Walter Scott - Ivanhoé
Walter Scott - Ivanhoé
Walter Scott - Ivanhoé
quando, no retorno de demorado cativeiro, concretizou algo que os seus sbditos, desesperados, mais desejavam do que esperanavam, enquanto iam sendo submetidos a todos os gneros de opresso. Quatro geraes no tinham sido bastantes para ligar normandos e anglo-saxes, duas raas hostis, uma das quais ainda vibrava com a altivez da vitria. enquanto a outra prosseguia gemendo sob o peso da derrota. O poder passara para as mos da nobreza normanda. Toda uma gerao de nobres saxes fora deserdada. A imortal histria da cavalaria, de quando a Inglaterra aguardava o regresso do rei Ricardo I, enquanto na floresta de Sherwood lutava Robin dos Bosques. "Como se explica que o Ivanho se continue a imprimir? simples a resposta. Scott possua o atributo primeiro do romancista, sem o qual todo o labor, teorias artsticas, toda a seriedade de propsito, nada valem: sabia contar uma histria." - De Lancey Ferguson
Captulo I E assim cismavam os bem cevados porcos, caminhando ao fim da tarde, para o seu abjecto abrigo Forados e relutantes, l iam para as suas pocilgas, grunhindo, desordenada e ruidosamente, e soltando dissonantes berros. Odisseia de Pope Naquele aprazvel rinco da alegre Inglaterra, banhado pelo rio Dom, existiu, em tempos que j l vo, uma grande floresta recobrindo os belos montes e vales estendendo-se entre Sheffield e a deliciosa cidade de Doncaster. Os restos dessa imensa mata ainda se percebem junto dos nobres assentos de Wentworth, de Wharnclifie Par e ao redor de Rotherham. Ali vagueou, no passado, o Drago de Wantley, l se travaram
muitas das mais desesperadas batalhas da Guerra Civil das Rosas e ainda naqueles lados viveram outrora, aqueles bandos de galantes proscritos cujos feitos os cantares ingleses to populares tornariam. Ser este o nosso principal cenrio, decorrendo a nossa histria no perodo final do reinado de Ricardo 1 (11571199), quando no seu retorno de demorado cativeiro, concretizou algo que os seus sbditos, desesperados, mais desejavam do que esperanavam, enquanto iam sendo submetidos a todos os gneros de opresso. Os nobres, cujo poder se exorbitara, durante o reinado de Estvo (1135- 1154), e de quem a prudncia de Henrique II (1154-1189) quase no conseguira obter um mnimo de sujeio coroa, usufruam, no momento, da sua anterior licena sob a mais vasta forma, desprezando a dbil interferncia do Conselho de Estado ingls, fortificando os seus castelos, aumentando o nmero dos seus dependentes, obrigando a vassalagem todos sua volta e tudo fazendo para conseguirem juntar foras bastantes para lhes concederem um lugar cimeiro nas convulses nacionais que pareciam aproximar-se. A situao da classe mediana, os rendeiros-livres, como lhes chamavam, a quem a lei e o esprito da Constituio inglesa concediam independncia da tirania feudal, era agora verdadeiramente precria. Se, como era frequente,
se colocavam sob a proteco de algum reizinho das vizinhanas, ocupando posies dentro da engrenagem feudal do pao, a ele se prendendo por laos de tratados de aliana e proteco mtuas, ou apoiando-os nos seus empreendimentos, conseguiam, por vezes, um repouso temporrio, obtido claro , com o sacrifcio da independncia pessoal, sempre to arraigada no ntimo de todos os ingleses, e sujeitando-se ao perigo de se verem envolvidos, como elementos de qualquer irreflectida expedio para a qual a ambio dos seus protectores os arrastasse. Por outro lado, era tanta e to variada a capacidade de humilhao e opresso de que os grandes fidalgos gozavam, que nunca conseguiam pretextos e raramente a fora de vontade para importunar mesmo quando beira da prpria destruio, os seus menos poderosos vizinhos que tentassem fugir sua autoridade procurando proteco contra os perigos do tempo numa conduta inofensiva nas leis da terra. Uma das causas que grandemente concorriam para o aumento da tirania da nobreza e sofrimento das classes inferiores advinha das consequncias da conquista, pelo duque Guilherme, da Normandia. Quatro geraes no tinham sido bastantes para ligar os sangues incompatveis de Normandos e Anglo-Saxes, ou, mesmo: para unir, por uma lngua nica e interesses comuns, duas raas hostis, uma das quais ainda vibrava com a altivez da vitria, enquanto a outra prosseguia gemendo sob o peso da derrota. Como resultado da batalha de Hastings (1066). o poder passara totalmente para as mos da nobreza normanda, mos que, como nos contam os livros de histria, no o empregavam com muita moderao. Toda uma gerao de prncipes e nobres saxes fora extirpada. ou deserdada, com poucas ou nenhumas excepes, da mesma for ma que poucos eram os das classes logo abaixo deles e das mais inferiores ainda que
possussem, como proprietrios, terras no pas dos seus pais. A poltica real fora, desde sempre, a de enfraquecer por quaisquer meios uma parte da populao que era vista, e com realismo, como sentindo a maior das antipatias para com o seu vencedor. Todos os monarcas de raa normanda continuadamente evidenciaram a mais marcada das preferncias pelos seus sbditos normandos. As leis da caa, um exemplo entre muitos, e outras, igualmente desconhecidas pela menos rigorosa e de esprito mais aberto Constituio saxnica, haviam sido carregadas ao cervio do povo j subjugado, acrescentando-lhes mais peso ainda s correntes feudais que j arrastavam. Na corte e nos castelos dos grandes nobres, que imitavam a pompa e a forma de agir dos cortesos, o francs da Normandia era a nica lngua a ser utilizada. Nos tribunais, nos debates e nos julgamentos empregava-se tambm o mesmo idioma. Resumindo, o francs era a fala da honraria, da cavalaria e at da justia, enquanto o mais masculino e expressivo anglo-saxo
fora deixado para uso de rsticos e bisonhos labregos que mais no sabiam. No entanto, a necessidade de inevitveis contactos entre os senhores da terra e os oprimidos seres inferiores que as cultivavam j comeavam a levar gradual criao de um dialecto feito duma mistura de francs e anglo-saxo, atravs do qual se iam entendendo uns com os outros. Seria a partir desta mesma necessidade que, lentamente, se formaria a estrutura da nossa lngua actual, o ingls, onde os falares dos vencedores e vencidos, em harmoniosa fuso, se entrelaaram, enriquecendo-se depois com aquisies aos idiomas clssicos e s lnguas europeias do Sul. Entendi ser este apontar de factos necessrio para a maioria dos leitores, que talvez possam esquecer que, embora no tenha ocorrido nenhum facto histrico do tipo de insurreio, apontando os Anglo-Saxes como um povo distinto a partir do reinado de Guilherme II (1087-1100), o caso que existiam enormes diferenas entre eles e os seus dominadores, mantendo-se viva a memria colectiva, daquilo que tinham sido em relao ao que foram reduzidos a ser, at ao tempo do rei Eduardo III (1327-1377), conservando-se abertas as feridas, pela Conquista causadas, e as linhas de ciso entre Normandos, vencedores, e Saxes, vencidos.
O Sol punha-se numa das luxuriantemente relvadas clareiras da floresta que citei no princpio deste captulo. Centenas de carvalhos de largas copas, curtos troncos e longos ramos, que, qui, tivessem presenciado a disciplinada marcha dos legionrios romanos, abriam os seus nodosos braos por cima da fofa alfombra; em alguns pontos cresciam a par de faias, azevins e segundas crescenas de vrias outras espcies, to juntos entre si que chegavam a interceptar os raios do poente; noutros lugares afastavam-se uns dos outros, formando aquelas extensas vistas ao longo das quais os olhos se deleitam, perdendo-se, enquanto a imaginao as transforma em sendas dirigindo-se a cenas mais selvagens ainda de silvana solido. Aqui os rubros raios do Sol estendem-se em luminosidades, de onde em onde quebradas e difusas, que pairam sobre os ramos
partidos e os musgosos troncos, iluminando brilhantemente pores de erva, ao longo da qual vo rompendo caminho. Um considervel espao livre no meio desta aberta parecia ter anteriormente sido aberto para servir os ritos da superstio drudica, at porque no cimo dum montculo, to regular a ponto de parecer artificial, ainda se erguia parte dum crculo irregular de toscas pedras no lavradas, de grandes dimenses. Sete mantinham-se de p. As restantes tinham sido retiradas da sua posio, talvez pela fora do fanatismo de algum recmconverso ao cristianismo, jazendo perto umas, nas faldas do monte outras. Uma grande pedra cara no sop, alterando o curso dum plcido e at a silencioso pequeno regato que corria, lentamente, em torno da elevao, murmurando debilmente.
Eram dois os homens contemplando esta paisagem, ambos com a aparncia e vestes rusticamente bravias das florestas de West Riding, no Yor shire de ento. O mais velho era de semblante severo, selvagem e agreste. As suas roupas eram do mais simples que se possa imaginar, consistindo numa jaqueta com mangas, de pele curtida, onde os plos se tinham em princpio deixado ficar, mas que agora estavam to pudos que era impossvel, pelos seus restos, identificar de que animal teria sido feita. Esta veste primitiva descia do pescoo at aos joelhos, cumprindo ela s aquilo que normalmente se exige das roupas. O rasgo da gola no era mais largo do que o preciso para permitir a passagem da cabea, donde se poderia concluir que se vestia enfiando-a, como se enfia uma camisa moderna ou uma cota de armas antiga. Sandlias, com ataduras de couro de javali, protegiam-lhe os ps, enrolando-se as ltimas pelas pernas acima at pouco abaixo dos joelhos, nus, como Os dos montanheses da Esccia. para melhor ajustar a jaqueta ao corpo, usava um cinturo largo, que se fechava com uma fivela de lato, num dos lados da qual pendia uma espcie de alforge e do outro um corno de carneiro ao qual fora adaptado um bocal, para que pudesse ser usado como instrumento de sopro. Ao cinturo estava presa tambm uma daquelas compridas, largas e afiadas facas de dois gumes, de cabo de chifre de veado, fabricadas nas redondezas e marcadas, j nesse remoto perodo, com o nome dum cuteleiro de Sheffield. Nada trazia na cabea, que estava coberta por espesso, desgrenhado e enriado cabelo, a que o sol dera uma cor vermelho-arruada, muito contrastando com as barbas, recobrindo-lhe as faces, de tom mais para o ambarino. Falta descrever uma pea da sua indumentria, demasiado importante para se poder esquecer: trata-se dum anel de lato, parecendo uma coleira de co, sem qualquer cobertura, contudo, pois fora soldada em torno do pescoo, folgada bastante para no atrapalhar a respirao, mas, mesmo assim, suficientemente justa para no se poder retirar sem recorrer a uma lima. Neste curioso gorjal estava gravado, em escrita saxnica, a legenda "Gurth, filho de Beowulph, escravo nato de Cedric de Rotherwood". Ao lado do porqueiro, pois era essa a sua ocupao, sentava-se, num dos monumentos drudicos, outro homem, aparentando dez anos menos do que aquele que descrevemos e cujas roupagens, ainda que, no feitio, semelhantes s do companheiro, eram de artigo melhor e de aspecto mais
extravagante. A jaqueta fora tingida dum tom prpura-vivo, sobre o qual havia esboos de ornamentos de vrias cores. Por cima da jaqueta trazia uma capa curta, mal lhe chegando ao meio das coxas. De tecido carmesim, cheio de ndoas, debroado a amarelo-forte, muito mais larga do que comprida, podendo facilmente passar-se dum ombro para o outro ou ser enrolada em torno do corpo, era perfeitamente fantstica.
Nos braos, delgados braceletes de prata e, ao pescoo, uma gorjeira do mesmo metal, com a inscrio "Wamba, filho de Witless, escravo de Cedric de Rotherwood". Calava o mesmo tipo de sandlias que o seu camarada, s que, em vez dos nagalhos de couro, as pernas tinham a cobri-las uma espcie de polainas, uma vermelha, outra amarela. Ostentava um gorro com alguns guizos, mais ou menos do tamanho dos que se prendem aos falces, nele pendurados, que tilintavam sempre que movia a cabea. Como raramente estava quedo, quase que se poderia considerar aquele tinir como constante. Em volta do gorro corria um rgido rebordo de couro, com a parte superior revirada e recortada como um coronel, dele subindo uma longa saca, que depois caa por um dos ombros, lembrando um antiquado barrete de dormir, um coador de geleia ou mesmo o chapu dos actuais hussardos. Aqui prendiam-se as campainhas. Tudo isto e a sua expresso meio louca, meio astuciosa, mostravam pertencer ele quela categoria de palhaos domsticos, ou bobos, que os ricos mantinham nos seus solares para quebrar o tdio das montonas horas que eram obrigados a passar dentro de portas. Como o seu companheiro, usava, ao cinto, um alforge, mas no carregava nenhum corno ou faca, provavelmente por pertencer a uma classe tida como demasiado perigosa para se lhe poderem confiar instrumentos cortantes. Em lugar disso ostentava uma espada de pau lembrando aquela com que o Arlequim executa todas as suas malabarias nos palcos de agora. A aparncia destes dois personagens era ainda menos contrastante do que os seus ares e comportamentos. Os do servo ou escravo eram tristes, taciturnos. Cado, inconformado, quase se diria aptico se o fogo que ocasionalmente lhe faiscava dos olhos no revelasse que, debaixo de toda a sua desanimao, dormitavam um repdio pela opresso e um desejo de resistir imensos. Wamba, por seu lado, aparentava, como costume na gente da sua espcie, uma distrada curiosidade e uma irrequieta impacincia, que no lhe permitiam qualquer pouso ou repouso, a par da mais completa auto-satisfao no respeitante prpria situao e aparncia. O dilogo que mantinham era em anglo-saxo, a lngua geral das classes inferiores, como foi dito, se se exceptuarem os soldados normandos e o pessoal imediatamente dependente dos grandes nobres feudais. Transcrever a sua conversa no vernculo nada representaria para o leitor hodierno, pelo que me permito traduzi-la como segue. - Que a maldio de Santo Withold caia sobre estes recos do Inferno - bradou o porqueiro, aps ter soprado a sua trombeta, com estrpito, para reunir a dispersa vara, que, acusando o chamado, lhe respondeu em tonalidades igualmente melodiosas, sem contudo se afastar, ou do faustoso banquete de sementes de faia e landes, nas quais cevavam, ou das margens alagadias do
regato, onde alguns deles, meio mergulhados na lama, se estiravam, consolados e totalmente indiferentes voz do seu dono.
- Que a maldio de Santo Withold caia neles e em mim tambm continuou Gurth - se o lobo de duas pernas no apanhar um deles antes de anoitecer, eu no sou homem, nem nada. Anda c, Fangs! Fangs! - explodiu a plenos pulmes voltado para um co hirsuto, misto de lobo, co de amarrar, mastim e galgo, que manquejava por ali, sem qualquer teno de auxiliar o seu amo no arrebanhar dos renitentes grunhidores, e que, por incompreenso dos sinais que lhe eram feitos, ignorncia dos seus deveres, ou maldosa propenso, ainda mais os espalhava, agravando o mal para o qual deveria ser remdio. - Que o Demo lhe meta os dentes - disse Gurth - e a me todas as desgraas dane o couteiro desta mata, que corta as unhas das patas da frente dos ces, tornando-os incapazes para o servio a que se destinam (1). Wamba, levanta-te e mostra que s homem ajudando-me. D uma volta ao monte para lhes ficares contra o vento. Logo que estiveres certo disso, gui-los-s tua frente com tanta facilidade como se de cordeirinhos se tratasse. - Claro - disse Wamba sem se mexer donde estava -, j consultei as minhas pernas sobre o assunto, sendo elas de *1. Um dos mais sentidos agravos daquela gravosa poca eram as leis da Caa. Tais opressivos decretos eram provenientes da conquista normanda, j que as normas de caa dos Saxes se mostravam brandas e humanas, enquanto as de Guilherme, entusiasticamente ligadas ao exerccio de seus direitos, se mostravam, para se dizer o mnimo, tirnicas. A criao da Floresta Nova [New Forest], comprovante da sua paixo venatria, reduziu muitas aldeias felizes condio que o meu amigo Mr. Wilham Stewart Rose, assim recorda: "Entre as runas da igreja Encontrou, meia-noite, poleiro o corvo Num lugar de melancolia. O implacvel conquistador derruiu - Ai, que feito mal feito!" - aquela aldeiinha Apenas para aumentar a sua coutada. O mutilar dos ces, to precisos para a guarda de manadas e rebanhos, para que no perseguissem os veados, denominado "legalizao" (lawing), era useiro. A Carta das Florestas, concebida para limitar e previa duras medidas, declarava que as inquiries ou revistas para a legalizao de ces seriam feitas de trs em trs anos e sempre testemunhadas por legistas; que aquele cujos ces se encontrassem por legalizar dessem trs xelins para as obras de caridade; e que (a partir da publicao da carta) mais nenhum boi seria legalizado. Tais legalizaes seriam feitas de acordo com as posturas em curso ou seja, que se arrancariam trs unhas da pata frontal direita, sem, contudo, se arrancar a almofada. A propsito do assunto, consulte-se The Historical Essay on lhe Magna Carta Of King John (Uma bela obra), de Richard Thomson.
opinio que arrastar as minhas garridas vestes nesses lamaais constituiria uma prova de pouca amizade para com a minha soberana pessoa e tambm para o guarda-roupa real. Da, Gurth, te aconselhe que mandes o Fangs ficar quieto e deixes a vara entregue ao seu destino, que, quer venham a encontrar-se com soldados viajando e proscritos vadiando, quer peregrinos passando, ser sempre o de se transformarem, antes do amanhecer, para teu alvio e conforto, em normandos. - Os sunos convertidos em normandos?! - interrogou Gurth. Explica-me l isso, Wamba, porque o meu crebro demasiado obtuso e a minha mente confusa de mais para decifrar enigmas. - Ento como que tu chamas a estes brutos que para a andam sobre quatro patas e a roncar? - perguntou Wamba. - Sunos, louco, sunos - afirmou o porqueiro, acrescentando: - Qualquer maluco o sabe. - E "suno" saxo do bom - disse o bobo. - Mas como que chamas porca, depois de esfolada, aberta, esquartejada e pendurada pelos ps como um traidor? - Porco - respondeu o guardador. - Apraz-me saber que qualquer maluco saiba isso tambm prosseguiu Wamba -, e "porco" , creio eu, francs, do bom, da Normandia. Portanto, enquanto o bicho vive, guarda dum escravo saxo, responde pelo seu nome saxo, mas quando morre vira normando, sendo porco que o denominam, quando levado para o castelo para delcia dos nobres. Que me dizes a isto, Gurth amigo? Hem?(2) - Parece doutrina vlida, amigo Wamba, ainda que sada do teu cocuruto de doido. - Olha. H mais para te contar - prosseguiu Wamba no mesmo tom. - o Senhor Boi conserva a sua alcunha saxnica enquanto aos cuidados de servos e escravos como tu, mas muda para Bife, galantemente afrancesado, quando caminha para as respeitveis queixadas de quem o vai ingerir. Igualmente a Senhorinha Bezerra passa para Mademoiselle de Vitela acontecendo, pois, que apenas so saxes enquanto do trabalho, mas normandos quando passam a poder dar prazer (3). - Valha-me So Dunstan I - exclamou Gurth. - So bem tristes as verdades que dizes. pouco nos resta seno o ar que respiramos, e mesmo esse parece ter-nos sido concedido muito a custo e s para *2. H aqui um jogo de palavras intraduzvel. "Porca", o animal, , em ingls, sow, enquanto "carne de Porco", (e evidentemente, carne de porco) por , vocbulo introduzido pelos Normandos. (N. do T.) 3. Novo jogo de palavras. Em ingls, "boi" e "vitela", os animais, so ox e calf palavras de origem saxnica. As suas carnes, porm, chamam-se beef e veal, derivados do francs boeuf e veau, respectivamente. (N. do T.)
que possamos aguentar as tarefas que nos pem s costas. O bom e o melhor vai para as mesas deles, o mais belo para as suas camas, e os mais bravos e valentes servem chefes estrangeiros
como soldados, acabando os seus ossos a branquear em quaisquer paragens distantes, aqui restando poucos com vontade ou foras para proteger os desafortunados saxes. Que Deus abenoe o nosso senhor Cedric, que tem feito trabalho de homem, defendendo a brecha. Mas ateno, que Reginald Front-de-Boeuf vem por esta terra abaixo em breve, veremos para que serviram os cuidados de Cedric. - E levantando a voz: - Anda, anda c! Isso! Isso! Muito bem, Fang! Tem-los finalmente tua frente e traze-los direitinhos. Lindo! - Gurth - disse o bobo -, sei que me consideras um tolo, e no porias a tua cabea nas minhas mos, Uma palavra s a Reginald Front-de-Boeuf ou a Philip Malvoisin, dizendo- lhes que falaste contra os Normandos, e no sers mais do que um porqueiro desterrado, ou, pior ainda, acabars dependurado numa destas rvores, como aviso para os que dizem mal das grandes personalidades. - Co. No era capaz de me atraioar - bradou Gurth - depois de me teres levado a dizer o que disse? - Trair-te, eu? - respondeu-lhe o bufo. --- No. --- No, isso seria obra de gente esperta e um tolo s a si mesmo ajuda... mas fala baixo! Quem vem a? - interrompeu escutando o passo de vrios cavalos que comeava a fazer- se sentir. - No interessa quem - observou-lhe Gurth, que tinha agora os porcos em seu redor e que, ajudado pelos Fangs, os ia guiando por uma das difusas vistas que tentmos descrever. - No. Tenho de ver os cavaleiros - regozijou-se Wamba. - Ser que vm do Pas das Fadas trazendo um recado do rei Oberon ? - Os diabos te levem - retorquiu-lhe o porcario. - Como te atreves a dizer coisas dessas, quando uma grande tempestade, com troves e relmpagos, est a estoirar nas redondezas? Escuta como troveja. chuva de Vero, pois nunca vi pingas to grossas como as que esto caindo das nuvens. Os carvalhos mesmo nesta calmaria, rangem e estalam l no alto das suas grandes ramas como que anunciando temporal. No armes em esperto e acredita-me, ao menos desta vez. Vamos para casa antes que a tempestade venha para cima de ns e nos faa passar uma noite medonha. Wamba pareceu aceitar a intensidade do seu apelo e juntou- se ao companheiro, que levantava um longo varapau cado na relva sua beira. Este segundo Eumeu (4) apressou-se ento, pela clareira fora, conduzindo, em conjunto com Fangs, toda a vara numa pouco harmoniosa corrida. *4. Escravo de Ulisses. (N. do T).
Captulo II Uma vez houve um monge grande campeo. Um cavaleiro amante da veao. Um abade capaz, um homem perfeito, Com belos cavalos na baia a jeito. Cavalgando as gentes os arreios lhe escutavam, Tinindo, zoando claros ventos que sopravam, Aumentando como aumenta o som do sino da capela. Assim era este guarda e senhor da sua cela.
Chaucer No obstante as frequentes incitaes e admoestaes do companheiro, devidas ao rudo dos cavaleiros que se acercavam, Wamba no conseguia ser obrigado a no se atrasar, o que ia fazendo, aproveitando todos os ensejos, como o de arrancar duma aveleira um galhinho com alguns frutos ainda verdes, de se voltar para apreciar melhor a mocinha duma cabana que com eles cruzava e muitos outros. Por essa razo, os cavaleiros rapidamente os alcanaram. Eram dez homens, dos quais os dois da dianteira mostravam ser pessoas de considervel importncia, sendo os restantes seus subordinados. No era difcil adivinhar a condio dum deles, pois nele tudo revelava tratar-se de um elevado membro da Igreja. O seu hbito era o dum monge cisterciense, mas de tecidos muito mais finos do que aqueles que a sua Ordem permitia. O seu manto e o capucho, da melhor fazenda da Flandres, caam em amplas mas elegantes dobras em torno do corpo do bem-parecido, se bem que um tanto corpulento, indivduo. O seu semblante dava to poucas mostras de abnegao como as suas roupagens de desprezo pelo esplendor mundano. Tinha feies que se poderiam classificar de boas, se sob as suas rbitas no espreitasse aquele piscar malandro e epicurista caractersticas do lbrico cauteloso. A parte esse pormenor, a sua posio e profisso haviam-lhe ensinado um comando sobre as suas expresses que, vontade, tornava solenes, mesmo que o seu natural fosse o de um ar de bom humor indulgente para com a sociedade. Num claro desafio s regras conventuais, edictos papais e conciliares, as mangas deste dignitrio dobravam-se e estavam
forradas com belas peles e o manto prendia-se ao pescoo por um broche de ouro. Todo o seu vestir, embora de acordo com os preceitos da ordem, era demasiado requintado e ornamentado, tal-qual como sucede a uma beleza quacr (1) que, ostentando as roupas e usos simples da sua religio, lhes empresta, pela escolha dos tecidos e faceirice, um ar de quem muito aprecia as vaidades do mundo. O ilustre eclesistico montava uma ndia mula, que se deslocava a passo travado e cujos arreios eram excessivamente decorados e, de acordo com a moda da era, ornamentados com sininhos de prata. Montava sem o habitual desajeitamento conventual, mas sim com a graa e o -vontade prprios do cavaleiro bem treinado. Na verdade, parecia que um meio de transporte to modesto como uma mula, no obstante a sua cmoda passada, fora escolhido pelo monge apenas para se deslocar pela estrada, pois um irmo laico que fazia parte da comitiva levava brida, para seu uso noutras ocasies, um dos mais belos ginetes espanhis que se criam na Andaluzia, um daqueles que os comerciantes, ocasionalmente, importam com muitas penas e riscos, para depois venderem a pessoas de dinheiro e distino. A sela e o xairel do soberbo palafrm estavam recobertos por um pano longo, quase chegando ao cho, com muitas cruzes e outros distintivos eclesisticos bordados. Outro leigo conduzia um macho carregado, possivelmente com a
bagagem do seu superior. Na retaguarda, dois monges menores da ordem, a par, rindo e conversando, seguiam sem prestar grande ateno aos restantes da cavalgada. O companheiro do dignitrio religioso teria mais de quarenta anos, magro, mas robusto, era uma figura atltica a quem a fadiga e os exerccios continuados pareciam ter comido todo o excesso de gordura, deixando-lhe o corpo somente com msculos, ossos e tendes, fortes bastante para aguentarem mil tormentos e prontos a enfrentarem outros tantos mais. Levava a cabea coberta com um barrete encarnado com bandas de pele - aquilo que os Franceses denominam de mortier, dada a sua semelhana com um almofariz(2) invertido. O seu semblante mantinha um aspecto propositadamente tomado para impressionar ou, mesmo, amedrontar os estranhos. As feies bem marcadas, naturalmente fortes e poderosamente expressivas, estavam quase to queimadas pela continuada exposio ao sol dos trpicos que pareciam, na cor, as dum negro, podendo delas, na sua postura normal, dizer-se que espelhavam a bonana aps a tempestade das paixes. Paixes estas que, como bem mostravam as veias salientes da testa *1.. Seguidora do quacrismo. seita religiosa fundada no sculo XVII, na Inglaterra, cujos membros se devem distinguir por grande pureza moral. (N. do T.) 2.. Que, em portugus, tambm se pode chamar "morteiro". (N. do T.)
e a prontido com que o queixo superior e os grossos bigodes pretos estremeciam menor emoo, poderiam rpida e facilmente acordar de novo. Os seus ardentes e penetrantes olhos negros contavam, primeira vista, histrias de dificuldades vencidas e perigos enfrentados, parecendo at desafiar opositores ao seu querer, pelo prazer de os ver varridos pelo seu prprio valor e fora de vontade. Uma profunda cicatriz na fronte e o olhar sinistro de um dos olhos, que, ferido por qualquer razo, ficara sem perder a viso, mas levemente distorcido, acrescentavam mais severidade sua fisionomia. As vestes superiores deste personagem assemelhavam-se s do seu acompanhante, pois envergava um comprido manto monstico, cuja cor rubra mostrava, porm, no fazer parte de qualquer uma das quatro ordens regulares. O ombro direito do manto ostentava o desenho de uma cruz de forma pouco vulgar, bordada de tecido branco. A parte de cima do manto quase escondia algo que, a princpio, poderia parecer contraditrio com o seu feitio, o de uma camisa, pois era de malha de ferro, com mangas e luvas do mesmo material, to bem interligado que aderia ao corpo com a mesma flexibilidade dos tecidos que actualmente possumos, feitos com outros produtos muito menos rgidos. A parte da frente das coxas, que as pregas do manto permitiam ver, estavam igualmente recobertas de cota. Os joelhos e os ps defendiam-se com delgadas placas de ao, habilmente ligadas entre si. Bragas de malha de ferro estendiam-se da cinta aos joelhos, protegendo-o e completando a sua couraa defensiva. No cinturo trazia uma adaga de dois gumes, a nica arma que transportava. No montava, como o outro, uma mula, mas sim um cavalo de boa
andadura, poupando assim o seu garboso corcel de guerra, inteiramente armado para o combate, incluindo uma testeira com um espeto projectando-se para a frente, que um escudeiro conduzia, atrs. Dum lado da sela pendia uma curta acha-de-armas com belos embutidos damasquinos, e do outro um elmo empenachado, um capuz de malha de ferro e um montante, prprios dos cavaleiros da poca. Um outro escudeiro segurava a lana do seu senhor, na qual drapejava uma pequena bandeirola ou flmula, com uma cruz igual do bordado do manto. Transportava ainda o seu escudo triangular, pequeno, mas suficientemente largo no topo para proteger o peito. Tecido escarlate escondia-o. Atrs destes dois escudeiros seguiam dois outros dependentes, cujos rostos muito escuros, turbantes brancos e o jeito oriental dos seus trajes indicavam serem eles originrios de qualquer distante pas do Leste (3). A aparncia quer deste guerreiro, quer dos seus seguidores, *3. A dura exigncia de alguns crticos f-los levantar objeces quanto tonalidade dos escravos de Brian de Bois-Guilbert, classificando-a como totalmente fora do costume e da correco. Recordo-me de ter a mesma objeco sido feita a propsito dos funcionrios negros que o meu amigo Mat Lewis introduziu, como capangas do vil baro, no seu Castelo do Espectro. Mat demonstrou grande desprezo, pela observao, contestando que "descrevera os escravos como pretos para obter um contraste, tal como teria descrito a herona como azul se disso obtivesse vantagens." No pretendo colocar a imunidade da minha profisso assim to alto. Contudo, entendo que o moderno escritor de romances situados no passado no obrigado a limitar-se s maneiras e costumes que possam de facto ser comprovadas como seguidas na poca que relata, devendo, pelo contrrio, seguir indicando aquelas que lhe paream plausveis e naturais e despidas de qualquer anacronismo evidente. Nesta base, que que haver de anormal que os Templrios, que, todos o sabemos, imitavam os luxos dos guerreiros asiticos que combatiam, aproveitassem o trabalho de escravos africanos que os azares da guerra tivessem feito mudar de dono? Estou certo de que, mesmo sem evidncia de deste modo ter acontecido, no h nada neste mundo que nos garanta que assim no aconteceu. Alm do mais, existe um precedente em romances: John de Rampayne, um menestrel e ptimo malabarista, conseguiu fazer escapar Audulf de Bracy da corte do rei que o retinha disfarando-se. para o efeito, "pintou o cabelo e todo o corpo de negro como azeviche, de forma que de branco somente tinha os dentes, obtendo a simpatia real como se dum trovador etope se tratasse. Manhosamente, conseguiu libertar o prisioneiro. Os Negros, portanto, j deviam ser conhecidos na Inglaterra na noite negra medieval. (Dissertao sobre Romances e Trovares, Precedendo Antigos Romances Rimados de Riston. p. CLXXXVII.) (Fim da Nota).
era extica, o modo de vestir dos seus escudeiros sumptuoso e os seus serviais orientais ostentavam colares de praia e braceletes do mesmo metal, tanto nas pernas como nos braos,
estes nus at aos cotovelos, aquelas do tornozelo barriga da perna. As sedas e os bordados abundavam proclamando a prosperidade do seu senhor, cuja marcial simplicidade marcantemente contrastava com eles. Iam armados de alfanges com os punhos e boldris, ornamentados a ouro, condizendo com as adagas turcas de feitura ainda mais valiosa. Ambos carregavam no aro um feixe de xaras ou dardos, com cerca de um metro e vinte centmetros de comprido, e afiadas pontas de ao, armas muito do gosto dos Sarracenos, que ainda as recordam nos seus exerccios marciais, denominados El Jerrid, que continuam sendo praticados nos pases do Levante. As montanhas destes indivduos eram to estranhas como eles. De raa sarracena, logo de descendncia rabe, de membros delgados, topetes pequenos, finas crinas e geis de movimento, diferiam grandemente dos pesados e mais espessamente constitudos cavalos, que se criavam, nas Flandres e na Normandia, para aguentarem os guerreiros equipados com couraas completas de chapa e cota de malha do tempo e que, postos a par daqueles rpidos corcis levantinos, se assemelhavam encarnao da massa ao lado de sombras.
A singular aparncia desta cavalgada no s excitou a imaginao de Wamba como at a do seu menos volvel companheiro. No monge imediatamente reconheceu o prior da Abadia de Jorvaulx, bem conhecido ali volta como um amante da caa, da mesa e, se a fama no se enganava, de outros prazeres mundanos pouco prprios dos seus votos monsticos. As ideias da poca, todavia, eram to permissivas para com o clero, secular ou regular, que o prior Aymer gozava de excelente reputao nas imediaes da sua abadia. O seu temperamento aberto e jovial e a prontido com que absolvia os pecadilhos mais vulgares tornavam-no popular entre a nobreza e a burguesia, a muitos dos quais laos de sangue o uniam, uma vez que a sua famlia era de ascendncia fidalga normanda. As senhoras, principalmente, evitavam indagar excessivamente da moralidade dum homem confessadamente admirador do sexo a que pertenciam e que conhecia inmeras formas de dissipar o aborrecimento que to frequentemente invadia as salas e os caramanches dos antigos castelos feudais. O Prior tomava parte nos desportos de exterior com todo o entusiasmo, era dono dos melhor treinados falces e dos mais rpidos galgos de North Riding - motivos que o tornavam altamente querido entre os jovens da classe mdia. Junto dos mais velhos interpretava um papel diferente, comportando-se com o maior decoro, quando necessrio. O seu conhecimento de literatura, embora muito superficial, era suficiente para impressionar a ignorncia dos demais como um profundo sabedor. A maneira grave como agia e falava em voz bem alta ajudava a realar a autoridade da Igreja e dos seus ministros e tambm os perturbava, a ponto de quase verem nele um santo. Mesmo as gentes do povo, os crticos mais severos dos seus melhores, viam com benignidade as loucuras do prior Aymer. Era generoso e, como toda a gente sabe, a caridade esconde um mar de pecados, at porque as prprias Escrituras o recomendam desse mesmo modo. As receitas do mosteiro, grande parte delas ao seu dispor, no s lhe possibilitavam enfrentar as suas considerveis despesas como lhe permitiam as larguezas que estendia aos camponeses,
aliviando-os em muitas das aflies a que os oprimidos so atreitos. Se o prior Aymer demorava na caa prolongava um banquete, se era visto a entrar, altas horas, pelas portas traseiras da Abadia, de regresso de qualquer encontro que lhe ocupara as horas de escurido, as pessoas encolhiam os ombros e acatavam-lhe as faltas ao lembrarem- se que tantos dos seus irmos as tinham igualmente, sem, em contrapartida, possurem as precisas qualidades remissoras e absolventes. O prior Aymer era, pois, bem conhecido dos servos saxes, que o reverenciaram do seu modo rude, recebendo em troca um "Benedicite, mez filz". O aspecto fora do comum do seu companheiro, porm, prendia-lhes a ateno e enchia-os de espanto,
atrapalhando-os, tanto que quase nem prestaram ateno s palavras do prior de Jorvaulx quando este lhes perguntou se sabiam de algum albergue nas redondezas, deixando-se ficar a apreciar as roupagens monstico- guerreiras do trigueiro estrangeiro e as extravagantes roupas e armas dos seus criados levantinos. tambm provvel que a lngua em que a bno fora concedida e a questo posta parecessem pouco graciosas, se bem que inteligveis aos ouvidos de campnios saxes. - Perguntei-vos, meus filhos - disse o Prior elevando o tom e servindo-se da lngua franca, de idiomas mistos, que os Normandos e os Saxes empregavam quando conversavam uns com os outros -, se nesta vizinhana haver algum homem bom que, pelo amor a Deus e devoo Santa Igreja, queira dar abrigo e alimento por uma noite a dois dos Seus humlimos servidores e ao seu squito? Fora esta frase dita em tom importante, perfeitamente contrrio aos termos de modstia que achara por bem empregar. "Dois dos humlimos servos da Madre Igreja! ", repetiu Wamba para si, mas, tolo que fosse, sem deixar audvel o seu aparte. "Bem gostaria eu de lhes conhecer os copeiros e os mordomos e demais criados de importncia..." Uma vez feito este comentrio interior ao discurso do Prior, levantou os olhos respondendo ao que lhe fora posto. - Se os reverendos padres - disse - apreciassem s alegria e macia acomodao, umas poucas milhas mais a cavalo levlos-iam at ao priorado de Brinxworth, que lhes asseguraria a mais honrosa das recepes. Caso prefiram um sero de penitncia, podero voltar naquela clareira bravia, alm, que os conduzir at ao eremitrio de Copinanhurst, onde um piedoso anacoreta partilhar convosco o abrigo do seu tecto e os benefcios das suas oraes. O Prior afastou as duas alternativas com um abanar de cabea. - meu honesto amigo - disse -, se o tilintar desses guizos ainda te no embotou a razo, devers saber que Clericus clericum non decimat, ou seja, que ns, gente da Igreja, no apreciamos exaurir a hospitalidade mtua, preferindo recorrer aos seculares, dando-lhes desta maneira oportunidade de servirem a Deus, honrando e aliviando os Seus servos. - certo - respondeu Wamba - que eu, no passando duma besta, me honro por trazer guizos, tal como a mula de vossa reverncia; no entanto, julgara que a caridade da Madre Igreja para com os seus servidores deveria, como com outras caridades tambm, comear na prpria casa.
- Poupa-nos as insolncias, homem - disse o cavaleiro armado, quebrando a troca de palavras com a sua voz austera, -, e diz-nos se puderes, qual o caminho para...
Como que se chama o seu rendeiro, prior Aymer? - Cedric - informou o Prior - Cedric, o Saxo. Diz-me, bom homem, se estaremos prximos da sua habitao e se nos podes indicar como para l se vai. - A estrada ser difcil de encontrar - informou Gurth, quebrando o silncio pela primeira vez - e a famlia de Cedric recolhe-se cedo. - Ena! No me digas, homem - exclamou o guerreiro - que no lhe ser fcil levantarem-se para atenderem a viajantes que, como ns, no se baixam a pedir hospitalidade, pois tm o direito de a exigir. - No sei - disse Gurth, aborrecido - se deva indicar o caminho para a casa do meu senhor a quem impe, como de direito, um abrigo que outros, de bom grado, pediriam por favor. - Argumentas comigo? - bradou o soldado, esporeando o cavalo e fazendo-o dar meia volta no carreiro e, simultaneamente erguendo o pingalim que empunhava, pronto a punir o que considerava uma insolncia do lapnio. Gurth lanou-lhe uma mirada selvagem e vingativa, ao mesmo tempo que, com um feroz mas hesitante movimento, levava a mo ao cabo da sua faca. A interferncia do prior Aymer, porm, colocando a mula entre o seu companheiro e o porcario, travou a violncia que nascia. - No, Irmo Brian! Por Santa Maria, no julgue que ainda est na Palestina impondo-se a pagos turcos e a sarracenos infiis. Ns, ilhus, no gostamos de golpes que no sejam os da Igreja castigando aqueles que ama. Diz-me, bom homem - fez virando-se para Wamba e reforando o seu pedido com uma pequena moeda de prata -, como ir para casa do Cedric, o saxo. No o deves ignorar e teu dever indic-lo a um caminheiro, mesmo quando de menos santidade que a nossa. - Na realidade, venerando padre - retorquiu o bobo -, a cabea de Sarraceno do reverendo companheiro vossa direita afugentou da minha a ideia do caminho de casa, a ponto de no saber se l chegarei esta noite. - Chiu! - calou-o abade. - Podes dizer-nos, se quiseres. Este meu reverendo irmo passou a vida inteira entre os Sarracenos, lutando pela libertao do Santo Sepulcro. Ele da Ordem dos Templrios, de que deves ter ouvido falar. , pois, meio monge, meio soldado. - Se . pelo menos meio monge, deveria ser mais razovel com quem encontra na estrada, mesmo que esteja sem pressa de lhe dar informaes que no lhe respeitam. - Perdoo-te a graa - disse o abade -, sob a condio de mostrares o caminho para a casa do Cedric.
- Est bem, ento - concordou Wamba -, Vossas Reverncias continuaro neste carreiro at Cruz Enterrada, da qual j
nem um cbito est de fora. A tomaro, dos quatro carreiros que vo dar cruz, o que segue esquerda, ficando eu certo de que, assim, obtero abrigo antes de a tempestade se desencadear. O abade agradeceu-lhe, enquanto os cavaleiros, metendo esporas nas suas montadas, galoparam como s galopa quem quer chegar a um abrigo antes de ser apanhado por uma tempestade nocturna. Sentindo as suas passadas desvanecerem-se, Gurth virou-se para o parceiro, observando: - Se seguirem as tuas sbias indicaes, dificilmente os reverendos padres alcanaro Rotherwood esta noite. - Pois no - sorriu o bobo -, mas alcanaro Sheffield se tiverem sorte, de que tambm precisaro para arranjar acomodaes sua altura. No sou to mau monteiro que mostre aos ces onde se acoita o veado. - Fizeste bem - aprovou Gurth -, pois seria mau que o Aymer visse a lady Rowena... e pior seria se o Cedric discutisse, como certamente faria, com aquele monge militar. Mas, como bons criados que somos, nada ouvimos, vimos ou dizemos. Voltando aos cavaleiros, que, tendo deixado os dois servos, conversavam agora em francs da Normandia, a lngua das classes superiores, se se exceptuarem alguns poucos que se orgulhavam da sua ascendncia saxnica. - Que queriam aqueles tipos com aquela insolncia toda? perguntou o templrio ao beneditino. - E por que me no deixou castig-los? - Por minha f, Irmo Brian - respondeu o Prior -, tocar num deles seria o mesmo que dar razo a um louco nas suas loucuras. E o outro, o rstico, era daquela raa bravia, feroz e intratvel de que ainda se encontram alguns, entre os descendentes dos Saxes, cujo mximo prazer manifestar por todos os meios possveis toda a sua averso aos conquistadores. - Ter-lhe-ia ensinado maneiras fora - rosnou Brian. - Estou acostumado a lidar com gente desse gnero. Os nossos prisioneiros turcos so to ferozes e intratveis como o prprio deus Odin, mas com dois meses em minha casa, ao cuidado do meu feitor de escravos, ficam humildes, submissos, serviais e cumpridores da vontade de quem neles manda. Bof, senhor, haver, contudo, de nos acautelarmos de venenos e adagas, j que so lestos no emprego de ambos, desde que oportunidade lhes surja. - Claro - assentiu o prior Aymer -, mas cada terra tem os seus usos e costumes, alm de que bater-lhes no nos traria a informao desejada quanto ao caminho para a casa do Cedric, tal como haveria bulha entre si e ele se tivssemos sido ns a descobrir como se ia para casa dele.
Recorde o que lhe disse, aquele rendeiro livre orgulhoso, feroz, ciumento e irritvel. Um adversrio da nobreza, mesmo dos seus vizinhos, Reginald Front-de-Boeuf e Philip Malvoisin, que no so bebs nenhuns. Ele defende com tanta ferocidade os privilgios da sua casta e orgulha-se tanto de descender directamente de Hereward, um campeo, da Heptarquia, que toda a gente lhe chama Cedric, o Saxo. Faz questo em se gabar pertencer a um povo cujo sangue muitos procuram esconder nas suas ascendncias, evitando desse modo o aguentar o vae victis
das severidades impostas aos vencidos. - Prior Aymer - observou o Templrio -, o senhor um homem galante, estudioso do belo e um trovador to competente em todas as coisas de amor que compreender o esperar em muito da beleza dessa cantada Rowena para compensar a abnegao e a absteno que terei de me impor para conseguir o agrado dum campnio sedioso como o Cedric que me descreve. - O Cedric no pai dela - informou o Prior -, um parente afastado. Ela de melhor sangue, mesmo do que daquele que ele pretende ter, sendo vagamente aparentado com ela. No entanto, o seu protector, voluntrio, creio, sendo-lhe a pupila to querida como se filha fosse. Da sua beleza julgar o senhor. Mas a pureza da sua tez e a majestosa mas doce expresso dos seus mansos olhos azuis vo varrer da sua memria as raparigas vestidas de negro da Palestina ou, at, as huris do paraso de Mafoma, seja eu um infiel e um falso filho da Igreja! - Caso a sua clebre beldade - disse o Templrio - seja posta na balana e lhe faltar peso, sabe qual a minha aposta? - O meu colar de ouro - props o Prior - contra dez pipas de vinho de Chian, que so j to minhas como se se encontrassem nas caves do convento, cujas chaves o velho Dennis, o despenseiro, guarda. - Quanto a mim - acrescentou o Templrio -, serei o juiz e nico a ser condenado por meu prprio reconhecimento afirmando que nunca vi donzela to formosa desde que o Pentecostes durava um ano. No ser assim? Prior, o seu colar corre perigo. Us-lo-ei sobre o meu gorjal nas lias de Ashby-de-la-Zouche. - Que o ganhe bem - ripostou o Prior - e use-o vontade. Acredito que me corresponder com verdade, como guerreiro e sacerdote. No entanto, irmo, aceite o meu conselho e d um pouco mais de cortesia sua lngua do que aquela a que os cativos infiis e servos levantinos habituaram. Cedric, o Saxo, se ofendido - e faclimo ofend-lo, um homem, com o devido respeito para a instituio a que pertence o meu alto posto e a santidade de ambos, bem capaz de nos pr no olho da rua, mesmo no meio da noite. E cuidado como olha para a Rowena, de quem cuida com o maior dos zelos. Se lhe criar a mnima suspeita neste ponto, ficamos perdidos. Diz-se que expulsou o prprio filho do seio da famlia s porque levantou os olhos com
afeio para aquela beleza que, parece, somente pode ser adorada a distncia e nunca aproximada, seno com pensamentos conducentes ao altar da Virgem Abenoada. - Bem, parece ter dito bastante - ps o Templrio. - Por uma noite controlar-me-ei e comportar-me-ei como uma dcil donzela. Porm, no que respeita a medos de vir a ser expulso violncia, garanto que eu e os meus escudeiros, com Hamet e Abdalla estaremos prova disso. No duvide que saberemos defender os nossos quartis. No deve deixar as coisas irem to longe - recomendou-lhe o Prior. - Alto! Eis a cruz enterrada do bobo. A noite est to escura que quase nem se vem os caminhos para os escolher. Aconselhou-nos, penso, a voltar esquerda. - Para a direita - disse Brian -, se bem me recordo. - Para a esquerda. Lembro-me de o ver apontar com a espada de pau.
