinha cometido. Quanto a isso ele se perguntava: mas se vs nunca pensastes em reclam-la a favor de tantos infelizes, cujos delitos so menos deles do que do governo, por que fatalidade vs vos lembrais dela somente para defender a causa do maior de todos os criminosos?778 Vs pedis uma exceo pena de morte para aquele que unicamente pode legitim-la? Respondendo a essas indagaes vinham os argumentos que lembravam as idias de Beccaria:
Sim, a pena de morte em geral um crime, e s por essa razo que, com base nos princpios indestrutveis da natureza, ela s pode ser justificada nos casos em que ela necessria segurana dos indivduos e do corpo social. Ora, nunca a segurana pblica a provoca contra os delitos ordinrios, porque a sociedade pode sempre preveni-los por outros meios, e colocar o culpado fora da capacidade de prejudic-la. Mas um rei destronado no meio de uma revoluo que no ainda cimentada pelas leis; um rei cujo nome s atrai o flagelo da guerra sobre a nao agitada; nem a priso, nem o exlio podem
decorre da mesma fonte que o direito de dar a morte que tem todo indivduo, eu quero dizer, o cuidado de sua prpria conservao. Ora, se toda pena deve ser proporcional ao delito, aquela do assassino e do envenenador deve ser capital; com mais forte razo, aquela do conspirador e do incendirio. Citado em: OCR, t. VII, p. 445. 775 Falando dos dogmas do culto cvico, Rousseau dizia que se algum, depois de ter reconhecido esses dogmas, conduzir-se como se no cresse neles, deve ser punido com a morte, pois cometeu o maior de todos os crimes mentiu s leis. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro quarto, captulo VIII, p. 150. 776 Expresso do frade e escritor italiano Ferdinando Facchinei. Cf. VENTURI, Franco. Utopia e reforma no Iluminismo. Bauru, EDUSC, 2003. P193. 777 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. So Paulo, Martin Claret, 2004. P. 52. 778 Cabe ressaltar que para a primeira pergunta proposta aos convencionais: Lus culpado de conspirao contra a liberdade da nao e de atentado contra a segurana geral do Estado?, os convencionais quase unanimidade responderam sim, ou seja, 693 convencionais.

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tornar sua existncia indiferente felicidade pblica; e essa cruel exceo s leis ordinrias que a justia declara, somente pode ser imputada natureza de seus crimes. Eu pronuncio lamentavelmente essa fatal verdade mas Lus deve morrer porque preciso que a ptria viva.779

Contudo, ele parecia firmemente acreditar nesse inverno de 1793 que essa morte seria um ato isolado e a Revoluo poderia encontrar um caminho menos cruel. Assim, revelador o que ocorreu na noite do dia da execuo do rei, 21 de janeiro de 1793. Nessa noite, h uma seo da Conveno para se discutir os procedimentos judiciais contra o assassinato que chocou os revolucionrios, Michel Lepeletier de Saint-Fargeau tinha sido morto logo depois da seo que aprovou a condenao morte do rei, no dia anterior. Nessa seo, Claude Basire prope que se condene morte at mesmo as pessoas que facilitaram a fuga ou esconderam o assassino. O que disse Robespierre a esse respeito: eu ataco o fundo mesmo da moo. Ela contrria a todos os princpios. No momento em que vs ireis apagar de vosso cdigo penal a pena de morte, vs a decreteis para um caso particular!780 6. A formulao dos contedos do pensamento poltico robespierrista se deu, antes de tudo, durante os debates daquilo que j foi chamado o maior seminrio de teoria poltica que o mundo jamais conheceu781, que foi a Constituinte de 1789-91. Nesse perodo, o pensamento poltico de Robespierre caracterizou-se por uma espcie de robespierrismo de compromisso, isto , por um discurso poltico que considerava concretamente a possibilidade de uma conciliao entre Antigo Regime e Revoluo, entre monarquia e estado de direito democrtico, o que apenas em julho de 1792 ele consideraria como uma / / mistura monstruosa do antigo e do novo regime //782. Antes dessa data, s o historiador, conhecendo os acontecimentos acabados, poderia observar que sustentar a monarquia

779

Opinion de Maximilien Robespierre sur le jugement de Louis XVI (3 de dezembro de 1792). OCR, t. IX, p. 129-130. 780 Pour lapplication des lois existantes contre le meurtrier de Le Peletier. OCR, t. IX, p. 255. 781 Expresso de K. Lwenstein. Cf. PASQUINO, Pasquale. Sieyes et linvention de la constitution en France. Paris, ditions Odile Jacob, 1998. P. 213, nota 3. 782 Podemos usar as palavras de Jean Jaurs para resumir o que, at ento, era o programa robespierrist a: ele portava em si uma nica idia: a nao soberana; mas essa idia nica, ele a seguiu sem fraqueza, sem restrio, at s suas conseqncias extremas. No que ele fosse deliberadamente republicano, ao contrrio, ele era monarquista, mas ele no estava disposto a fazer realeza nenhum sacrifcio do direito nacional; ele tolerava o rei na medida que este se acordava com a soberania da nao. JAURS, Jean. Opus cit. T. I, p. 572-3. Mais precisamente, foi somente em 29 de julho de 1792 que Robespierre veio a se pronunciar pela deposio do rei. Nesse momento ele chegou ao desalentado diagnstico de que a revoluo tinha produzido um governo que era uma // mistura monstruosa do antigo e do novo regime //. Sur la dcheance du roi et le renouvelement de la lgislature. OCR, t. VIII, p. 408 e segs.

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constitucional de Lus XVI e, ao mesmo tempo, advogar uma avanada poltica democrtica, no entanto, era tentar combinar incompatveis783. Para o ator histrico j no a mesma coisa. Durante a Constituinte, a conciliao entre passado e presente permanecia em aberto para Robespierre e, de resto, para o conjunto dos revolucionrios. Isso pode ser melhor entendido se tivermos em mente a observao de Roger Barny de que a histria da Constituinte , em um sentido, aquela da ruptura entre a revoluo e o rei, o qual nunca aceitou sua mudana de estatuto. Por outro lado, os homens desse perodo da Revoluo no percebiam que // esse divrcio era inelutvel: o historiador percebe hoje suas causas profundas, e relata suas manifestaes, escondidas para a maioria dos contemporneos, logo no comeo do perodo. Mas essa evoluo no era absolutamente previsvel.784 Por conseguinte, no era to extravagante, durante os primeiros anos da Revoluo, a defesa de um regime monrquico-democrtico por parte de Robespierre e que a defesa desse regime fosse o fundamento em que se ancorava o compromisso que ele estava disposto a aceitar. At porque tudo estava l: a monarquia constitucional imposta pela revoluo, como afirma Claude Nicolet, // tinha criado a Repblica sem o saber. Todos tinham concordado em colocar o princpio da soberania na nao e fazer da lei uma expresso da vontade geral, mudanas que inauguraram a Frana moderna785. E mesmo quanto instituio de um legislativo eleito pelo voto universal, isto , o que permitiria fazer desta monarquia

783 784

COBBAN, Alfred. Aspects of the French Revolution. Londres, Cape, 1968. P. 144. BARNY, Roger. Le droit naturel l preuve de lhistoire: Jean -Jacques Rousseau dans la Rvolution. Paris, Les Belles Lettres, 1995. P. 184. Quanto a esse divrcio, que impossibilitou a construo de uma monarquia constitucional, Timothy Tackett afirma que // parece provvel que tal monarquia constitucional no poderia ter sido bem sucedida quando ela foi repudiada no s pelo grande e poderoso segmento da nobreza, mas pelo prprio monarca Lus XVI. Continuando sua anlise, Tackett afirma que talvez a crtica e fundamental contradio que emergiu da experincia da Assemblia Constituinte a trgica contradio que mais ligou essa Constituinte ao perodo do Terror no foi uma questo de linguagem ou de ideologia; mas antes a inabilidade do executivo, a figura chave no conjunto do edifcio constitucional, em se reconciliar talvez mesmo se entender com o novo papel que a Revoluo lhe tinha oferecido. Cf. TACKETT, Timothy. The constituent assembly. In: BAKER, Keith Michael. The French Revolution and the creation of modern political culture . Oxford, Pergamon, 1994. Vol. 4, The Terror, p. 50. 785 NICOLET, Claude. Lide rpublicaine en France (1789-1924). Paris, Gallimard, 1994. P. 398-9. Conforme Albert Mathiez, nenhuma Assemblia infundiu talvez maior respeito do que a chamada Constituinte, que teve realmente a honra de constituir a Frana moderna. MATHIEZ, Albert. Histria Revoluo Francesa. So Paulo, Atena Editora s/d. Vol. I, p. 120. Grifado no original.

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republicana786, instituda pela Constituio de 1791, uma democracia, o jovem advogado de Arras estava disposto a estabelecer de forma progressiva. De fato, apesar da Constituio de 1791 ter sido feita amplamente de acordo com os interesses da grande burguesia e, dessa forma, distante de qualquer aspecto democrtico, ele fez assim mesmo do papel de seu defensor sua misso aps o fim dos trabalhos da Constituinte, objetivo anunciado no ttulo do seu jornal, O Defensor da Constituio. Essa misso era definida no prospecto mesmo de apresentao do jornal. Nele ele afirma que a situao em que se encontrava a Frana // um nico meio nos resta para salvar a coisa pblica, esclarecer o zelo dos bons cidados para dirigi-lo em direo a um fim comum. Uni-los todos aos princpios da Constituio e do interesse geral //787. No nmero inaugural desse jornal ele seria ainda mais explcito, dizendo que se devia saber suportar as imperfeies da Constituio por algum tempo // at que o progresso das luzes e do esprito pblico trouxesse o momento em que ns poderemos apag-las no seio da paz e da unio788. Em decorrncia disso, Robespierre tambm estava pronto a aceitar o fim da Revoluo, como ele mesmo afirmou em seu discurso Sobre os direitos das sociedades e dos clubes de 29 de setembro de 1791. Neste discurso ele defendeu a continuidade das sociedades e dos clubes como propagadores dos princpios da Constituio e como capazes de fortalecla, condies sem as quais a Constituio acabaria por enfraquecer e fenecer. Se isto viesse a acontecer faria com que a Revoluo se prolongasse, j que a Revoluo no outra coisa que os esforos da nao para conservar ou conquistar a liberdade789. 7. Alm disso, possvel demonstrar a vontade de compromisso robespierrista na primeira fase da Revoluo ressaltando alguns elementos que a maioria dos estudiosos da carreira poltica do Dom Quixote da populaa790 no deram, a nosso ver, a devida relevncia.

786

Ttulo do livro de Franois Furet e Ran Halvi La monarchie rpublicaine. La constitution de 1791. Paris, Fayard, 1997. Essa monarquia era republicana no sentido que a Revoluo francesa foi de sada republicana: a proclamao da igualdade de direitos, a apropriao coletiva da soberania, a instituio de um governo representativo e a circunscrio de autoridade real nas funes executivas percebidas ento como subordinadas, marcaram desde 1789 o advento de um regime republicano, sem o nome. GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence revolutionnaire 1789-1794. Paris, Fayard, 2000. P. 243. 787 Prospectus do Dfenseur de la Constitution (abril de 1792). OCR, t. IV, p. 02. 788 Le Dfenseur de la Constitution (17-19 de maio de 1792). OCR, t. IV, p. 13. 789 Sur les droits des socits et des clubs (29 de setembro de 1791). OCR, t. VII, p. 746. 790 como o chamava o jornal contra-revolucionrio Lami du roi do abade Royou. OCR, t. VII, p. 339.

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Isso porque, muitas vezes, a anlise da carreira poltica de Robespierre parte do seu final 791, quando qualquer projeto conciliador tinha se tornado impossvel, e no dos seus primeiros tempos. Passasse-se dessa forma do estudo do terico da democracia para o estudo do terico do governo revolucionrio, procedimento que s pode dar um grande relevo ligao do robespierrismo ao Terror e, portanto, perde-se de vista o robespierrismo de antes da Revoluo do 10 de agosto, no qual j se encontravam suas idias fundamentais792. Confirmam esse posicionamento robespierrista durante os trs primeiros anos da Revoluo as seguintes atitudes: 1) sua defesa, at o final, da Constituinte como legtima representante da nao; 2) seu posicionamento diferente tanto do triunvirato quanto do dos Cordeliers no tocante ao que fazer com Lus XVI e com a monarquia logo depois da fracassada tentativa de desero deste ltimo; 3) sua defesa da constituio de 1791, a despeito da profunda desconfiana com que ele via a maior parte de seus dispositivos. A defesa da legitimidade inquestionvel da Constituinte pode ser encontrada no curioso episdio envolvendo o Abade Raynal. O famoso autor da Histoire philosophique de deux Indes enviara a Assemblia uma carta na qual ele fazia duras crticas aos constituintes. Em tal carta, ele se perguntava: o que eu vejo em volta de mim? e o prprio abade respondia: desordens religiosas, dissenses civis; a consternao de uns, a tirania e a audcia de outros; um governo escravo da tirania popular793. Coube a Robespierre produzir a resposta mais contundente carta do abade Raynal. Nela, em tom respeitoso para com o autor clebre794, ele afirmava que

791

Como exemplo podemos citar o texto de Alfred Cobban the fundamental ideas of Robespierre que, primeira vista, pareceria ao leitor como uma discusso sobre o conjunto das idias polticas de Robespierre, desenvolvidas ao longo de sua carreira revolucionria. Porm, esse trabalho s enfoca o perodo da Conveno e do Comit de Salvao Pblica. Cf. COBBAN, Alfred. Aspects of the French Revolution. Londres, 1968. P. 137. Para o leitor brasileiro outro exemplo a nica edio brasileira dos textos de Robespierre, edio Eduerj/Contraponto de 1999, a qual traduziu somente os textos do perodo da Conveno. Cf. ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. 792 Com efeito, ao estudar Robespierre, quando no prevalece o objetivo de desqualificar completamente seu discurso tomando-o como um delrio, a ateno do estudioso voltada preferencialmente para o Robespierre terico do governo revolucionrio. Desse modo, entre a figura do buveur de sang ou do antecipador das revolues futuras, preciso fazer // uma valorao equilibrada da obra de Robespierre durante a Constituinte, o que no s // necessrio historiograficamente, mas tambm relevante para um a avaliao articulada e serena da natureza de seu pensamento democrtico. ARMANDI, Marco. (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma, Editori Riuniti, 1999. P. xxxiv-xxxv e p. 148, nota 07. 793 Citado em: OCR, t. VII, p. 447. 794 Dizia o jornal do ento j falecido Mirabeau: foi menos ainda para acusar e para refutar esse infortunado idoso, que para o desculpar e para justificar de alguma maneira, que o senhor Robespierre tomou a palavra. Ele falou como um filho sensvel e respeitoso falaria dos erros d e um pai perdido. Citado em: OCR, t. VII, p. 456.

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// nunca a Assemblia Nacional [lhe] tinha parecido to superior aos reproches de seus inimigos do que no momento em que [ele] a tinha visto escutar com paciente tranqilidade a diatribe veemente que vinha de ser lida contra a Revoluo, para a qual ela contribuiu.795

Desse modo, pode-se afirmar que durante os cinco anos de sua carreira de revolucionrio, Robespierre foi sempre inspirado pela vontade de combater para instituir na ordem social os direitos naturais do homem796. Contudo, isso jamais se combinou, na primeira fase da Revoluo, com o questionamento da legitimidade da Assemblia Constituinte e de sua inquestionvel condio de representar o povo francs. Portanto, o combate conduzido por Robespierre no interior da Constituinte tem de ser visto levando-se em considerao a advertncia de Patrice Gueniffey de que
// a Assemblia Constituinte tinha sido sempre o objeto de ataques e de denncias, mas era menos a instituio que era contestada que a influncia de alguns de seus membros. Mesmo os mais violentos de seus acusadores no deixavam de distinguir a minoria facciosa da maioria dos bons representantes que eles convocavam a tomar p das coisas, confirmando assim a legitimidade da instituio mesmo na denncia de sua poltica. 797

Alm disso, diga-se de passagem, em nenhum momento ele colocou em questo o fato de metade dos deputados da Constituinte, o clero e a nobreza, no ter sido escolhido pelo conjunto da nao798. Muito ao contrrio, na discusso sobre a inviolabilidade dos deputados, justamente porque ele admitia o princpio da representao, como analisaremos mais abaixo, ele considerava a Assemblia Constituinte como o nico poder legtimo para julgar seus membros799.

O tom desse jornal reflete um momento, maio de 1791, em que ainda era possvel um certo otimismo, antes que a fuga do rei, no ms seguinte, colocasse tudo a perder. 795 Sur une lettre de labb Raynal (31 de maio de 1791). OCR, t. VII, P. 447. 796 MAZAURIC, Claude. Robespierre. In: SOBOUL, Albert. Dictionnaire historique de la Rvolution franaise. Paris, PUF (Quadrige/Dicos), 2005. P. 916. 797 GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence revolutionnaire 1789-1794. Paris, Fayard, 2000. P. 242. 798 Questionamento que, com seu dio imortal nobreza, fez o abade Sieys. Ver: Prliminaire de la Constitution, reconnoissance et exposition raisonne des droits de lhomme et du citoyen . In: SIEYS, Emmanuel-Joseph. crits politiques. Paris, ditions des Archives Contemporaines, 1994. P. 192. 799 Eu no venho examinar os fatos; mas eu venho fazer valer o primeiro princpio do direito pblico, defender os direitos de um representante da nao. Se vs no quereis vs mesmos derrubar a constituio por meio da mesma mo que acaba de constru-la, vs no podeis suportar que qualquer tribunal possa decretar a priso de um representante da nao. // A inviolabilidade, eu sei, no um privilgio de impunida de: mas um membro da assemblia nacional deve estar fora do alcance de todo tribunal, at que a assemblia nacional tenha decidido que h lugar para a inculpao. Sur linviolabilit des dputs (25 de junho de 1790). OCR, t. VI, p. 432. Apesar da convico com que Robespierre defendeu a inviolabilidade dos deputados, no se pode imaginar que ele tambm defendesse qualquer coisa parecida com esse flagrante desvio do princpio da igualdade perante a lei que o chamado foro privilegiado. Certamente esse no seria o caso de quem consagrou no artigo trinta e trs

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J no episdio da fuga do rei sua posio francamente moderada, na medida em que ele no compactua com a hipocrisia da burguesia constituinte, isto , de que o rei teria sido forado a sair da Frana, hipocrisia que a grande maioria dos deputados patriotas acabaram apoiando. E ele tampouco compartilhava da posio aodada defendida pelos Cordeliers, os quais queriam a derrubada imediata do monarca. isso que est por trs de sua resposta crtica que lhe enderearam seus adversrios, no caso tanto a direita contra-revolucionria quanto, nessa altura, o j em frangalhos partido patriota. Nela, ele dizia:
que me acusem tambm de republicanismo, e eu declaro solenemente que eu detesto toda espcie de governo em que os facciosos reinam. Que me importa, com efeito, de livrar-se do jugo de um dspota, para se submeter a um despotismo que s seria diferente pelo nmero daqueles que o exerceriam?800

Foi esse tambm o diagnstico dos redatores do Courier de Provence. Segundo esse jornal,
Robespierre encontrou a chave de um grande enigma poltico quando ele disse que nada convm melhor aos facciosos e aos intrigantes que os governos fracos. Quereis saber porque os inimigos mais encarniados se abraaram fraternalmente? Porque os partidos mais divididos por princpios e sentimentos se reaproximaram? Porque os interesses mais opostos se confundiram? Quereis saber porque a faco da corte anda agora de acordo com a faco que se tinha por muito tempo declarado com tanta violncia contra essa corte a qual outrora ela tinha dominado? Porque eles se levantam fortemente em favor de um rei que a maior parte detesta, que todos desprezam? Eu vos responderei com o senhor Robespierre: nada convm melhor ao faccioso e aos intrigantes que um governo fraco. 801

At mesmo uma historiografia que no possui nenhuma simpatia pelo advogado de Arras, acaba por reconhecer esse diagnstico sobre os acontecimentos de junho de 1791 e suas conseqncias. O j citado historiador Patrice Gueniffey afirma que Robespierre
// suspeitava nas reivindicaes para uma reviso da Constituio um golpe de fora contra o trono, projetos ocultos, ambies inconfessveis, e era o bastante para que ele adotasse um partido contrrio. Mas querer a paz e a Constituio tal como ela , era

do seu projeto de Declarao de Direitos de 24 de abril de 1793 o seguinte princpio: os delitos dos mandatrios do povo devem ser severamente e facilmente punidos. Ningum tem o direito de se pretender mais inviolvel que os outros cidados. Dclaration des droits de lhomme propose par Maximilien Robespierre . OCR, t. IX, p.469. 800 Sur linviolabilit royale (14 de julho de 1791). OCR, t. VII, p. 562-3. Como veremos mais abaixo, Robespierre considerava o rei como um commis, um funcionrio, no caso, o primeiro funcionrio do reino. Nessa condio, era pertinente imaginar que ele poderia perder o cargo, caso assim o desejasse a nao francesa. Mais uma vez Robespierre se expressava influenciado por Rousseau. Como nos mostra Claude Nicolet, para Rousseau s a soberano (o povo) tinha o verdadeiro poder. Assim, pouco importava que o governo fosse comissionado a um rei. Enquanto tal, o cargo do rei era passvel de ser revogado. NICOLET, Claude. Lide republicaine en France (1789-1924). Paris, Gallimard, 1994. P. 407. 801 OCR, t. VII, nota 10, p. 568.

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igualmente querer a ordem, se opor a todo suplemento de Revoluo: era calar as botas dos Feuillants que ele tinha abatido em 1791 e fazer sua a ambio de terminar a Revoluo. Robespierre no pertence gerao de 1791; ele daquela de 1789. Mesmo estimando que a Constituio contrariava os princpios em vrios domnios, era o caso do regime censitrio, ele pensava que as suas bases eram puras e que a Constituinte tinha desse ponto de vista cumprido o essencial: a Revoluo estava feita, e s as maquinaes das faces sempre renascentes comprometiam o restabelecimento da paz e da unio. Robespierre tinha tanto mais razes de suspeitar da republicomania de seus adversrios que ele no era absolutamente republicano.802

Por conseguinte, a soluo por ele proposta para o impasse criado pela fuga do rei era que a Assemblia Constituinte aprovasse uma consulta nao para a suspenso do rei, o que, na sua lgica, permitiria criar um governo infenso s manobras das faces803. Para um bom rousseausta nada melhor que a manifestao do soberano para escapar do domnio do facciosismo. Talvez isso tivesse permitido um resultado diferente do que se viu aps as manobras dos lderes da grande burguesia, o triunvirato e Lafayette, os quais, diante da alternativa de enfiar a cabea na areia ou pedir a suspenso dos poderes do rei empurraram a Assemblia Constituinte para a soluo do avestruz [que] foi adotada com a fico do seqestro804. O que se viu a partir da foi uma monarquia enfraquecida e merc das intrigas. Na verdade, qual outro diagnstico para a ascenso dos brissotistas ao poder em maro de 1792 e a coroao de sua poltica aventureira de guerra? Por fim, cabe ressaltar que mesmo tendo visto seu diagnstico da fuga do rei, e do que se deveria fazer em relao ao papel do Lus XVI e da monarquia, rejeitado com profunda hostilidade pela quase totalidade dos membros da Constituinte e, em particular, ver aprovada uma constituio que pouco ou quase nada tinha a ver com algumas de suas principais idias, ele foi o primeiro a defender, ao fim dos trabalhos da Constituinte, que os deputados

802

GUENIFFEY, Patrice. Robespierre. In: JOURDAN, Annie. Robespierre: figure-rputation. Amsterdan, Editions Rodopi, 1996. P. 9. 803 A opo da consulta popular como a chave para se resolver a problemtica questo da localizao do centro poltico durante a Revoluo o que ele chamou em seu Discurso sobre a Constituio // o problema ainda indeciso da economia poltica popular: de colocar na virtude do povo e na autoridade do soberano, o contrapeso necessrio das paixes do magistrado e da tendncia do governo tirania afinal de contas no era uma sada to radical assim. O prprio Talleyrand, em suas memrias, advogara que o rei deveria ter recorrido a este expediente para contestar a pretenso da Assemblia Constituinte em se arrogar o poder de representar o povo. Cf. DIAZ, Furio. Europa: de la Ilustracin a la Revolucin. Madrid, Alianza Editorial, 1986. P. 595. E para o discurso citado: OCR, t. IX, p. 507. Sobre a frmula economia poltica popular, ver infra, p. 255. 804 MURRAY, William J. Um filsofo na Revoluo Francesa: Dominique Joseph Garat e o Journal de Paris . In: KRANTZ, Frederick (org.) A outra Histria: ideologia e protesto popular nos sculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1990. P. 154. Diante da deciso da maioria da Constituinte de fazer a nao acreditar na fico do seqestro do rei, Robespierre dizia que ele examinaria os limites da inviolabilidade real e

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aprovassem um dispositivo em que se juraria em no transigir a respeito das regras constitucionais com o executivo e que fosse considerado traidor da ptria quem pretendesse mudar os decretos constitucionais. Essa foi a idia que ele defendeu em seu discurso sobre a apresentao da Constituio ao rei em 1o de setembro de 1791805. De fato, ele j era, bem antes de maio de 1792, quando abraou uma nova funo, a de jornalista, defensor da Constituio806. 8. Foi durante o perodo da Constituinte que seus argumentos polticos bsicos amadureceram e que se produziu seu projeto de futuro. O programa republicano democrtico trazia em si o discurso do Terror? Como vimos, o discurso poltico da burguesia constituinte no era refratrio ao uso da linguagem terrorista durante o perodo da Constituinte. No entanto, esse mesmo discurso no podia ser considerado um discurso republicano democrtico. Se h, portanto, uma semelhana de mtodo entre os jacobinos de 1789 e os jacobinos robespierristas, existe, por outro lado, uma diferena de contedo poltico entre eles. Qual era o contedo do programa democrtico robespierrista? Algo como a idia de que os homens no so nada, s a ptria tudo: ela ordena, obedecei. Ou ainda: tomemos em considerao s a conquista do bem da comunidade, um cidado deve tudo ao bem comum, cada homem em uma repblica propriedade publica. Seu tempo e sua capacidade, sua juventude, a idade adulta, a velhice, assim toda sua vida pertence ao seu pas, ningum verdadeiramente republicano se no renuncia prpria voz individual em favor daquela pblica, qualquer palavra que tenda a enfraquecer o interesse do povo um crime diablico. Estes princpios e idias, isto , o primado do coletivo, a soberania absoluta do povo, a exaltao da virtude pblica, averso s faces, so os contedos que comumente podemos ver no discurso poltico robespierrista. Isto , um discurso em que haveria a predominncia cada vez maior da sociedade sobre o indivduo e a conseqente afirmao do que se chama

que no iria examinar se os povos ainda esto no ponto de acreditar que se rapta os reis como as mulheres. Sur linviolabilit royale (14 de julho de 1791). OCR, t. VII, 554. 805 OCR, t. VII, p. 694 e segs. 806 Como mostramos mais acima, o nome do jornal era justamente O Defensor da Constituio.

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democracia totalitria807. Contudo, somente a primeira citao de origem jacobina, mais precisamente uma circular do Comit de Salvao Pblica de dezembro de 1793, as outras citaes foram reunidas por Luciano Guerci808 e so de John Adams, Samuel Adams, Benjamin Rush, entre outros whigs norte-americanos. Estes, segundo Gordon S. Wood, desenvolveram idealmente um republicanismo que cancelava o indivduo809. E sem que isso tivesse gerado o Terror. Para concluir essa parte do nosso trabalho, podemos perguntar com Robert R. Palmer qual era o objetivo que os membros do Comit de Salvao Pblica perseguiam com a instalao do governo revolucionrio e seu corolrio, o Terror? Por que razo as pessoas estavam ameaadas de perder sua liberdade? Em busca de que objetivo classes inteiras da populao foram aviltadas, amedrontadas, perseguidas e a seus olhos expropriadas? A essas questes o historiador americano responde:
evidente com base nos arquivos e a erudio mais escrupulosa no poderia minimizar o fato que o grande desejo do governo revolucionrio em 1794 era estabelecer e perpetuar a Repblica francesa. Era precisamente o que Robespierre e outras centenas de responsveis polticos acreditavam fazer. Em seu esprito a vitria militar somente representava uma etapa necessria consolidao do regime republicano. Robespierre, como Abraham Lincoln, no pensava somente na guerra, mas na paz que se seguiria, nesse pas a construir para o qual ele pedia aos homens para morrer.810

O que seria esse pas a construir? O que era essa repblica? Um sonho impossvel? Novamente as palavras de Palmer podem nos ajudar a entender a utopia robespierrista:
que ele tenha perseguido um sonho impossvel tambm no significa que esse sonho no tivesse nenhum sentido e que ele no valesse a pena que se tentasse dele se aproximar. Dizer que a democracia esta fundada sobre a virtude no deveria fazer rir a mais ningum. Percorrendo a lista de mudanas que, segundo Robespierre, o governo revolucionrio desejava ver se realizar na Frana, descobre-se nela hoje uma certa semelhana com o que

807

GUARNIERI, Carlo. Cesarismo. In: BOBBIO, Norbertto, MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. 2 ed., Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1986. 161. 808 Nesse trecho do nosso trabalho reproduzimos basicamente as idias de Luciano Guerci. Ver seu artigo sobre o jacobinismo na bibliografia. A crtica de Guerci parece ter surtido efeito na galxia furetiana. Pelo menos quanto a Patrice Gueniffey: a repblica segundo Robespierre, ao menos quando ele evoca seu contedo material, no estabelece nenhuma relao evidente, e a fortiori necessria, com o Terror. No vemos em que o Terror seria necessrio sua instituio ou mais tarde sua manuteno. GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence revolutionnaire 1789-1794. Paris, Fayard, 2000. P. 320. 809 // na mente de muitos whigs, em 1776, os direitos individuais, mesmo as liberdades civis bsicas que ns consideramos to crucial, possuam pouco de sua relevncia terica moderna quando confrontadas com a vontade do povo. WOOD, Gordon S. The creation of the American republic 1776-1787. Nova York, the Norton Library, 1972. P. 61-63. 810 PALMER, Robert R. Le gouvernement de la Terreur. Lanne du comit de salut publique. Paris, Armand Colin, 1989. P. 227. curioso ver um historiador liberal comparando Robespierre a Lincoln!

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se poderia ter lido nos jornais da manh, uma semelhana desconcertante; desconcertante, com efeito, pois se trata de palavras pronunciadas em plena ditadura do Terror, para se estabelecer o que ns chamamos hoje muito simplesmente civilizao. Maximilien, com todos os seus defeitos, e eles eram numerosos, conta entre a meia dzia dos maiores 811 profetas da democracia.

Assim, as idias republicanas de Robespierre foram desenvolvidas antes da crise que tornou irremedivel a radicalizao revolucionria812. Essas idias nunca produziram o despotismo da multido, pois no momento em que elas foram formuladas nada era mais diferente desse despotismo, a menos que assim seja considerado o perodo da Assemblia Constituinte e sua cria, o regime censitrio do breve momento do Legislativo. E quando sobreveio aquela radicalizao em 1793, foi no formato de uma ditadura de salvao pblica que como afirmava o mdico dos pobres, Ulysse Trlat // no era uma repblica, mas uma composio (transaction) revolucionria, sublime em seus efeitos porque ela salvou a Frana do estrangeiro813. Foi, portanto, no contexto feliz desses anos iniciais da Revoluo que se maturou a utopia robespierrista. Foi nele que apareceram os principais contedos polticos robespierristas, os quais repousavam na idia chave de que a Frana moderna no poderia ser nem uma democracia absoluta e nem um despotismo representativo, e isso que passaremos a ver no restante deste captulo.

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PALMER, Robert R. Le gouvernement de la Terreur. Lanne du comit de salut publique. Paris, Armand Colin, 1989. P. 248. Deve-se observar que essas concluses de Palmer foram feitas em 1940, ano da edio original de seu livro. poca em que novamente se fazia necessrio colocar em campo os instrumentos polticos que nasceram no sculo Ilustrado. Da sua simpatia pelo apelo virtude, o que hoje, numa poca de pur o cinismo, parece fora de moda. De qualquer forma, o grande historiador americano certamente estava evocando, em suas palavras citadas, a bela passagem de Maximilien em que ele afirmava que ns queremos substituir, em nosso pas, a moral ao egosmo, a probidade honra, os princpios aos usos, os deveres convenincia, o imprio da razo tirania da moda, o desprezo do vcio ao desprezo da infelicidade, o orgulha insolncia, a grandeza de alma vaidade, o amor da glria ao amor do dinheiro, a gente de valor boa companhia, o mrito intriga, o gnio ao belo esprito, a verdade ao brilho, o charme da felicidade ao tdio da volpia, a grandeza do homem a pequenez dos grandes, um povo magnnimo, poderoso, feliz, um povo amvel, frvolo, miservel, isto , todas as virtudes e todos os milagres da Repblica, a todos os vcios e todos os ridculos da monarquia. Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique (5 de fevereiro de 1794). OCR. T. X, p. 352. 812 Poder-se-ia objetar que nesses momentos Robespierre no teve o poder necessrio para implant-las. Contudo, a resposta para essa objeo que quando ele teve mais poderes, ele tambm no o fez, pois ento o regime poltico que ele colaborou para implantar foi a ditadura de salvao pblica, que nada tinha a ver com eleies anuais, no-reelegibilidade dos representantes, liberdade de imprensa, entre outros. 813 Citado em: BRACCO, Fabrizio. Louis Blanc, dalla democcrazia politica alla democrazia sociale 1830-1840. Florena, Centro Editoriale Toscano, 1983. P. 21. Trlat foi presidente de uma das primeiras associaes republicanas poca da Monarquia de Julho, a Association des amis du peuple.

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II. Democracia, republicanismo e forma de governo republicana na viso do robespierrismo

1. Entre tantas acusaes que a historiografia anti-robespierrista produziu existe tambm aquela que afirma que Robespierre no teria sido um republicano da primeira hora. A acusao de que o republicanismo do advogado de Arras teve um carter oportunista foi um dos elementos centrais da maneira como Alphonse Aulard o caracterizou em sua Histoire politique de la Rvolution franaise. Com efeito, esse historiador questionou a sinceridade das idias polticas republicanas de Robespierre e considerou sua adeso Repblica, feita durante o processo revolucionrio do 10 de agosto, como uma atitude oportunista, no mau sentido da palavra814. Para questionar a relao entre republicanismo e robespierrismo, Aulard usou a argumentao extrada de algumas passagens das reflexes de Robespierre nas quais supostamente ele teria formalmente desaprovado o republicanismo815. Conforme vimos na primeira parte deste trabalho, Aulard tinha por preocupao construir uma histria da Revoluo centrada no republicanismo dantonista, tarefa historiogrfica que teria melhor chance de ser bem sucedida se ele conseguisse diminuir os mritos polticos de Robespierre, em particular no tocante s suas qualidades republicanas. Quanto a essa empreitada de Aulard duas objees so possveis. De um lado, ela contrariava o que o conjunto da historiografia revolucionria parecia ter por unanimidade at ento, para o bem ou para o mal, a ligao da carreira de Robespierre com o republicanismo, a despeito dele, num primeiro momento, no ter defendido a forma de governo republicana 816; por outro lado, ignorava a polissemia que a palavra repblica teve ao longo histria, o que faz da tentativa de classificar os revolucionrios quanto ao regime poltico de sua preferncia uma tarefa nada fcil. De todo modo, a questo existe: por que Robespierre no foi um adepto de primeira hora da repblica como Franois Robert e Jacques Pierre Brissot ou como membros do Crculo Social, tais como, Condorcet e Nicolas de Bonneville? Robert, por exemplo, mesmo

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AULARD, Alphonse. Opus cit. P. 235. Como vimos, Aulard tambm afirmava que Danton era um republicano do amanh. S que em seu caso sua atitude oportunista era considerada como uma coisa positiva. 815 Idem, ibidem. As passagens utilizadas por Aulard sero comentadas a seguir. Patrice Guennifey tambm um exemplo atual dessa argumentao. Cf. GUENIFFEY, Patrice. Robespierre. In: FURET, Franois e OZOUF, Mona. Dicionrio crtico da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. P. 320.