Sim mas como a segurava com a esquerda, apontou-a sobre o peito - teimou o Templrio. Ambos mantinham os respectivos pontos de vista com a obstinao usual nestes casos. Os acompanhantes foram chamados a dar a sua opinio, mas, no, tinham ficado demasiado afastados para escutarem as indicaes de Wamba. Por fim, Brian reparou em algo que lhe escapara naquela escurido toda. - Est ali qualquer coisa a dormir, ou morta, ao p da cruz. Hugo, sacode-a com o cabo da tua lana! Mal a ordem acabara de ser cumprida e j a figura se erguia, dizendo em bom francs: - Quem quer que seja, lembro-lhe ser pouco correcto o perturbar desta forma os meus pensamentos. Apenas lhe queramos perguntar - desculpou-se o Prior - o melhor caminho para Rotherwood, a residncia de Cedric, o Saxo. Eu prprio para l me dirijo - respondeu o estranho - e, se dispusesse dum cavalo, poderia servir-lhes de guia, at porque o percurso um tanto complicado, muito embora o conhea perfeitamente. - Ters os nossos agradecimentos e uma recompensa, amigo informou o Prior -, se nos levares em boa paz at Cedric. Dizendo isto, mandou que um dos seus subalternos passasse para a mula que levava pela arreata, cedendo o seu cavalo ao desconhecido que os ia conduzir. Este tomou uma estrada completamente contrria que Wamba apontara com o objectivo de os enganar. A trilha aprofundava-se mais e mais na mata, atravessando vrios cursos de gua, cujas proximidades se tornavam perigosas, devido aos terrenos pantanosos que os ladeavam, mas que o desconhecido aparentava conhecer quase por instinto, levando-os por terra firme e pelos vaus mais seguros.
Finalmente, fora de cuidados e ateno, conduziu o grupo at uma avenida mais selvagem do que qualquer outra que jamais tivessem visto. A apontou para um edifcio baixo e irregular, que se levantava no extremo dessa avenida. Disse para o Prior: - Acol Rotherwood, a morada de Cedric, o Saxo. Tratava-se de to boas novas para Aymer, cujos nervos no eram dos mais fortes e que muito agitados e alarmados haviam sido, durante a passagem dos riscosos atoleiros, que nem tinha mostrado qualquer curiosidade de pr alguma pergunta ao seu guia. Sentindo-se agora vontade e perto de resguardo, aquela principiou a despertar-se- lhe, pelo que perguntou ao estranho quem era e de onde vinha. - Sou um romeiro recm-chegado da Palestina - foi a resposta. - Bem se podia ter deixado ficar por l, ajudando na recuperao do Santo Sepulcro - comentou o Templrio. - Exacto, reverendo Sr. Cavaleiro - anuiu o romeiro, para quem os atavios do Templrio pareciam perfeitamente familiares -, mas quando aqueles que juraram tomar a Cidade Santa se encontram em vias to longnquas do local das suas obrigaes ningum se surpreender que um pacfico aldeo como eu recuse o trabalho que eles puseram de parte. O Templrio ter-lhe-ia retorquido, irado, se no fosse interrompido pelo Prior, manifestando o seu espanto por o guia, aps uma ausncia to longa, estar ainda to a par das
sendas da floresta. - Nasci para aqui - justificou o guia, precisamente quando chegavam frente da casa de Cedric, uma construo baixa e irregular com vrios ptios e cercados, estendendo-se por uma rea bastante ampla e que, embora o seu tamanho apontasse um proprietrio de teres e haveres, diferia radicalmente dos edifcios altos, ameiados e acastelados onde a nobreza normanda residia e que se haviam tornado o estilo arquitectnico mais comum na Inglaterra. Rotherwood no estava, contudo, desprotegida. Nenhuma habitao, naqueles conturbados tempos, o poderia estar, sob o risco de ser saqueada e incendiada de pronto. Um fundo fosso ou vala, cheio de gua vinda da ribeira prxima, rodeava-a; ao correr das suas bordas havia uma estacada, ou palissada, dupla, de troncos aguados, que a mata ao lado fornecera. Do lado poente via-se uma entrada cortando a cerca exterior e comunicando, atravs duma ponte levadia, com outra abertura semelhante no lado de dentro. Tinham sido tomadas algumas precaues quanto a estes acessos, pois ficavam sob a alada de salientes em ngulo, a partir dos quais facilmente seriam flanqueados com arqueiros e fundibulrios. Ante esta entrada, o Templrio soprou com fora na sua trompa, j que a chuva, que ameaara, caa agora em fora.
Captulo III Ento - oh, triste alvio! - da glida costa que escuta o mar Germnico rugir cavo e forte velo o louro e zarco saxo. Liberdade de Thomson
Num salo cujo p-direito era desproporcionado em relao aos seus enormes comprimento e largura, uma longa mesa, feita de tbuas de carvalho quase em bruto, pois, aps retiradas da floresta, nem polidas haviam sido, estava posta para a refeio do fim da tarde de Cedric, o Saxo. O tecto era de vigas e barrotes, separado do cu por pranchas e colmo apenas. Nos dois extremos da sala ardiam imensas fogueiras, mas, como as chamins eram de rudimentar construo, deixavam vir para dentro tanto fumo como o que ia para fora. Deste modo, a fuligem recobrira o travejamento daquele compartimento baixo com espessa camada negra. Dos lados pendiam armas de caa e de guerra e, em cada um dos cantos, portas de dois batentes davam passagem para outras dependncias. Toda a restante equipagem da manso clamava a rude simplicidade saxnica, que para Cedric era ponto de honra manter. O soalho era composto de terra e cal, duro, to batido como o das modernas eiras. Cerca de um quarto da sala era mais ou menos trinta centmetros mais elevado do que o restante, formando uma seco reservada aos principais membros da famlia e seus visitantes distintos. Para eles havia uma mesa, coberta com uma rica toalha escarlate atravessando a plataforma. Perpendicularmente a esta, e pelo meio da parte mais baixa da sala, corria outra mesa, de menos altura e muito mais comprida, destinada s refeies dos inferiores. O todo
lembrava a letra T ou algumas das mesas de jantar, com a mesma disposio, que podem ainda ver-se em alguns dos colgios mais antigos de Oxford e Cambridge. No estrado, um dossel recobria as macias cadeiras e bancos de carvalho trabalhado, protegendo um pouco as pessoas de categoria, ocupando aqueles lugares de relevo, do tempo, principalmente da chuva, que, em alguns pontos, atravessava o colmado. As paredes da poro mais elevada ostentavam tapearias e cortinas e no cho
estendia-se um tapete, todos adornados com ingnuas tentativas de bordado, faustosos e de cores vivas. A mesa inferior no era recoberta e as paredes mostravam-se nuas e o cho trreo sem qualquer tapete. A mesa no tinha toalha alguma e bancos pesados substituam as cadeiras. No centro da mesa superior havia ainda duas cadeiras maiores que as demais, destinadas ao senhor e senhora da casa, que ali presidiam hospitaleiramente. Dessa mesma posio advinha o ttulo honorfico Saxo, que significava "os Compartilhadores do Po". A cada uma destas cadeiras fora acrescentado um escabelo, talhado de forma muito curiosa, com incrustaes de marfim como sinal de distino especial. Um daqueles assentos ocupava-o no momento Cedric, o Saxo, que, embora a sua posio no fosse mais do que a de fundirio (1), ou, como os Normandos diziam, um rendeiro livre, mostrava pela interrupo da sua refeio uma impaciente irritao que melhor ficaria a um vereador vitalcio de ontem ou de hoje. Tudo indicava no rosto deste proprietrio ser ele de temperamento franco, mas arrebatado e colrico. Ainda que de estatura mediana, tinha ombros largos e membros possantes de quem est habituado s exigncias da guerra e da caa. Cara larga, grandes olhos azuis, feies abertas e francas, bons dentes, cabea bem feita, enfim, um conjunto de expressivo bom humor que to frequentemente acompanha maneiras repentinas e arrebatadas. Nos olhos brilhavam-lhe o orgulho e o zelo, j que toda a sua vida se passara asseverando os seus direitos, constantemente sujeitos a serem pisados, donde derivava a sua disposio, pronta, ardente e resoluta e sempre alerta em relao aos acontecimentos. O longo cabelo louro, dividido a meio, caa- lhe at aos ombros, sem mostrar muitas cs, se bem que devesse roar os sessenta anos. Vestia um gibo verde-musgo, com veiros no pescoo e punhos, ou seja, peles de qualidade inferior do arminho, possivelmente de esquilo, por abotoar e cobrindo uma veste justa escarlate. Usava cales que lhe deixavam as pernas a descoberto da parte de cima dos joelhos em diante. Calava sandlias iguais s dos aldees, mas de melhor qualidade e prendendo-se com fivelas douradas. Nos braos carregava braceletes de ouro e ao peito um colar do mesmo metal. cinta, uma correia belamente ornamentada com pregos, qual se prendia uma afiada espada de dois gumes, caindo quase perpendicularmente ao seu lado. Atrs de si, uma capa e um gorro de tecido tambm escarlate, debruados de pele e bastante bordados, prontos a serem envergados, completavam a roupagem *1.. Thane. ttulo saxo de nobreza menor. (N. do T.)
do fazendeiro. Havia ainda um chuo curto e de ponta de ao brilhante e larga, encostada ao espaldar da cadeira, que lhe podia servir, nas suas deambulaes, de bordo ou de arma, conforme as ocasies. Vrios criados, cujas roupas iam desde a riqueza das do patro at s mais grosseiras e simples, como as de Gurth, o porqueiro, aguardavam ordens do dignitrio saxo. Dois ou trs criados de mais categoria conservavam-se no palanque atrs do amo. Todos os outros se encontravam na parte mais baixa da sala. Outras criaturas estavam presentes, mas eram de espcie diferente: dois ou trs galgos rios, do gnero que se emprega na caa do lobo e do veado, outros tantos sabujos grandes, ossudos, de pescoos grossos, cabeas grandes e orelhas pontiagudas, e um ou dois ces menores, denominados terriers, que esperavam impacientemente a ceia, mas, com a esperteza prpria da sua raa, sabiam no dever romper o estado de aborrecimento do seu dono, que certamente se serviria do basto branco que tinha mo para meter na ordem os seus dependentes de quatro patas. Somente um grisalho mastim, com o -vontade dum favorito mimado, ousava chamar a ateno pousando a cabea enorme e peluda no joelho do dono e empurrando-lhe a mo com o focinho. Mesmo este foi enxotado com uma ordem seca: - Para baixo, Balder, para baixo! No estou para brincadeiras. Na realidade, Cedric, tal como mencionmos, no estava muito bem disposto. Lady Rowena, que sara para assistir a uma missa tardia numa igreja distante, acabara de chegar e estava a mudar de vesturio, pois molhara-se com a tempestade. No tinha ainda notcias de Gurth e da vara, que h muito deviam ter voltado da floresta, o que, dada a instabilidade de ento, poderia muito bem significar ser o atraso devido a um ataque de bandidos que pululavam nas matas das cercanias, ou a violncias de qualquer baro vizinho cujas conscincia e fora fizessem esquecer os direitos de propriedade. A verdade que grande poro da riqueza dos proprietrios saxes, especialmente daqueles vivendo em zonas florestadas, era constituda por numerosas varas de porcos, que com facilidade arranjavam alimento por ali. Parte estes motivos de preocupao, o senhor saxo tambm sentia a falta do seu bobo preferido, Wamba, cujas piadas serviam quase como tempero para as suas refeies da noite, com quem costumava tambm fazer grandes beberragens de cerveja e vinho. A acrescentar a tudo isto, Cedric nada comera desde o meio-dia e a sua hora da ceia j ia longe, motivo de agastamento dos senhores de provncia antigos e modernos. O seu desagrado emergia sob a forma de frases soltas, parte murmuradas, parte dirigidas aos criados que o rodeavam, sobretudo ao escano que, de tempos a tempos, lhe estendia como paliativo uma taa de prata cheia de vinho.
- Que atrasar Lady Rowena? - Est apenas a trocar de touca - informou uma aia com a sem-cerimnia que as criadas particulares das senhoras
normalmente respondem, mesmo agora, aos patres. - O senhor no quereria que ela viesse para a mesa de capuz e mantilha... Alm de que no h senhora no distrito que se arranje mais depressa do que a minha ama. Este inegvel argumento provocou um "ufa!" aquiescente por parte do Saxo, que acrescentou: - Oxal a sua devoo a leve a escolher bom tempo para a sua prxima visita Igreja de So Joo... Mas, com mil diabos! continuou voltando-se para o copeiro e elevando o tom, feliz por ter conseguido um novo campo para dar largas sua indignao -, que prender Gurth tanto tempo l fora? Suponho que algo de mau lhe aconteceu. Costuma ser um fiel e cauteloso escravo de trabalho, pensando eu, mesmo, torn-lo num dos meus guardas(2). Oswald, o escano, lembrou respeitosamente "que mal passara uma hora sobre o toque de recolher", desculpa infeliz, j que bulia num tpico que sempre feria ouvidos saxes. - Raios levem - bradou Cedric - o toque de recolher, o bastardo, tirano que o inventou e o escravo sem alma que, em saxo, o menciona a outro saxo! O toque de recolher! - Parou, para imediatamente prosseguir: - Ai, o toque de recolher, que obriga os homens decentes a apagarem os seus fogos para que os larpios e os ladres possam melhor trabalhar s escuras! O toque de recolher! O Reginald Front-de-Boeuf e o Philip de Malvoisin sabem servir-se dele to bem como o prprio Guilherme, o Bastardo, e todos os normandos que combateram em Hastings sabiam. J sei que vou ouvir que a minha propriedade foi varrida para se salvarem da fome bandidos que se no conseguem sustentar seno custa de furtos e roubos. O meu fiel escravo foi assassinado, os meus bens foram predados e... Wamba!? Onde est o Wamba? Quem foi que me disse que ele sara com o Gurth? Oswald confirmou-lho. - Bonito! Isto vai de mal a pior! Foi tambm raptado, aquele louco saxo, para atender qualquer senhor normando. Doidos somos ns todos servindo-os e dando-lhes motivos para se rirem e troarem de ns como se fssemos estpidos de nascena. *2. Cnichts no original, tal como parece que os saxes designariam uma classe de criados militarizados, livres por vezes, servos outras, mas sempre acima dos domsticos comuns, fosse na corte, fosse na casa de vereadores vitalcios ou de nobres. Porm, como o termo chicht, ora grafado night, entrou no idioma ingls como equivalente da palavra normanda chevalier, achei por bem empreg-lo com o sentido mais antigo para evitar confuses. (N. do T.)
Mas eu serei vingado - disse, saltando da cadeira, furioso com a hipottica ofensa; e, pegando no chuo, continuou: - vou apresentar queixa ao Conselho Maior, tenho amigos, tenho seguidores... de homem para homem desafiarei o normando para a lia. Que aparea com as chapas, a malha e tudo mais que transforma a covardia em arrojo. J enfiei um chuo destes atravs duma barreira trs vezes mais forte do que o escudo dele! Talvez me pensem velho, mas vero que, embora s e sem filhos, o sangue de Hereward ainda corre nas veias de
Cedric... Ah, Wilfred, Wilfred! - exclamou em tom mais alto -, tivesses controlado a tua paixo irracional e o teu pai no teria ficado, nesta idade, como o carvalho solitrio que abre os seus alquebrados e desprotegidos braos contra o furor da tempestade. - Estas consideraes pareceram transformar-lhe a raiva em tristeza. Pousando a lana, tornou ao seu lugar, aparentando absorver-se em melanclicos pensamentos. O meditar de Cedric foi subitamente interrompido pelo toque de trompa, ao qual responderam, latindo e ladrando, os ces da sala, logo acompanhados por mais vinte ou trinta outros dispersos pela residncia. Foi preciso muito trabalho com o basto branco e esforos dos criados at que o clamor canino se abafasse. - Ao porto, gente! - ordenou apressadamente o Saxo logo que o tumulto abrandara o suficiente para se poder fazer escutar. - Vejam que novas nos traz aquele troar. Ser para nos anunciar alguma desgraa ou roubo nas minhas terras, como penso?! Regressando em coisa de trs minutos, um guarda anunciou "que o prior Aymer de Jorvaulx e o bom cavaleiro Brian de Bois Guilbert, comandante da corajosa e venervel Ordem dos Cavaleiros do Templo, com uma pequena comitiva, pediam acolhimento e hospedagem por uma noite, a fim de descansarem na sua viagem para um torneio a efectivar-se perto de Ashby-de-la-Zouche dentro de dois dias". - O Aymer, o prior Aymer! O Brian de Bois-Guilbert! resmungou Cedric. - Ambos normandos. Mas, normando ou saxo, a hospitalidade de Rotherwood no se pode alterar. So bem-vindos, j que quiseram vir parar aqui, embora mais bem-vindos seriam se prosseguissem a sua viagem. Porm, no vale a pena protestar contra a ddiva duma noite de abrigo e duma refeio. Como hspedes, at os Normandos retm a sua insolncia. Vai, Hundebert - comandou para uma espcie de mordomo que estava atrs dele com uma varinha branca na mo -, leva seis criados contigo e conduz os caminhantes para a ala de hspedes. Cuida-lhes dos cavalos e das mulas e v que nada lhes falte. D-lhes roupas frescas se precisarem, acende-lhes uma fogueira, oferece-lhes gua para se lavarem, vinho e cerveja para beberem. Pede tambm aos cozinheiros que lhes preparem, to depressa quanto puderem, uma ceia, que servirs quando esses desconhecidos estiverem prontos.
Diz-lhes, Hundebert, que Cedric s no vai em pessoa saud-los porque jurou nunca dar mais do que trs passos fora do tablado da sala para cumprimentar algum que no tenha sangue real saxo. Segue! Quero que sejam bem tratados. Que no se d p ao seu orgulho deixando-os criticar a pobreza e avareza saxnicas. O mordomo saiu com os seus menores para cumprir as ordens do amo. - O prior Aymer! - repetiu Cedric olhando para Oswald. - O irmo, se no estou em erro, de Giles de Mauleverer, agora Lorde de Middleham? Oswald assentiu com toda a cortesia. - O irmo ocupa o lugar e usurpa o patrimnio de algum de raa melhor, a raa de Ulfgar de Middleham. Mas qual o senhor normando que o mesmo no faz? O Prior , dizem, um
padre jovial e descontrado, que gosta mais do seu copo e da trompa de caa do que de sinetas e livros de oraes. Bem, que venha, pois ser bem recebido. Como disseste que se chamava o templrio? - Brian de Bois-Guilbert. - Bois-Guilbert! - repetiu sempre no tom Cedric, meditabundo e meio a ralhar a que o viver lado a lado com os seus dependentes o habituara a empregar e que mais parecia o de algum falando consigo mesmo do que com os demais sua volta. - Bois-Guilbert! Esse nome est largamente espalhado, quer por bem, quer por mal. Consta ser mais valente do que os mais bravos da sua ordem, mas manchado com os vcios do costume: orgulho, arrogncia, crueldade e luxria. Um homem de corao empedernido que nada teme na Terra e no Cu. Assim contam alguns guerreiros vindos da Palestina. Bom, por uma noite ser bem-vindo. Oswald, tira o batoque dum pipo de vinho antigo, pe-lhes na mesa o melhor hidromel, a cerveja mais forte, o amorado mais rico, a cidra mais efervescente e o pigmento mais bem-cheiroso. Enche os maiores pichis(3). Os Templrios e os abades gostam de bons vinhos e em quantidade. Elgitha, faz saber a Lady Rowena que no a esperamos hoje na sala, a no ser que seja de sua especial vontade aqui vir. - Mas ser mesmo de sua especial vontade atalhou Elgitha muito prontamente -, pois sempre deseja conhecer as ltimas novidades da Palestina. Cedric lanou sobre a atrevida aia um imediato olhar de ressentimento. Porm, Rowena e tudo a ela respeitante eram imunes sua ira. Apenas replicou: *3.. Eram estas as bebidas dos saxes, segundo nos informa o Mr. Turner. O amorado (morat) preparava-se com mel, ao qual se acrescentava sumo de amoras; pigmento (pigment) era um vinho com especiarias e tambm adoado com mel. Nenhuma das restantes necessita de ser explicada. (N. do T.)
- Silncio, menina. A tua lngua no respeita a tua discrio. Transmite a minha mensagem e deixa-a decidir. Aqui, ao menos, ainda manda a descendente de Alfredo como princesa. Elgitha deixou a sala. - A Palestina! - repetiu o Saxo. - A Palestina! Quantos ouvidos se abrem a escutar contos que cruzados dissolutos e hipcritas peregrinos trazem daquela terra funesta! Tambm eu gostaria de perguntar, tambm eu gostaria de indagar e ouvir, com o corao amargurado, as fbulas que vagabundos velhacos inventam para conseguirem hospitalidade. Mas, no! O filho desobedeceu-me e j no mais meu e quero tanto saber do seu destino como do de milhes de outros que puseram a cruz ao ombro, partindo a correr para excessos e assassnios, a que chamam o cumprimento da vontade de Deus. Carregou o sobrolho e, por instantes, fixou o olhar no cho, para logo o levantar quando as portas do fundo se abriram de par em par para, precedidos pelo mordomo com a sua vareta e quatro criados carregando tochas acesas, os hspedes entrarem.
Captulo IV Ovelhas hirsutas cabras pelos porqueiros abatidas. Do robusto novilho, no mrmore, as carnes cadas luz da fogueira distribuindo entre si bocados, Por copos cheios de rseo vinho at s bordas, acompanhados. parte. Ulisses compartilha da refeio Em mesa de trs ps e ignbil prancho O prncipe manda... Odisseia, Livro XXI O prior Aymer aproveitara a oportunidade que lhe fora concedida para substituir o seu manto de viagem por outro de tecido ainda mais valioso e colocar uma complicadamente bordada capa de asperges. Alm do anel de sinete de ouro macio, indicativo da sua posio eclesistica, os seus dedos, contrariando os cnones, estavam carregados de gemas. As suas sandlias eram do mais macio couro que se podia importar de Espanha, a barba aparada at ao mnimo permitido pela Ordem e a coroa, rapada, coberta por um gorro igualmente muito bordado. Tambm o aspecto do guerreiro templrio se modificara, e, embora no to enfeitado, o seu trajar era to rico como o do companheiro e o seu porte muito mais imponente. Trocara a cota de ma lha por uma tnica de escura seda prpura, guarnecida de peles, sobre a qual, em amplas dobras, caa o seu imaculado manto branco. A cruz de oito pontas da sua ordem sobressaa no manto de veludo negro. O barrete alto j no lhe carregava no sobrolho, que, no momento, era ensombrado por caracis negros, asa de corvo condicentes com a sua cor trigueira. Nada podia ser mais gracilmente majestoso do que o seu pisar e modos, no fora mostrarem tanta altivez, facilmente tornada por quem sempre obedecido sem discusso. A estes dois dignos personagens seguiam-se os seus subordinados e, ainda mais humildemente recuado, o seu guia, cuja figura nada tinha de notvel parte os habituais atavios dos peregrinos; uma capa ou manto de sarja preta envolvia-lhe todo o corpo, sendo o seu formato o da de um hussardo actual, igualmente com dobras para proteger os braos, e a que chamavam esclavnica, ou esclavina.
Rudes sandlias presas por nagalhos cobriam-lhe os ps nus, um chapu de aba larga a que se prendia uma concha e um bordo, a ponta ferrada e uma palma no topo, completavam o trajar daquele romeiro. Seguia, modestamente, no fim do grupo que entrava na sala e, vendo que a mesa baixa quase no chegava para o pessoal de Cedric e comitiva dos convidados, imediatamente se afastou para quase por debaixo duma das grandes chamins, aparentando secar-se at que a sada de algum lhe proporcionasse um lugar, ou que a hospitalidade de algum servial lhe trouxesse alimentos at ao ponto onde se recolhera. Cedric levantou-se para receber os hspedes, com um ar de
hospitalidade digna, e, saindo do estrado, deu trs passos na sua direco, estacando a. - Lamento - disse -, reverendo prior, que a minha promessa -,me proba de avanar mais neste cho dos meus pais, mesmo para receber hspedes to distintos como vs e este bravo guerreiro do Santo Templo Sagrado. O meu criado j vos explicou a razo de ser desta minha aparente descortesia. Queira Deus tambm que me desculpeis o exprimir-me na minha lngua nativa, na qual peo vos expressais, caso dela tenhais conhecimento. Caso contrrio, domino o normando suficientemente para entender o que disserdes. - Os votos - sugeriu o abade - quebram-se, digno funcionrio, melhor diria, digno rendeiro-livre, ainda que esse ttulo j esteja antiquado. Os votos so os laos com que nos amarramos ao cu, as cordas prendendo os sacrificados ao altar, sendo, pois como j afirmei, desligveis e susceptveis de serem postos de parte, a no ser que a Santa Madre Igreja em contrrio se pronuncie. Quanto a linguagens, de boa vontade me aterei quela que usava a minha respeitvel av, Hilda de Middleham, que morreu com fumos de santidade quase to intensos, se que assim o poderemos dizer, como os da sua homnima e abenoada Santa Hilda de Whitby, cuja alma Deus guarde! Mal o Prior terminara a sua conciliatria alocuo, j o seu companheiro anunciava curta e enfaticamente: - Falo sempre francs, a lngua do rei Ricardo e da sua nobreza, mas percebo ingls bastante para me comunicar com as gentes da terra. Cedric dardejou-lhe um daqueles olhares rpidos e ardentes que comparaes entre os dois povos raramente deixavam de acender. Contudo, recordando-se dos seus deveres de anfitrio, apagou quaisquer sequentes mostras de agastamento e, com um movimento da mo, sugeriu aos seus visitantes que ocupassem dois lugares um pouco mais baixos do que o seu, mas prximos de si, fazendo ao mesmo tempo sinal para que a refeio se iniciasse. Enquanto os criados se apressavam a executar o seu mandado, viu que Gurth e o seu camarada Wamba chegavam.
- Mandem-me esses dois mandriolas aqui acima - disse, sem pacincia, acrescentando logo que ambos se acercaram do palanque: - Como , viles? Que os deteve at to tarde l fora? Trouxeste a bom guardo o teu cargo, Gurth, ou deixaste-o para os ladres e salteadores? - A vara est a salvo, O que espero lhe apraza - informou Gurth. - Mas no me apraz, velhaco - ripostou-lhe Cedric -, o ter estado a supor o contrrio durante duas horas e ter tido de imaginar como me vingaria dos agravos que os meus vizinhos, afinal, no me fizeram. Aviso-te que, para a prxima, grilhes e priso te ensinaro melhor. Gurth, conhecendo o temperamento irritvel do amo, nenhuma escusa apresentou, mas o bobo, que jogava na tolerncia de Cedric para com ele, devida aos privilgios dos loucos, respondeu pelos dois: - Na realidade, tio Cedric, esta noite o senhor no se mostra nem sbio, nem razovel. - O qu, senhor? - replicou-lhe o patro. - Irs para a casota
do porteiro apreciar o sabor da disciplina, se prossegues com essas tontarias. - Que o seu saber me diga primeiro - continuou Wamba - se ser justo e razovel punir algum pelas faltas de outrem. Claro que no, doido - aquiesceu Cedric. - Ento por que pr algemas no Gurth quando a culpa foi do Fangs? Atrevo-me a jurar-lhe que no perdemos nem um instantinho pelo caminho, depois de a vara ter sido junta, o que o Fangs s conseguiu depois de terem soado as vsperas. - Enforca o Fangs, ento - disse Cedric virado para o porcario. - Se o erro foi dele. E arranja outro co em troca. - Por favor, tio - prosseguiu o bufo -, isso no seria mais do que fazer justia da vesga, pois a culpa no do Fangs, que coxo e lhe custa reunir a vara, mas de quem lhe decepou as unhas da frente, operao sobre a qual o bicho nem sequer consultado foi e muito menos ouvido. - Quem ousou mutilar assim um animal pertencente a um servo meu? - quis o Saxo, cuja fria se acendia, saber. - Valha-nos Deus. Foi o velho Hubert - esclareceu Wamba -, o couteiro de Sir Phillip de Malvoisin. Apanhou o Fangs a laurear na floresta e acusou-o de perseguir os veados, contrariando os direitos do seu senhor, como usufruidor do local. - Que o demo leve o Malvoisin - praguejou o Saxo - e o seu couteiro tambm! Ensinarei a ambos que a mata j no est em regime florestal, de acordo com a Carta das Florestas. Mas acabemos com isto. Ocupa, patife, o teu lugar. E tu, Gurth, procura outro co; e, se o guarda-caa pretender tocar-lhe
que seja, garanto-te que lhe tiro a pontaria com o arco para sempre I Que me chamem covarde se no lhe cortar o indicador da mo direita! Nunca mais esticar qualquer corda de arco. perdoai-me, respeitveis hspedes. Sou incomodado por cercos somente comparveis aos infiis da Terra Santa, Sir Cavaleiro. Porm, o vosso simples repasto est j ao vosso dispor para vos refazer da rdua caminhada que haveis feito. De forma alguma necessitavam as iguarias na mesa de desculpas por parte do senhor da casa. Havia carne de porco, preparada de diferentes maneiras, na parte inferior, assim como criao, veado, cabrito e lebre e ainda peixes diversos, enormes pes e smeas e vrias confeies base de frutas e mel. As peas de caa menores, que eram muitas, no eram servidas em travessas, mas sim em curtos espetos que pajens e criados ofereciam aos convivas, que retiravam quantas lhes apetecessem. Ao lado das pessoas de categorias havia taas de prata e chavelhos de beber junto dos inferiores. Ia o repasto iniciar-se quando o mordomo anunciou, erguendo o seu basto: - Abra-se lugar para Lady Rowena. Duma porta lateral, atrs da mesa do banquete, apareceu Rowena, seguida de quatro criadas. Cedric, embora surpreso e, qui, no muito agradavelmente, pela sua apario em pblico, acorreu a receb-la e a acompanh-la, cheio de atenes cerimoniosas, at ao lugar elevado sua direita, o assento correspondente ao da dona da casa. Todos se ergueram chegada dela, que, agradecendo a cortesia com uma muda saudao, graciosamente se deslocou para a mesa.
- No usarei nenhum colar seu no torneio. O vinho de Chian seu? - No lhe tinha dito? - sorriu-lhe o Prior. - Mas domine o seu xtase. O fundirio tem os olhos em cima de si. No prestando ateno a esta recomendao, acostumado como estava a agir de acordo com o impulso imediato dos seus desejos, Brian de Bois-Guilbert conservou os olhos presos beldade saxnica, talvez mais perturbante ainda para a sua imaginao por diferir completamente das sultanas levantinas. Maravilhosamente bem proporcionada, Rowena era alta, mas no tanto a ponto de chocar pelo seu tamanho. A sua tez era requintadamente alva sem, devido ao nobre porte da sua cabea e feies, a insipidez de que as mulheres bonitas muito brancas, s vezes, sofrem. Os seus claros olhos azuis, realados por elegantes sobrancelhas suficientemente demarcadas para darem expresso testa, mostravam-se capazes de se aquecerem ou derreterem, ordenar ou suplicar Se a meiguice era o aspecto mais natural da sua fisionomia, era evidente que, nesta altura, pelo exerccio da sua superioridade usual e pela recepo duma homenagem geral,
tinha tomado uma forma mais altiva que acrescentava e realava o que a natureza lhe concedera. o cabelo abundante, entre o castanho e o linho, fora penteado, talvez pela aia, de modo gracioso e artstico, em anis. Estes anis, decorados com pedras preciosas a todo o comprimento, anunciavam a nobreza e a classe da donzela. Uma corrente de ouro com um pequeno relicrio, de ouro tambm, pendia-lhe ao pescoo. Trazia braceletes nos braos despidos. O seu fato interior e a mantilha eram de seda verde-mar-plido; sobre ele envergava um longo vestido muito comprido chegando ao cho, com amplas mangas que mal passavam dos cotovelos. Este vestido era carmesim e feito de finssima l. Um vu de seda e ouro que se lhe prendia podia, a gosto da portadora, cobrir o rosto maneira espanhola ou servir como leno em volta dos ombros. Quando Rowena se apercebeu do ardor com que o Templrio a remirava, com olhos que mais pareciam brasas remexendo- se dentro de uma caverna, tapou com decoro a face, demonstrando assim seu desagrado pela atitude. Cedric percebeu o movimento e o porqu dele. - Sr. Templrio, os rostos das nossas donzelas saxnicas apanham to pouco ou nenhum sol que no aguentam as miradas fixas dum cruzado. - Se ofendi algum - desculpou-se Sir Brian -, peo perdo... quero dizer, peo perdo a Lady Rowena, j que a minha humildade no me deixa baixar mais ainda. - Lady Rowena - atalhou o Prior - castigou-nos a todos punindo o atrevido do meu amigo. Esperemos que seja menos cruel com o esplndido cortejo que todos vamos encontrar no torneio. - A nossa ida l - disse Cedric - ainda incerta. No aprecio essas fatuidades desconhecidas dos meus antepassados, quando a Inglaterra era livre. - Esperemos - seguiu o Prior - que a nossa companhia os leve a deslocarem-se tambm. Quando as estradas so inseguras, a escolta de Sir Brian de Bois-Guilbert no de desprezar. - Sr. Prior - respondeu-lhe o Saxo -, onde quer que seja que me desloque nesta terra, at hoje, com a ajuda da minha espada
e dos meus fiis seguidores, nunca precisei de qualquer outro auxlio. Nesta ocasio, se quisermos ir at Ashby-dela-Zouche, f-lo-emos em conjunto com o meu nobre vizinho e conterrneo Athelstane de Conningsburgh, caravana que enfrentar quaisquer bandidos e inimigos feudais que nos possam desafiar. Levanto, Sr. Prior, esta taa de vinho, que espero lhe saiba bem, agradecendo-lhe a sua gentileza. Caso siga rigorosamente as leis monsticas - prosseguiu -, preferindo uma bebida de leite acidulado, peo-lhe que as no rompa por minha causa.
- No - riu o Prior. - Somente dentro da abadia nos confinamos ao lac dulce ou ao lac acidum. C fora seguimos as regras do mundo, pelo que correspondo ao seu brinde com este generoso vinho, deixando bebidas mais fracas para o meu irmo leigo. - Quanto a mim - informou o Templrio enchendo a sua taa, beberei wassail(1) sade da bela Rowena, uma vez que, desde que a sua homnima trouxe o nome para Inglaterra, ningum mais houve to digno de tal tributo. Pela minha f, at perdoo ao infeliz Voritern(2). mesmo que as razes dele fossem metade das que vemos. o ter deixado afundarem-se a sua honra e o seu reino. - Poupe-me as lisonjas, Sr. Cavaleiro - disse Rowena, com toda a dignidade e continuando velada -, ou terei de o castigar obrigando-o a dar-nos as ltimas notcias da Palestina, assunto muito mais agradvel para os ouvidos ingleses do que os cumprimentos a que a sua educao francesa o habituaram. - Tenho pouco de importante para contar, senhora respondeu-lhe Sir Brian de Bois-Guilbert -, exceptuando o poder confirmar-lhe os boatos de trguas com Saladino. Aqui interrompeu-o Wamba, que tomara lugar numa cadeira com umas orelhas de burro nas costas situada dois passos atrs do assento do amo, que, de vez em quando, lhe passava bocados de comida do seu prato, que o bobo repartia com os ces de que mais gostava entre os muitos que por ali havia. Wamba, com uma mesinha frente, havia metido as bochechas para dentro, ficando com a queixada a parecer um quebra-nozes e os olhos, se bem que semicerrados, atentos a todas as oportunidades para fazer as suas maluquices perfeitamente autorizadas. - Essas trguas com os infiis - exclamou sem ligar ao facto de estar a interromper o imponente Templrio - fazem-me velho! - Anda, maroto, explica porqu - soltou Cedric com expresso antecipadamente receptiva piada em resposta. - Porque - explicou Wamba - no meu tempo j assisti a trs, todas a deverem durar cinquenta anos, pelo que, fazendo contas, j devo ter, pelo menos, cento e cinquenta anos de idade. - Asseguro-te que no morrers de velho - contraps-lhe o Templrio, reconhecendo-o agora do encontro na floresta. Salvar-te-ei de todo o tipo de morte, excepto a violenta, se continuares a dar indicaes erradas aos viandantes, como fizeste, esta noite, ao Prior e a mim prprio. - Que ouo, senhor? - perguntou Cedric. - Enganar viajantes? Tenho de te mandar chicotear, pois s to patife como tolo. *1.. Bebida feita com mas, acar e cerveja. (N. do T.) 2.. Chefe breto que, tendo chegado a dominar a Inglaterra,
- Rogo-te, tio - pediu o bobo -, que deixes a minha loucura justificar as minhas patifarias. Apenas confundi o lado direito com o lado esquerdo. Alm disso, creio que loucura maior pedir a um maluco que sirva de guia. A conversa foi cortada pela entrada dum pajem do porteiro que comunicou estar ao porto um estranho implorando admisso e abrigo. - Deixa-o entrar - disse-lhe Cedric -, seja ele o que ou quem for. Numa noite destas, com a tempestade a bramir, em que at os animais ferozes se juntam aos mansos para, juntos, pedirem proteco ao homem, seu mortal inimigo, contra a fria dos elementos, no se recusa hospitalidade. Que as suas necessidades sejam cuidadosamente atendidas. Trata disso, Oswald. O criado deixou a sala para executar as ordens do senhor.
Captulo V No ter olhos um judeu? No ter mos, rgos, dimenses, sentidos, afeies, paixes? No se alimentar com a mesma comida, no se ferir com as mesmas armas, no estar sujeito s mesmas doenas, que se curaro pelos mesmos processos, no se aquecer e arrefecer com os mesmos Veres e Invernos como os cristos? O Mercador de Veneza Oswald, regressando, segredou ao ouvido do senhor: - um judeu chamado, diz, Isaac de Iorque. Ser prprio traz-lo para a sala? - Encarrega Gurth de o fazer - sugeriu Wamba com o habitual atrevimento - Ningum ser mais indicado para o servio de conduzir um judeu do que um porqueiro. - Santa Maria! - disse o abade benzendo-se -, um judeu descrente aqui, nesta assembleia? - Um co dum judeu - rosnou o Templrio -, junto dum defensor do Santo Sepulcro! - Pela minha f - comentou Wamba -, parece que os Templrios amam mais a herana dos judeus do que a sua presena. - Por favor, respeitveis hspedes - cortou Cedric -, a minha hospitalidade no pode ser condicionada pelos vossos gostos. Se o Cu tem aguentado toda a nao desses orgulhosos descrentes por mais anos do que algum sabe contar, tambm ns poderemos suportar a presena dum por umas horas. No obrigarei, contudo, ningum a conversar com ele ou sequer a servi-lo. Dar-lhe-ei mesa e comida em separado... a no ser sorriu - que os estrangeiros de turbante o queiram a seu lado. - Sr. Rendeiro, - dirigiu-se-lhe o Templrio -, os meus escravos sarracenos so muulmanos fervorosos, nada querendo nem com cristos, nem com judeus.
- Na realidade - meteu-se Wamba -, no vejo onde que os adoradores de Mafoma e Tervagante(1) so superiores a um povo que j foi o eleito do Cu. *1.. Nome duma feroz divindade adorada anteriormente a Maomet pelos Sarracenos. (N. do T.)
- Ficar ao p de ti, Wamba - avisou Cedric. - Um louco e um incrdulo ligam bem, - O louco - respondeu Wamba erguendo um pedao de presunto -, levantar uma muralha contra o incrdulo. - Silncio - recomendou Cedric. - Ele a vem. Introduzido na sala sem quaisquer cerimnias e avanando, hesitante, a medo e com muitas vnias, um homem velho, magro e alto, mas no encurvado ainda, aproximou-se da mesa baixa. As suas feies eram vivas e regulares, o nariz aquilino e os olhos negros e penetrantes; a testa alta e engelhada, o cabelo e a barba grisalhos. Seria um bonito homem se s caractersticas fisionmicas da sua raa, detestada e vista como grosseira pelo preconceito de alguns crentes e perseguida pela ambiciosa e rapace nobreza, esse mesmo dio e perseguies no tivessem incutido, e muito, para o mnimo se dizer, um ar de mesquinhez desagradvel. O traje do judeu, muito maltratado pelo temporal, consistia num simples capote de cor ferrugenta, com vrias dobras, posto sobre uma tnica violeta-escura. Calava grandes botas debruadas com pele e usava um cinto sustentando uma faca e uma caixa contendo material para escrever. Vinha desarmado. Na cabea, um gorro. amarelo, do modelo especial que a sua gente tinha de trazer para se distinguir dos cristos, que, humildemente, retirou ao entrar. A recepo que lhe foi dada na sala de Cedric, o Saxo, satisfaria os mais preconceituados dos adversrios das tribos de Israel. O prprio Cedric se limitou a um frio aceno, acusando-lhe os salamaleques, e a um gesto para que se acomodasse na ponta extrema da mesa, onde, apesar disso, ningum lhe abriu lugar. Pelo contrrio, pois, medida que ia percorrendo, com olhar tmido e suplicante, a longa linha de criados do Saxo, estes iam alargando os ombros e concentradamente comendo para que no conseguisse stio. Os subalternos do abade persignaram-se com pio horror e at os sarracenos infiis, quando Isaac se aproximou deles, confiaram indignados as suas, levando as mos aos punhais, como que dispostos a livrarem-se fora da contaminao que a sua presena pudesse acarretar. Provavelmente, os mesmos motivos que haviam levado Cedric a abrir as portas a este filho dum povo enjeitado tambm o levassem a obrigar os seus criados a receb-lo com melhores maneiras. S que o abade iniciara, nesse preciso momento, uma interessante conversa acerca da raa e qualidades dos seus mastins favoritos, troca de impresses que no interromperia nem por assunto muito mais importante do que a ida dum judeu para a cama sem cear. Vendo Isaac estacado como um intocvel naquela companhia, tal como o seu povo entre as demais naes, procurando, em vo, um gesto de boas-vindas ou um poiso onde descansar, o peregrino, junto da chamin, compadecendo-se
- Velho. As minhas roupas esto secas e a minha fome saciada, enquanto tu ests molhado e faminto. Dizendo isto, ajustou as roupas, atiou a fogueira, cujas brasas se tinham espalhado no imenso lar, tirou da mesa maior um caldo com uns nacos de cabrito cozido, colocou-os na mesita onde comera e, sem aguardar os agradecimentos do Judeu, passou para o outro lado da sala, no se sabendo se por no querer continuar perto daquele que ajudara, se para ficar mais beira da mesa no tablado. Se, na ocasio, houvesse pintores capazes de aproveitar um motivo como o daquele judeu, dobrando o seu corpo envelhecido e estendendo as mos j mirradas para o fogo, teriam conseguido passar tbua uma interpretao altamente satisfatria da ideia da estao invernosa. Vencido o frio, voltou-se para o prato fumegante na sua frente e comeu-o com a pressa e gosto de quem est esfaimado. Entretanto, o abade e Cedric prosseguiam falando de caa, Lady Rowena trocava algumas palavras com uma das aias e o altivo Templrio, cujos olhos saltavam do Judeu para a beldade saxnica, ruminava ideias que muito pareciam interessar-lhe. - Surpreende-me, respeitvel Cedric - dizia o abade, continuando a conversa -, que, por muito grande que seja a sua predileco pela sua prpria e mscula lngua, no acolha o francs da Normandia, quanto mais no seja no que respeita aos mistrios das matas e da caa. Certamente nenhum outro idioma ser mais rico, quanto s frases e aos termos que a montaria exige, e o caador precisa para melhor explicar os prazeres daquela alegre arte. - Bom padre Aymer - respondeu o Saxo -, queira saber que esses refinamentos de alm-mar me no interessam, podendo eu passar perfeitamente sem eles nos bosques. Posso tocar a minha trombeta sem chamar o seu som de recheate ou de morte, posso animar os meus ces a acossarem a presa e posso esfolar e esquartejar o animal abatido sem empregar esses jarges ridculos como cure(2), arbor, nombles(3) e todo esse palrar do legendrio So Tristo(4). *2. Cevo, carnia que se d aos ces de caa. (N. do T.) 3. Poro da carne do veado entre as coxas. (N. do T.) 4. No havia faceta da sua linguagem que os Normandos mais distinguissem dentro da sua fala normal do que aquela caa referente. Os seres que Perseguiam, aves e outros, mudavam todos os anos de nome, existindo ademais centenas de termos convencionais, cuja ignorncia correspondia a falta de maneiras por parte dos fidalgos. O leitor poder consultar o livro de Dame Juliana Berners sobre o assunto. A origem desta cincia atribuda ao celebrado So Tristo, famoso pela sua intriga com a bela Isolda. Como os Normandos reservavam somente para si o prazer da caa, todos os termos desta gria formal provinham do francs. (Final das notas)
- O francs - quase gritou o Templrio com a presuno e autoridade que, por vezes, emprestava voz - no s a fala natural da caa, mas tambm a dos amores e das guerras, naqueles para se conquistarem as damas, nestas para se vencerem os inimigos. - Beba um copo de vinho comigo, Sr. Templrio - props Cedric -, e encha outro para o abade, enquanto eu volto uns trinta anos atrs para lhes contar outra histria muito diferente. Tal como Cedric, o Saxo era ento, o falar em ingls simples no precisava de floreados de trovadores franceses para chegar a ouvidos belos e o campo de Northallerton, no dia do Sacro Estandarte, pode bem dizer se o grito de guerra saxo chegava ou no to longe, dentro das fileiras das hostes escocesas, como o cri de guerre do mais ousado baro normando. A memria dos bravos que ali se bateram! Bebam comigo, senhores! - Bebeu um grande trago e, excitado, acrescentou: - Ah!, foi um dia em que os escudos se racharam, centos de bandeiras se baixaram por cima das cabeas de muitos homens corajosos, o sangue correu a jorros sem que ningum fugisse, todos preferindo enfrentar a morte. Um bardo saxo denominou-o um festim para as espadas, um cair de guias a presa, o bater de ferros contra escudos e elmos, a gritaria da peleja mais estridente do que o clamor duma boda. Mas os nossos bardos j o no so mais - lembrou-se -, os nossos feitos j se confundem com os de outros, a nossa lngua, o nosso prprio nome, esto a desaparecer rapidamente, sem que ningum os lamente, salvo um velho solitrio... Escano! Servo! Enche as taas... A sade de quem nas armas bravo, seja qual for a sua raa e idioma e que, agora, esteja fazendo o melhor possvel, na Palestina, entre os defensores da Cruz! - No ficaria bem a algum ostentando no ombro este emblema diz-lo - observou Sir Brian de Bois-Guilbert -, mas quem mais merece a palma de campees da Cruz do que os juramentados do Santo Sepulcro? - Os Hospitalrios - atalhou o abade. - Tenho um irmo que o . - No desejaria apoucar a sua fama - interps o Templrio Contudo... - Na minha opinio, amigo Cedric - interferiu Wamba -, entendo que, se Ricardo Corao de Leo tivesse sido esperto bastante para acatar a opinio dum louco, ter-se-ia deixado ficar em casa ao lado dos seus alegres ilhus ingleses, encarregando da reconquista de Jerusalm aqueles mesmos cavaleiros que tanto tm a ver com a sua perda.
- No havia ento - perguntou Lady Rowena - ningum nas foras inglesas cujos nomes merecessem ser postos a par com os dos cavaleiros do Templo e de So Joo? - Perdoe-me, senhora - disse De Bois-Guilbert -, o monarca ingls levou, de facto, consigo para a Palestina uma hoste de guerreiros to bravos que somente aqueles que sempre l estiveram, servindo de baluarte naquela terra abenoada, puderam superar. - Por NINGUm superados! - bradou o Peregrino suficientemente perto para tudo ouvir, o que fizera com crescente impacincia.
Todos se voltaram para onde partira a inesperada asseverao. - Deixai-me dizer - seguiu o Peregrino em tom firme e forte que os cavaleiros ingleses no foram superados por Ningum empunhando a espada na defesa da Terra Santa. Afirmo, alm disso e porque o vi, que o rei Ricardo e cinco dos seus cavaleiros entraram num torneio, aps a tomada de So Joo de Acre, para o qual desafiaram todos que com eles quisessem lutar. Garanto que, num dia s, cada cavaleiro competiu contra trs adversrios, todos derrubando. Acrescento que trs dos seus oponentes eram cavaleiros do Templo e... Sir Brian de Bois-Guilbert sabe que estou a falar verdade. Seria impossvel descrever em palavras o esgar de raiva, tornando-lhe mais escura ainda a tez j trigueira de si, que apareceu no rosto do Templrio. No mximo da fria e confuso, os seus dedos, tremendo, achegaram-se ao punho da espada, para logo se afastarem ao tomar conscincia de que nenhum acto de violncia poderia, com segurana, ser executado ali e naquele momento. Cedric, cujo pensar era rectilneo, simples e raramente abrangendo mais do que um assunto de cada vez, no percebera, com a satisfao de ter escutado o elogio glorioso dos seus compatriotas, a desvairada ira do seu convidado e exclamou: - Dar-te-ia esta pulseira de ouro, Peregrino, se me indicasses os nomes desses cavaleiros que to garbosamente alaram o nome da alegre Inglaterra, - Com todo o gosto o farei - informou o Palmeirim - e sem qualquer recompensa. Fiz uma promessa que, durante algum tempo, me probe de tocar em ouro. - Usarei eu a pulseira em lugar dele - props Wamba. - O primeiro em honra, nas armas, em renome e posio continuou o peregrino - foi o valente Ricardo, rei de Inglaterra. - Perdoo-lhe - entremeteu Cedric - perdoo-lhe o descender do tirnico Guilherme. - O conde de Leicester foi o segundo - disse o Peregrino - e Sir Thomas Multon de Gilsland o terceiro. - Este, ao menos, de sangue saxo - rejubilou Cedric. - Sir Foul Doilly o quarto - prosseguiu o Palmeirim.
- Saxo tambm, pelo lado materno - lembrou Cedric, que o escutava com a maior das atenes, esquecendo por instantes o seu dio aos Normandos perante a vitria comum do rei de Inglaterra e dos seus homens. - E quem era o quinto? - quis saber. - O quinto foi Sir Edwin Turneham. - Saxo puro! Pela alma de Hengists (5) - gritou Cedric. - E o sexto? - exigiu - Como se chamava o sexto? - O sexto - disse o Palmeirim, fazendo uma pausa, durante a qual pareceu retrair-se um pouco - era um jovem cavaleiro, de menos categoria, que se juntou quele valoroso grupo mais para lhe completar o nmero do que para o auxiliar. O seu nome no me ocorre. - Sr. Palmeirim! - atalhou Sir Brian de Bois-Guilbert -, essa pretensa falta de memria a seguir a tantas mostras de excesso dela vem um pouco tarde para servir os seus fins. Eu prprio direi o nome do guerreiro que, merc da sorte da prpria lana
e culpa do meu cavalo, me fez cair, Era o cavaleiro de Ivanho. E nenhum dos outros, tendo em conta a sua idade, poderia ter mais renome do que ele. No entanto, e afirmo-o bem alto, desejaria que estivesse em Inglaterra e, tal como em So Joo de Acre, me lanasse um repto para o torneio desta semana. Montado e armado como estou, agora, dar-lhe-ia todas as vantagens sem temer o resultado. - O seu desafio seria prontamente aceite - declarou o Peregrino - caso o seu antagonista se encontrasse perto daqui. Tal como as coisas so, rogo-lhe que no perturbe este salo com jactncias quanto a resultados dum prlio que sabe perfeitamente no poder realizar-se. Se Ivanho alguma vez regressar da Palestina, garanto-lhe que ele o enfrentar. - Que grande promessa! - desdenhou o Templrio. - E que garantia me d? - Este relicrio - disse o Palmeirim, retirando do peito da camisa uma caixinha de marfim e benzendo-se -, contendo um pedacinho do Santo Lenho, que trouxe do mosteiro do monte Carmelo. O prior de Jorvaulx persignou-se e entoou um padre-nosso, que todos, excepto o Judeu, os maometanos e o Templrio, acompanharam. O ltimo, sem sequer retirar o gorro ou manifestar qualquer outra prova de respeito pela alegada santidade da relquia, arrancou uma corrente de ouro que trazia ao pescoo e atirou-a para sobre a mesa, exclamando: - Que o prior Aymer guarde o penhor da minha aposta e o da deste vagabundo sem nome como garantia de que, quando o cavaleiro Ivanho entrar num dos quatro mares da Gr-Bretanha, *5. Chefe juto que comandou a primeira invaso saxnica da Inglaterra. (N. do T.)
ser por mim, Brian de Bois-Guilbert, desafiado e que, se o no aceitar, o denunciarei como um covarde em todos os castelos dos Templrios da Europa. No haver preciso disso - declarou Lady Rowena, quebrando o silncio que se fizera -, pois a minha voz se levantar, se outra o no fizer nesta sala, em defesa do ausente Ivanho. Declaro que ele aceitar qualquer repto honroso. Se preciso for, acrescentarei pobre garantia que juntei ao inestimvel penhor deste santo peregrino o meu nome e o seu crdito em como Ivanho aceitar o recontro que este orgulhoso cavaleiro pretende. Um mar de emoes incompatveis parecia ter avassalado Cedric obrigando-o a calar-se durante a discusso. orgulho satisfeito, ressentimento, embarao, tudo perpassava na sua larga e aberta fronte, COMO nuvens sopradas pelo vento correndo sobre uma seara. Os seus inferiores, aos quais o nome do sexto cavaleiro provocara quase o efeito dum choque elctrico, olhavam, suspensos, para o amo. Quando Rowena falou, a sua voz libertou-o, Porm, da mudez em que cara. - Senhora - disse-lhe -, tanto no ser necessrio, pois, se o fosse, eu prprio, ofendido e verdadeiramente ofendido como estou empenharia a minha honra pela honra de Ivanho. Mas as formalidades do combate esto cumpridas, de acordo, at, com as esquisitas maneiras dos Normandos... No ser assim, padre
Aymer? - Esto, sim - concordou o Prior -, e quer a bendita relquia, quer a valiosa corrente, sero seguramente guardadas Por mim no convento at que este desafio se concretize. Terminada esta declarao, fez vrias vezes o sinal da Cruz e genuflexes, acompanhados de oraes murmuradas, e passou o relicrio para as mos do Irmo Ambrose, seu auxiliar, arrepanhando ele prprio, com Pouca cerimnia mas muita satisfao, a corrente de ouro que enfiou na algibeira reforada de couro perfumado que se abria sob um dos braos. Sir Cedric - disse -, os meus ouvidos badalam como sinos com o vigor das suas vitualhas e a generosidade dos seus vinhos. Permita-me um copo mais sade de Lady Rowena, aps o que, se me der licena, me retirarei para os meus aposentos. - Pelo cruzeiro de Bromholme! - espantou-se o Saxo. - pouco acresce sua fama, Sr. Prior! Constava-me que era um monge jovial, capaz de escutar, as matinas antes de se levantar da mesa. Eu, velho como estou, temia at Medir- me consigo. Por Deus! Qualquer rapazelho saxo de doze anos, no meu tempo, no largaria to depressa os pratos e os copos. O Prior, todavia, tinha razes muito suas para teimar na temperana que resolvera. Era no s um Pacificador nato, mas ainda, pela prtica, Um inimigo de tudo que fosse conflito ou feudo. Era assim no propriamente por amor ao prximo ou a si mesmo,
ou por misturados dois sentimentos. Os motivos variavam. Neste instante, tratava-se duma instintiva apreenso quanto ao temperamento arrebatado do Saxo e nos perigos que via na maneira de ser descontrolada e presunosa do seu companheiro, de que tantas mostras j tinha tido, que poderia originar uma desagradvel exploso. Por tais motivos, insinuou delicadamente a impossibilidade de algum no saxo medir foras, com faca e copos, com outro dessa robusta e teimosa raa. Vagamente referiu-se sua sacra posio e reiterou a proposta para se retirar. De conformidade, foi servida a ltima rodada e os hspedes, depois de reverenciarem o seu anfitrio e Lady Rowena, ergueram-se e comearam a atravessar a sala, enquanto os senhores da casa saam por outras portas diferentes, acompanhados dos seus squitos. - Co incrdulo - bradou o Templrio para o Judeu, ao cruzar-se com ele na multido -, pensars assistir, tambm, ao torneio? - Assim penso - respondeu Isaac, fazendo, humildemente, uma vnia -, se isso agradar a Vossa Valia. - Ai! - exclamou o cavaleiro. - para satisfazer, custa de usurrios, as barrigas da nossa nobreza e levar mulheres e meninos com quinquilharias e brinquedos necessito duma certa quantidade de moedas tuas, que assentars no teu livrinho. - Nem uma moeda, nem um dinheiro de prata, nem qualquer outra. Que o Deus de Abrao me acuda - chorou-se o Judeu, torcendo as mos. - Sou obrigado a recorrer a irmos da minha tribo para pagar a multa que o Fisco de Judeus (6) me imps. Que Jacob, meu pai, me ajude! Sou um desgraado sem vintm. At a capa que trago me foi emprestada por Reuben de Tadcaster. O Templrio sorriu-lhe com azedume: - Maldito mentiroso sem corao! - E seguiu, desdenhando
qualquer conversa mais com ele e entabulando uma troca de palavras com os seus muulmanos em lngua desconhecida para os restantes presentes. O pobre israelita ficara de tal maneira abalado pelo contacto com o monge guerreiro que j este chegara ao fim da sala quando ergueu a cabea, que baixara para demonstrar toda a sua insignificncia. Quando olhou em seu redor, f-lo como se se tratasse de algum aos ps de quem um relmpago tivesse cado e que ainda sentia ecoar dentro da cabea o estampido do trovo. Pouco depois, o Templrio e o Prior eram acompanhados aos seus aposentos por um mordomo e um copeiro, dois porta- tochas e dois criados com refrescos. Simultaneamente, outros criados de condio menor conduziam os outros membros da sua comitiva at aos respectivos quartos, para descansarem. *6.. Nesse tempo, os judeus estavam sob a alada dum ramo da Fazenda, especialmente criado para esse fim, que os submetia s mais incrveis das imposies. (N. do T.)
Captulo VI Para lhe comprar o favor, esta prova amiga lhe dou: Se O aceitar, muito bem. Caso no, adeus. Mas por amor lhe peo que no diga mal de mim. O Mercador de Veneza Quando o Peregrino, alumiado por tochas, passava atravs da intrincada srie de apartamentos daquela grande e irregular manso, o escano, vindo por detrs dele, segredou-lhe orelha que, se no visse mal em tomar uma caneca de bom hidromel no seu quarto, muitos dos criados da casa, ansiosos por notcias da Palestina e sobretudo do cavaleiro Ivanho, o escutariam com todo o gosto. Pouco depois surgia Wamba com pedido igual, lembrando que um copo depois da meia-noite valia por trs depois do toque de recolher. Sem se atrever a rebater a mxima posta por to sria entidade, o Palmeirim, agradecendo-lhes a ateno, observou que a promessa que fizera inclua a obrigao de nunca discutir na cozinha o que lhe era proibido na sala. Esse voto - comentou Wamba para o copeiro - dificilmente seria feito por um criado de servir. Aborrecido, o copeiro, encolhendo os ombros, disse: - Pensava aloj-lo no quarto do soleiro, mas, j que se trata dum cristo to pouco socivel, vou p-lo no catre ao lado do Judeu. Anwod - ordenou ao homem com o archote -, leva o Peregrino para a cela sul. Desejo-lhe boa noite - acrescentou -, Sr. Palmeirim, com os meus tnues agradecimentos por to pouca cortesia. - Boa noite e que Nossa Senhora os abenoe - disse o Palmeirim comedidamente, indo atrs do seu guia. Numa pequena antecmara, para a qual vrias portas davam, iluminada por uma lanterna de ferro, foram novamente interrompidos, desta vez por uma aia de Rowena, que,
comunicando autoritariamente desejar a sua ama falar com o Palmeirim, tirou o archote das mos do homem, mandando-o esperar e fez sinal ao primeiro para que a seguisse. No achando, aparentemente, correcto declinar este convite,
como fizera aos anteriores, mas mostrando a sua surpresa por um gesto, este obedeceu, sem nada dizer e sem se queixar. Uma curta passagem e a subida de sete degraus de slidas traves de carvalho e chegou ao apartamento de Lady Rowena, cuja rude magnificncia estava em perfeito acordo com o respeito que por ela o dono da casa evidenciava. As paredes haviam sido cobertas com cortinados bordados com desenhos, de diferentes cores entrecurzados com fios de ouro e de prata, com o mximo de artesania possvel para a poca, representando cenas de caa e de falcoaria. A cama era adornada com o mesmo tipo de tecido e rodeada de cortinas prpura. Tambm os assentos estavam forrados da mesma maneira e junto de um deles, o mais alto de todos, havia um pousa-ps, com curiosas incrustaes de marfim. Nada menos do que quatro candelabros de prata com enormes crios iluminavam o apartamento. No entanto, nenhuma dama(1) dos nossos dias invejaria a magnificncia duma princesa saxnica. As paredes do aposento eram to mal acabadas e to cheias de rachas que os ricos cortinados se agitavam continuamente com a ventania, vinda de l de fora e, no obstante uma espcie de quebra-vento que tinham como proteco, as chamas dos archotes inclinavam- se, como pendes ainda no totalmente desfraldados. Ostentao existia, a par de ingnuas tentativas de bom gosto, mas o conforto no era nenhum. Porm, como ningum o conhecia, ningum lhe sentia a falta. Lady Rowena, com trs aias de p atrs de si, arranjando- lhe o cabelo para se poder ir deitar, sentava-se naquela espcie de trono, de que j se falou e apresentava-se como se realmente tivesse nascido para por todos ser homenageada. O Peregrino, reconhecendo-o ela, ajoelhou-se lentamente. - Erga-se, Palmeirim - mandou-lhe ela com gentileza. - Um defensor de pessoas ausentes tem todo o direito a uma recepo condigna por parte de todos que a verdade apreciam e honram o cavalheirismo. - Voltando-se ento para as serviais, ordenou: - Retirem-se todas menos a Elgitha. Quero falar com este santo peregrino. As jovens, sem abandonarem o apartamento, retiraram-se para o seu lado mais afastado, sentando-se, a, num banco encostado parede, mudas como esttuas, muito embora quela distncia os seus sussurros no pudessem perturbar a conversa da ama. - Peregrino - disse esta, aps ter deixado decorrer uns momentos como hesitante quanto forma como se lhe dirigir -, esta noite mencionou um nome... quero dizer - continuou com algum esforo -, o nome de Ivanho, dentro de muros onde, por razes naturais e de parentesco, to bem deveria ser acolhido. No entanto to perverso o destino que, de entre tantos cujo corao mais fortemente palpitou ao ouvi-lo,
somente eu me atrevo a perguntar-lhe: onde e como deixou essa pessoa de quem nos falou? Sabamos que, tendo-se deixado ficar, por motivos de sade, na Terra Santa, quando as foras inglesas regressaram, era perseguido pelo sector francs a que, como toda a gente sabe, os Templrios esto muito ligados. - bem pouco o que sei do cavaleiro Ivanho - respondeu- lhe o Peregrino com a voz perturbada. - Quem me dera conhec-lo melhor j que vs, senhora, tanto vos interessais pela sua sorte! Vencera, creio, os ataques dos seus inimigos e preparava-se para voltar para Inglaterra, onde vs, senhora, melhor do que eu, conheceis as suas hipteses de felicidade. Lady Rowena suspirou profundamente e pediu mais pormenores quanto eventual data de regresso de Ivanho sua terra natal, indagando, ao mesmo tempo, dos possveis riscos no caminho. De volta primeira pergunta mostrou o Palmeirim total desconhecimento, quanto segunda, disse ser a viagem segura por Veneza e Gnova e da, pela Frana, at Inglaterra. - Ivanho - acrescentou - conhece to bem a fala e costumes dos Franceses que nenhum perigo lhe surgiria nessa fase das suas andanas. - Que Deus nos conceda - pediu Lady Rowena -, ele aqui estar pronto a pegar em armas no torneio que se aproxima e no qual se espera que os cavaleiros desta terra bem demonstrem o seu valor e destreza. Se Athelstane de Conningsburgh conquistar o prmio, possvel que ms novas cheguem a Ivanho mal desembarque em Inglaterra... Como estava ele, Peregrino, quando o viu pela ltima vez? A doena abalou-lhe muito as foras e o garbo? - Estava mais queimado e mais magro - informou o Palmeirim do que quando vindo de Chipre, chegou com as hostes do Corao de Leo, parecendo-me que as preocupaes lhe carregavam o semblante. No entanto, no me acerquei dele, pois no o conhecia. - Conhecer-te- - asseverou-lhe a dama. - Vejo pouco nesta sua terra para lhe apagar as preocupaes que carrega. Obrigada, bom peregrino, pela informao que me trouxe acerca do meu companheiro de meninice... Meninas - disse -, aproximai-vos e oferecei um copo para melhor repouso deste santo homem, que mais tempo no quero deter. Uma das raparigas apresentou uma taa de prata com uma excelente mistura de vinho e especiarias, que Rowena levou primeiramente aos lbios, quase mal lhe tocando, e depois estendeu ao Palmeirim, que, aps profunda cortesia, dela bebeu umas gotas. - Aceite estas alvssaras - continuou a dama entregando-lhe uma pea de ouro - como reconhecimento do seu penoso deambular por tantos lugares de venerao.
O Palmeirim aceitou a oferta com nova vnia e deixou o apartamento atrs de Edwina. Na antecmara esperava-o Anwod, que, pegando na tocha que a criada segurava, o conduziu, com mais pressa do que modos, para uma seco obscura no exterior do edifcio, onde diversos quartos, ou melhor dito, celas, serviam como dormitrios para os criados menos qualificados e visitantes de mais baixa categoria.
- Em qual destas dorme o Judeu? - indagou o Peregrino. - o co descrente - respondeu Anwod - aninha-se na cela junto a Vossa Santidade. Que So Dunstan nos auxilie no trabalho que vamos ter raspando-a e limpando-a at que torne a ficar digna de cristos. - E Gurth, o porqueiro, onde se recolhe? - interrogou o estranho. O Gurth - esclareceu o servo - est a dormir na cela sua direita e o judeu sua esquerda. Servir o senhor como separao entre o circuncidado e aquele que cuida daquilo que a sua tribo mais abomina. Ter-lhe-ia sido dado um lugar mais honroso se tivesse aceitado o convite de Oswald. - Est bem como est - disse o Palmeirim. - A proximidade mesmo dum judeu dificilmente me trar contaminao atravs daquela espessa divisria de carvalho. Assim dizendo, entrou na cabina, tirou a tocha das mos do domstico e agradeceu-lhe, desejando-lhe boa noite. Cerrou a porta, enfiou o archote num tocheiro de madeira e olhou em torno da diviso, cuja moblia era do mais singelo possvel. Um rude talho de pau e uma enxerga com palha limpa e duas ou trs peles de cabra como cobertores. O Palmeirim apagou o fogo e deixou-se cair, sem tirar qualquer pea de roupa, na enxerga, onde adormeceu ou, quanto mais no seja, se deixou ficar at que os primeiros raios solares entraram pelo postigo gradeado que dava luz e ar quela pouco confortvel cela. Ergueu-se, disse as suas oraes matinais, ajustou as roupas e saiu, dirigindo- se cela do Judeu, cuja aldrava levantou to silenciosamente quanto pde. O ocupante da pequena diviso dormia, numa enxerga igual quela em que passara a noite, um sono sobressaltado. As roupas que despira estavam cuidadosamente dobradas bem junto de si, para que no lhe fossem tiradas durante o sono. A sua testa enrugava-se numa quase agonia. As mos e os braos tremiam-lhe como se lutasse com um horrvel pesadelo. Alm de vrias frases em hebreu, disse, claramente, em normando-ingls, a lngua mista da terra: - Pelo amor de Deus de Abrao, que um pobre e infeliz velho seja poupado! No tenho um tosto! Se os vossos ferros me desmembrarem, no vos poderei pagar.
O Palmeirim no esperou que a viso do Judeu se desvanecesse e tocou-lhe com o bordo. O toque, como vulgar, foi logo associado com algumas das preocupaes includas no sonho, e o velho despertou de sbito, com os cabelos grisalhos quase em p, apertando as roupas contra o corpo e segurando as peas soltas como um falco prendendo a presa nas garras. Os seus negros olhos fixavam-se, expressivos, selvagens e plenos de temor fsico, no Peregrino. - Nada tem a temer de mim - sossegou-o o Palmeirim. - Venho como amigo. - Que o Deus de Israel o recompense - disse, aliviado, o Judeu Sonhava... mas, Pai Abrao seja louvado, era um sonho somente. - E logo recompondo-se e tomando um tom normal de voz: - E o que deseja, de manhzinha to cedo, deste pobre judeu? Venho para o informar - esclareceu o Palmeirim - que, se no deixar imediatamente esta manso e andar com bastante rapidez, a sua viagem se poder tornar muito perigosa. - Santo Pai! - exclamou o Judeu. - Quem se interessaria em
perseguir um desgraado como eu? - O motivo ter de o adivinhar - prosseguiu o Peregrino mas acredite que, quando o Templrio atravessava, ontem, a sala, falou com os seus escravos muulmanos em lngua sarracena, que entendo perfeitamente, encarregando-os de hoje, de manh, vigiarem o Judeu na sua jornada, o prenderem a distncia conveniente da casa e o levarem para o castelo ou do Phillip de Malvoisin ou do Reginald Front-de-Boeuf. No tem relato o pavor extremo que se apossou do Judeu, que, ao ouvir esta informao, pareceu perder todas as suas faculdades. Os braos caram-lhe, a cabea pendeu- lhe sobre o peito, os joelhos vergaram-se ao prprio peso, todos os nervos e msculos do corpo assemelhando ter entrado em colapso e perdido a energia. Despenhou-se aos ps do Palmeirim, no como quando algum, intencionalmente, se curva, se ajoelha ou se prostra, implorando compaixo, mas sim como empurrado por todos os lados pela presso duma fora invisvel e capaz de esmagar toda a resistncia. - Santo Deus de Abrao! - foi a sua primeira frase, erguendo as mos, que se abriam e fechavam, mas mantendo sempre a cabea em baixo. - Santo Moiss! Abrao bendito! O sonho no foi em vo e a viso no me tocou debalde! J sinto os ferros deles entrando-me nos tendes! J sinto a roda a passar-me pelo corpo como as serras, as grades e os machados de ferro passaram sobre as gentes de Rabat e sobre as cidades dos filhos de Amon! - Levante-se, Isaac, e preste-me ateno - disse o Palmeirim, a quem toda aquela aflio enchera dum misto de compaixo e desprezo. - O seu terror tem bases, sabendo-se como os seus irmos tm sido tratados por prncipes e nobres para lhes extorquirem as suas economias. Mas, mesmo assim,
recomponha-se, peo- lhe, para que lhe possa apontar a via a seguir na sua fuga. Saia j desta manso, enquanto todos descansam ainda da empanzinadela de ontem. Gui-lo-ei atravs das trilhas secretas da floresta, que conheo como o melhor couteiro que as vigie, at porto de abrigo, junto de algum chefe ou baro que tambm v ao torneio e cuja boa vontade talvez arranje meios de conseguir. Tendo os ouvidos de Isaac entendido nestas palavras a possibilidade de escapar, comeou, gradual e lentamente, a levantar-se do cho, at que ficou totalmente de p, sacudindo os longos e grisalhos cabelos e barba e mirando o rosto do Palmeirim com a intensidade da esperana, do medo e, ainda, das dvidas. Quando ouviu a ltima frase, o medo inicial regressou em fora, fazendo-o tornar a cair de bruos, exclamando: - No disponho de quaisquer meios para conseguir boas vontades! Ai de mim! Apenas existe um meio para se obter um favor dum cristo. Onde o poder encontrar um pobre judeu a quem as extorses j reduziram misria dum Lzaro? - E, imediatamente, como se a suspeita lhe dominasse j as demais emoes, pediu: - Pelo amor de Deus, jovem, no me atraioe. Pelo Altssimo Pai que nos fez a todos, judeus e gentios, israelitas e smaelitas, no me traia! No tenho meios para obter as graas dum mendigo cristo, nem mesmo que um vintm apenas bastasse.
- Acabando de isto dizer, levantou-se e, suplicante, agarrou-se ao manto do Palmeirim. Este libertou- se como se tivesse visto peonha. - Estivesses tu a abarrotar com todas as riquezas da sua tribo fez-lhe ver -, que me interessaria fazer-te mal? Fiz voto de pobreza e no trocaria estas minhas roupas seno por um cavalo e uma cota de malha. No pense, no entanto, que me importa a tua companhia, ou que dela me quero aproveitar. Permanece aqui, se preferires... talvez o Cedric te possa proteger. - Pobre de mim - exclamou o Judeu -, ele no me deixaria juntar sua comitiva. Saxes ou Normandos, todos se envergonham da mesma forma com a presena dum ignbil israelita. Quanto a atravessar sozinho os domnios do Phillip de Malvoisin e do Reginald Front-de-Boeuf... Claro, meu jovem, irei consigo. Apressemo-nos! Ponhamos asas nos nossos ps... voemos! Pegue no seu bordo. Que espera? - No espero nada - acalmou-o o Peregrino, cedendo sua urgncia -, pretendo apenas sair daqui do modo mais seguro. Siga-me. Levou-o at cela ao lado, que, como sabemos, era ocupada por Gurth, o porqueiro. - Levanta-te, Gurth, levanta-te depressa. Abre a porta da entrada para que eu e o Judeu saiamos. Gurth, cuja ocupao, hoje vista como muito baixa,
na Inglaterra saxnica era comparvel quela que Eumeu gozava em taca, ofendeu-se com o tom de intimidade da ordem dada pelo Palmeirim e respondeu: - O Judeu a deixar Rotherwood - disse apoiando-se num cotovelo e olhando-o desdenhosamente sem sair do catre - acompanhado pelo Palmeirim para saquear... - Mais facilmente o imaginaria - declarou Wamba entrando naquele preciso momento na cela - a fugir com um pedao de toucinho na mo. - Seja como for - disse Gurth, tornando a pousar a cabea na trave que lhe servia de almofada -, tanto judeus como gentios tm de se contentar esperando a hora de abertura do porto grande. No permitimos que visitantes partam socapa a estas desoras. - Mesmo assim - persistiu em tom de comando o Peregrino -, no me vais recusar esse favor. Simultaneamente, baixou-se para junto do porqueiro e segredou-lhe qualquer coisa em saxo. Gurth saltou como que electrizado. O Peregrino, levantando um dedo, a recomendar-lhe cautela, acrescentou: - Cuidado, Gurth... raramente s prudente. Abre a portinhola como te digo. Dentro em pouco sabers mais. com pressurosa animao, Gurth obedeceu-lhe, ao mesmo tempo que o Judeu e Wamba o seguiam, ambos surpresos com a sua sbita alterao de comportamento. - A minha mula, a minha mula!? - gritou o Judeu logo que se viu do lado de fora da portinhola. - Traz-lhe a mula - ordenou o Palmeirim. - E, ouve, arranja outra para mim, para que o acompanhe at aos limites destas propriedades. Devolv-la-ei a algum do grupo do Cedric em Ashby. Faz tambm o seguinte... - Segredou-lhe o resto. - Certo, certamente que farei tudo assim mesmo - assentiu
Gurth, partindo para executar o que lhe fora mandado. - Bem quereria aprender - prosseguiu Wamba quando o seu companheiro se afastou - o que os Palmeirims aprendem na Terra Santa. - A dizer as nossas oraes - explicou o Peregrino -, a arrependermo-nos dos nossos pecados, a mortificarmo-nos com jejuns, viglias e demoradas rezas. - Tem de ser algo mais potente do que isso - duvidou o bobo. Desde quando que o arrependimento e as oraes levaram o Gurth a fazer uma amabilidade e as abstinncias o convenceram a emprestar mulas? Creio mesmo que, se tivesse descrito essas viglias e penitncias ao varro preto de que ele tanto gosta, o bicho ficaria to bem- educado que at comearia a falar. - Deixa para l - disse-lhe o Peregrino -, no passas dum tolo saxo.
- Dizes bem - ripostou o bobo -, mas, tivesse eu nascido normando, como penso que tu nasceste, teria a sorte na mo e estaria a dois passos de ser um sbio. Nesse momento surgiu Gurth, do lado oposto da alcova, com as mulas. Os viajantes atravessaram a vala por uma ponte levadia com duas tbuas de largura, estreiteza essa que condizia com as da portinhola por onde haviam sado e a da abertura existente na paliada exterior. Mal chegaram junto das mulas, o Judeu, com mos apressadas e trmulas, retirou de dentro do capote uma saca de bocaxim azul contendo, como murmurou, "uma muda de roupa, apenas uma muda". Saltando ento para a mula, com muito mais ligeireza e rapidez do que seriam de esperar dos seus anos, logo disps as abas do capote de modo a encobrirem a carga que pusera encroupe(1). O Peregrino montou mais calmamente, estendendo, antes de partir, a mo a Gurth, que a beijou com toda a venerao. O porqueiro deixou-se ficar, pasmado, olhando-os at desaparecerem sob os galhos do caminho da floresta, quando a voz de Wamba lhe quebrou o devaneio. - Sabes, bom amigo Gurth, que, nesta manh de Vero, te mostras estranhamente corts e muito peculiarmente pio? Gostaria de ser um prior vestido de preto ou um peregrino descalo para me aproveitar do teu zelo e cortesia... com toda a certeza te poria a fazer-me muito mais do que beijocar-me as mos. - No ests a ser imbecil at ao momento - respondeu Gurth -, embora argumentes seguindo as aparncias, o que, mesmo os mais inteligentes entre ns, no fariam melhor. Mas... tenho de ir ao meu recado. Voltou para casa, acompanhado pelo bobo. Entrementes, os viageiros continuavam a sua jornada com um despacho perfeitamente contrrio aos anos do Judeu, j que as pessoas da sua idade raramente apreciam moes demasiado clebres. O Palmeirim, para quem todas as veredas e carreiros da mata pareciam familiares, ia-os conduzindo pelos mais desviados caminhos, levando, por mais do que uma vez, a imaginao do israelita a julgar que pretenderia atraio-lo arrastando-o para uma emboscada dos seus inimigos. Poder-se-lhe-iam desculpar as dvidas, porque, com excepo, qui, dos peixes-voadores, no havia superfcie da Terra,
no ar e nas guas, raa que to geral, ininterrupta e incansavelmente fosse perseguida do que a dos judeus de ento. Sob os mnimos e menos razoveis pretextos, assim com a base das mais absurdas e infundadas acusaes, as suas pessoas e propriedades eram expostas fria popular. *1.. Em francs no texto. Na garupa. (N. do T.)
Na verdade, Normandos, Saxes, Dinamarqueses e Bretes, por muito que se odiassem entre si, todos procuravam ser aqueles que mais averso demonstravam em relao a um povo contra quem era, por religio, devido odiar, injuriar, desprezar, depradar e perseguir. Os reis e os nobres independentes, de sangue normando, que lhes copiavam os exemplos em todos os actos tirnicos, exerciam contra aquela devotada gente a mais constante, preconcebida e egosta das perseguies. bem conhecida a histria do rei Joo (1199-1216), que encerrou um judeu rico num dos seus castelos, mandando que diariamente lhe fosse arrancado um dente, at que, j com as queixadas s com metade dos dentes, acedeu entregar-lhe a soma imensa que o tirano lhe queria extorquir. O pouco dinheiro sonante existente encontrava-se, principalmente, nas mos do povo perseguido e a nobreza no hesitava em copiar o soberano, dele o espremendo merc de toda a sorte de opresses e torturas. No entanto, a sua corajosa passividade, baseada no amor ao lucro, permitia-lhes enfrentar esses perigos sem conta para conseguirem enormes lucros numa terra naturalmente to basicamente rica como a Inglaterra o era. Apesar de, por todos os modos desencorajados, mesmo submetidos a impostos especiais, lanados pelo Fisco de Judeus, criado especialmente para os espoliar e perseguir, o nmero de judeus aumentava, multiplicando-se e acumulando fortunas incrveis, que transferiam dum lado para o outro por meio de letras de cmbio (um invento comercial, ao que parece de sua lavra) que lhes ajudavam a passar o dinheiro dum pas onde estivessem mais apertados para outro onde trabalhassem mais vontade. A perseverana e avareza dos judeus, equilibrando, por assim se dizer, o fanatismo e a tirania daqueles que os subjugavam, aparentava aumentar na proporo da perseguio que lhes era feita. A incalculvel riqueza que, regra geral, juntavam no comrcio, embora, em alguns casos, correspondesse a coloc-los em terreno perigoso, noutros permitia-lhes alargar o seu campo de aco com um inerente maior grau de proteco. Eram estes os termos em que viviam e que tanto lhes influenciavam o carcter, que se lhes tornara atento, desconfiado e tmido... mas persistente, inconformado e habilidoso quanto evaso s ameaas a que sempre se expunham. Tendo percorrido, a passo veloz, veredas ocultas sem conta, o Palmeirim, finalmente, rompeu o silncio. - Aquele decrpito carvalho - apontou - marca o limite das terras sobre as quais o Front-de-Boeuf diz ter domnio. H muito nos afastmos das do Malvoisin. Daqui em diante no h mais perigo de perseguies. - Que as rodas dos seus carros de guerra se soltem - pediu o Judeu -, como aconteceu s dos do exrcito do Fara, atrasando-lhes o andar!... No me deixe j, bom peregrino.
Lembre-se de que aquele feroz e selvagem Templrio e os seus escravos sarracenos no querem saber de territrios, de feudos, de propriedades... - Os nossos caminhos separam-se aqui - disse o Palmeirim. No ficaria bem homens como eu e tu viajarem juntos por maior distncia do que a precisa. Alm de que, que ajuda terias tu dum pobre peregrino, como eu, contra dois pagos? - meu generoso jovem - replicou o Judeu -, tu podes defender-me. Sabes que o podes. Pobre como sou, recompensar-te-ei... no em dinheiro, porque, valha-me Abrao, dinheiro no tenho nenhum, mas... - Dinheiro e recompensas - cortou o Palmeirim - so coisas que, j te disse, no pretendo de ti. Guiar-te, posso e, se preciso fosse, defender-te-ia at certo ponto, mesmo porque proteger um judeu dum sarraceno dificilmente ser considerado coisa imprpria para um cristo fazer. Assim, Judeu, levar-te-ei a salvo at junto de qualquer abrigo que mais te convenha. No estamos muito longe da cidade de Sheffield, onde, sem custo, poders encontrar algum da tua tribo disposto a dar-te refgio. - Que as bnos de Jacob sobre ti caiam, generoso jovem! agradeceu o Judeu. - Em Sheffield poderei albergar-me na casa do meu parente Zareth, que me arranjar maneira de poder prosseguir em segurana. - Seja ento assim - aquiesceu o Palmeirim -; em Sheffield cada um ir para o seu lado. Alis, dentro de meia hora a cavalo teremos a cidade vista. A meia hora passou-se em absoluto silncio de parte a parte. O Peregrino, talvez, por desdenhar dirigir-se ao Judeu, parte por questes de inteira necessidade, e o Judeu por no desejar impor uma conversa a uma pessoa cuja romagem Terra Santa lhe emprestava uma espcie de santidade. Pararam no cimo duma suave ladeira, o Peregrino, apontando para a cidade em baixo, repetiu-lhe: - Aqui nos separamos. - No sem que este msero judeu te agradea - disse Isaac. Calculo que no queira acompanhar-me at casa do meu parente Zareth, que, de algum modo, saberia encontrar forma de o compensar pelos seus bons ofcios. - Torno a dizer - lembrou o Peregrino - que no pretendo recompensas. Se, da longa lista dos teus devedores, quiseres, por mim, perdoar a um os grilhes e a priso que sobre ele possam, por tua causa, estar suspensos, f-lo, que considerarei o servio que esta manh te prestei como bem empregue. - Espera, espera - pediu o Judeu, prendendo-lhe a roupa. Algo mais do que isso por ti farei. S Deus sabe como sou pobre... sim, Isaac o mendigo da sua tribo... mas perdoar- me-s se eu tiver adivinhado aquilo que, neste momento, mais falta te faz?
- Se adivinhaste correctamente - disse o Palmeirim -, algo que no me poderias dar, nem que fosses to rico como pobre
dizes ser. - Como digo ser? - repetiu o Judeu. - Cr em mim. S falei a verdade. Sou um homem espoliado, endividado, perturbado. Mos de ferro arrancaram-me os meus bens, o meu dinheiro, os meus barcos, tudo que tinha... Mesmo assim, posso indicar-te o que te falta e, talvez, dar-to. Neste instante queres um cavalo e uma armadura! O Palmeirim estremeceu e, voltando-se para ele bradou: - Qual foi o demnio que te ajudou a adivinh-lo? - No importa - sorriu o Judeu -, uma vez que me no mentiu... e, tal como adivinhei a tua preciso, tambm poderei satisfaz-lo. - Recordo-te - lembrou-lhe o Palmeirim - o que sou, como me visto, a minha promessa. - Eu conheo os cristos - prosseguiu o Judeu - e sei que o mais nobre entre eles capaz de calar umas sandlias, pegar num bordo e, em supersticiosa pena, partir para visitar sepulturas de homens h muito falecidos. - No blasfemes, Judeu! - exclamou severamente o Peregrino. - Desculpa-me - pediu o Judeu. - Falei sem pensar. Ontem noite e hoje de manh pronunciaste palavras que foram como as fascas da pederneira, revelando o metal que lhes est por detrs. Sob essa capa de peregrino esconde-se uma cota de malha de cavaleiro e esporas de ouro. Vi-as, de manh, quando te debruaste sobre a enxerga onde dormia. O Peregrino no conseguiu esconder um sorriso. - Se as tuas roupagens fossem to cuidadosamente escrutinadas por olhos como os teus, Isaac, que descobririam eles? - Deixemo-nos disso - pediu o Judeu, que mudara de cor. Pegou ento no seu material de escrita, apressadamente, como para mudar de assunto, e comeou a escrever, mesmo sem desmontar, num pedao de papel que tirara do gorro amarelo. Quando terminou, entregou-lhe o rolo, cheio de caracteres hebraicos, dizendo: Na cidade de Leicester toda a gente conhece um abastado judeu chamado Kirjath Jairam, da Lombardia. Entrega-lhe este rolo. Ele tem para vender seis arneses milaneses, o pior dos quais honraria qualquer cabea coroada, e dez corcis, dos quais o pior nenhum rei desdenharia montar se tivesse de batalhar pelo seu trono. De entre todos te deixar escolher os que preferires, fornecendo-te tambm tudo o mais que necessites para o torneio. Quando este acabar, tudo devolvers. A no ser, claro, que queiras pagar o seu justo valor.
- Mas, Isaac - sorriu o Peregrino -, no sabers tu que naquele tipo de exerccios as armas e o corcel do cavaleiro derrubado ficam na posse do seu vencedor? Pode-me acontecer ter pouca sorte e perder aquilo que no serei capaz de repor ou pagar. O Judeu ficou um nada aturdido com esta hiptese, mas, enchendo-se de coragem, declarou: - No, no e no... isso impossvel... Nem nisso quero pensar. Que a bno do nosso Pai caia sobre ti. A tua lana ser to forte como o basto de Moiss. Declarando isto, virava j a mula, sendo, desta feita, o Palmeirim quem lhe segurou o capote. - No, Isaac, tu no conheces bem os riscos. O corcel pode ser
morto, a armadura amolgada... j que eu no pouparei nem o homem nem a besta. Alm de que as pessoas da tua tribo nunca do nada sem nada receberem em troca. Alguma coisa terei de pagar pelo emprstimo. O Judeu torceu-se na sela, como se tivesse uma clica. O seu lado bom prevaleceu, porm: - No me importo - afirmou -, no me importo. Deixa-me ir. Se algo se destruir, nada te ser exigido. Se houver despesas com o uso ou desgaste, Jairam perdo-lo- por bem do seu parente Isaac. Segue em paz!... Um momento, jovem! Escuta! - gritou, voltando-se. - Eu no me referia nem ao cavalo, nem armadura. Falava da tua vida e do teu corpo. - Mil agradecimentos pelo teu cuidado - sorriu de novo o Palmeirim. - Servir-me-ei dos teus presentes com toda a fora, mas no os destruirei. Separaram-se, seguindo cada um caminho diferente para a cidade de Sheffield.
Captulo VII Cavaleiros, seguidos de longos cortejos de escudeiros, Marchando com vistosos enfeites e muito altaneiros. Um com o elmo engalanado, outro sustendo a sua lana, Outro ainda que com o rebrilhante escudo avana. O corcel com patadas irrequietas escava o solo a meio, Arfando e resfolegando, espumante vai mordendo o freio. Juntos, os ferreiros e os armeiros a cavalo todos vm. Segurando em limas e martelos que no confiam a ningum, E pregos para chuos soltos, tenazes para escudos tambm. Guardas guardam as ruas, dando-lhes a devida ordenao, E palhaos correndo vm, trazendo grandes varapaus na mo. Palamon e Arcite A situao da nao inglesa era, nesta ocasio, lamentvel. O rei Ricardo encontrava-se ausente e prisioneiro do prfido e cruel duque da ustria, sem que, ao certo, se soubesse do local do seu cativeiro e sendo a sua sorte muito imprecisamente conhecida pelos seus sbditos, que, entretanto, eram submetidos a terrveis opresses. o prncipe Joo, coligado com Filipe de Frana, um inimigo mortal do Corao de Leo, utilizava junto do duque da ustria toda a sorte de presses para prolongar a recluso de seu irmo Ricardo, a quem tantos favores devia. Fortalecia, ao mesmo tempo, a sua faco no reino, cuja sucesso pretendia disputar, caso o rei viesse a falecer, ao herdeiro legtimo, Artur, duque da Bretanha, filho de Geoffrey Plantageneta e irmo mais velho de Joo. Esta usurpao, sabe-se, aconteceu realmente mais tarde. Joo, com uma maneira de ser estouvada, dissoluta e m, tinha facilidade de a si atrair pessoas ou grupos que ou tinham motivos para temerem o ressentimento de Ricardo pelo que de criminoso tivessem feito, ou que pertenciam numerosa classe dos "fora-da-lei atrevidos" que, regressados das cruzadas ao seu pas pobres mas endurecidos, punham agora em prtica os vcios adquiridos no Levante, na esperana de qualquer coisa colherem na perturbao civil que
grassava.