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antes da crise de Varennes, j defendia essa forma de governo em seu livro Le republicanisme adapte la France817. E, mais importante ainda, por que Maximilien continuou na sua posio contrria ao estabelecimento da repblica mesmo depois daquela crise, quando os membros do Clube dos Cordeliers, Camille Desmoulins, entre outros, assumiram uma posio em defesa dessa forma de governo? A tentativa de responder a essas perguntas nos obriga a atentarmos para algumas questes. Assim, j respondemos parcialmente questo de ele no ter sido um adepto de primeira hora da repblica (cf. segunda parte, primeiro captulo), ao analisarmos a evoluo do pensamento pr-revolucionrio robespierrista da demofilia democracia e como essa evoluo foi feita num contexto poltico reformista que no pretendia escapar aos limites de um regime monrquico constitucional. Contudo, essa resposta pode ser complementada com uma considerao de fundo que nos ajudar a entender tambm a continuidade de sua atitude desde o momento em que ocorre a defeco do rei em junho de 1791 at s vsperas da crise que levou Revoluo do 10 de agosto. Tal considerao centra-se no fato de que Robespierre foi partidrio de uma espcie de regime misto de governo desde os primeiros momentos da Revoluo. Com efeito, ele adotou um aspecto especfico do rousseausmo, as inovaes introduzidas por Jean-Jacques na teoria das formas de governo, da qual extraiu sua concepo de um regime monrquicodemocrtico. A defesa desse regime como o formato constitucional ideal para a Frana revolucionria nos permite compreender dois pontos capitais na trajetria poltica do robespierrismo. Em primeiro lugar, por meio de sua defesa de uma monarquia popular que compreendemos melhor a relao entre o robespierrismo e a ideologia rousseausta, sua insero na tradio cvico-humanista e como ele veio a ser um dos mais caractersticos defensores do republicanismo clssico entre os revolucionrios de 1789.

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Ver, Primeiro Captulo desta Segunda Parte. O jornalista Franois Robert refugiara-se na Frana vindo de Lige. Escreveu um livro chamado Le rpublicanisme adapt la France em 1790, no qual ele defendia a adoo da Repblica na Frana. Como observa Dorigny, era um livro provocador e desagradou mesmo aos amigos republicanos de Robert, que no achavam que era o momento certo para se defender o fim do regime monrquico. Cf. ROBERT, Franois. Le rpublicanisme adapt la France. Paris, EDHIS, 1991. Edio original de 1790. DORIGNY, Marcel. La Rpublique avant la Rpublique. Quels modles pour quelle Rpublique? In: VOVELLE, Michel. (dir.) Rvolution et Rpublique: lexecption franaise. Paris, ditions kim, 1994. P. 116.

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Em segundo lugar, o fato dele ter sido partidrio de uma espcie de regime misto de governo no significava que ele tivesse sido marcado pelas idias de Polbio e menos ainda pelas de Maquiavel, sobre quem ele repetia os clichs da legenda negra criada sobre o autor dO prncipe, como vimos mais acima. Mas que sua idia de governo misto era como se manifestava aquilo que chamamos de robespierrismo de compromisso, isto , as concesses que ele esteve disposto a fazer ao Antigo Regime antes que sobreviesse a crise que levaria Revoluo do 10 de agosto de 1792. Depois do malogro do compromisso, isto , o fracasso da compatibilizao entre monarquia e democracia, as concepes democrticas de Robespierre continuaram as mesmas, exceto que o governo ou o executivo passou a ter o formato republicano. Antes, porm, de passarmos discusso sobre o regime misto de governo proposto pelo robespierrismo devemos considerar algumas outras questes, as quais dizem respeito natureza do republicanismo durante sculo XVIII. Durante este perodo da histria, a repblica no era definida com base em um contraste claro entre monarquia e repblica, e isto tanto por uma herana etimolgica quanto pela prpria natureza do republicanismo na Era do Iluminismo, j que este era muitas vezes encarado mais como um modo de vida do que como uma forma de regime poltico. Uma outra questo est ligada dificuldade do sculo XVIII em contrastar tambm repblica e democracia. Em particular, o republicanismo francs, desde Rousseau at os dias da Terceira Repblica818, encarava as duas palavras como sinnimos, o que nos ajuda a entender que a nfase da luta robespierrista pela democracia no significava de modo algum oposio repblica. Por fim, devemos considerar a idia de oportunidade do regime republicano durante o processo revolucionrio, o que era uma varivel explicitamente levada em conta por parte de Robespierre. Quanto a isso, no vemos porque no deveramos ter a mesma condescendncia para com o oportunismo de Robespierre como a que Aulard demonstrou ter para com o oportunismo poltico de Danton, reputado como uma qualidade positiva. Como tentaremos demonstrar, defender a oportunidade ou no do regime republicano nunca significou para o advogado de Arras um afastamento dos seus prprios princpios. Conforme Roger Barny, as

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Ver infra, p. 239, nota 935.

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convices polticas de Robespierre no o impedem nunca de analisar uma situao em termos de relao de foras e de luta poltica819.

2. A dificuldade do sculo XVIII em contrastar repblica e monarquia tem sua origem na prpria palavra repblica. Com efeito, esta palavra, em seu sentido latino, podia significar qualquer regime poltico, inclusive monarquia820. Esse um dos significados que ela possui no clssico de Jean Bodin, Os Seis Livros da Repblica. Na verdade, tal significado um vcio de origem, pois o uso da palavra repblica era profundamente tributrio do sentido dado a ela pelos romanos, seus criadores, que era o de sociedade civil ou poltica821. Ccero, por exemplo, j acentuava // como elementos distintivos da Repblica o interesse comum e, principalmente, a conformidade com uma lei comum, o nico direito pelo qual uma comunidade afirma sua justia //822. Os gregos j tinham essa mesma compreenso. Em uma passagem da Poltica, Aristteles observara, em relao palavra grega correspondente latina repblica, politeia, que ela era a forma de estado em que a multido governa para a utilidade pblica; este nome tambm comum a todos os Estados823. Tal sentido que seria retomado durante o perodo moderno. Rousseau, por exemplo, denominava repblica: // todo Estado regido por leis, sob qualquer forma de administrao que possa conhecer, pois s nesse caso governa o interesse pblico e a coisa pblica passa a ser qualquer coisa824. Em nota, mesma pgina do Contrato social, Rousseau ainda era mais explcito ao afirmar que por repblica ele no entendia // somente uma aristocracia ou uma democracia, mas em geral todo governo dirigido pela vontade geral, que a lei. Para ser

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BARNY, Roger. Le droit naturel l preuve de lhistoire: Jean-Jacques Rousseau dans la Rvolution. Paris, Les Belles Lettres, 1995. P. 55. 820 Repblica era uma palavra ambgua que podia designar seja todo tipo de Estado, a compreendido as monarquias, seja, por oposio a reino, um Estado no monrquico. DUMONT, Jean Christian. Le spectre de la Rpublique romaine. In: VOVELLE, Michel. (dir.) Rvolution et Rpublique: lexecption franaise. Paris, ditions Kim, 1994. P. 14. 821 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1997. P. 120. 822 MATEUCCI, Nicola. Repblica. In: BOBBIO, Norbertto, MATEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionrio de Poltica. 2 ed., Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1986. 823 ARISTTELES. A poltica. So Paulo, Martins Fontes, 2002. P. 106. bem provvel que as idias republicanas de Ccero derivassem das concepes helnicas de estado, j que, como afirma David Held, essas concepes acabaram influenciando os escritores romanos, especialmente o prprio Ccero. HELD, David. Modelos de democracia. Madrid, Alianza Editorial, 1992. P. 54. 824 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro segundo, captulo VI, p. 61.

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legtimo, no preciso que o governo se confunda com o soberano, mas seja seu ministro. Ento, a prpria monarquia repblica825. Nesse quadro semntico, no difcil vermos os homens do sculo XVIII afirmando que Rei, Lordes e Comuns, cada um formando contrapeso ao outro e tendo como resultado o bem do todo, podem com mais propriedade ser chamados uma repblica do que uma monarquia826. certo que so palavras de um ingls no incio daquele sculo, mas no esto muito distantes da compreenso poltica do conjunto da Era do Iluminismo. Com efeito, na histria da Frana, o republicanismo nunca chegou a se constituir como partido ao longo da histria que vai do sculo XVIII at a crise de Varennes, no sentido que ele fosse uma orgnica e coerente alternativa ao regime monrquico. Por outro lado, ele era // um sentimento de revolta e de rebelio, uma agitao que operava em vrios nveis, do moral e individual ao poltico stricto sensu, do econmico-social ao educativo, em um complexo e variado entrelaar-se de diversos componentes827. Nessa sentido, a posio de Robespierre no escapava natureza complexa que cercava a idia republicana no sculo XVIII, o que se pode dizer que era o caso da quase totalidade dos revolucionrios at a crise de Varennes. Mesmo Camille Desmoulins que, como dissemos, defendeu a instalao da repblica a partir da desero do monarca em 21 de junho de 1791, escreveu em sua famosa folha Rvolutions de France et de Brabant, que o que ele entendia por repblica era // um estado livre com um rei ou um Stadhouder ou governador geral ou um imperador, o nome no importa828.

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Idem, p. 61, nota 156. o que pensava Maximilien: // pa ra muitos indivduos as palavras repblica e monarquia so inteiramente vazias de sentido. O palavra repblica no significa nenhuma forma particular de governo, ela pertence a todo governo de homens livres, que tm uma ptria. Ora, podemos ser livres com um monarca assim como com um senado. O que a constituio francesa atual, uma repblica com um monarca. Ele no pois nem monarquia nem repblica, ela uma e outra. Sur linviolabilit royale (13 de julho de 1791). OCR, t. VII, 552. 826 Palavras de Thomas Wentworth, comentando justamente um panfleto, The art of governing by parties, que chamava explicitamente o reino ingls de repblica. Citado em. VENTURI, Franco. Opus cit. P. 126-7. 827 GUERCI, Luciano. Libart degli antichi e libert dei moderni. Sparta e i philosophes nella Francia del Settecento. Npoles, Guida Editore, 1978. P. 36. 828 Citado em: OCR, t. VII, P. 552, nota 04. Em outro momento de sua vida, agora como deputado Conveno, Camille Desmoulins foi ainda mais explcito sobre o que ele considerava uma repblica. Durante os debates sobre o julgamento de Lus XVI, ele se perguntava o que constitua o estado da repblica, para responder citando Montesquieu: a igualdade de direitos; e a assemblia constituinte tinha proclamado essa igualdad e, a qual disse: a lei, seja que ela proteja, seja que ela puna, igual para todos, tinha feito da Frana uma repblica, qualquer que fosse o nome que ela tivesse dado a constituio; pois no o nome que o notrio d ao ato, mas a substncia mesma do ato que faz a sua natureza. Era ento verdade dizer que ns nos tornramos uma repblica em 1789 //. Citado em: Lettres a ses commettans (10 de janeiro de 1793). OCR, t. V, p. 213.

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Nesse sentido, consideraes como a que fez George Rud829 de que Robespierre no era republicano por princpio, republicano enquanto dotado da crena de que a repblica fosse por sua natureza prefervel monarquia, s so vlidas quando entendemos o republicanismo como simplesmente a defesa de uma forma de governo. Ou, na linguagem dos homens da Revoluo, no sentido poltico do termo830. Outro ponto importante a salientar para compreendermos o republicanismo robespierrista a prpria intercambialidade semntica entre as palavras repblica e democracia ao longo do sculo XVIII. Muitas vezes, os pensadores iluministas, assim como os revolucionrios de 1789, tinham uma compreenso das duas palavras como sinnimos831. Tratando do que ele chama a ofensiva dos modernos na dcada de 1770, Luciano Guerci nos d o exemplo do philosophe dHolbach que, ao condenar o apelo aos antigos, condenava a um s tempo repblica e democracia, encarando esses dois termos quase com o mesmo significado832. Durante a Revoluo no era diferente. Assim, Rabaut Saint-tienne, em um discurso durante a Constituinte, fazia coro com a opinio unnime dos constituintes contra a repblica. Nesse discurso, ele dava repblica o significado de democracia, o que se pode ver na passagem abaixo:
impossvel pensar que algum na Assemblia tenha concebido o ridculo projeto de converso do reino em Repblica. Ningum ignora que o governo republicano somente conveniente a um pequeno Estado, e a experincia nos ensinou que toda repblica acaba por ser submetida aristocracia e ao despotismo.833

Desse modo, temos que levar em conta, como afirma Roger Barny, que // em se tratando do ideal republicano, o principal problema aquele das relaes mantidas entre os

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RUD, George. Opus cit. P. 156. Ver mais abaixo, p. 203 831 Robespierre resumia essa idia quando disse, em seu discurso Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique de 5 de fevereiro de 1794, que // governo democrtico ou republicano: essas duas palavras so sinnimos //. ROBESPIERRRE, Maximilien. OCR. T. X, p. 352. 832 GUERCI, Luciano. Opus cit. P. 196. 833 RABAUT de SAINT-TIENNE, Jean Paul. Discurso de 21 de setembro de 1789. In: Archives Parlementaires. Paris, Librairie Administrative de Paul Dupont, 1877. Tomo IX, P. 75. Mais explcito ainda nessa indiferenciao entre repblica e democracia o caso de Robert. Em suas palavras, o republicanismo ou a democracia o governo de todos: para ser perfeito, necessrio que todos os cidados concorram pessoalmente e individualmente para a confeco da lei. ROBERT, Franois. Opus cit. P. 87.

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termos repblica e democracia. No parece que os homens da revoluo tenham podido ter clareza a esse propsito834. No obstante, no difcil situarmos Robespierre dentro do campo republicano desde o comeo da Revoluo. Isto por duas razes. A primeira que palavra republicano, como nos lembra Modesto Florenzano, acrescentou-se, depois da Revoluo inglesa de 1640, o sentido de rebeldia835. Assim, Robespierre foi acusado, desde a Constituinte, pelos jornais contra-revolucionrios de ser republicano por sua constante luta pela extenso de direitos a todas as pessoas sem distino, o que o fez ser alcunhado de deputado populomano836 pelo jornal Gazette de Paris, o mesmo que o chamaria mais simplesmente de o republicano837. A outra razo, mais importante, que a palavra repblica tinha tambm o significado de um modo de vida tico e moral. Para os maiores philosophes, o republicanismo assumia antes de tudo essas caractersticas. Como afirma Blair Worden, essa poltica de virtude que define o republicanismo838. esse significado que emerge no debate que o advogado de Arras travou com Collot dHerbois
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no clube jacobino em 2 de maro de 1792. Durante esse debate, Robespierre

defendeu que se retirasse a palavra republicano de uma proclamao que os jacobinos estavam produzindo, com a justificativa de que os jacobinos (scios da Sociedade dos Amigos da Constituio, nome oficial do clube) no podiam defender a repblica, sob pena de contrariar o juramento Constituio monrquica que tinham feito como membros do clube. Por outro lado, diante da afirmao feita por Collot dHerbois, nesse mesmo debate, de que a palavra republicano possua um sentido poltico e um moral, Robespierre afirmava no desconhec-los, afirmando sim, senhores, eu amo o carter republicano; eu sei que nas repblicas que se educaram todas as grandes almas, todos os sentimentos nobres e generosos840.

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BARNY, Roger. Le droit naturel l preuve de lhistoire: Jean -Jacques Rousseau dans la Rvolution. Paris, Les Belles Lettres, 1995. p. 190-1. 835 Cf. FLORENZANO, Modesto. Opus cit. P. 03. 836 Em outro momento, o jornalista girondino Gorsas o chamou de o Tout-peuple Robespierre. OCR, t. IX, p. 74, nota 26. 837 Ver: OCR, t. VI, p. 507 e OCR, t. VII, p. 251. 838 Citado em: SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. So Paulo, Editora UNESP, 1998. P. 31, Nota, 68. 839 Jean-Marie Collot dHerbois, futuro membro da Conveno e do Comit de Salvao Pblica. 840 Sur une circulaire propos de la dclaration de lEmpereur Lopold (2 de maro de 1792). OCR, t. VIII, p. 212. Como afirmamos, Robespierre foi acusado, desde a Constituinte, pelos jornais contra-revolucionrios de ser

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Ele assim consciente de que a frugalidade, uma vida sem vcios, a pobreza digna eram considerados os elementos essenciais de quem levava uma vida republicana. Decorre da que, para muitos republicanos, o nico ttulo que se poderia almejar era o de incorruptvel841. A mesma conscincia do sentido moral da palavra republicano voltou a aparecer quando ele exclamou em maio de 1792: Eu sou um republicano! Sim, eu quero defender os princpios da igualdade e o exerccio dos direitos sagrados que a constituio garantiu ao povo contra os sistemas perigosos dos intrigantes que s a consideram como um instrumento de sua ambio.842 Contudo, quanto ao sentido poltico da palavra era melhor deix-lo em suspenso, optando por respeitar a Constituio e defender Lus XVI. 3. A implantao de um regime republicano precisava levar em considerao a oportunidade poltica para faz-lo. As escolhas feitas por Robespierre, mesmo no momento em que as esperanas por longo tempo depositadas na figura de Lus XVI tinham se desvanecido por completo, dependeram da avaliao de se era oportuna uma mudana radical da forma de governo e para onde essa mudana poderia levar a Frana. Quanto a isso preciso no esquecer que a Revoluo, no momento em que a figura da monarquia j parecia profundamente desacreditada durante a crise de junho-julho de 1791, no podia contar com o clube jacobino, tomado por profundas divergncias que emergiram justamente sobre os caminhos a serem seguidos aps a fuga do rei. Tais divergncias internas acabaram dividindo a Sociedade dos Amigos da Constituio que foi, segundo Roger Barny, sangrada em branco pela ciso dos feuillants843.

republicano. Assim, no sem ironia o comentrio que fez o Journal de la Cour et de la Ville sobre essa disputa semntica e ttica que descrevemos em relao palavra republicano no Clube Jacobino. Este jornal noticiava que ns nos apressamos em dar conhecimento a todas as potncias do universo, que o patriota Robersp abdicou autenticamente sua repblica. Idem, ibidem. 841 Esse sentido da palavra republicano, caracterstico do Perodo Moderno, acabou avanando muito alm desse momento. Seriam inumerveis os exemplos na histria e na historiografia francesa de quem defendeu e tentou viver respeitando os princpios decorrentes desse sentido. Um exemplo emblemtico disso foi Georges Lefebvre, o qual ficou conhecido por ter levado uma vida frugal e, o que mesmo motivo de chacota nesses tempos neoliberais, possuir uma casa simples demais para um catedrtico da Sorbonne. Ver: CROUZET, Franois. French historiens and Robespierre. In: HAYDON, Colin e DOYLE, Willian. Robespierre. Cambridge, Cambridge University Press, 1999. 842 Le Dfenseur de la Constitution (primeiro nmero). OCR, t. IV, p. 09. 843 BARNY, Roger. Le droit naturel l preuve de lhistoire: Jean-Jacques Rousseau dans la Rvolution. Paris, Les Belles Lettres, 1995. p.183. Os Feuillants (fueldenses, em portugus) foi o clube que se constituiu da ciso da ala majoritria dos jacobinos com a minoria representada por Brissot e Robespierre. Os feuillants defendiam que essa fuga deveria ser, por assim dizer, esquecida.

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Ao mesmo tempo, o que sobrou do clube, seu lado mais radical, encontrava-se enfraquecido e na defensiva aps essa ciso, o que impossibilitava encetar uma nova etapa revolucionria. Contudo, mesmo antes da ciso se concretizar formalmente, Robespierre j era muito reticente quanto a fora que um movimento para derrubar a monarquia poderia ter. Quanto a isso, ele estava certo. Quando em 17 de julho de 1791, os mais ardorosos defensores da derrubada do rei fizeram uma manifestao pblica para recolher assinaturas para uma petio pela proclamao da repblica, eles acabaram sendo dispersos bala, durante o episdio que acabou conhecido como a fuzilaria do Campo de Marte844. Mesmo depois de passada a crise provocada pela fuga do rei e quando uma nova crise surge no horizonte com a deciso de declarar guerra ao imprio austraco e ao reino da Prssia, sua posio permanece de hesitao quanto opo pela forma de governo republicana e de pessimismo quanto ao seu sucesso. Nesse contexto, ele que tinha combatido ferozmente as contradies de princpio da Constituio de 1791 preferiu, mais uma vez, manter-se apegado aos dispositivos legais previstos nessa Constituio, j que ele pensava que uma mudana de regime poderia resultar numa soluo poltica aventureira. E que, por sua vez, esta poderia provocar um retrocesso poltico ainda maior. Assim, sua atitude acomodou-se viso de que naquele momento no se devia radicalizar a Revoluo com o fito de instituir a repblica. Isto porque, nessa altura, parece claro que ele no era refratrio monarquia como forma de governo, desde que temperada pelo voto universal, e, por outro lado, a soluo proposta para o fim da monarquia parecia ser muito pouco vivel. nessa direo que vai o debate lembrado mais acima com Collot dHerbois e tal atitude se reflete, em particular, no jornal que Robespierre lanou em plena

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Duas foram as peties levadas ao Campo de Marte no dia 17 de julho de 1791. Uma primeira discutida no clube jacobino e uma segunda depositada por Brissot. Em seu primeiro n mero dO Defensor da Constituio, Robespierre repertoriava o episdio do Campo de Marte, dizendo que ns nos opusemos na Sociedade dos Amigos da Constituio, ao primeiro projeto de petio, que ns no contestvamos a legitimidade, mas que prevamos as conseqncias funestas. Cabe lembrar que o primeiro projeto de petio pedia Assemblia Nacional que o povo fosse consultado sobre a fuga do rei. A segunda petio depositada por Brissot pedia a abolio da monarquia. Se em relao primeira petio, cujo contedo era mais moderado, e mesmo assim Robespierre no achou prudente lev-la ao Campo de Marte, quanto segunda, no cabe dvida que ele a rejeitou completamente. Cf. Le Dfenseur de la Constitution (primeiro nmero). OCR, t. IV, p. 12.

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crise provocada pela guerra (o primeiro nmero sai em 17 de maio de 1792) que, como j sabemos, tinha justamente o nome de O Defensor da Constituio845. Desse modo, radicalizar a Revoluo na direo de uma repblica poderia dar margem aos conservadores para estabelecerem um regime aristocrtico ou ditatorial. Da que no mesmo discurso lembrado acima, ao mesmo tempo em que ele exclama eu sou republicano!, ele no deixava de afirmar que ele gostaria mais de:
// ver uma assemblia representativa popular e cidados livres e respeitados com um rei, que um povo escravo e rebaixado sob a vara de um senado aristocrtico e de um ditador. Eu no gosto mais de Cromwell que de Carlos I; e eu no posso suportar o jugo dos decnviros mais do que o de Tarqunio. nas palavras de repblica ou de monarquia que reside a soluo do grande problema social?846

Isso porque para ele continuava a ser uma soluo segura a repblica com um monarca 847, soluo que ele acreditava ter sido consagrada na constituio de 1791. E s essa soluo era capaz de combater o sistema perigoso dos intrigantes, isto , as ameaas lafayettistas, que s consideravam tal constituio que como um instrumento de sua ambio. Contudo, no cabe dvida para onde se direcionava sua simpatia quando se tratava da forma de governo. Quanto a isso ele era claro: acusaram-me, no seio da Assemblia, de ser republicano, fizeram-me muita honra, eu no sou. Se me tivessem acusado de ser monarquista, teriam me desonrado, eu tambm no sou848. E tambm no h dvida que as argumentaes de Maximilien se calcaram em uma posio de princpio em defesa da democracia, como ele j vinha fazendo desde o incio da Revoluo, o que pode ser visto em seus principais pronunciamentos. Como se pode ver pelos contedos das suas argumentaes, para Robespierre o fundamental era assegurar a soberania popular, j que para ele repblica e monarquia no eram incompatveis com os princpios, a razo e os direitos sagrados dos povos849. Isto , com a democracia. 4. Entramos agora na considerao final sobre a posio de Robespierre at a desero do rei em junho de 1791 e, sobretudo, a continuidade dessa posio contra o fim da

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Massin comenta: para ele [Robespierre], no perigo da guerra, sob a ameaa de um golpe de Estado reacionrio, a insurreio aparece como a mais incerta soluo, ela pode muito bem fracassar e precipitar o triunfo de uma faco. MASSIN, Jean. Opus cit. P. 106. 846 Le Dfenseur de la Constitution (primeiro nmero). OCR, t. IV, p. 09. 847 Sur linviolabilit royale (13 de julho de 1791). OCR, t. VII, 552. 848 Idem, ibidem. 849 Sur la dlimitation des fonctions ministrielles (10 de abril de 1791). OCR, t. VII, p. 220.

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monarquia, a qual persistiu at a crise que vai levar Revoluo do 10 de agosto. Nessa posio podemos ver, com efeito, aquilo que chamamos de robespierrismo de compromisso. Assim, tem um papel importante em sua viso da forma de governo at o 10 de agosto suas concepes democrticas fundamentadas na preocupao em garantir antes de tudo a soberania popular do que o tipo de titularidade que deveria assumir o executivo. Como se pode ver, essa viso profundamente marcada pela tipologia rousseausta das formas de governo e, por meio dela, podemos entender sua acomodao a frmulas constitucionais que refletem sua aceitao de um compromisso com o Antigo Regime ou, em suas prprias palavras, de uma monarquia popular850. primeira vista essa linguagem poderia parecer extica para quem est habituado s simplificaes sobre a forma de governo, posteriores ao sculo XVIII, as quais, na verdade, poderiam ser entendidas como simplificaes das concluses do famoso aforismo maquiaveliano que abre o primeiro captulo dO Prncipe: todos os Estados, todos os domnios que tiveram e tm imprio sobre os homens, foram ou so ou repblicas ou principados851. Assim para entender a tipologia de governo a qual se filia o caso de Robespierre preciso remontar genealogia do seu pensamento poltico e seguirmos a pista dada por Jean Massin quando ele afirmava que Robespierre defendia uma monarquia democrtica852. Massin segue de perto Jean Jaurs que afirmou que Robespierre era ento mais democrata que republicano, assim como tambm Georges Lefebvre, para quem Robespierre concebia uma monarquia com voto universal853. Na verdade, para colocarmos nos termos exatos da teoria que ele evocava, o que Robespierre imaginava como possvel para a Frana era um legislativo democrtico e um

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Sur les troubles des campagnes (22 de fevereiro de 1790). OCR, t. VI, p. 265. MAQUIAVEL, Nicolau. O prncipe. So Paulo, Crculo do Livro, s/d. P. 37. 852 MASSIN, Jean. Opus cit. P. 40. Quanto ao republicanismo de Robespierre, Patrice Gueniffey afirma que como a maioria dos constituintes, ele se mostrava indiferente a essa questo, convencido que a liberdade podia muito bem se acomodar a um governo monrquico, e que a Constituinte, submetendo o rei vontade da nao, tinha instaurado uma repblica com um monarca. GUENIFFEY, Patrice. Robespierre. In: JOURDAN, Annie. Robespierre: figure-rputation. Amsterdan, Editions Rodopi, 1996. P. 10-11. 853 JAURS, Jean. Histoire socialiste de la Rvolution Franaise. Paris, ditions Sociales, 1969. T. III, p. 270. LEFEBVRE, Georges. tudes sur la Rvolution franaise. Paris, PUF, 1954. P. 96. Levefbre poderia ter dito que nisso Maximilien seguia Maquiavel que acreditava possvel a combinao do instituto do voto popular com a forma do governo monrquico. Ver: SKINNER, Quentin. Machiavel. Paris, Seuil, 1981. P. 93-4.

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executivo comandado por um rei. Para entendermos isso preciso evocar o debate sobre a separao dos poderes e do governo misto e nesse debate que podemos encontrar o enraizamento das opes polticas robespierristas da Constituinte at a derrocada da monarquia, o que aconteceria depois da declarao da guerra em abril de 1792. A idia do governo misto tem adeptos que vo do historiador greco-romano Polbio, seu mais apaixonado defensor, at Gabriel Bonnot de Mably854. Essa idia profundamente criticada por Jean Bodin e recebe um tratamento todo especial no interior da filosofia poltica de Jean-Jacques, o qual, como sempre, vai ser o guia para as reflexes polticas de Robespierre a respeito dessa idia. Contudo, isso no quer dizer que ele no conhecesse de primeira mo a discusso sobre as formas de governo e a idia de governo misto por sua prpria leitura de Polbio ou Mably. Quanto aos trabalhos desse ltimo, por exemplo, constava em sua biblioteca um exemplar da edio de 1789 do Des droits e des devoirs du citoyen855. A idia do governo misto ou dos estados compostos, que se assemelhava e influenciara outra idia ainda mais clebre, a da separao de poderes, tinha por base a teoria aristotlica das formas de governo. Segundo essa teoria, calcada numa taxionomia das formas de governo e numa viso cclica da histria, toda forma de governo possui um momento de degenerescncia que levava a que ela se transformasse numa forma m. Aristteles concebeu seis formas simples de governo: monarquia, aristocracia, politeia (as boas) e tirania, oligarquia e democracia (as ms) Assim, na variante de Polbio dessa teoria, a degenerescncia das formas boas de governo transformava a monarquia em tirania, a aristocracia em oligarquia e a democracia, no a politeia como propusera Aristteles, em oclocracia856. Para evitar essa degenerescncia, produzida como uma fatalidade intrnseca natureza das formas boas de constituio, Polbio concebeu uma stima forma, o governo misto. Esta resultaria da combinao das trs formas boas. Reunidas, elas poderiam combater o mal que as atingia isoladamente, mal que era quase
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Alguns dos nossos comentrios sobre esse tema foram extrados do livro: BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Braslia, Editora Universidade de Braslia, 1997. 855 GROSS, Jean-Pierre. galitarisme jacobin et droits de lhomme. 1793-1794. (La Grande famille et la Terreur). Paris, Arcantres, 2000. P. 76, nota 52. O grande impacto desse livro fez com que Jean Joseph Mounier se perguntasse: eu seria acusado de exagero em cham-lo [a Mably] de legislador da nao?. Cf. WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably . Stanford, Stanford University Press, 1997. P. 06. 856 Expresso que serve para designar o governo da multido.

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sempre identificado instabilidade, desordem. A combinao das trs formas boas de governo produziria um equilbrio de poder, garantindo a estabilidade que as trs formas simples no tinham condio de gerar por si ss. Esparta, com seus dois reis, seus foros e sua assemblia representava o tipo ideal de constituio na opinio de Polbio, pois combinava o governo de um (monarquia), de poucos (aristocracia) e de muitos (democracia), ou seja, era um governo misto. Essa tipologia sofreu uma dura critica de Jean Bodin. A teoria das formas de governo de Bodin tinha por base o que ele chamava tat (estado), palavra usada para substituir em sua teoria o que nas outras teorias era chamado pura e simplesmente de governo ou constituio. Por a j se v que ele inovava na terminologia, ao considerar no as formas de governo mas de estado, o que lhe permitia diferenciar em sua teoria este ltimo do governo. O estado era identificado ao poder soberano, a capacidade de fazer as leis. Por sua vez, o poder soberano era qualificado de absoluto, perptuo e indivisvel. Logo, a qualidade maior do estado, sem a qual ele deixava de ser estado, era ser uno e indivisvel. Partindo do princpio da soberania absoluta e de sua indivisibilidade, Bodin afirmava que o soberano ou tem o poder ou no tem . Aquilo que parecia, primeira vista, ser uma soberania dividida entre monarquia, aristocracia e democracia, na verdade, no constitua um estado, j que quando se fazia uma observao mais acurada o que se via era confuso e desordem. A esse respeito, ele citava o caso da Dinamarca, que, em sua opinio, no era um Estado. Ou ento quando os defensores do governo misto exemplificavam a existncia e o sucesso dessa forma de governo com os casos de Esparta ou de Roma, em que o Estado parecia ter o poder soberano dividido, Bodin afirmava que, na verdade, nesses Estados o que predominava era uma forma sobre as demais. Assim, aquilo que se imaginava ser um governo misto na verdade era o governo to-somente da forma predominante. Roma, por exemplo, ele afirmava ser uma democracia857. Quanto questo das formas boas de governo degenerarem em formas ms como postulavam os tericos das formas de governo antes dele, ele a descartava, afirmando que essa distino tinha um carter pouco preciso. Esta falta de preciso permitiria uma classificao infindvel das formas do estado. Se no fazia para ele sentido em classificar os estados em bons ou maus, outra era seu posicionamento quanto questo do governo. Para ele a

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degenerescncia ou no s podia existir quanto ao exerccio do governo. nesse ponto que entra sua idia de diferenciar Estado e governo. Se na sua concepo de soberania indivisvel identificada com o estado, era impossvel estabelecer uma classificao axiolgica da boa e da m constituio, j quanto ao governo essa questo era trazida de volta. O governo poderia ser, assim, bom ou mau, podendo ser exercido por meio de uma das formas tradicionais de governo. Assim, podia haver vrias combinaes de estado e governo como, por exemplo, estado monrquico e governo democrtico. Diferenciando-se em relao Bodin quanto questo de quem detinha a soberania, que para ele residia no povo, Rousseau acompanhava as idias do autor dos Seis Livros da Repblica quanto separao entre Estado e exerccio do governo. Considerando este ltimo como um corpo intermedirio entre os sditos e o soberano, Jean-Jacques afirmava que
os membros desse corpo chamam-se magistrados ou reis, isto , governantes, e o corpo em seu todo recebe o nome de prncipe. Tm muita razo aqueles que pretendem no ser um contrato, em absoluto, o ato pelo qual um povo se submete a chefes. Isto no passa, de modo algum, de uma comisso, de um emprego, no qual, como simples funcionrios do soberano, exercem em seu nome o poder de que ele os fez depositrios, e que pode limitar, 858 modificar e retomar quando lhe aprouver.

Essas reflexes de Rousseau o levaram a dar um tratamento bastante caracterstico da separao de poderes. Pode-se dizer que ele concebeu o formato mais acabado do que M. J. C. Vile veio a chamar de verso pura da doutrina da separao de poderes, isto , aquela que se definia por sua natureza antimonrquica e, portanto, republicana. Tal verso defendia a separao do legislativo e do executivo, a fim de assegurar a supremacia do legislativo, em relao ao qual o executivo era um magistrado fiel. Assegurada esta supremacia, tinha lugar a exigncia da separao de poderes, dessa vez para evitar a concentrao de poderes no legislativo859. Foi nesse quadro poltico que o robespierrismo concebeu suas idias sobre a natureza do governo monrquico e sobre os poderes da nao, assim como tambm sua definio do

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SPITZ, Jean-Fabien. Bodin et la souverainet. Paris, PUF, 1998. P. 58-59. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro terceiro, captulo I, p. 80-1. 859 WRIGHT, Johnson Kent. Les sources rpublicaines de la Dclaration des droits. In: FURET, Franois e OZOUF, Mona. (dir.) Le sicle da lavnement rpublicain. Paris, ditions Gallimard, 1993. P. 142.

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papel do monarca na futura sociedade francesa e a relao que os representantes do povo deveriam manter com o executivo. Quanto ao primeiro ponto, Maximilien o desenvolveu nitidamente em um dos seus discursos sobre a questo do veto real. Nele, ele afirmava:
no preciso dizer continuamente: a Frana um Estado monrquico; e fazer proceder em seguida desse axioma os direitos do Rei, como a primeira e a mais preciosa parte da Constituio; e secundariamente a poro de direitos que se quer acordar Nao. preciso antes saber, ao contrrio, que a palavra Monarquia, na sua verdadeira significao, exprime unicamente um Estado onde o poder executivo confiado a um s. preciso lembrar que os governantes, quem quer que eles sejam, so estabelecidos pelo Povo e para o Povo; que todos aqueles que governam, e por conseqncia os prprios reis, somente so os mandatrios e os delegados do Povo; que as funes de todos os Poderes polticos, e por conseqncia da realeza, so deveres pblicos, e no direitos pessoais nem uma propriedade particular; assim no preciso se escandalizar ao escutar, na Assemblia dos Representantes da Nao Francesa revestida do poder constituinte, Cidados que pensam que a liberdade e os direitos da Nao so os primeiros objetos que devem nos ocupar, e que a autoridade real, estabelecida unicamente para os conservar, deve ser regulada da maneira mais adequada a preencher essa destinao.860

Como se pode ver, a posio de Robespierre, em setembro de 1789, j era a mesma que adotaria na crise provocada pela fuga do rei em junho de 1791 e mesmo semelhante quela que defenderia s vsperas do processo revolucionrio do 10 de agosto. Sua idia de uma forma de governo misto se calcava no pressuposto de que o monarca tinha por funo a chefia do executivo e, enquanto tal, ele era to somente um commis. Assim, o papel que ele atribua monarquia era claramente um papel secundrio frente ao legislativo, o que a maioria da Constituinte tambm estava de acordo. Contudo, no caso de Robespierre, o legislativo deveria ser um poder exercido pelo povo. Em suas palavras: o rei o funcionrio [commis] e o delegado da Nao para executar as vontades nacionais //861, ou seja, um funcionrio pblico encarregado de executar a vontade da nao e no o representante desta. Como afirma o comentador da edio brasileira do Contrato social, Lourival Gomes Machado862, essa passagem de Robespierre era quase uma transcrio das idias de Jean-Jacques que esto contidas na citao feita mais acima. No entanto, diferente do que afirma Gomes Machado, essa no

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Dire de m. de Robespierre, contre le veto royal, soit absolu, soit suspensif (setembro de 1789). OCR, t. VI, p. 88. Grifado no original. 861 Sur lattribution au roi du droit de paix et de guerre (18 de maio de 1790). OCR, t. VI, p. 364. Grifado no original. 862 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Opus cit. p. 81, nota 226.

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uma concepo que tenha tido adeptos na maioria dos constituintes. Ao contrrio, Robespierre foi quase o nico a defender que o legislativo deveria ficar nas mos do povo, na medida em que se eliminasse quaisquer formas de voto censitrio. Da mesma forma que ele tambm foi um dos poucos que defendeu retirada da capacidade legislativa das mos do monarca, ao defender que este no tivesse o direito de veto, seja absoluto ou suspensivo. Assim, explicando a uma platia profundamente hostil a essa idia, ele afirmava que por commis:
Eu somente quis entender o emprego supremo, o cargo sublime de executar a vontade geral; eu disse que s se representa a nao quando se especialmente encarregado por ela de exprimir sua vontade. Todo outro poder, por mais augusto que ele seja, no tem o carter de representante do Povo.863

preciso que fique claro para o leitor que esse discurso foi pronunciado antes da crise de Varennes. Quando emergiu essa crise, Robespierre no mudou os termos de suas reflexes. nesses termos que ele defendeu que a Constituinte ouvisse o povo sobre a desero do rei, na medida em que ele era to somente o primeiro funcionrio da nao e, como tal, no possua nenhum privilgio864. Isto , o rei no poderia ser considerado inviolvel. Essa concepo esta por trs de suas atitudes no contexto da crise de junho-julho de 1791. Portanto, essa no foi uma posio de ocasio, fruto da crise produzida pela desero real ou pela situao de crise profunda provocada pela guerra, mas j era uma idia bsica das concepes polticas robespierristas, como podemos ver em seu Dire de m. de Robespierre, contre le veto royal, soit absolu, soit suspensif, no qual ele afirmava que os representantes da nao podiam se ocupar sobre a liberdade e os direitos da nao e que a autoridade real tinha sido estabelecida para preserv-los e que fora concebida com o propsito de preencher esse objetivo. Se Robespierre era cioso do papel democrtico que se devia dar ao legislativo, ele no deixa de reafirmar a separao dos poderes. Quanto a isso ele props e viu aprovada, em 7 de abril de 1791, situao rara, sua proposta de decretar a incompatibilidade de funes de deputados e de ministros e a excluso dos deputados do ministrio durante quatro anos aps o trmino de seu mandato. Medida que em nossos dias chamamos de quarentena865.

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Sur lattribution au roi du droit de paix et de guerre (18 de maio de 1790). OCR, t. VI, p. 364. Sur linviolabilit royale (14 de julho de 1791). OCR, t. VII, P. 553 e segs. 865 Sur la nomination des membres de lAssemble au ministre. OCR, t. VII, p. 201 e segs.

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Assim, o regime poltico defendido por Robespierre foi, por muito tempo durante o processo revolucionrio, um regime que combinava monarquia e democracia. Mesmo em maio de 1792, quando a guerra tinha colocado a Revoluo numa grande crise, ele continuou adepto de um regime misto e nunca tinha sido mais claro quanto como fora ento:
nas palavras de repblica ou de monarquia que reside a soluo do grande problema social? So as definies inventadas pelos diplomatas para classificar as diversas formas de governo que fazem a felicidade e a infelicidade das naes, ou a combinao das leis e das instituies que constituem sua verdadeira natureza?866

A defesa da combinao das leis e das instituies perdurou enquanto ele acreditou na possibilidade de um acordo entre o passado e o presente e ainda no tinha chegado a desalentada concluso de que o governo produzido pela revoluo era uma mistura monstruosa do antigo regime e do novo regime867. De qualquer forma, como veremos a seguir, seja na fase em que defendeu um regime que combinava democracia e governo monrquico, seja na fase em que este ltimo foi substitudo pelo governo republicano, o formato constitucional das idias republicanas robespierristas foram uma recusa tanto da democracia absoluta quanto do despotismo representativo.

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Le Dfenseur de la Constitution (o primeiro nmero foi colocado venda entre os dias 17 e 19 de maio de 1792). OCR, t. IV, p. 9. 867 Ver supra, p. 188, nota 743.

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III. A rejeio da democracia absoluta e do despotismo representativo 1. A teoria poltica robespierrista vai se defrontar, assim, com dois problemas cruciais do sculo Ilustrado: a possibilidade de estabelecer concretamente um regime republicano democrtico e o problema da representao. A resposta que ele deu a esses problemas o colocou em contraposio grande parte do pensamento poltico do Iluminismo, incluindo Jean-Jacques. Maximilien partia, assim, do pressuposto de que a democracia era possvel no mundo moderno868, desde que se buscasse combinar democracia e representao. Com efeito, como afirma Mario Armandi, longe de contrapor democracia direta e democracia representativa, ele acreditava que a democracia podia conter tanto elementos de democracia direta quanto elementos de democracia representativa869. Nos termos mesmos de sua linguagem poltica, era a tentativa de se afastar tanto das tempestades da democracia absoluta quanto da prfida tranqilidade do despotismo da representao870, o que revelava tambm a tentativa de corrigir Rousseau por meio de Montesquieu. Assim, Robespierre apesar da grande dificuldade em aceitar a idia de representao, o que era compreensvel devido s influncias ideolgicas rousseaustas, foi levado, tanto por sua formao terica e a entra a importncia de Montesquieu quanto por sua prtica como mandatrio do povo, a considerar a necessidade dessa idia como incontornvel. Com efeito, como ele mesmo afirmava: Rousseau disse que uma nao cessa de ser livre desde o momento em que ela nomeia representantes. Eu estou longe de adotar esse princpio sem restrio //871. Porm, no era a adoo da representao sem mais. Sua noo de governo representativo considerava como importantes alguns elementos: 1) a representao no podia

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Sim, podeis mostrar ao mundo o espetculo novo da democracia fortalecida num vasto imprio . Discours sur les rapports des ides religieuses et morales avec les principes rpublicains et sur les ftes nationales (18 de Floreal do ano II/7 de maio de 1794). OCR, t. X, p. 445. Mais uma vez usamos a traduo de Maria Helena Franco Martins da edio brasileira desse discurso. Cf. ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. P. 166. Grifos nossos. 869 ARMANDI, Marco. (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma, Editori Riuniti, 1999. P. 150, nota 16. 870 Para a meno das expresses democracia absoluta e despotismo representativo, ver: Discours sur la Constitution. OCR, t. IX, p. 500. Ver tambm o primeiro nmero de suas Cartas a seus comitentes, no qual ele afirmava que a Constituinte tinha erigido um governo representativo absoluto e que a Assemblia Legislativa seguia seus passos. Tal governo precisava de contrapesos, tais como o voto universal. Lettres a ses commettans (primeira srie, nmero um 19 de outubro de 1792). OCR, t. IV, p. 19. 871 Le Dfenseur de la Constitution (quinto nmero junho de 1791). OCR, t. IV, p. 142.

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se coadunar com a existncia de faces, partidos ou mesmo de classes; 2) a justificativa para a existncia da representao era tcnica. Desse modo, Maximilien, e de resto boa parte dos revolucionrios, partia do princpio enunciado por Rousseau de que importa, pois, para alcanar o verdadeiro enunciado da vontade geral, que no haja no Estado sociedade parcial e que cada cidado s opine de acordo consigo mesmo872. Foi dessa idia que os constituintes derivaram o artigo terceiro da Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado, o princpio de toda soberania reside essencialmente na nao. Nenhum corpo, nenhum indivduo pode exercer autoridade que dela no emane expressamente. Como comentava Norberto Bobbio
esse artigo expressa tambm o conceito, destinado a tornar-se um dos fundamentos de todo governo democrtico futuro, de que a representao una e indivisvel, ou seja, no pode ser dividida com base nas ordens ou nos estamentos em que se dividia a sociedade da poca; e de que sua indivisibilidade e unidade composta no por corpos separados, mas por indivduos singulares, que contam cada um por um, de acordo com um princpio que, a partir de ento, justifica a desconfiana de todo governo democrtico diante da representao de interesses. 873

Mesmo quanto s classes sociais pode-se dizer o mesmo. Claude Nicolet nos lembra que a ideologia de 1789 negava a possibilidade de existir relaes sociais e, por via de conseqncia, no reconhecia nem mesmo a existncia de classes sociais 874. Desse modo, o pensamento poltico robespierrista no podia admitir que a representao poltica fosse apropriada por uma aristocracia ou oligarquia plutocrtica ou militar. Da, como veremos mais adiante, a sua tentativa de instituir a plena igualdade de direitos, a comear pelo voto universal.

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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro segundo, captulo III, p. 53. Rousseau no esconde de quem sofreu influncia nessa sua passagem sobre as seitas e faces, to cara ao republicanismo clssico. Ele cita em nota a passagem da Histria florentina de Maquiavel em que este condenava como prejudiciais repblica a existncia de seitas e partidrios. Cf. ROUSSEAU, JeanJacques. Opus cit. P. 53, nota 114. 873 Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1992. P. 96-7. Para o artigo citado da Declarao, ver: Les Constitutions de la France depuis 1789. Paris, Flammarion, 1995. P. 33-4. Apresentao Jacques Godechot. 874 A ideologia da qual saiu os princpios de 1789 tal como ela se exprime no Cdigo Civil , de um lado, pronta, no limite, a negar que possam existir relaes sociais, ao menos relaes outras que aquelas, muito gerais, que ligam os indivduos entre eles. No h, no deve mais existir classes sociais, porque o direito civil e constitucional, precisamente, no as reconhece. NICOLET, Claude. Lide republicaine en France (17891924). Paris, Gallimard, 1994. P. 332.

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Colocando em prtica, mais uma vez, a sua funo de doutrinador da democracia, Robespierre s fez defender esses princpios estabelecidos na Declarao dos Direitos para fundamentar a negao da democracia pura ou absoluta e do despotismo da representao. Contudo, no aspecto tcnico que residia o motivo da rendio do advogado de Arras necessidade da representao. Assim, ele no se esquivava em lidar com a questo de que a democracia pura encontrava obstculos devido impossibilidade de uma nao extensa geograficamente e de grande populao sassembler. Esta a razo porque desde o incio da Revoluo, ele defendeu o princpio da representao. certo que ao faz-lo ele encarava a representao apenas como um expediente tcnico875, seguindo a compreenso de Montesquieu de que a diferena entre as repblicas antigas e os grandes estados modernos era uma questo de nmero. Enquanto tal, esta questo, como afirma Judith Shklar876, poderia ser resumida numa palavra: tamanho (size). Partindo do princpio de que o regime monrquico o nico que convm a um grande estado e que nessa condio tambm impossvel o exerccio direto do poder pelos cidados, Maximilien defendia a idia de que o povo deve encarregar outros como seus mandatrios877. Como podemos ver quando ele, realista, afirmava que se fosse possvel que todos os indivduos da nao se reunissem, sem dvida pertenceria a eles ento o direito de julgar um de seus representantes.878 Desse modo, a idia de representao j esta presente pelo menos desde outubro de 1789 quando ele defendeu que todos os cidados, quem quer que eles

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PASQUINO, Pasquale. Sieyes et linvention de la constitution en France . Paris, ditions Odile Jacob, 1998. P. 50. Em suas prprias palavras: // em um vasto imprio, o poder de fazer as leis, em nome do povo, deve ser confiado a representantes //. Le Dfenseur de la Constitution (Quarto nmero, junho de 1792). OCR, t. IV, p. 120. 876 SHKLAR, Judith. Montesquieu and the new republicanism. In: BOCK, Gisela, SKINNER, Quentin e VIROLI, Maurizio. Machiavelli and republicanism. Cambridge, Cambridge University Press, 1990. P. 266. Nesse ponto, o contraste total com Sieys. Conforme Maurice Genty, defendendo o governo representativo como a nica soluo para a sociedade francesa, o abade emprestava a Adam Smith uma das justificativas para a adoo da representao. Nesse sentido, ele afirmava que para a utilidade comum que [os cidado s] se do representantes bem mais capazes do que eles mesmos de conhecer o interesse geral e de interpretar a esse respeito sua prpria vontade. GENTY, Maurice. Dmocratie reprsentative. In: SOBOUL, Albert. Dictionnaire historique de la Rvolution franaise. Paris, PUF (Quadrige/Dicos), 2005. P.342. SIEYS, Emmanuel-Joseph. Dire sur la question du veto royal. In: crits politiques. Paris, ditions des Archives Contemporaines, 1994. P. 236. 877 Sur la dure des Assembles Lgislatives (12 de setembro de 1789). OCR, t. VI, p. 77-8. 878 Sur linviolabilit des dputs (25 de junho de 1790). OCR, t. VI, p. 431.

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sejam, tm direito de pretender a todos os nveis da representao879, na sua infatigvel batalha pela extenso do voto universal a todos os franceses sem distino. 2. Desde ento se construiria uma compreenso da representao que nortearia todas as suas intervenes que tratavam em algum nvel da delegao de poderes. Assim, ao discutir a organizao do poder judicirio e a questo do nmero necessrio de jurados para se considerar algum culpado, ele defenderia o princpio de que se deveria ao menos exigir a unanimidade e a convico de cada um dos membros do jri para condenar um ru. Essa defesa era fundamentada justamente no fato de que a sociedade era obrigada a delegar esse poderoso poder a um nmero muito pequeno de homens880. Robespierre tinha a convico da perda de poder que decorria do fato da Assemblia Constituinte ter decretado que a nao no exercia sua soberania e seus direitos por si mesma, mas somente por meio de seus representantes. Porm, vendo nisso uma necessidade, ele encarava o poder dos deputados como legtimo e estava sempre pronto a defender esse poder frente ao executivo quando este parecia querer extrapolar seu poder, como foi o caso quando se discutiu durante a Constituinte a quem cabia o direito de nomear os administradores do tesouro nacional e Robespierre foi favorvel a que esse direito coubesse ao poder legislativo881. Sua defesa da necessidade da representao e de sua legitimidade tambm est na raiz de sua oposio, manifestada diversas vezes, derrubada dos girondinos antes do 31 de maio de 1792882.

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Sur le droit de vote (22 de outubro de 1789). OCR, t. VI, p. 131. Na verdade, j em setembro de 1789, em seu Discurso sobre o veto real, ele j tinha defendido a idia de representao. Ver: OCR, t. VI, 87. Saint-Just tambm viria a defender a idia de representao. Em seu relatrio de 15 de abril de 1794, ele inclua entre as virtudes que se deveria impor aos cidados alm da probidade, o respeito da li berdade, da natureza, dos direitos do homem e da representao. Rapport sur la police gnrale, sur la justice, le commerce, la lgislation et les crimes des factions, prsent la Convention nationale dans la sance du 26 de germinal an II . In: SAINTJUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 819. 880 Sur la ncessit de lunanimit de jurs (2 de fevereiro de 1791). OCR, t. VII, p. 49. 881 Sur la nomination des administrateurs du trsor national (9 de maro de 1791). OCR, t. VII, p. 113. 882 Podem-se citar as seguintes passagens no contexto da disputa com os girondinos, a comear por sua negao clara de uma revogao dos mandatos dos girondinos como comeavam a querer muitos revolucionrios: // mas no lugar de pedir a revogao dos deputados infiis, ns acreditamos dever feri-los com a censura cvica, e entreg-los vergonha da nulidade e da impotncia de fazer o mal. Sur le rappel des dputs infidles (27 de fevereiro de 1793). OCR, t. IX, p. 279. Na seo de 29 de maro de 1793 dos jacobinos que tinha por ordem do dia os perigos da ptria e por medidas vigorosas, ele fez o seguinte pronunciamento: quando eu proponho medidas firmes e vigorosas, eu no proponho essas convulses que do a morte ao corpo poltico. Eu peo que todas as sees velem e se assegurem dos maus cidados, sem atentar contra a inviolabilidade dos deputados. Eu no quero que se toque nesses fragmentos da representao nacional, mas eu quero que eles sejam desmascarados, que sejam postos fora do estado de fazer o mal. OCR, t. IX, p. 348. Trs dias depois ele voltava mesma questo: resta ainda, nesse momento, um recurso liberdade, a luz, o verdadeiro conhecimento dos

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Quando da discusso sobre quem tinha a competncia em resolver as contestaes em matria eleitoral, novamente ele demonstraria suas convices ao afirmar que essa competncia cabia aos representantes do povo, na medida em que julgar sobre os direitos polticos da cada cidado, evidentemente influenciar na soberania nacional e que, portanto, cabia queles alados pelo soberano condio de seus delegados, o poder de resolver esses contenciosos. Esse poder pertenceria ao soberano se ele pudesse exerc-lo por si mesmo; mas como a nao muito numerosa s pode se reunir em assemblia [sassembler] por sees, cabe aos seus representantes imediatos exerc-lo883. Ainda em maio de 1792, ele manteve o mesmo pensamento. Em seu primeiro nmero do Defensor da Constituio, encontrava-se a passagem, citada mais acima, na qual ele afirmava preferir uma assemblia representativa popular e cidados livres e respeitados com um rei, que um povo escravo e rebaixado sob a vara de um senado aristocrtico e de um ditador.884 Como mostramos por esses exemplos, a defesa da representao por parte de Robespierre aconteceu em diversas passagens durante a sua carreira, em particular durante a Constituinte. Dessa forma, no se justificam anlises como as que afirmam que
// de 1789 sua eleio para a Conveno, em setembro de 1792, o que dominava era a defesa dos princpios da democracia direta. O argumento de Rousseau segundo o qual seria impossvel a um corpo poltico fazer-se representar sem alienar sua soberania lhe permitiu reivindicar para as sees do povo um direito ilimitado de revogao. A partir do fim de 1792, a uma mudana de tempo correspondeu uma mudana de linguagem: o discpulo desviou-se do ensino do mestre, e passaria a defender a representao.885

meios de salvao pblica, e eu vos digo, na verdade de meu corao, que a mais fatal de todas as medidas seria violar a representao nacional. Sur les moyens de sauver la Rpublique (1o de abril de 1793). OCR, t. IX, p. 355. 883 Sur le jugement des contestations en matire lectorale (13 de maro de 1791). OCR, t. VII, p. 125. 884 Le Dfenseur de la Constitution (primeiro nmero). OCR, t. IV, p. 09. 885 GUENIFFEY, Patrice. Robespierre. In: FURET, Franois e OZOUF, Mona. Dicionrio crtico da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. P. 320. O tom desse texto de Gueniffey sobre Robespierre marcado por uma subterrnea hostilidade, como afirma Woloch. De nossa parte, podemos dar um exemplo a que ponto chega esta hostilidade. Gueniffey afirma que Robespierre pde ser monarquista, em 9 de agosto de 1792, e republicano no dia 11, sem contradio ou oportunismo grosseiro. A virada, por brutal que tenha sido, era legtima, tendo o povo soberano tudo decidido no dia 10. Qualquer idia definida sobre o direito, as instituies ou a forma de governo cedia lugar diante do i mperativo estratgico. Porm, o que ele queria colocar no lugar da monarquia ao pedir a derrubada de Lus XVI em 29 de julho de 1792? Cf. GUENIFFEY, P. Opus cit. p. 321, Sur la dchance du roi et le renouvelement de la lgislature (29 de julho de 1792). OCR, t. VIII, p. 419, e WOLOCH, Isser. On the latent illiberalism of the French Revolution. Washington, American Historical Review, 155, vol. 95, n. 5, p. 1452-70, dezembro de 1990. P. 1466. Grifos nossos.

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Parece muito mais prximo de responder a questo do relacionamento entre o robespierrismo e a idia de representao a concluso a que chega a esse respeito o escritor Mario Cattaneo. Segundo ele:
o princpio da soberania popular, a idia que o poder legislativo cabe ao povo: esta tese porm temperada pela admisso que, em um territrio amplo, o povo no pode exercitar diretamente essa funo, isto , do reconhecimento da representao poltica. Sobre este ponto, Robespierre se encontra em um substancial contraste com Rousseau. Todavia, por desejar se manter fiel o mais possvel razo que inspirou a concepo rousseausta, ele procurou eliminar o perigo de um despotismo ou de uma aristocracia dos representantes, apresentando vrios meios que tendiam a por estes ltimos sob un contnuo 886 e preciso controle do povo.

Assim, preciso ateno quanto s concluses a se extrair da passagem do seu famoso discurso sobre a democracia de fevereiro de 1794, no qual o Incorruptvel afirmava:
a democracia no um estado no qual o povo, continuamente reunido, regula por ele mesmo todos os negcios pblicos, ainda menos aquele em que cem mil fraes do povo, por medidas isoladas, precipitadas e contraditrias, decidiriam da sorte da sociedade inteira: um tal governo jamais existiu, e apenas poderia existir para levar o povo ao despotismo. A democracia um estado em que o povo soberano guiado por leis que so sua obra, faz por ele mesmo tudo o que ele pode fazer bem, e por delegados tudo o que ele no pode fazer por si mesmo.887

Quando ele pronunciou tal discurso ele no estava dando um passo motivado pelas contingncias do momento e pelo seu desejo de tomar o poder, mas apenas estava reafirmando o que j era uma convico h muito tempo amadurecida. Com efeito, a rejeio tanto da aristocracia pura quanto da democracia pura888 caracterizava a tentativa do robespierrismo de solucionar o problema da relao entre soberania e representao e que o deputado de Arras resolveria com base em adaptaes do pensamento poltico rousseausta, por meio do que j foi chamado de rousseausmo aplicado a um grande estado. Isso porque ele jamais conseguiu escapar das idias de Jean-Jacques, como revela sua observao de que

886

CATTANEO, Mario Alessandro. Libert e Virt nel pensiero poltico di Robespierre. Milo-Varese, Instituto Editoriale Cisalpino, 1968. P. 89. 887 Rapport sur les principes de la morale politique qui doivent guider la Convention nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique (5 de fevereiro de 1794). OCR, t. X, p. 352-353. 888 Essa expresso era a frmula mais usual para se designar a idia de democracia que se tinha no Antigo Regime. Maximilien tambm conhecia essa expresso, como se pode ver na sua argumentao contra uma proposio que permitiria reunir as assemblias primrias extraordinariamente quando se tivesse a maioria simples dos seus membros: por meio disso, // vs estabeleceis a democracia pura e no essa democracia que, para a felicidade geral, temperada pelas leis. Sur la runion des assembles primaires (14 de junho de 1794). OCR, t. IX, p. 557. Para as diversas frmulas com que os homens do sculo XVIII expressavam sua idia de democracia, ver: GUERCI, Luciano. Instruire nelle verit repubblicane. La letteratura politica per il popolo nellItalia in rivoluzione (1796-1799). Bologna, Il Mulino, 1999. Captulo Le due democrazie.

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a palavra representante no pode ser aplicada a nenhum mandatrio do povo, porque a vontade no pode se representar. Os membros da legislatura so os mandatrios a quem o povo deu o primeiro poder; mas no verdadeiro sentido no se pode dizer que eles o 889 representem.

889

Sur les caractres de la reprsentation (16 de junho de 1793). OCR, t. IX, p. 569.

240 Captulo IV Do republicanismo clssico democracia social

I. O robespierrismo frente liberdade: a liberdade como igualdade perante a lei e a liberdade como igualdade atravs da lei
Maximilien, com todos os seus defeitos, e eles eram numerosos, conta entre a meia dzia dos maiores profetas da democracia. Palmer, Robert R.890

1. J se disse que como uma poltica de virtude que o republicanismo melhor se autodefine891. Ao fim do sculo XVIII essa mensagem possua em Robespierre e seus companheiros os mais fortes partidrios, na medida em que o robespierrismo fez da virtude o princpio articulador de suas idias polticas sobre a democracia e mais tarde do regime democrtico-republicano, quando este se tornou uma alternativa concreta ao reinado de Lus XVI. Para Maximilien, a virtude // era o princpio fundamental do governo democrtico ou popular //892. Assim, no toa que Hegel, em seus clebres comentrios sobre a Revoluo Francesa feitos em suas Lies de filosofia da histria, enfatizaria essa caracterstica do robespierrismo. Segundo o grande filsofo alemo, Robespierre colocou o princpio da virtude como o objeto supremo, e se pode dizer que esse homem tomou a virtude a srio893. Por outro lado, conforme vimos no captulo inicial dessa segunda parte, Robespierre amadureceu seu pensamento democrtico ao desenvolver de incio o que chamamos sua demofilia. Com base nela, desenvolver-se-ia sua concepo de democracia que se apoiava na noo de povo-nao e, com a evoluo do processo revolucionrio, na incipiente e inovadora

890

PALMER, Robert R. Le gouvernement de la Terreur. Lanne du comit de salut publique. Paris, Armand Colin, 1989. P. 248. 891 Ver supra, p. 203. 892 Rapport sur les principes de la morale politique qui doivent guider la Convention nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique (5 de fevereiro de 1794). OCR, t. X, p. 353. 893 HEGEL, G. W. F. Leons sur la philosophie de lhistoire. Paris, Vrin, 1987. P. 342. Robespierre pediu e viu aprovada que no novo calendrio revolucionrio o primeiro dia dos cinco dias de festas nele previstas fosse dedicado Virtude. Pour la conscration du premier jour sans-culottide la vertu (3 de brumrio do ano II-24 de outubro de 1793). OCR, t. IX, p. 158.

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idia de povo-classe894. Assim, desde o incio de sua carreira como revolucionrio, duas noes, virtude e povo, confluram para formar um verdadeiro binmio, virtude-povo. Com efeito, como argumentou George Rud, para o advogado de Arras, // o fim da poltica deve ser a personificao da moralidade no governo; essa moralidade, ou bondade ou virtude, emana do povo e do povo somente //895. Na esteira da tradio rousseausta, portanto, Robespierre opunha-se idia de que os ricos, os aristocratas e os poderosos de todo tipo fossem capazes de possurem o elemento que ele considerava natural ao povo, a virtude896. Assim, no contexto da disputa com os girondinos em abril de 1792, ele respondeu acusao que lhe tinha sido endereada de ser um agitador do povo, dizendo ter aprendido uma grande verdade moral e poltica com JeanJacques // que s o povo bom, justo, magnnimo e que a corrupo e a tirania so o apangio exclusivo de todos aqueles que o desdenham897. O robespierrismo, estatuindo o binmio virtude-povo como fundamento de sua concepo democrtica e, posteriormente, democrtico-republicana, rompia com uma tradio bem antiga de encarar o povo como desprovido da virtude necessria ao exerccio do poder. Muito antes de muitos filsofos do Iluminismo encararem com profundo ceticismo o papel do povo na poltica, certos defensores renascentistas do republicanismo j afirmavam que o povo tenderia mais corrupo que a virtude. Francesco Guicciardini, por exemplo, argumentava que o povo no tem capacidade para decidir matrias da maior importncia, entre as razes que ele alegava para esse fato, estava a imprudncia, inconstncia e sua inveja dos ricos898.
894

Como dizia o Journal des tats Gnraux, o senhor de Robespierre combateu pela causa do pobre //. citado em: OCR, t. VI, p. 132. Foi com base nesse tipo de compreenso da atuao de Robespierre que Georges Labica criou essas expresses. Ver supra, p. 159. 895 RUD, George. Robespierre: portrait of a revolutionary democrat. Nova York, The Viking Press, 1976. P. 95. quando observamos os desdobramentos da demofilia de Robespierre que encontramos as razes que levaram certos historiadores do sculo XIX, entre eles Lamartine, a fazer a afirmao de que a Revoluo e, em particular o jacobinismo, se enraizava no cristianismo. Pois fica subentendido na argumentao de muitos revolucionrios que a defesa da liberdade poltica que eles faziam tambm se apoiava no conhecido adgio cristo de que a voz do povo a voz de Deus. Mas esse tambm um argumento nobre na tradio republicana. No outro o argumento utilizado por Maquiavel em seus Discursos para justificar sua afirmao de que o povo prudente, estvel e tem mais juzo que os prncipes. Ver: MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre la primera dcada de Tito Livio. Madrid, Alianza Editorial, 2000. P. 178. 896 Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique (5 de fevereiro de 1794). OCR, t. X, p. 355. 897 Rponse aux discours de Brissot et de Guadet (27 de abril de 1792). OCR, t. VIII, p. 308. 898 Citado e comentado em: SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno . So Paulo, companhia das Letras, 1996. P. 181.

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Da mesma forma, as concepes polticas republicanas de Robespierre se diferenciavam nitidamente da vertente inglesa do republicanismo, a qual tem bons exemplos em John Milton e Algernon Sidney. O ideal republicano desses escritores era para uma elite de homens, possuindo ttulos de propriedade, pertencendo s camadas dominantes da sociedade899, para os quais o povo podia e, em muitos casos, deveria ser dispensado do exerccio do poder. Isso porque a multido justamente no tinha a necessria virtude, j que as massas so menos sbrias, menos ponderadas e menos cuidadosas em relao aos interesses pblicos900. Ao contrrio dessa vertente republicana, a compreenso da virtude pelo robespierrismo como um apangio exclusivo do povo, faria dele um defensor da igualdade poltica irrestrita. Em decorrncia disso, o republicanismo robespierrista s poderia ser democrtico. Desse modo, uma das caractersticas fundamentais dos robespierristas foi a exigncia da igualdade poltica irrestrita. Ao mesmo tempo, essa exigncia faria com que eles se defrontassem com a questo de como deter direitos polticos sem possuir tambm as condies sociais para tanto. Da a articulao que eles fizeram do direito liberdade com o direito natural existncia. O robespierrismo situava-se, assim, no quadro do momento neoclssico, programa filosfico e poltico que
// formulava o projeto de libertao do indivduo em termos que exigiam que a igualdade dos direitos fosse apoiada sobre os meios da independncia material e mostrando que a desigualdade das fortunas , quando ela ameaa essa independncia, criadora de males polticos e morais destrutores da liberdade autntica.901

Com efeito, Robespierre seguia de perto as concepes de Rousseau no tocante relao entre igualdade e liberdade. Para o cidado de Genebra a finalidade de todo sistema de legislao se resume em dois objetivos principais, a liberdade e a igualdade, e que como condio para a existncia tanto de uma quanto de outra, era preciso que quanto riqueza que nenhum cidado seja suficientemente opulento para poder comprar um outro e no haja nenhum to pobre que se veja constrangido a vender-se902. Da sua insistncia permanente,

899 900

PETIT, Philip. Rpublicanisme, une thorie de la libert et du gouvernement . Paris, Gallimard, 2004. P. 23. Palavras de Henry Neville. Citado em: SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. So Paulo, Editora UNESP, 1999. P. 37. 901 SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 17701830. Paris, Vrin/EHESS, 2000. P. 13. 902 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro segundo, captulo XI, p. 72.

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ao longo da Revoluo, com detalhes fundamentais para o exerccio da cidadania numa sociedade com profundas desigualdades sociais como, por exemplo, a necessidade de se remunerar os funcionrios pblicos, que em sua teoria democrtica era a condio tanto do rei quanto dos deputados e das pessoas do povo chamadas a atuar nas assemblias primrias. Desse modo, a questo social no entrou no pensamento republicano robespierrista por meio da compaixo ou de preocupaes filantrpicas como imaginava Hannah Arendt. Conforme a grande filsofa, a compaixo e a filantropia teriam feito com que houvesse a transformao dos Direitos do Homem nos direitos dos sans-culottes, fazendo com que a Revoluo trocasse o objetivo da liberdade pela felicidade do povo. Se na sua demofilia prrevolucionria estes sentimentos esto presentes, no momento em que se desenvolveu seu pensamento poltico durante a Revoluo e foi necessrio dar respostas s questes constitucionais ento levantadas, sua compreenso da questo social foi submetida a sua forma bsica de raciocinar, a partir de ento, sempre por meio da questo poltica e por aquilo que era o seu contedo fundamental, a tradio clssica do republicanismo. Cornelius Castoriadis, criticando Hannah Arendt e lembrando justamente o enraizamento clssico da compreenso que tinham os revolucionrios de 1789 da questo social, fazia as seguintes indagaes: // a democracia compatvel com a coexistncia de uma extrema riqueza e de uma extrema pobreza?, e, por outra, o poder econmico no , ipso facto, tambm poder poltico?903. 2. A defesa do princpio da igualdade poltica irrestrita emergiu na biografia poltica de Robespierre na prova de fogo que foram os debates sobre os direitos do homem e do cidado na primeira constituio revolucionria, a de 1791. Com efeito, j em agosto de 1789, os constituintes tinham estabelecido a idia da igualdade jurdica entre os homens como regra bsica da sociedade francesa que eles pretendiam instituir, demonstrando o quanto isso parecia ento ser consensual. Contudo, outro seria o problema da articulao que o artigo primeiro 904 da Declarao Universal dos Direitos do Homem e do Cidado fazia entre igualdade e liberdade. Como se

903

CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto III. O mundo fragmentado. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992. P. 167. 904 Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 26 de agosto de 1789. Artigo primeiro Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distines sociais somente podem ser fundadas sobre a

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veria nos debates posteriores votao da Declarao, a burguesia constituinte estava disposta a esquecer os complexos e inquietantes desdobramentos que implicava em afirmar que os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. Essa inquietao foi bem resumida na clebre frase de Antoine de Barnave em plena crise da monarquia provocada pela fuga do rei:
vamos concluir a Revoluo, ou vamos recome-la? Um passo a mais seria um ato funesto e culpvel, um passo a mais na linha da liberdade seria a destruio da realeza, e, na linha da igualdade, a destruio da propriedade.905

Contudo, esse no seria o caso do ento deputado de Arras, como se pode ver com a continuidade dos debates depois de agosto de 1789. Neles, ele se bateu para tentar levar s ultimas conseqncias esses desdobramentos, principalmente no tocante a um aspecto fundamental, isto , evitar restringir a igualdade apenas ao seu aspecto jurdico, j que isso seria colocar em risco a prpria idia de igualdade. Certamente, tanto ele quanto os sansculottes, no viam os contedos do artigo primeiro da declarao como uma fico filosfica906. Por conseguinte evitar restringir a igualdade implicava em ampliar a liberdade, desdobrando-a em liberdade como igualdade perante a lei e liberdade como igualdade atravs da lei. Provavelmente sem o conhecimento e, principalmente, o interesse das complexas discusses tericas sobre a liberdade, Maximilien retomava nesse ponto os elementos fundamentais dessa discusso que emergiram ao longo da histria, como nos mostra as anlises do grande historiador da Grcia Antiga, Moses I. Finley. Com efeito, Finley907, lembrando que o contedo real da palavra liberdade varia consideravelmente de acordo com as pocas e os lugares, comentava que a forma mnima que assumia a liberdade entre os gregos antigos era a igualdade perante a lei. Mesmo naquelas cidades-estados onde no se tinha desenvolvido a democracia na Grcia Antiga, essa forma mnima da liberdade era aceita na esfera privada (o nosso atual direito civil) e na relao do indivduo com o Estado.

utilidade comum. Cf. Les Constitutions de la France depuis 1789 . Paris, Flammarion, 1995. P. 33. Apresentao de Jacques Godechot. 905 Discours sur linviolabilit du roi (11 de julho de 1791). In: FURET, Franois e HALVI, Ran. Orateurs de la Rvolution franaise. Paris, Gallimard, 1989. Tomo I, Les Constituants. P. 39. Fizemos uso da traduo de Hlio Plvora para o livro de: SOBOUL, Albert. A Revoluo Francesa. 3a ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981. P. 194. 906 OZOUF, Mona. Igualdade. In: FURET, Franois e OZOUF, Mona. Dicionrio crtico da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. P. 747. 907 FINLEY, Moses I. Linvention de la politique. Paris, Flammarion, 1985. P. 197-8.