A estes motivos de apreenso e aflio populares teriam de ser acrescentados os muitos proscritos que, levados ao desespero pela opresso da nobreza feudal, se juntavam em grandes bandos, ocupando florestas e baldios, de onde desafiavam a justia e os seus representantes. Os prprios nobres, encafuados dentro dos seus castelos e brincando aos reizinhos nos seus domnios, se tornavam em chefes de bandos no menos irregulares e opressivos do que aqueles que tratantes confessos comandavam. para manterem esses seguidores e suportar as prprias extravagncias e luxos, exigidos pelo respectivo orgulho, os nobres pediam emprstimos junto dos judeus, a juros escandalosos, que lhes rolam como cancros as propriedades, um mal praticamente incurvel, se se exceptuarem as circunstncias pontuais em que arranjavam liberdade para praticarem sobre os seus credores qualquer acto de brutalidade primria. Ajoujados pelas muitas cargas deste miservel estado de coisas, as gentes da Inglaterra sofriam terrivelmente o presente e ainda mais temiam pelo seu futuro. Aumentando- lhes a misria, uma contagiosa epidemia espalhava-se por todos os lados. Tornada mais virulenta ainda pela porcaria, alimentao pouco higinica e habitaes absolutamente imprprias das classes inferiores, a doena ia-as varrendo vorazmente, num destino que os que lhe resistiam quase chegavam a invejar, quando pensavam em desgraas maiores ainda por virem. Todavia, no meio de todas estas tragdias, pobres e ricos, plebeus e nobres, sempre que um torneio, o grande espectculo daqueles anos, ocorria, ferviam com tanto interesse pelo acontecimento como qualquer madrileno meio faminto e sem forma de atender s necessidades dos familiares vibra com a realizao duma tourada. Nem obrigaes, nem doenas, conseguiam afastar jovens e adultos de tais exibies. A Passagem de Armas, como o denominavam, efectuar-se-ia em Ashby, no condado de Leicester, e, como campees da melhor gua estariam em campo, na presena do prprio prncipe Joo, que honraria as lias, atraam a ateno geral, fazendo que uma imensa quantidade de gente de todos os extractos aflusse, apressando-se, durante a manh marcada, para o stio do prlio. O local era do mais romntico possvel. Na orla duma mata que se aproximava at quilmetro e meio da cidade abria-se um vasto prado, da mais fina e bela erva tendo a um lado a floresta e do outro carvalhos, alguns de tamanho monumental, dispersos. O terreno, que parecia ter sido feito para as actividades marciais de que ia ser palco, descia ligeiramente de todos os lados at formar um fundo plano, com uns quatrocentos metros de comprido por duzentos de largura, que fora reservado para as lias com fortes paliadas.
A forma do cercado era a dum rectngulo com os cantos arredondados para permitir mais comodidade aos espectadores.
As aberturas, para a entrada dos combatentes, situavam-se na extremidades norte e sul, consistindo em robustas cancelas, suficientemente largas para tornarem possvel a passagem de dois cavaleiros a par. Em cada um destes dois portais perfilavam-se dois arautos, acompanhados por seis trombeteiros, vrios outros indivduos e um corpo de homens bem armados, destinados manuteno da ordem e certificao do valor dos cavaleiros que pretendiam entrar no jogo. Numa plataforma para l da entrada meridional, numa elevao natural, haviam sido montados cinco magnficos pavilhes, enfeitados com penantes vermelhos e negros, as cores escolhidas pelos cinco cavaleiros que o desafio tinham lanado. As cordas das tendas eram das mesmas cores. Na frente de cada um dos pavilhes pendia o escudo do guerreiro que o ocupava, tendo ao lado um escudeiro mascarado de selvagem ou silvcola, ou qualquer outro traje fantasioso, executado segundo o gosto do amo e representando a figura que este pretenderia encarnar na luta(1). O pavilho central, o lugar de honra, fora dado a Brian de Bois-Guilbert, cuja fama em todas as actividades de cavalaria, mais do que a sua ligao aos cavaleiros organizadores desta Passagem de Armas, fizera que fosse muito bem acolhido pelo grupo dos desafiantes, muito embora somente h muito pouco tempo tivesse regressado ao pas. A um dos lados da sua tenda estavam as de Reginald Front-de-Boeuf e de Richard de Malvoisin; no outro, a de Hugh de Grantmesnil, um nobre baro da regio, que descendia do lorde alto-comissrio da Inglaterra do tempo da Conquista e seu filho William Rufus. A Ralph de Vipont, cavaleiro de So Joo de Jerusalm e dono de propriedades num local chamado Heather, perto de Ashbyde-la-Zouche, pertencia o quinto pavilho. Da entrada descia uma passagem, de ngulo pouco marcado e, mais ou menos, com dez metros de largura, conduzindo a uma plataforma onde se erguiam as tendas. Era bem protegida por paliadas nos dois lados, o mesmo acontecendo com a esplanada frente aos pavilhes. Tudo estava ao cuidado de homens de armas. O acesso norte das lias terminava numa entrada semelhante do outro, com nove metros de largura, no fim da qual se abria espao para os cavaleiros que quisessem medir foras com os desafiantes. Atrs viam-se tendas com refrescos ou de armeiros, ferreiros e outros artfices, cujos servios pudessem ser precisos. O exterior das lias estava parcialmente ocupado por galerias de armar, com tapearias, tapetes e almofadas, para as senhoras e nobres que viessem assistir ao torneio. *1.. Supe-se terem sido estas mascaradas que levaram incluso de tenentes na cincia da herldica.
Um espao estreito entre as galerias e as lias destinava-se a lavradores abastados e a pessoas um pouco acima do vulgo, podendo o seu aspecto ser comparado ao duma plateia de teatro. A multido de arraia-mida ocupava grandes pores da alfombra, a ela destinada e que, graas forma do terreno, lhe permitia ver tanto as lias como as galerias. Fora destes
locais, muita gente se acomodara trepando para os ramos das rvores que rodeavam o prado. At o campanrio duma igreja um pouco afastada se mostrava pejado de espectadores. Resta referir que, exactamente no centro do lado oriental da lia, ou seja precisamente em frente do ponto onde os cavaleiros se encontrariam, se levantava uma galeria mais alta e mais decorada do que as outras, com uma espcie de trono e um plio decorado com o braso real. Escudeiros, pajens, guardas, esperavam junto daquele enaltecido local. Oposta a esta galeria real, outra havia, da mesma altura, mas no lado oeste. Talvez mais vistosa, se bem que no to decorada como aquela que se destinava ao Prncipe. Muitos pajens e jovens donzelas, escolhidas entre as mais bonitas, alegremente vestidas de verde e de rosa, rodeavam outro trono pintado nessas cores tambm. Entre os pendes e bandeiras, muitos ostentando coraes frechados, coraes inflamados, coraes sangrantes, arcos e aljavas, enfim, todas as costumeiras banalidades indicativas dos triunfos de Cupido, aparecia uma inscrio brasonada informando os assistentes destinar-se aquele nobre assento a "La Royne de las Beault et des Amours". Mas quem seria essa "Rainha da Beleza e do Amor" ningum o sabia para j. Entretanto, espectadores de todos os gneros acorriam para tomar conta dos seus respectivos stios, o que dava lugar a inmeras questinculas a propsito de a quem por direito cabia este ou aquele posto. Algumas destas pegas eram rapidamente atalhadas por guardas, que no estavam com meias medidas. Os cabos das lanas ou os punhos das espadas eram usados prontamente como argumentos convincentes contra os mais recalcitrantes. Outras bulhas, envolvendo pessoas de condio mais elevada, eram resolvidas por arautos ou pelos dois mestres-de- cerimnias, William de Wyvil e Stephen de Martival, que, armados de ponto em branco, percorriam as lias, para c e para l, impondo respeito multido. As galerias foram-se enchendo com cavaleiros e fidalgos, envergando roupagens de paz, cujos longos mantos de com contrastavam com os mais alegres e mais vistosos vestidos das damas, que, em nmero maior do que o de homens, acudiam a presenciar um espectculo por muitos tido como demasiadamente sangrento e perigoso para agradar ao sexo fraco. O espao inferior rapidamente ficou repleto de oficiais, burgueses e fidalgos menores, que, por modstia, pobreza ou ttulos um tanto duvidosos, no se atreviam a tomar posies mais elevadas. Era, evidentemente, entre estes que mais zaragatas,
provocadas por questes de precedncia, aconteciam. - Co descrente - resmungou um velho, cuja capa puidssima mostrava tanto de pobreza como a espada, a adaga e a corrente dourada indicavam de pretenses a categoria -, lobato filho de loba tinhosa! Como te atreves tu a querer passar frente dum cristo, e logo dum cristo normando da linhagem de Montdidier? Esta dura acusao fora atirada nada mais nada menos do que ao nosso j conhecido Isaac, que, ricamente, mesmo magnificamente vestido, com um gabo decorado com laos e debruado com peles, tudo tentava para conseguir lugar na fila mais importante, logo abaixo da galeria, para si e para sua belssima filha
Rebeca, que se lhe juntara em Ashby e que, no instante, se agarrava ao brao paterno, aterrada com os modos das gentes, que pareciam, na sua totalidade, irritadas com a presuno do pai. Mas Isaac, cuja faceta de timidez nos foi dada a conhecer noutras ocasies, sabia muito bem nada ter a temer agora. Nunca era em pontos de ajuntamento popular, nem na frente dos seus pares, que os fidalgos cobiosos e malvolos o agrediam, j que em situaes dessas o Judeu se encontrava sob a proteco da lei geral, e, se essa no bastasse, como era frequente acontecer, sempre estariam por ali, naquela reunio de pessoas, alguns bares, cujos interesses pessoais os obrigariam a agir em sua defesa. Na ocasio presente, Isaac sentia-se mais do que confiante, pois sabia estar o prncipe Joo quase pronto a concluir um emprstimo vultoso com os judeus de Iorque, a quem daria como garantia certas jias e terrenos. Era considervel a participao de Isaac nesta transaco, que, adivinhava-o, o Prncipe ansiava por fechar quanto antes para se proteger do dilema que enfrentava. Encorajado por tais pensamentos, o Judeu, persistindo no seu objectivo, empurrou o cristo normando, sem considerao pelas suas linhagem, posio e religio. As queixas do velho, porm, atiaram a indignao dos circunstantes, um dos quais, um corpulento e bem constitudo homem livre, vestido de verde, com uma dzia de setas no cinto, boldri, um distintivo de prata e um arco longo, de um metro e oitenta, na mo, que, voltando-se com o rosto, que a exposio s intempries dera uma cor de avel, ainda mais escuro de raiva, recomendou ao Judeu que se lembrasse de que toda a fortuna que ele adquirira, sugando o sangue das suas vtimas infelizes, o inchara como uma aranha, na qual se podia no reparar enquanto se mantivesse escondida no seu canto, mas que qualquer um esmagaria, pisando-a, se se atrevesse a aparecer luz do dia. Este aviso, feito em normando-ingls com voz firme e cara de poucos amigos, obrigou o Judeu a, encolhendo-se, recuar. Teria mesmo fugido de paragens to perigosas se a ateno de todos
no tivesse sido distrada pela repentina chegada do prncipe Joo, que entrava nas lias, seguido de numeroso e garrido cortejo, formado parte por laicos, parte por clrigos, estes to vistosamente ataviados e animados como aqueles. O prior de Jorvaulx seguia entre o ltimo grupo, to enfeitado quanto um dignitrio da Igreja o podia fazer. No lhe faltavam nem peles, nem ouro, nas suas vestimentas, e as botas, seguindo a absurda moda da altura, subiam-lhe muito acima, para l dos joelhos, at ao cinturo, no lhe permitindo, inclusivamente, enfiar os ps nos estribos, limitao que em nada o perturbava, j que, pelo contrrio, lhe deixava exibir o muito que sabia de equitao quela gente toda, muito especialmente s damas. Os restantes acompanhantes do Prncipe eram alguns comandantes seus preferidos de tropas mercenrias, alguns bares especializados em pilhagens, com os seus duvidosos subalternos, e vrios cavaleiros templrios e da Ordem de So Joo. Recordar-se- aqui que os cavaleiros daquelas duas ordens eram tidos como adversos ao rei Ricardo, tendo tomado voz pelo partido de Filipe de Frana durante as continuadas disputas travadas na Palestina entre este monarca e o rei de
Inglaterra, de corao leonino. do conhecimento geral ter esta prolongada discrdia tido como resultado as repetidas vitrias de Ricardo de nada terem valido, as suas romnticas tentativas de cerco a Jerusalm frustradas e todos os frutos da glria, que conseguira, se extinguirem numa trgua duvidosa e como o sulto Saladino, Seguindo a mesma poltica dos seus companheiros da Terra Santa, os Templrios e os Hospitalrios, em Inglaterra e na Normandia, ligaram-se faco do prncipe Joo, uma vez que o regresso do rei Ricardo, ou a sua sucesso pelo seu filho legtimo, Artur, pouco lhes interessavam. Por seu lado, o prncipe Joo odiava e desprezava as poucas famlias saxnicas de alguma posio, subsistindo na Inglaterra, no perdendo qualquer ensejo para as humilhar e ofender, uma vez que sabia serem a sua pessoa e pretenses pouco do gosto, quer delas, quer da maior parte do povo ingls, todos temendo ver os seus direitos e liberdades ainda mais cerceados por um tirano e libertino como era. Acompanhado por esta luzida comitiva, o Prncipe, esplendidamente montado num fogoso palafrm cinzento, vestido de carmesim e dourado, levando no pulso um falco, a cabea coberta por um barrete de pele de qualidade, decorado com pedras preciosas, de dentro do qual o seu longo cabelo encaracolado saa, caindo-lhe at aos ombros, volteava, rindo alto com os seus seguidores e fixando, com o descaramento que o seu sangue real lhe autorizava, as damas sentadas nas galerias, Quem quer que percebesse na fisionomia do Prncipe uma audcia dissoluta, misturada com altivez demasiada e indiferena pelos sentimentos dos outros, no poderia deixar de dar crdito por aquela beleza que sempre tm as feies abertas, bem formadas
e melhor controladas pelas regras da etiqueta, mesmo que afastando-se da franqueza e honestidade, como que propositadamente no ocultando o que a alma por detrs desses rostos carrega. Tal expresso acontece ser confundida com a da franqueza, quando, na verdade, resulta de indiferena, temperamento dissoluto, conscincia de posio devida a nascimento, riqueza e outras caractersticas que nada tm a ver com qualidades pessoais. para aqueles que no iam to fundo na sua anlise, ali na proporo de cem para um, o esplendor da romeira de pele, a riqueza da capa debruada com arminho, as botas de marroquim e as esporas douradas do prncipe Joo, aliadas graa com que conduzia a sua montada, bastavam para que clamorosamente o aplaudissem. No seu gracioso volteio em torno das lias, a ateno do Prncipe foi chamada pelo burburinho, ainda no amainado, que a tentativa de Isaac para alcanar lugares de maior importncia na assembleia causara. A clebre vista do prncipe Joo instantaneamente reconheceu o Judeu, tendo, contudo, sido muito mais agradavelmente surpreendido pela bela filha de Sio, que, apavorada, continuava presa ao brao do seu idoso pai. com efeito, Rebeca podia ser posta a par de qualquer das mais belas damas de Inglaterra, mesmo que o juiz de tal comparao fosse um conhecedor to exigente como o prncipe Joo o era. De linhas extremamente bem feitas e realadas pelo vestido de
corte oriental, que usava de acordo com os costumes das mulheres da sua raa, trazia um turbante de seda amarelo, que muito bem dizia com a sua compleio trigueira. O brilho dos seus olhos, o arco soberbo das sobrancelhas, o perfeito nariz aquilino, os dentes como prolas e as pesadas e longas tranas que, armadas em espiral, caam ao longo dum pescoo e dum colo lindssimos, que uma samarra, de pura seda persa, com desenhos de flores nos seus tons naturais em fundo prpura, deixava entrever, tudo formava um conjunto de beleza tamanha que nenhuma das mais bonitas donzelas sua volta conseguia igualar. certo que, em virtude do calor, dos fechos de ouro com prolas encastoadas, destinados a prender o vestido at cinta, os trs de cima estavam desabotoados, o que, de algum modo, permitia que a viso atrs descrita fosse um pouco mais alargada do que o usual e que o colar de brilhantes e os brincos de valor incalculvel que ostentava mais se valorizassem. A pena de avestruz, que um broche de diamantes prendia ao turbante, acrescia um pouco mais ainda de distino esplendorosa judia, de quem as senhoras, sentadas nas filas cimeiras, troavam e desdenhavam, embora, no fundo, a invejassem. - Pela careca de Abrao! - soltou o prncipe Joo. - Aquela judia alm deve ser a tal que era o supra-sumo da perfeio
e cujos encantos enlouqueceram os mais sbios entre todos os reis. Qual a tua opinio, amigo Aymer? Pelo Templo, desse mesmo rei, que o meu ainda mais sbio irmo no conseguiu reconquistar, ela deve ser a encarnao da noiva do Cntico dos Cnticos. - Uma rosa-de-saronas, um verdadeiro lrio-do-vale - respondeu o Prior, falando em voz velada e nasal -, mas no esquea Vossa Graa que no passa duma judia. - Vejam - continuou o prncipe Joo, sem lhe prestar ateno. - E ali o meu Mamono da iniquidade, o marqus dos Marcos, o baro dos Bizncios, lutando por um pouso com ces sem vintm, cujas capas, transparentes de gastas, no tm, nos bolsos, um mero cruzado para fazer que o Demo no dance l dentro. Por So Marcos, o prncipe dos meus fornecedores, e a sua judia, tm de ter stio na galeria! Quem ela, Isaac? Tua esposa ou tua filha? Essa huri que trazes pelo brao, em vez de a teres bem guardada numa das tuas arcas de tesouros? - Saiba Vossa Graa que minha filha Rebeca - informou Isaac com uma grande reverncia e nada acanhado com o cumprimento do prncipe, no qual houvera tanto de troa como de cortesia. - O que mais rico te torna ainda! - comentou Joo com uma curta gargalhada, qual os seus joviais companheiros logo, servil mente, juntaram as suas. - Esposa ou filha, tem de ter a preferncia que a sua beleza e mritos exigem. Quem est sentado a em cima? - perguntou percorrendo a galeria com os olhos. - Malandros saxes a preguiarem! Fora com eles! Que se apertem bem para darem lugar ao meu prncipe dos usurrios e sua maravilhosa filha! Ensinarei a esses bisonhos que so obrigados a compartilhar os lugares altos da Sinagoga com aqueles a quem a Sinagoga pertence por direito. Eram Cedric, o Saxo, o seu parente Athelstane de
Conningsburgh e os respectivos familiares quem ocupava a zona para onde fora dirigida esta insultuosa e pouco delicada afirmao. Athelstane era um homem que, devido a descender dos ltimos monarcas saxes da Inglaterra, era visto com o maior dos respeitos por todos os saxes do Norte do pas. com feies correctas, corpulento e forte, na flor da idade, mas de expresso parada, olhos mortios, sobrolho cado, Pouco mexido e de movimentos moles e to lento nas suas decises que lhe tinham dado a alcunha dum dos seus antepassados, toda a gente o conhecendo por Athelstane, o Atado. Os seus amigos, e muitos eram, entre eles Cedric, estavam-lhe muito ligados, atribuindo a sua moleza no a falta de coragem, mas apenas a ausncia de poder de deciso. Outras pessoas, todavia, afirmavam que o alcoolismo hereditrio lhe embotava as faculdades, fazendo-as funcionar mal, e que a sua coragem passiva e mansa maneira de ser no eram mais do que os excrementos dum carcter que, um dia, poderia ter tido valor,
mas que tudo que de bom tivera perdera durante o decorrer duma vida incontrolavelmente devassa. Fora a esta pessoa que descrevemos que o Prncipe endereara a sua imperiosa ordem de abrir alas para Isaac e Rebeca. Athelstane ficou completamente aturdido com aquele comando, que as maneiras e forma de sentir da poca viam como altamente injurioso e difcil de acatar, e, sem querer obedecer-lhe, mas no sabendo como proceder, optou simplesmente pela vis inertiae(2), deixando-se ficar absolutamente quieto, sem qualquer movimento de obedincia, com os olhos cinzentos muito esbugalhados e mirando, espantados, o Prncipe, com uma expresso quase cmica. No foi, contudo, dessa forma que o precipitado Joo os viu... - De duas, uma - exclamou -, ou o porcario do Saxo est a dormir, ou no me quer ligar! Espeta-lhe a lana, De Bracy! mandou a um cavaleiro prximo de si, comandante dum bando de Companheiros Livres, ou sejam, mercenrios no pertencendo a nenhuma nao e que serviam temporariamente qualquer prncipe que lhes pagasse. Fez- se um murmrio, partindo, inclusivamente, dos do seu squito. De Bracy, cuja profisso o tornava livre de quaisquer escrpulos, estendeu a sua longa lana ao correr da galeria e teria executado a ordem recebida antes de Athelstane, o Atado, ter tempo de decidir que lhe deveria fugir com o corpo, se Cedric, to rpido como lento era o seu consanguneo, com a velocidade do raio, no desembainhasse a curta espada que trazia e, num golpe somente, no cortasse cerce a haste da lana, fazendo o ferro cair. O sangue subiu ao rosto do prncipe Joo, que, praguejando horrivelmente, se preparou para responder com furor, s no o concretizando porque os seus acompanhantes o cercaram, recomendando-lhe calma, e porque a multido correspondera ovacionando bem alto o gesto de Cedric. Rolando os olhos procura de algo sobre o qual descarregar a sua ira, acabou por pous-los no rosto firme do arqueiro que mencionmos, que prosseguiu aplaudindo, mesmo quando o Prncipe, de semblante carregado, lhe perguntou porque se manifestava assim. - Sempre aplaudo - respondeu o arqueiro - quando assisto a uma boa frechada ou a uma espadeirada das grandes. - Ah, sim? - prosseguiu o Prncipe. - Mas no s capaz de
acertar na mosca dum alvo. Aposto. - Num alvo de monteiros, distncia que os monteiros o pem, sou. - E no alvo de Wat Tyrrel, a cem metros? - disse uma voz, l para trs, onde se no podia ver quem falara. Esta aluso sorte de William Rufus, seu parente, irritou e alarmou o prncipe Joo. *2. Fora da inrcia. (N. do T.)
Limitou-se, todavia, a mandar que os seus homens de armas, rodeando as lias, mantivessem o fanfarro debaixo de vista e, apontando para o arqueiro, bradou: - Por So Grizzel! Havemos de experimentar a habilidade de quem to facilmente levanta voz pelos feitos de outrem. - prova no fugirei - respondeu com a serenidade que, desde o comeo, o arqueiro ostentara. - Entretanto, levantai-vos, saxes malandros - disse o arrebatado prncipe -, pois, pela Luz Celestial, se o prometi, o Judeu ter de ter um lugar entre vs! - De modo algum. Saiba Vossa Graa que no me compete sentar a par de fundirios - interps-se o Judeu, cujo anseio por precedncias, que o levara a disputar um lugar com um debilitado e empobrecido descendente da linhagem dos Montdidier, no bastava para lhe dar foras para afrontar privilgios de saxes abastados. - Levanta-te, co infiel, como to mando - vociferou o prncipe Joo -, ou esfolo-te essa pele escura para mandar fazer arreios com ela! Assim espicaado, o Judeu comeou a subir os ngremes e apertados degraus que conduziam galeria. - Ainda quero ver - avisou o Prncipe - quem se atrever a det-lo - isto com os olhos postos em Cedric, que se mostrava, pela posio que tomara, pronto a atirar com o Judeu por ali abaixo. A catstrofe evitou-a Wamba, que, saltando entre o amo e Isaac, em resposta ao desafio do Prncipe, exclamou: - Atrevo-me eu! - E colocou junto das barbas do Judeu um naco de carne de javali, que retirara da capa, onde a guardara para o caso de o torneio durar mais tempo do que aquele que o seu apetite pudesse aguentar. Perante aquela coisa to abominada pelos da sua tribo, o Judeu recuou, ps um p em falso e caiu dois ou trs degraus, para grande gudio dos espectadores, que soltaram enormes risadas, s quais o prncipe Joo e os seus se associaram. - D-me o prmio, meu primo Prncipe - pediu Wamba. Venci o meu inimigo em combate leal, com espada e escudo acrescentou, mostrando a carne e a espada de pau. - Quem e o que faz, nobre campeo? - perguntou o Prncipe, sempre a rir-se. - Um louco pela genealogia - esclareceu o bobo. - Sou Wamba, filho de Witless, que era filho de Weatherbrain (3), que era filho dum vereador. *3.. Witless e Weatherbrain podem traduzir-se por Sem Juzo e
- Abram espao para o Judeu na frente do anel inferior mandou o Prncipe, qui satisfeito por ter arranjado uma desculpa para pr de parte o seu propsito inicial. - Colocar o vencido ao lado do vencedor seria heraldicamente incorrecto. - Patife em fundo louco pior seria ainda - comentou o bobo e muito pior se fosse judeu em campo de toucinho! - Mil graas, bom rapaz - exclamou o Prncipe. - Agradas-me. Ei, Isaac, empresta-me uma mancheia de bizncios. Quando o Judeu, confundido pelo pedido, temendo no o atender e, ao mesmo tempo, desejando no o satisfazer, principiou a remexer na sacola de pele cinta, tentando imaginar quantas moedas seria uma mancheia, o Prncipe baixou-se na sela e, arrumando-lhe as dvidas, arrancou-lha. Atirando a Wamba um par de peas de ouro, prosseguiu ao longo das lias, pondo todos sua volta a rir e recebendo uma ovao da populaa como se tivesse acabado de praticar uma obra de vulto.
Captulo VIII Em voz alta o desafiante seu grito soltou, Que, ao toque de trombetas, o rival aceitou O clamor enche o campo e no recncavo cu ecoou. Viseiras, descidas e as lanas apoiadas, Ou ao elmo, ou ao topete, apontadas, Desaparecem da barreira, apressando passo, fora de esporas entre si diminuem espao. Palamon e Arcite
A meio da parada, o prncipe Joo estacou e, virado para o prior de Jorvaulx, lembrou-lhe terem-se esquecido do pormenor mais importante da festa. - Virgem Santa! - disse. - Esquecemo-nos de nomear a Soberana do Amor e da Beleza, cuja alva mo entregar a palma da vitria. Pessoalmente, e liberal como sou, nada me importava que fosse Rebeca, a dos olhos negros. - Me do Cu! - horrorizou-se o Prior com os olhos em alvo. Uma judia! Seramos corridos pedrada destas lias, e a verdade que ainda sou novo de mais para me tornar mrtir. Alm de tudo, juro que ela no to bela como Rowena, a beldade saxnica. - Saxo ou judeu - perguntou o Prncipe -, canino ou suno, que diferena fazem? Por mim escolhia a Rebeca, quanto mais no fosse, para arreliar esses patifes desses saxes. Elevou-se um sussurro de protesto entre os seguidores mais prximos. - Seria uma brincadeira de mau gosto, Senhor - observou De Bracy. - Nenhum cavaleiro tornaria a dar descanso sua lana se tal insulto se concretizasse. - Seria uma ofensa sem limites - lembrou Waldemar Fitzurse um
dos mais idosos e importantes dos companheiros do - Se Vossa Graa a levar avante, poder vir a ver projectos arruinados. - Convidei-o, senhor - objectou Joo altivamente, rdeas do palafrm -, para meu acompanhante e no conselheiro.
- Todos os que acompanham Vossa Graa no caminho que trilha lembrou Waldermar, mas em voz baixa - adquirem o direito de se tornar seus conselheiros, j que os seus interesses e segurana no esto mais empenhados do que os deles. De forma como isto foi dito concluiu Joo ter de aquiescer. - Brincava apenas - esclareceu -, e, mesmo assim, viraste- vos contra mim como vboras. Escolhei, a vosso gosto, quem quiserdes entre as assistentes. - No!. No! - props De Bracy. - Deixemos o trono da bela soberana vago at que se saiba quem o vencedor. Este indicar qual a dama que o ocupar. Tal acrescentar gentileza ao seu triunfo e ensinar s belas melhor apreciarem o cavaleiro que, desse modo, as venha a exaltar. - Se Brian de Bois-Guilbert vencer - comentou o Prior -, aposto o meu rosrio em como sei quem que ele escolher. - Bois-Guilbert uma excelente lana - lembrou De Bracy -, mas, Sr. Prior, nestas lias esto outros que no temem cruzar armas com ele. - Silncio, senhores! - bradou Waldemar. - Deixemos o Prncipe sentar-se. Tanto os cavaleiros como o pblico j esto impacientes. O tempo corre e j altura de se iniciarem os jogos. O prncipe Joo, embora no fosse rei ainda, j tinha em Waldemar Fitzurse um ministro com todas as inconvenincias de quem deseja servir o seu soberano de acordo com a prpria maneira de ver as coisas... O Prncipe, concordando, conquanto a sua disposio, no momento, fosse mais de implicar com pequenos nadas, sentou-se no trono, rodeado da sua gente, e fez sinal aos arautos para que anunciassem as regras do torneio, que seriam as seguintes: Primeiro: os cavaleiros desafiantes teriam de aceitar todos que com eles pretendessem combater. Segundo: qualquer cavaleiro que quisesse combater poderia, se assim o desejasse, escolher um antagonista entre os cinco desafiantes, para o que bastaria tocar-lhe no escudo com a lana. Se o fizesse com o conto, a prova seria executada com aquilo que se denominavam armas de cortesia, ou seja, com lanas que tinham na ponta uma superfcie circular e plana, para que no houvesse perigos, alm dos resultantes do choque de cavalos e cavaleiros. Porm, se o escudo fosse batido com a ponta, ficava entendido que o combate seria outrance(1), portanto com armas afiadas, como em verdadeiras batalhas. Terceiro: quando os cavaleiros presentes tivessem cumprido a sua promessa, quebrando cada um cinco lanas, *1.. Em francs no original. Sem d nem piedade, a doer. (N. do T.)
o Prncipe anunciaria o nome do vencedor do primeiro dia de torneio, que, como prmio, receberia um cavalo de batalha, de extraordinria beleza e fora imensa. Alm deste prmio pela sua bravura, estipulava-se agora, teria tambm a honra de ser ele quem nomearia a Rainha do Amor e da Beleza, rainha que entregaria o galardo no dia seguinte. Quarto: no segundo dia haveria um torneio generalizado, em que todos os cavaleiros presentes, desejosos de mritos, poderiam tomar parte. Seriam divididos em dois grupos, de nmero igual de componentes, que lutariam at o Prncipe fazer sinal para pararem. A j eleita Rainha do Amor e da Beleza coroaria o cavaleiro que o Prncipe entendesse ter sido o mais merecedor da jornada com uma coroa de fina folha de ouro, recortada na forma de louros. Neste segundo dia, os jogos ficariam por ali. Mas no terceiro dia realizar- se-iam competies diversas, como tiro ao arco, lutas de ces contra touros e outros divertimentos populares. Desta maneira procurava o Prncipe fortalecer a sua popularidade, que, no entanto, constantemente fazia diminuir devido a ilgicos actos de brutalidade que praticava, ferindo os sentimentos e preconceitos do povo. As lias constituam um espectculo ainda mais esplndido. As galerias em declive mostravam-se pejadas de toda a gente nobre e importante, abastada e bela do Norte da Inglaterra. As roupas de todas estas pessoas de posio, contrastando entre si, davam ao local um aspecto de poder festivo que o espao inferior, cheio de slidos burgueses e homens livres, mais sobriamente vestidos, envolvia como uma franja ou orla envolve um colorido bordado, suavizando-o e, ao mesmo tempo, relevando-lhe o esplendor. Os arautos terminaram a proclamao com o habitual brado de "Largesse! Largesse!(2), bravos cavaleiros!", a que uma chuva de peas de ouro e prata respondia sobre eles caindo, num dos pontos altos da cavalaria, que, tomando esta atitude, mostrava a sua liberalidade para com aqueles homens, que considerava como os anotadores e historiadores de tudo que era honroso e nobre. Aquela bonana vinda dos espectadores era acusada com os usuais brados de "Amor s damas"; "Campees perante a morte"; "Honra aos generosos", "Glria aos bravos! ", aos quais os assistentes mais humildes juntavam as suas aclamaes e um numeroso grupo de corneteiros o som dos seus instrumentos. Quando todo este alarde cessou, os arautos retiraram-se das lias, em faustosa procisso, ningum l ficando, a no ser os mestres-de-cerimnia, armados dos ps cabea, imveis nos seus cavalos, nos extremos opostos do campo. Neste interim, a poro cercada no norte das lias, *2.. Em francs no original. Liberalidade. (N. do T.)
grande como era, abarrotava de cavaleiros desejosos por demonstrarem o seu valor, os quais, vistos das galerias, formavam um mar de plumas, elmos brilhantes e longas lanas, muitas com pequenos galhardetes, dum palmo de comprido, que, tocados pela brisa, adejavam tambm. Finalmente abriram-se as barreiras, e cinco cavaleiros,
escolhidos por sorteio, entraram vagarosamente na rea. Um campeo marchava isolado na frente, os outros quatro seguindo-o em pares. Todos esplendidamente armados, registando a minha fonte de informao saxnica (no Manuscrito de Wardour), com grande pormenor, os seus emblemas a cores bordados nos panos das suas montadas. No valer a pena transcrev-los. Recorrendo a um poeta contemporneo que, lamentavelmente, muito pouco escreveu: P so os cavaleiros andantes, Ferrugem as belas espadas montantes. Oxal aos santos se tenham junto as suas almas errantes (3). Lembremo-nos somente de que de h muito os seus brases j no emolduram as paredes dos castelos, castelos que j no so mais do que outeiros verdejantes ou derrudas runas - os stios que os conheciam j no os conhecem mais -, tal como muitas outras geraes depois deles morreram ou foram olvidadas pela terra que ocuparam com toda a autoridade de senhores e proprietrios feudais. Deste modo, de que serviria ao leitor ficar a saber os seus nomes, conhecer os efmeros smbolos da sua patente marcial? Naquela ocasio, todavia, e sem poderem prever o esquecimento que iria cobrir-lhes os nomes e os feitos, os campees percorriam as lias, contendo as suas fogosas montadas, obrigando-as a seguir lentamente, em passada que avultava a sua graa e maestria na arte de equitao. Ao entrar o cortejo no terreno, o som duma msica brbara e selvagem saiu de detrs das tendas dos desafiantes, onde se ocultavam msicos. Eram tais acordes de origem levantina, tendo sido trazidos da Terra Santa, parecendo, naquele conjunto de cmbalos e campnulas, dar simultaneamente as boas-vindas e desafiar os cavaleiros que se achegavam. com os olhos da turba neles postos, alcanaram a plataforma, onde se erguiam as tendas *3. - Estas linhas pertencem a um poema indito de Coleridge, cuja musa to frequentemente nos tantaliza por meio de fragmentos do seu poder, enquanto a maneira como o dardeja tanto capricho revela em resultados que. mesmo inacabados, nos mostram muito mais talento do que aquele que existe em obras-primas de outros.
dos desafiantes, e, separando-se, ento, cada um deles tocou ao de leve, com o reverso da lana, no escudo do opositor que escolhera As camadas mais baixas dos assistentes, e igualmente muitos de classe mais elevada e inmeras damas, mostraram-se desapontados ao verem que a escolha era de armas de cortesia. Pelos mesmos motivos que muita gente, hoje em dia, se excita com as maiores tragdias, tambm dantes, nos torneios, o interesse era proporcional aos riscos a que os guerreiros se submetiam. Tendo evidenciado os seus relativamente pacficos propsitos, retiraram-se os campees para os extremos das lias, onde se colocaram em linha. Os desafiantes saram das tendas, montaram e, conduzidos por Brian de Bois-Guilbert, desceram da elevao, tomando posies, cada um frente quele que lhe tocara o escudo.
Ao soar de clarins e cornetas, partiram a todo o galope, uns contra os outros, sendo de tal forma superior a destreza ou sorte dos desafiantes que os opositores de Bois-Guilbert, Malvoisin e Front-de-Boeuf logo rolaram pelo cho. O antagonista de Grantmesnil, em vez de, lealmente, dirigir a sua lana para o escudo ou para o elmo, afastou-se tanto da linha directa que bateu de travs no corpo do oponente, facto muito mais reprovvel do que tombar do cavalo, uma vez que isto poderia suceder por acidente, enquanto aquilo somente poderia ser atribudo a inabilidade no manejo da arma ou do cavalo. Apenas o quinto cavaleiro salvou a honra do grupo, ao entrechocar-se com o cavaleiro de So Joo, pois ambos partiram as lanas, sem vantagens para qualquer deles. Os gritos da multido, aliados s aclamaes dos arautos e ao fragor das cornetas, cantaram o triunfo dos vencedores e a derrota dos vencidos. Os primeiros regressaram aos pavilhes e os outros, arranjando-se o melhor que podiam, partiram dali, desalentados e envergonhados, para assentarem com os seus vencedores o resgate das suas armas e montadas, que, segundo o regulamento do torneio, tinham perdido em favor deles. Apenas o quinto entre eles se deixou ficar, recebendo aplausos dos espectadores, para junto dos quais se retirou pouco depois, para maior agravo e mortificao dos companheiros. Um segundo e um terceiro grupo de cavaleiros vieram a campo. Se bem que os resultados variassem de caso para caso, no cmputo final o sucesso ficou inteiramente nas mos dos desafiantes, nenhum dos quais fora derrubado ou ferira o adversrio de esguelha, fracassos que aconteceram a dois dos seus antagonistas, em cada encontro. O moral dos que os desejavam enfrentar estava pois muito amolecido por tantas vitrias repetidas, pelo que, na quarta justa, somente trs cavaleiros se apresentaram, e mesmo esses evitaram as lanas de Bois-Guilbert e Front-de-Boeuf, contentando-se em tocar os escudos dos outros trs, que no tinham mostrado tanta fora e habilidade. Esta opo tambm no resultou.
Um deles caiu e os outros dois no conseguiram attaint(4), ou seja, bater ou no escudo ou no elmo do oponente, forte e firmemente, com a lana directamente apontada para que se quebrasse, caso o campeo no fosse atirado abaixo. A seguir a este quarto encontro fez-se um considervel intervalo, parecendo no haver mais ningum interessado em combates. Os espectadores resmungavam j, mesmo porque Malvoisin e Front-de-Boeuf eram, devido ao seu temperamento, pouco populares e os outros, no contando Grantmesnil mal vistos porque no locais, mas estrangeiros. Ningum, porm, mais profunda e completamente partilhava deste sentimento geral do que Cedric, o Saxo. que, em cada ponto ganho pelos normandos via mais outro triunfo contra a honra da Inglaterra. A sua educao no lhe dera destreza para os jogos da cavalaria, muito embora, com as armas dos seus antepassados saxes, se tivesse mostrado, em muitas ocasies, um bravo e afoito soldado. Remirava, ansioso, Athelstane, que aprendera aquela forma de combater, como que rogando-lhe fizesse um esforo pessoal para arrancar a vitria que parecia caminhar para o colo do Templrio e dos seus companheiros. Mas Athelstane, embora de rija tmpera e de corpo robusto, era
demasiado parado para se encarregar dos exerccios que Cedric dele parecia esperar. - O dia vai mau para a Inglaterra, senhor - lembrou Cedric num tom carregado de implicaes. - No estar tentado a pegar na lana? - Fica para amanh - respondeu Athelstane, - na mle(5). No vale a pena pr hoje a armadura s costas. Duas coisas desagradaram a Cedric nestas frases. A palavra normanda mle (significando luta generalizada) e uma certa indiferena pela honra da nao. Porm, como haviam partido da boca de Athelstane, pessoa que lhe merecia a maior considerao, deixou de tentar aprofundar a sua razo de ser. Alis, nem tempo para isso teria tido, pois Wamba interrompeu-o dizendo "ser prefervel, se bem que ligeiramente mais fcil, ser-se o melhor entre unia centena do que o melhor de dois". Athelstane tomou esta observao como um cumprimento, mas Cedric, que conhecia o bobo muito bem e vira onde ele quisera chegar, lanou-lhe um olhar severo e ameaador. Wamba teve sorte em ser ali e naquele momento, seno, no obstante o seu lugar e servios, teria, do aborrecimento do seu amo, recebido marcas bem mais dolorosas.
*4.. Este termo de cavalaria, entrando mais tarde na terminologia leiga inglesa, passou a querer significar "atingido traio". 5. Em francs no original. Refrega. (N. do T.)
A paragem do torneio estendia-se, apenas quebrada pelos arautos bradando "Quebrem-se lanas por amor s damas! Avanai, bravos cavaleiros, que belos olhos vos contemplaro!" Tambm a msica dos desafiantes se fazia ouvir, de quando em vez, em selvagem e expressivo tom de vitria ou de desafio, enquanto palhaos, para entreterem o pblico, iam mostrando as meninices. Cavaleiros e nobres idosos segredavam uns com os outros, lamentando o decair do esprito guerreiro, recordando os triunfos dos tempos em que eram mais novos e todos concordando j no haver damas de beleza to sublime e to radiante animao como as de outrora. O prncipe Joo j falava com o pessoal acerca do banquete a realizar-se e sobre o ter de ver qual o prmio a dar a Bois-Guilbert, que, com a mesma lana, derrubara dois cavaleiros e vencera um terceiro. inesperadamente, quando os acordes musicais sarracenos, num floreado agudo e prolongado, terminavam uma das suas intervenes, uma trombeta isolada, soando no extremo norte das lias, respondeu-lhes em tom de repto. Todos se viraram para verem quem era o campeo que assim se anunciava e que, abertas as cancelas, j entrava no terreno. Tanto quanto se podia apreciar num homem de ferro coberto, o novo aventureiro no aparentava um fsico muito acima da mdia, sendo mais para o esbelto do que para o pesado. A sua armadura era de ao, com formosas incrustaes de ouro, e o escudo com a figura pintada de um carvalho arrancado pelas razes, sob o qual se lia a palavra castelhano "Desdichado", isto , "Desditoso". Montado num maravilhoso cavalo negro, saudou com elegncia o Prncipe
e as damas, descendo a lana. A destreza com que fazia seguir a montada e qualquer coisa de juventude que dele irradiava ganharam-lhe a simpatia da multido, do meio da qual, principalmente de entre os de classe mais baixa, vieram recomendaes como "Toque o escudo de Vipont", "Toque o escudo do Hospitalrio. o que menos se aguenta, logo o de escolher! " O campeo continuou, sem prestar ateno a estas bem intencionadas bocas, subiu plataforma pela rampa e, perante o espanto de todos, trotou directamente para o pavilho central, frente ao qual bateu com a ponta da lana no escudo de Brian de Bois-Guilbert, fazendo-o tinir. Todos se surpreenderam com tamanho arrojo, mas ningum mais do que o poderoso cavaleiro, deste modo desafiado para combate mortal e que, de modo algum esperando um repto daqueles, se deixara, descontradamente, estar encostado entrada da tenda. - Confessaste-te, irmo? - perguntou o Templrio. Assististe, hoje de manh, missa? o perigo a que ests a expor a tua vida imenso. - Estou mais preparado para a morte do que tu - respondeu-lhe o cavaleiro Desditoso, pois fora sob esse epteto que se registara no torneio.
- Toma ento o teu lugar na lia - disse-lhe Bois-Guilbert - e olha para o Sol pela ltima vez, pois esta noite estars a dormir no Paraso. - Muito obrigado pela tua gentileza - replicou-lhe o cavaleiro Desditoso. - para a retribuir. sugiro-te que montes um cavalo fresco e empunhes uma lana nova, j que, pela minha honra, de ambos precisars. Tendo-se assim, com tanta confiana, exprimido, fez recuar o cavalo pela ladeira abaixo e, continuando a obrig-lo a andar para trs, percorreu o campo at ponta norte, onde, voltando-se, ficou esttico, aguardando que o antagonista ocupasse a sua posio. Tanto saber de equitao sacou uma onda de aplausos. Ainda que enfurecido com o topete do adversrio, Brian de Bois-Guilbert no lhe ignorou os avisos. A sua honra estava demasiado em jogo para se permitir no se garantir por todos os meios para uma vitria sobre to presunosa criatura. Substituiu, portanto, o cavalo por outro fresco, de grande fora e genica, e escolheu uma nova e resistente lana, no fosse a madeira da que usara estar abalada pelos encontros anteriores. Ps tambm de lado o escudo ligeiramente amolgado e pediu outro aos escudeiros. O primeiro tinha pintados dois cavaleiros montados no mesmo cavalo, seu smbolo usual, representativo da humildade e pobreza originais dos Templrios, qualidades que haviam perdido em favor da arrogncia e do amor s riquezas que acabariam por levar a Ordem extino; o escudo em que pegava agora ostentava um corvo, segurando uma caveira nas patas, em pleno voo, tendo por moto Gare le Corbeau(6). Mal tinham as trombetas terminado de dar o seu sinal e j os campees se afastavam dos seus postos, galopando como coriscos para quase de imediato se chocarem, no preciso centro da lia, com o fragor do trovo. As lanas partiram- se em pedaos at aos Punhos, tendo por instantes parecido que ambos os
guerreiros iriam tombar, uma vez que o recontro obrigara os cavalos a quase carem para trs, apoiados nas ancas. A extrema habilidade dos cavaleiros no deixou que assim acontecesse e, fora de rdeas e esporas, conseguiram domin-los. Uma troca de olhares flamejantes e, aps meia volta, regressaram s respectivas extremidades para receberem novas armas. A gritaria, o agitar de lenos, a aclamao geral, confirmavam o interesse da assistncia por este combate, o mais equilibrado e executado at quela altura do dia. *6.. Em francs no original. Cautela com o Corvo. N. do T.)