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Analisando as idias do hegeliano Bernard Bosanquet sobre a fragilidade da liberdade jurdica sem a liberdade poltica e, portanto, a necessidade de assegurar as conquistas da primeira por meio da segunda, o autor do Mundo de Ulisses afirmava que esse mesmo tipo de situao j tinha aparecido no perodo da Antigidade Clssica grega. Isso podia ser constatado ao se analisar os sentidos da palavra isonomia. Alm daquele sentido mais comum, a igualdade perante a lei, em outras palavras, a igualdade jurdica, essa palavra possua um outro sentido para os gregos antigos. Para eles, a isonomia tambm significava a igualdade atravs da lei. Era preciso, portanto, ultrapassar a forma mnima da liberdade por meio da reivindicao da igualdade poltica, que devia ser estabelecida com base em desenvolvimentos constitucionais, isto , transformaes na lei que permitissem a participao do conjunto dos cidados em sua feitura908. Todos esses problemas so como que retomados pela Revoluo de 1789, sobretudo quando os constituintes pretenderam prover a Frana com um novo pacto legal de extrao liberal em contraposio ao paradigma igualitarista neoclssico909, o qual teve em Robespierre um dos seus principais defensores. Com efeito, na discusso do novo arcabouo legal da sociedade francesa, a posio robespierrista esteve sempre em contraponto da quase totalidade da burguesia constituinte, que pretendia manter as transformaes constitucionais no limite da estrita igualdade jurdica910. Essa posio da burguesia constituinte foi bem representada por Sieys no debate sobre o direito de voto. Para o autor do Que o Terceiro Estado? esse direito poderia ser restringido pela criao de duas categorias de cidados, diferenciados censitariamente, os famosos cidados passivos e ativos911. A burguesia constituinte acolheu essa idia, aprovando essa diferenciao trs dias aps a votao da Declarao de Direitos do Homem e do Cidado. E isso a despeito de se ter proclamado a liberdade e a igualdade no artigo primeiro dessa Declarao e, mais especificamente, ter-se afirmado as conseqncias desses direitos no

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Idem, p. 198. Esse tipo de compreenso clssica da liberdade soa bem comum para quem tem em mente a passagem do Contrato social, na qual Rousseau afirmava que a liberdade a obedincia lei que se estatuiu a si mesma. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Opus cit. Livro Primeiro, captulo, VIII, p. 43. 909 Expresso que Spitz se utiliza para caracterizar os aspectos igualitaristas da filosofia de Rousseau e Mably. SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 1770 1830. Paris, VRIN/EHESS, 2000. P.07. 910 O momento neoclssico revolucionrio buscou responder s distines entre liberdade civil e liberdade poltica que j tinham sido estabelecidas, como mostra Spitz, por escritores como J. B. Suard, bem antes de Constant. Idem, p. 44.

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artigo sexto, no qual se l que todos os cidados sendo iguais a seus olhos [da lei] so igualmente admissveis a todas as dignidades, postos e empregos pblicos, segundo sua capacidade, e sem outras distines que aquelas de suas virtudes e de seus talentos912. A criao das categorias de cidados passivos e ativos913 fazia, assim, da poltica um foro privilegiado, cujo acesso seria restrito, na linguagem de Robespierre durante o debate citado, as gens comme il faut em detrimento das gens de rien914. Desse modo, a viso do minoritrio grupo de extrema esquerda da Constituinte foi bem representado pelas argumentaes de Robespierre, as quais diziam que a instituio do censo do marco de prata dava aos cidados essa espantosa lio, seja rico qualquer que seja o preo ou voc no ser nada915. Portanto, trocava-se a aristocracia feudal pela mais insuportvel de todas, a aristocracia dos ricos916. Robespierre no concordava nem mesmo com a limitao da liberdade para os trabalhadores manuais. Segundo proposio de Pierre Louis Roederer, o assalariado que somente ganhava sua subsistncia deveria ser excludo da condio de cidado ativo. Invocando o direito natural, Maximilien contestava essa proposio afirmando que ningum tem o direito, nem mesmo o legislador, de fixar os limites alm dos quais no se pode ser cidado917. Essa limitao era mesmo um ponto de confluncia entre os setores conservadores, para quem o povo era habitualmente visto como a canalha, e a maior parte dos revolucionrios, que via na condio dependente desses trabalhadores a razo para a impossibilidade deles escaparam corrupo e, portanto, serem capazes de praticar o civismo. Mesmo um radical defensor da democracia durante o perodo da Constituinte, o jornalista Elise Loustalot, fazia a seguinte observao sobre a lei que criara os cidados passivos e

911 912

Ver a Introduo desta Segunda Parte, p. 116. Cf. Les Constitutions de la France depuis 1789. Paris, Flammarion, 1995. P. 34. 913 Alm dessas duas categorias de cidados, a legislao eleitoral de 1791 criou categorias hbridas de cidados, parte ativo e parte passivo, pela existncia de diversos graus de elegibilidade, como notava Robespierre. Sur le marc dargent (abril de 1791). OCR, t. VII, p. 162. 914 Sur le marc dargent (abril de 1791). OCR, t. VII, p. 166. 915 Sur la ncessit de rvoquer les dcrets qui attachent lexercice des droits du citoye n la contribution du marc dargent, ou dun nombre dtemin de journes douvriers (abril de 1791). OCR, t. VII, p. 170. Ele antecipava o enriquecei-vos! de Guizot. Contudo, o que era motivo de condenao em Robespierre, seria retomado como uma bandeira a ser defendida. 916 Idem, p. 167. Robespierre produz at uma analogia racial para criticar as diferenas censitrias dos eleitores. Assim, as restries cidadania plena criava cidados inteiros [cidados elegveis], os meio -cidados [os simples ativos] e os quarterons [os passivos, que ele assimilava aos mestios, filhos de pai branco e me mulata]. Sur les mesures prendre aprs la fuite du roi. OCR, t. VII, p. 518 e nota 3, mesma pgina. 917 Sur les droits politiques des indigents (23 de outubro de 1790). OCR, t. VI, p. 553.

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ativos: nenhum cidado deve, por direito, ser privado da faculdade de votar, e interessa, efetivamente, que todos os proletrios, todos os cidados suscetveis de corrupo sejam privados dela918. Robespierre rejeitava esse tipo de compreenso. Quando do seu questionamento sobre a manuteno do censo do marco de prata, em 1790, ele trouxe tona essas objees que, como dissemos, eram caractersticas de uma certa linhagem republicana. Ele no estava disposto a admitir tal manuteno, a qual eliminaria muitas vozes na hora de se contar os sufrgios que elegeriam os legisladores e esses excludos no seriam mais que proletrios e escravos919. E retomava, assim, suas idias de 1789:
todos os cidados, quem quer que eles sejam, tm direito de pretender a todos os nveis da representao. Nada mais conforme a vossa declarao de direitos, diante da qual todo privilgio, toda distino, toda exceo devem desaparecer. Cada indivduo tem, pois, direito de concorrer para a [feitura da] lei qual ele est obrigado //.920

Desse modo, como Robespierre no era um homem a paradoxos921 como seu mestre Jean-Jacques, mas sim um homem-princpio922, ele tomou nota da incompatibilidade de base do projeto constitucional que a burguesia constituinte delineava com o contedo de seu

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LOUSTALOT, Elise. Les rvolutions de Paris, n 17. Citado em: CASTEL, Robert. As metamorfoses da questo social: uma crnica do salrio. Petrpolis, Editora Vozes, 1998. P. 270-1. Note-se, de passagem, como Loustallot tinha a compreenso do significado da palavra proletrio como o entendiam os romanos, isto , como // os pobres excludos, pelo fato mesmo de sua pobreza, no da esfera do direito civil, mas da esfera do direito poltico. NICOLET, Claude. Lide rpublicaine en France (1789-1924). Paris, Gallimard, 1994. P. 405. Tal significado no era desconhecido por Robespierre. Ver seu discurso de 29 de julho de 1793 (sobre o plano educacional elaborado por Michel Lepelletier). OCR, t. X, p. 32. 919 Sur les conditions de cens exiges des citoyens actifs (25 de janeiro de 1790). OCR, t. VI, p. 204. 920 Sur le droit de vote (22 de outubro de 1789). OCR, t. VI, p. 131. Roger Barny, constatando que a posio de Robespierre isolada, comenta que // de uma maneira geral, mesmo os homens da extrema esquerda desconfiam bastante das pessoas sem eira nem beira para no aceitarem o afastamento dos cidados passivos. Eles temiam v-los constituir uma massa de manobra a soldo dos aristocratas. BARNY, Roger. Le droit naturel lpreuve de lhistoire. Jean-Jacques Rousseau dans la Rvolution. Besanon, Annales Littraires de lUniversit de Besanon, 1995. P. 67. 921 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emlio ou da educao. 3 ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995. Livro segundo, p. 79. Para um comentrio: SALINAS FORTES, Lus Roberto. Rousseau: da teoria prtica. So Paulo, Editora tica, 1976. P. 28. 922 Terminologia de Lamartine. Segundo este autor, havia durante a Revoluo // homens pocas como Mirabeau, homens princpios como Robespierre. LAMARTINE, Alphonse. Histoire des Girondins. Paris, Librairie Plon, 1984. T. I, p. 267. Talvez Lamartine estivesse se lembrando, ao fazer essa caracterizao de Robespierre, da sua famosa tirada perisssent les colonies plutt quun principe pronunciada qua ndo se discutia o direito de voto para os homens de cor livres. Sur la condition des hommes de couleur libres (13 de maio de 1791). OCR, t. VII, p. 362. Os jornais da poca no se cansavam de notar a associao entre a palavra princpio e Robespierre durante os trabalhos da Constituinte. Eram inumerveis as vezes em que eles faziam essa associao, chegando a ponto de que mesmo os jornais contra-revolucionrios se renderem a ela. Cf. o jornal Ami du Roi do abade Royou. Citado em: OCR, t. VII, p. 419.

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prembulo, a Declarao de Direitos aprovada em 26 de agosto de 1789,923 e o evidente programa democrtico que nela estava inserido. Em seu artigo sexto se lia que a lei a expresso da vontade geral, por outro lado os constituintes estabeleceram a diferena entre cidados ativos e passivos, fazendo com que, segundo Maximilien, s por fico a lei fosse expresso da vontade geral924. 3. O Incorruptvel fez da tentativa de ampliar os direitos polticos para alm da igualdade jurdica o leitimotiv de sua carreira de constituinte e o centro de sua teoria da democracia. Ele concebeu uma sria de proposies que, no seu modo de ver, poderiam efetivamente estabelecer a igualdade poltica, em particular, o voto universal. Como se pode ver, por meio da universalizao do direito de voto, ele tendia a contrariar a idia predominante de que o povo, principalmente os trabalhadores manuais, no deveriam gozar da cidadania plena. Contudo, se a defesa da idia de igualdade poltica irrestrita fez dele durante a Constituinte uma voz dissonante, conforme o ttulo de um artigo de Edna Hinde Lemay925, mais significativo ainda seria o desdobramento muito particular que ele deu a essa idia. Esse desdobramento ancorou-se justamente na herana de certos elementos do republicanismo clssico, a relao entre cidadania e independncia, o qual se utilizavam amplos setores da burguesia revolucionria para questionar a participao poltica da canalha, conforme vimos acima. Menos afeito a esse trao do republicanismo clssico at mesmo que seu mais prximo

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Adrien Duport dizia que Robespierre teria ocupado uma cadeira de direito natural durante a Constituinte. Cf: MATHIEZ, Albert. Etudes sur Robespierre, 1758-1794. Paris, ditions Sociales, 1958. P. 28. Compreendemos melhor isso por meio dessas crticas de princpio robespierristas desarmonia entre as leis estabelecidas pela constituio com a declarao baseada na doutrina do direito natural. Como nos lembra Claude Nicolet, essa doutrina afirmava a existncia anterior toda legislao dos direitos naturais, q ue no se pode criar nem estabelecer, mas que preciso se contentar em declarar, em lembrar a fim que a lei positiva os exprima e a eles se conforme da melhor forma. Cf. seu livro: Lide republicaine en France (1789-1924). Paris, Gallimard, 1994. P. 336. Grifos nossos. Conforme Camille Desmoulins escreveu poca dos trabalhos da Constituinte, Robespierre o comentrio vivo da declarao dos direitos, e o bom senso em pessoa. Eu no creio, no entanto, que uma nica das leis que ele props jamais tenha passado. que Robespierre quase sempre foi o patriota, o legislador perfeito, e eu desafio me mostrarem em toda a coleo dos decretos uma meia dzia que no sejam perfectveis. Cf. Rvolutions de France et de Brabant. (21 de fevereiro de 1791). Citado em: OCR, t. VI, p. 647. 924 O legislador no infalvel, fosse ele o prprio povo. As chances do erro so bem mais numerosas ainda, quando o povo delega o exerccio do poder legislativo a um pequeno nmero de indivduos; isto , quando somente por fico que a lei expresso da vontade geral. Le Dfenseur de la Constitution (quinto nmero junho de 1792). OCR, t. IV, p. 145. 925 Ver supra, p. 158, nota 629.

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companheiro de lutas, Saint-Just926, Maximilien buscou defender mecanismos para evitar que uma exagerada diferena de fortunas implicasse tanto quanto o no acesso ao poder de fazer as leis em menos liberdade. A construo de uma repblica s seria possvel se a cidadania fosse calcada na nodependncia927, que a liberdade poltica ajudava a garantir, mas que s era assegurada plenamente se os cidados tivessem a devida independncia scio-econmica. Sendo a base da liberdade a igualdade, Robespierre defendia o princpio de que as leis devem sempre tender a mant-la, tanto quanto a natureza das coisas o permitam 928, j que
a igualdade a fonte de todos os bens: a extrema desigualdade a fonte de todos os males. ela que segue os tiranos e os escravos, os opressores e os oprimidos: por ela que o homem envilece o homem, e faz de seu semelhante o instrumento de seu orgulho, o joguete 929 de suas paixes ou o cmplice de seus crimes.

Essa extrema desigualdade de fortunas gerava o contrrio da virtude, a corrupo, a qual era a fonte das ms leis e dos maus governos, nos quais, por sua vez, se podia encontrar a desigualdade de fortunas930. Assim, o robespierrismo trabalhou para que a igualdade atravs da lei fosse mais longe ainda nas transformaes constitucionais que deveriam garantir a igualdade poltica, colocando no horizonte tambm a igualdade social. No h dvida que esse objetivo era um ponto de confluncia do jacobinismo robespierrista com o campesinato e a sans-culotterie, na medida em que esses grupos compartilhavam as mesmas expectativas em relao manuteno de um modo de vida ancestral que se podem classificar de dramticas, haja vista as cleres transformaes capitalistas do sistema produtivo baseado na pequena propriedade fundiria e no

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Saint-Just tambm no via com bons olhos o trabalho manual. Para ele os nicos trabalhos dignos eram o das armas e o da terra. Segundo ele, um ofcio combina mal com o verdadeiro cidado: a mo do homem feita apenas para a terra e para as armas. Citado por Andr Malraux no seu prefcio ao livro: OLLIVIER, Albert. Saint-Just et la force des choses. Paris, Gallimard, 1954. P. 18. Usamos a traduo de Iraci D. Poleti para o livro citado de Robert Castel. Cf. opus cit. p. 271. 927 Segundo o companheiro de lutas de Robespierre, a lei civil no pode ela mesma traar -lhe [ao homem] outra lei que aquela de sua independncia e feita de maneira que todo mundo sendo independente ningum seja o mais forte e possa atentar contra o direito da cidade. SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. De la nature, de ltat civil, de la cit ou les rgles de lindpendance, du gouvernement. In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. Oeuvres Compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 935. 928 Sur les ingalits dans les successions (5 de abril de 1791). OCR, t. VII, p. 181 e segs. Robespierre ecoa, assim, a idia de Rousseau de que precisamente por sempre tender a fora das coisas a destruir a igualdade, a fora da legislao deve sempre tender a mant-la. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Opus cit. Livro Segundo, captulo, XI, p. 73. 929 Sur les ingalits dans les successions (5 de abril de 1791). OCR, t. VII, p. 181. 930 Sur le marc dargent (abril de 1791). OCR, t. VII, p. 165.

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artesanato. Ao mesmo tempo, para sans-culottes e robespierristas, esse modo de vida ancestral tambm fazia parte da soluo para a questo de uma vida independente como requisito fundamental para uma comunidade de cidados de uma repblica igualitria. Mas, para alm desse saudosismo, o robespierrismo apostou naquilo que foi uma inovao histrica fundamental ou, por outra, numa modernizao931, a defesa dos direitos que os juristas viriam a chamar de direitos de terceira gerao, direito ao trabalho, assistncia social, entre outros932. Seu realismo poltico percebia claramente a impossibilidade de reverter as condies econmicas e sociais do seu tempo e que ns retrospectivamente atribumos dinmica do capitalismo nascente. Assim, se por um lado, o robespierrismo tolerava o esprito de ganho e a lei da oferta e da procura, por outro, ele no deixava de atenuar seus efeitos negativos pela proteo das leis sociais933. o que se pode ver por seu programa social. Tal programa era composto de dois eixos principais, de um lado, a defesa do artesanato e da pequena propriedade fundiria, de outro lado, no pioneirismo de uma legislao social que deveria fazer da propriedade, do trabalho, da educao, direitos sociais, os quais at hoje demonstram sua atualidade, o robespierrismo buscou ampliar a igualdade atravs da lei no s na direo da igualdade poltica, mas tambm na da igualdade social, elementos indissociveis se se queria que aquela valesse alguma coisa em uma poca de rpidas transformaes na propriedade e na forma do trabalho. Da que, como afirma Claude Mazauric, para Robespierre, no fim de sua trajetria, o direito existncia que condiciona os direitos polticos e civis, isto , ele valoriza no direito natural o direito existncia como condio de todas as construes polticas e do direito positivo934.

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Podemos dizer que o robespierrismo, na sua defesa dos direitos sociais, era moderno medida que tivermos em mente que o vocabulrio cvico do sculo Ilustrado tamb m o incontestavelmente malgrado seus emprstimos clssicos, j que ele se direciona aos problemas que nasceram do desenvolvimento mesmo das sociedades mercantis e liberais. Cf. SPITZ, Jean-Fabien. La face cache de la philosophie politique moderne . Critique, n. 504, Paris, maio/1989, 307-334. P. 334. 932 NICOLET, Claude. La rpublique en France: tat de lieux. Paris, Gallimard, 1992. P. 36-8. 933 GROSS, Jean-Pierre. galitarisme jacobin et droits de lhomme. 1793 -1794. (La Grande famille et la Terreur). Paris, Arcantres, 2000. P. 43. 934 Mazauric, Claude. Les choix conomiques et sociaux: preliminaires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Opus cit. P. 232.

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Se como quer Franois Furet, Robespierre inventou a poltica democrtica de massas935 ou simplesmente, como afirma Georges Labica, inventou a democracia936, com mais certeza de acerto podemos dizer que a contribuio maior do robespierrismo foi seu pioneirismo ao apresentar os primeiros contedos de uma democracia que tambm se pretendia social. Como nos mostra Rosanvallon, Robespierre antecipava o sculo XIX, ao dar a palavra democracia um sentido sociolgico, sentido esse que serve para traduzir uma idia de incluso social e de igualdade937. Nesse ponto, esse pioneirismo no reside apenas em defender novos direitos sociais, mas tambm em perceb-los como intimamente ligados aos direitos polticos, j que, sem aqueles, estes ltimos perderiam toda sua fora. Isso foi feito com base na maneira como ele reorganizou os elementos polticos herdados da virtude antiga, construindo uma viso do econmico-social que no deixou de ser uma reao ao individualismo possessivo e que foi origem daquilo que, num primeiro momento, as concepes dos dmoc-soc da Revoluo de 1848 foram um esboo pioneiro e, num segundo momento, ganharam uma forma definitiva por meio daquilo que veio a ser melhor conhecido como social-democracia. essa funo de transio entre o antigo e o moderno que o republicanismo robespierrista cumpriu no eixo histrico que veio a constituir a Revoluo e por meio dela que podemos entend-lo melhor.

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VIOLA, Paolo. Robespierre: dibattiti di oggi. In: EHRARD, Jean (org.). Images de Robespierre. Npoles, Vivarium, 1996. P. 215. Alfred Cobban chegou a afirmar que Robespierre foi o primeiro a tentar dar efeito prtico a uma daquelas idias que modelaram o curso da civilizao e depois de sua poca, para o bem ou para o mal, a soberania do povo permaneceu na agenda da histria. Cf. COBBAN, Alfred. Aspects of the French Revolution. Londres, Cape, 1968. P. 158. Grifo nosso. 936 LABICA, Georges. Table ronde. Robespierre: la politique, la morale et le sacr . In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Opus cit. P. 433. 937 ROSANVALLON, Pierre. Dmocratie: lancien et le neuf. In: La pense politique I: situations de la dmocratie. Paris, EHESS, 1993. P. 21. Essa caracterstica sociolgica da evoluo do pensamento de Robespierre foi notada por estudiosos de diferentes matizes. Podemos acrescentar a Labica, Mazauric e Rosanvallon, tambm o nome de Colin Lucas, o qual afirma que Robespierre dava palavra povo freqentemente uma acepo social. Cf. o seu: Robespierre: homme politique e culture politique . In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Opus cit. P. 13.

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II. A liberdade como igualdade perante a lei

1. Como vimos mais acima, o robespierrismo no se restringiu a defender a forma mnima da liberdade, a igualdade jurdica. Contudo, como as correntes majoritrias do pensamento da Ilustrao, o jacobinismo robespierrista tambm tinha como parte fundamental de seu programa poltico a defesa dos direitos individuais. Nos primeiros trs anos da Revoluo, Robespierre no se cansou de reclamar a aplicao irrestrita dos chamados droitsliberts, o que ele mesmo chamava de princpios imortais938: a declarao dos direitos, a liberdade de imprensa, o direito de petio, de reunio. Partindo da idia de que sem a liberdade civil, a liberdade poltica somente uma quimera, ou antes, esta ltima apenas tem por objeto assegurar a outra, isto , de proteger a pessoa e a propriedade de cada cidado939, ele defendeu uma seqncia de liberdades que esto ligadas aos direitos civis ao longo de sua carreira de revolucionrio, a comear por aquela que ele considerava a mais importante: a liberdade de expresso. A esse direito ele acordava a capacidade de evitar que a adoo da representao descambasse para a oligarquia940. Desse modo, ele defendeu a liberdade de imprensa e de palavra numa amplitude muito alm da desejada pela maioria dos membros da Assemblia Constituinte, entre essa maioria inclua-se mesmo os integrantes do chamado lado esquerdo dessa Assemblia. At hoje no h dados conclusivos sobre se Maximilien teria atuado tambm como jornalista, no comeo de sua carreira de revolucionrio, como fizeram tantos outros personagens de 1789 941. Contudo, justamente por meio de sua defesa dos jornalistas que podemos comear a exemplificar sua preocupao com a liberdade de expresso. Assim, ele defendeu Marat, em 2

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Le Dfenseur de la Constitution (o primeiro nmero foi colocado venda entre os dias 17 e 19 de maio de 1792). OCR, t. IV, p. 13. 939 Le Dfenseur de la Constitution (segundo nmero, maio de 1792). OCR, t. IV, p. 64. 940 A lei somente a expresso da vontade geral: a vontade geral somente o resultado das luzes gerais; e as luzes gerais somente podem ser formadas e acrescidas pela livre comunicao de pensamento entre os cidados. Sob o governo representativo, sobretudo, isto , quando no o povo que faz as leis, mas um corpo de representantes, o exerccio desse direito sagrado a nica salvaguarda do povo contra o flagelo da oligarquia. Le Dfenseur de la Constitution (Quinto nmero, junho de 1792). OCR, t. IV, p. 146. 941 Como afirma Gustave Laurent, muito difcil saber se, no curso da Assemblia Constituinte, Robespierre teria colaborado com qualquer uma das numerosas publicaes peridicas que vieram tona nesta poca. Contudo, h suspeitas de que ele teria tomado parte da redao do LUnion ou Journal de la Libert. LAURENT, Gustave. Robespierre journaliste. In: OCR, t. IV, p. I e segs.

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de fevereiro de 1791, no clube Jacobino, contra a perseguio lanada pela Assemblia Constituinte, que decretara a priso do Amigo do Povo por causa de seus escritos considerados incendirios942. Mas foi em 9 de maio do mesmo ano que ele viria a pronunciar seu grande discurso sobre o tema, no qual ele considerava a liberdade de imprensa como um direito natural e seu exerccio uma censura perptua e salutar sobre o vcio e considerava tambm a opinio pblica como o nico juiz competente das opinies privadas, o nico censor legtimo dos escritos943. Defendendo a liberdade de imprensa, ele superou mesmo seu decantado puritanismo, chegando a defender que mesmo imagens obscenas no deveriam ser proibidas. Para isso ele argumentou que no se deveria entravar o princpio da liberdade de expresso por leis parciais, as quais, sob este ou aquele pretexto, acabariam atingindo a liberdade de publicar seus pensamentos944. Ele combateu o desejo de se considerar o direito de petio como um direito individual exclusivo dos cidados ativos, considerando tal direito como pertencendo ao direito de expresso. Sua argumentao tambm tinha por base o princpio de que o direito de petio no era um direito poltico, mas um direito do homem945. Esse direito foi consagrado no artigo vinte e seis do seu projeto de Declarao de Direitos, apresentado Conveno em 24 de abril de 1793 e que, em parte, foi absorvido pela futura Constituio dita montanhesa946. Todavia, o captulo dos direitos individuais no sofreria mudanas importantes caso no se mexesse no sistema judicirio do Antigo Regime. Como advogado em Arras, Robespierre j tinha feito da reforma desse sistema, em particular, no tocante legislao criminal, um verdadeiro programa poltico. Como era de se esperar, durante a Constituinte ele continuou dando a essa questo grande ateno. Todavia, a documentao disponvel a esse respeito nos indica qual era o foco da ateno de Robespierre. Sua luta tinha por objetivo introduzir algumas mudanas no sistema judicirio que permitissem uma democratizao do

942 943

Sur une dnonciation contre Marat. OCR, t. VII, p. 54-55. Sur la libert de la presse (9 de maio de 1791). OCR, t. VII, p. 319. 944 Sur lexposition et la vente dimages obscnes (7 de julho de 1791). OCR, t. VII, p. 543. Contrariamente grande maioria dos constituintes, o deputado de Arras defendeu, em vrios de seus desdobramentos, a liberdade de expresso, a ponto de ser contra qualquer restrio manifestao artstica. Em relao, por exemplo, ao regulamento dos teatros, ele se levantou, sem sucesso, contra qualquer possibilidade de interferncia do poder pblico na escolha e execuo dos repertrios, reafirmando, para esse caso, o mesmo princpio que defenderia para a liberdade de expresso tout court, isto , que a opinio pblica o nico juiz do que conforme ao bem. Sur le rglement des thatres (13 de janeiro de 1791). OCR, t. VII, p. 18-19. 945 Sur le droit de ptition (9 e 10 de maio de 1791). OCR, t. VII, p. 312-318 e p. 334-343. 946 Dclaration des Droits de lHomme et du Citoyen (24 de abril de 1793). OCR, t. IX, p. 468.

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seu funcionamento, como o direito de qualquer cidado de defender seu interesse em mbito judicirio, seja por escrito ou pessoalmente947 e a instituio do sistema de jurados. Quanto a esta ltima mudana, Robespierre segue a maioria na defesa da instituio do jri popular em matria criminal, mas, debalde, ele tambm props a atuao do jri popular em mbito civil. Como lembra Marco Armandi, na base da sua proposta estava a idia iluminista de uma legislao to simples que no requeresse juzes profissionais948. Contudo, pensando sempre na questo de fundo por trs dos debates constitucionais, Robespierre no escamoteava que a justia se inseria no contexto mais amplo dos direitos polticos, o que o levava a criticar a monstruosidade que seria introduzir o sistema de jurado tendo sido estabelecida a separao entre cidados ativos e passivos. Considerada uma inovao capital, a introduo desse sistema era uma imitao da tradio liberal da Inglaterra. Neste pas, conforme Robespierre, tal sistema tinha dado bons frutos, o que poderia acontecer tambm na Frana, desde que se mantivesse seu carter essencial que residia no fato de que os Cidados sejam julgados por seus pares949. No entanto, conforme o desejo dos constituintes, a escolha dos jurados tambm obedeceria diviso dos cidados em ativos e passivos, os jurados sendo escolhidos entre a classe dos elegveis, isto , entre os cidados mais ricos e poderosos. Isto faria com que com que os ricos julgassem os pobres (naquela poca como hoje, como se sabe, a justia criminal era quase sempre freqentada pelos pobres). Frente a esse desejo Robespierre ind agava: // isso pois o que vs chamais ser julgados por vossos pares?. De passagem, ele tambm criticava o fato de que os jurados seriam escolhidos na proporo de dois teros entre os cidados das cidades, o que deixaria a massa enorme dos camponeses de fora do direito de participar do jri. Como vemos, as influncias liberais de Robespierre eram bem mais conseqentes do que a dos seus pares!950

947

Todo cidado tem o direito de defender seus interesses em juzo, por escr ito ou verbalmente; seja por si mesmo, seja por meio daquele a quem ele queira dar sua confiana. Sur la suppression des officiers ministriels et des avocats (14 de dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 663. 948 ARMANDI, Marco. (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma, Editori Riuniti, 1999. P. 156, nota 42. 949 Principes de lorganisation des jurs, et rfutation du systme propos par M. Duport, au nom des Comits de Judicature e de Constitution (abril de 1791). OCR, t. VII, p. 23. 950 Principes de lorganisation des jurs, et rfutation du systme propos par M. Duport, au nom des Comits de Judicature e de Constitution (abril de 1791). OCR, t. VII, p. 22 e segs. Maximilien evocava, nesta questo, as idias de Beccaria. Este autor dizia: lei sbia e de efeitos sempre felizes aquela que prescreve que cada qual seja julgado por seus iguais; pois, em se tratando da fortuna e da liberdade de um cidado, todos os sentimentos que a desigualdade inspira devem silenciar. Ora, o desprezo do homem poderoso para com a vtima da desgraa,

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Ele tambm esteve atento confuso de poderes entre a funo policial e a funo judiciria, confuso que muitos no seio da Constituinte gostariam de promover. Desse modo, ele se ops, como atentatrias liberdade individual, a pretenso de continuar a atribuir aos oficiais da marchausse951, alm do poder de polcia, poderes judiciais, dando-lhes a condio de juzes de paz. Ele lembrava que se devia conciliar tanto quanto possvel a necessidade de reprimir o crime com os direitos da inocncia e da liberdade civil 952. Poucas semanas mais tarde, ele voltaria carga nesse ponto, manifestando ainda mais sua admirao pelos procedimentos liberais ingleses:
mas qu! Os ingleses associaram ao sistema de seus jurados esse poder monstruoso da Marchausse? Eles colocaram nas mos da aristocracia militar o poder de pronunciar e de executar ordenanas de polcia; de tratar os cidados como suspeitos; de declar-los prvenu; de entreg-los ao acusador pblico; de envi-los priso; de instalar o processo e de fazer contra eles os procedimentos provisrios? // Ah! Eles respeitaram de tal forma os direitos do Cidado que baniram com pavor todas essas instituies dignas do gnio do despotismo.953

Mas quanto questo do direito de ir e vir e da liberdade individual que mais claramente se manifestava a semelhana de sua posio com o liberalismo. Nesse ponto, ele contestava pura e simples as contnuas prises que as autoridades da monarquia continuavam a fazer, moda do Antigo do Regime, isto , sem prvia autorizao judicial. Este tinha sido o caso de quatro cidados de Marienbourg, detidos por tentarem promover eleies para substituir os funcionrios municipais, os quais deviam sua posio venalidade de seus cargos. Assim como ele defendeu tambm a libertao imediata dos detidos pelas famosas lettres de cachet. Quanto a essas ltimas, ele retomou uma de suas preocupaes de quando era advogado em Arras. Recordemos que em sua ltima memria, a do caso Dupond 954, o tema principal foi a crtica s lettres de cachet. A diferena que agora, na Constituinte, ele j no precisava mais defender o seu fim, o que j tinha acontecido desde os momentos iniciais dessa Assemblia. Mas, por duas vezes, e isso j em 1790, ele defendeu a causa daqueles que

e a indignao que sente o homem de condio medocre pelo culpado que est acima dele pela sua condio, so sentimentos perigosos que no existem nos julgamentos de que falo. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. So Paulo, Martin Claret, 2004. P. 29. 951 A marchausse era a instituio que detinha o poder de polcia no Antigo Regime, mas, ao mesmo tempo, tambm detinha a funo de instncia judicial em muitos casos. 952 Sur lattribution des fonctions de police aux officiers de gendarmerie (27 de dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 677. 953 Principes de lorganisation des jurs, et rfutation du systme propos par M. Duport, au nom des Comits de Judicature e de Constitution (abril de 1791). OCR, t. VII, p. 29. 954 Ver supra, p. 137-138.

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continuavam presos por meio desse instrumento. Sua proposio era simples, ele pedia a soltura imediata desses presos, salvo aqueles sob os quais pairasse alguma acusao formal. Contudo, a ampla maioria da Assemblia acabou aprovando um projeto de decreto que ainda mantinha essas pessoas encarceradas por mais algumas semanas955. Ele foi tambm um dos partidrios, contra a maioria da burguesia constituinte, do estabelecimento da igualdade para os homens livres de cor956 e condenou claramente em seu projeto de Declarao de Direitos o comrcio de escravo, ao afirmar que o direito de propriedade devia respeitar outros direitos, como o direito liberdade. Desse modo, ele dizia no artigo nono de sua Declarao de Direitos que todo trfico que viola esse princpio essencialmente ilcito e imoral957. Quanto relao entre a liberdade individual e a autoridade pblica, Maximilien contestava a caracterstica do que ele chamava a velha mania do governo de querer muito governar. Assim, ele conclamava que se deixasse
// aos indivduos, deixasse s famlias o direito de fazer o que no prejudica a outrem; deixasse s comunas o poder de regular elas mesmas seus prprios negcios, em tudo que no est relacionado administrao geral da repblica. Em uma palavra, deixe liberdade individual tudo que no pertence naturalmente autoridade pblica, e vs tereis deixado tanto menos ocupao ambio e ao arbitrrio.958

No menos importante do que a defesa dos direitos supracitados foi sua defesa da liberdade de conscincia. Neste ponto sua luta tambm foi quase sempre solitria, curiosamente agora no porque ela tivesse que ser conduzida contra os opositores da Revoluo, mas contra a prpria esquerda revolucionria. Desse modo, mesmo durante a mar montante do Terror, quando ocorreu o movimento de descristianizao, ele no se furtou a defender que no se atacasse o direito das pessoas de terem a liberdade de escolha em matria religiosa, lembrando que era preciso convencer-se desta verdade: as conscincias no podem ser comandadas959. Ele voltaria ao tema da liberdade religiosa em seu discurso sobre o Ser

955

Sur les dtenus par lettre de cachet (2 de janeiro de 1790) e Sur la libration des dtenus par lettres de cachet (13 de maro de 1790). OCR, t. VI, p. 176 e p. 282 e segs. 956 Sur la condition des hommes de couleur libres (12 de maio de 1791). OCR, t. VII, p. 346 e segs. 957 Dclaration des Droits de lHomme et du Citoyen (24 de abril de 1794).OCR, t. IX, p. 465. 958 Discours sur la Constitution (10 de maio de 1793). OCR, t. IX, p. 501-2. 959 OCR, t. X, p. 195.

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Supremo, no qual aparece essa frmula curiosa: // no me consta que qualquer legislador jamais tenha pensado em nacionalizar o atesmo960. Como se v, os republicanos franceses aceitaram, naturalmente, as conquistas e a herana liberal. Num certo sentido eles a conduziram ao seu ponto mais perfeito. Mas eles no pararam a961. De fato, Maximilien no parou por a. Pois foi na defesa intransigente dos direitos polticos que o republicanismo clssico robespierrista se manifestou de forma mais evidente. Isso o que passamos a analisar, a comear por aquilo que fez com que o jornalista Adrien Duquesnoy o chamasse de vil e detestvel incendirio962, o fim das distines censitrias para se obter o direito de votar, j que a poltica democrtica robespierrista, como veremos, contraria a afirmao de Franois Furet de que ela no se referiria a um conjunto de regras ou procedimentos destinados a organizar, a partir da consulta eleitoral dos cidados, o funcionamento dos poderes pblicos963. 2. Em um trabalho sobre a relao entre os jacobinos e o Estado, Lucien Jaume d a entender ao leitor que foi somente durante o perodo termidoriano que a Revoluo fez apelo aos possuidores964, objetivando com esse apelo tornar crvel a identidade entre representantes e representados. Contudo, em uma outra parte desse mesmo trabalho, ele mais coerente com os fatos ao afirmar que a idia de cidado suposta pela Constituio de 1791 era de que o ser do homem no tem como a mais alta funo se realizar na participao da coisa pblica e no exerccio da soberania965. Da a diferenciao entre cidados ativos e passivos e, por conseguinte, a idia de propriedade e seu correlato necessrio, o lazer que ela aporta aos proprietrios, como condio para o exerccio dos direitos polticos. Porm, a recusa em

960

Sur les rapports des ides religieuses et morales avec les principes rpublicains, et sur les ftes nationales (18 de Floreal do ano II, 7 de maio de 1794). OCR, t. X, p. 453. Usamos a traduo de Maria Helena Franco Martins da edio brasileira desse discurso. Cf. ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. P. 176. Grifo nosso. 961 NICOLET, Claude. La rpublique en France: tat de lieux. Paris, Gallimard, 1992. P.33. 962 Lami des patriotes. Citado em: OCR, t. VI, P. 131. 963 FURET, Franois. Pensando a Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989. P. 42. 964 JAUME, Lucien. chec du libralisme. Les jacobins et ltat. Paris, ditions Kim, 1990. P. 31. 965 Idem, P. 60. Com certeza a maioria da Constituinte no fazia apelo a essa retrica elevada. Seu pensamento era melhor representado por Jean-Denis Lanjuinais que dizia que a Frana sobretudo agrcola e deve dar aos proprietrios uma grande influncia // Os representantes da nao tm que estar apegados terra que produz nossa riqueza; tm que ser independentes em sua existncia, para que o sejam em sua opinio; tm que estar, portanto, alm da necessidade, para que estejam alm da seduo. Citado em: DIAZ, Furio. Europa: de la Ilustracin a la Revolucin. Madrid, Alianza Editorial, 1986. P. 603.

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ampliar esses direitos apoiando-se no receio de uma revoluo social j tinha uma longa histria antes de 1789. De incio, foi a prpria filosofia grega que colocou, ao conceituar a liberdade, a luta de classes como questo. Ao menos isso que podemos deduzir, se dermos crdito considerao de Hannah Arendt de que o responsvel primeiro pela concepo materialista da histria foi, muito antes de Marx, Aristteles, quando este afirmou que o interesse de um grupo ou de um povo deve ter e tem supremacia em assuntos polticos966. Mais prximo de ns, Renato Janine Ribeiro tambm corrobora a idia da pensadora alem quando afirma que
de modo geral, na tradio que se inicia na Grcia, a democracia passa por ser o regime dos polloi, dos muitos. Essa multido de pobres se mobiliza, sobretudo, pelo desejo de ter, e o grande risco do regime em que ela prevalece que oprima, com seu peso, os mais ricos.967

No outra a percepo que se tinha da democracia, isto , da ampliao das bases do poder em direo aos setores populares, de 1789 at a Revoluo de 1848 ou mesmo at os dias da Terceira Repblica, quando por fim ela se tornou vitoriosa como um regime poltico que colocava em questo a posio social dos ricos. Na verdade, esse temor era o leitmotiv dos grupos dominantes no momento em que a Revoluo corria o risco de se radicalizar em direo ao estabelecimento da Repblica. Ainda mais se lembrarmos que a mentalidade poltica dos homens do sculo XVIII, e mesmo da dos homens do sculo XIX, era marcada pela ntima conexo entre propriedade e liberdade, o que os levava noo de que a funo das leis no era primariamente o de garantir as liberdades, mas a de proteger o direito de propriedade; era a propriedade, e no o direito como tal, o que garantia a liberdade968. Com base nesse pressuposto, que podemos ver o desassossego da burguesia constituinte no momento em que a fuga do rei, em junho de 1791, reuniu contra a monarquia, desde 1789, as primeiras manifestaes consistentes pela substituio da forma de governo monrquico pela republicana. Ao ver brandido o espectro da repblica, a burguesia viu nele uma ameaa propriedade, como claramente o enunciava Antoine Barnave969, quando dizia que um passo a mais na liberdade seria a destruio da realeza e um passo a mais na

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ARENDT, Hannah. Sobre a Revoluo. Lisboa, Relgio dgua Editores, 2001. P. 24 -5. RIBEIRO, Renato Janine. Democracia versus repblica: a questo do desejo nas lutas sociais . In: BIGNOTTO, Newton. Pensar a repblica. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002. P. 13. 968 ARENDT, Hannah. Opus cit. P. 222. 969 Ver supra, p. 223.

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ampliao da igualdade, a destruio da propriedade. Barnave resumiu, assim, os objetivos da grande burguesia, ao final da Constituinte, de terminar a Revoluo, tendo por programa poltico um regime moderado baseado no censo eleitoral. O mesmo diagnstico se repetiria depois do 9 do termidor, no momento em que, ao menos parcialmente, o projeto poltico da burguesia constituinte era retomado pelos termidorianos e diretoriais, os quais estavam fazendo aquilo que ento Thomas Paine condenava: virar a base da Revoluo dos princpios para a propriedade970. o que podemos ver na fala do antigo membro da Constituinte, Franois-Antoine Boissy dAnglas. Ele foi bastante preciso em formular o projeto poltico da burguesia diretorial, quando ela pretendeu sepultar para sempre a possibilidade da participao poltica popular. Assim, ele afirmava que a Frana devia ser governada pelos melhores, os quais so os mais instrudos e os mais interessados na manuteno das leis, e essa condio advinha do fato de serem eles proprietrios, j que um pas governado pelos proprietrios est dentro da ordem social; o pas onde os no-proprietrios governam acha-se em estado de natureza971. Esse tipo de discurso tinha mesmo um tom monocrdio a essa poca. Poder-se-ia citar diversos exemplos do mesmo tipo. Para fecharmos, citemos mais um, o qual, por sua crueza, digno de ser lembrado. Ele vem do artigo da Gazette de France no qual se l que em todas as associaes polices, unicamente os proprietrios compem a sociedade. Os outros s so proletrios, localizados na classe dos cidados supranumerrios, esperam o momento que possa lhes permitir adquirir uma propriedade972. Esse tipo de raciocnio tambm encontrou abrigo no pensamento poltico de Benjamin Constant. Em seus Principes de politique, de maneira menos crua que os seus companheiros

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BOSC, Yannick. Paine et Robespierre. Proprit, vertu et rvolution . In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) opus cit. P. 248. 971 Citado em: SOBOUL, Albert. A Revoluo Francesa. 3 ed. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981. P. 400. Durante o mesmo debate, essa tentativa de estabelecer o direito de voto com base na propriedade foi contestada pelo robespierrismo de Paine. Ele se posicionou firmemente contra seus colegas te rmidorianos quando afirmou que a representao somente deve ter uma nica e mesma raiz, e essa raiz a igualdade dos direitos: se nela se toca, adeus Revoluo. Citado em: GROSS, Jean-Pierre. galitarisme jacobin et droits de lhomme. 1793-1794. (la Grande famille et la Terreur). Paris, Arcantres, 2000. P. 36-37. Essa similitude entre o posicionamento de Paine e Robespierre foi assinalada por Jean Baptiste Louvet, o mesmo girondino que atacara Robespierre durante o ano I. Ao mesmo tempo em que ele resguardava Paine em termos pessoais, ele no deixava de condenar suas idias, justamente ao estabelecer a semelhana delas com as idias do advogado de Arras e de creditar a essas idias a razo para o despotismo da multido. Cf. BOSC, Yannick. Paine et Robespierre. Proprit, vertu et rvolution. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) opus cit. P. 245 e segs. 972 Citado em: WORONOFF, Denis. La Rpublique bourgeoise. De thermidor brumaire (1794-1799). Paris, Seuil, 1972. P. 41.

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da poca do Diretrio, ele discutia as condies necessrias para o exerccio dos direitos polticos e considerava que onde existiam colgios eleitorais, estes esto nas mos dos proprietrios. Contudo, onde esses colgios foram substitudos pela eleio direta as condies de propriedade tornavam-se indispensveis. Constant afirmava tambm que nenhum povo considerava como membro do Estado todas a pessoas que residiam em seu territrio. Assim, os menores de idade e os estrangeiros esto excludos do direito de cidade. Contudo, estas duas classes de indivduos podem obter esse direito, os primeiros quando atingirem a idade prescrita pela lei como requisito para participar da associao poltica e os outros por sua residncia, suas propriedades e suas relaes. Assim, a idade e naturalizao garantiriam as luzes e os interesses, princpios necessrios para a condio de cidado. Porm, Constant considerava necessrio uma extenso desses princpios:
preciso pois uma condio a mais que o nascimento e a idade prescrita pela lei. Essa condio o lazer indispensvel para a aquisio das luzes, para a retitude de julgamento. S a propriedade assegura esse lazer: s a propriedade torna os homens capazes do 973 exerccio dos direitos polticos.

No remontar do republicanismo, essa viso sofreu uma dura crtica das correntes democrticas do sculo XIX. Um dos seus maiores nomes, Philippe Buonarrotti, herdeiro do robespierrismo e um dos fomentadores da retomada da luta democrtica s vsperas de Revoluo de Julho, afirmava que
a partir do momento que se colocou a felicidade e a fora da sociedade nas riquezas, foi-se necessariamente conduzido a recusar o exerccio dos direitos polticos a todos aqueles que no ofereciam, por sua fortuna, uma garantia de sua ligao a uma semelhante ordem, reputado o bem por excelncia974.

Desse modo, um verdadeiro leitmotiv do pensamento poltico dos setores mdios da sociedade francesa o diagnstico que associa o alargamento da base social do Estado, do pas legal, por meio da implementao de um governo republicano democrtico, com a redistribuio da riqueza social, ou na linguagem amedrontada da burguesia revolucionria, a destruio da propriedade.

973

CONSTANT, Benjamin. Principes de politique. In: crits politiques. Paris, Gallimard, 1997. Captulo VI, P. 367. Nessa questo, Constant no original. Ele retomava a argumentao de Sieys para justificar a adoo do princpio da representao, calcada na idia de que nem todos os homens tinham o lazer necessrio para se ocupar das tarefas do governo. SIEYS, Emmanuel-Joseph. Dire sur la question du veto royal. In: crits politiques. Paris, ditions des Archives Contemporaines, 1994. P. 236. Como veremos, a insistncia por parte de Robespierre para que os representantes do povo fossem remunerados visava justamente combater essa necessidade da propriedade como condio para o direito de ser eleitor.

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Por conseguinte, em torno daquilo que simbolizava essa ampliao do pas legal, o voto universal975, que foi levantado o temor de que o poder poltico popular poderia representar o nivelamento social. S bem tarde na histria europia, a idia de extenso do voto universal viria a perder seu carter de radicalizao poltica e mostrar os meandros ilusrios que caracterizavam esse instrumento poltico como capaz de uma radical transformao poltico-social976. Enquanto este tempo no chegava, a exigncia da cidadania plena por meio da extenso do voto a todos os homens adultos foi um programa poltico fundamental do robespierrismo e mostrou ser mesmo um de seus grandes legados posteridade poltica da primeira metade do sculo XIX, repercutindo fortemente ainda durante a Terceira Repblica Francesa. Tanto os republicanos franceses da poca da Revoluo de 1848, em particular os dmoc-soc977, quanto o movimento cartista ingls foram bastante influenciados por essa idia. Este ltimo, principalmente, evocava de forma exemplar as intenes polticas dos robespierristas ao fazer da luta pelo voto universal a reivindicao principal de sua Carta do Povo978. Um dos seus lderes, James Bronterre OBrien, imbua-se de uma compreenso poltica profundamente robespierrista no tocante ao voto universal, que para ele era o caminho para se alcanar a igualdade poltica para cada um e para todos e, por meio dela, a

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BUONARROTI, Philippe. Conspiration pour lgalit dite de Babeuf. Paris, ditions Sociales, 1957. P. 26. Aqui preciso nos desfazermos de qualquer confuso quanto ao uso da palavra repblica como sinnimo de democracia. Isto porque a idia do voto universal como eixo da reivindicao poltica dos movimentos republicanos, desde a Revoluo, estava ligada ao fato de que o republicanismo francs via a Repblica como tendo o sentido de democracia, acompanhando a tradio dos Antigos e de Rousseau, e que, enquanto tal, significava // o exerccio mesmo do poder // no podendo // pri var dele o cidado tanto quanto ela no pode exclu-lo da cidade . NICOLET, Claude. Lide republicaine en France (1789-1924). Essai dhistoire critique. Paris, Gallimard, 1994. P.411. Com efeito, Robespierre era s um caso exemplar dessa situao. Basta lembrarmos a passagem em que ele dizia que // governo democrtico ou republicano, essas duas palavras so sinnimos //. OCR. T. X, p. 352. 976 Comentando a eleio pelo voto universal de Lus Napoleo Bonaparte, em dezembro de 1848, Hobsbawm afirma que tal eleio significou que mesmo a democracia do sufrgio universal, aquela instituio identificada com a revoluo, era compatvel com a manuteno da ordem social. Cf. HOBSBAWM, Erich J. A era do capital. 5 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996. P. 49-50. Mas os republicanos no se cansam! Conforme Nicolet, esses, diante do fato de que o sucesso do golpe de estado e dos plebiscitos napolenicos lhes lembravam que o sufrgio universal podia se perder e se alienar buscaram as condies que pudessem conciliar sufrgio universal e verdadeiro regime republicano. NICOLET, Claude. Lide republicaine en France (1789-1924). Essai dhistoire critique. Paris, Gallimard, 1994. P.409. 977 AGULHON, Maurice. 1848, o aprendizado da Repblica. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991. Pg. 95. 978 Alm do voto universal, constavam entre as reivindicaes dos cartistas o voto secreto, distritos eleitorais iguais, pagamento dos membros dos parlamentos, parlamentos anuais e o fim da condio de proprietrios para os candidatos.

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igualdade social para cada um e para todos979. Alis, a Carta do Povo, parece apropriar-se deliberadamente de alguns dos principais elementos do iderio democrtico robespierrista, tais como o prprio sufrgio masculino, a pagamento aos deputados e o fim da propriedade como requisito para ser elegvel980. Contudo, quanto a esse ltimo ponto, o fim da propriedade como requisito para o sufrgio, que a reflexo de Robespierre tem uma de suas dimenses mais caractersticas, pois ele no se furtou a travar a luta pelo fim do censo eleitoral na prpria linguagem do campo adversrio. A base do seu raciocnio se apoiava no argumento de que a cidadania no era passvel de ser relativizada, justamente porque todos os homens podiam reivindicar a cidadania plena na medida em que tambm deveriam ser considerados proprietrios. Esse argumento devia muito concepo de John Locke sobre a propriedade, em particular quando ele afirmou em seu Segundo tratado sobre o governo civil que
// no sem razo que o homem solicita e consente a tomar por associados outros homens, que esto j reunidos, ou que projetam se reunir, afim de salvaguardar mutuamente suas vidas, suas liberdades, e suas fortunas, o que eu designo sob o nome geral de propriedades.981

Ou ainda quando ele dizia que o homem // porta em si mesmo a justificao principal da propriedade, porque ele seu prprio mestre e o proprietrio de sua pessoa, do que ele faz e do trabalho que ele realiza982. Com efeito, desenvolvendo um raciocnio bem prximo da conceituao lockeana de propriedade, Robespierre contestava a argumentao embutida na lgica do censo eleitoral, qual seja, que os direitos polticos no podiam ser estendidos queles que no tinham nada a perder, isto , que no possuam nenhuma propriedade, afirmando que
// essas pessoas das quais vs faleis so aparentemente homens que vivem, que subsistem, no seio da sociedade, sem nenhum meio de viver e de subsistir. Pois se eles so
979

BEDARIDA, Franois. Le socialisme en Anglaterre jusquen 1848. In: DROZ, Jacques. Histoire gnrale du socialisme. Paris, Quadrige/PUF, 1997. P. 324. Como afirma Fabrizio Bracco, a propsito do republicanismo francs da dcada 1830, mas que pode, sem problemas, ser transferido para todas as correntes democrticas que surgiram com a Revoluo de 1789, o poder para os democratas no era mais um poder que disciplina a sociedade tal qual ela , mas uma fora destinada a transform-la. BRACCO, Fabrizio. Louis Blanc, dalla democrazia politica alla democrazia sociale 1830-1840. Florena, Centro Editoriale Toscano, 1983. P. 78. 980 Se o apego de OBrien ao sufrgio universal masculino e a importncia da ao poltica era neo robespierrista, suas idias sobre "a questo social " foram certamente mais influenciadas por Graccus Babeuf . LEWIS, Gwynne. Robespierre through the chartist looking-class. In: HAYDON, Colin e DOYLE, Willian. Robespierre. Cambridge, Cambridge University Press, 1999. P. 203. 981 LOCKE, John. Deuxime trait du gouvernement civil. Paris, Vrin, 1967. Cap. IX, 123, p. 146. 982 Idem, Cap. V, 44, p. 100.

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providos desses meios, eles tm, ao que me parece, alguma coisa a perder e a conservar. Sim, as grosseiras roupas que me cobrem, o humilde casebre (rduit) no qual compro o direito de me retirar e de viver em paz, o mdico salrio com que eu alimento minha mulher, minhas crianas; tudo isso, confesso, no so terras, castelos, equipagens; tudo isso se chama nada talvez para o luxo e a opulncia: mas alguma coisa para a humanidade; 983 uma propriedade sagrada, to sagrada sem dvida que os brilhantes domnios da riqueza.

Desse modo, preciso relativizar a argumentao de Jurgen Habermas, segundo a qual a tradio anglo-saxnica
// procedendo de Locke, do direito natural racional, tradio na qual se apoiaram os pais da constituio norte-americana e qual havia aludido Paine literalmente para a justificao de uma revoluo, nunca tomada a srio como uma teoria verdadeiramente revolucionria, e no s pelos rivais franceses como Robespierre, seno tambm por Burke e Hegel.984

Como mostramos, ambas, tanto a Revoluo Norte-Americana quanto Revoluo Francesa, em alguns momentos, fizeram apelo filosofia do direito natural de tradio lockeana. Robespierre fazia, assim, uso do modelo da filosofia do direito natural para condenar o sufrgio censitrio. Contudo, na noo de virtude cvica clssica que se apia boa parte de sua argumentao para defender a supresso de qualquer censo eleitoral. Na lgica de sua teoria democrtica, ele acusava a instituio de cidados de diversas categorias, passivos e ativos, no eleitores, eleitores e eleitores-elegveis fazendo ironicamente uma verdadeira categorizao racial985 como a criao de uma nova aristocracia, dessa vez, baseada na riqueza, e se perguntava quem so os ricos, quando comparados aos mais humildes, seno os egostas, incapazes, portanto, de se devotaram aos interesses da comunidade. Segundo Olivier La Cour Grandmaison,
Robespierre desenvolve uma abordagem tica das prerrogativas cvicas que erige a virtude em pr-condio ao uso correto dos direitos cvicos, na medida em que ela se define, em oposio ao egosmo, por uma atitude em que o indivduo renuncia a si mesmo para fazer

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Sur la ncessit de rvoquer les dcrets qui attachent lexercise des droits de citoyen la contribution du marc dargent, ou dun nombre dtermin de journes douvriers (abril de 1791). OCR, t. VII, p. 164. Thomas Paine escrevera: a faculdade de exercer um trabalho ou um servio qualquer que assegura a um indivduo sua subsistncia, ou que o ajuda a fazer viver sua famlia, uma natureza de propriedade. a propriedade desse indivduo, ele a adquiriu, e ela para ele um objeto to digno de proteo quanto uma propriedade ostensiva adquirida independentemente dessa faculdade pode s-lo para uma outra pessoa. Citado em: Bosc, Yannick. Opus cit. P. 247. 984 HABERMAS, Jurgen. Teora y praxis, estudios de filosofa social. Madrid, Editorial Tecnos, 1990. Capitulo derecho natural y Revolucion, p. 91. 985 Ver supra, p. 225, nota 876.

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prevalecer o interesse do corpo social (desprezo das riquezas, amor da simplicidade, etc.).
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Assim, Robespierre teria se inspirado em dois modelos: o primeiro foi o modelo do direito natural e um segundo modelo baseado numa concepo clssica, para o qual, a virtude parece ser a pr-condio necessria, seno ao exerccio dos direitos cvicos, ao menos para seu uso correto987. Dessa lgica argumentativa, La Cour Grandmaison extrai a seguinte concluso, ou a cidadania fundada sobre o direito natural, em tal caso a virtude secundria, ou ela repousa sobre essa ltima e, por sua vez, o primeiro arrisca fortemente em ser marginalizado988. Desse modo, o raciocnio de Robespierre apresentaria duas lgicas argumentativas contraditrias, construindo uma viso da sociedade dividida entre os bons e os maus cidados; a chegando, ele abre uma lgica da excluso que se confirmar cada vez mais como contrria aos direitos naturais, medida que se afirmar a vertente virtuosa dessa concepo 989. A afirmao dessa vertente, segundo Grandmaison, seria notada no discurso de agosto de 1791 contra o marco de prata ou na interveno Assemblia eleitoral de Paris, em setembro de 1792, no curso das quais Robespierre pediu a excluso dos participantes dos clubes anticvicos. A concluso a que chega esse autor de que a cidadania tende assim a no constituir um direito, mas uma concesso condicionada pela atitude dos atores e sua conformidade com a ortodoxia do momento.990 preciso que fique claro que em nenhum momento Robespierre defendeu qualquer impedimento para o exerccio do voto universal. Sua defesa de que fossem excludos da Assemblia Eleitoral de Paris seus membros anticvicos991 atingiam somente os eleitores, isto

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LE COUR GRANDMAISON, Olivier. Synthse des dbats. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) opus cit. P.223. 987 LE COUR GRANDMAISON, Olivier. La citoyennet en Rvolution (1789-1794). Paris, PUF, 1992. P. 151. 988 Idem, P. 152. 989 LE COUR GRANDMAISON, Olivier. Synthse des dbats. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) opus cit. P.223. 990 idem, ibidem. 991 Os anticvicos eram os que participaram das reunies na Sainte Chapelle (os eleitores parisienses favorveis aos Feuillants mantinham reunies nesse local), assim como tambm das do clube monrquico e do clube dos Feuillants, os que assinaram a petio conhecida como a dos oito mil (petio contrria convocao de vinte mil membros da guarda nacional para a defesa de Paris) e os que assinaram a petio dita dos vinte mil (petio que protestava contra a jornada popular do dia 20 de junho de 1792). Para esse posicionamento de Robespierre, ver: Adresse des reoprsentans de la Comune de Paris leurs concitoyens (1o de setembro de 1792). OCR, t. VIII, p. 449 e segs. Sur lexclusion des anticiviques (3 de setembro de 1792). OCR, t. VIII, p. 460-1. Sur la censure des candidats (8 de setembro de 1792). OCR, t. VIII, p. 461-2.

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, aqueles que escolheriam na Assemblia, ou melhor dizendo, no Colgio Eleitoral, os futuros deputados Conveno. Como se sabe, as eleies para a futura Conveno foram feitas indiretamente, em dois graus, modalidade que o Incorruptvel se posicionara contra, defendendo a eleio direta dos representantes Conveno pelas assemblias primrias992. Quando ele se pronunciou a favor da excluso dos anticvicos, assim como tambm da censura dos que postulavam uma candidatura Conveno, ele estava fazendo apelo prpria lgica da Declarao de Direitos do Homem e do Cidado, a qual, no seu artigo sexto, evocava a diferena das virtudes e dos talentos. Diferentemente dos que fizeram inscrever esse artigo na Declarao, mas que pouco se preocuparam em evoc-lo, j que tinham institudo o racismo eleitoral, Maximilien o admite como condio para preencher os cargos pblicos, sem que ele fosse impeditivo para o exerccio do voto universal. E isto que ele defendeu no momento em que se definiu pela queda da monarquia:
expieis pois esse crime de lesa-nao, e de lesa-humanidade, apagando essas distines injuriosas, que medem as virtudes e os direitos do homem com base na quantidade das imposies. Que todos os franceses domiciliados no bairro de cada assemblia primria, aps um tempo bastante considervel para determinar o domiclio, tal que aquele de um ano, seja a admitido a votar; que todos os cidados sejam elegveis a todos os empregos pblicos, nos termos dos artigos mais sagrados mesmo de nossa constituio, sem outro privilgio que aquele das virtudes e dos talentos.993

3. Se Maximilien fez uso de uma conceituao bastante ampla da propriedade e, por meio dela, tentava combater aqueles que faziam da propriedade o lastro da representao e dos direitos polticos, ele tambm no deixou de propor solues para o outro obstculo levantado para se excluir a classe dos pobres dos direitos polticos, isto , a ausncia de independncia e de tempo livre (o lazer), condies que deveriam preencher aqueles que se dispem a tratar da coisa pblica e que os desafortunados da sorte no conseguiriam cumprir. Assim, desde os seus tempos de postulante deputao aos Estados Gerais, ele defendeu que se atribusse uma indenizao diria a todos aqueles que os negcios pblicos, afastando-os de suas preocupaes habituais, privava de seu ganha po. Com efeito, em

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Sur la convocation dune Convention nationale (1o de agosto de 1792). OCR, t. VIII, p. 424. Dias depois, em seu jornal o Defensor da Constituio, ele foi bem claro: de desejar tambm, que, para a conveno nacional, a assemblia se ocupasse em indicar um modo de eleio mais simples, mais curto e mais favorvel aos direitos do povo. Dever-se-ia suprimir o intermedirio intil e perigoso dos corpos eleitorais, e assegurar ao povo a faculdade de escolher ele mesmo seus representantes. OCR, t. IV, p. 358. 993 Sur la dchance du roi et le renouvelement de la lgislature (29 de julho de 1792). OCR, t. VIII, p. 415.

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maro de 1789, ele j se pronunciara pela indenizao dos artesos que tinham deixado de trabalhar para se dedicar aos negcios da Comuna. No caso, a participao nas assemblias eleitorais que escolheriam os futuros deputados dos Estados Gerias994. Durante a Constituinte ele voltaria a repetir a mesma reivindicao. Em seu Discurso sobre as guardas nacionais, ele voltou a pedir que se indenizasse aqueles que o interesse pblico chama s assemblias, repetindo a mesma reivindicao durante a Conveno: que a ptria indenize o homem que vive de seu trabalho, quando ele assiste s assemblias pblicas 995. A defesa da indenizao das pessoas pobres que se dedicavam s atividades cvicas vinha de par com a remunerao dos representantes. Mais uma vez o que estava em jogo era permitir s pessoas sem condies materiais terem condies para deixar seu trabalho para ocupar um cargo pblico. Em dezembro de 1792, ele lanava a seguinte pergunta aos jacobinos: o que aconteceria se se recusasse uma indenizao em favor de um cidado qualquer que os sufrgios alaram a postos que no lhe permitem realizar suas tarefas particulares? E ele mesmo respondia: o que aconteceria que os cidados, cujas faculdades no permitem abandonar seus meios de subsistncia ordinria, encontrar-se-iam afastados dos postos //996. Essas idias tiveram um alcana prtica por meio da proposio de Danton que acordava uma indenizao de 40 sous para os trabalhadores que freqentavam as assemblias de sees. Robespierre a apoiou ao atacar o enrage Varlet, contrrio medida, observando // quais eram aqueles que podiam sacrificar seu tempo para assistir s assemblias? Seria a classe industriosa e estimvel dos artesos? Seriam os cidados que vivem do produto do seu trabalho? No, seriam os ricos, os intrigantes, os muscadins997. Por outro lado, a remunerao dos deputados deveria funcionar tambm como um barreira contra a corrupo. Foi isso que o motivou a se levantar contra Mirabeau, em 3 de maro de 1791, quando este defendeu que uma parte da remunerao dos deputados fosse usado para complementar um plano de ajuda s famlias pobres. Afirmando que o salrio dos
994

Ver seo da noite do dia 29-30 de maro de 1789 da Assemblia do Terceiro Estado da cidade de Arras. OCR, t. VI, p. 15-16. 995 Discours sur lorganisation des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 627 e Discours sur la Constitution (10 de maio de 1793). OCR, t. IX, p. 507. Lembremos que, durante a Constituinte, eram freqentes as reunies das Assemblias Eleitorais para se fazer o preenchimento de toda uma nova estrutura governamental criada pela Revoluo. 996 Sur des ptitions de lassemble lectorale (14 de dezembro de 1792). OCR, t. IX, p. 165. 997 Contre le rapport du dcret du 9 septembre 1793 (17 de setembro de 1793). OCR, t. IX, p. 110.

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representantes da nao no era uma propriedade individual, mas sim uma propriedade nacional, Maximilien dizia que a nao lhes d uma indenizao porque o interesse exige que todos os cidados estejam em estado de preencher o emprego que lhes confiado998. Dando a entender que o interesse do povo exigia que se remunerasse os representantes, caso contrrio eles poderiam muito bem ser remunerados por outro interesse. Em uma outra ocasio, ele no deixaria subentendidos:
a remunerao dos mandatrios do povo no somente uma divida da sociedade, a salvaguarda da liberdade pblica. Pois se os mandatrios no forem suficientemente indenizados plo povo, eles o sero por seus inimigos, e se indenizaro s suas expensas; a porta dos empregos pblicos s ser aberta para os ricos, e a mais odiosa das aristocracias ser estabelecida pelo fato.999

4. a preocupao com a corrupo fez com que o advogado de Arras tambm defendesse outras medidas constitucionais, alm da remunerao dos representantes, para impedir a corrupo parlamentar. Como dizia Rousseau, o legislador em corpo impossvel de corromper, mas seus representantes so facilmente corrompveis1000. Como evitar essa corrupo? Robespierre, como o Rousseau das Consideraes sobre o governo da Polnia, preconizava parlamentos curtos, a proibio da reeleio e o que ele chamava a police (a organizao) das assemblias polticas. A proposta de parlamentos curtos, outro elemento tradicional ao republicanismo clssico, foi defendida pelo advogado de Arras quando ele apoiou a proposta de Michel Lepelletier para que a durao das assemblias fosse de apenas um ano. Conforme Robespierre,
// em uma grande monarquia o povo somente pode exercer todo seu poder nomeando seus representantes: justo que o povo os mude freqentemente: nada mais natural que o desejo de exercer seus direitos, de fazer conhecer seus sentimentos, de recomendar com 1001 freqncia seus votos, a esto as bases da liberdade.

Sua proposta para que os deputados da Constituinte no pudessem ser reeleitos para o futuro perodo legislativo e, de resto, para todos os demais foi um dos momentos mais

998 999

Sur un projet de tontine viagre. OCR, t. VII, p. 101. Lettres a ses Commettants. Primeira srie, nmero 6 (23 de novembro de 1792). OCR, t. V, p. 82. Robespierre consagraria esses dispositivos, a remunerao dos funcionrios pblicos e dos trabalhadores que freqentam as Assemblias pblicas, no artigo XXIII de sua Declarao de Direitos. OCR, t. IX, p. 467. 1000 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Considrations sur le gouvernement de pologne. In: uvres compltes. Paris, Gallimard, 1964. T. III, p. 978-9.

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marcantes da carreira de constituinte de Robespierre, clebre por ter sido uma das nicas vitrias do deputado de Arras e tambm por suas conseqncias importantssimas para o futuro da Revoluo. Como todos sabem, em maio de 1791, Robespierre props e viu ser aprovada sua proposta de decreto para impedir a reeleio dos deputados constituintes. Fazendo apelo, como de praxe, a um exemplo da Antigidade, os maiores legisladores da Antigidade, depois de terem dado uma constituio ao seu pas, obrigaram-se a retornar multido dos simples cidados1002, Robespierre justificava sua proposta de decreto considerando que ele iria impedir que sob esse pretexto [o da reeleio] os ambiciosos se perpetuassem pela intriga, pelo hbito e pela indolncia dos povos1003. Sendo assim, a proibio da reeleio permitiria respeitar o princpio de que em todos os lugares em que o povo no exerce sua autoridade e no manifesta sua vontade por si mesmo mas por representantes, se o corpo representativo no puro e quase identificado ao povo, a liberdade aniquilada1004 Bem na linha do republicanismo clssico, essa medida foi classificada por Patrice Gueniffey como uma manobra poltica. Isso assim explicado porque, segundo esse autor, essa medida tinha por finalidade alcanar o objetivo ltimo de todas as suas aes, o poder. Com essa deciso, Robespierre conseguiu dar um golpe de morte na Constituio, j que ela ficava privada do sustentculo daqueles que a haviam elaborado
1005

. Como afirma Isser

Woloch, essa uma interpretao implausvel seno ridcula1006. Assim, Gueniffey acrescenta aos talentos de Robespierre o de pitonisa, j que ele era capaz de um ms antes da fuga do rei t-la adivinhado, assim como tambm conhecer de antemo o rumo que a Revoluo tomaria depois da reentronizao de Lus XVI e da entrada na guerra da Frana revolucionria, os fatos que realmente colocaram em xeque o regime de 1791 e sua constituio. E isto desde setembro de 1789, pois esta anlise de Gueniffey deveria recuar de maio de 1791 para esse ms, quando o advogado de Arras j tinha defendido que a

1001 1002

Sur la dure des Assembles Lgislatives (12 de setembro de 1789). OCR, t. VI, p. 77. Discours sur la relection des membres de lAssembl Nationale (16 de maio de 1791). OCR, t. VII, p. 383. 1003 Idem, p. 392. 1004 Second discours sur la rlegibilit des membres du corps lgislatif (18 de maio de 1791). OCR, t. VII, p. p. 404. 1005 FURET, Franois e OZOUF, Mona. Dicionrio crtico da Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989. P.319 1006 WOLOCH, Isser. On the latent illiberalism of the French Revolution. Washington, American Historical Review, 155, vol. 95, n. 5, p. 1452-70, dezembro de 1990. P. 1459.

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Constituio devia prever a nomeao dos representantes por um tempo muito curto, depois do qual eles deviam reentrar na multido dos cidados, dos quais eles devem receber o julgamento imparcial1007. Alm disso, Robespierre em plena crise final da monarquia, no momento em que ele disputava a conduo da Revoluo com os brissotistas, voltou a pedir que os membros da Assemblia Legislativa da qual, por causa da aprovao de sua proposta de no reeleio dos deputados da Constituinte, ele no fazia parte tambm fossem impedidos de se candidatar futura convocao de uma Conveno que naquele momento ele propunha como medida para solucionar a crise revolucionria1008. Contudo, ele tambm se auto-exclua dessa futura conveno, pois ele defendia que os antigos membros da Constituinte tambm no tivessem o direito de se eleger1009. Mesmo Hannah Arendt que, como j vimos, tinha eludido discutir o enraizamento clssico da compreenso que tiveram os revolucionrios de 1789 da questo social, no fez o mesmo quando analisou a famosa proposta de Robespierre contra a reelegibilidade dos constituintes. Ela mostrou justamente qual o enraizamento que estava por trs dessa proposta, lembrando que ela fazia referncia figura do legislador grego que estava fora do corpo poltico. Essa proposta, segunda ela, o nico vestgio que encontramos desta noo do papel e do estatuto do Legislador no que respeita ao corpo poltico na histria das revolues //1010. Se o impedimento da reeleio tinha por objetivo impedir a corrupo, outro instrumento adquiria uma importncia ainda maior nesse combate, a liberdade de expresso. Este era o principal instrumento, segundo Maximilien, para se combater a corrupo que advm da necessidade de se utilizar da representao. Tal instrumento propiciaria a vigilncia

1007

Dire de m. de Robespierre, contre le veto royal, soit absolu, soit suspensif (setembro de 1789). OCR, t. VI, p.

94.
1008

preciso uma assemblia nova, pura, incorruptvel, composta sobretudo dos cidados que suas manobras [dos que ele chamava de ambiciosos hipcritas] afastaram da segunda legislat ura, e que o despotismo proscreveu. Sur la dcheance du roi et le renouvelement de la lgislature (29 de julho de 1792). OCR, t. VIII, p. 419. 1009 Que os membros da Assemblia Constituinte se engajem formalmente a deixar a outras mos o cuidado de erigir o templo da liberdade, o qual eles lanaram os fundamentos, que eles se excluam assim, gloriosamente, da prxima conveno e renunciem a toda nova escolha do povo at que ela esteja terminada. Idem, p. 419 -420. Dois dias depois ele repetiria a mesma reivindicao: // convocar uma conveno nacional, cujos membros sero escolhidos diretamente pelas assemblias primrias, e no podero ser escolhidos entre aqueles da Assemblia Constituinte nem da primeira legislatura. Sur la convocation dune Convention n ationale (1o de agosto de 1792). OCR, t. VIII, p. 424.