Logo que os cavaleiros de novo tomaram posies, fez-se um silncio to profundo, to total, que dava a ideia ter a multido medo de respirar que fosse. Passados os minutos de descanso, que concedera aos combatentes e aos seus cavalos para que retomassem o flego, o prncipe Joo, com o seu basto, mandou que as trombetas repetissem o toque de carga. Mais uma vez os campees voaram e se embateram com a mesma velocidade, a mesma destreza, a mesma violncia, mas no com a mesma fortuna de antes. Neste segundo encontro, o Templrio apontou bem para o centro do escudo do adversrio e l bateu com tanta fora que a lana se desfez e o cavaleiro Desditoso estremeceu na sela. Contudo, este, que, no comeo da corrida, assestara o seu ferro para o escudo de Bois-Guilbert, elevou-o, quase no momento do embate, na direco do elmo, um alvo muito mais difcil, mas que, quando atingido, tornava a pancada quase irresistvel. Apanhou em cheio a viseira do normando, em cujas barras a ponta da lana se prendeu. Mesmo nesta difcil situao, justia lhe seja feita, o Templrio no teria desmentido a sua reputao e ter-se-ia aguentado no fosse a cilha ter rebentado, fazendo que sela, cavalo e cavaleiro rolassem no solo no meio duma nuvem de p. Em segundos, o Templrio desenvencilhou-se dos estribos e do animal e, enfurecido tanto pela desgraa que lhe sucedera como pela forma como o pblico aclamava, desembainhou a espada, apontando-a, em desafio, ao seu vencedor. O cavaleiro Desditoso prontamente desmontou e igualmente desnudou a sua espada. os mestres-de-cerimnia, contudo, colocaram, s esporadas, as suas montadas entre eles, lembrando-lhes que as regras daquele torneio no permitiam tal tipo de luta. - Tornaremos a encontrar-nos - rosnou o Templrio com um olhar de rancor - onde no houver quem nos aparte! - Se assim no acontecer - respondeu o cavaleiro Desditoso no o ser por culpa minha. A p, a cavalo, com lana, com acha de armas, espada, seja como for, sempre te vencerei. Mais e mais irritadas trocas de palavras se seguiriam se os mestres-de-cerimnia, cruzando as suas bafordas entre eles, os no forassem a separar-se. O cavaleiro Desditoso voltou para o lugar e Bois-Guilbert para a tenda, donde no saiu durante o resto da tarde, doido de desespero. Sem sair do cavalo, o triunfador pediu uma taa de vinho e, abrindo a viseira, anunciou que a bebia " sade de todos os autnticos coraes ingleses e contra toda a tirania
estrangeira". Pediu, a seguir, ao cornetim que entoasse a sua aceitao aos restantes desafiantes, a quem mandou um arauto informar no tencionar fazer qualquer escolha, estando pronto a enfrent-los na ordem que preferissem.
O gigantesco Front-de-Boeuf, coberto por uma armadura negra, foi o primeiro em campo. No escudo branco via-se, ainda, a pintura da cabea dum touro negro, debaixo da qual se podia ler o arrogante mote Cave, adsum, j muito apagado pelas lutas anteriores. Sobre este campeo obteve o cavaleiro Desditoso uma ligeira mas decisiva vantagem. Ambos partiram as lanas, como Front-de-Boeuf perdeu um estribo no recontro, a vitria foi concedida ao seu oponente. No terceiro encontro o desconhecido venceu tambm Sir Philip de Malvoisin, batendo-lhe com tamanha fora no casco que s o romper dos tirantes, que o deixaram ir pelos ares, evitou ao bom baro o cair, mas no o impedindo de ser declarado derrotado. No quarto combate, este com Grantmesnil, o Desditoso mostrou tanto cavalheirismo como, at ento, coragem e destreza exibira, O cavalo de Grantmesnil, novo e violento, empinou-se, entrando na carreira de modo a tornar impossvel qualquer preciso com a lana. O desconhecido, percebendo-o, desprezou a oportunidade que lhe era oferecida, ergueu a sua lana, passou pelo opositor sem lhe tocar e, regressando ao seu lugar, por um arauto props nova corrida. De Grantmesnil declinou a oferta, dando-se por vencido ante tanta cortesia e percia. Ralph de Vipont fechou a srie de sucessos do incgnito ao ser atirado a terra com tal violncia que, deitando sangue pelo nariz e pela boca, teve de ser levado, sem sentidos, Para fora das lias. As aclamaes dos milhares ali presentes saudaram a deciso do Prncipe e dos mestres-de-cerimnia, dando as honras do dia ao cavaleiro Desditoso.
Captulo IX [...] entre os quais se via Uma dama de porte to cheia de fidalguia Que, pelas propores e beleza uma rainha parecia. To como em beldade a todas ultrapassava. Mais nobre era tambm na roupa que trajava; Uma coroa de ouro circundando-lhe a testa. Um vestido simples, sem pompa, rico, mas no de festa. Um ramalhete de agnocasto segurava na mo. Singelo representante do smbolo da sua Posio. A flor e a folha William de Wyvil e Stephen de Martival, os mestres-de-cerimnias, foram os primeiros a cumprimentar o
vencedor, pedindo-lhe que retirasse o elmo, ou, pelo menos, levantasse a viseira, quando os acompanhasse para receber das mos do prncipe Joo o prmio daquele primeiro dia de torneio. o cavaleiro Desditoso, com toda a delicadeza, desculpou-se a atender-lhes o rogo, alegando no poder por enquanto expor o seu rosto em virtude de razes j expostas aos arautos aquando da entrada nas lias. Esta resposta satisf-los plenamente, at porque, entre os muitos e caprichosos votos a que os cavaleiros de ento se obrigavam, nenhum era mais vulgar do que o de se conservarem incgnitos durante algum tempo ou at que alguma coisa determinada acontecesse. No indagaram, portanto, mais sobre o mistrio em que o Desditoso se rodeava e, transmitindo ao prncipe Joo o desejo do vitorioso de se no identificar, rogaram-lhe permisso para o levarem sua graciosa presena para que o galardoasse pelo seu valor. A curiosidade de Joo aguou-se com o segredo do desconhecido e, j agastado com os resultados das justas, em que os desafiantes que apoiara tinham, consecutivamente, sido derrotados, respondeu com desdm aos mestres: - Pela luz da fronte de Nossa Senhora1 Esse cavaleiro deve ser um desditoso, deserdado quer de haveres, quer de maneiras, para pretender vir at ns com a cara embuada...
Sabereis - disse, encarando os que o cercavam - quem ser esta audaz criatura que to altivamente se comporta? - No sei adivinhar - respondeu-lhe De Bracy -, nem nunca julgara que pudesse existir algum, dentro dos quatro mares cercando a Gr-Bretanha, capaz de vencer cinco cavaleiros seguidos num mesmo torneio. Pela f de Deus, jamais esquecerei a potncia com que bateu no De Vipont. O pobre do Hospitalrio saltou da sela como um seixo duma fisga! - No o enaltea por isso somente - interveio um cavaleiro de So Joo, do grupo -, pois o seu campeo Templrio no teve melhor sorte. Vi o bravo Bois-Guilbert dar trs reviravoltas no cho, comendo terra em todas elas. De Bracy, muito parcial no tocante aos Templrios, ia retorquir-lhe, mas o Prncipe calou-o: - Silncio, senhores! - ordenou. - Que estril discusso essa! ? - O vencedor - lembrou De Wyvil - aguarda os desejos de Vossa Graa. - O nosso desejo - respondeu Joo - que continue a aguardar at que surja algum que, pelo menos, adivinhe o seu nome e posio Mesmo que para a fique at ao cair da noite, no lhe far mal, pois j se mexeu o suficiente para no ter frio. - Vossa Graa - recordou Waldemar Fitzurse -, ter, de qualquer maneira, de agraciar o vencedor, mesmo que o faa esperar at que lhe digamos aquilo que desconhecemos. Eu, de certeza, no sei como descobrir o que pretende... a no ser que se trate dum dos corajosos guerreiros que acompanharam o rei Ricardo Palestina, de l ora recm-chegado. - Pode ser o conde de Salisbria - sugeriu De Bracy. - Tem mais ou menos a mesma estatura. - Mais Sir Thomas de Multon, o cavaleiro de Gilsland - opinou Fitzurse. - O Salisbria mais largo de ossos. Entre aquela assembleia perpassou um rumor, comeado no se
sabe por quem, de que "podia mesmo ser o rei Ricardo Corao de Leo em pessoa". - Deus nos livre! - exclamou o prncipe Joo, plido como a cera e tremendo como se tivesse apanhado um choque. Waldemar! De Bracy! Nobres cavaleiros e cavalheiros, recordo-vos as vossas promessas de a nosso lado se manterem! - No h perigo algum - acalmou-o Waldemar Fitzurse. - J haveis esquecido os braos e pernas imensos do filho de vosso pai para que imagineis pudessem caber naquela armadura? De Wyvil e Martival, a melhor forma que tendes para servir o vosso prncipe ser trazerdes o triunfador at ao trono, apagando desse modo as dvidas que a tanta gente a cor apagaram... Veja-se melhor - prosseguiu. - Vossa Majestade
notar que este uma mo travessa mais baixo do que o rei Ricardo e que tem metade da largura de ombros tambm. At o cavalo que monta arriaria numa nica corrida com o peso do rei Ricardo. Enquanto esta conversa decorria, os mestres-de-cerimnias haviam levado o cavaleiro Desditoso at junto dos degraus que ligavam o campo de lides ao trono. Ainda atordoado com a suposio de o irmo, que tanto lesara e a quem tanto devia, ter voltado para o seu reino, e no totalmente convencido das diferenas que Fitzurse apontara, o Prncipe, num curto e mal-amanhado elogio coragem do cavaleiro, ordenou que lhe fosse dado, como prmio, o anunciado corcel de batalha. Tremia s de pensar que por detrs dos ferros daquela viseira pudessem sair agradecimentos no tom profundo e medonho da voz de Ricardo Corao de Leo. O cavaleiro Desditoso, porm, nada disse, limitando-se a uma profunda vnia em reconhecimento dos louvores do Prncipe. O corcel, conduzido por dois serventes muito aperaltados, estava ricamente aparelhado, o que, claro est, nada significaria para quem, realmente, soubesse apreciar animais estupendos como aquele. Pousando uma mo no aro, o cavaleiro Desditoso subiu para o cavalo sem se utilizar do estribo e, alando a lana, deu duas voltas s lias mostrando a graa e a beleza do andar do bicho, como somente quem muito sabia da arte o poderia fazer. A manifestao de vaidade que alguns poderiam ver neste desplante desfazer-se-ia se se lembrassem de que no se tratava mais do que um premiado mostrando melhor a todos o galardo recebido, pelo que o cavaleiro foi novamente muito ovacionado. Nessa ocasio, o irrequieto prior de Jorvaulx lembrou ao ouvido do Prncipe que ao cavaleiro vitorioso competia agora demonstrar que, alm do valor j assegurado, tinha tambm gosto para, entre as muitas caras bonitas sentadas na galeria, escolher a dama a ocupar o trono da Rainha do Amor e da Beleza, que, no dia seguinte, entregaria o prmio do torneio. De conformidade com essa lembrana, quando o cavaleiro terminava a segunda volta e passava em frente dele, o Prncipe acenou-lhe com o basto. O Desditoso virou-se para o trono, baixou a lana at a um palmo do solo e, estacado, aguardou. Todos pasmaram perante a facilidade com que to subitamente fizera o fogoso corcel passar dum estado emocional de excitao imensa para a imobilidade duma esttua equestre.
- Sr. Cavaleiro Desditoso - proferiu o Prncipe -, uma vez ser esse o nico ttulo pelo qual vos podemos designar. agora vosso dever e privilgio nomear a bela dama que, como Rainha do Amor e da Beleza, presidir festa de amanh. Se, caso sejais estrangeiro, necessitardes da opinio de outrem para melhor vos guiar, podemos desde j dizer-vos que Alicia,
filha do bravo cavaleiro Waldemar Fitzurse, vista na nossa corte como de formosura sem Par. contudo vossa prerrogativa entregar a coroa senhora que pela vossa escolha, ser, amanh e formalmente a Rainha. Alai a vossa lana. Obedecendo-lhe o cavaleiro, o prncipe Joo colocou-lhe na ponta um coronel de cetim verde, rodeado por um aro de ouro do qual saam pontas de seta e coraes, alternadamente dispostos como as folhas de morangueiro e os crculos se dispem numa coroa ducal. A evidentssima sugesto de Joo acerca da filha de Waldemar tinha por fundamento mais do que um motivo, todos engendrados pela sua mente, composta duma complicada amlgama de cauo e presuno, jogo baixo e manhosice. Queria tirar da cabea dos cavaleiros a ele ligados a brincadeira indecente e inaceitvel a propsito de Rebeca, a judia, e, ao mesmo tempo, voltar s graas do pai de Alicia, a quem temia e que, por vrias vezes, se mostrara aborrecido nesse dia. Pretendia, ademais, obter a aprovao da dama, pois era de temperamento to licencioso nos seus prazeres como torpe nas suas ambies. Acima de todas estas razes, desejava atiar contra o Desditoso (por quem j nutria forte antipatia) um inimigo poderoso como o podia ser Waldemar Fitzurse, que, julgava, se ofenderia gravemente se, como era muito possvel, o vencedor seleccionasse outra que no a sua filha. Assim foi. O cavaleiro Desditoso passou ao correr da galeria onde estava Alicia, de esplendorosa beleza, e, seguindo to devagar como anteriormente se apressara, aparentou levar muito a srio o cargo que ganhara, examinando um Por um os inmeros rostos formosos que para si se viravam. Valia a pena apreciar as reaces das beldades que iam sendo analisadas. Umas coravam, outras tomavam poses de orgulhosa indiferena, outras ainda olhavam em frente, fazendo de conta no perceberem u que se passava, algumas inclinaram-se para trs, assustadas, umas poucas sorriram e duas ou trs riram-se abertamente. Umas Poucas cobriram a cara com os vus, mas, como se l no Manuscrito de Wardour, estas eram lindezas que, conhecidas h j dez anos, s pretendiam dar a entender que, saturadas de galanteios e homenagens, cediam voluntariamente o seu lugar a outras raparigas surgidas entretanto. Finalmente, o campeo parou sob o balco onde Lady Rowena se encontrava. A excitao dos espectadores atingiu o auge. Ter-se- de reconhecer que, se na atitude do cavaleiro algum interesse devesse haver, o certo era ser aquela a sua zona preferida nas lias. Cedric, o saxo, regozijado com a humilhao do Templrio e ainda mais com a falta de percia dos seus malvolos vizinhos Front-de-Boeuf e Malvoisin,
debruava-se do varandim para melhor ver o vencedor, no s com Os olhos, mas tambm com o corao. Lady Rowena acompanhara com igual ateno as aventuras do dia, muito embora com bastante mais discrio. At o impassvel Athelstane deixara transparecer alguns sinais de saimento da sua apatia, pedindo um copo de moscatel para emborcar sade do cavaleiro Desditoso. o grupo de saxes logo em baixo deste balco no se mostrava menos entusiasmado. - Pai Abrao! - exclamou Isaac de Iorque quando da primeira justa, entre o Templrio e o cavaleiro Desditoso. - Que fera a montar aquele gentio! Ai como ele lida com aquele belo cavalo, com tanto trabalho trazido da Barberia, como se fosse um nagro... E a armadura que tantos cequins custou a Joseph Pereira, o armeiro de Milo, para alm dos seus setenta por cento de margem. Trata-a como se a tivesse achado no meio da estrada! - Se arriscou o prprio corpo e membros. - pai - atalhou Rebeca -, nesta luta terrvel, no faria sentido o poupar armadura e cavalo. - Pequena - respondeu-lhe Isaac um nada exaltado -, no sabes o que dizes. o pescoo, os membros, o corpo, so dele, mas o cavalo e a armadura pertencem... Jacob! Que eu ia dizer!... Seja como for, trata-se dum jovem, bondoso... Olha, Rebeca! V como combate agora com o Filisteu. Ora, menina, ora pela segurana daquele caridoso rapaz... e pela veloz montada e magnfica armadura. Deus dos meus antepassados! - exclamou uma vez mais -, venceu o incircunciso que tombou ante a fora da sua lana. Tal como Og, rei de Bashan, e Sihon, rei dos Amoritas, tombaram sob as espadas dos nossos avs. Certamente ir ficar-lhes com o ouro, a prata, os cavalos de guerra e as armaduras de bronze e ao. Reza, reza para que obtenha esplio e tomadias. o ilustre judeu prosseguiu evidenciando a mesma ansiedade em todos os demais encontros, no resistindo a calcular os valores dos cavalos e armaduras que o campeo ia conseguindo em cada vitria. Havia pois interesse tambm da parte de alguns daqueles perante os quais estacara. Por indeciso ou qualquer outro motivo que o obrigava a hesitar, o cavaleiro deixou-se estar, sem se mexer, por mais de um minuto, com os olhos da silenciosa assistncia nele pregados, aguardando-lhe um movimento, mnimo que fosse. De sbito, mas lenta e gentilmente, descendo a lana, deps a coroa aos ps da linda Rowena. As trombetas soaram quase de imediato e arautos confirmaram Lady Rowena como a Rainha da Beleza e do Amor para o dia seguinte, ameaando com apropriadas penalidades todos que no lhe acatassem a autoridade. Soltaram novamente o grito de "Largesse!", a que Cedric, louco de alegria, correspondeu com UM vultoso donativo, que Athelstane, no to depressa, claro , igualou.
As donzelas de ascendncia normanda murmuraram entre si, dado no estarem habituadas a verem-se preteridas por uma saxnica, tal como os nobres normandos no estavam acostumados a ser derrotados num jogo pelos da sua raa trazido para o pas. Estas manifestaes de desagrado foram, todavia, abafadas pelo povo brindando bem alto "Viva Lady Rowena, ora escolhida como
Rainha do Amor e da Beleza!", ao qual outros juntaram um "Viva a princesa saxnica! Viva a raa do imortal Alfredo!" Por muito mal que estas vozes soassem aos ouvidos do prncipe Joo e do seu squito, aquele sentiu-se obrigado a confirmar a nomeao feita pelo vencedor, pelo que, pedindo um cavalo, abandonou o trono. Montado, seguido pelos seus, voltou s lias. Parou brevemente sob a galeria de Lady Alcia e cumprimentou-a, observando para quem quisesse ouvi-lo "que, pela Me de Deus, senhores, os feitos do cavaleiro haviam demonstrado que tinha bons braos e boas pernas, mas que a sua escolha, porm, mostrava no ser sua vista das melhores". Nesta ocasio, como em tantas outras pela vida fora, Joo demonstrou nada entender da maneira de ser das pessoas que pretendia cativar. Waldemar Fitzurse ficou mais ofendido do que agradecido pelo facto de o Prncipe, vista de todos, recordar que a filha fora rebaixada. - No conheo direito da cavalaria - disse -, mais precioso e inalienvel do que aquele permitindo a um cavaleiro escolher de livre vontade a senhora dos seus amores, cujo carcter condiga com o seu, que seja do seu nvel e que jamais recuse aceitar o que de seu privilgio for. O prncipe Joo no fez qualquer comentrio. Incitou o cavalo, dando largas sua indignao, e conduziu-o at junto da galeria onde Rowena continuava, ainda com a coroa aos ps. - Assuma, senhora minha - convidou-a -, a marca da sua soberania, que ningum homenagear mais do que ns, Joo de Anjou. Se lhe aprouver, poder, juntamente com o seu nobre protector e amigos, honrar o nosso banquete no Castelo de Ashby, ajudando-nos a melhor conhecer a imperatriz a quem, amanh, devotadamente, iremos servir. Rowena conservou-se silenciosa, tendo Cedric, no seu saxo natal, respondido por ela: - Lady Rowena no domina o idioma em que devia acusar a honraria que acaba de lhe ser concedida e a empregar na festa que ides dar. Tambm eu e o nobre Athelstane de Conningsburgh apenas conhecemos a fala e maneira dos nossos melhores. com todos os agradecimentos, somos assim forados a eximir-nos do corts convite que haveis querido fazer-nos. No dia de amanh ela corresponder ao lugar que lhe foi concedido por livre escolha do cavaleiro vitorioso e confirmado por aclamao popular.
Isto dito, tomou a coroa e colocou-a na cabea de Rowena como testemunho da sua aceitao da temporria autoridade com que fora investida. - Que diz ele? - perguntou o Prncipe. fingindo no perceber a linguagem saxnica, na qual, alis, era fluente. O significado do discurso de Cedric foi-lhe traduzido para francs. - Muito bem - declarou. - Amanh conduziremos esta muda soberana at ao seu alto assento... Sr. Cavaleiro - continuou, encarando o vencedor, que ficara perto da galeria -, ao menos vs, participareis do nosso banquete? O cavaleiro, falando pela primeira vez, em voz baixa e apressada, escusou-se, invocando fadiga e a necessidade de se preparar para o encontro do dia seguinte.
- Est bem - proferiu com altivez o Prncipe -, muito embora pouco acostumados a este gnero de recusas, procuraremos banquetear-nos o melhor possvel sem a presena daquele que melhor sucesso obteve nas armas e daquela por ele eleita Rainha da Beleza. Sem mais, aprontou-se para, com o seu vistoso squito, deixar as lias, constituindo a volta que fez o cavalo dar o sinal para o pblico principiar a dispensar-se. Todavia, com a memria vindicativa caracterstica do orgulho ferido, em conjunto com total ausncia de virtudes pessoais, Joo ainda no dera trs passadas e j se voltava para pousar um olhar raivoso no homem livre que lhe desagradara no comeo do dia e ordenar aos homens de armas na vizinhana: - Pela vossa sade, no deixeis aquele tipo escapar-se! O homem no desviou os olhos dos do Prncipe, mantendo a serenidade que sempre evidenciara, e, com um sorriso, sossegou-o: - No tenciono partir antes de depois de amanh. Ento irei ver como se atira com o arco em Staffordshire e Leicestershire. As florestas de Needwood e Charnwood devem ter criado bons arqueiros. - Quero ver - disse Joo para os seus, desviando o olhar e respondendo-lhe indirectamente - como atira. E ai dele se a sua justeza no estiver altura da sua insolncia! - Chegou o momento - lembrou De Bracy - de a outrecuidance(1) destes labregos ser abaixada por um exemplo a srio. Waldemar Fitzurse, que, naturalmente, entendia no estar o amo a seguir o melhor caminho para a popularidade, encolheu os ombros e cerrou a boca, enquanto o prncipe Joo seguia j e a sada da multido se generalizava. *1. Presuno, insolncia.
Por vias diversas, de acordo com os diferentes pontos de onde tinham vindo e em grupos de tamanhos variveis, os espectadores foram-se afastando pela plancie. A poro mais numerosa dirigiu -se para Ashby, onde muitos fidalgos se alojavam, ou no castelo ou na prpria vila. No ltimo caso estava a maioria dos cavaleiros que tinham participado no torneio ou tencionavam faz-lo no dia seguinte e que, no momento, seguiam devagar nas suas montadas, recebendo, aqui e ali, as vociferadas saudaes da turba. Tambm o Prncipe recebeu o mesmo gnero de aclamaes, qui mais devidas ao seu elegante porte do que sua popularidade. Uma mais sincera, maior e mais bem merecida aclamao foi sendo dada ao triunfador do dia, at que, ansioso por se retirar da vista das gentes, aceitou recolher-se num dos pavilhes levantados nos extremos das lias, educadamente oferecido por um dos mestres-de-cerimnias. Mal penetrou na tenda, muitos dos que se tinham deixado por ali a conjecturar quem seria ele afastaram-se igualmente. Os sinais e os sons da conglomerao de muitas pessoas, todas motivadas pelo mesmo acontecimento, eram agora substitudos pelo zunzum distante das vozes dos grupos que marchavam em todas as direces, at que, rapidamente, o silncio tudo
cobriu. Nada se ouvia alm duma ou outra palavra dos trabalhadores tirando as almofadas e as tapearias para as porem a recato durante a noite e que seguiam escorropichando as garrafas de vinho semiacabadas e os restos de refrescos que os espectadores tinham deixado. Fora dos limites das lias funcionavam vrias forjas, iluminando o lusco-fusco que crescia, anunciando a noite, durante a qual armaeiros trabalhariam reparando e ajustando as armaduras a serem envergadas no dia a nascer. Uma forte guarda de homens de armas, rendida de duas em duas horas, patrulhava as lias.
Captulo X Como de mau agoiro corvo dobra finados, com o bico oco o passamento de homem doente, E por entre as sombras, da silenciosa noite. com as asas negras contgios espalhando, Vexado e em tormento corre Barrabs, Soltando tremendas pragas contra os cristos. - O judeu de Malta O cavaleiro Desditoso, logo que penetrou no pavilho, foi rodeado por numerosos pajens e pees querendo assistir-lhe, retirar-lhe a armadura, trazer-lhe roupas limpas e perguntando-lhe se desejaria refrescar-se com um banho. O zelo com que ofereciam os servios seria, em parte, talvez, devido a todos pretenderem saber quem seria o guerreiro que tantos louros conseguira e, mesmo assim, negara obedecer ao Prncipe quando este lhe ordenara que levantasse a viseira ou dissesse como se chamava. A sua curiosidade foi em vo. O Desditoso rejeitou todo e qualquer auxlio parte o do seu aio, ou, melhor, valete, um homem de aparncia rstica, envolto numa capa de veludo escuro, com a cabea semi escondida por um bon normando, de pele preta, que parecia pretender, ele tambm manter-se incgnito. Logo que os demais deixaram a tenda, este tratou imediatamente de aliviar o amo das peas mais pesadas da armadura e de lhe oferecer comida e bebida, que, dados os esforos do dia, muito bem aceites foram. Mal acabara o cavaleiro de, apressadamente, engolir a sua refeio, e j o seu ajudante lhe anunciava que cinco homens, trazendo pela arreata um cavalo cada um, carregado de ferro, desejavam falar com ele. O Desditoso substitura, entretanto, a armadura por um longo manto prprio das pessoas da sua condio, com um capuz que permitia a quem o envergava, se o desejasse, ocultar o rosto to bem como a viseira dum elmo. Contudo, o crepsculo tinha avanado tanto que, por si s, seria suficiente para tornar o seu emprego desnecessrio,
a no ser perante pessoas que lhe conhecessem as feies extraordinariamente bem. Assomou pois sem hesitao sada da
tenda, onde encarou os aios dos desafiantes, facilmente reconhecveis pelas suas roupas vermelhas e negras, segurando os cavalos de batalha, carregados com as armaduras dentro das quais os seus donos se haviam batido nessa tarde. - De conformidade com as leis da cavalaria - esclareceu o que se encontrava mais adiantado -, eu, Baldwin de Oyley, escudeiro do temvel cavaleiro Brian de Bois-Guilbert, aqui trago para o ora denominado cavaleiro Desditoso, como oferta, o corcel e a armadura utilizados pelo mesmo Brian de Bois-Guilbert na Passagem de Armas de hoje, para que Vossa Nobreza decida se com eles deseja ficar ou somente conserv-los aguardando resgate, conforme por melhor achar, pois assim reza a Lei de Armas. Os colegas repetiram discursos de teor semelhante, aps o que todos ficaram aguardando uma deciso. - Para vs, quatro senhores - respondeu o cavaleiro, dirigindo-se aos quatro que haviam falado em ltimo lugar -, e para os vossos honrados e valentes amos, tenho uma mesma resposta. com os meus cumprimentos, dizei-lhes que consideraria incorrecto proceder ou conservar-lhes cavalos e armas, que nunca poderiam vir a ser utilizados por outros como eles to bravos. Gostaria de terminar aqui a minha mensagem, mas sendo, como sou, um deserdado Desditoso, como me denomino--- sou forado a pedir a vossos amos que tenham a gentileza de resgatar os seus cavalos e armaduras, j que quela de que me servi e quele que montei dificilmente lhes poderei chamar meus. - Cada um de ns est autorizado - informou o aio de Reginald-Front-de-Boeuf - a oferecer-vos um cento de cequins como resgate pelos cavalos e armaduras. - bastante - disse o Desditoso. - Metade sou obrigado, pelas minhas necessidades, a aceit-la. Do restante dividi-lo-eis a meio, conservando uma parte para vs, senhores, e distribuindo a outra pelos arautos, passavantes, menestris e pees. Os aios, de barrete na mo e baixando-se em vnias, manifestaram o muito que os sensibilizara tanta cortesia e generosidade, que s raramente, ou apenas em muito limitada escala, costumava ser vista. O Desditoso voltou-se, a seguir, para Baldwin, subordinado de Bois-Guilbert: - Do vosso amo - declarou - no aceitarei nem armas, nem resgate. Dizei-lhe, da minha parte, que a nossa contenda no se encerrou ainda... no, no acabar sem que tenhamos combatido com espadas, como fizemos com lanas... e apeados, como j nos encontrmos a cavalo. Foi ele prprio que me desafiou para esta luta de morte. No posso esquecer tal repto. Que saiba, pois, que me no dado v-lo como a qualquer dos seus companheiros, com os quais posso permitir-me o gosto de trocar amabilidades, mas somente como algum que tenho de enfrentar em combate mortal.
- O meu amo sabe to bem - respondeu Baldwin - corresponder a desdm com desdm, a golpes com golpes, como a cortesias com cortesias. Uma vez que desdenhais dele aceitar resgate semelhante ao que atribustes s armas e cavalos dos outros cavaleiros, tenho de aqui deixar ficar a sua montada e a sua armadura, j que ele jamais montar a primeira ou envergar a
segunda. - Falastes bem, aio fiel - cumprimentou-o o Desditoso -, bem e com arrojo, como convm a quem fala em nome dum amo ausente. No deixeis, porm, o cavalo e a armadura aqui. Devolvei-os a vosso amo. Se os recusar, ficai com eles, bom amigo, para vosso uso. So meus. Eu vo-los ofereo com o maior prazer. Baldwin dobrou-se numa prolongada vnia e, a par dos seus companheiros, retirou-se. O cavaleiro Desditoso tornou ao pavilho. - At agora, Gurth - disse para o seu servidor -, a reputao da cavalaria inglesa nada perdeu s minhas mos. - E eu - acrescentou Gurth -, para porqueiro saxo, no tenho representado nada mal o papel de ajudante normando. - Claro. Mas estou constantemente preocupado, no v a tua rusticidade trair-te, revelando quem s. - N! - soltou Gurth. - No temo que ningum me descubra, salvo o meu parceiro Wamba, o bobo, que nunca percebi se tolo ou esperto. Confesso que quase no contive o riso quando o meu patro mais velho passou rentinho por mim, qui sonhando que o seu Gurth se encontrava a muitas lguas de distncia a guardar-lhe os recos, no mato e nos alagadios. Se for descoberto... - Basta - cortou o cavaleiro Desditoso. - Sabes o que te prometi. - De modo algum acontecer - prometeu-lhe Gurth. - Nunca deixo os amigos mal, mesmo que a minha pele perigue. Ela rija, capaz de aguentar ferro e fogo como o couro de qualquer varro da minha vara. - 'Acredita. Recompensarei o risco que ests a correr por minha causa. para j, toma l estas dez peas de ouro. - Estou mais rico - bradou Gurth, metendo-as na algibeira do que qualquer porqueiro ou servo jamais foi ou sonhou ser! - Leva agora esta saca de ouro a Ashby - prosseguiu o amo, descobre onde mora Isaac, o Judeu de Iorque, e pede-lhe que se pague do cavalo e armas que me forneceu a crdito. - No, por So Dunstan! - protestou Gurth. - No farei isso. - Que ouo, malandro? - interrogou o amo. - Desobedeces s minhas ordens? - Quando so razoveis e crists, no - explicou Gurth. - Mas essa no desse gnero. Deixar o Judeu pagar-se a si prprio seria no s desonesto, pois enganaria, de certeza, o meu amo,
como pouco razovel, porque faria figura de parvo, e ainda pouco crist, j que corresponderia a tirar dum cristo para enriquecer um infiel. - Cumpre, mesmo assim, o que te mando, teimoso - repetiu o Desditoso. - Assim farei - assentiu Gurth, pondo a saca debaixo da capa e caminhando para a sada -, mas vai-me custar - resmungou -, e somente lhe entregarei metade do que me pedir. - Terminou saindo e deixando o cavaleiro sozinho com os seus pensamentos, que, no seu conjunto, eram agitados e dolorosos. Somos, neste momento, obrigados a mudar-nos para a vila de Ashby, ou, antes, para uma casa de campo nas suas imediaes, propriedade dum abastado israelita, onde Isaac, a filha e os seus acompanhantes se tinham hospedado. Os judeus, sabido, so to extremamente liberais no que toca a hospitalidade e
caridade para com os da sua gente como arredios e mesquinhos para com aqueles que chamam gentios, no que at tm muita razo, pois estes sempre os tratam de modo a pouco agasalho lhes merecerem. Num apartamento bastante pequeno, decorado ao gosto oriental, sentava-se Rebeca, em almofadas empilhadas numa baixa plataforma correndo ao longo do quarto, semelhante a um estrado espanhol e cuja serventia correspondia de cadeiras e bancos. Olhava com um ar misto de preocupao e amor filial para o pai, que percorria a passos irregulares o quarto, ora apertando as mos, ora revirando os olhos para o tecto, como quem est sofrendo uma imensa angstia. - Jacob! - invocou. - vs, doze Santos Patriarcas da nossa tribo! Que negcio ruinoso para quem sempre cumpriu todos os pontos e mandamentos da lei de Moiss. Cinquenta cequins tirados pelo estico das garras dum tirano! - Mas, pai - observou Rebeca -, pareceu-me que dera o dinheiro de boa vontade ao prncipe Joo. - De boa vontade! Que as pstulas do Egipto o cubram! De boa vontade, dizes tu? De tanta boa vontade como, no golfo de Leo, tive de atirar pela borda fora a minha mercadoria, alijando o barco no meio do temporal. Vestir ondas de sedas finas, perfumar a espuma com mirra e alo, encher as profundidades de jias de ouro e de prata! No foi esse um momento de terrvel sofrimento, mesmo que pelas minhas prprias mos tivesse sido levado a cabo? - Foi um sacrifcio exigido pelos Cus para que vidas humanas pudessem ser salvas - respondeu Rebeca -, e o Deus dos nossos pais tem, desde a, protegido os seus armazns e os seus lucros. - Sim - gemeu Isaac -, mas se o tirano lhes deita, um dia, as unhas, obrigando-me a sorrir, enquanto sou roubado? filha, deserdados e errantes como somos, o pior dos males que sobre ns se pode abater est em que, quando nos fazem mal
ou nos depredem, todo o mundo ri, obrigando-nos a calar os nossos sentimentos injuriados e a mansamente sorrir, quando a nossa vontade seria de reagir com bravura. - No veja as coisas desse modo, pai - pediu Rebecca. - Tambm gozamos de vantagens. Os gentios, cruis e opressores como so, dependem dum certo modo de ns, os filhos dispersos de Sio, que desprezam e perseguem. Sem a nossa riqueza nem poderiam armar as suas hostes, para a guerra, nem festejar as suas vitrias em paz. O ouro que lhes emprestmos volta acrescido aos nossos cofres. Somos como uma planta que quanto mais calcada melhor floresce. Mesmo a festa de hoje no poderia ter sido sem o consentimento dos desprezados judeus, que a financiaram. - Filha - disse Isaac -, acabas de tocar noutra corda dolorosa. Aquele belo corcel e aquela fina armadura correspondem a todo o meu lucro num negcio que fiz com Kirjath Jairam, de Leicester. Considero-o uma perda total. Sim, uma perda que absorver os meus ganhos duma semana inteira... de sbado a sbado... e, contudo, pode ser que tudo acabe melhor do que prevejo, pois ele bom moo. - Estou certa - garantiu Rebeca - que no se ir arrepender de ter retribudo a boa aco daquele cavaleiro desconhecido.
- Assim conto - concordou Isaac -, tal como espero o ressurgimento do Sio. Mas tanto conto ver, com estes olhos, a reedificao das muralhas e merles do novo Templo como ver um cristo, por melhor que seja, pagar uma dvida a um judeu sem a interveno de juzes e carcereiros. Aps esta tirada, continuou a percorrer nervosamente o quarto. Rebeca, entendendo que quaisquer tentativas para o acalmar apenas lhe levantariam novas razes de queixa, desistiu inteligentemente do seu esforo, atitude que recomendo a todos os que pensem dar conselhos ou consolar algum em circunstncias semelhantes. A noite caa j quando um criado judeu surgiu para colocar na mesa duas lmpadas de prata com leo perfumado, enquanto outro empregado, israelita igualmente, punha vinhos e iguarias finssimos num tambor de bano com trabalhos de prata. Nas suas casas, os judeus no se negavam a despesas. Simultaneamente, o primeiro servidor avisou Isaac de que um nazareno (assim denominavam eles os cristos quando conversavam entre si) pedia para com ele falar. Quem vive do comrcio obrigado a atender todos os que o procurem para tratar de negcios. Deste modo, Isaac voltou a pousar o copo de vinho grego que ia precisamente levar boca e, mandando a filha velar-se, deu ordem para que o visitante viesse sua presena.
Cobrira-se Rebecca com uma finssima gaze prateada, que lhe ia at aos ps, quando a porta se abriu para deixar passar Gurth, envolto nas amplas dobras do seu manto normando. A sua aparncia era mais duvidosa do que simptica, mesmo porque, em vez de se descobrir, enterrou ainda mais o bon sobre a testa carrancuda. - s Isaac, o Judeu de Iorque? - perguntou em saxo. - Sou - respondeu Isaac na mesma lngua (o seu modo de vida obrigara-o a aprender todos os idiomas ento usados na Gr-Bretanha). - E quem s tu? - Isso no vem ao caso - foi a resposta de Gurth. - Vem, sim. Exactamente como quiseste saber se eu era quem pensavas - replicou-lhe Isaac. - Sem saber como te chamas, como poderei eu conversar contigo? - fcil - explicou Gurth. - Eu, que venho entregar dinheiro, preciso saber se falo com a pessoa certa. A ti, que o vais receber, pouco importa conhecer as mos que to passam. - Ah - fez o judeu. - Vens ento trazer-me dinheirinho? Santo Pai Abrao, isso modifica tudo. Da parte de quem o fazes? - Da parte do cavaleiro Desditoso - informou Gurth -, o vencedor do torneio de hoje. Trata-se do valor da armadura que lhe foi fornecida por Kirjath Jairam, de Leicester, por tua recomendao. O corcel est j na tua cavalaria. Desejo apenas saber quanto tenho de dar-te pela armadura. - Eu no disse que ele era um moo correcto? - exclamou Isaac jubilosamente. - Um copo de vinho no te far mal acrescentou, enchendo e oferecendo ao porqueiro uma bebida como ele jamais provara. - Quanto dinheiro trazes contigo? - Virgem Santa! - disse Gurth, pousando o copo vazio -, que nctar bebem estes ces infiis, enquanto verdadeiros cristos tm de se limitar a cerveja to turva e espessa que mais parece lavagem de porcos! Quanto trouxe? - prosseguiu o saxo
aps aquela pouco delicada observao. - Pouco, para j. Isaac, tens de ter alguma conscincia, mesmo que seja de judeu. - Claro que tenho assentiu Isaac. - No entanto, o teu amo ganhou belos cavalos e boas armaduras, merc da fora da sua lana e do brao com que a empunhou. Ele um jovem muito correcto, pelo que o Judeu ficar com isso tudo e ainda te dar o excedente. - O meu amo j vendeu tudo - disse Gurth. - Fez mal! - exclamou o Judeu. - Fez uma grande asneira! No havia por aqui cristos capazes de comprar tantos cavalos e armaduras e nenhum judeu lhe daria metade do que eu lhe pagaria. No entanto, nessa saca tens uns cem cequins - lembrou Isaac, espreitando para debaixo do manto de Gurth -, pois ela est bem gorda. - So pontas de virotes - explicou Gurth atabalhoadamente.
- Bem. Ento - disse o Judeu, arfando e hesitante entre o amor ao lucro e um sentimento, novo para ele, de se mostrar generoso -, se eu dissesse que aceitaria oitenta cequins pelo cavalo e pela armadura, no que nada ganharia, terias dinheiro para mo pagar? - Resvs - informou Gurth, ainda que a importncia fosse mais razovel do que esperava. - E o meu amo fica sem um tosto. Todavia, se essa a tua melhor proposta, tenho de aceitar. - Bebes outro copo? - convidou o Judeu. - Ai! Oitenta cequins muito pouco. Nada fica de juro, alm de que o cavalo deve ter sido machucado nos combates de hoje. Oh, que medonha e tremenda luta! Homens e cavalos atirando-se uns contra os outros como os touros de Bashan! Alguma coisa deve o cavalo ter sofrido. - Repito - insistiu Gurth - que est mais do que bom, como podes ver na baia. Digo e torno a dizer que setenta cequins so bastantes pela armadura. Creio que a palavra dum cristo to boa como a dum judeu. Se no aceitares os setenta, torno a levar esta saca (que fez tilintar) para o meu amo. - No! No! Pe a os talentos, os marcos, os oitenta cequins, e vais ver como sou generoso. Gurth acabou por concordar, atirando-os para a mesa, tendo-lhe o Judeu passado um recibo pela entrega do cavalo e da armadura, com as mos tremendo de alegria. Embrulhou as primeiras setenta peas de ouro. As dez ltimas foram contadas mais deliberadamente, parando e resmungando, sempre que retirava uma da mesa e a passava para a algibeira. Parecia que a sua avareza lutava com outro sentimento mais elevado, obrigando-o a primeira a guardar as moedas, enquanto o segundo lhe aconselhava deixasse algo ou para o seu benfeitor, ou para o seu mandado. O seu resmungar era, aproximadamente, assim: - Setenta e uma... setenta e duas, o teu amo um bom moo setenta e trs, excelente, at... setenta e quatro. Nesta pea falta um nica na serrilha... setenta e cinco... esta muito leve... setenta e seis... sempre que o teu amo necessite de dinheiro que venha junto do Isaac, de Iorque... setenta e sete... desde que d garantias, claro. - Parou durante alguns segundos, dando esperanas a Gurth de as trs ltimas moedas virem a ter um fim diferente do das suas irms. A contagem, porm, prosseguiu: - Setenta e oito... s um bom rapaz...
setenta e nove... mereces qualquer lembrana... - Parou de novo, mirou o derradeiro cequim, tendo pensado, sabe-se l, d-lo a Gurth. Tomou-lhe o peso na ponta dum dedo e f-lo tinir, atirando-o sobre a mesa. Tivesse ele soado a choco ou tivesse ele sido um nadinha mais leve, e a generosidade teria sado vencedora. Mas, infelizmente para Gurth, o cequim era novinho em folha e, ainda por cima, com peso a mais. Isaac no teve coragem de se desfazer dele e, fingindo-se distrado, passou-o para o bolso. - Oitenta, e est certo. Espero que o teu patro te gratifique condignamente. Claro - olhou,
interessado para a saca - que tens mais dinheiro a!... Gurth arreganhou os dentes, que era a expresso mais prxima do riso que conseguia. - Uma quantia praticamente igual que guardaste com tanto cuidado. - Dobrou o recibo debaixo do chapu, recomendando: Ai das tuas barbas. Judeu, se isto no estiver em ordem. Encheu, sem pedir licena, um terceiro copo, bebeu-o e saiu sem cerimnias. - Rebeca - bradou o Judeu -, aquele ismaelita levou-me! No entanto, o amo dele muito boa pessoa e apraz-me que tenha ganho ouro e prata graas rapidez do seu cavalo e resistncia da sua lana, que mais parecia uma trave. Voltando-se, espera do que Rebeca lhe diria, verificou que, durante a conversa com Gurth, ela sara desapercebidamente da sala. Gurth, que descera uma escada, alcanara uma antecmara ou vestbulo s escuras, cuja sada, desorientado, procurava, quando um vulto branco lhe surgiu, com uma pequena lamparina de prata na mo, fazendo-lhe sinal para que o seguisse. Gurth mostrou certa relutncia em faz-lo. Duro e impetuoso como um javardo, quando coisas terrenas estavam em causa, era atreito a todas as supersties saxnicas quanto a faunos, duendes, meigas e damas vestidas de branco e outros seres mticos que os seus antepassados tinham trazido consigo das selvagens paragens germnicas. Recordou-se ainda encontrar-se na moradia dum judeu, raa a que o povo, alm dos mais horrveis defeitos, considerava como nigromntico e cabalista. Apesar de tudo, aps uma hesitao, obedeceu apario seguindo-a para o apartamento que lhe indicava, onde teve o alvio de verificar tratar-se o seu guia da belssima judia que j conhecia do torneio e da sua curta estada naquela casa. Ela pediu-lhe pormenores da transaco feita com o pai, o que Gurth relatou de forma muito completa. - O meu pai no fez mais do que brincar contigo, bom homem - disse Rebeca. - Ele deve mais ao teu amo, muito mais do que dez vezes o valor do cavalo e das armas, Quanto deste ao meu pai? - Oitenta cequins - respondeu Gurth, surpreso com a pergunta. - Nesta bolsa - disse Rebeca - encontrars um cento deles. D ao teu patro o que lhe pertence e guarda o resto para ti. Depressa, vai-te embora! Deixa l os agradecimentos. Toma cuidado nas ruas, pejadas de malandrins, da vila. Podes perder o que levas e ainda a prpria vida... Reuben - chamou batendo palmas -, ilumina o caminho deste nosso visitante e depois no te esqueas de trancar a porta, Reuben, um israelita sombrio e de cabelo escuro, seguiu-lhe as
conduziu Gurth ao longo dum ptio lajeado e f-lo passar por uma portinhola existente no porto. Logo que o viu l fora, cerrou tudo com ferrolhos e correntes, como se duma priso se tratasse. - Valha-me So Dunstan - bradou Gurth, tropeando no piso irregular da larga rua. - Ela no judia nenhuma! um anjo do Cu! Dez cequins do meu jovem patro e vinte desta prola do Sio! Que dia de sorte! Mais outro assim, Gurth, e pagas a tua carta de alforria, tornando-te um membro livre da tua profisso. E, um dia, deito fora o meu bordo de porcario, pego numa espada e num escudo de homem livre e passo a acompanhar o meu querido e jovem amo, at morte, se necessrio. De rosto erguido, sem ocultar o nome!