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necessria sobre os representantes do povo. Como vimos, ele foi incansvel na sua defesa da liberdade de palavra e de imprensa durante a Constituinte, mas ele tambm defendeu que se pudesse dar a maior publicidade possvel s assemblias. Novamente foi sua preocupao em condicionar a representao que o faz desejar essa publicidade. Para ele em todos os estados em que o povo representado por mandatrios a organizao das assemblias polticas a primeira salvaguarda da liberdade e as regras das deliberaes podem ser colocados no nvel das leis mais importantes da repblica1011. Essas consideraes o fazem defender o que foi talvez a sua proposta mais curiosa. Em algumas ocasies ele props que se erguesse uma assemblia para milhares de pessoas. Numa delas ele defendeu que se construsse no local da Bastilha // um majestoso edifcio que pudesse conter ao menos 10 mil espectadores, no qual o povo pudesse vir livre e comodamente ouvir discutir seus interesses e olhar seus mandatrios1012. 5. A luta contra o racismo poltico que decorria da diferenciao entre cidados ativos e passivos encontrou um outro contexto para se manifestar quando do debate sobre o direito a pertencer guarda nacional e da conseqncia direta desse direito, o porte de armas. Debate fundamental na histria da Revoluo, j que caracterizava um dos traos fundamentais da mentalidade popular e do republicanismo de 1789. Como afirma Denis Woronoff, na ideologia republicana, o porte das armas era inseparvel da condio do homem livre. O desarmamento impedia o acesso s funes pblicas, levava a perda dos direitos cvicos e por vezes do emprego1013. A forma como Robespierre se portou nesse debate refletia seu desejo de defender mais essa causa popular1014 e tambm os contedos cvico-humanistas que ele apreendera com Rousseau. Alm disso, devemos ressaltar que a argumentao robespierrista assemelhava-se,

1010 1011

ARENDT, Hannah. Sobre a Revoluo. Lisboa, Relgio dgua Editores, 2001. P. 230-231. Lettres ses Commettans (14 de dezembro de 1792). OCR, t. V, p. 127. 1012 Sur les moyens de sauver ltat et la Libert (10 de janeiro de 1792). OCR, t. VIII, p. 174. Lettres ses Commettans (14 de dezembro de 1792). OCR, t. V, p. 129. Em outra ocasio, ele faria a mesma reivindicao para as sees dos corpos administrativos. Cf. Sur la publicit des sances des corps administratifs (6 de maro de 1791). OCR, t. VII, p. 110. 1013 WORONOFF, Denis. La Rpublique bourgeoise. De thermidor brumaire (1794-1799). Paris, Seuil, 1972. P. 26. 1014 Seu principal discurso sobre o problema das guardas nacionais foi reimpresso em vrias cidades da Frana e teve, onde foi lido, uma aceitao entusiasmada. Cf. OCR, t. VI, p. 616, nota 01.

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em alguns aspectos, com os argumentos neo-harringtonianos contra o exrcito permanente na Inglaterra da dcada de 1670. Como se sabe, alguns escritores influenciados por James Harrington, autor dOceana livro no qual fizera a defesa de uma cidadania armada atacaram a evoluo que ento ocorria no exrcito ingls, o qual estava em vias de se compor de corpos permanentes e profissionais sob o controle de Carlos II. Para esses neo-harringtonianos essa evoluo levaria a eliminao da liberdade, da virtude e da estabilidade garantidas por um governo misto restaurado, composto pelo rei, lords e comuns e que tinha numa milcia cidad de proprietrios de terra um dos seus esteios1015. Contudo, a influncia direta era mesmo a de Rousseau. Desse modo, se em outros escritos a influncia do rousseausmo pode ser considerada difusa, em seu Discours sur lorganisation des gardes nationales isso j no acontece. As questes centrais que ele levantou nesse discurso tiveram como texto referncia as Consideraes sobre o governo da Polnia1016. Todavia, Rousseau propusera para a Polnia um conjunto de medidas abrangentes, entre as quais a criao de uma milcia de cidados era um dos pontos chaves para dotar esse pas de instituies republicanas. Robespierre, diferentemente, s interveio como constituinte para pleitear mudanas especficas, as quais, e esse era o caso da questo da guarda nacional, no podiam tocar naquilo que era um ponto consensual, a manuteno de um monarca hereditrio dotado tanto do poder executivo quanto do poder militar constitudo por um exrcito regular. Diante do consenso de que a Frana era e devia ser uma monarquia, consenso que o deputado de Arras foi um dos primeiros a defender, a questo da guarda nacional s podia ser equacionada em sua relao com um rei comandante constitucional da fora militar. Sempre cioso em defender o equilbrio de poder dentro da monarquia popular, Robespierre via nas guardas nacionais um bastio para resguardar a liberdade da nao frente a ameaa potencial que poderia advir do uso das tropas de linha nas questes internas e do perigo que significaria subordinar a guarda nacional ao rei, como queriam os constituintes. Se isso viesse a acontecer acabaria por colocar em risco a liberdade do povo francs que no teria nenhuma fora para se

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POCOCK, John. G. A. Le moment machiavlien. Paris, PUF, 1997. Terceira parte, captulo XII. Maximilien segue em pontos diversos as idias contidas nas Consideraes, chegando mesmo a cit-la textualmente, como se v quando ele se serve da passagem sobre os cantes suos. Cf. Discours sur lorganisation des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 626.

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proteger. Com efeito, partindo de um raciocnio que lembrava o autor dO prncipe, por meio do autor das Consideraes, Maximilien afirmava que a mais inevitvel de todas as leis, a nica que sempre seria seguramente obedecida a lei da fora, j que o homem armado mestre do que no 1017. Fazendo uma digresso sobre o papel dos soldados no passado e no presente, Maximilien afirmava que a idia da instituio das guardas nacionais, ao menos tal como a concebemos, nova; ela pertence a nossa revoluo1018. Em outros momentos da histria, entre os povos livres, todo cidado era soldado desde que nascia e se armava sempre que a ptria fosse ameaada por foras estrangeiras. J os outros povos, os modernos, eles entretm, ou antes, os monarcas entretm, s suas expensas, corpos de tropas permanentes que eles empregam alternativamente para combater os inimigos estrangeiros e para aprisionar seus sditos1019. A Frana, assim, no era uma repblica como tinham sido Roma e Atenas e nem tampouco devia reproduzir as instituies dos modernos, que concebia esse tipo de fora militar sob comando do monarca e nada que a contrabalanasse. O papel fundamental da guarda nacional seria o de ser o contrapeso do exrcito regular1020, tendo por funo precpua a defesa interna da repblica. Para que esse objetivo fosse alcanado, as guardas nacionais deviam ser a nao inteira armada para defender seus direitos. Da que novamente ele trazia baila a questo do censo, o qual tambm tinha a funo de selecionar a entrada na guarda nacional da mesma forma que tinha em relao ao direito de votar. Porm, quanto interdio que o censo fazia aos direitos polticos, ele dizia que s podia se prescrever um silncio religioso, afirmando, no entanto, que era impossvel adicionar essa interdio uma segunda interdio, a proibio de se armar para sua defesa pessoal. Maximilien para justificar essa posio recorreu ao argumento de que a defesa pessoal constitua um direito que precedia qualquer outro direito, e tal direito era independente de todos os sistemas polticos que classificam os cidados, porque eles se relacionam essencialmente ao direito inalienvel, ao dever imortal de velar por sua prpria

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Discours sur lorganisation des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 618. Em outro momento ele perguntaria: vs ignoreis que so aqueles que dispem da fora armada que fixam a sorte das revolues?. Le Dfenseur de la Constitution (terceiro nmero, maio de 1792). OCR, t. IV, p. 98. 1018 Discours sur lorganisation des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 617. 1019 Idem, ibidem. 1020 Sur ladmission dans la garde nationale des citoyens domicilis (27 de abril de 1791). OCR, t. VII, p. 263.

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conservao1021. Aqui reaparece a sua peculiar idia de propriedade, a qual, como afirma Jean Bart1022, no estava relacionada exclusivamente riqueza, bem imveis ou objetos materiais, mas a uma concepo geral da propriedade que inclua a vida, a liberdade1023. Apesar de Maximilien lembrar a peculiaridade da criao da guarda nacional no contexto da Revoluo e, a princpio, diferenciar a Frana revolucionria dos povos livres formados por cidados-soldados, o argumento cvico-humanista a figura aristotlica clssica do cidado armado e independente1024 acabava por permear toda sua argumentao, j que, tendo em mente a afirmao de Rousseau de que todo cidado deve ser soldado por dever, nenhum deve s-lo por profisso1025, ele afirmava que a guarda nacional devia ser composta de cidados e no de soldados profissionais1026. Para isso era preciso sobretudo aplicar-se a fundir nelas a qualidade de soldado naquela de cidados, o que poderia ser alcanado por meio de uma srie de medidas que ele preconizava. Alm, claro, do acesso universal aos seus quadros, ele defendia a eleio dos oficiais pelos cidadossoldados, a eliminao da hierarquia militar tradicional, sua subordinao ao poder legislativo, entre outros. Por fim, o argumento cvico-humanista tendia a prevalecer completamente na argumentao de Maximilien, a medida em que ele preconizava que no futuro a guarda nacional passaria a tomar o lugar do exrcito regular e ser a nica fora militar na Frana. Aqui preciso ressaltar uma questo. Na poca das guerras revolucionrias ocorreria a fuso do exrcito regular com a guarda nacional, foi o famoso amlgama, o qual eliminar a segunda em benefcio do primeiro. No era isso que preconizava Robespierre. Posicionando-

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Discours sur lorganisation des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 623. BART, Jean. Droit individuel et droits collectifs. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 253-4. 1023 Ver citao p. 242.xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 1024 SKINNER, Quentin. SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno . So Paulo, Companhia das Letras, 1996. P.193. 1025 Considrations sur le gouvernement de Pologne. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. uvres compltes. Paris, Gallimard, 1964. T. III, p. 1014. 1026 Para argumentar, ele retomava o mesmo exemplo histrico utilizado por Rousseau em suas Consideraes sobre o governo da Polnia, exemplo tirado da fase em que na Roma antiga os exrcitos tornavam-se mais e mais profissionais. Assim, ele escrevia: vejas os cidados romanos comandados por Csar: se, em um descontentamento recproco, ele buscava humilh-los, no lugar do nome de soldados, ele lhes dava aquele de cidados, quirites; e a essa palavra, eles ficavam com as faces coradas e se indignav am. Discours sur lorganisation des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 620 e ROUSSEAU, Jean-Jacques. Considrations sur le gouvernement de pologne. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. uvres compltes. Paris, Gallimard, 1964. T. III, p.1017.

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se desde ento contra a guerra1027, como o far mais tarde, ele preconizava a existncia de uma milcia de cidados-soldados apenas com o carter defensivo, usada para a defesa de invases estrangeiras e para a defesa das liberdades conquistadas pelo povo francs:
ora, eu ouso acreditar que ele [o sistema de tropas de linha] desaparecer; eu ouso mesmo predizer que logo que as guardas nacionais forem organizadas, que a constituio solidamente fortalecida, que todo mundo sentir quanto absurdo que uma nao que quer ser justa, que se probe toda agresso e toda conquista, e que pode a cada instante armar cinco milhes de braos para afastar criminosos ataques, acredite na necessidade de entreter perpetuamente um outro exrcito, cujo menor inconveniente seria ser intil e dispendioso. 1028

5. Mesmo considerando de fundamental importncia a figura do cidado-soldado, o robespierrismo, diferentemente de outras vertentes do republicanismo, manteve srias reservas em relao guerra e expanso imperialista. Quanto a esse aspecto, mesmo depois da Frana revolucionria entrar no ciclo infernal da guerra permanente, poucas mudanas ocorreram. Robespierre continuou desconfiando dos chefes militares e desprezando as conquistas militares. Sua famosa frase sobre os missionrios armados foi como que explicada em detalhe no nmero cinco de suas Cartas a seus comitentes. Nessa quinta carta, ele afirmava que se pode ajudar a liberdade, jamais fund-la pelo emprego de uma fora estrangeira e aqueles que querem dar leis a mo armada somente parecem estrangeiros e conquistadores, sobretudo aos homens que preciso desviar do erro [ dsabuser], e tornar mais familiar repblica e filosofia. Ele pedia que se colocasse nas mos dos prprias povos o seu destino1029. Em 5 de dezembro de 1793 ele voltaria carga de forma ainda mais clara:
os franceses foram atingidos pela mania de tornar nenhuma nao feliz e livre, apesar dela. Todos os reis poderiam vegetar ou morrer impunes sobre seus tronos ensangentados, se eles soubessem respeitar a independncia do povo francs//1030.

1027

// depois de ter renunciado ambio das conquistas, e reduzido nossos tratados de aliana a termos puramente defensivos, ns devemos antes de tudo levar em conta que as ocasies de guerra sero para ns infinitamente mais raras, a menos que ns tenhamos a fraqueza de nos deixar levar para fora das regras dessa virtuosa poltica pelas prfidas sugestes dos eternos inimigos de nossa liberdade. Discours sur lorganisation des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 628. 1028 Discours sur lorganisation des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 632. Ver: WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably . Stanford, Stanford University Press, 1997. P. 88. 1029 Lettres a ses commettans (Segunda srie, quinto nmero - 5 de fevereiro de 1793). OCR, t. V, p. 271. 1030 Rponse de la Convention Nationale au manifeste des rois ligus contre la Rpublique, propose par Robespierre, au nom du Comit de salut public. OCR, t. X, p. 230.

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Essa atitude foi sem sombra de dvida um dos elementos que contriburam para criar divergncias com seu antigo conhecido de Arras, Lazare Carnot, no seio do Comit de Salvao Pblica. Como se sabe, tal divergncia foi de fundamental importncia para o desenlace do drama do termidor1031. Na questo militar e no seu corolrio, a guerra de conquista, o advogado de Arras estava em continuidade com o republicanismo de Mably. Com base no direito das gentes, que se fundava na igualdade jurdica dos povos e no respeito da soberania do outro1032, Mably foi um crtico da guerra e um antiimperialista. O que, como afirma Kent Wrignt, no representava uma quebra com a tradio republicana por parte de Mably. O mesmo se pode dizer de Robespierre, j que ele tambm invocava o direito das gentes para se opor guerra de conquista1033 e afirmar seu desprezo pelo que a extravagncia feudal chamava de honra. Ao mesmo tempo, ele se manteve atento a que se criasse uma fora defensiva, na qual se combinasse as virtudes cvicas com os valores da coragem e do herosmo do soldado, o que o inseria na mais pura tradio clssica do republicanismo. S a gloria de combater pela ptria parecia justificar a seus olhos o exerccio das armas, pelo qual ele tinha muito pouca simpatia. Com efeito, apenas aqueles que podiam provar seu amor pela glria, o qual Mably chamava a terceira virtude 1034, escapavam de suas invectivas. Nesse caso, sua indulgncia recaa mesmo sobre aqueles pelos quais ele parecia ter

1031

Ainda em seu ltimo discurso, Maximilien tocaria nesse ponto sempre negligenciado pela quase totalidade dos polticos, o custo humano das guerras. Ento ele diria que se falava das // vitrias com uma ligeireza acadmica que faria acreditar que elas no custaram a nossos heris nem sangue nem trabalhos //. Continuando ele afirmava no nem com frases de retrica, nem mesmo com faanhas guerreiras que ns subjugaremos a Europa, mas pela sabedoria de nossas leis //. Um dia depois, caso tivesse podido pronunciar seu discurso, Saint-Just teria dito: somente os que esto nas batalhas podem ganh -las, e somente os poderosos delas tiram proveito. Contre les factions nouvelles et les dputs corrompus (8 Thermidor An II-26 de julho de 1794). OCR, t. X, p. 568. Discours du 9 Thermidor an II (27 de julho de 1794). SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 911. 1032 BLISSA, Marc. Robespierre et la guerre de conqute. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 349-350. 1033 Ele chegou mesmo a defender a formao de uma santa confederao que fosse de uma ponta a outra da Europa, baseada na razo, na humanidade e na virtude. Discours de bienvenue la dputation corse (26 de abril de 1790). OCR, t. VI, p. 333. Sobre a sua intransigente defesa do direito das gentes, h uma passagem que vale a pena ser citada. Quem nos relata essa passagem, de forma irnica, o jornal realista de Duquesnoy. Em fevereiro de 1790, houve uma discusso na Constituinte sobre a demanda dos prncipes possessionrios da Alscia, em relao aos quais se criou um problema jurdico depois das decises da noite do 4 de agosto. Maximilien pretendeu fazer uma interveno, mas a discusso foi fechada antes que ele pudesse falar. Curiosos, os senhores de Liancourt e de La Rochefoucauld lhe perguntaram: Vs conheceis ao menos o tratado de Ryswick? No. Estudastes o direito pblico da Alemanha? No, no se trata aqui nem do direito pblico, nem de tratado, mas do direito das gentes. Sur les droits des princes possessionns dAlsace. OCR, t. VI, p. 231.

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o menor apreo, os generais. Desse modo, a nica forma que ele encontrou para defender os generais Custine e Dumouriez das acusaes dos girondinos, num momento em que estes futuros traidores ainda tinham sua confiana, foi afirmar que eles no podiam ser traidores porque eles amam a glria1035. De resto, a glria era considerada um elemento fundamental da vida republicana. Em seu Discurso sobre os princpios de moral poltica l estava presente a idia do amor da glria como um dos substitutos do amor ao dinheiro1036. Perguntando qual seria o motivo que faria com que um cidado virtuoso desejasse ser um legislador, ele respondia que no poderia ser a riqueza, o desejo de dominar ou o amor do poder, mas o desejo de servir ptria e aquilo que a isso esta ligado, o amor da verdadeira glria, aquela que consiste, no no brilho das dignidades, nem no fausto de uma grande fortuna, mas na felicidade de merecer o amor de seus semelhantes por seus talentos e virtudes1037. E no foi toa que a Conveno, por sua instigao, dedicou glria uma das festas criadas do calendrio republicano: instituamos a festa da glria, no da que assola e oprime o mundo, mas da que o libera, ilumina e consola, da que, depois da ptria o primeiro dolo dos coraes generosos1038.

1034

Mably considerava o amor da glria como uma virtude auxiliar, junto com a temperana (primeira) e o amor do trabalho (segunda). WRIGHT, Johnson Kent. Opus cit. P. 86. 1035 Sur les dangers qui menacent la libert (12 de dezembro de 1792). OCR, t. IX, p. 157. 1036 Sur les principes de morale politique qui doivent guider la Convention nationale dans ladministration intrieure de la Rpublique (5 de fevereiro de 1794). OCR. t. X, p. 352. 1037 Second discours sur la rlegibilit des membres du corps lgislatif (18 de maio de 1791). OCR, t. VII, p. 408. 1038 Sur les rapports des ides religieuses et morales avec les principes rpublicains, et sur les ftes nationales (18 de Floreal do ano II, 7 de maio de 1794). OCR, t. X, p. 461.

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III. A igualdade atravs da lei: a economia poltica popular e a reciprocidade entre o direito propriedade e o direito existncia

1. Enganar-se-ia quem, ao se deparar com a curiosa frmula economia poltica popular em seu Discurso sobre a Constituio, buscasse encontrar nos contedos desse texto e nos demais de Robespierre a articulao de um discurso econmico comparvel a de seu discurso poltico. Essa , na verdade, uma questo ociosa. Com efeito, em se tratando do pensamento dos robespierristas, a questo poltica e moral tinha precedncia frente econmica. Mesmo quando as contingncias da Revoluo exigiram que se lidasse com aquilo que foi o seu pano de fundo, permanente e dramtico1039 a questo das subsistncias, isto , o problema cotidiano do po e, portanto, era preciso tratar da economia, esta, ainda assim, era subordinada, no discurso robespierrista, a uma definio poltica das relaes econmicas e sociais, bem na tradio republicana1040. A economia robespierrista foi, assim, uma economia moral, uma economia moralizada pelas virtudes republicanas1041. isso que pode ser compreendido por meio da frmula economia poltica popular. Retomemos a passagem em que ela aparece. A certa altura, no Discurso sobre a Constituio, Maximilien expunha as suas idias sobre as assemblias pblicas entre essas idias estavam a sua j tradicional preocupao com a indenizao para os trabalhadores que assistissem a tais assemblias, a deliberao em alta voz, entre outros pontos quando afirma:
// por meio disso vs tereis resolvido o problema ainda indeciso da economia poltica popular: de colocar na virtude do povo e na autoridade do soberano, o contrapeso 1042 necessrio das paixes do magistrado e da tendncia do governo tirania.

Essa frmula no usual1043 tinha a funo de designar, como se pode ver na transcrio da passagem em que ela se encontrava, o funcionamento da democracia ou, melhor dizendo, do estado democrtico, numa transposio e ampliao do significado dado por Rousseau expresso economia poltica, tambm utilizada por Robespierre e com o

1039 1040

GUILLEMIN, Henri. Robespierre, poltico e mstico. Porto Alegre, L&PM, 1989. P. 235. NICOLET, Claude. La rpublique en france. tat de lieux. Paris, Seuil, 1992. P. 36-38. 1041 BART, Jean. Droit individuel et droits collectifs. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) opus cit. P. 262. 1042 Discours sur la Constitution (10 de maio de 1793). OCR, t. IX, p. 507. Grifos nossos.

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mesmo significado rousseausta original1044. Recordemos que para Jean-Jacques a expresso economia geral ou poltica significava, em contraposio economia domstica ou particular, o governo do estado1045. Portanto, na passagem citada, no era sobre economia que tratava Robespierre. No entanto, um outro significado que poderamos tirar dessa passagem seria que, na medida em que o uso mesmo da expresso economia poltica tinha a funo de designar um contedo meramente poltico, os robespierristas mais uma vez se afastavam do liberalismo, ao menos de um liberalismo sumrio1046. Isto porque, como se sabe, estes erigiram a linguagem econmica como o cerne do seu discurso, numa verdadeira sacralizao do econmico, e justamente a recusa de tal sacralizao que caracterizava o robespierrismo e as correntes republicanas francesas. antes a esta recusa que se pode atribuir a inexistncia de um discurso econmico coerente por parte dos robespierristas do que falta de uma formao em cultura cientfica1047. Ele tambm, se quisesse, teria a habilidade para manejar essa linguagem como ele o demonstrava na passagem em que afirmava que
a liberdade indefinida [de circulao] no outra coisa que a desculpa, a salvaguarda e a causa desse abuso [o monoplio]. // De que reclamamos? Precisamente dos males que o sistema atual produziu ou, ao menos, dos males que ele no pode prevenir. E qual remdio nos proposto? O sistema atual. Eu vos denuncio os assassinos do povo, e vs respondeis: deixe-os fazer (laissez-les faire).1048

Estas consideraes nos levam a concluir que a frmula economia poltica popular tratava, antes de qualquer coisa, de sua concepo dos direitos polticos republicanos, o que

1043 1044

ARMANDI, Marco. (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma, Editori Riuniti, 1999. P. 147, nota 26. Examinemos, ento, antes de tudo, qual o objeto preciso da instituio das guardas nacionais, qual o lugar que elas devem ter, qual a funo que elas devem cumprir na economia poltica //. Discours sur lorganization des gardes nationales (dezembro de 1790). OCR, t. VI, P. 617. Grifos nossos. 1045 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur lconomie politique. In: uvres compltes. Paris, Gallimard, 1964. T. III, p. 241. 1046 NICOLET, Claude. La rpublique en France: tat de lieux. Paris, Gallimard, 1992. P. 41. 1047 Lembremos a afirmativa de Soboul, Robespierre, discpulo de Rousseau, mas de cultura cientfica e econmica quase nula //. SOBOUL, Albert. A Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981. P. 361. Na verdade, a resposta j se encontra nos termos da afirmao de Soboul. Algum poderia tentar ser um seguidor fiel de Rousseau e, ao mesmo tempo, dar maior importncia ao econmico e, portanto, sua linguagem em detrimento do poltico? 1048 Sur les subsistences (2 de dezembro de 1792). OCR, t. IX, p. 115-6. Os robespierristas utilizavam os mesmos termos da linguagem poltica da economia moral. Ainda na Inglaterra do sculo XVIII, aqueles que vendiam o po acima do seu valor em pocas de escassez, isto , estabeleciam o preo da farinha de acordo com a lei da oferta e da procura, eram considerados, na linguagem da economia moral, homens de sangue. Ver: THOMPSON, Edward Palmer. Lconomie morale de la foule dans lAnglaterre du XVIIIe sicle . In: THOMPSON, Edward Palmer et alli. La guerre du bl au XVIIIe sicle. Paris, Les ditions de la Passion, 1988. P. 88.

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vimos mais acima e, portanto, ela deve ser entendida // como a economia geral de um sistema representativo popular, garantindo ao povo a integralidade de seus direitos de participao1049. Contudo, ela tambm pode ser entendida pela articulao que os robespierristas fizeram dos direitos de participao com o direito existncia, na medida em que o sistema representativo popular robespierrista desdobrava-se necessariamente nesse direito. Essa articulao era uma maneira original de conceber uma das caractersticas do republicanismo clssico, a saber, a idia de que a igualdade de direitos deveria se apoiar em aes que permitissem a independncia material, sob pena daqueles direitos virem a perder sua fora. Para tanto, era de fundamental importncia reduzir a desigualdade de fortunas. Desse modo, para nos ajudar a entender melhor a articulao entre direitos de participao e o direito existncia, vamos comear por analis-la com base na relao entre a teoria da democracia robespierrista e a idia de progresso. Isto nos permitir situar a questo da riqueza e da propriedade no interior dessa teoria e compreender tambm, por curioso que parea, sua idia de um culto cvico. 2. Como vimos, desde a poca do caso do pra-raios1050, Maximilien j tinha tomado partido de forma entusistica por uma das noes dominantes do pensamento da Ilustrao, a idia de progresso. Contudo, sua defesa do progresso deve ser relativizada. Com efeito, ele parecia apoiar ou, melhor dizendo, conformar-se com uma das dimenses do progresso, no caso o progresso material, como se pode ver em seu famoso discurso sobre o Ser Supremo de 7 de maio de 1794, no qual ele afirmava que
o mundo mudou, e deve mudar mais. O que h de comum entre o que e o que foi? As naes civilizadas sucederam os selvagens que erravam nos desertos; as colheitas frteis tomaram o lugar das florestas antigas que cobriam o globo. Um mundo apareceu alm das fronteiras do mundo; os habitantes da terra acrescentaram os mares a seu imenso domnio; o homem conquistou o raio, esconjurando a ira do cu. Comparai a linguagem imperfeita dos hierglifos com os milagres da imprensa; cotejai a viagem dos argonautas com a de La Peyrouse; medi a distncia entre as observaes astronmicas dos magos da sia e as

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MARGAIRAZ, Dominique. Le maximum, politique conomique ou politique social. JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 266, nota 8. 1050 Ver supra, p. 154.

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descobertas de Newton, ou ento entre o esboo traado pela Dibutade e os quadros de David. Tudo mudou na ordem fsica // 1051

No entanto, essa recepo positiva das mudanas na ordem fsica no o fazia defender a idia de uma positividade intrnseca riqueza, definindo de maneira exclusiva o fim da associao civil pelo desenvolvimento da prosperidade1052. Ao contrrio. Das lies que ele tirou dos escritos de Montesquieu certamente no se incluam suas idias sobre o comrcio e sua capacidade de suavizar as maneiras1053. O progresso material, portanto, era encarado por Maximilien da mesma forma que seu outro mestre, Rousseau, para quem a riqueza antes de tudo corrompe. Da sua descrena nas riquezas, // que conduzem a tanta corrupo1054. Mais ainda, cometendo talvez um anacronismo, poderamos dizer que Maximilien parecia corroborar o adgio popular que diz que o dinheiro no traz felicidade. Como se sabe, seu companheiro de lutas, e tambm de idias, Saint-Just1055, cunhara a famosa frase sobre a felicidade, dizendo que ela era uma idia nova na Europa. Para ambos, no se tratava da // felicidade que consiste no esquecimento dos outros e no gozo do suprfluo //1056, isto , na busca pela felicidade individual que algumas vertentes do Iluminismo fizeram a apologia e que podia se circunscrever liberdade negativa. Tratava-se da felicidade coletiva, e essa era a razo porque a felicidade era uma idia nova. Tal idia tambm no podia existir sem a liberdade. Com efeito, Robespierre escrevia que se olhava a liberdade como o suprfluo do qual o povo podia se passar, desde que se lhe deixasse a tranqilidade e o po, mas ele que via a liberdade como um dolo ele no

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Discours sur les rapports des ides religieuses et morales avec les principes rpublicains et sur les ftes nationales (18 de Floreal do ano II/7 de maio de 1794). OCR, t. X, p. 444. Usamos a traduo de Maria Helena Franco Martins da edio brasileira desse discurso. Cf. ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. P. 164. 1052 SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 1770-1830. Paris, VRIN/EHESS, 2000. P. 22. 1053 O comrcio cura dos preconceitos destruidores; e quase que uma regra geral que em todo lugar em que existe costumes suaves existe comrcio e que em todo lugar que existe comrcio existe costumes suaves. MONTESQUIEU, Charles de Secondat, baro de. O esprito das leis. So Paulo, Martins Fontes, 1996. P. 344. 1054 Le Dfenseur de la Constitution (quarto nmero, novembro de 1792). OCR, t. IV, p. 117. 1055 A frase no original le bonheur est une ide neuve en Europe. Rapport sur le mode dxecution du dcret contre les ennemis de la Rvolution (13 do ventoso do ano II-3 de maro de 1794). In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 715. Ver, mais abaixo, o contexto em que Saint-Just formulou essa frase. 1056 Rapport sur les factions de ltranger (23 de ventoso do ano II-13 de maro de 1794). In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 729.

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conhecia felicidade sem liberdade1057. Durante a Conveno girondina, ele foi ainda mais claro em ligar riqueza e infelicidade:
uma parte dos defensores do povo se deixou corromper; eu tambm, eu poderia ter trocado minha alma pela opulncia; mas eu olho a opulncia no somente como o preo do crime, mas tambm como a punio do crime, e eu quero ser pobre para no ser infeliz.1058

Portanto, a economia moral robespierrista estava longe de fazer a apologia da riqueza. Com efeito, Robespierre retomava uma das chaves dominantes do humanismo cvico, o receio de que o aumento das riquezas privadas se mostrasse capaz de corromp er a vida pblica1059, em outras palavras, o medo de que o gozo dos prazeres privados tomasse o lugar do amor ao bem pblico. A riqueza estava, assim, muito mais para o vcio: as grandes riquezas corrompem aqueles que as possuem e aqueles que as invejam. Com as grandes riquezas, a virtude fica horrorizada1060. A riqueza, melhor dizendo, a propriedade e as disparidades de fortuna, foram encarados pelo republicanismo de 1789 e seus partidrios como um problema para o qual era preciso encontrar uma resposta. Como afirmava Sint-Just, preciso que no haja nem ricos nem pobres1061. Herdeiros do rousseausmo, os robespierristas tinham uma forte preocupao em advertir sobre os perigos da excessiva disparidade nas condies materiais entre os cidados, discutindo a cada passo de suas carreiras revolucionrias esse que era um dos temas chaves da tradio republicana, encontrado no pensamento de Aristteles, Polbio, Maquiavel e Harrington1062.

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Discours sur les droits politiques des hommes de couleur (24 de setembro de 1791). OCR, t. VII, p. 738. Pour des mesures de salut public (8 de maio de 1793). OCR, t. IX, p. 488. 1059 SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno . So Paulo, Companhia das Letras, 1996. P. 95-96. Maximilien no teria dvida em falar como Maquiavel, se tivesse superado seus preconceitos em relao ao autor dO Prncipe. Pelo menos no teria rejeitado a passagem dos Discursos em que Maquiavel afirmava que poder-se-ia falar muito disso, mostrando como a pobreza produz melhores frutos do que a riqueza e como uma tem trazido honra s cidades, s provncias e aos partidos, enquanto a outra os tem arruinado, se este assunto j no tivesse sido tratado muitas vezes por outras pessoas. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre la primera dcada de Tito Livio. Madrid, Alianza Editorial, 2000. P. 393-394. 1060 Sur les ingalits dans les successions (5 de abril de 1791). OCR, t. VII, p. 187. 1061 Fragments dinstitutions rpublicaines. In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 819. P. 996. 1062 WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably. Stanford, Stanford University Press, 1997. P. 99.

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Contudo, como enfrentar esse problema medida que jacobinos e robespierristas se recusavam a aceitar como soluo tanto a lei agrria1063 quanto comunidade de bens1064? A resposta robespierrista se encontrava na afirmao do direito existncia, o qual // no colocava em causa os fundamentos socio-econmicos da sociedade, em particular a propriedade, mas somente a excessiva disparidade das fortunas //1065. Por outro lado, essa resposta estava longe de ter um respeito supersticioso pela propriedade1066, j que tal respeito implicava na concepo da propriedade como um direito subjetivo, ao passo que o robespierrismo defendia o // reconhecimento de seu carter eminentemente social1067, etapa necessria para passar a entender a propriedade como os republicanos da Terceira Repblica o fizeram, como propriedade funo social1068. Tendo por base o princpio de que era preciso // conciliar os direitos de propriedade com a vida dos homens //1069 e de que a sociedade deveria cumprir a obrigao de assegurar a seus membros o necessrio e a subsistncia, pelo trabalho1070, Maximilien desenvolveu sobre a propriedade uma concepo que, como disse Claude Nicolet, por muito tempo foi considerada escandalosa 1071. Em tal concepo da propriedade ele avanou // a idia de um eventual limite legal ao direito de apropriao, liberdade ilimitada de adquirir e acumular bens materiais //1072. Mais uma vez Maximilien dava o formato final a uma concepo h muito elaborada1073

1063

Procurar amedrontar a todos os ricos por meio da idia de uma lei agrria, absurdo espantalho, apresentado a homens estpidos por homens perversos. Le Dfenseur de la Constitution (quarto nmero, novembro de 1792). OCR, p. 116-7. 1064 Como se eles ignorassem que a igualdade dos bens essencialmente impossvel na sociedade civil; que ela supe necessariamente a comunidade que ainda mais quimrica //. Idem, p. 117. Grifo nosso. 1065 MARGAIRAZ, Dominique. Opus cit. P. 266. 1066 Conforme Condorcet, era preciso // respeitar a propriedade at superstio. Cf.: SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 1770 -1830. Paris, VRIN/EHESS, 2000. P. 206, nota 1. 1067 CASTEL, Robert. As metamorfoses da questo social: uma crnica do salrio . Petrpolis, Editora Vozes, 1998. P. 392. 1068 Expresso de Lon Duguit. Citado em : CASTEL, Robert. Opus cit. P. 397. 1069 Sur les troubles dEure et Loire (30 de novembro de 1792). OCR, t. IX, p. 108. 1070 Le Dfenseur de la Constitution (quarto nmero, novembro de 1792). OCR, t. IV, p. 117. 1071 Somente em 1945, na Declarao de Direitos da nova Constituio francesa, seria consagrada sua viso da propriedade. NICOLET, Claude. Lide republicaine en France (1789-1924). Essai dhistoire critique. Paris, Gallimard, 1994. P.359. 1072 GROSS, Jean-Pierre. galitarisme jacobin et droits de lhomme 1793-1794 (La Grande famille et la Terreur). Paris, Arcantres ditions, 2000. P. 221. Grifos do autor. 1073 Ele j tinha manifestado seu pensamento sobre o tema desde o seu discurso sobre as subsistncias: a primeira lei social foi pois aquela que garantiu a todos os membros da sociedade os meios de existir; todas as outras so subordinadas a ela; a propriedade somente foi instituda ou garantida para ciment-la; antes para

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quando sintetizou no artigo stimo de sua Declarao de Direitos, suas idias sobre a propriedade. Esse artigo rezava que: o direito de propriedade limitado, como todos os outros, pela obrigao de respeitar os direitos de outrem1074. E dos direitos de outrem, o principal, alm da liberdade, era o direito de existir1075. 3. Vejamos agora a quais limites legais o direito de existir pretendia subordinar o direito propriedade na teoria democrtica robespierrista, em particular sua tentativa de promover uma poltica de democratizao da propriedade, deixando para o final desse captulo a anlise dos desdobramentos daquele direito nos direitos chamados de terceira gerao. Como as vrias correntes polticas revolucionrias democrticas, os robespierristas tambm tiveram seus devaneios sobre o futuro da Frana depois da Revoluo e acreditavam que o melhor dos mundos seria aquele formado por uma sociedade de pequenos camponeses e artesos. Contudo, Robespierre sempre foi levado a confrontar esses devaneios com o princpio da realidade e propor concretamente uma soluo para o problema da exagerada desigualdade de fortunas. Portanto, ele teve que buscar solues concretas para resolver esse problema, a comear pela questo da propriedade da terra. Em relao essa questo, a atuao dos robespierristas para tentar resolv-la se articulou, principalmente, volta de trs pontos: a retomada das terras comunais, a mudana no direito de testar e a distribuio dos bens dos suspeitos. Alm disso, a preocupao em diminuir as disparidades de fortuna tambm fez com que eles se voltassem para um outro ponto considerado de suma importncia para esse objetivo e que, de qualquer forma, tambm estava relacionado propriedade, o imposto progressivo. Antes de analisarmos estas questes preciso fazer uma considerao de ordem historiogrfica. Quando lemos certas histrias revolucionrias anti-robespierristas somos

viver que se tm propriedades. No verdade que a propriedade possa jamais estar em oposio com a subsistncia dos homens. Sur les subsistences (2 de dezembro de 1792). OCR, t. IX, p. 112. 1074 Discours sur la nouvelle Dclaration des Droits (24 de abril de 1793). OCR, t. IX, p. 465. Quanto noo robespierrista da propriedade, Benjamin Constant fazia, via sua crtica a Mably, a seguinte apreciao: a propriedade um mal: se vs no podeis destru-la, enfraquecei sua influncia de toda maneira: vs tereis, por essa combinao, a constituio reunida de Constantinopla e Robespierre. Principes politiques. CONSTANT, Benjamin. In: crits politiques. Paris, Gallimard, 1997. P. 213, nota nica. 1075 Os principais direitos do homem so aqueles de prover conservao de sua existncia e a liberdade. Artigo primeiro, pargrafo segundo. Dclaration des Droits de lHomme et du Citoyen proposta por Maximilien Robespierre (24 de abril de 1793). OCR, t. IX, p. 464.