Captulo XI PRIMEIRO BANDIDO: - Quieto, senhor. Passe-nos o que traz, ou, caso contrrio, obrig-lo-emos a sentar-se e enchemo-lo de balas. SPEED: - Senhor! Estamos perdidos! So os salteadores, que todos os viajantes tanto temem. VAL: - Amigos... PRIMEIRO BANDIDO: - No assim. Ns somos inimigos. SEGUNDO BANDIDO: - Calma! Vamos ouvi-los. TERCEIRO BANDIDO: - Escutemo-lo, ento. Trata-se dum homem delicado. - Dois Fidalgos de Verona As aventuras nocturnas de Gurth no tinham acabado ainda. Isso mesmo entenderia quando, depois de ter passado uma ou duas casas isoladas, nas cercanias da vila, se viu num carreiro estreito, ladeado de aveleiras e azevinhos, com, aqui e alm, um carvalho anzado estendendo os galhos por cima do caminho. Este estava cheio de buracos e marcado pelos sulcos das carroas que, recentemente, por ele tinham passado transportando material para o torneio. As sebes tornavam-no, tapando a Lua, muito escuro. Vindos da povoao, escutavam-se ao longe os sons de gente divertindo-se, gargalhadas, gritos e msica, tudo revelando o ambiente que se vivia na vila, cheia de nobres, militares e seus dissolutos servidores, o que inquietou Gurth. "A judia tinha razo", disse com os seus botes. "Queira o Cu e So Dunstan que consiga chegar a salvo com o meu tesouro! H por aqui tantos, no direi ladres, mas cavaleiros, escudeiros, frades, menestris, pees, malabaristas e bobos, que at um homem com uma moeda apenas no bolso corre perigo, quanto mais um guardador de porcos com uma saca a abarrotar de cequins. Tomara eu estar fora destas malditas sebes para que, ao menos, pudesse ver as caras dos sbditos de So Nicolau antes de eles me saltarem em cima."
Estugou o passo para atingir o baldio para onde o carreiro o levava, mas no teve a sorte de o conseguir.
Mesmo quando chegava ao alto do caminho, onde os arbustos eram mais densos, quatro homens, exactamente como temera, saltaram sobre ele, vindos dos dois lados, e prenderam-no to rapidamente que qualquer resistncia teria sido impossvel. - Entregue-nos o que traz - mandou um deles -; somos os encarregados de aliviar quem vai carregado. - No me aliviareis to facilmente - rosnou Gurth, cuja sombria franqueza no podia ser calada, mesmo quando em perigo se vos pudesse dar um par de socos. - Veremos isso em breve - disse o ladro, que, falando para os outros, acrescentou: - Tragam esse marau. Parece que quer ficar com a cabea partida, a bolsa rasgada e as velas cortadas. De conformidade, Gurth, arrastado um pouco bruta e empurrado, por cima da sebe do lado esquerdo, para o meio dum bosquete entre aquela e o baldio, foi obrigado a seguir os seus captores at pararem numa zona com menos rvores, onde o luar penetrava com maior facilidade. Juntaram-se-lhes mais duas outras pessoas, do bando certamente, Carregavam espadas curtas e varapaus nas mos. Gurth pde ento ver que os seis usavam mascarilhas, o que lhe tirou quaisquer dvidas que ainda pudesse ter quanto sua ocupao. - Quanto dinheiro trazes, labrosca? - perguntou um dos ladres. - Trinta cequins, que so meus - respondeu Gurth de m vontade. ' - Confiscam-se! - gritou um dos salteadores. - Confisquem-se ao saxo que tem trinta cequins e volta sbrio da vila. Uma inapelvel e irrecupervel confiscao. - Juntei-os para comprar a minha liberdade - explicou Gurth. - s um burro - fez outro ladro. - Quatro canadas de cerveja da boa tinham-te posto livre do teu amo. Muito mais livre ainda se ele for saxo tambm. - uma triste verdade - reconheceu Gurth -; mas se estes trinta cequins me podem libertar de vs, desamarrai-me para que vo-los d. - Espera - exclamou aquele que mais autoridade parecia ter sobre os demais -, essa saca que carregas, sinto-o por baixo do teu manto, tem muito mais do que nos disseste. - O resto do meu generoso amo. No me referiria a ele se ficsseis satisfeitos com o que meu. - Pareces ser um tipo honesto - disse o ladro. - No somos to devotos de So Nicolau que no te tivssemos deixado ficar com os teus trinta cequins se te tivesses portado direito. Passa o dinheiro para c! - Isto dizendo, arrancou a Gurth a saca de couro, dentro da qual estava tambm a bolsa de seda que Rebeca lhe dera, e prosseguiu com o interrogatrio. - Quem o teu amo?
- O cavaleiro Desditoso. - Cuja lana venceu hoje o torneio? - perguntou o ladro. Quem
e como se chama ele? - de sua vontade - informou Gurth - ocultar isso. Por mim ningum o conhecer. - E quem s tu e como te chamas? - Diz-lo corresponderia a revelar a identidade do meu amo. s muito atrevido. Mas chega disto para j. Como conseguiu o teu amo todo este ouro? Herdou-o, ou como que foi? - custa da sua lana. O que est dentro dessa saca corresponde ao resgate de quatro cavalos e quatro armaduras das boas, - Quanto h aqui? - Duzentos cequins, - S duzentos cequins?! - espantou-se o bandoleiro. - O teu amo foi muito condescendente para com os que venceu, exigindo-lhes to diminuto resgate. Ora diz-me os nomes dos vencidos. Gurth citou-lhos um por um. - Por quanto foram resgatados o cavalo e a armadura de Brian de Bois-Guilbert? Vs como no nos podes enganar? - O meu amo nada quer do Templrio, excepto tirar-lhe a vida. Desafiaram-se para uma luta de morte, pelo que no pode haver gentilezas entre eles. - Ento assim? - disse o ladro, calando-se depois por uns momentos. - Que fazias tu com esses valores a teu cuidado, aqui em Ashby? - Tinha ido pagar a Isaac, o Judeu de Iorque - explicou Gurth o valor do cavalo e da armadura que fornecera ao meu patro para o torneio. - Quanto pagaste a Isaac? Pelo peso, parece-me haver aqui duzentos cequins - Paguei-lhe oitenta e ele deu-me cem de troco - respondeu o saxo. - O qu?! - exclamaram, em coro, os salteadores, - Atreves-te a brincar connosco dizendo essas mentiras impossveis? - O que disse - insistiu Gurth - to certo como a Lua estar a brilhar no cu. Encontrareis a importncia numa bolsa de seda, dentro da saca de couro e separada do resto do ouro. - V bem, homem! - recordou-lhe o chefe. - Ests a falar dum judeu, dum israelita que to capaz de oferecer ouro a algum como os desertos, de onde originrio, de devolverem a gua que os peregrinos neles entornam - Tm tanta comiserao como um ajudante de oficial de diligncias no subornado - observou um membro daquela scia. - No entanto, foi como vos narrei - teimou Gurth. - Acendam uma luz - mandou o chefe. - Quero examinar esta saca. Se for como o tipo assegura, esse judeu ainda mais miraculoso do que o fio de gua que salvou a vida dos seus antepassados quando perdidos nas sfaras.
Trazida a luz, o bandido examinou a saca. Os demais rodearam-no e at os que prendiam Gurth abrandaram a fora que faziam para, esticando os pescoos, poderem ver o resultado da busca. Aproveitando-se dessa distraco, Gurth, custa de fora e agilidade, libertou-se e poderia ter fugido se no desejasse recuperar o que era do seu patro. Arrancou um varapau dum dos homens e, com uma pancada, derrubou o chefe, a quem tirou a saca. Os salteadores, porm, eram muitos e muito mexidos e tornaram a prend-lo e a recuperar a saca.
- Patife! - bramou o chefe levantando-se. - Rachaste-me a cabea. com outros, a insolncia ficar-te-ia muito cara. J sabers o que vai ser a tua sorte, mas, primeiro, falemos do teu amo. Os assuntos dos cavaleiros tm precedncia sobre os dos pees, de acordo com as leis da cavalaria. Fica quieto agora. Se tornares a mexer-te, apanhars como nunca apanhaste! - Dirigiu-se, ento ao bando: - Camaradas! Esta bolsa tem caracteres hebreus bordados, o que me leva a crer que este malandro no mentiu. O cavaleiro andante no necessita de nos pagar portagem. demasiado semelhante a ns para que o forcemos a isso. Os ces no se metem com os ces, quando h lobos e raposas solta. - Parecido connosco? - espantou-se um dos do bando. - Gostaria que mo explicassem. - Ento, louco - respondeu o chefe -, no ser ele to pobre e deserdado como ns? No ganhar o seu sustento fora de espada, como ns? No venceu ele o Front-de-Boeuf e o Malvoisin, como ns lhes faramos, se pudssemos? No ser ele um inimigo figadal de Brian de Bois-Guilbert, que tantos motivos temos para temer? E, ainda que tudo isto no bastasse, seremos ns menos misericordiosos do que um descrente, um hebreu, um judeu? - De facto seria uma vergonha - murmurou um dos homens se bem que, quando servi no bando do velho e gordo Gandelyn, no tivssemos esses pruridos. E este campons malcriado tambm vai escapar sem nada se lhe exigir? - S se tu o no conseguires vencer - comunicou-lhe o chefe. Tu, rapaz - chamou virado para Gurth -, sabes servir-te daquele varapau em que to lestamente pegaste h pouco? - Creio - disse Gurth - que tu, melhor do que ningum, saber responder a essa pergunta. - Sim. Deste-me de facto uma boa castanhada - confirmou o chefe. - Faz o mesmo a este tipo e soltar-te-ei. Se no fores capaz, foste to valente que eu prprio pagarei o teu resgate... Pega no teu pau, Miller(1) - comandou, e protege a cabea... Vocs, soltem o tipo e ponham-lhe um varapau nas mos. *1. Miller significa, traduzido letra, moleiro. (N. do T.)
Julgo haver luz suficiente para poderem dar bordoada um no outro vontade. Os dois adversrios, cada um com o seu varapau, avanaram para o meio da clareira para melhor se aproveitarem do luar. Os ladres riam-se, aconselhando o camarada. - Miller, acautela a tola! Miller, pegando pelo centro do pau, fazia-o rodopiar por sobre a cabea, daquela forma que os Franceses denominam faire te moulinet, e bazofiava-se: - Avana, malandro, para veres o que te faz o moinho! - Se s moleiro - respondeu-lhe Gurth, sem ponta de medo e imitando-lhe o movimento -, s tambm um ladro, e eu, homem de bem, vou dar-te uma ensinadela. Aproximaram-se e durante uns minutos evidenciaram iguais fora, coragem arte, aparando e devolvendo pauladas com to veloz destreza que, para quem estivesse um pouco afastado, o som dos varapaus, batendo um contra o outro, poderia parecer
resultante duma luta entre, pelo menos, seis pessoas. Menos encarniados e muito menos perigosos combates j foram descritos em poemas picos. O de Gurth contra Miller ter de ficar por cantar, por falta de poeta altura de lhe rimar os feitos. Contudo, e ainda que o Jogo do pau tenha cado em desuso, tentarei, em prosa, o meu melhor. J lutavam h muito quando Miller principiou a perder a calma perante aquele teimoso oponente e as gargalhadas dos seus camaradas dele troando. No era esse, de forma alguma, o melhor dos estados de esprito para se prosseguir num nobre jogo como aquele, para o qual, como nas danas de pauliteiros, uma total frieza essencial. Tal facto ofereceu a Gurth, cujo carcter era firme e sombrio, a oportunidade de tomar vantagens, que aproveitou com grande maestria. Miller, fulo, pressionou, avanando a golpes alternados com as pontas do varapau, procurando achegar-se ao adversrio. Gurth foi-se defendendo, com as mos a uma distncia de um metro uma da outra, e cobrindo-se com clebres movimentos da sua arma, tapando bem tanto a cabea como o corpo. Manteve-se na defensiva, de olhos bem atentos, ps e mos firmes, esperando. Subitamente, vendo o antagonista perder o mpeto, simulou, pela esquerda, uma paulada cara. Quando Miller a tentava aparar, deu-lhe, pela direita, nova pancada, no lado esquerdo, atingindo-o com o pau, com toda a violncia, na cabea e obrigando-o a tombar. - Maravilhosamente bem executado! - saudaram os malandrins. Jogo limpo, inglesa. O saxo salvou a pele e a bolsa e o Miller aprendeu uma grande lio. - Podes continuar o teu caminho, amigo - disse-lhe o chefe em representao da vontade geral. - Sers acompanhado por dois dos meus camaradas at ao pavilho do teu amo,
para te protegerem de outros noctvagos de alma mais dura do que nossa. H por ali muitos que no teriam amabilidades destas, numa noite como a de hoje. Lembra-te - aconselhou com severidade - que te recusaste a dizer-nos o nome... no "nos peas os nossos ou tentes descobrir quem somos. Se o fizeres, triste ser a tua sorte... Gurth agradeceu-lhe a gentileza e prometeu acatar-lhe o conselho. Dois salteadores, com varapaus, acenaram para que fosse atrs deles e meteram-se por um atalho que atravessava o bosque e o terreno irregular em seu redor. Na orla da mata, dois homens falaram com eles e, tendo recebido uma resposta em voz baixa, tornaram aos seus esconderijos, deixando-os passar. Este pormenor fez Gurth pensar ser o bando grande e bem organizado, com sentinelas e tudo. Ao alcanarem o terreno aberto, onde Gurth talvez tivesse alguma dificuldade em reconhecer a direco correcta, os ladres conduziram-no at ao topo duma pequena elevao de onde se avistava, ao luar, a paliada das lias, os garridos pavilhes, nos dois extremos, com os penantes que os decoravam tremulando, e escutar o cantar dos guardas que assim iam passando o tempo. Os bandoleiros estacaram ali. - No vamos mais alm - disseram. - No seria seguro para ns. Lembra-te do que te foi recomendado. Esquece o que se passou esta noite e no te arrependers. No ligues ao que te
avismos e nem a Torre de Londres te proteger da nossa vingana. - Boas noites e muito obrigado, bondosos senhores. No esquecerei as vossas ordens e julgo no ofender ningum desejando-vos um ofcio menos arriscado e mais honesto. Separaram-se, os ladres na direco em que tinham vindo, Gurth para a tenda do amo, onde, contrariamente s recomendaes recebidas, tudo lhe descreveu. O cavaleiro Desditoso muito se surpreendeu, no s com a generosidade de Rebeca, da qual logo decidiu no se aproveitar, como da dos salteadores, to pouco prpria de gente daquela igualha. No pde, todavia, prosseguir meditando nesses dois pontos por necessidade de descanso, que os esforos da luta e a obrigao de se pr fresco para o dia a chegar lhe impunham. Estendeu-se no confortvel sof que havia na tenda, O fiel Gurth, agarrando numa pele de urso que estava no cho, servindo de tapete, cobriu-se com ela e deitou-se entrada para que ningum nela penetrasse sem que ele disso desse f.
Captulo XII Os arautos elevaram as vozes gritando, As trombetas fortes e sonoras soando. Nada mais havendo afazer frente s bancadas, As lanas so no seu encaixe apoiadas, E as esporas carregadas fundo a sangrar, Os campees da justa prontos para carregar; Ferros chocam com escudos numa exploso, Ferros entram, firmes, em muito corao; Erguem-se bem alto as lanas brilhantes, Vibram cortantes espadas, cintilantes; Os elmos quebram-se, ficam despedaados: Jorra sangue em longos escorreres encarnados. Chaucer
Rompera uma manh sem nuvens e esplndida e, antes de o Sol se ter levantado muito acima do horizonte, j os espectadores com menos que fazer ou mais impacientes surgiam no descampado, caminhando para as lias, na esperana de conseguirem bons lugares para melhor apreciarem os jogos. Os mestres-de-cerimnias e os auxiliares apareceriam pouco depois, juntamente com os arautos, para tratarem de receber os cavaleiros pretendentes a entrar na peleja e regist-los nu grupo de que quisessem fazer parte. Era necessrio este cuidado para se garantir um equilbrio justo entre as duas faces. De acordo com as regras estabelecidas, o cavaleiro Desditoso comandaria o primeiro grupo e Brian de Bois-Guilbert, que fora dado como o segundo melhor na vspera, seria o campeo chefe do segundo. Os desafiantes aderiram, evidentemente, a este lado, com a excepo de Ralph de Vipont, cuja queda impossibilitara de envergar uma armadura sequer. No houve, naturalmente, falta de cavaleiros para qualquer dos
agrupamentosNa verdade, embora as justas generalizadas, em que muitos cavaleiros combatiam ao mesmo tempo, fossem muito mais arriscadas do que os encontros singulares, eram, mesmo assim, muito mais praticadas. Muitos cavaleiros, sem confiana
suficiente na sua capacidade para desafiarem um adversrio de renome, procuravam glria nesse tipo de combate, onde sempre havia a possibilidade de se encontrar outro ou outros altura das suas foras. Quando totalizaram cinquenta cavaleiros para cada hoste, os mestres comunicaram terem acabado as inscries, com grande desapontamento daqueles que, por atraso, no haviam chegado a tempo. Por volta das dez horas, toda a plancie estava coberta de cavaleiros, cavaleiras e pees acorrendo para o local do torneio. Pouco depois, um soar de trombetas anunciava a chegada do prncipe Joo e do seu squito e acompanhantes, acrescido por muitos cavaleiros, combatentes uns, meros assistentes outros. Chegavam igualmente Cedric, o Saxo, e Lady Rowena. Athelstane no vinha, porm, com eles. O fidalgo saxo enfiara o gigantesco corpanzil dentro duma armadura e fora tomar o seu lugar entre os combatentes. para surpresa de Cedric, decidira alistar-se na faco do Templrio. O Saxo insurgira-se contra o amigo quanto a esta escolha, que considerava como errada, mas apenas recebera a resposta que, geralmente, se obtm das pessoas que teimam numa ideia sem desejarem justific-la. Quer isto significar que Athelstane nada disse, calando para si o motivo, pois um somente deveria ser, de se aliar a Brian de Bois-Guilbert. Embora a sua apatia o impedisse de exercer o menor esforo para agradar a Lady Rowena, no era, de modo nenhum, insensvel aos seus encantos, considerando mesmo o seu casamento com ela como um facto assente e aprovado por Cedric e demais amigos. Fora, pois, com aborrecimento que o orgulhoso mais indolente fidalgo vira o vencedor do dia anterior escolher Rowena como a bela a enaltecer graas ao privilgio que conquistara. para o castigar pela intromisso que via naquela atitude, Athelstane, ciente do seu poder hercleo e comprovada arte guerreira, resolvera retirar ao Desditoso a sua poderosa ajuda e, se possvel fosse, fazer-lhe sentir o peso da sua acha de armas. De Bracy e outros guerreiros afectos ao prncipe Joo tinham-se, por essa mesma razo, juntado aos desafiantes, em quem o Prncipe depositava todas as suas esperanas. Por outro lado, muitos outros cavaleiros, normandos e saxes, nacionais e estrangeiros, tinham tomado o partido contrrio, at porque seriam dirigidos por um campeo to distinto como o Desditoso revelara ser. Logo que o prncipe Joo notou que a rainha eleita estava a chegar, aparentou aquele ar de simpatia que to bem conseguia quando queria e, avanando ao encontro dela, tirou o gorro ao desmontar e auxiliou-a a sair da sela. Todos os seus seguidores se descobriram tambm, adiantando-se um dos mais nobres para segurar o palafrm da dama.
- desta forma - explicou o prncipe Joo - que mostramos o nosso leal respeito pela Rainha do Amor e da Beleza, que ns prprios acompanharemos at ao trono que hoje ocupar... Senhoras - acrescentou -, atentei e honrai a vossa rainha, tal como, um dia, gostareis que vo-lo faam. O Prncipe conduziu Rowena at ao assento de honra, de frente para o seu, enquanto as mais belas e distintas donzelas ali presentes a rodeavam, procurando obter as posies mais cerca dela possveis. Logo que Rowena se acomodou, ouviu-se msica, um tanto abafada pelo barulho que a multido fazia aclamando-a. o sol forte rebrilhava nas armas dos cavaleiros rivais, reunidos nos dois extremos e trocando, excitados, sugestes quanto s melhores tcticas e ordenaes a tomarem e a seguirem no encontro. Os arautos pediram silncio para anunciarem quais as regras do torneio, destinadas, em princpio, a reduzir um pouco os perigos, que eram muitos, dado o combate ir ser travado com espadas afiadas e lanas aceradas. Aos campees era, assim, proibido empregar a espada de ponta, mas permitida a cutilada. Poderiam servir-se das maas e achas de armas vontade, mas no de adagas. Qualquer cavaleiro que fosse derrubado poderia prosseguir, lutando, apeado, com qualquer adversrio nas mesmas condies; os cavaleiros, porm, no podiam atac-los. Quando um cavaleiro conseguisse empurrar um oponente at tocar nas paliadas, nos extremos das lias, com o corpo ou com as armas, o primeiro seria considerado como vencido e a sua armadura e cavalo postos disposio do que o vencera. o cavaleiro a quem tal sucedesse abandonaria a luta. Aos guerreiros derrubados e em dificuldades para se erguerem poderiam pajens assistir, retirando-os do terreno, mas, nesse caso, seriam dados como derrotados, ficando as suas armaduras e cavalos sob penhor. O combate terminaria logo que o prncipe Joo baixasse o seu basto, uma medida tendente a evitar demasiado derramamento de sangue num exerccio to violento como aquele. Qualquer cavaleiro que no cumprisse as regras do jogo ou as leis gerais da cavalaria estaria sujeito a ser desarmado e o seu escudo, invertido, pendurado na paliada, ridicularizando-o junto do pblico pela sua falta de cavalheirismo. Tendo anunciado estas regras, os arautos concluram com uma exortao para que cada cavaleiro cumprisse o seu dever e fosse merecedor dos favores da Rainha da Beleza e do Amor. Proclamadas estas medidas, os arautos afastaram-se. Os cavaleiros entraram no recinto, cada grupo vindo do seu lado, e dispuseram-se, em duas alas paralelas, com o chefe de cada faco no centro e frente da linha mais adiantada, posto que somente ocuparam depois de verificarem se todos os seus estavam correctamente dispostos e bem preparados.
Era magnfico e ao mesmo tempo tremendo ver tantos e to garbosos campees, belamente montados, fortemente armados, prontos para um recontro to fantstico, hirtos nas suas selas de batalha, como blocos de ferro aguardando a ordem de ataque, qui to tensos como as suas nervosas montadas, que relinchavam e, impacientes, escavavam o solo.
Para j, as lanas mantinham-se aladas, com os ferros reflectindo a luz do Sol e os galhardetes adejando a par das plumas apostas nos elmos. Assim se conservaram enquanto os mestres-de-cerimnias tudo cuidadosamente examinaram, vendo se os nmeros de cada lado eram exactamente os mesmos. Verificado estar tudo em ordem, retiraram-se, e William de Wyvil, com voz trovejante, bradou: "Laissez aller", comando que as trombetas repetiram. As lanas desceram e foram encaixadas nos seus apoios, as esporas feriram os flancos dos cavalos e as duas linhas da frente de cada grupo partiram a galope solto uma contra a outra para se chocarem no centro exacto do terreno num clamor que pde ser escutado a grande distncia. As retaguardas avanaram mais devagar, refreando o passo e observando a situao dos seus. No se viram os resultados do embate nos primeiros momentos, devido poeira levantada por tantos cavalos juntos, pelo que, durante um curto espao de tempo, o pblico, galvanizado, nada podia perceber. Dissipado um pouco o ambiente, verificou-se que j quase metade dos cavaleiros de cada lado tinham sido derrubados, uns pela destreza das lanas adversas, outros pelo peso e fora dos oponentes, que haviam conseguido atirar por terra cavalos e cavaleiros, Uns tantos jaziam, inertes, no solo, outros j se tinham levantado e iniciavam combates singulares com adversrios em igual posio. Alguns, de ambos os lados, incapacitados por ferimentos graves, tentavam estancar o sangue, arrastando-se dali para fora. Os cavaleiros ainda nas selas, todos praticamente, com as lanas quebradas pelo mpeto do choque, pugnavam agora com as espadas, soltando os seus gritos de guerra e desferindo golpes, como se a sua salvao dependesse do resultado do encontro. o tumulto cresceu com o avano das segundas linhas, que, como reservas, entravam, no momento, a apoiar os seus companheiros. Os seguidores de Brian de Bois-Guilbert berravam: "Ah! BeauSant! BeauSant!(1) Pelo Templo! Pelo Templo! ", ao que os adversrios respondiam rugindo: "Desdichado! Desdichado!", *1.. Beau-Sant era o nome dado ao estandarte dos Templrios, metade negra, metade branca, significando, dizia-se, serem eles sem mcula e correctos para com os cristos e negros e terrveis contra os infiis.
a palavra de ordem que haviam tomado, repetindo o mote no escudo do seu chefe. A luta no parava, oscilando o sucesso para um e para o outro lado, parecendo uma mar no seu ir e vir, conforme este ou aquele grupo ganhava, temporariamente, a iniciativa. O rudo das pancadas, o tinir de ao contra ao, os gritos dos combatentes, o troar das trombetas, apagavam os gemidos dos que, cados, se viam merc das patadas dos cavalos. As belas armaduras tinham-se coberto de p e sangue e amolgaduras. Os penachos, arrancados dos elmos, voavam ao sabor do vento. Toda a beleza e graa marciais tinham desaparecido para serem substitudas por um quadro de dor e terror. Tal era a fora dos usos da poca, porm, que no s os vulgares espectadores, a quem a viso de coisas sanguinrias
pouco perturbava, mas tambm as damas distintas, sentadas nas galerias, seguiam os acontecimentos com nervoso interesse e sem sequer despegarem a vista do que se ia desenrolando sua frente. Aqui e ali, um rosto belo tornava-se mais plido ou duma boca linda saa um grito abafado, quando um namorado, um irmo ou um marido era derrubado. Mas, dum modo geral, as damas incitavam os cavaleiros batendo palmas, acenando os vus e, mesmo, exclamando "Grande lana!", ou "Bela espadeirada!", premiando algum bom golpe perto de si. Se o interesse do sexo fraco se manifestava to ostensivamente neste sangrento jogo, o dos homens ainda mais exuberante se mostrava. Surgia em aclamaes, conforme as mudanas no decorrer do combate, com todos os olhos fixos no campo, parecendo at que os prprios espectadores tambm dentro dele pelejavam. Em todos os intervalos, que por vezes aconteciam, os arautos incitavam: "Fora, bravos cavaleiros! O homem vai, mas a glria fica! Lutai! A morte prefervel derrota! Lutai, bravos guerreiros! Belos olhos vos contemplam!" Todos procuravam no meio da peleja os dois chefes adversrios, que se conservavam nos pontos mais acesos, encorajando os seus por palavras e exemplos. Ambos praticavam feitos espantosos, incessantemente, pois nem Bois-Guilbert, nem o Desditoso, haviam ainda encontrado sua frente qualquer homem sua altura. Os dois tentavam, pois, enfrentar-se isoladamente, na certeza de a queda dum deles corresponder vitria do lado oposto. Simplesmente, to grande era a confuso naquele amontoado de combatentes que, durante a primeira parte da luta, todos os seus esforos resultaram nulos, devido fogosidade dos seus prprios, frementes por atacarem os chefes rivais. Todavia, quando o nmero de combatentes comeou a reduzir-se, com muitos a serem dados por vencidos, levados at s paliadas ou, de qualquer outro modo, impossibilitados de continuar, o Templrio e o Desditoso alcanaram, finalmente,
encontrar-se, e com um furor que somente uma animosidade mortal e uma rivalidade sem limites poderiam inspirar. Era tanta a destreza de ambos no aparar e desferir golpes que a assistncia no se cansava de os aplaudir. Na altura estava o partido do Desditoso em situao de inferioridade. Os braos potentssimos de Front-de-Boeuf, num flanco, e a implacvel robustez de Athelstane, no outro, varriam e dispersavam tudo na sua frente. Vendo-se estes dois cavaleiros livres de qualquer oponente imediato, logo pensaram que, oferecendo ajuda ao Templrio, no combate que travava com o rival, conseguiriam a vitria final. Voltando, ao mesmo tempo, os cavalos, carregaram sobre o Desditoso, o normando dum lado, o saxo do outro. Ter-lhe-ia sido impossvel aguentar tal assalto se os espectadores, num grito, o no tivessem avisado: "Cuidado! Cuidado, Sr. Desditoso!" Desferindo uma espadeirada violenta contra o Templrio, fez a montada recuar de modo a escapar-se a Front-de-Boeuf e a Athelstane. Estes quase foram um contra o outro, mas l sustiveram as montadas. Recuperando, voltearam e os trs juntos acorreram para abater o Desditoso. Somente a agilidade e o vigor do cavalo ganho na vspera o salvaram. o animal mostrava inmeras vantagens sobre os
outros; o de Bois-Guilbert fora ferido e os de Front-de-Boeuf e Athelstane estavam exaustos pelo esforo do dia anterior e pelo tremendo peso dos dois cavaleiros, cobertos de ao. Os muitos conhecimentos de equitao do Desditoso e a mobilidade do seu corcel permitiram-lhe, por minutos, manter com a espada os oponentes a distncia, volteando, mudando de posio como um falco e obrigando-os a separarem-se uns dos outros, desferindo aqui uma pancada e, logo ali, outra, sem lhes aguardar rplica s que, naturalmente, lhe tentavam dar. No obstante o apoio da assistncia ser indescritvel, o caso que teria de acabar vencido em encontro to desigual. Os nobres perto do prncipe Joo imploraram-lhe que descesse o basto, evitando que um cavaleiro to valente acabasse derrotado. - Isso no farei eu! Nem pelos Cus! - retorquiu-lhes o Prncipe. - Essa criatura, que esconde o nome e desdenha da nossa hospitalidade, teve ontem o seu galardo. tempo de outros os ganharem tambm! Todavia, quando isto proferia, algo ocorreu que alterou completamente o resultado que se antevia j. Nas hostes do Desditoso combatia um campeo, de armadura negra, servindo-se dum cavalo negro tambm e poderoso e alto como aquele que o montava. Este guerreiro, cujo escudo no ostentava qualquer insgnia, tinha, at ocasio, revelado pouco interesse pela peleja, limitando-se a repelir com evidente facilidade todos os que o atacavam e abstendo-se
de perseguir OU procurar adversrios. Resumindo, tinha sido mais espectador do que um dos elementos do torneio, atitude que lhe valera, entre a assistncia, o apodo de "Le Noir Faineant", o Negro Preguioso. Este, de repente, vendo o comandante do seu grupo em perigo, pareceu afastar toda a sua imperturbabilidade. Esporeou a montada e acorreu, como um relmpago, gritando em voz grossssima: "Desdichado, aqui vem ajuda!" E em bom tempo chegava, pois que aquele, encurralando o Templrio, ia ser batido por Front-de-Boeuf, que se achegava de espada erguida. Antes de o golpe chegar a ser desferido, o Cavaleiro Negro bateu-lhe com a sua arma no elmo, onde de raspo escorregou, acabando por cair, ainda cheia de tanta violncia, no chamfron(2) do cavalo, que este arriou, levando consigo o seu cavaleiro, tombando ambos no solo perfeitamente estonteados. "Le Noir Faineant" enfrentou ento Athelstane de Conningsburgh. Como a sua espada se quebrara com a pancada desferida no Front-de-Boeuf, sem cerimnias arrancou das mos do poderoso saxo a acha de armas que brandia e, dando provas de muito bem se saber servir dela, descarregou tal pancada no alto do elmo de Athelstane que este tombou desmaiado. Realizado este inesperado, muito aplaudido e duplo feito, o cavaleiro tornou sua impassividade, voltando calmamente para o extremo norte, deixando que o chefe do seu partido resolvesse a sua luta com Brian de Bois-Guilbert da melhor forma que pudesse. As dificuldades eram agora muito menores. A montada do Templrio, perdendo sangue, cedeu subitamente aos embates do Desditoso, e Brian de Bois-Guilbert foi a terra, preso por um estribo, do qual no conseguia desembaraar-se. O seu antagonista desmontou e ordenou-lhe que se rendesse. Foi
ento que o prncipe Joo, com uma preocupao pela sorte do Templrio que no surgira a propsito do seu rival, lhe evitou a vergonha de se ter de dar por vencido baixando o basto e dando o combate por terminado. J antes o ardor da peleja se extinguira. Os guerreiros ainda de p tinham, na maioria, tacitamente aceite suspenderem-na para que fosse decidida pelo duelo entre os dois chefes. Os escudeiros, que se tinham visto impossibilitados de ajudar os amos na confuso do encontro, acorriam agora a cumprir as suas obrigaes, retirando os feridos com o maior cuidado e transportando-os para os pavilhes prximos ou para abrigos sua disposio na aldeola ali beira. Desta forma terminou a memorvel justa de Ashby-de-la-Zouche, uma das mais ferozmente disputadas no tempo. Na verdade, embora somente tivessem morrido quatro cavaleiros, *2.. Testeira. (N. do T.)
incluindo um abafado pela prpria armadura, mais de trinta ficaram feridos, dos quais quatro ou cinco sem recuperao. Vrios ficariam diminudos para sempre e os que escaparam conservariam at morte as marcas daquela manh. Desde a, os que a ela se referiam chamavam-na de Fidalga e Alegre Passagem de Armas de Ashby. O prncipe Joo, obrigado a escolher o cavaleiro que melhor se comportara, entendeu s-lo "Le Noir Faineant". Foi-lhe contudo observado que a honra seria melhor merecida pelo Desditoso, que, sozinho, derrubara seis campees e terminara desmontando o chefe dos adversrios. O Prncipe manteve o seu ponto de vista, afirmando que o Desditoso e o seu grupo teriam perdido se no fosse o formidvel brao do Cavaleiro Negro. Era a este que cabia o prmio. para surpresa geral, o Cavaleiro Negro desaparecera. Ningum sabia para onde. Sara da lia mal o combate terminara e, segundo alguns espectadores, seguira, calmo e indiferente, como todo o tempo se mostrara, para dentro da floresta. Chamado em vo por duas vezes por trombetas e pelos gritos dos arautos, houve necessidade de se eleger outro, em seu lugar, a quem fossem dadas as honras que no quisera aceitar. O prncipe Joo, por falta de argumentos, teve de declarar o Desditoso como o campeo daquele espantoso combate. os mestres-de-cerimnias escoltaram-no ao longo do terreno, empapado de sangue e pejado de pedaos de armas, armaduras e corpos de cavalos mortos ou moribundos, at junto do trono de Joo. - Cavaleiro Desditoso - disse o Prncipe -, ttulo que teimais manter. Pela segunda vez vos concedemos as honras deste torneio e vos damos o direito de receberdes das mos da Rainha do Amor e da Beleza o coronel de honra que o vosso valor conquistou. - O cavaleiro baixou-se, num agradecimento, mas no pronunciou palavra. Ao som de trombetas, dos gritos dos arautos proclamando as honras dos bravos e dos vencedores, do acenar de lenos de seda das damas e dos aplausos da multido, os mestres conduziram-no a Lady Rowena. O campeo foi levado a ajoelhar-se perto do primeiro degrau do
trono. Na realidade, desde que o prlio terminara, aparentava mover-se mecanicamente e no segundo a prpria vontade. Cambaleava, ao atravessar a lia pela segunda vez. Rowena, deixando o seu assento, deslocara-se, graciosa e dignamente, para perto dele e ia a apor-lhe a coroa, quando um dos mestres-de-cerimnias bradou: - No! Assim no! Na cabea, a descoberto! O guerreiro disse qualquer coisa que ningum percebeu, mas que talvez significasse desejar conservar-se coberto. Fosse por pretenderem seguir a etiqueta risca, fosse por curiosidade, os mestres no lhe ligaram e, desatando-lhe os atilhos e desprendendo-o da gorjeira, retiraram-lhe o elmo. Ao sol surgiu um rosto bronzeado e bem formado dum jovem louro dos seus vinte e cinco anos. Plido como a cera, escorria-lhe sangue dum ou mais cortes. Rowena, encarando-o, soltou um grito abafado. Recomps-se rapidamente e com toda a fora da sua vontade prosseguiu, se bem que toda ela tremendo violncia da inesperada emoo, e, pousando na cabea do vitorioso a belssima coroa representativa do prmio do dia, disse: - Entrego-te esta coroa, bravo cavaleiro, como prova do valor que demonstraste. - Parou por uns momentos e continuou: - E fronte mais merecedora que a tua no existir entre todos os que cavalaria pertencem. O guerreiro baixou-se, beijando a mo da bela soberana que deste modo o acabara de elogiar. Pareceu baixar-se um pouco mais e caiu-lhe, desmaiado, aos ps. Foi total a consternao. Cedric, que ficara petrificado perante o aparecimento do filho que expulsara, avanou, apressado, como que para o arredar de Rowena, mas no teve tempo de fazer fosse o que fosse, pois os mestres-de-cerimnias, perante a razo que levara Ivanho a perder os sentidos, j o estavam a desembaraar da armadura. Um ferro de lana tinha-a perfurado, originando um profundo ferimento.
Captulo XIII Acerquem-se daqui os distintos para junto, heris, deste recinto. Vs, que fora e arte ostentais, Vinde, com elas, vencer os demais A vaca, vinte valendo, ser dada flecha mais longe atirada. - Ilada Pronunciado o nome de Ivanho, a notcia espalhou-se de boca em boca com a celeridade com que a avidez de novas se transmite curiosidade de receb-las. Rapidamente chegou ao crculo do Prncipe, que, ao ouvi-la, ficou de rosto ensombrado. Olhando em torno de si, com escrnio, disse: - Senhores, e, em especial, vs, Sr. Prior, que pensais da doutrina que os sbios nos ensinam da simpatia e antipatia inatas? Pareceu-me ter sentido a presena dum favorito de meu irmo muito antes de saber quem aquela armadura cobria.
- Front-de-Boeuf deve tratar de pensar na devoluo do seu feudo lembrou De Bracy, que, aps ter combatido valorosamente no torneio, tirara o elmo e pousara o escudo, juntando-se ao grupo do Prncipe. - Assim ser - concordou Waldemar Fitzurse. - Aquele bravo bem capaz de reclamar o castelo que Ricardo lhe destinou, mas que, graas generosidade de Vossa Alteza, foi depois dado a Front-de-Boeuf. - Front-de-Boeuf - interps Joo - homem para facilmente engolir trs solares iguais ao de Ivanho sem deixar escapar-se-lhe um que seja. De resto, senhores, creio que ningum por em dvida o direito que me assiste de distribuir os feudos da coroa pelos meus fiis seguidores, sempre a meu lado e sempre dispostos a colocarem a necessria fora militar ao nosso servio, em vez de queles que partiram para terras estranhas, no podendo nem nos prestar vassalagem, nem servios, quando para tal so requeridos.
A audincia tinha demasiados interesses na questo para no deixar de confirmar como livre de quaisquer dvidas o direito que o Prncipe tomara para si. - Um prncipe generoso! Um nobre fidalgo, que pelas prprias mos recompensa os seus leais servidores! Estas frases provinham de membros do squito ambicionando, se delas no usufrussem j, concesses semelhantes custa dos partidrios de Ricardo. O prior Aymer, que juntara o seu sim opinio geral, observou, contudo, que "Jerusalm abenoada no podia ser vista como terra estranha. Era, sim, communs mater, a me da cristandade. No entendia, porm", declarou, "em que poderia Ivanho basear-se ele [o Prior) estava informado de que os cruzados, s ordens de Ricardo, no tinham ido alm de As alon, que, todos o sabiam, era uma cidade dos filisteus, sem, evidentemente, quaisquer dos merecimentos da Cidade Santa". Waldemar, curioso, tivera ido at onde Ivanho tombara e, regressando, informou: - O valente guerreiro no deve vir a causar grandes problemas a Vossa Alteza ou perturbar Front-de-Boeuf no concernente aos seus ganhos. Est gravemente ferido. - Acontea-lhe o que lhe acontecer - lembrou o prncipe Joo -, o vencedor do dia. Fosse ele dez vezes mais nosso inimigo, ou o mais dedicado dos amigos de nosso irmo, o que seria o mesmo, e o seu ferimento seria igualmente atendido. O nosso fsico particular trat-lo-. - Um sorriso severo desenhara-se no rosto do Prncipe quando isto dizia. Waldemar apressou-se a comunicar-lhe que Ivanho j fora retirado da lia, estando, no momento, sob os cuidados dos seus amigos. - Perturbou-me um tanto - prosseguiu - a aflio da Rainha do Amor e da Beleza, cujo reinado de um dia se transformou quase num luto. No sou homem de me comover com a dor duma dama ante o sofrimento do seu amado, mas tenho de reconhecer que dominou os seus sentimentos com tanta dignidade de modo que apenas se reconheceriam observando-lhes as mos apertadas e os olhos, sem guas mas trmulos, presos ao corpo cado junto dela. - Quem esta Lady Rowena - perguntou o Prncipe -, de quem tanto ouo falar? - Uma herdeira saxnica de posses imensas - explicou-lhe o
Prior -; uma flor de beleza, a mais bela entre milhares, um feixe de mirra, um racimo de cnfora. - Aliviar-lhe-emos as penas - respondeu Joo - e melhorar-lhe-emos o sangue casando-a com um normando. Se menor, como aparenta, o nosso real dever arranjar-lhe homem... Que dizes tu, De Bracy? Que pensarias tu se apanhasses vastas terras e prdios casando com uma saxnia, de acordo com os costumes dos que serviram o Conquistador?
- Sejam as terras de meu grado, senhor - sorriu-se De Bracy -, que a noiva dificilmente me desagradar. Desde j fico altamente agradecido a Vossa Alteza pela generosidade com que materializa as promessas feitas a este vosso servo e vassalo. - No nos esqueceremos - afirmou o Prncipe. - E, para iniciarmos a nossa obra, ordena de pronto ao nosso senescal que v convidar, para o nosso banquete, Lady Rowena e seus companheiros, ou sejam, o seu boal guardio e aquele brutamontes saxo que o Cavaleiro Negro atirou pelos ares no torneio... Bigot - acrescentou para o senescal -, fars que este segundo convite seja suficientemente corts para satisfazer o orgulho daqueles saxes e tornar-lhes-s toda e qualquer recusa impossvel... embora, pelos ossos de Bec et, estender amabilidades quela gente seja o mesmo que dar prolas a porcos. O prncipe Joo, tendo dado estas instrues, preparava-se para se ir embora dali quando um pequeno bilhete lhe foi entregue. - Da parte de quem? - indagou a quem lho trouxera. - Do estrangeiro, senhor meu, mas de onde no sei - respondeu o criado. - Trouxe-o um francs, que garantiu ter cavalgado noite e dia para o fazer chegar s mos de Vossa Alteza. O Prncipe olhou, desconfiado, o bilhete, primeiro o sobrescrito, depois o selo, que fora colocado de forma a prender a fita de seda que o cercava e que ostentava impressas trs flores-de-lis. Joo, com agitao ntida, que aumentou quando o abriu, leu o seu contedo, que rezava somente: "Cuida-te, porque o Diabo j anda solta!" Plido de morte, o Prncipe baixou os olhos para o cho e voltou-os depois para o cu, como quem acaba de saber ter sido condenado morte. Dominando-se, chamou Waldemar Fitzurse e De Bracy parte, mostrando a nota a ambos. - Isto quer dizer - segredou com voz trmula -, que meu irmo Ricardo conseguiu a liberdade. - Pode tratar-se de falso alarme - lembrou De Bracy. - Reconheo a letra e o selo - respondeu o Prncipe. - , pois, altura de nos mudarmos para Iorque ou qualquer outro stio central. Se deixarmos passar alguns dias, poder fazer-se tarde. Vossa Alteza ter de acabar com esta farsa aqui. - Nem os homens livres, nem a arraia-mida, podem ser dispersos insatisfeitos por no terem tido a sua parte nos jogos - recordou De Bracy.
- O dia ainda vai alto - sugeriu Waldemar. - Deixem-se os arqueiros atirar uma dzia de setas e d-se um bom prmio ao vencedor. S isso representar um bom presente da parte do Prncipe para esta horda de saxes. - Agradeo-te, Waldemar - disse o Prncipe -, o teres-me recordado que tenho uma dvida a cobrar daquele campons que,
ontem, insultou a nossa pessoa. Igualmente o banquete ter de se realizar tal como propusemos. Nem que fossem estes os nossos ltimos dias no poder, que, ao menos, o sejam de vingana e de prazer! Deixemos as preocupaes para amanh, que novo dia! As trombetas atraram de novo as pessoas que se afastavam, aps o que foi lida uma Comunicao, de acordo com a qual o prncipe Joo, repentinamente chamado pelos seus altos deveres nacionais, se via obrigado a cancelar as festividades do dia imediato. No entanto, e para que os tantos homens livres ali presentes no partissem sem terem demonstrado as suas habilidades, dar-se-ia de imediato incio competio de tiro ao arco inicialmente marcada para o dia seguinte. O melhor arqueiro teria como prmio uma trompa de caa encastoada em prata e um belssimo boldri com uma medalha de Santo Humberto, o patrono dos caadores. Imediatamente se apresentaram para a competio uns trinta homens livres, entre eles vrios couteiros e guardas das matas reais de Needwood e Charnwood, mas uns vinte deles logo desistiram ao perceberem contra quem teriam de concorrer, evitando assim uma derrota certa. Naqueles dias, a percia de todos que sabiam bem manejar o arco era conhecida num raio de muitas lguas do lugar onde vivesse, tal como agora as qualidades dum cavalo treinado em Newmar et o so de quem por l costuma passar o tempo. O grupo de concorrentes, apenas com oito homens de fama, foi inspeccionado pelo prncipe Joo, que saiu do seu trono para melhor Poder apreciar aqueles homens, alguns dos quais envergando o fardamento real. Satisfeito o seu interesse, procurou o objecto do seu ressentimento, que facilmente localizou no lugar do costume e que, como no dia anterior, continuava perfeitamente sereno. - Homem! - chamou o Prncipe. - Julgara, pela tua insolncia, que no eras adepto do arco longo. Vejo agora que no ousas Competir com os que ali esto. - Perdo, senhor - replicou-lhe o homem livre. - O motivo que me impede de atirar outro que no o medo de perder. - E qual essa razo? - quis saber o Prncipe, que, por qualquer causa que nem saberia definir, sentia uma estranha curiosidade em relao quele indivduo. - No sei - explicou o mateiro - se estes atiradores esto acostumados aos mesmos alvos do que eu. Alm disso, ignoro como reagiria Vossa Graa ao ter de, pela terceira vez, dar um prmio que involuntariamente caiu no seu desagrado. O prncipe Joo, corando, perguntou: - Qual o teu nome? - Loc sley - foi a resposta. - Ento, Loc sley, atirars depois destes homens terem demonstrado que o sabem fazer. Se fizeres melhor do que
o primeiro, dar-te-ei o prmio e ainda vinte moedas de ouro mais. Se perderes, mando despir-te esse fato verde e ordeno que te ponham fora do campo chicotada pela tua insolncia e vaidade. - E se me recusar a atirar nessas condies? - indagou Loc sley. - A fora de Vossa Graa apoia-se em tantos guardas que lhe ser fcil bater-me, mas no suficiente para me obrigar a vergar um arco. - Se recusares a minha leal oferta - rosnou o Prncipe -, o preboste cortar-te- a corda do arco, partir as tuas flechas e expulsar-te- da lia como um bicho medroso que s. - No me dais margem alguma, orgulhoso Prncipe - disse o homem. - Obrigais-me a arriscar-me ao lado dos melhores arqueiros de Leicester e Staffordshire, sob pena de severo castigo se eles me superarem. No entanto, obedecer-vos-ei. - Guardas! Mantenham-no debaixo de olho - mandou o prncipe Joo. - Est a perder a coragem e no desejo que fuja ao julgamento. Quanto a vs, bons homens, atirai sem medo! Esto ali naquela tenda um veado e uma pipa de vinho para vos consolardes depois da competio. Na extremidade superior da avenida principal, do lado sul, foi colocado um alvo. Os concorrentes tomaram as suas posies no outro lado, a uma distncia que os obrigaria a atirar "a ver o que que dava", como diziam. Estabelecida, por sorteio, a sequncia de tiro, combinou-se igualmente que cada um dispararia trs flechas seguidas. Arbitraria a competio o preboste de jogos, um oficial de patente baixa, uma vez que os mestres-de-cerimnias se sentiriam diminudos se tivessem de lidar com gente de to baixa condio. Um por um, os arqueiros adiantaram-se, atirando com percia espantosa. De vinte e quatro flechas, dez tinham atingido o alvo e as restantes espetando-se to perto dele que, tendo em conta a distncia em causa, todas podiam ser consideradas como provas de excelente capacidade. Das dez setas no alvo, duas, enterradas no crculo interior, tinham sido arremessadas por Hubert, guarda-mata de Malvoisin, que, logicamente, foi considerado como o primeiro. - Chegou a tua vez, Loc sley - sorriu cruelmente o Prncipe. - Sempre queres medir foras com Hubert, ou preferes entregar o arco, o boldri e a aljava ao preboste? - Como nada lucraria com isso - respondeu Loc sley -, vou tentar a minha sorte. Mas com uma condio: depois de eu ter atirado duas flechas ao alvo de Hubert, ele ter de atirar uma contra outro, desta vez escolhido por mim. - justo - concordou o Prncipe. - No o recusamos... E tu, Hubert, se venceres este gabarola, ficars com o teu alforge a abarrotar de moedas de prata.
- Cada um s faz o que pode - foi dizendo Hubert -, mas procurarei no envergonhar a memria dum dos meus antepassados que to bem usou o arco em Hastings. O alvo foi substitudo por outro novo, mas que ficou no mesmo local. Hubert, como vencedor, foi o primeiro a atirar. Apontou deliberadamente, calculou a distncia e, mantendo o arco bem
dobrado, com a flecha j na corda, deu um passo em frente, esticou a todo o comprimento o brao esquerdo, vergando o arco completamente, e puxou a corda at orelha. A flecha zuniu e foi espetar-se no crculo interior, mas no precisamente no centro. - Se tivesse tomado o vento em conta, Hubert - lembrou-lhe o antagonista, preparando o seu arco -, esse tiro teria sido bem melhor. Avanou enquanto isto afirmava e disparou, parecendo nem sequer ter olhado para o alvo. A flecha partiu e foi cravar-se cinco centmetros mais prxima do centro do que a de Hubert. - Pelos Cus! - exclamou o Prncipe para Hubert. - Deixaste este renegado vencer-te. Mereces ir para as gals. Hubert tinha, para todas as ocasies, o mesmo argumento. Mesmo que Vossa Alteza me enforcasse - disse -, cada um s faz o que pode. certo que o meu antepassado... - Que o Diabo leve o teu antepassado e mais todos os seus descendentes! - cortou-o o Prncipe. - Atira, malandro! Atira o melhor que puderes, ou pag-lo-s bem caro. Espicaado desta maneira, Hubert tomou de novo posio e, no se esquecendo desta feita da recomendao do adversrio, fez a correco que a leve brisa que soprava exigia e enfiou uma seta no centro exacto do alvo. - Viva Hubert! Viva Hubert! - saudou a populaa. - Mesmo na mosca! Viva Hubert! - Melhor do que isto no conseguirs tu, Loc sley - sorriu sardonicamente o Prncipe. - Mesmo assim, vou-lhe tirar uma nica da flecha - respondeu Loc sley. Fez ento partir uma flecha, com praticamente o mesmo -vontade do tiro anterior, que se foi espetar no cabo da do seu competidor, rachando-a de alto a baixo. As pessoas volta ficaram to espantadas com tanta destreza que quase nem o ovacionaram. " capaz de ser o Demnio encarnado" - segredaram os homens livres entre si. - "Nunca se viu atirar desta maneira desde que h arcos e flechas na Gr-Bretanha!" - E agora - props Loc sley - peo autorizao a Vossa Graa para colocar o alvo como o pomos nas terras do Norte. Que cada um dos arqueiros presentes o tente e, com isso, ganhe um sorriso da cachopa de que mais gostar. - Comeando a andar, acrescentou: - Por favor, que os vossos guardas me acompanhem.
vou s ali buscar um galho de salgueiro. O Prncipe fez sinal a uns guardas para o acompanharem, no fosse ele escapulir-se, mas, aos gritos de "No! No!" da multido, suspendeu a ordem. Loc sley regressou, quase imediatamente, com um ramo de salgueiro, de cerca de dois metros, bem direito e da grossura de um polegar. Tratou cuidadosamente de lhe tirar a casca, observando simultaneamente que "convidar um bom mateiro a atirar em alvos como o que anteriormente tinham usado era quase um insulto", continuou dizendo que "isso correspondia, l para as bandas onde fora criado, a usar-se como alvo a tvola redonda, volta da qual se sentavam o rei Artur e sessenta cavaleiros", e prosseguiu: "Uma criana de sete anos podia perfeitamente acertar num alvo daqueles, com uma flecha sem ponta, mas", continuou falando e afastando-se at ao fim
da lia e enterrando a a vara de salgueiro no cho, "atingir este pau a noventa metros digno de se servir do arco ao lado de qualquer soberano, mesmo que seja Ricardo." - O meu antepassado, que to bem atirou em Hastings, nunca teve um alvo destes pela frente. Se este homem conseguir acertar naquela vara, dou-lhe o meu cinturo, ou, melhor, dou-o ao Diabo, que deve estar dentro dele, porque s o Demo ser capaz de fazer o que ele quer. Cada um s faz o que pode e eu no entro em jogos em que sei que perco. Corresponderia a atirar contra a pontinha da fralda do abade da minha parquia, contra uma palheira de trigo, contra um raio de sol, ou contra um sinalzinho branco que mal se v. - Covardolas! - praguejou o Prncipe. - Atira tu, mestre Loc sley. Mas nota que, se acertares, fars o que ningum jamais fez. E a mim no me bastam cantares de galo. Quero ver. Atira! - Cada um faz o que pode, como diz Hubert - respondeu Loc sley -, e a mais no obrigado. Pegou no arco, mas, desta vez, examinou-o, substituiu-lhe a corda, que no lhe pareceu bem centrada, devido ao uso anterior. Fez mira com todo o cuidado, enquanto a assistncia, suspensa, aguardava. O arqueiro no lhes desmentiu as expectativas. A sua flecha fendeu de cima a baixo a vara contra a qual fora atirada. Foi o delrio. Mesmo o prncipe Joo, pasmado com o feito, esqueceu por segundos a antipatia que por ele sentia e bradou: - Merecidamente ganhaste estas vinte moedas de ouro e a trompa. Que faanha! Transformaremos as primeiras em cinquenta se trocares essas roupas pela libr do meu corpo de guarda pessoal e te juntares nossa pessoa. No existem nem mos, nem olhos iguais aos teus! - Perdoai-me, nobre prncipe - respondeu Loc sley -, mas fiz uma promessa de a ningum servir que no fosse o vosso real irmo, o rei Ricardo. Deixo as vinte moedas para Hubert, que,
hoje, no envergonhou o seu antepassado de Hastings. Creio at que, se a sua modstia o no tivesse afastado da competio, teria tambm acertado no salgueiro. Hubert abanava a cabea quando, relutantemente, aceitou o dinheiro do desconhecido. Loc sley, fugindo a mais conversas, desapareceu entre a gente, para no tornar a ser visto. O arqueiro no se teria escapado com tanta facilidade de Joo se este no estivesse preocupado com outras e bem mais graves questes. Chamando o seu camareiro e preparando-se para abandonar a lia, ordenou-lhe que fosse, a galope, a Ashby procurar Isaac, o Judeu. - Diz a esse co - ordenou - que me entregue at ao pr do Sol duas mil coroas. Ele sabe qual a minha garantia, mas tu ters de lhe apresentar este anel para se certificar que vais de meu mando. O restante dinheiro ser pago em Iorque, dentro de seis dias. Se o no fizer, ficar sem a cabea. V se o apanhas na estrada, por onde, faz pouco, esse escravo circuncidado seguia, todo luxuoso, nossa custa. O Prncipe tomou o caminho de Ashby e a assistncia foi-se dispersando.
Captulo XIV com uma rude elegncia se vestia, Exibindo-se a antiga cavalaria com pompa. em jogos arriscados, Ante damas e chefes emplumados Reunidos pelo som forte e belo Do clarim no soldo do castelo. - Warton O grande banquete do prncipe Joo realizou-se no Castelo de Ashby. No so deste as imponentes runas que ainda chamam a ateno dos passantes, mas dum outro mais tarde erguido por Lorde Hastings, camareiro-mor de Inglaterra, uma das primeiras vtimas da tirania de Ricardo III (1483-1485), mais conhecido como um personagem de Sha espeare do que pela sua fama histrica. O castelo e a vila de Ashby pertenciam ento a Roger de Quincey, conde de Winchester, ausente, durante o perodo do nosso conto, a combater na Terra Santa. Joo, que entretanto lhe ocupara o castelo e dispusera das suas terras sem qualquer pejo, desejava agora impressionar as gentes com a sua hospitalidade e magnificncia, tendo ordenado as necessrias preparaes de modo que resultassem o mais faustosas possvel. Os fornecedores do Prncipe, actuando, nesta e noutras ocasies, com toda a autoridade real, tinham limpo a regio de tudo a que pudessem deitar mos e que fosse de agrado para a mesa do seu patrono. Foi grande igualmente o nmero de convidados, tendo o prncipe Joo, pela preciso que sentia de apoiantes, includo entre eles algumas famlias fidalgas dinamarquesas e saxnicas, alm, claro est, da nobreza e da classe mdia normanda das redondezas. Se bem que desprezados e troados em ocorrncias dirias, os Anglo-Saxes representavam um nmero to elevado que muito podia pesar nas quase certas perturbaes civis a ocorrer, pelo que, em casos como este, era sempre de boa poltica conquistar-se-lhes os seus dirigentes. O Prncipe decidira, e durante algum tempo ateve-se a essa ideia, tratar esses hspedes pouco desejados com uma cortesia
a que no estavam acostumados. Todavia, tal como acontece com as pessoas de poucos escrpulos, cujos hbitos e sentimentos dirios se alteram de conformidade com os seus interesses, Joo, pela sua petulncia e leviandade, era atreito a, frequentemente, desfazer tudo o que a sua manha s vezes conseguia obter. Deste temperamento volvel dera j um exemplo memorvel na Irlanda, quando l mandado pelo pai, Henrique II (1154-1189), para bem impressionar a populao daquele importante e recente acrescento coroa inglesa. Nessa ocasio, quando os chefes irlandeses disputavam entre si a honra de quem seria o
primeiro a prestar-lhe homenagem e a dar-lhe o sculo da paz, o Prncipe e os seus companheiros, em vez de lhes aceitarem os cumprimentos com delicadeza, no resistiram a puxar-lhes as barbas, atitude que, como de compreender, ofendeu profundamente aqueles dignitrios, acarretando consequncias fatais para o domnio ingls sobre a ilha. de todo o interesse manter o leitor ao corrente da maneira de ser de Joo para que melhor compreenda a sua atitude durante a noite a descrever-se. Dando continuidade resoluo tomada quando calmo ainda, o prncipe Joo recebeu Cedric e Athelstane com digna afabilidade, revelando, sem ponta de mau humor, toda a sua compreenso e desapontamento quanto indisposio que tornara invivel a comparncia de Rowena. Cedric e Athelstane trajavam roupas segundo os costumes saxnicos, que, embora no fossem deselegantes e feitas dos melhores tecidos, ficavam to longe em corte e aparncia das dos demais que o prncipe Joo, assistido por Waldemar Fitzurse, teve de fazer grande esforo para no se perder a rir perante tais trajes, que a moda do momento via como ridculos. Na verdade uma apreciao imparcial inferiria serem as curtas tnicas e longos mantos dos Saxes bem mais elegantes do que os fatos normandos, cujos longos gibes, to largos que mais se assemelhavam a batas de carroceiros, e os curtssimos mantos, que nada protegiam, pareciam servir apenas como bases para tantos bordados, peles e aplicaes de ourivesaria, quantos os alfaiates l pudessem aplicar. O imperador Carlos Magno, durante o reinado de quem estas peas surgiram, embirrava com elas. "Deus do Cu", comentava, "para que servem estas capinhas? Na cama nada cobrem, a cavalo no nos defendem do vento e da chuva e sentados no protegem as pernas, nem da humidade, nem da geada." No obstante esta imperial opinio, as capas curtas eram moda ainda na altura que estamos a narrar, sobretudo entre os prncipes da Casa de Anjou. Naturalmente, todos os cortesos de Joo os envergavam, vendo os compridos mantos dos Saxes como perfeitamente inaceitveis. volta duma mesa ajoujada no peso de tudo quanto era bom sentavam-se os convidados. Os muitos cozinheiros do Prncipe
tinham dado largas s suas artes transformando os mantimentos de que dispunham de modo s comparvel ao dos mestres de culinria modernos, que conseguem dar aos alimentos todos os aspectos menos aquele que realmente tm. para l das travessas tradicionais, havia muitas mais de origem estrangeira, pastelaria sem conta, filhoses e pes especiais que normalmente s se viam nos solares dos maiores nobres. Regavam a refeio os melhores vinhos, nacionais e estrangeiros. Se bem que amantes de luxos, os Normandos no eram, dum modo geral, uma raa glutona. Apreciando mais a delicadeza e a qualidade da comida do que a sua quantidade, atribuiam os defeitos da gula e da bebedeira aos seus vencidos, os Saxes, justificando-as como manifestaes prprias das classes inferiores. Todavia, o prncipe Joo e os seus seguidores, que o imitavam, eram excepes, abusando quer dos pratos, quer dos copos. Observe-se, a propsito, que este prncipe viria a morrer empanturrado com pssegos e cerveja nova em demasia. A
sua conduta, contudo, foi uma excepo relativamente aos costumes usuais dos seus conterrneos. Com fingida seriedade, apenas quebrada por sinaizinhos entre si, os cavaleiros e os nobres normandos iam apreciando as rudes maneiras de Cedric e Athelstane, que no sabiam bem como se comportar neste tipo de refeies, a que no estavam habituados. medida que iam sendo galhofeiramente apreciados, os dois saxes seguiam transgredindo vrias das regras da etiqueta em vigor naquela sociedade. conhecido que as pessoas so mais facilmente desculpadas por quebrarem qualquer regra de boa educao do que por se mostrarem ignorantes dos mnimos pontilhos de etiquetas em uso. Assim, Cedric, que costumava secar as mos numa toalha, em vez de o fazer agitando-as levemente, cometeu um erro maior do que Athelstane, que engoliu, inteiro, um grande pastel, feito das mais deliciosas iguarias vindas de fora e a que chamavam um arum. Quando, aps demorado exame, se verificou, porm, que o nobre de Conningsburgh no fazia a menor ideia do que seria o recheio do que devorara, pensando ser, talvez, feito com Lavercas e pombos, e no de papa-figos e rouxinis, tambm sobre ele tombou uma imensa onda de troa, que mais apropriada seria se se dirigisse contra a sua guloseima. Aproximava-se do fim da prolongada festa. O vinho corria livremente e os homens conversavam acerca das faanhas do torneio, do vencedor desconhecido do tiro ao arco, do Cavaleiro Negro, cuja indiferena o levara a perder as honras que lhe eram devidas, e do garboso Ivanho, que to caro comprara a vitria. Estes tpicos eram discutidos com franqueza e com piadas que faziam todo o salo vibrar ao som de gargalhadas. Somente a fronte do Prncipe se mostrava ensombrada durante esta troca de impresses.
subentendendo-se que qualquer preocupao o roa. Foi preciso uma chamada de ateno por parte dum dos seus para que entrasse na conversa geral. Era seu costume, nestas circunstncias, beber dum trago uma caneca de vinho para levantar o nimo e juntar-se ao tema geral com qualquer observao abrupta ou atirada ao acaso. - Bebamos esta taa - props - sade de Wilfred de Ivanho, campeo da Passagem de Armas, lamentando que os seus ferimentos o tenham impedido de aqui vir. Que todos me acompanhem, e em especial Cedric de Rotherwood, pai de jovem to prometedor. - No, senhor meu - exclamou Cedric, levantando-se e pousando a sua taa -, nunca chamarei filho a um jovem que me desobedeceu e que no s despreza as minhas ordens como pe de parte os costumes dos seus antepassados. - impossvel - disse o prncipe Joo com espanto simulado - que um cavaleiro to bravo possa ser um filho to desobediente e to pouco merecedor. - E, no entanto, senhor, assim acontece -respondeu-lhe Cedric -, com Wilfred. Deixou o lar para se juntar aos joviais e nobres seguidores de vosso irmo, com quem aprendeu as suas artes equestres, que tanto apreciais. Saiu contra os meus desejos e ordens. Nos tempos de Alfredo chamava-se a isso desobedincia... crime que se punia com severidade. - Lamentvel - concordou o Prncipe com um suspiro profundo e
ar de compreenso simulada. - Uma vez que seu filho se juntou ao nosso infeliz irmo, no difcil descobrir-se com quem aprendeu as suas lies de desobedincia filial. Foram exactamente estas as palavras de Joo, o que mostrava esquecer-se que, de todos os filhos de Henrique II, ainda que nenhum fosse inteiramente inocente, ningum mais do que ele maior rebelio e ingratido revelara. - Julgo - acrescentou um pouco depois -, que o nosso irmo tencionava oferecer um pao a Ivanho. - Concedeu-lho, na realidade - assentiu Cedric. - Constituiu at esse facto um ponto de discrdia entre ns, pois que, pessoalmente, no podia aceitar v-lo como vassalo em terras que os seus maiores tinham possudo livre e independentemente. - Temos ento a sua voluntria sano, bom Cedric - indagou o Prncipe -, para entregar o feudo a qualquer outra pessoa que no se sinta diminuda ao usufruir terras da coroa inglesa?... Sir Reginald Front-de-Boeuf - observou para o baro -, espero que cuideis bem da baronia para que Sir Wilfred no caia no desagrado de seu pai dela tomando posse. - Por Santo Antnio! - exclamou o gigante. - At aceitaria que Vossa Alteza me chamasse saxo se ou Cedric, ou Wilfred, ou qualquer outro de sangue ingls, tentasse tirar-me o que me haveis confiado.
- Quem te chamar saxo, baro - interrompeu Cedric, ofendido com o modo como os Normandos mostravam o seu desprezo pelos Saxes -, far-te-ia a maior honra que se pode fazer. Front-de-Boeuf ia responder, mas a impetuosidade do Prncipe anteps-se-lhe: - Claro - disse -, meus senhores. O nobre Cedric est a falar verdade, pois a sua gerao tem precedncia sobre ns, quer genealogicamente, quer em comprimento das capas. - Exacto. Precedem-nos como os veados precedem os nossos ces - sugeriu Malvoisin. - E com todo o direito nos devem preceder - acrescentou o Prior -, tanto pela sua delicadeza superior como pelas suas requintadas maneiras. - E pela sua temperana e sobriedade notveis - disse De Bracy, nem se lembrando que lhe tinha sido prometida uma noiva saxnia. - A par da sua coragem e porte - opinou Brian de Bois-Guilbert -, em Hastings e noutros locais. medida que mais e mais cortesos, sorridentes e suaves, iam glosando o mote do Prncipe, o rosto do Saxo foi-se inflamando de fria, olhando, irado, ora para um ora para outro, conforme os insultos iam chovendo, e sem ter tempo para a nenhum responder. Assemelhava-se a um touro encurralado por todos os lados e sem saber sobre qual carregar. Por fim falou, com a voz embargada pela emoo, voltado para o prncipe Joo, como que escolhendo-o como cabea e principal dos seus torturadores. - Quaisquer que tenham sido os vcios da nossa raa, entre os Saxes apenas um nidering(1) (palavra significando a maior e mais abjecta vileza) dentro dos prprios sales, onde oferecera comida e bebida, insultaria um convidado que nada lhe tivesse feito, como Vossa Alteza acaba de fazer para comigo. E, fosse qual fosse a sorte em Hastings, devem
calar-se - aqui fixou Front-de-Boeuf e o Templrio - aqueles que h poucas horas ainda morderam a terra fora de lanas saxnicas. - Pela minha f, uma piada a doer! - exclamou o prncipe Joo. - Os nossos sbditos saxes levantam-se com mpeto e coragem, tornam-se inteligentes, graciosos e arrojados! Que achais, senhores? *1.. Nada existia de mais ignominioso entre os Saxes do que o epteto em questo. Mesmo Guilherme, o Conquistador, por muito que o odiassem, conseguiu reunir sob o seu estandarte inmeros Anglo-Saxes, ameaando-os de considerar como nidering quem a si se no juntasse. Bartholinus relata, creio, um sistema semelhante por ele empregado para influenciar os Dinamarqueses. (N. do T.)
Pelo que escuto, devamos saltar para os nossos barcos e voltar para a Normandia enquanto tempo. - Se tivermos medo dos Saxes - riu-se De Bracy -, no precisaremos de armas. Bastar-nos-o os chuos de caa para acossar tais javardos. - Suspendam essa conversa, Srs. Cavaleiros - pediu Fitzurse -, para que Sua Alteza possa explicar ao respeitvel Cedric que no havia qualquer ponta de insulto nos vossos apartes, que, todavia, poderiam ser mal interpretados por ouvidos estranhos. - Insulto?! - exclamou o Prncipe, retomando as suas boas maneiras. - Espero que ningum pense que autorizaramos que algum fosse insultado na nossa presena. Vejam! Levanto a minha taa sade de Cedric, uma vez que ele no quer que o faamos do filho. A taa deu a volta mesa, ao som de aplauso hipcrita partindo dos cortesos, mas o Saxo, mesmo assim, no perdeu a pssima impresso com que ficara. No era, por natureza, muito vivo, mas este grupo julgara-o muito mais estpido do que seria ao acreditar que um mero lisonjeio apagaria a sua ofensa anterior. Apesar de tudo, conservou-se calado. A taa rodou de novo " sade de Sir Athelstane de Conningsburgh". O cavaleiro brindado agradeceu esvaziando um enorme copo. - E agora, senhores - props o prncipe Joo, a quem o vinho comeava a toldar -, que j fizemos justia aos nossos hspedes saxes, rogamos-lhes que no-la retribuam. Digno senhor - prosseguiu falando para Cedric -, pedimos-lhe que sade algum, normando, cujo nome no vos faa sentir a boca suja a ponto de necessitardes de beber outro copo para limpar o amargor que vos possa ter deixado. Fitzurse erguera-se enquanto o Prncipe falava e, colocando-se atrs do Saxo, segredou-lhe que no perdesse aquele ensejo de abrandar a frico entre as duas raas, sugerindo-lhe que nomeasse o prncipe Joo. O Saxo no respondeu e, enchendo um copo at s bordas, discursou assim para o Prncipe: - Vossa Alteza pediu-me que citasse um normando merecedor de ser aqui lembrado. talvez um pouco ingrato o pedir-se a um escravo que enaltea o seu amo, rogar-se a um vencido que cante o seu vencedor. Mesmo assim, beberei a um normando, o primeiro nas armas e em categoria, que vejo como o mais nobre
entre todos. Aqueles que me no acompanharem neste brinde sua to exaltada fama consider-los-ei como falsos e sem honra, passando para sempre a v-los dessa maneira. Bebo este copo sade de Ricardo Corao de Leo! O prncipe Joo, que esperava que fosse com o seu nome que o Saxo terminasse o seu discurso, estremeceu ao escutar o do irmo. Mecanicamente, levou o copo boca e de imediato o pousou para apreciar o comportamento daquela assembleia
perante a inesperada proposta, que muitos achariam to perigosa de aceitar como de recusar. Alguns, velhos e sabidos, copiaram o Prncipe, levando o copo aos lbios e baixando-o. Houve muitos, de melhores intenes, que exclamaram "Viva o rei Ricardo! E que breve se nos junte!" Outros, poucos, entre eles o Templrio e Front-de-Boeuf, no tocaram sequer nas suas taas. Nenhum, porm, ousou abertamente contradizer aquela saudao ao monarca reinante. Cedric gozou a sua vitria por uns momentos. A seguir disse para o seu companheiro: - Vamos, nobre Athelstane. J abusmos demasiado da gentileza do prncipe Joo. Quem quiser conhecer mais e melhor as nossas rudes maneiras saxnicas, dever visitar-nos nos paos dos nossos antepassados. Quanto a ns, j vimos bem como so os banquetes e os modos normandos. Saiu do salo, seguido por Athelstane e outros convidados, que, sendo de sangue saxo, se tinham igualmente ofendido com os sarcasmos de Joo e dos seus. - Pelos ossos de So Tom! - bradou o Prncipe. - Aqueles camponeses saxes venceram o melhor do dia e ainda saram em triunfo. - Conclamatum est, poculatum est - disse o Prior. - J bebemos, j gritmos o suficiente. Chegou a altura de darmos descanso s garrafas. - O monge deve ter alguma bela penitente a confessar para tanta pressa de partir revelar - comentou De Bracy. - No o caso, Sr. Cavaleiro - retorquiu-lhe o abade. - Tenho apenas de percorrer muitas milhas at ao convento. - Fogem - disse, baixo, o Prncipe a Waldemar Fitzurse. - O meu medo leva-os a perceber o que vai suceder. O Prior, o covarde, o primeiro a afastar-se de mim. - Nada temeis, senhor - respondeu Waldemar. - Em Iorque apresentar-lhe-ei motivos bastantes para se juntar de novo a ns... Sr. Prior - acrescentou -, gostaria de ter uma palavra convosco antes de partirdes. Os demais convidados, excepto os muito ntimos de Joo, saam em grupos. - ento este o resultado do seu conselho? - perguntou o Prncipe, zangado, a Fitzurse. - Ter de ser vexado por um campons saxo e bbado e ver a gente fugindo da minha beira, como de um leproso, s porque escutou o nome de meu irmo? - Pacincia, senhor - acalmou-o o conselheiro. - Bem podia responder vossa acusao atribuindo-a a leviandades que modificaram as minhas intenes e alteraram o que bem pensado fora. No , todavia, momento para recriminaes.
De Bracy e eu juntar-nos-emos imediatamente queles poltres e convenc-los-emos a voltar. - Ser em vo - soltou o Prncipe, percorrendo a sala num estado de agitao a que o lcool no era estranho. - Ser em vo... como se tivessem visto escrito num muro... como se tivessem encontrado pegadas de leo na areia. J o escutam chegando e rugindo na floresta. Nada lhes trar a coragem de volta. - Quisera Deus - disse, num sussurro, Waldemar Fitzurse a De Bracy - que algum lhe trouxesse aquela que ele prprio perdeu. S o nome do irmo para ele uma doena. Infelizes os conselheiros de prncipes que no dispem de fora e perseverana, quer no bem, quer no mal.
Captulo XV Mesmo assim, ele pensa, ah! ah! ah! Pensa Ser eu um servo, um criado a sua expensa. Deixemos pens-lo; numa teia, numa confuso, Os seus planos ho-de acabar em opresso. Entretanto, procurarei um melhor ideal S para mim. Quem nisso ver algum mal? - Basil, Uma Tragdia Nenhuma aranha jamais trabalhou to afanosamente a recompor a sua teia desfeita como Waldemar Fitzurse no reunir e tornar a captar os dispersos apaniguados do Prncipe. Nem um s lhe estava ligado por inclinao ou afeio. Foi, pois, preciso que Fitzurse lhes indicasse novas possibilidades de privilgios e lhes recordasse os muitos que j gozavam. Aos jovens nobres arrebatados acenou-lhes com hipteses de divertimentos licenciosos livres de quaisquer freios, aos ambiciosos falou-lhes de poder, aos avarentos de riquezas e terras ampliadas. Os chefes mercenrios receberam ouro, um argumento sempre vlido quando qualquer outro falhava. As promessas foram ainda mais largamente distribudas do que o dinheiro por este incansvel agente, que tudo fez para incutir deciso aos hesitantes e nimo aos medrosos. O regresso do rei Ricardo estava, dizia, fora de quaisquer probabilidades. Quando, contudo, notava certos olhares incertos e respostas duvidosas de alguns e lhes percebia o estado de esprito e os temores que os invadiam, abria-se, declarando ousadamente que, se o acontecimento viesse a verificar-se no seria mais do que um facto que em nada lhe alteraria as ambies polticas. "Se Ricardo voltar", explicava, "f-lo- para enriquecer os seus cruzados, pobres e necessitados, custa daqueles que o no seguiram at Terra Santa. Voltar para pedir terrveis contas a todos que, na sua ausncia, tenham feito algo contrrio s leis da terra e aos privilgios da coroa. Se voltar, f-lo- para se vingar dos Templrios e dos Hospitalrios, pela preferncia dada a Filipe de Frana durante as lutas na Terra Santa. Regressar disposto a punir como rebeldes todos e quaisquer que tenham aderido faco do irmo, o prncipe Joo. Ser que lhe tememos a fora?",
continuou o ingenioso confidente de Joo. "Sabemos ser um cavaleiro poderoso e valente. Todavia, j no estamos nos tempos do rei Artur, quando um campeo apenas enfrentava um exrcito inteiro. Se Ricardo voltar, ser sozinho, sem seguidores, sem amigos. Os ossos da sua garbosa hoste branquejam nas areias da Palestina. Os poucos dos seus que regressaram dispersaram-se por a, como Wilfred de Ivanho, sem dinheiro e possibilidades... E porque que alguns citam direitos de nascimento no tocante a Ricardo?", a-se ele prprio encarregando de responder aos que persistiam, apresentando dvidas quanto a esse ponto. "Ser o ttulo de primognito de Ricardo superior ao do duque Roberto da Normandia, o filho mais velho do Conquistador? E, no entanto, William, o Vermelho, e Henrique, seus segundo e terceiro irmos, tiveram sobre ele a preferncia da nao. Roberto tinha os mesmos mritos que Ricardo, era um bravo guerreiro, um ptimo condutor, generoso para com os amigos, a Igreja e coroa em geral, um cruzado que conquistou o Santo Sepulcro, e, apesar de tudo isto, veio a morrer, cego e miservel, preso no Castelo de Cardife, somente por se ter oposto vontade popular, que entendera no dever ele reinar. nosso direito", prosseguiu, "escolher, de entre os prncipes de sangue real, aquele que melhor qualificado nos parea para deter o poder supremo...", corrigiu-se, "aquele cuja eleio melhor sirva os interesses da nobreza. No que respeita a qualidades pessoais", concordou, " possvel que o prncipe Joo fique atrs de seu irmo Ricardo, mas, se se pensar que o ltimo a regressar ser brandindo a espada da vingana, enquanto o primeiro distribui benesses, imunidades, privilgios, riquezas e honras, no haver dvida quanto a quem a nobreza, inteligentemente, dever escolher, quando chamada a faz-lo." Estes e muitos mais argumentos, por vezes adaptados aos casos especiais daqueles a quem arengava, acabaram por pesar junto dos nobres da ala do prncipe Joo. Muitos aceitaram assistir reunio em Iorque, onde se dariam os primeiros passos para a entrega da coroa a Joo. Era j alta noite quando, gasto e exausto pelos esforos despendidos, mas simultaneamente satisfeito com os resultados obtidos, regressando ao Castelo de Ashby, se encontrou com De Bracy, que substitura a roupa que envergara ao banquete por uma curta capa verde e bragas da mesma cor e tecido, um gorro de couro, uma curta espada, uma trompa ao ombro, um arco na mo e uma mancheia de flechas cintura. Se Fitzurse se tivesse cruzado com ele no exterior, teria passado sem o notar, julgando-o um dos homens da guarda, mas, vendo-o num dos sales principais, mirou-o com mais ateno, logo reconhecendo o cavaleiro normando sob o disfarce dum homem livre ingls.
- Que fantasia essa, De Bracy? - indagou Fitzurse um nada agastado. - Ser altura para brincadeiras prprias do Natal quando o nosso amo, o prncipe Joo, atravessa um momento crucial da sua vida? Porque no foste, como eu, para perto
desses renitentes patifes a quem o nome do rei Ricardo assusta tanto como s criancinhas sarracenas? - Tenho estado a tratar de assuntos meus - respondeu-lhe De Bracy calmamente -, tal como tu foste atender aos teus. - Eu, atender a problemas meus?! - berrou Waldemar. - Estive, sim, ao servio do prncipe Joo, nosso amo. - Como se tu no tivesses outra razo, Waldemar - continuou De Bracy -, que no fosse a tua promoo pessoal e os teus interesses. Anda l, Fitzurse, ns conhecemo-nos... a ambio comanda-te, enquanto a mim o prazer que o faz, tal como convm a pessoas com a diferena de idade existente entre ns. Do prncipe Joo pensas como eu penso, ou seja, que demasiado fraco para ser um bom monarca, demasiado tirnico para ser um soberano bom de lidar, muito insolente e presunoso para ser um soberano popular, muito volvel e temeroso para ser um soberano para durar. No entanto, o monarca sombra de quem Fitzurse e De Bracy esperam poder subir e prosperar, sendo por isso que tu o auxilias com a tua poltica e eu com as lanas dos meus Companheiros Livres, - Mas que grande auxiliar - disse, impaciente, Fitzurse -, que anda a fazer figura de tolo no momento em que mais preciso . De qualquer modo, onde que vais nesse preparo e com tanta pressa? - Arranjar mulher - foi a fria resposta de De Bracy. Arranj-la segundo os costumes da tribo de Benjamim. - Da tribo de Benjamim? - espantou-se Fitzurse. - No te compreendo. - No estavas presente, ontem noite, quando o prior Aymer nos contou uma histria que viera a propsito da romana que um menestrel cantara? Falou-nos dum feudo que, h muito tempo, se criou entre a tribo de Benjamim e o resto da nao israelita que desfez a cavalaria daquela, jurando pela Me de Deus que no permitiriam a nenhum dos que escaparam o casar-se dentro da sua linhagem e como, mais tarde, perturbados com a promessa, decidiram consultar o Santo Padre para que lha levantasse, absolvendo-os. O Santo Padre aconselhou os rapazes da tribo de Benjamim a, durante um torneio, raptarem todas as mulheres presentes, o que fizeram, sem pedir licena nem s noivas, nem s famlias das noivas. - Ouvi a histria - assentiu Fitzurse -, embora ou tu ou o Prior lhe tenham feito umas alteraes muito curiosas, quer quanto a pocas, quer quanto aos factos. . - Pois repito-te - informou De Bracy - que vou tratar de arranjar uma noiva moda da tribo de Benjamim,
o que corresponde a dizer que, vestido como estou, saltarei sobre aquele rebanho de saxes que estiveram no banquete e lhes tirarei a linda Rowena. - Ests doido, De Bracy? - exclamou Fitzurse. - Lembra-te de que, ainda que esses homens sejam saxes, so ricos e poderosos e altamente estimados pelo povo, at porque gente da sua raa com tais atributos pouca existe agora. - E no deveria existir nenhuma - sugeriu De Bracy -, para que a tarefa do Conquistador ficasse completa. - No altura para coisas dessas - cortou Fitzurse. - A crise que se aproxima exige o apoio das massas, pelo que o prncipe Joo no deixaria de castigar quem quer que fosse que lesasse
qualquer dos principais saxes. - Ele que se atreva a escolher - declarou desdenhosamente De Bracy - e depressa conhecer a diferena entre as minhas poderosas foras e aquele bando de camponeses saxnicos. Nota, porm, que, para j, no quero ser descoberto. No te pareo um guarda de caa, com esta trompa? O odioso do assalto vai cair sobre os proscritos das matas do Yor shire. Tenho gente a espiar os movimentos dos saxes. Hoje pernoitam no Convento de Santo Wittol, ou Withold, ou l como que chamam quele santo saxo de Burtonon-Trent. A manh ficaro ao meu alcance e, como um falco, cairei sobre eles. Pouco depois surgirei tal como sou, representarei o papel do nobre cavaleiro andante, salvo a infeliz donzela, angustiada nas mos dos brutais raptores, levo-a para o castelo de Front-de-Boeuf, ou, se for preciso, para a Normandia, e no torno a mostr-la a ningum sem que, antes, se tenha tornado na esposa e senhora de Maurice de Bracy. - Um plano muito bem pensado - disse Fitzurse. - To bem pensado que no deve ser inteiramente teu... Diz-me, De Bracy, quem te ajudou e quem te vai auxiliar a execut-lo, porque, segundo penso, os teus homens esto bem longe, em Iorque. - Meu Deus! Queres mesmo saber? - falou De Bracy. - Foi o templrio Brian de Bois-Guilbert que desenvolveu a ideia que a histria da tribo de Benjamim me sugerira. Vai ajudar-me no ataque, fingindo, ele e os seus ajudantes, serem os fora-da-lei, das garras de quem, aps mudana de roupas, arrancarei a dama. - Virgem Santa! O plano digno do vosso saber em conjunto! E a tua prudncia surge especialmente no pormenor de deixar a dama ao cuidado do teu respeitvel associado. Poders, creio, tir-la dos seus amigos saxes, mas retir-la depois das presas de Bois-Guilbert que me parece mais duvidoso. Trata-se dum falco treinado a no largar a perdiz que agarra. - um templrio - recordou De Bracy -, pelo que no poder interferir no meu projecto de casamento com a herdeira... e algo que se faa contra a prometida de De Bracy...
Deus do Cu, nem que ele fosse todo um captulo da sua ordem ousaria fazer-me tal partida. - Bem. Uma vez que nada que te diga te tirar essa obcecao... conheo a tua teimosia... apressa-te para que, ao menos, a tua loucura seja, pelo menos atempada. - Garanto-te - disse De Bracy - que ser uma questo de poucas horas, aps o que tornarei a Iorque, frente da minha fogosa e valorosa gente, em apoio da tua arrojada poltica... J ouo os meus camaradas reunindo-se. Os cavalos relincham e escavam no ptio... Adeus... Parto como um autntico cavaleiro em busca dum sorriso duma bela. - Como um verdadeiro cavaleiro? - repetiu Fitzurse. - Como um doido, ou como uma criana que deixa atrs de si o que h de importante para correr atrs de ninharias. com gente desta laia que tenho de trabalhar? para bem de quem? Dum prncipe devasso e pouco inteligente, bem capaz de se mostrar um amo to ingrato como filho rebelde e irmo desnaturado se revelou j. Mas, afinal, ele no passa tambm dum instrumento, entre aqueles de que me sirvo. Orgulhoso como , se alguma ocasio tentar separar os seus interesses dos meus, depressa
apreciaria uma amarga lio. As ruminaes do estadista foram interrompidas pelo Prncipe, chamando-o de dentro: "Nobre Waldemar Fitzurse!" De barrete na mo, o futuro chanceler (era esse o cargo que o normando ambicionava) apressou-se a ir receber as ordens do amo.
Captulo XVI Num ermo que o povo esqueceu, Sempre ali um eremita viveu. Na gruta sobre musgo dormia, S de frutos e gua vivia, Longe de Tudo, em Deus pensando, Ia, entre oraes, o tempo passando. - Parnell O leitor no esqueceu, com certeza, que o desfecho do torneio se devera actuao dum cavaleiro desconhecido, cuja atitude passiva e indiferente durante a primeira parte do jogo lhe merecera, da banda dos espectadores, a alcunha de "Le Noir Faineant". O guerreiro deixara o campo subitamente logo que o caminho da vitria fora apontado. Chamado para receber o prmio merecido, ningum o conseguira encontrar. Nessa altura, com as trombetas a cham-lo, seguira para norte, evitando as veredas mais frequentadas e aproveitando-se de desvios atravs das florestas. Passou a noite numa pequena albergaria pouco concorrida, onde pediu a um menestrel passante novas quanto ao resultado da peleja. No dia seguinte partiu bem cedo, disposto a longa caminhada. O cavalo, que poupara na vspera, estava em condies de prosseguir por muito tempo sem preciso de paragens. O seu propsito no foi, todavia, conseguido, em virtude das intricadas trilhas que escolhera, pelo que, quando j escurecia, se encontrava ainda nas proximidades de West Riding, no Yor shire. Homem e cavalo necessitavam ento de repouso e, portanto, de local onde este lhes pudesse ser dado, tanto mais que a noite tombava rapidamente. O ponto onde o viajante se encontrava no oferecia hiptese nem de abrigo, nem de alimento, parecendo ter de recorrer ao expediente dos cavaleiros andantes, que, em situaes do gnero, punham as montadas a pastar e se deitavam no cho a pensar nas suas amadas, com a rama duma carvalha a servir-lhes de dossel. O Cavaleiro Negro, que ou no tinha amada em quem pensar, ou era to indiferente ao amor como se mostrara luta, no sentia arroubos apaixonados que o obrigassem a meditar sobre belezas e amores mal correspondidos que o levassem a esquecer fadigas, fome e o conforto duma boa cama.
Aborrecido, por tais motivos, olhou para a mata que o cercava, onde das clareiras saam picadas abertas ou por gado, ou por caa, ou, qui, por caadores. O Sol, que orientara o guerreiro, desaparecera por detrs das
colinas do Derbyshire, sua esquerda, fazendo que, na escurido, qualquer tentativa para continuar a sua marcha tanto o poderia afastar da rota pretendida como permitir-lhe o conserv-la. Depois de, debalde, ter seguido o caminho mais batido na esperana de encontrar alguma cabana de pastor ou abrigo de monteiro, concluiu ser o melhor confiar no instinto do cavalo, que, como sabia de experincias anteriores, teria o extraordinrio talento dos da sua espcie de desenvencilhar o seu cavaleiro em situaes deste tipo. O excelente animal, extremamente cansado com aquela jornada, carregando um cavaleiro coberto de ferro, mal sentiu as rdeas livres, imediatamente tratou de se nortear, mostrando foras e vontade renovadas. Ele, que anteriormente quase no correspondia s esporas a no ser mediante um leve gemer, tomava agora uma atitude de confiana, alando as orelhas e movendo-se com outra vivacidade. A trilha pela qual optou afastava-se um tanto da rota que o cavaleiro tomara, mas este, vendo o cavalo to seguro do que fazia, deixou-o segui-la. Decidira de forma acertada, j que a vereda se comeou a alargar e a mostrar-se mais usada. Ao longe, o cavaleiro escutou mesmo o tinir dum sino, o que lhe sugeriu encontrarem-se perto duma capela ou eremitrio. Na realidade, depressa chegou a um terreno relvado, plano, do lado oposto do qual se levantava, a pique, uma rocha cinzenta e batida pelo tempo. Em alguns pontos, hera trepava por ela acima, noutros cresciam pequenos carvalhos e azevinhos, cujas razes, duma forma ou doutra, tiravam sustento de entre as fissuras, pendendo sobre as fragas, em baixo, recordando penachos que, em cascos de ao, lhes retiram o aspecto ternoroso, concedendo-lhes uma certa graciosidade. Na base do penedo, encostada a ele, havia sido construda uma tosca casota, feita de toros de rvores derrubadas nas imediaes, cujos intervalos estavam tapados com um misto de musgo e argila. O tronco dum abeto jovem, com uma tbua pregada perto do topo, fora espetado por cima da entrada, simbolizando uma cruz. Um pouco para a direita, uma fonte de gua cristalina gorgolejava de dentro das pedras, caindo no godo a que, custa de muito trabalho, havia sido dada a forma de pia. A corrente caa da e seguia, murmurando, ao longo do leito que, h muito, abrira atravs do relvado, indo perder-se na orla da floresta. Perto da nascente viam-se as runas duma capelinha, cujo tecto j alura em parte. A construo, quando totalmente em p, deveria ter tido uns cinco metros de comprido por quatro de largura, com o tecto, proporcionalmente baixo, pousando em quatro arcos concntricos nascendo de cada uma das quinas e apoiando-se em pesados e atarracados pilares.