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levados, se no nos acautelarmos, a ver a figura do advogado de Arras de uma maneira bastante equivocada. Este , particularmente, o caso da atuao de Robespierre frente s questes sociais. Basta lembrarmos Alphonse Aulard acusando Robespierre de ter proposto sua Declarao de Direitos escandalosa somente com o intuito de fingir ser socialista para parecer mais democrata que os girondinos1076; e Michelet tratando essa mesma Declarao como uma tentativa robespierrista de superar Marat em popularidade, o qual na manh do mesmo dia em que Robespierre apresentou sua Declarao, 24 de abril de 1793, tinha sido solto da priso e carregado em triunfo pelo povo de Paris1077. Na verdade, se existe algo em que se possa constatar a continuidade entre o revolucionrio e o jovem advogado de Arras e descartar qualquer tomada de posio oportunista por parte de Robespierre justamente quanto s suas idias sociais. Desse modo, j na poca do seu apelo nao artesiana, ele j tinha esboado, em grandes traos, algumas das idias que ganhariam maturidade com a sua famosa Declarao de Direitos, e isso tanto em relao questo da propriedade como quanto em relao ao imposto progressivo. Quando incorporou este instrumento em seu projeto de Declarao, Robespierre j tinha percorrido um longo caminho de reflexes sobre o imposto, tendo feito desde seu apelo la nation artsienne at o seu ltimo discurso de 8 de termidor (26 de julho de 1794) nada mais nada menos do que quarenta e uma intervenes relacionadas ao tema1078. Segundo Jean-Pierre Gross, nesse caminho ele incorporaria a chamada teoria das faculdades, presente na Declarao de 17891079, para a qual um certo Robert Pierre colaboraria tomando parte na redao dos artigos vinte a vinte e trs, sendo que este ltimo artigo rezava que // uma contribuio comum indispensvel; ela deve ser igualmente repartida entre todos os cidados, em razo de suas faculdades1080.

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AULARD, Alphonse. Histoire politique de la Rvolution franaise. Paris, 1901. P. 291. Michelet escreveu que, prevendo a chegada triunfal de Marat, Robespierre que amarelava de inveja, desde a manh, na abertura mesmo da Conveno, tinha lanado rapidamente uma teoria da propriedade que fazia subir sua popularidade pelo menos ao nvel da de Marat. MICHELET, Jules. Histoire de la Rvolution Franaise. Paris, Gallimard (ditions de la Pliade), 1952. Tomo II, p. 318-319. 1078 GROSS, Jean-Pierre. Robespierre et limpt progressif. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 297. 1079 Artigo treze da Declarao de 1789: para o entretenimento da fora pblica e para as despesas de administrao, uma contribuio comum indispensvel; ela deve ser igualmente repartida entre todos os cidados, em razo de suas faculdades. Les Constitutions de la France depuis 1789. Paris, Flammarion, 1995. P. 33-4. Apresentao de Jacques Godechot. 1080 Sur lentretien de la force publique (24 de agosto de 1789). OCR, t. VI, p. 63.

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Contudo, se, por um lado, a Declarao de 1789 incorporava essa teoria, por outro, ela mantinha a propriedade como um direito inviolvel e sagrado. A Revoluo fazia emergir o conflito fundamental entre a sede individual de enriquecimento ilimitado que estava por trs de tal definio do direito de propriedade e o desejo coletivo de uma redistribuio mais igualitria, isto , o conflito liberdade-igualdade. Para alguns filsofos, como John Rawls e Jean Baechler, este seria mesmo um conflito insolvel1081. A soluo para este dilema encontrava-se naquilo que caracteriza todo pensamento poltico que se apoiava no republicanismo clssico: a busca constante do equilbrio entre os direitos, ou seja, sua reciprocidade. Essa busca estava no centro da teoria democrtica robespierrista, a qual tentou encontrar uma resposta que permitisse fugir antinomia liberdade-igualdade. Diferentemente do conjunto dos revolucionrios de 1789, ele redefiniu de forma muito particular o direito de propriedade, tornando-o um direito social como outro qualquer, redefinio sem a qual qualquer poltica igualitria seria destinada ao fracasso. Foi, no contexto dessa redefinio, que ganhou importncia o instrumento que Michel Lepeletier1082 chamava a revoluo dos pobres, mas revoluo doce e pacfica, revoluo que se opera sem alarmar a propriedade e sem ofender a justia1083, o imposto progressivo. Talvez essa viso teoricamente edulcorada do imposto progressivo explique a atrao que este instrumento fiscal exercia sobre vrias correntes revolucionrias, at mesmo sobre aquelas que foram fortemente contrrias aos robespierristas. Este foi o caso de uma certa tendncia girondina representada por Condorcet1084, o qual se diferenciava do seu companheiro de lutas, Brissot, que em seu jornal, Le Patriote Franais, fazia o seguinte comentrio sobre o artigo de Robespierre: um outro artigo de Robespierre consagra o princpio do imposto progressivo, imposto absurdo, destrutivo da igualdade, imposto que arruna a indstria //1085.

1081

GROSS, Jean-Pierre. Robespierre et limpt progressif. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 281. 1082 Deputado dos Estados Gerais e da Conveno, Michel Lepeletier foi o primeiro mrtir revolucionrio devido ao fato de ter sido assassinado por um monarquista logo aps a deciso pela morte do rei tomada pela Conveno. Alm disso, ele deixou um famoso plano de educao nacional lido e encaminhado para aprovao na Conveno por Robespierre. 1083 OCR, t. X, p. 32. 1084 SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 1770-1830. Paris, VRIN/EHESS, 2000. P. 184. 1085 OCR, t. IX, p. 462, nota 12.

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Como j dissemos, em relao ao imposto progressivo, Robespierre s fazia retomar as idias que constavam em seu apelo nao artesiana. Nesse texto, constava uma longa e acerba crtica natureza das imposies fiscais no Artois do fim do Antigo Regime, enfocando sobretudo a variedade abusiva e o mal uso dos impostos exigidos populao, mas constava tambm a seguinte avaliao:
aqui, vs vereis uma desprezvel propriedade senhorial pagando ao fisco uma contribuio duas ou quatro vezes do que aquela que um imenso domnio est sujeito; l, o casebre esmagado // pelo peso das imposies, das quais o castelo soberbo est liberado //1086

Maximilien j tinha, assim, percorrido um longo caminho quando fez desse instrumento poderoso de redistribuio de riqueza e correo de desigualdades 1087, o artigo onze de sua Declarao de Direitos, o qual dispunha que os cidados, cujos rendimentos no excederem o que necessrio a sua subsistncia, so dispensados de contribuir para as despesas pblicas. Os outros devem suport-las progressivamente, segundo a extenso de suas fortunas1088. Assim como acontecera em relao ao imposto progressivo, a preocupao em ampliar a repartio da propriedade por meio de uma mudana na lei de transmisso de heranas mudana que tinha por lgica a igualdade das sucesses tambm atraiu outras correntes revolucionrias, alm dos robespierristas. Mais uma vez h uma confluncia de Condorcet com os robespierristas quanto defesa desse tipo de procedimento para realizar a democratizao da propriedade. Como justificativa para acabar com a liberdade de testar, Robespierre utilizou o argumento de que se combatia a disparidade de fortunas sem causar traumas sociais, j que, como o imposto progressivo, essa medida inclua-se entre aquelas que so suaves e eficazes:
a igualdade a fonte de todos os bens: a extrema desigualdade a fonte de todos os males. // por meio dela que o homem envilece o homem, e faz de seu semelhante o instrumento de seu orgulho, o joguete de suas paixes ou cmplice de seus crimes. Que virtude, que felicidade pode existir num pas em que uma classe de indivduos pode devorar a substncia de vrios milhes de homens. // Legisladores, vs no fizeste nada

1086

la nation artsienne: sur la ncessit de rformer les tats dArtois . Paris, BNF, Documento eletrnico. Cpia fac-smile da edio do original de 1789. P. 37-38. 1087 DORIGNY, Marcel. Impt progressif. In: SOBOUL, Albert. Dictionnaire historique de la Rvolution franaise. Paris, PUF (Quadrige/Dicos), 2005. P. 562-563 1088 Dclaration des droits de lhomme et du citoyen propose par Maximilien Robespierre (24 de abril de 1793). OCR, t. IX, p. 466.

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pela liberdade, se vossas leis no tendem a diminuir, pelos meios suaves e eficazes, a extrema desigualdade das fortunas. 1089

Fazendo o questionando retrico se os homens podiam fazer valer leis quando eles j tinham morrido, condio que lhes era facultada pela liberdade de testar, Maximilien voltava a sua peculiar viso da propriedade, respondendo que // a propriedade do homem, depois de sua morte, deve retornar ao domnio pblico da sociedade. somente para o interesse pblico que ela transmite esses bens posteridade do primeiro proprietrio1090. Com base nesse raciocnio, ele conclua que o interesse pblico aquele da igualdade e preciso // que em todos os casos a igualdade seja estabelecida nas sucesses1091. Isso mesmo para os filhos naturais. 4. A mesma tentativa de fazer inclinar a riqueza frente ao esprito de igualdade1092 vai se dar mais especificamente no prprio campo da repartio da propriedade da terra. Da mesma forma que as questes fiscais, esta questo j estava presente em seu apelo nao artesiana. Como j tnhamos afirmado no primeiro captulo desta segunda parte, nesse texto, ele dedicou especial ateno aos problemas camponeses e para aquele que era o cerne desses problemas, a posse e ampliao da propriedade da terra. Assim, desde a poca do Artois, ele tomou o partido do campesinato dessa provncia no generalizado e crescente conflito que antagonizava os camponeses e os senhores na Frana dos fins do sculo XVIII pela posse das terras comunais. Ele tinha se engajado sobretudo na defesa de uma das maiores reivindicaes do campesinato, a devoluo dessas terras, j que, pela altura do fim do Antigo Regime, elas se encontravam em boa parte ocupadas pela nobreza. Assim, as vsperas da Revoluo, ele enfrentou a elite dominante de sua provncia, acusando-a de ter violado os direitos do campesinato, ao tomar-lhe suas terras :
o crime! Ns vimos durante vrios anos, os chefes de nossa administrao percorrer nossos campos a mo armada, como um pas inimigo, para forar seus infelizes habitantes a

1089 1090

Sur les ingalits dans les successions (5 de abril de 1791). OCR, t. VII, p. 181 e segs. Idem, p. 187. 1091 Idem, ibidem. 1092 Essa frmula, esprito de igualdade, significava menos a preocupao de instalar a igualdade do que diminuir as desigualdades. Cf. GROSS, Jean-Pierre. Robespierre et limpt progressif. In: JESSENNE, JeanPierre et alli. (ed.) Opus cit. P. 287.

288
abandonar, entre as mos da violncia, esses bens preciosos aos quais estava ligada sua subsistncia e aquela de sua famlia //.1093

Durante a Constituinte, quando imprimiu uma moo pela devoluo dos bens comunais invadidos pelos senhores, ele s fazia retomar essa exigncia de devoluo das terras comunais. Nessa moo, constava um inventrio das vexaes que os camponeses sofreram no Artois, entre elas, a converso arbitrria de pntanos em terras de cultivo, as espoliaes violentas, para concluir que a mais revoltante era sem dvida aquela // que nos toma uma parte de nossos bens comunais para os fazer passar entre as mos dos senhores1094. Como ele j tinha feito em seu apelo nation artesiana, sua argumentao para defender a propriedade comunal calcava-se na idia de que a expropriao desses bens por parte dos senhores do Artois constitua um atentado a um dos inviolveis direitos do cidado que era o direito de propriedade1095. Ele voltaria a esse tema em fevereiro de 1792. Ele novamente se faria porta-voz da comunidades que lutavam para recuperar as terras comunais tomadas pelos senhores, para os quais a Constituinte tinha feito um decreto obrigando a devoluo dessas terras. Contudo, os camponeses continuavam a reclamar a dificuldade para se aplicar esse decreto1096. Todavia, a mais complexa e polmica medida robespierrista de proceder a uma democratizao da propriedade, foi a tentativa de distribuir os chamados bens dos suspeitos. Esta preocupao esteve por trs dos famosos decretos do ventoso do ano II (fevereiro-maro de 1794). Como todos sabem, desde o seu princpio, a Revoluo incorporou ao patrimnio do Estado uma massa enorme de bens, os chamados bens nacionais, os quais tiveram sua origem com a expropriao das terras da Igreja em 2 de novembro de 1789. O objetivo inicial com essa expropriao era sanar o problema do dficit oramentrio, fazendo dessas terras um lastro para a emisso de um papel pblico a juros de 5%, os famosos assignats. Comprados pela populao, os assignats tinham como objetivo principal a entrada de recursos no combalido tesouro pblico e, alm dos juros de 5%, tinham como atrativo a condio de poderem ser usados por seus possuidores para a compra dos bens nacionais. Em 27 de julho

1093

la nation artsienne: sur la ncessit de rformer les tats dArtois . Paris, BNF, Documento eletrnico. Cpia fac-smile da edio do original de 1789. P. 51-52. 1094 Sur le droit de triage (Fevereiro de 1790). OCR, t. VI, p. 219. 1095 Idem, ibidem. 1096 Sur les moyens de sauver ltat et la Libert (10 de janeiro de 1792). OCR, t. VIII, p. 178.

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de 1792 veio se acrescer massa das terras da Igreja, os bens ditos de segunda origem, o dos emigrados. Assim, o cenrio de uma das maiores reformas agrrias da histria estava pronto. Todavia, at hoje o debate historiogrfico ainda tenta responder a pergunta: quais foram os beneficirios dessa massiva transferncia de terras? Melhor dizendo, quem ganhou o embate que confrontava, de um lado, uma maioria de revolucionrios, formados na tradio do pensamento liberal e que desejavam que as preocupaes financeiras prevalecessem na hora da venda dos bens nacionais, e do outro, os grupos revolucionrios democrticos, entre eles os robespierristas, os quais desejavam que esses bens pudessem passar para os mais pobres, por meios que se imaginava que podiam chegar a pura e simples entrega gratuita? Os fatos demonstram que prevaleceu a vontade de fazer dos bens nacionais um instrumento de financiamento do dficit e das despesas do Estado. No obstante, de qualquer ponto de vista que se olhe, houve uma brutal transferncia de terras para o campesinato, beneficiando seus vrios setores, entre os quais, os pequenos camponeses tiveram ganhos no negligenciveis1097. Contudo, como afirmava Georges Lefebvre, no se tinha conseguido reservar a parte dos pobres nos bens do clero e no se tinha tido muito sucesso com aqueles dos emigrados1098. Assim, havia vrias categorias de agricultores que possuam muito pouca terra, assim como tambm aqueles que j tinham cado na condio de proletrios rurais e mesmo aqueles que viviam pura e simplesmente na indigncia. Todos estes pouco ou quase nada ganharam com a transferncia dos bens nacionais. Foi objetivando benefici-los que foram aprovados os decretos do ventoso, os quais se apoiavam no princpio de que os inimigos da ptria no tinham direito ao solo nacional1099. Diferentemente do que tinha acontecido at ento com os bens do clero e dos emigrados, aqueles bens seriam distribudos gratuitamente, no sendo submetidos regra dos leiles como acontecia com os outros bens

1097

IKNI, Guy-Robert. Biens nationaux. In: SOBOUL, Albert. Dictionnaire historique de la Rvolution franaise. Paris, PUF (Quadrige/Dicos), 2005. P. 119-121. 1098 LEFEBVRE, Georges. Questions agraires au temps de la Terreur. Paris, Editions du Comit des Travaux Historiques et Scientifiques, 1989. P. 61. 1099 A revoluo nos conduziu a reconhecer o princpio de que aquele que se mostrou inimigo de seu pas nele no pode ser proprietrio. Rapport sur les personnes incarceres (8 de ventoso do ano II-26 de fevereiro de 1794). In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 705.

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nacionais. Alm disso, Saint-Just, pai da proposta e encarregado de relat-la Conveno, no reservou nenhuma parte desses bens para cobrir os rombos do tesouro1100. Os decretos de ventoso suscitaram um enorme debate, sobretudo quanto sua natureza e alcance. Assim como a transferncia de terras provocada pelos bens do clero e dos emigrados, at hoje a historiografia tenta esclarecer seus meandros, sobretudo tentando responder questo se eles teriam sido uma medida de circunstncia para atender a sansculotterie, e dessa forma retir-la da rbita de influncia da esquerda radical hbertista, ou se exprimiriam o ideal robespierrista de uma democracia de pequenos proprietrios e de pequenos artesos. A essas questes, Georges Lefebvre deu uma resposta balanceada que tendia a responder afirmativamente s duas indagaes. De um lado, a argumentao do autor dO grande medo levou em considerao as tergiversaes anteriores dos robespierristas, que no tinham insistido muito para que os bens nacionais, sobretudo os de segunda origem, fossem destinados para os mais pobres, inclinando-se s razes financeiras da maioria da Conveno. Por outro lado, ele considerou que os robespierristas, na pessoa de Saint-Just, teriam mudado de idia no contexto da crise que os antagonizara com os hbertistas no inverno de 1793-94. Esta mudana pode ser constatada nas famosas palavras do enfant terrible a fora das coisas nos conduziu talvez a resultados aos quais ns no tnhamos pensado1101. No entender de Lefebvre, esta mudana foi sincera, j que os propsitos de Saint-Just so muito penetrantes e muito ardentes para que se pudesse colocar em dvida sua converso1102. Podemos dar uma contribuio para responder a essas questes levantando uma ponderao factual e uma outra que diz respeito prpria relao do robespierrismo e a tradio cvico-humanista. Quanto aos decretos de ventoso terem sido uma medida de circunstncia para combater os hbertistas, o prprio Lefebvre levantou uma considerao sobre a natureza desses decretos que exige que ponderemos com mais cuidado essa caracterizao. Tal considerao diz respeito ao fato de que as disposies desses decretos visariam somente os indigentes e infelizes do campo, pois os bens dos suspeitos eram,

1100

LEFEBVRE, Georges. Questions agraires au temps de la Terreur. Paris, Editions du Comit des Travaux Historiques et Scientifiques, 1989. P. 62. 1101 Rapport sur les personnes incarceres (8 de ventoso do ano II-26 de fevereiro de 1794). In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 705. 1102 LEFEBVRE, Georges. Questions agraires au temps de la Terreur. Paris, Editions du Comit des Travaux Historiques et Scientifiques, 1989. P. 63.

291
basicamente, terras rurais. Entretanto, a clientela de Hbert se restringia a sans-culotterie de Paris que, pelas consideraes do prprio Lefebvre, no seria beneficiada pelas medidas previstas naqueles decretos1103. A outra ponderao para a qual gostaramos de chamar a ateno que quando colocamos essas questes na tradio cvico-humanista que estava por trs da teoria democrtica robespierrista percebemos que os decretos de ventoso no foram nem uma medida de circunstncia nem uma converso sincera, mas o desenvolvimento lgico da teoria poltica robespierrista, para a qual o prprio Lefebvre nos deu a pista, ao nos lembrar a maneira como o arcanjo da morte justificara tais decretos. Dentre estas justificativas encontrava-se a idia cvico-humanista de que na repblica preciso que o cidado seja independente, como se pode ver nas prprias palavras de Saint-Just um homem no foi feito nem para os ofcios, nem para o asilo, nem para os hospcios, tudo isso abominvel. preciso que o homem viva independente //1104. Por outro lado, os decretos de ventoso tambm exemplificam emblematicamente como a teoria democrtica robespierrista transmutou uma idia tpica do humanismo cvico numa poltica de proteo social pioneira, pois os robespierristas visaram dar conta da necessidade de // destruir a mendicncia pela distribuio dos bens nacionais aos pobres1105. Foi por essa razo que Saint-Just afirmou, no relatrio desses decretos, que a felicidade era uma idia nova na Europa, felicidade coletiva capaz de ser alcanada pelo luta contra s mazelas da mendicncia, indigncia e desemprego e luta essa que tinha por base no medidas de caridade, que ficariam discrio da boa vontade individual e da caridade crist, mas pelo direito ao trabalho conquistado pelo acesso terra ou, como dizia Bertrand Barre, pelos socorros territoriais1106.

1103 1104

Idem, p. 62. Como afirmamos mais acima, Saint-Just no achava que a cidadania fosse compatvel com os ofcios, isto , com o trabalho manual. Ela s poderia se harmonizar com o trabalho da terra e das armas. Fragments dinstitutions rpublicaines. In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 996. 1105 Idem, ibidem. 1106 LEFEBVRE, Georges. Questions agraires au temps de la Terreur. Paris, Editions du Comit des Travaux Historiques et Scientifiques, 1989. P. 71.

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5. Para concluirmos, vamos retomar a discusso sobre a idia robespierrista de progresso com que comeamos este subcaptulo ou, melhor dizendo, do que Robespierre considerava como progresso e sua relao com o culto do Ser Supremo. Quando citamos mais acima a conhecida passagem do seu discurso de 7 de maio de 1794, ns a interrompramos quando Robespierre dizia que tudo mudou na ordem fsica No entanto, na seqncia imediata desse discurso, ele afirmava que tudo deve mudar na ordem moral e poltica. Metade da revoluo do mundo j foi feita; a outra metade deve completarse1107. O advogado de Arras estava, assim, chegando ao desenvolvimento final de sua particular viso do progresso. E assim fazendo, ele parecia retomar sua recorrente noo de progresso do esprito pblico, noo que no contexto de sua teoria democrtica tinha o carter diferente e complementar noo de progresso econmico. conhecida a trajetria da noo de esprito pblico durante a Revoluo, tendo o girondino Roland criado mesmo um escritrio do esprito pblico durante sua gesto no ministrio do Interior aps o 10 de agosto. Contudo, tal noo, que aparece de forma contnua no discurso robespierrista desde o incio de sua luta poltica dentro da Constituinte, Maximilien a fazia preceder, muitas vezes, pela palavra progresso ou desenvolvimento e ela era tambm mais freqente que a noo de opinio pblica1108. possvel afirmar que para Maximilien essa noo tinha o significado semelhante ao da palavra virtude. Para que compreendamos isso vamos retomar a passagem j citada por ns do seu Discurso sobre a supresso dos oficiais ministeriais e dos advogados1109. Neste discurso, ao mesmo tempo em que ele defendia que o ru tivesse o direito de escolher livremente seu defensor e de se autodefender, ele afirmava que os entraves que os Comits de constituio e de judicatura da Assemblia Constituinte queriam estabelecer ao livre exerccio

1107

Discours sur les rapports des ides religieuses et morales avec les principes rpublicains et sur les ftes nationales (18 de Floreal do ano II/7 de maio de 1794). OCR, t. X, p. 444. Usamos a traduo de Maria Helena Franco Martins da edio brasileira desse discurso. Cf. ROBESPIERRE, Maximilien. Discursos e relatrios na Conveno. Rio de Janeiro, Eduerj/Contraponto, 1999. P. 164. 1108 Alm do discurso que citaremos mais abaixo no corpo do texto, ela aparece em vrios outros textos do advogado de Arras, tais como: Novo atentado contra a liberdade individual e contra os direitos do povo (O Defensor da Constituio maio de 1792), Sobre a influncia da calnia na Revoluo (28 de outubro de 1792), Sobre um plano de Constituio proposto sociedade [dos jacobinos] (15 de fevereiro de 1793), Sobre a situao dos negcios pblicos (Cartas a seus comitentes fevereiro de 1793), Contra os intrigantes (6 de maro de 1793), Contra Brissot et les girondins (10 de abril de 1793). 1109 Ver supra, p. 152

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do direito de defesa, como estabelecer um defensor oficial escolhido exclusivamente pelos tribunais, degradavam
// funes preciosas para a humanidade, essencialmente ligadas ao progresso do esprito pblico, ao triunfo da liberdade; assim vs fechais essa escola de virtudes cvicas em que os talentos e o mrito aprendiam, defendendo a causa do cidado diante dos juzes, a defender um dia aquela do povo entre os legisladores.1110

Como podemos ver, nesse discurso a idia de esprito pblico tinha o sentido cvicohumanista de dedicao ao bem comum, de disposio a situar os interesses da cidade acima das preocupaes egostas do indivduo1111. Em maio de 1794, a Revoluo parecia ter percorrido um longo caminho ao estender os direitos polticos a todos os cidados franceses, o que comprovava o quanto ela fora capaz de fazer progredir o esprito pblico. Mas era preciso que essas mudanas se completassem. Ainda se fazia necessrio um ltimo e decisivo impulso no progresso do esprito pblico para que tudo pudesse mudar na ordem moral e poltica. E esse impulso s poderia vir de um culto cvico, nica coisa que parecia ser capaz de fazer prevalecer a disposio a situar os interesses da cidade acima das preocupaes egostas do indivduo. este o principal significado que se pode tirar da festa do Ser Supremo. No negamos que se poderia considerar a relao do robespierrismo com a religio civil como uma tentativa de limitar a degradao que uma mentalidade cada vez mais marcada pela ideologia do progresso e da prosperidade econmica provocava nas relaes morais entre os homens1112. Degradao que ele constatava at mesmo em relao queles que deveriam velar pelas coisas mais sagradas, os prprios ministros da igreja: [Deus] sabia que desde o momento em que [os ministros da igreja] se enriqueciam, eles contraam todos os vcios que formavam o cortejo ordinrio da opulncia e que eles perdiam todas as virtudes //. Mas, o que dizer dos demais: [Deus] sabia que, se os ricos podem fazer o bem, eles o querem raramente; no somente
porque a abundncia e os prazeres que os cercam os tornam inacessveis ao sentimento das

1110

Discours sur la suppression des officiers ministriels et des avocats (14 de dezembro de 1790). OCR, t. VI, p. 666. 1111 SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno . So Paulo, Companhia das Letras, 1996. P. 199. 1112 SPITZ, Jean-Fabien. Lamour de lgalit: essai sur la critique de lgalitarisme rpublicain en France 1770-1830. Paris, Vrin/EHESS, 2000. P. 31.

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misrias humanas, mas porque suas necessidades e suas paixes crescem sempre com suas riquezas //.1113

Robespierre parecia, assim, querer fazer com o culto do Ser Supremo a tentativa de recolocar o sagrado no corao da cidade1114. Essa tentativa de estabelecer uma ncora transcendente para a poltica numa poca de mercantilizao crescente das relaes sociais pode tambm ser explicada como constituindo
// todo um complexo que talvez seja a maior originalidade da Revoluo Francesa em termos de uma teoria crtica da histria. Porque Robespierre que, apesar de seu curto mandato, tenta implementar recursos ideolgicos e polticos diante das conseqncias do 1115 capitalismo moderno que se evidenciam a longo prazo.

Assim,

Maximilien

teria

tentado

condicionar

moralmente

poltica

do

capitalismo1116, ao procurar estabelecer uma religio civil baseada na igualdade e na fraternidade. Este esteio transcendental parecia o nico capaz de reverter a perverso moral do atesmo que acompanhava muito particularmente uma sociedade que evolua em direo a uma aristocracia do dinheiro1117. Mas tambm se poderia explicar o culto do Ser Supremo como uma fuga para frente1118, explicao que parece atrair Michel Vovelle. Para o conhecido historiador francs, os robespierristas, ao romperem com a espontaneidade do movimento popular, no tm outra escolha que esta fuga para frente na mstica e na moral, meio ilusrio para retomar a unidade sonhada restituindo massa o sentido de um pertencimento coletivo1119. Contudo, para essa argumentao se sustentar ela teria que responder primeiro por que Maximilien delineou suas idias principais sobre a religio civil e o Ser Supremo j em novembro de 1793, em seu Discurso pela liberdade dos cultos1120, no momento em que combatia a descristianizao. Portanto, antes da crise de germinal, solucionada pela
1113 1114

Discours sur le traitement des vques (16 de junho de 1790). OCR, t. VI, p. 408-409. DOMECQ, Jean-Philippe. Robespierre, derniers temps. Paris, Seuil, 1984. P. 200. 1115 SABORIT, Ignasi Terradas. Religiosidade na Revoluo Francesa. Rio de Janeiro, Imago/ISER, 1989. P. 219. 1116 Idem, p. 229. 1117 Ele afirmava em seu Discours pour la libert de cultes o atesmo aristocrtico; a idia de um grande ser que vela pela inocncia oprimida, e que pune o crime triunfante, totalmente popular. O povo, os infelizes me aplaudem ; se eu encontrasse censores, seria entre os ricos //. OCR, t. X, p. 196. 1118 Expresso francesa que significa a tentativa de acelerao de um processo (poltico, econmico) julgada necessria apesar de perigosa. ROBERT, Paul. Le petit Robert. Dictionnaire alphabtique et analogique de la langue franaise. Paris, Dictionnaires le Robert, 1989. P. 835. 1119 Citado em: ARMANDI, Marco. (Org.) Robespierre. Dizionario delle idee. Roma, Editori Riuniti, 1999. P. 155, nota 38. 1120 Ver mais abaixo as passagens citadas desse texto.

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eliminao dos hbertistas, o que facilitou o amordaamento do movimento secionrio ao longo da primavera. A nosso ver, mais uma vez, a coerncia do robespierrismo tem que ser buscada em sua teoria da democracia e em suas bases cvico-humanistas, como veremos mais abaixo, e no s na anlise isolada de certos acontecimentos por mais significativos que eles sejam. Outra explicao plausvel para a idia de uma religio civil se ancorava numa referncia clssica, o Ser Supremo como um apelo a um Legislador Imortal, como pensava Hannah Arendt, nico capaz de ser
// uma fonte transcendente e onipresente da autoridade, que no pudesse ser identificado com a vontade geral, quer da nao, quer da prpria Revoluo, de modo a que uma Soberania absoluta // pudesse conferir soberania nao, que uma Imortalidade absoluta pudesse garantir, se no imortalidade, pelo menos certa permanncia e estabilidade repblica, e, por fim, que alguma Autoridade absoluta pudesse funcionar como fonte da 1121 justia, donde as leis do novo organismo poltico pudessem derivar a sua legitimidade.

Arendt tambm no se esquece de lembrar que o apelo a um Ser Supremo foi um trao comum entre o republicanismo francs e o republicanismo norte-americano. A duvidosa analogia que ela fazia entre a cerimnia do Ser Supremo e o espetculo circense, ao afirmar que o Deus dos filsofos teria // decidido revelar-se sobe a aparncia de um palhao de circo, ela prpria se encarregava de desfazer ao observar que o riso se extinguia quando lembramos o caso de John Adams exigindo um culto do Ser Supremo, chamado de grande Legislador do Universo1122. Contudo, Maximilien s fazia dar vazo, mais uma vez, a suas idias republicanas, que no caso do culto cvico tem sua raiz j poca da Constituinte, durante os debates sobre a nova estrutura do clero constitucional. Ento ele deixou claro qual deveria ser a funo dos homens da igreja: os padres na ordem social so verdadeiros magistrados destinados manuteno e ao servio do culto. E, enquanto tais, tinham como objetivo a felicidade dos homens e o bem do povo e da sociedade1123. Delineava-se, assim, sua idia sobre a necessidade de uma religio civil. Esta se fazia necessria para promover os valores morais e o civismo. Desse modo, em seu Discours pour

1121 1122

ARENDT, Hannah. Sobre a Revoluo. Lisboa, Relgio dgua Editores, 2001. P. 228. Idem, p. 228-9. 1123 Sur le plan de constitution du clerg (31 de maio de 1790). OCR, t. VI, p. 386.

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la libert de cultes ele manifestara sua opinio sobre o significado cvico que via na idia religiosa:
A idia de um grande ser que vela pela inocncia oprimida e que pune o crime triunfante totalmente popular // o povo no esta ligado nem aos padres, nem superstio, nem s cerimnias religiosas, ele o esta somente ao culto em si mesmo, isto , idia de um poder incompreensvel, o flagelo do crime e o apoio da virtude //.1124

E o Deus desse culto era aquele que criou todos os homens para a igualdade e para a felicidade; aquele que protege os oprimidos e que extermina os tiranos; meu culto aquele da justia e da humanidade1125. E ele no podia concordar absolutamente que se dissesse ao povo que no haver religio, um povo religioso no pode ser republicano1126. Desse modo, o culto do Ser Supremo pode ser melhor entendido se considerarmos que as concepes clssicas de Robespierre o levaram a ver a necessidade de um culto cvico como parte importante para a construo de uma repblica. Depois de Maquiavel, de Montesquieu, de Mably e, sobretudo, de Rousseau, Maximilien tinha conscincia da necessidade de que sem uma base tica para a poltica tal construo era impossvel e, como eles, ele acreditava que a legislao humana por si s no era capaz de fornec-la. Nesse ponto, ele s fazia subscrever Rousseau, o qual escreveu no esboo do Contrato social que quanto ao concurso da religio no estabelecimento civil, v-se que no ser menos til poder dar ao liame moral uma fora que penetre at a alma e seja sempre independente dos bens, dos males, da prpria vida e de todos os sucessos humanos1127. Se Rousseau termina seu tratado sobre Contrato social e os princpios do direito poltico com a discusso sobre a police [organizao poltica] dos romanos e a conclui com o papel que nela exercia a religio civil1128, Maximilien tambm quis terminar sua obra revolucionria por aquilo que Jean-Pierre Gross chama de descristianizao positiva1129, o culto cvico do Ser Supremo. Tal culto, sem dvida, foi influenciado pela leitura da Confisso de f do Vigrio saboiano e sua idia de uma religio da natureza, esta, que segundo o

1124 1125

Discours pour la libert de cultes (1o de frimrio do ano II-21 de novembro de 1793). OCR, t. X, p. 196-197. Lettres a ses commettans (primeira srie, nmero oito 7 de dezembro de 1792). OCR, t. V, p. 117. 1126 Sur la politique gouvernementale, particulirement en matire religieuse (8 de frimrio do ano II-28 de novembro de 1793). OCR, t. X, p. 213. 1127 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro quarto, captulo VIII, p. 143, nota 477. 1128 Idem, p. 143-151. 1129 GROSS, Jean-Pierre. galitarisme jacobin et droits de lhomme 1793-1794 (La Grande famille et la Terreur). Paris, Arcantres ditions, 2000. P. 93.

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advogado de Arras, era o verdadeiro sacerdote do Ser Supremo e a idia da existncia deste ltimo era um apelo contnuo justia; ela [era] pois social e republicana e seu culto, a virtude1130. Ponto forte da utopia robespierrista, o culto do Ser Supremo deveria completar as transformaes da revoluo republicana, dando-lhe o esteio moral que a tradio clssica do republicanismo achava imprescindvel. Contudo, nada melhor para caracterizar a impossibilidade histrica naquele momento dessa utopia do que o escrnio e a derriso com que parte dos deputados da Conveno trataram a cerimnia de junho de 17941131. Esse tratamento indicava simbolicamente a situao vivida ento pela Revoluo, marcada por divergncias em seu ncleo dirigente e pelo fosso enorme que separava o projeto poltico robespierrista do da maioria da Conveno. Tal situao o 9 de termidor resolveria pela derrubada dos robespierristas.

1130

Sur les rapports des ides religieuses et morales avec les principes rpublicains, et sur les ftes nationales (18 de Floreal do ano II, 7 de maio de 1794). OCR, t. X, p. 453 e 457. 1131 Algum acreditaria que no meio da alegria pblica homens tenham respondido com sinais de furor s tocantes aclamaes do povo? Algum acreditaria que o presidente da Conveno Nacional, falando ao povo reunido, foi insultado por eles, e que esses homens eram os representantes do povo? Contre les factions nouvelles et les dputs corrompus (8 do termidor do ano II-26 de julho de 1794). OCR, t. X, p. 561-562.

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IV. A igualdade atravs da lei: a idia de fraternidade e as antecipaes da democracia social 1. Tratando da Primeira Repblica francesa a que foi proclamada em 22 de setembro de 1792 no volume que escreveu para a Histria geral das civilizaes, Ernest Labrousse classificou essa poca de uma maneira que ficou clebre. Esta foi, segundo ele, a era das antecipaes. Isto porque durante este perodo // surgem instituies e novidades monstruosas // que estabeleceram um clima de Cidade do Futuro e, entre outras novidades monstruosas, estavam // os arrojados princpios da democracia social1132. nesse clima futurista que podemos constatar uma das passagens fundamentais do pensamento poltico de 1789, que j tinha comeado a ser feita na Comisso sobre a Mendicncia da Assemblia Constituinte cujo relator fora o duque de La RochefoucauldLiancourt e que o robespierrismo iria radicalizar no processo evolutivo de sua teoria da democracia. Processo evolutivo que o conduziu // descoberta da necessidade de consolidar a democracia poltica por uma democracia social1133. Com efeito, depois de ter enunciado claramente a ligao entre os direitos civis e os direitos polticos durante sua participao como deputado naquela Assemblia, Robespierre tambm viria a conceber a juno desses direitos com os direitos sociais, os chamados direitos de terceira gerao. Esse processo teria como ponto de chegada seu projeto de Declarao de Direitos de 24 de abril de 1793. Nele estavam postas o que poderia ser considerado como as // bases doutrinrias e mesmo jurdicas de uma poltica social muito audaciosa //1134. Tal poltica veio na esteira da promoo do esprito de igualdade que deu origem, por um lado, como vimos, a uma poltica de promoo da democratizao da propriedade e, por outro, a uma tentativa de consagrar em termos jurdicos e prticos uma srie de direitos sociais. Portanto, o que Ernest Labrousse chamou de antecipaes se referiam concretamente a uma srie de medidas sociais tomadas durante o perodo da Conveno e que foram a origem da agenda de reivindicaes dos movimentos sociais dos sculos seguintes.

1132

LABROUSSE, Ernest. O sculo XVIII: a sociedade do sculo XVIII perante a Revoluo . In: CROUZET, Maurice. Histria geral das civilizaes. So Paulo, Bertrand Brasil, 1995. Volume XII, p. 137. 1133 Mazauric, Claude. Les choix conomiques et sociaux: preliminaires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Opus cit. P. 232. 1134 NICOLET, Claude. La rpublique en France: tat de lieux. Paris, Gallimard, 1992. P. 34.

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Em particular, tais antecipaes diziam respeito a um conjunto de medidas que visava melhorar a situao social dos grupos populares e que recaam fundamentalmente sobre a questo das subsistncias, isto , do abastecimento alimentar, mas que se espraiaram especialmente para o campo dos direitos sociais: do direito ao trabalho, aposentadoria, da assistncia velhice, s vivas, entre outros. Ao colocar no centro do debate poltico da Revoluo de 1789 o problema dos direitos sociais, os jacobinos robespierristas desdobraram o programa poltico do republicanismo clssico de uma forma inovadora e, mais uma vez, recorriam a Rousseau como a ponte terica necessria entre esse republicanismo e as contingncias da Revoluo. Isto porque se vrias eram as pistas desta ponte que permitiram aos revolucionrios se imburem da tradio republicana clssica, no que diz respeito especificamente aos direitos sociais, de certa maneira, os jacobinos estavam retomando uma pista bem particular, o tema rousseausta da grande famlia. Em seu verbete Economia poltica para a Encyclopdie, Rousseau explicava que o significado da palavra economia remetia noo de governo da casa e que o sentido dessa palavra // foi em seguida estendido ao governo da grande famlia, que o estado1135. Especificamente quanto ao robespierrismo, a porta de entrada desse tema encontravase na terceira palavra da famosa trade revolucionria, liberdade, igualdade e fraternidade. Ao propor em seu Discurso sobre a organizao das guardas nacionais1136, de dezembro de 1790, que se deveria decretar que os soldados dessa guarda passariam a portar sobre seu peito, alm das palavras j clebres, liberdade e igualdade, tambm a palavra fraternidade e, a partir da, popularizar essa terceira palavra junto com as outras duas, como um dos smbolos da Revoluo Francesa, Maximilien certamente tinha em mente a idia de que os homens formavam uma comunidade de irmos, isto , uma grande famlia.

1135

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discours sur lconomie politique. In: uvres compltes. Paris, Gallimard, 1964. T. III, p. 241. Cf. tambm: GROSS, Jean-Pierre. galitarisme jacobin et droits de lhomme 1793 -1794 (La Grande famille et la Terreur). Paris, Arcantres ditions, 2000. P. 75-76. 1136 Ele foi o primeiro, ao que se sabe, a pedir que estas palavras viessem juntas, seja no peito dos membros da guarda nacional, como dissemos, seja na bandeira dessa mesma guarda: elas [as guardas nacionais] portaro sobre seu peito essas palavras gravadas: O POVO FRANCS, e abaixo as palavras: LIBERT, GALIT, FRATERNIT. As mesmas palavras sero inscritas sobre suas bandeiras, que tero as trs cores da nao. Cf. OCR, t. VI, p. 643. Grifado no original. Cf. tambm: GROSS, Jean-Pierre. galitarisme jacobin et droits de lhomme 1793-1794 (La Grande famille et la Terreur). Paris, Arcantres ditions, 2000. P. 09 e 55.

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Essa viso tambm caracterizou uma srie de outros revolucionrios prximos ou distantes do robespierrismo. Num livro recente, o historiador Jean-Pierre Gross1137, repertoriou um sem nmero de prticas dos chamados representantes em misso que decorreriam dessa viso jacobina de que os homens constituam uma grande famlia. Nesse livro, analisando o trabalho desses representantes nos departamentos, Gross demonstra como estes membros da Conveno introduziram polticas sociais que derivavam do tema da grande famlia, isto , da idia de fraternidade. Assim, representantes como Gilbert Romme, Joseph Lakanal, Jean-Baptiste Bo, entre outros, designados para executar as tarefas urgentes da Revoluo, combate a contrarevoluo, convocao de tropas e a implementao de solues para garantir o abastecimento alimentar, acabaram por estabelecer uma srie de outras prticas que efetivaram a viso dos jacobinos em relao aos direitos sociais. Como observa Gross, o prprio Saint-Just dizia que os representantes em misso // deveriam ser os pais e os amigos dos soldados1138. Nesse sentido, foram estabelecidas penses para rfos, vivas e idosos, assim como tambm garantidos meios para a sobrevivncia dos soldados que ficaram impossibilitados de trabalhar. Da mesma maneira, as primeiras instituies educacionais com a marca republicana foram colocadas em funcionamento por estes mesmos representantes. A tal ponto o paradigma da grande famlia percorre a ao desses homens que a historiografia caracterizou suas medidas com a expresso terror suave1139, isto , eles teriam evitado por em prtica, nas diversas regies em que atuaram, as disposies mais radicais das leis terroristas. 2. Como tentamos mostrar no sub-captulo anterior, as polticas sociais robespierristas respondiam ao problema central da liberdade do republicanismo clssico, a saber, a necessidade de garantir a independncia [econmica] do cidado no seio da economia poltica popular. Como permitir, portanto, o acesso do homem comum aos meios de produo que poderiam assegurar-lhe essa independncia? Numa sociedade pr-capitalista em que tais meios basicamente se restringiam terra, tal garantia passava necessariamente pela

1137 1138

GROSS, Jean-Pierre. Opus cit. Idem, p. 77. Para Saint-Just, cf.: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. uvres compltes. Paris, ditions Ivrea, 2003. P. 526. 1139 Expresso de Richard Cobb retida por Gross. Cf. GROSS, Jean-Pierre. Opus cit. P. 134.

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posse dessa ltima e, portanto, implicava num movimento de territorializao 1140 do trabalhador. Segue da que Saint-Just defendia a idia de que era preciso // dar alguma terra a todo mundo1141. Assim, uma poltica de repartio da propriedade da terra era a soluo mais lgica a se promover para aqueles que se inseriam na tradio do republicanismo clssico. Era esta tradio que evocava exemplarmente o mesmo Saint-Just, como vimos, ao associar a independncia dos cidados exclusivamente ao exerccio das armas e ao trabalho da terra sem que, no seu caso, ele pudesse ser confundido com certos adeptos do tradio cvicohumanista que foram muitas vezes partidrios de uma repblica de proprietrios de terras com um claro vis aristocrtico. Isto porque para o enfant terrible o regime poltico ideal era necessariamente republicano e democrtico. Contudo, para aqueles que propugnavam, como os robespierristas, uma efetiva poltica de diminuio das desigualdades sociais por meio da repartio da propriedade da terra, dentro da lgica da influncia da tradio do republicanismo clssico, era preciso enfrentar as dificuldades que decorriam dos limites mesmos que uma poltica dessa natureza enfrentava numa mentalidade que no pretendia lanar mo de instrumentos, tais como, a lei agrria ou a socializao dos meios de produo. No querendo utilizar esses instrumentos, eles acabavam por ficar sem condies de lidar com as transformaes capitalistas na apropriao da terra e nas tcnicas de produo artesanal, tanto no campo quanto na cidade. Tais transformaes limitavam muito a margem de manobra de que dispunham para realizar uma efetiva poltica de parcelamento da riqueza que viesse a permitir a diminuio do flagelo das disparidades de fortuna. Como sair desse impasse? Podemos compreender como o robespierrismo tentou faz-lo comeando por analisar aquela que talvez tenha sido a maior fonte de inspirao para a concepo robespierrista dos direitos de propriedade e de existncia, o debate sobre a liberdade do comrcio de gros implementada no ministrio Turgot na dcada de 1770 e os argumentos de extrao

1140

Robert Castel usa a expresso reterritorializao para indicar que os revolucionrios desejavam para o homem comum francs um retorno terra. Contudo, talvez fosse melhor falar em territorializao, haja vista que se tratava mais de manter e aumentar os pedaos de terra disposio dos camponeses franceses, a imensa maioria da populao da Frana de ento, do que dar terras para quem no possua. CASTEL, Robert. Opus cit. P. 391. 1141 Fragments dinstitutions rpublicaines. In: SAINT-JUST, Louis Antoine Lon de. Opus cit. P. 996.

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republicana utilizados por um dos participantes desse debate, o abade Gabriel Bonnot de Mably1142. A contribuio de Mably para esse debate faz parte do seu texto, em forma de dilogo, Du commerce des grains. O ponto principal de sua argumentao vai de encontro ao direito de propriedade e a liberdade ilimitada de usar e abusar desse direito que esto no centro do pensamento fisiocrata. Durante o ministrio Turgot foi feita uma tentativa efetiva para colocar em prtica esse pensamento, tendo por experimento a circulao de gros. Em 1775, Turgot determinou a liberdade ilimitada do comrcio de gros, a qual, na lgica fisiocrata, permitiria que estes atingissem um preo razovel. Os fisiocratas no estavam pura e simplesmente praticando uma poltica especulativa, mas tentando dar uma soluo para o problema da carestia e da fome, provocados por uma pssima colheita no ano de 1774. Isso porque eles defendiam que o preo do gro tendo alcanado o que eles chamavam de preo razovel haveria uma estabilizao dos preos, ao mesmo tempo em que esse preo razovel atiaria a capacidade empreendedora dos agricultores, levando-os a aumentar a produo e, por via de conseqncia, haveria mais gros disponveis. Contudo, o que se viu quando esse experimento foi posto em prtica foi o aumento exagerado dos preos e uma penria generalizada. O preo razovel, que supostamente no deveria ultrapassar o preo que vigia no mercado externo, 24 libras o setier, atingiu o nvel de 30 libras e nada indicava que os produtores se contentassem com esse nvel. A reao popular provocou o que ficou conhecido como a guerra de farinhas. E, por fim, Turgot foi demitido. Foi no momento da guerra de farinhas que Mably interveio publicando seu texto Du commerce des grains. A anlise de Mably centrava-se numa crtica da concepo fisiocrata de propriedade, o que no significava colocar em questo o direito propriedade em si mesmo. Ele pressupunha que a partir do momento em que houve o desaparecimento da comunidade de bens, e os homens consentiram em dividi-los, no havia lei mais sagrada do que a da propriedade1143. Contudo, ele observava que a existncia da desigualdade de fortunas acabava

1142

GAUTHIER, Florence. De Mably Robespierre, de la critique de lconomie la critique du politique 1775-1793. In: THOMPSON, Edward Palmer et alli. La guerre du bl au XVIIIe sicle. Paris, Les ditions de la Passion, 1988. 1143 WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably. Stanford, Stanford University Press, 1997. P. 118.

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por multiplicar // os vcios da sociedade e mergulh-la nas maiores infelicidades1144, em outras palavras, isso significava dizer que uma sociedade marcada pela extrema riqueza e pela extrema pobreza era a principal responsvel pelo fato de que muitos no tinham como comprar o po da cada dia e no a menor ou maior liberdade de circulao. Com base nessa argumentao, ele defendia a necessidade de regular a economia e, portanto, de restringir o direito de propriedade: // que homem seria to pouco razovel para pretender que uma s poltica no pode prescrever aos ricos as condies nas quais eles gozaro de sua fortuna e impedi-los de oprimir os pobres1145. Da que ele preconizava tanto uma melhor distribuio da propriedade quanto restries liberdade de usar e abusar da propriedade defendida pelos fisiocratas, sustentando, entre outras medidas, a taxao dos gros e sua comercializao no mercado feita estritamente pelos produtores. Assim, para Mably, como observa Kent Wright, a segurana da posse dos direitos da liberdade negativa implicava um mnimo de ateno aos interesses daqueles que no podiam gozar desses direitos1146. O mesmo autor observa que
a necessidade de impor essas condies ao exerccio da liberdade negativa surge apenas porque a propriedade concentrada nas mos de uma minoria de cidados. Se todos os cidados possussem propriedade suficiente para assegurar sua prpria independncia se todos os membros da sociedade gozassem da liberdade negativa assegurada pela posse da propriedade ento no haveria necessidade para uma forma de governo cuja funo era restaurar algo semelhante a igualdade natural.1147

Para Mably a forma de governo que teria essa funo era o governo misto, sua forma de governo preferida. Assim, esse tipo de governo teria o papel de estabelecer limites ao direito de propriedade e garantir, dessa forma, a subsistncia das pessoas que no tinham acesso propriedade. 3. No se pode taxativamente afirmar que Maximilien leu o texto Du commerce des grains de Mably, mas ele era seu leitor e parece provvel que tenha, em algum momento, ficado familiarizado com seus argumentos. O certo que a emergncia dos direitos sociais no

1144

Citado em: GAUTHIER, Florence. De Mably Robespierre, de la critique de lconomie la critique du politique 1775-1793. In: THOMPSON, Edward Palmer et alli. La guerre du bl au XVIIIe sicle. Paris, Les ditions de la Passion, 1988. P. 119. Ver tambm: WRIGHT, Johnson Kent. A classical republican in eighteenth-century France: the political thought of Mably. Stanford, Stanford University Press, 1997. P. 119. 1145 Idem, ibidem. 1146 WRIGHT, Johnson Kent. Opus cit. P. 119. 1147 Idem, ibidem.

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pensamento republicano robespierrista teve justamente a funo de dotar a repblica de um conjunto de contrapartidas sociais que aliviassem as dificuldades materiais dos mais humildes no momento em que a crescente concentrao da riqueza parecia impossibilitar como nica sada para essas dificuldades uma repartio da propriedade da terra. Isso pode ser melhor entendido pela noo de Estado social desenvolvida por Robert Castel. certo que este autor se utiliza dessa noo para analisar o desenvolvimento da seguridade social nas pocas posteriores Revoluo de 1848, mas ela tambm nos ajuda a compreender o aparecimento embrionrio dos direitos sociais no contexto da Primeira Repblica francesa. O Estado social, no entendimento de Castel, seria um terceiro que se introduz entre os poetas da moralizao do povo e os partidrios da luta de classes, esse terceiro emerge quando // os notveis deixam de dominar sem restries e quando o povo fracassa ao tentar resolver a questo social por sua prpria conta 1148. Ou seja, esse terceiro supera tanto uma poltica de reao quanto de revoluo. O que nos interessa reter aqui no exatamente esse entendimento do Estado social, mas a idia de que esse tipo de Estado impe garantias legais que permitiram a construo de uma rede de seguridade social sem que essa dependesse exclusivamente daquilo que em 1794 se chamou de socorros territoriais, isto , de uma poltica de repartio da propriedade. Ora, a poltica robespierrista de dar algumas terras a todo mundo estava na lgica, para retomarmos a anlise de Claude Mazauric, de valorizar o direito de existir como condio de todas as construes polticas e do direito positivo, valorizao que era justamente uma escolha incompatvel com qualquer compromisso, medida que tinha se tornado uma questo de princpio1149. No contexto histrico do fim do sculo Ilustrado a defesa de um tal princpio s podia ser feita revolucionariamente, o que significa dizer, mobilizando em algum nvel a luta de classes. Contudo, o robespierrismo, a despeito dos temores incontrolveis da burguesia, nunca teve por princpio questionar o direito propriedade soluo adotada por outros revolucionrios, ainda no contexto da Revoluo de 1789, como foi o caso durante o Diretrio

1148

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questo social: uma crnica do salrio . Petrpolis, Editora Vozes, 1998. P. 346. 1149 Mazauric, Claude. Les choix conomiques et sociaux: preliminaires. In: JESSENNE, Jean-Pierre et alli. (eds.) Opus cit. P. 232.

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da conspirao dos iguais de Graccus Babeuf. Sua valorizao do direito de existir esteve muito mais prxima de dar propriedade uma funo social e com isso estabelecer limites sua apropriao, e, ao mesmo tempo, resolver o impasse mencionado mais acima. Assim, a propriedade devia ser compatvel com o direito ao trabalho e com uma srie de outros direitos que permitiriam uma vida com um mnimo de dignidade para o trabalhador no contexto de uma economia que a linguagem do sculo XIX, e no a da Revoluo, chamaria pelo nome de capitalista, mas que antes do nome j apresentava, na prtica, os seus principais fundamentos. Da a valorizao no pensamento robespierrista da fico jurdica 1150 que foi a idia de uma dvida social. Essa idia tinha por objetivo permitir corrigir justamente a concentrao da propriedade e impor certas condies ao exerccio da liberdade negativa. Foi ela que permitiu organizar os secours publics de uma forma inovadora, na medida em que foi uma passagem da idia de caridade crist presente na sociedade do Antigo Regime, prtica sempre individual e espontnea, para a idia de que a sociedade, ou o estado, devia se encarregar do que passou a ser considerado um direito-dividendo, uma dvida que a sociedade tinha para com os no-proprietrios1151. A formulao embrionria dessa inovao comea no caso do robespierrismo muito cedo, pois, como observa David G. Troyansky, Robespierre teria feito mesmo uma objeo ao uso de uma tontine viagre, uma caixa de peclio financiada por uma espcie de loteria, justamente porque parte do capital dessa caixa de peclio viria de doaes pessoais no velho esprito da caridade privada1152. Com efeito, a idia de uma dette sacr fazia parte da noo robespierrista da virtude republicana, que implicava no desapego e na fraternidade como atributos do cidado. Desse modo, // a idia de reconhecer e de inscrever na Constituio a existncia de uma dvida sagrada para com seus membros constitui para Robespierre a contrapartida lgica dos deveres dos indivduos para com a sociedade1153.

1150 1151

Expreso de Calude Nicolet. Ver seu: La rpublique en France: tat de lieux. Paris, Gallimard, 1992. P. 37. NICOLET, Claude. Lide republicaine en France (1789-1924). Essai dhistoire critique. Paris, Gallimard, 1994. P. 452. 1152 TROYANSKY, David G. Condorcet et lide dassurance vieillesse: risque, dette sociale et gnrations. In: CRPEL, Pierre e GILAIN, Christian. (dir.) Condorcet, mathmaticien, economiste, philosophe, homme politique. Paris, Minerve, 1989. P. 178. 1153 GUENIFFEY, Patrice. La politique de la Terreur. Essai sur la violence rvolutionnaire. Paris, Fayard, 2000. P. 324. O artigo onze da Declarao de Direitos de Robespierre rezava que os socorros indispensveis quele que falta o necessrio so uma dvida daquele que possui o suprfluo: pertence a lei a maneira de determinar

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Ao longo do processo de maior radicalizao revolucionria, ao contrrio do que se poderia imaginar primeira vista, houve uma srie de medidas efetivas para a implementao dessas polticas sociais. Entre elas, uma das que mais atraiu a ateno dos revolucionrios foi o direito educao e no caso de Robespierre isso ficava claro na sua defesa apaixonada do projeto educacional de Lepeletier e na inscrio desse direito no seu projeto de Declarao de Direitos, cujo artigo treze rezava: a sociedade deve favorecer com todo seu poder os progresso da razo pblica, e colocar a instruo ao alcance de todos os cidados1154. E a disputa em torno desse direito reveladora tanto da tradio cvico-humanista que Maximilien representava como das clivagens sociais e polticas que o separavam da maioria dos integrantes da Conveno e das idias liberais. Isso pode ser melhor compreendido na sua fracassada tentativa de transformar em lei o projeto educacional mencionado. Diante das crticas e hesitaes de membros da Conveno por razes financeiras e sobretudo porque esse projeto previa a obrigatoriedade escolar, tanto para meninos quanto para meninas, Robespierre interveio. Depois da bela frase com que ele tentou demover seus adversrios // era a imaginao que colocava ordinariamente os limites do possvel e do impossvel; mas quando se tem a vontade de fazer o melhor, preciso ter a coragem de franquear esses limites1155 ele fez a seguinte argumentao:
Opem-se ainda que o pai indigente no gostar de se privar dos servios que seu filho pode lhe render depois da idade de cinco anos; mas pode-se supor que se arrepender desses servios to freqentemente nulos, quando, pela instruo de seus filhos, ele receber [outros] cuja importncia no pode se comparar? At aqui eu somente entendi defender-se a causa dos preconceitos contra as virtudes republicanas. Eu vejo de um lado, a classe dos ricos que rejeita essa lei e, do outro, o povo que a pede.1156

como essa dvida deve ser saldada. Dclaration des droits de lhomme propose par Maximilien Robespierre (24 de abril de 1793). OCR, t. IX, p. 466. 1154 Dclaration des droits de lhomme propose par Maximilien Robespierre (24 de abril de 1793). OCR, t. IX, p. 466. 1155 Sur le plan dducation nationale de Michel Lepeletier (12 de agosto de 1793). OCR, t. IX, p. 70. 1156 Idem, ibidem.

307 CONSIDERAES FINAIS

Terminando nossa exposio a respeito do pensamento poltico robespierrista gostaramos de apresentar algumas consideraes finais de como procedemos a abordagem do pensamento poltico de Maximilien Robespierre e as concluses que tal abordagem nos permitiu chegar. O percurso que tentamos realizar nesse trabalho partiu do questionamento de como situar o robespierrismo no contexto das idias polticas que afloraram em 1789, em particular durante a Assemblia Constituinte (1789-1791), quando a teoria democrtica robespierrista foi gestada e quando a todos do Terceiro Estado parecia possvel tentar regenerar a Frana, nas prprias palavras do Incorruptvel, sem revoluo funesta. Assim, seguimos um caminho diferente do que a historiografia universitria da Revoluo1157 nos acostumou e, desse modo, tratarmos de um Robespierre liberal, seno tanto por suas reiteradas manifestaes pelos direitos civis durante os seus primeiros anos como constituinte, que o Terror do ano II acabaria por apagar da memria, ao menos por suas posies no contexto do governo revolucionrio que fizeram dele, na pena de um Albert Soboul, por exemplo, um guia da revoluo burguesa. Ao invs disso, nossos estudos nos conduziram a inserir Robespierre numa tradio de pensamento poltico diferente daquela abraada por grande parte dos que, como ele, sentaramse esquerda, primeiro na sala dos Menus Plaisirs em Versalhes e depois na do Mange em Paris, que, em sua grande maioria, eram adeptos das idias fisiocratas em economia e de uma monarquia temperada em poltica. E isso sem que precisssemos fazer dele um precursor do socialismo ou algo parecido. A pista que seguimos para tentar demonstrar essa especificidade do pensamento poltico dos robespierristas encontrava-se na histria do republicanismo francs posterior aos acontecimentos de 1789. Naquele republicanismo que no foi contaminado pelo episdio da Comuna de 1871, que empurrou muitos republicanos da Terceira Repblica a identificarem em Danton seu heri epnimo, j que estavam cata de um hros visage humain para tranqilizar uma burguesia ainda no republicana e que tinha ficado amedrontada com os

1157

Mas no s ela, como vimos.

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acontecimentos daquele episdio. Em Danton parecia cair bem esse papel, ele que fora alcunhado de indulgente. Aquele republicanismo se via como democrtico e social, da que os integrantes de sua principal corrente na Revoluo de 1848 terem ficado conhecidos pelo nome de democratassociais (dmoc.soc)1158, os quais estiveram presentes na junta provisria de governo dessa revoluo na figura de Ledru-Rollin. Os dmoc.soc viram nos jacobinos os principais formuladores dessa concepo republicana e, dentre eles, deram todo destaque a Robespierre e seus companheiros, j que, entre outras coisas, foi justamente nos anos da Revoluo Francesa que teve incio essa tradio de identificar repblica e democracia. Quanto a isso, os republicanos de 1789 foram, de certo modo, representantes de uma longa tradio, no sendo por isso muito inovadores. Assim, quando em 1794 o advogado de Arras afirmou que as palavras democrtico e republicano eram sinnimos1159 concluso lgica para quem concebeu e enunciou uma teoria da democracia que, desde 1789, apoiava-se na extenso dos direitos polticos a todos os franceses sem distino ele apenas estava acompanhando a tradio da virtude antiga e de uma cidadania de participao. Tal tradio, segundo Claude Nicolet, encaixava-se nos casos histricos em que a palavra repblica tinha o sentido de democracia, desde os Antigos at Rousseau, e que significava // o exerccio mesmo do poder, ela no pode dele privar o cidado tanto quanto ela no pode exclu-lo da cidade1160. Contudo, quanto a acrescentar ao republicanismo democrtico tambm a dimenso social, os revolucionrios operaram uma grande inovao no iderio poltico conhecido at ento e o papel dos robespierristas nesse processo foi central. Admitindo a necessidade tanto da igualdade civil como poltica, os robespierristas tentaram responder s necessidades de uma sociedade em rpida transformao com uma poltica de direitos sociais que tentou de alguma forma remediar s mais danosas manifestaes de desigualdade que essa transformao produzia.

1158

O que constituiu uma verdadeira agenda poltica mesmo muito depois de enunciado em 1848, como confirmam as palavras de Georges Lefebvre, de que Robespierre, alm de ser um profeta da democracia, tambm o era da // Repblica, tal como ns a concebemos, a qual no somente uma forma de governo, mas um regime cujo objeto realizar a igualdade e que no teria sentido se no fosse democrtico e social. Cf. seu tudes sur la Rvolution franaise. Paris, PUF, 1954. P. 95. 1159 Ver supra, p. 220. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx 1160 Ver supra, p. 260. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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Essa pioneira tentativa robespierrista de instituir uma embrionria rede de seguridade social foi fruto de uma reformulao dos temas cvico-humanistas que formaram a mentalidade poltica robespierrista. Essa reformulao, assim, operou com a prpria natureza do modelo poltico do republicanismo clssico, sobretudo com um dos seus fundamentos principais, a relao entre independncia e cidadania que, em termos harringtonianos, implicava numa // sociedade em que o demos ou um grande nmero de proprietrios livres detinha a terra numa relativa igualdade //1161 e que, um sculo depois, a verve de Rousseau traduziria nas famosas palavras do Contrato social: que nenhum cidado seja suficientemente opulento para poder comprar um outro e no haja nenhum to pobre que se veja constrangido a vender-se1162. Desse modo, o robespierrismo foi, principalmente por intermdio de Rousseau, herdeiro da tradio que fazia da necessidade da independncia social garantida pela propriedade o pr-requisito para a cidadania. Quanto a isso, foi importante uma primeira inovao introduzida na tradio poltica do republicanismo clssico durante a luta que o advogado de Arras envidou para estender a cidadania a todos os franceses. Tal inovao foi que, contrariamente a Harrington mas no a Locke, Maximilien no via a propriedade apenas enquanto propriedade territorial ou artesanal, mas concebia tambm o prprio trabalho, incluindo o trabalho assalariado, como uma propriedade. Trabalho e propriedade eram para o advogado de Arras a mesma coisa, como ele deixou claro em sua bela moo pelo fim dos limites censitrios para se ter o direito de votar1163. Mas no bastava somente estender os direitos polticos a todos. Os robespierristas tinham em mente as palavras de Rousseau que dizia que era preciso numa repblica que houvesse // bastante igualdade entre as classes e as fortunas, sem o que a igualdade no poderia subsistir por muito tempo nos direitos e na autoridade1164. Assim, a defesa da universalizao da cidadania tambm implicava na defesa de uma poltica de igualizao das condies sociais, em fazer valer o esprito de igualdade, o qual estava longe de significar o

1161

POCOCK, John. G. A. Le moment machiavlien. La pense politique florentine et la tradition rpublicaine atlantique. Paris, PUF, 1997. P. 388. 1162 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. 1a ed. So Paulo, Abril Cultural, 1973. Livro segundo, captulo XI, p. 72. 1163 Cf. supra, p. 262. 1164 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Opus cit. P. 91.

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nivelamento social, mas foi a tentativa de remediar as formas mais dramticas de pobreza em que vivia parte significativa da populao francesa no sculo XVIII. nesse ponto que os robespierristas fizeram uma outra mudana importante na tradio do republicanismo clssico. E como seguidamente chamamos a ateno, isto pode ser melhor entendido se nos dermos conta de que os esforos para a diminuio da desigualdade social acabaram por desembocar numa poltica de direitos sociais. Nesse sentido, tanto o artigo da proposta de Declarao de Direitos de Robespierre para a futura constituio montanhesa, o qual diz que a sociedade obrigada a prover a subsistncia de todos os seus membros // assegurando os meios de existir queles que se encontram sem condies para trabalhar1165, como o dar alguma terra a todo mundo de Saint-Just1166 consagraram que o trabalho e a terra faziam parte da esfera dos direitos do homem, assim como o voto universal. Da que, com grande preciso, o colega dos robespierristas no Comit de Salvao Pblica, Bertrand Barre, cunhou a expresso socorros territoriais para designar as parcelas de terra que as chamadas leis do ventoso objetivavam distribuir aos franceses indigentes1167. Se para o perigo da alienao poltica, imbutido na idia de representao poltica, idia que os robespierristas no se negaram a defender, a soluo parecera ser a defesa de uma estrita igualdade dos direitos polticos, para a qual tinha um papel fundamental o voto universal, assim como uma srie de elementos do republicanismo clssico, tais como parlamentos curtos, no-reelegibilidade e uma cidadania armada. J quanto a no menos alienante lgica do capital, a soluo, por sua vez, parecera ser a formulao de uma poltica dos direitos sociais, direito ao trabalho, educao, a assistncia aos desamparados de todo tipo que fariam o mesmo papel para o trabalhador urbano que a terra desempenhara outrora na histria, em alguns momentos da cidade antiga, e na historiografia, como um tema do paradigma cvico-humanista durante o Perodo Moderno, quando o republicanismo passou a ser somente parte da histria das idias ao permitir a independncia poltica e social do campons terratenente. Assim, diante das transformaes profundas que a concentrao da propriedade e o assalariamento estavam produzindo, os robespierristas levaram muito adiante a idia que

1165

Dclaration des droits de lhomme et du citoyen propose par Maximilien Robespierre (24 de abril de 1793). OCR, t. IX, p. 465. 1166 Ver supra, p. 301. 1167 Ver supra, p. 290.

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primeiramente os constituintes de 1789 tinham imaginado com a criao da Comisso sobre a Mendicncia da Assemblia Constituinte, de opor lgica do capital a lgica dos direitos sociais. Essa poltica de proteo social tinha tanto mais clima de Cidade do Futuro, para retomarmos as palavras de Ernst Labrousse1168, quanto os robespierristas se defrontaram com a necessidade de dar respostas para os problemas de uma sociedade em rpido processo de mudana, na qual mesmo que se pudesse limitar a concentrao da propriedade fundiria, o que parcialmente foi tentado e obtido com a distribuio dos bens da Igreja e dos emigrados e com as leis do ventoso dificilmente se chegaria a um parcelamento que permitisse fazer do campons terratenente o prottipo do cidado da repblica francesa que tanto Saint-Just como Robespierre queriam ver implantada. Com efeito, a rede de proteo social teria uma funo fundamental para indivduos que no mais podiam contar com a independncia advinda pela posse da propriedade tradicional, fosse a terra ou os meios de produo artesanais, mas somente com a propriedade de sua fora de trabalho. A idia do direito ao trabalho, aposentadoria, educao que estavam no horizonte histrico de 1789 junto com aquelas que os homens de ento no puderam conceber, como, por exemplo, a jornada de trabalho de oito horas, ou ainda aquelas que eles se recusavam a aceitar, como os sindicatos foram os elementos que permitiram contrariar a lgica do capitalismo nascente e, de alguma forma, permitir a possibilidade de um domnio sobre sua prpria vida e, portanto, uma certa prtica cvica para aqueles homens que no mais teriam a independncia e a altivez que a posse dos meios de produo permitiram em uma outra poca. Assim, os direitos sociais tinham a funo de permitir alguma capacidade de enfrentamento dos acasos dessa verdadeira roda da fortuna que era o mercado para quem dele s podia participar vendendo seu trabalho em troca de salrio. Nesses tempos, a democracia s podia ser social se se quisesse fazer da cidadania algo mais do que uma palavra. quanto a isso que se pode constatar a especificidade do republicanismo francs que se em alguns momentos se confundiu com o liberalismo, ele dele se diferenciava por ter herdado uma tradio poltica que prope uma definio poltica das relaes econmicas e

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sociais1169. Essa especificidade ainda mais evidente se nos dermos conta de que esse republicanismo implicava numa viso da sociedade nas antpodas daquela concebida pelos individualistas possessivos, em que as principais questes do homem poderiam ser resolvidas pelo automatismo das leis do mercado e como a resultante natural do equilbrio dos direitos individuais1170. Parafraseando as palavras anti-burkianas de Rabaut Saint-Etienne nossa histria no nosso cdigo, epgrafe que exprimia o vontade dos revolucionrios de fazer apelo somente a razo e a justia contra todas as tradies Claude Nicolet observa que para os republicanos nossa economia no nosso cdigo1171. Em suma, antes de terem permanecido nos limites de uma impossvel democracia igualitria, prisioneiros tanto de uma revoluo burguesa, que eles somente teriam podido levar s ltimas conseqncias, como quanto de uma mentalidade passadista por seu apelo a uma buclica sociedade de pequenos proprietrios de terra e de esforados artesos, os robespierristas formularam aquilo que poderia ser chamado uma poltica verdadeiramente porteuse davenir. Como observa Kent Wright, no seria possvel conceber o caminho para a emergncia do que este historiador chama de moderno republicanismo, a cultura poltica da Terceira Repblica1172 e, ousaramos afirmar, mesmo do que ainda guarda uma certa seiva de vida cvica, de virtude republicana, na atual sociedade francesa a qual parece cada vez mais prisioneira desses males to contemporneos que so a corrupo poltica, o hedonismo, o consumismo e a privatizao do indivduo que, de resto, atingem todas as sociedades ocidentais sem a ao dos revolucionrios de 1789 e, em particular, do advogado de Arras e de seus mais prximos companheiros. Na verdade, as principais questes do homem s podem ser resolvidas pela ao criativa dos prprios homens, atividade criativa responsvel durante a Revoluo no por uma duvidosa unidade-teoria-e-prtica, combinao de teoria democrtica e terror, mas por uma outra unidade, a dos direitos civis, polticos e sociais. Mais ainda, vale novamente a fora dessa unidade, que s pode ser vivificada pela idia de fraternidade, que, como lembramos,

1168 1169

Cf. supra, p. 297. NICOLET, Claude. La rpublique en france. tat de lieux. Paris, Seuil, 1992. P. 36. 1170 Idem, p. 36. 1171 Idem, p. 40. 1172 Cf. supra, Introduo, p. 7.

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Maximilien popularizou como um dos trpticos revolucionrios nos seus primeiros tempos, da frugalidade e solidariedade e de uma cidadania de participao. Caso contrrio, num mundo dominado por aqueles males apontados mais acima, a violncia ser cada vez mais a regra, continuar-se- a satisfazer as pseudo-necessidades cotidianas destruindo a natureza numa velocidade que no nos levar a lugar nenhum e o civismo, se houver, vai se resumir a passeatas de correios eletrnicos.

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