Entre duas dessas arcadas que se conservavam, o tecto tombara; entre as outras mantinha-se ainda. A entrada deste antigo centro de devoo situava-se sob um arco baixo e arredondado, ornamentado com vrias linhas, cujo ziguezaguear lembrava o desenho dos dentes de tubaro que to frequentemente surgia nas cantarias saxnicas. Por cima do prtico, sobre quatro pilares, erguia-se o campanrio, onde pendia o sino, carcomido e esverdeado, cujo toque o Cavaleiro Negro ouvira a distncia. Todo este calmo e pacfico quadro se mostrava, pouca luz que
ainda subsistia, aos olhos do viajante, assegurando-lhe abrigo para a noite, pois todos os eremitas que se recolhiam na floresta tinham por dever muito especial o estenderem toda a hospitalidade aos viandantes perdidos ou estafados que os procurassem. Deste modo, o cavaleiro, que, evidentemente, no esteve a apreciar os pormenores que esmiumos, limitando-se a agradecer a So Julio (o patrono dos viajantes) o t-lo conduzido a bom porto, desceu do cavalo e bateu porta com o cabo da lana, pedindo que lha abrissem e o atendessem. Demorou at que obtivesse qualquer resposta, que, quando finalmente veio, no foi muito animadora: - Quem quer que , que prossiga - foi o que se ouviu vindo de l de dentro em voz trovejante -, sem perturbar as devoes da tarde deste servidor de Deus e de So Dunstan. - Reverendo irmo - disse o cavaleiro -, sou um viajante perdido nestas matas que te d a oportunidade de exerceres as virtudes da caridade e da hospitalidade. - Bom irmo - falou o morador -, por milagre de Nossa Senhora e de So Dunstan, sou eu quem deve receber essas benesses, sem ter de as oferecer a ningum. A comida de que disponho no serviria para ces e nenhum cavalo que se preze quereria a palha onde durmo. Segue o teu caminho e que Deus te acompanhe. - Mas - perguntou o cavaleiro - como poderei eu orientar-me nesta floresta no meio da escurido? Peo, reverendo padre, que, como bom cristo, me abrais a porta ou, ao menos, me deis orientao. - E eu peo-te, irmo em Cristo - respondeu o anacoreta que no me perturbes mais. J interrompeste um padre-nosso, duas ave-marias e um credo que eu, miservel pecador, de acordo com o meu voto, deveria ter rezado antes de a Lua se ter levantado. - O caminho! O caminho! - vociferou o cavaleiro. - D-me indicaes, se no puderes dar mais nada!(1) *1..Sir W. Scott usa, indiferentemente, a segunda pessoa do singular e do plural nos seus dilogos, processo que seguimos na traduo. (N. do T.)
- O caminho - replicou o eremita - fcil. A trilha que atravessa a floresta vai dar a um pntano onde h um vau, que, como no tem chovido, est passvel. Depois de atravessares, ters cuidado na margem esquerda, que um pouco precipitosa, tendo o carreiro beira do rio, segundo me dizem, pois raras vezes abandono os meus deveres na capela, aludo em diversos pontos. A seguirs a direito... - Um carreiro que cedeu, precipcios, um vau e um sapal! exclamou o cavaleiro interrompendo-o. - Sr. Eremita, fsseis o maior dos santos entre os que deixaram crescer a barba e andam agarrados ao rosrio, dificilmente me convencereis a tomar caminhos desses, numa noite destas. Dir-vos-ei que vs, que viveis da caridade da terra... mal merecida, parece-me... no tendes qualquer direito de recusar abrigo a um viandante em apuros. Ou abris esta porta, ou arrombo-a para entrar! - Caminheiro amigo - disse o eremito -, comporta-te condignamente. Se me obrigares a usar armas terrenas contra
ti, no ficars em melhor situao. Neste instante, o latir e ladrar que o viajante j escutara ao longe cresceu de volume, levando-o a concluir que o eremita, alarmado com a ameaa duma entrada forada, chamara em seu auxlio os ces, que agora furiosamente tanto barulho faziam. Irritado com esta clara atitude do anacoreta de levar avante a sua falta de hospitalidade, o cavaleiro bateu com os ps na porta com tal fora que toda ela, dos portais s traves, abanou violentamente. O eremita, no desejando sujeitar a porta a novo tratamento do gnero, disse bem alto: - Calma! Calma! Poupa as foras, viandante. Eu abro-a, ainda que isso de pouco te v servir, como vers. A porta abriu-se, surgindo o eremita, um homem alto e forte, com hbito e capuz e uma corda feita de juncos cintura. Numa mo pegava uma tocha e na outra um pau de macieira-brava, to grande e grosso que bem se lhe poderia chamar uma clava. Dois ces de pelagem hirsuta, mistura de galgos e mastins, preparavam-se para saltar sobre o visitante logo que pudessem. Quando a luz da tocha reflectiu o cimeiro do elmo e as esporas douradas do cavaleiro, o anacoreta mudou talvez de intenes, pois sossegou os animais e alterou de tom, passando a exprimir-se com uma certa delicadeza rstica, desculpando as suas hesitaes em deix-lo entrar por medo a estranhos depois do sol-posto, dada a abundncia de ladres e salteadores solta que no respeitavam nem Nossa Senhora, nem So Dunstan, nem os homens bons que dedicavam toda a sua vida a servi-los. - A pobreza da tua cela, bom padre - observou o guerreiro olhando e vendo apenas uma cama de folhas, um missal, um tosco crucifixo de carvalho, dois bancos, uma mesa e mais meia dzia de objectos grosseiros -, parece-me suficiente defesa contra os ladres, j no falando nos teus fiis ces, de tamanho bastante para derrubarem um veado e a maioria dos homens.
- O bom guarda-caa - explicou o eremita - deixou-me estes ces para me defenderem at que os tempos se tornem melhores. - Pousou o archote num tocheiro de ferro retorcido, colocou uma tripea de madeira frente ao lar, que atiou com folhas secas, e, pondo um dos bancos a um dos lados da mesa, convidou o cavaleiro a us-lo, ao mesmo tempo que se sentava no outro. Sentados, apreciaram-se atentamente, ambos pensando que nunca tinham visto perante si outro homem to possante e atltico como o que contemplavam. - Reverendo irmo - disse passado algum tempo o cavaleiro -, sem querer interromper as vossas devoes, gostaria de vos pr trs questes: primeira, para onde vai o meu cavalo?; segunda, que me ides dar de ceia?; terceira, onde me deito eu? - Responder-vos-ei - disse o eremita - apontando, pois a minha regra me recomenda usar sinais sempre que as palavras sejam desnecessrias. - Apontou ento para dois cantos da cabana. - O estbulo ali, a vossa cama acol e - apresentando um prato com dois punhados de feijes ressecados - a vossa ceia esta. Encolhendo os ombros, o guerreiro saiu do casebre e foi buscar o cavalo, que ficara preso a uma rvore. Retirou-lhe, com muito cuidado, a sela e cobriu-lhe o dorso com o prprio manto.
O eremito ficou surpreso, ou, qui, enternecido, com o carinho e cuidado com que o estranho tratara a sua exausta montada, j que, resmungando qualquer coisa acerca de pensos que o guarda deixara, tirou dum esconderijo um fardo de forragem, que ofereceu ao cavalo, e uma quantidade de fetos secos, que espalhou no local onde dissera deveria o cavaleiro descansar. Este agradeceu-lhe, aps o que voltaram para junto da mesa onde estava a travessa de feijes. O anacoreta, aps uma demorada orao de graas, que em tempos teria sido em latim, mas do qual ora pouco restava seno, de quando em vez, uma prolongada terminao e uma ou outra palavra ou frase, deu o exemplo, metendo modestamente na sua enorme boca, equipada com alvos e acerados dentes capazes de fazer inveja a qualquer javali, dois ou trs gros, carga nfima para moinho daqueles. O cavaleiro acompanhou to louvvel atitude tirando o elmo, o corselete e a maior parte da armadura, deixando que o outro lhe visse a cabea com grossos caracis louros, feies bem cinzeladas, olhos azuis excepcionalmente brilhantes e vivos, boca bem feita, com o beio superior coberto por bigodes de cor mais escura do que a dos cabelos, enfim, o rosto dum homem ousado, valente e capaz, ao que o resto do corpo correspondia perfeitamente.
O anacoreta, imitando o hspede, baixou o capuz, exibindo uma cabea no formato de bala pertencente a um homem na flor da idade. Cabelo negro e espesso rodeava-lhe a tonsura, lembrando uma sebe em torno dum redil vazio. As feies no revelavam qualquer austeridade monstica ou ascticas privaes. Pelo contrrio, apontavam uma maneira de ser atrevida, com largas sobrancelhas pretas, testa bem lanada, bochechas coradas como as dum trombeteiro e longa e frisada barba preta. Um rosto que, juntamente com o fsico vigoroso do religioso, fazia pensar em lombos e presuntos e no em feijes e legumes. A incongruncia no escapou ao hspede, que a seguir se sentiu na obrigao de, a muito custo, mastigar uns feijezitos, logo pedindo ao seu pio anfitrio alguma coisa para beber. Este respondeu-lhe colocando-lhe na frente uma bilha de boa gua da fonte. - Esta veio do poo onde So Dunstan - explicou -, de sol a sol, baptizou quinhentos dinamarqueses e Bretes descrentes... Bendito seja o seu santo nome! - Levou a bilha boca e dela bebeu um gole demasiado pequeno, se se tivesse em conta como enaltecera o lquido. - Parece-me, padre reverendo - comentou o cavaleiro -, que os nadas que comeis, juntos a esta bendita, se bem que desconsolada bebida, vos fazem muitssimo bem. Pareceis mais algum capaz de vencer uma luta corpo a corpo, um jogo de pau, ou um cruzar de espadas, do que um homem que se deixa ficar neste ermo a feijo e gua fria. - Sr. Cavaleiro - protestou o eremita -, o vosso pensar o dum laico ignorante que apenas pensa na carne. Foi desejo de Nossa Senhora e do meu santo padroeiro abenoarem a minha parca rao, tal como foi feito com as hortalias e a gua que os jovens Sadrach, Misach e Abednego preferiram aos vinhos e viandas que lhes eram oferecidos pelo rei dos Sarracenos. - Santo padre - continuou o cavaleiro -, a quem o Cu tantos milagres tem feito, ser possvel conhecer a vossa graa?
- Podes chamar-me - foi a resposta - o eremita de Copmanhurst, como sou conhecido por aqui... Costumam acrescentar-lhe o epteto de santo, mas no o aceito, pois dele me sinto indigno... E agora, bravo cavaleiro, poderei eu saber o teu nome? - Certo, Santo Eremita de Copinanhurst. Por estas bandas sou conhecido por Cavaleiro Negro. Alguns acrescentam-lhe Preguioso, ttulo que no mereo. O eremita no conseguiu esconder um sorriso. - Vejo - disse -, Sr. Cavaleiro Preguioso, que sois prudente e cauteloso. Mais ainda, percebo que a minha pobre refeio monstica te no agrada, acostumado como estars aos ambientes dos torneios e aos luxos das cidades. Por acaso ocorre-me neste momento que, quando o bondoso guarda-caa aqui deixou estes dois ces como companhia, ofereceu-me, alm daquela forragem, um pouco de comida, que, imprpria como para mim, esquecera j.
- Acredito nisso - animou-se o cavaleiro. - Estava convencido, desde que tiraste o capuz, que nesta cela haveria melhor alimento do que o que apresentaste, Santo Eremita. O guarda deve ser boa pessoa e quem quer que fosse que tivesse visto as vossas queixadas dando voltas a estes feijes secos e a vossa garganta atrapalhada com lquidos a que est pouco acostumada nunca vos julgaria um comedor e bebedor de coisas prprias para cavalos (apontou para a que estava sobre a mesa) e teria de vos dar algo que vos animasse um pouco mais. Vamos l ver, e depressa, o que te ofereceu ele! O eremito lanou um olhar desconfiado sobre o cavaleiro, com uma expresso de cmica hesitao, como se ponderasse se poderia ter confiana no hspede. Havia, porm, tanta abertura e franqueza no semblante do guerreiro, cujo sorriso, tambm com algo de cmico, irradiava uma boa-f e uma lealdade tais, que era impossvel no se simpatizar com ele. Deitando-lhe mais uns olhares sem nada proferir, dirigiu-se para o fundo da choupana, onde um armrio engenhosamente se ocultava. De l retirou uma grande travessa de estanho contendo um enorme empado. Colocou esta imensa travessa frente do hspede, que, servindo-se do punhal, no perdeu tempo nem a cort-lo, nem a servir-se dele. - H quanto tempo passou o generoso guarda por estes lados? - indagou o cavaleiro aps ter engolido vrios bocados do que lhe fora oferecido. - Dois meses mais ou menos - disse, atabalhoadamente, o eremita. - Por Deus! - surpreendeu-se o cavaleiro. - Tudo neste eremitrio milagroso. Santa F! Eu juraria que este mdio veado ainda andaria a correr em cima das prprias pernas h muito poucos dias atrs. O eremito mostrou-se um tanto embaraado com a observao. Ademais percebia estar fazendo fraca figura perante os ataques que o seu convidado efectuava contra o pastelo, que diminua a olhos vistos, sem que ele, com as suas afirmaes prvias de ascetismo, pudesse compartilhar do processo. - Estive na Palestina, Sr. Padre - disse subitamente o cavaleiro -, e creio ser uso de todos os anfitries compartilharem com os seus hspedes os alimentos oferecidos.
Longe de mim pensar que no seguis as leis da hospitalidade, mas, mesmo assim, atrevo-me a lembrar-vos os costumes orientais. - Para lhe tirar quaisquer dvidas, Sr. Cavaleiro, quebrarei, por esta vez, os meus votos - respondeu o eremita. No existindo, nesses tempos, garfos, meteu de imediato as unhas na empada.
Quebrado o gelo, passou a travar-se uma espcie de jogo entre eles a ver quem mais apetite revelaria. Embora o cavaleiro jejuasse h mais tempo, o seu anfitrio ultrapassou-o com facilidade. - Bom padre - exclamou o guerreiro, j satisfeito -, era bem capaz de apostar o meu belo cavalo contra um cequim em como o mesmo guarda que te deu esta excelente veao te ofereceu igualmente algum vinho, das Canrias ou outro, para fazer companhia a este ptimo pastelo. Caso assim acontecesse, provvel que um anacoreta rgido como vs o tenha esquecido. No entanto, se procurardes, natural acontecer ter eu razo. O outro arreganhou os dentes, tornou ao armrio e de l voltou com uma bota contendo talvez dois litros e meio e dois copos de corno de ouro, anilhados a prata. Perante estes instrumentos necessrios para assentar o que tinham comido, achou por bem pr de parte mais delicadezas e, enchendo os dois copos at transbordarem, props, maneira saxnica, "Waes hael, Sr. Cavaleiro", e esvaziou o seu dum trago s. - Drin hael, Santo Eremita de Copmanhurst - correspondeu o guerreiro emborcando tambm o seu. - Santo Padre, no posso deixar de pasmar como que um homem com os vossos msculos e apetite, cujos talentos to bem empregais, se deixa ficar neste stio perdido e completamente s. A meu ver, estareis melhor num castelo ou num forte, comendo e bebendo do melhor, do que aqui encafuado, bebendo gua e couves e dependendo da caridade dum guarda. Se eu fosse a vs, divertir-me-ia, pelo menos, a caar alguns dos muitos veados do rei que por a vagueiam. Um macho a menos numa das inmeras manadas nem sequer se notaria. S o capelo de So Dunstan o saberia. - Sr. Cavaleiro Preguioso - replicou o eremita -, isso so afirmaes perigosas! Evitai-as. Sou um eremito respeitador do rei e da lei e, se algo tirasse do reguengo, iria para a cadeia e nem o meu hbito me salvaria da forca. - Apesar disso, se estivesse no vosso lugar, sairia ao luar, quando os couteiros e os guardas esto quentinhos nas suas camas, e uma vez por outra atiraria uma flecha sobre os veados pastando nas clareiras. Dizei-me: nunca o haveis feito? - Amigo Preguioso, j viste o que h para ver na minha casa. Alis, mais do que devia ver quem aqui entrou fora. Acredita-me. Mais vale gozar o que nos dado do que indagar de onde veio. Bebe o teu copo e no faas mais perguntas impertinentes com as quais eu facilmente poderia acabar pondo-te l fora, se quisesse. - Meu Deus! - bradou o guerreiro. - Fazes-me mais curiosidade ainda! s o eremita mais misterioso que at agora encontrei! Tenho de saber mais a teu respeito antes de partir. Quanto s tuas ameaas, bom homem, nota que a minha profisso tem sido ir ao encontro dos perigos, onde quer que se encontrem.
- Sr. Preguioso, bebo tua - props o anacoreta. - Respeito a tua coragem, mas no aprecio a tua indiscrio. com armas iguais nas mos dar-te-ei uma amigvel e fraternal penitncia e absolvio to completa que durante mais dum ano no tornars a pecar pela curiosidade. O guerreiro perguntou-lhe que armas preferiria ele. - No h nenhuma - ouviu como resposta -, desde as tesouras de Dalila ao prego de Jael e cimitarra de Golias, em que eu no seja melhor do que tu. Mas como sou eu a escolher, que dizes destes brinquedos? - Abriu outra arca, tirando de l duas largas espadas e dois escudos do tipo empregado pelos homens livres. o cavaleiro, que espreitara, viu l dentro deste segundo esconderijo dois ou trs arcos longos, uma besta, um feixe de virotes, vrias flechas, uma harpa e vrios outros objectos que de cannico nada tinham. - Prometo-te, irmo, nada 'mais ofensivo te perguntar. O que est a dentro responde s minhas dvidas. Vejo tambm uma arma - retirou a harpa - com a qual preferirei lutar contigo, em vez de com espadas. - Espero, Sr. Cavaleiro - disse o eremita -, que no tenhas recebido o ttulo de Preguioso com razo. Duvido. No entanto, s meu hspede e no te obrigarei a comprovar a tua bravura a no ser que o exijas. Senta-te e enche o teu copo. vamos beber, cantar e rir. Se cantares bem, ters sempre, aqui em Copmanhurst, uma boa empada tua espera, pelo menos enquanto eu servir na capela de So Dunstan, o que s deixar de acontecer quando for para debaixo da terra. Serve-te enquanto afino a harpa. Nada h melhor para clarear a voz e apurar o ouvido do que uma boa dose de vinho. C por mim, gosto de ter os dedos molhados com o sumo das uvas quando dedilho as cordas de harpa.(2) *2.. O JOVIAL EREMITO. - Todos, mesmo os que pouco lem, tero reconhecido no padre de Copinanhurst, Frei Tuc , da Abadia de Fountain, o alegre confessor de Robin dos Bosques.
Captulo XVII noite, no meu canto recatado. Abro o velho livro encadernado, Repleto de grandes e santos feitos, De mrtires, deles pelo Cu eleitos. E quando a luz com que Me ilumino Se esvai, no durmo mais. Canto um hino. Deixando a pompa poucos sero, Preferindo amicto e bordo, Fogem ao mundo pouco srio para a paz dum eremitrio.
- Warton Apesar da recomendao do prazenteiro monge, que o hspede seguiu de boa vontade, foi-lhe difcil afinar a harpa. , - Creio, Santo Padre - disse -, que falta uma corda neste instrumento e que, alm disso, as outras esto demasiado gastas. - Ah, reparaste nisso? - respondeu o eremito. - S prova saberes da arte. Cansaram-nas o vinho e as festanas acrescentou gravemente, erguendo os olhos para o alto. - Tudo por causa do vinho e das festanas... Bem disse a Allan-a-Dale, o menestrel do Norte, que me estragaria a harpa se a dedilhasse depois do stimo copo, mas ele no me quis ouvir... Amigo, bebo ao sucesso da tua execuo. Isto dito, pegou no copo e, circunspectamente abanando a cabea a propsito da intemperana do harpista escocs, tragou-o duma s vez. O cavaleiro, entretanto, conseguira acertar as cordas e, a seguir a um curto preldio, perguntou ao anfitrio se preferiria um sirvente, na lngua de oc, um lai na lngua de oui, um virelai, ou, ainda, uma balada em ingls vulgar.(1) *1.. Sabe-se que o reino de Frana estava dividido entre as raas normanda e teutnica, que falavam uma lngua na qual a palavra "sim" se dizia Oui, e a dos habitantes das regies do Sul, em cujo idioma, aparentado com o italiano, se dizia oc para o mesmo termo. os poetas do primeiro grupo chamavam-se menestris e os seus poemas lais: os do segundo eram os trovadores e as suas composies denominadas sirventes e outros nomes. Ricardo, um amante de todos os ramos daquela alegre arte, copiava tanto menestris como trovadores. menos provvel que tivesse sabido compor ou cantar baladas ingleses. No entanto, to grande o nosso desejo de integr-lo no grupo de guerreiros que comandava que. se tiver acontecido um anacronismo, dele sabemos ser facilmente perdoados. (Fim da nota.)
- Uma balada, uma balada - pediu o eremita -. em vez desses ocs e ouis franceses. Todo eu sou ingls, como o era o meu patrono So Dunstan. que se riria de qualquer oc e oui como se ria das aparas dos cascos do Demo... Nesta cela somente se canta em ingls. - Tentarei, pois - anuiu o cavaleiro -, uma balada composta por um msico saxo que conheci na Terra Santa. Depressa se viu que, embora o guerreiro no fosse um executor totalmente perfeito da arte dos menestris, o seu gosto se desenvolvera sob a orientao dos melhores mestres. Fora ensinado a amelar a voz, que tinha pouco compasso e era spera, disfarando-lhe as limitaes naturais. A forma como tocava podia ser considerada muito aceitvel por outros muito mais exmios do que o eremito, sobretudo porque dava s notas ora uma alegria, ora um entusiasmo dorido. o que muito valorizava os versos que cantava.
O REGRESSO DO CRUZADO Na Palestina os seus feitos realizados, O guerreiro torna ao lar dos antepassados. Ao ombro uma cruz levando orgulhoso. Muito batalhara, valente animoso, Como mostrava o escudo amolgado Por espadas, lanas e achas amassado. Pr amada cantou esta cano dolente, com o Sol j caindo pra l do Oriente. "Salve, dama bela!", entoou o cavaleiro. Regresso da terra do ouro e do dinheiro. Comigo nada vem, nada que algo valha, Apenas as armas, cavalo de batalha,
As esporas para o levar a investir E as armas que fazem o inimigo cair; Apenas um trofu eu quero, isso sim. De Tecla, um sorriso doce s pra mim. Salve, dama bela! Sou o fiel amante Que jamais te esqueceu sequer um instante. Ser impossvel nele no reparar Quando, altivo e nobre, se te mostrar. Menestris cantaro, arautos bradaro: Foi por aquela dama, prestem ateno, Foi por aquele olhar que dela dardeja, Que em Ascalo ele venceu a peleja. Aquele olhar que a lmina afiou E cinquenta mulheres vivas tornou, Humilhando de Mafoma o rompante, Abatendo sem d ao sulto o turbante. Notais-lhe as tranas onde brilha o sol leve, Tocando tambm o seu colo branco de neve? Devido a tais cordas de fio dourado Muito pago pr inferno foi levado? " Ave, dama bela! Sem nome, s para ti Lutei em tua honra e todos combati. Abre-me, abre-me a cancela, moa bela Vindo da Sria, do calor escaldante, No aguento o vento norte cortante, Deixa, bela dama, meu amor saciar, Torna feliz quem fama te soube dar." Enquanto escutara, o eremita comportara-se como um crtico de arte moderno assistindo a uma nova pera. Reclinara-se no seu assento, com os olhos semicerrados, ora fechando as mos, erguendo e baixando os polegares, aparentando estar absorto, ora abrindo-as e abanando-as acompanhando o compasso. Num ou noutro termo que mais lhe agradasse intervinha com a sua voz
em apoio da do cavaleiro, que a no elevara tanto como seria do seu gosto. Quando a cano terminou, o anacoreta declarou t-la achado bonita e bem cantada. - No entanto - afirmou -, creio que os meus compatriotas saxes j esto demasiado misturados com os normandos para terem adoptado essa toada to melanclica Que trouxe para o lar o honesto cavaleiro? Que esperava ele seno encontrar a sua amada outro amando e ligando tanto para a sua serenata, como lhe chamam, como ao miar dum gato em Janeiro? Contudo, Sr. Cavaleiro, bebo um copo a ti e ao bom sucesso dos que verdadeiramente amam... Julgo que no sers um deles acrescentou ao notar que o cavaleiro (que j estava alegre com tantas rodadas) j misturava gua com vinho. - Tu no me disseste - exclamou o outro - que esta gua viera do poo do teu bendito patrono, So Dunstan? - Disse - concordou o eremita. - E muitos centos de pagos baptizou ele com ela. No me consta, porm, que alguma vez a tenha bebido. Tudo tem o seu uso neste mundo. So Dunstan conhecia to bem como qualquer outro as prerrogativas a que os monges de boa disposio tm direito. Pegando na harpa, deliciou o seu convidado com uma tpica cano com um antigo estribilho (derrydown chorus) apropriado quela msica inglesa(2). FREI DESCALO Dou-te, amigo meu, se quiseres, um ano Para, na Europa, do mar ao oceano Tentares, onde tu quiseres, procurar Algum mais feliz que Frei Descalo achar, O cavaleiro por sua dama partido Que regressa ao lar com o corpo ferido? A seu pedido corre para o confessar, Pois conforto s Frei Descalo sabe dar. O teu monarca? Ora! De muitos bem sei Preferindo capuz a coroa de rei. Mas o contrrio garanto que falso, Nenhum frei prefere coroa a p descalo. *2.. Lembraremos ao leitor que o derrydown se cr antigo, para l da Heptarquia, dos tempos dos drudas, servindo ento de coro para os cnticos daquelas venerveis pessoas quando iam para as florestas colher visco. (Fim da nota.)
Onde o frei estiver a terra sua, Seja no campo, na floresta ou na rua. Pode ir onde quiser, ir donde desejar, Feliz qual Frei Descalo no de topar. Esperado o tempo que tiver de ser, Mesa pronta, comida por arrefecer, O melhor de tudo, o mais quente no lar,
So para Frei Descalo quando ele chegar. Esperado noite, o jantar posto: Empadas, cerveja, comida a seu gosto, A dona da casa tudo faz sem percalo para melhor servir o feliz Frei Descalo. Vestido com sandlias, cordas e capa, Detendo o Demo, agradando ao papa, Porque colher rosas sem os dedos picar Apenas Frei Descalo pode alcanar. - Pela minha f! - aplaudiu o cavaleiro -, cantaste bem e claro, enaltecendo a tua ordem. E, a propsito, santo monge, no temes que o Demo te visite um dia durante um dos teus pouco cannicos passatempos? - Eu, pouco cannico? - surpreendeu-se o eremita. - Rejeito tal acusao! Desprezo-a! Sirvo na minha capela devotada e reverentemente. Duas missas, uma de manh, outra tarde, primas, vsperas, ave-marias, padre-nossos, credos... Excepto noite, no tempo de caa - recordou o convidado. Exceptis excipiendis - respondeu o eremito - como me ensinou o meu abade a dizer a todos os leigos impertinentes que me interrogue sobre se sigo ou no todos os preceitos da minha ordem. - Exacto, santo padre - assentiu o cavaleiro -, mas o Diabo olha muito para as excepes. E anda por a, como um leo solta. Bem o sabes. - Ele que se atreva a vir rugir aqui - soltou o frade. - Um toque da minha corda f-lo- rugir mais alto do que as tenazes de So Dunstan jamais conseguiriam. Nunca temi os homens, e muito menos o Diabo e os seus aclitos. So Dunstan, So Dubric, Santo Winibald, Santo Winifred, Santo Swibert, Santo Willic , no esquecendo So Toms de de Kent, e os meus parcos mritos chegam para desafiar a todos, por muito compridos que tenham os rabos.
Mas, digo-te em segredo, no gosto de falar nestas coisas antes das matinas. Mudaram depois de assunto. A alegria cresceu a partir da, muitas canes foram cantadas e s subitamente interrompidas por algum batendo porta do eremitrio. O motivo dessa interrupo s poder ser explicado se retomarmos as aventuras doutros personagens desta histria, porque, como o velho Ariosto, no nos queremos deixar sempre agarrados s mesmas figuras do nosso drama.
Avante! A jornada vai por montes e vales, Onde o enho brinca com a tmida cora, Onde o carvalho imenso a tudo tapa,
Captulo XVIII
Partindo os raios do Sol caindo no solo. Avante! Pr frente! Belas sendas so estas. Percorramo-las, com o Sol brilhando alto, Antes que Cntia acenda a lmpada Que quase no iluminar a floresta.
Quando CEdric, o Saxo, viu o filho desmaiar na lia de Ashby, o seu primeiro impulso foi o de ordenar aos seus dependentes que dele fossem cuidar. A voz, contudo, embargara-se-lhe, No desejava confessar perante tanta gente que reconhecia como filho aquele a que renunciara e deserdara. Mesmo assim, mandou que Oswald, acompanhado por dois servos, transportasse Ivanho para a vila logo que o ajuntamento diminusse. Algum, todavia, se antecipara a Oswald. A multido desfizera-se, certo, mas o cavaleiro no se encontrava em parte nenhuma. O copeiro de Cedric procurou debalde pelo seu jovem amo. Foi at ao stio ensanguentado onde tombara, mas ningum j ali estava. Era como se as fadas o tivessem transportado pelos ares. Talvez Oswald (os Saxes eram extremamente supersticiosos) viesse a aceitar uma justificao dessas como explicao para o desaparecimento de Ivanho se no se lhe deparasse algum, vestido de escudeiro, em cujas feies reconheceu as do seu companheiro de trabalho, Gurth. Este, preocupado com a sorte do amo, que desaparecera sem rastos, buscava-o em todo o lado, esquecendo no seu af o disfarce de que a sua segurana dependia. Oswald achou por bem e sua obrigao prend-lo como fugitivo para o levar ao patro, que decidiria o que fazer com ele. Persistindo na sua procura, o copeiro conseguiu saber de alguns dos espectadores que teimavam em ficar no local que o cavaleiro fora carinhosamente levado por criados muito bem fardados para uma liteira, pertencente a uma senhora,
e rapidamente transportado para longe da aglomerao. Oswald, senhor desta informao, resolveu transmiti-la ao patro, para que lhe desse instrues de conformidade, Consigo levou Gurth, a quem via como uma espcie de desertor ao servio de Cedric. Apreensivo, o Saxo sofria pelo bem-estar do filho. A fora do sangue impunha-se, sobrepondo-se ao patritico estoicismo que o levara a afast-lo, mas, mal foi informado que Ivanho estava em mos amigas, a preocupao paternal, que o dominara, apagou-se, deixando assomar sentimentos de orgulho ferido e ressentimentos por aquilo que classificava como a desobedincia de Wilfred. - Que v para onde quiser - bradou. - Que lhe lambam as feridas aqueles por quem as recebeu. Ele mais hbil com aquelas geringonas da cavalaria normanda do que, mantendo a fama e a honra da sua ancestralidade inglesa, com a espada e o chuo, as antigas armas da sua terra. - Se para manter a honra dos seus maiores - interveio Rowena, que estava presente - ser-se sbio nos conselhos, bravo na aco... o mais bravo entre os bravos, mais meigo que nenhum, no conheo ningum a no ser o prprio pai...
- Ettric
Forest
- Silncio, Lady Rowena! Neste ponto, e neste ponto somente, no desejo a sua opinio. Queira preparar-se para a festa do Prncipe. Fomos convidados, numa rara prova de honrosa cortesia, quase nunca estendida pelos Normandos a gente da nossa raa desde o fatal dia de Hastings. vou l para mostrar aos orgulhosos normandos quo pouco o sofrer dum filho, que lhes derrubou os melhores, afecta um saxo. - EU NO vou, E note que aquilo que julga ser coragem e fora de carcter pode ser interpretado como total ausncia de sentimentos. - Fique ento em casa, ingrata senhora. - respondeu-lhe Cedric. - Corao empedernido o de quem sacrifica a felicidade de todo um povo oprimido em favor duma v e no aceitvel simpatia. Juntamente com o nobre Athelstane, assistirei ao banquete de Joo de Anjou. Atendeu, de facto, festa, cujos principais acontecimentos j relatmos. Os fidalgos saxes, quando deixaram o castelo, montaram imediatamente os seus cavalos, e foi ao faz-lo que Cedric notou a presena de Gurth, o desertor. Como sabemos, o fidalgo regressava da festa de pssimo humor, procurando qualquer motivo onde o pudesse descarregar. - Os grilhes! Os grilhes! - berrou. - Oswald! Hundibert! Ces! Viles! Porque deixastes o patife solta? Sem contestarem fosse o que fosse, os camaradas de Gurth amarraram-no com a primeira corda que arranjaram:
Gurth submeteu-se sem qualquer protesto, parte o facto de, olhando de soslaio para o amo, afirmar: - Eis o que me acontece por amar a carne da tua carne mais do que a mim mesmo. - A cavalo e avante! - comandou Cedric. - E j no sem tempo - comentou o nobre Athelstane -, pois, se no nos mexermos, a segunda ceia(3) que o venerando abade Waltheoff tem preparada para ns, vai-se estragar! Apesar de ser tarde j, os viajantes deslocaram-se to rapidamente que alcanaram o Convento de Santo Withold perfeitamente a tempo. O abade, de origem saxnica, recebeu-os com as profusas e exuberantes marcas de hospitalidade prprias da sua gente, oferecendo-lhes, quelas altas horas, uma excelente ltima, ou primeira, se se quiser, refeio, que s terminaria j de manh. Quando a cavalgada abandonava o convento, deu-se um incidente altamente alarmante para os Saxes, que, entre os Europeus, eram, qui, os mais supersticiosos quanto a agoiros, sendo deles que nos vm muitas das nossas crenas populares. Os Normandos, de sangue mais misturado e melhor informados, de acordo com o seu tempo, tinham j posto de parte a maioria das crendices que os seus avs haviam levado da Escandinvia, fazendo gala da sua iseno nessas questes. No momento, o aviso de coisa ruim partiu dum grande e ossudo co preto que, sentado, soltou um prolongado uivo, mesmo na ocasio em que os primeiros cavaleiros saam do porto, aps o que de imediato se ps a ladrar e a saltar dum lado para o outro, mostrando claras intenes de se juntar ao grupo. - Aquela msica no me agrada, pai Cedric - disse Athelstane, que sempre se servia daquele respeitoso ttulo ao
dirigir-se-lhe. - Nem a mim, tio - acrescentou Wamba. - Temo termos de pagar caro ao cantor. - Na minha opinio - props Athelstane, a quem a ptima cerveja do abade (Burton j nesses tempos era famosa por aquela bebida) to bem cara -, seria melhor voltarmos para trs e ficarmos com o abade at tarde. Quando o caminho de quem viaja cruzado por um monge, uma lebre ou um co que uivou d azar at refeio seguinte. - para a frente - bradou Cedric impaciente. - J pouco tempo temos para a nossa caminhada. Quanto ao co, o rafeiro do escravo fugitivo e to intil como esse vagabundo do Gurth. Ergueu-se nos estribos e, aborrecido com a interrupo, *3. A segunda ceia, rere-supper, era uma refeio nocturna que se comia muito mais tarde do que a ceia normal.
arremessou umdardo contra Fangs, que, tendo acompanhado o seu senhor, se perdera e manifestava agora toda a sua alegria pelo reencontro. o dardo feriu-o no ombro, quase o pregando ao cho. Fangs fugiu ganindo, sentindo Gurth apertar-se-lhe o corao perante este voluntrio acto de malvadez para com o seu companheiro, facto que considerava muito mais grave do que o severo tratamento que ele prprio recebera. Depois de ter tentado em vo levar as mos aos olhos, pediu a Wamba, que, ante o mau humor do amo, se retirara, prudentemente, para a retaguarda: - Peo-te que me faas o favor de me limpar os olhos com a borda do teu manto. Esto cheios de p e estas cordas no me permitem chegar-lhes. Wamba correspondeu-lhe ao pedido e durante alguns minutos seguiram lado a lado, sem que Gurth, amuado, dissesse alguma coisa. Finalmente, no se contendo mais, pediu: -Amigo Wamba. Entre todos os loucos que servem Cedric, s tu tens jeito para o fazer aceitar as tuas maluqueiras. Vai ter com ele e diz-lhe que por nada neste mundo Gurth o tornar a servir. Pode cortar-me a cabea, aoitar-me, carregar-me de ferros, mas, a partir de agora, nunca, nunca mais conseguir que eu o sirva e muito menos que o ame. Vai l e diz-lhe que Gurth, filho de Beowulph, deixa o emprego. - No querias mais nada! - respondeu Wamba. - Embora tolo, no fao figuras de tolo. Cedric tem outro dardo cinta e, como sabes, s vezes, tem boa pontaria. - No me importo - continuou Gurth - que se sirva de mim como alvo. Ontem deixou Wilfred, o meu jovem senhor, esvado em sangue. Hoje tentou, na minha frente, matar a nica outra criatura que at hoje se mostrou minha amiga. Por Santo Edmund, So Dunstan, Santo Withold, Santo Edward, o Confessor, e todos os outros santos do calendrio saxo - Cedric nunca invocava um santo que no fosse saxo e o pessoal seguia-lhe o costume -, nunca lhe perdoarei. - Segundo penso - lembrou-lhe Wamba, que frequentemente jogava o papel de pacificador da casa -, o nosso amo no atirou para ferir Fangs de propsito, mas somente para o assustar. Se te lembras, levantou-se nos estribos, como quem desejasse ultrapassar o alvo. Assim teria sido se Fangs no tivesse
pinchado no momento preciso. Foi s um arranho, que se sarar com um nada de pez. - Se pudesse pensar assim - resmungou Gurth -, se pudesse acreditar nisso... Mas no, eu vi o dardo bem apontado... escutei-lhe o zoar pelo ar, cheio da maldade de quem o atirou ... vi-o a vibrar enterrado no cho, como se lastimasse no ter acertado em cheio. Pelo porco favorito de Santo Antnio! No quero mais nada com ele!
O indignado porqueiro calou-se num silncio que nem todos os esforos do bobo foram capazes de quebrar. Cedric e Athelstane, na frente, conversavam sobre o estado das terras, das dissenes na famlia real, dos feudos e bulhas entre os nobres normandos e das possibilidades que surgiam de os saxes oprimidos se libertarem do jugo daquele ou, pelo menos, se elevarem a posies de importncia e independncia aps os acontecimentos a darem-se. Neste assunto, Cedric era, todo ele, animao. A restaurao da independncia do seu povo era o sonho da sua vida, ao qual imolara a felicidade do lar e os interesses do filho. para que esta grande revoluo resultasse a favor dos ingleses nativos, seria preciso uni-los e coloc-los sob um comando nico. A obrigao de lhes escolher um chefe de sangue real saxo era no s bvia, mas condio essencial tambm para aqueles a quem confiara os seus planos e esperanas. Athelstane correspondia aos quesitos precisos. No tinha grande cabea ou talentos que o recomendassem como condutor, mas, por outro lado, tinha ainda boa figura, no era covarde, estava acostumado s artes marciais e dava a entender acatar os conselhos de quem sabia mais do que ele. Acima de tudo, era liberal e hospitaleiro e, julgava-se, de boa ndole. Mas, fossem quais fossem as pretenses de Athelstane para a chefia da confederao saxnica, muitos eram, entre os daquela raa, que preferiam que o ttulo viesse, antes, a pertencer a Lady Rowena, que descendia de Alfredo e cujo pai fora um chefe de nomeada, sabedor, corajoso e generoso, sendo a sua memria bem recordada pelos seus oprimidos compatriotas. No teria sido custoso para Cedric encabear um terceiro partido. Quisesse-o ele, pois era to poderoso como os outros dois. Contrabalanando o sangue real deles, havia a sua coragem, actividade, energia e sobretudo a extrema devoo causa que at lhe valera o cognome de O Saxo. Por nascimento seria somente inferior sua pupila e a Athelstane e todas as suas qualidades eram perfeitamente isentas de qualquer ponta de egosmo. Deste modo, em vez de dividir ainda mais a sua enfraquecida nao criando uma nova faco prpria, tinha como parte importante do seu projecto apagar esse mal promovendo o casamento de Rowena com Athelstane. S um obstculo se lhe opunha: a mtua atraco existente entre o filho e a pupila, de que resultara a expulso de Wilfred do lar paterno. Cedric tomara essa dura medida na convico de que o afastamento levasse Rowena a deixar diminuir a sua preferncia. Assim no sucedera, para seu grande desapontamento, devendo mesmo o facto poder ser atribudo forma como a pupila fora educada. Cedric, para quem o nome de Alfredo correspondia ao dum deus, tratara o ltimo rebento da linhagem do grande monarca com considerao que, qui,
nem as princesas recebiam. A vontade de Rowena era, pois, lei na casa e o prprio Cedric se orgulhava mostrando-se como o primeiro dos seus sbditos, acatando-lhe totalmente a soberania dentro do limitado crculo em que viviam. Habituada a exercer no s a sua vontade, mas tambm a sua desptica autoridade, Rowena, pela educao recebida, resistia e aborrecia toda e qualquer tentativa de orientao das suas afeies e de controlo das suas inclinaes, impondo naturalmente a sua independncia em questes em que at as mulheres preparadas para a obedincia aos pais ou guardies disputam decises. Dizia francamente o que pensava, e Cedric, que no era capaz de se libertar da sua usual deferncia, ficava sem saber o que fazer para impor a sua posio perante ela. De nada resultara pretender fascin-la com a ideia dum trono imaginrio. Rowena, sensata, no achava acertado o plano dele, nem praticvel na parte que lhe dizia respeito. No escondendo a sua preferncia por Wilfred de Ivanho, declarara que, se no pudesse ser dele, preferiria recolher-se a um convento, pois de modo algum se casaria com Athelstane, que sempre desprezara e que, agora, com os problemas que lhe estava a criar, principiava a detestar. No entanto, Cedric entendia serem as mulheres pouco constantes e teimava, servindo-se de todos os meios ao seu alcance, na concretizao daquele enlace, que via como importantssimo para a causa saxnica. O sbito e romntico regresso do filho Ashby fora quase um golpe de graa para as suas esperanas. O amor paterno, certo, sobrepusera-se por instantes ao patriotismo e orgulho, mas estes dois sentimentos haviam retornado em fora, dando-lhe toda a determinao para forar a unio de Rowena com Athelstane e outras medidas conducentes independncia dos Saxes. Era exactamente sobre estes assuntos que seguia, na altura, trocando impresses com Athelstane, embora, como Hotspur lamentasse, uma vez por outra, o ter de remexer em guas to paradas por uma causa to nobre. Athelstane era, claro, suficientemente vaidoso para no deixar de apreciar ouvir todas aquelas referncias s suas nobres origens e aos seus naturais direitos a todas as deferncias e soberania. Mas esta vaidadezita satisfazia-se com o respeito daqueles mais prximos de si e dos saxes com que contactava. Sendo corajoso bastante para enfrentar o perigo, era demasiado preguioso para ir ao encontro dele, pelo que, ainda que, em princpio, concordasse com as pores do projecto de Cedric, referentes quer ao direito independncia dos Saxes, quer a lhe dever pertencer o ttulo quando a liberdade fosse alcanada, logo que os processos para a conseguir eram mencionados, imediatamente voltava a ser Athelstane, o Atado, lento, irresoluto, adiado e hesitante. Todos os esforos de Cedric
para o entusiasmar batiam no seu feitio impassvel com tanto resultado como bolas de fogo caindo na gua, que, fora um ligeiro fervilhar, logo se extinguem.
Cedric suspendeu os seus esforos junto dele (s comparveis ao picar um rocim esfalfado ou malhar em ferro frio) e aproximou-se da pupila, Rowena, com resultados idnticos, pois fora interromper uma troca de impresses com a aia favorita acerca da bravura e sorte de Wilfred. Elgitha aproveitou a ocasio para se vingar a si prpria e ama, mudando o assunto para o derrube de Athelstane na lia, coisas que muito magoavam os ouvidos de Cedric. para o Saxo, o dia corria o pior possvel, j no se falando no desconforto da caminhada. Praguejou contra o torneio, contra quem o organizara e contra si mesmo por l ter ido. Ao meio-dia, por mando de Athelstane, pararam sombra, na floresta, junto duma fonte, para descanso das montadas e para comerem o que o hospitaleiro abade lhes oferecera. O repasto foi demorado, tornando-lhes impossvel o atingirem Rotherwood sem terem de viajar de noite, pelo que, quando, finalmente, arrancaram, fizeram-no a passo estugado.
Captulo XIX Guerreiros uma dama nobre escoltando, Pelas suas palavras eu entendera, Escondido, entre eles, retaguarda, Cavalgam, dispostos a passar a noite Dentro das muralhas do castelo prximo. - Orra, Uma Tragdia Os viajantes tinham-se aproximado duma zona florestada, onde se embrenhavam cientes dos perigos que conteria, dado os fora-da-lei que a opresso e a pobreza, desesperando-os, empurrara em grandes bandos para as matas, que ocupavam relativamente impunes frente dbil fora policial da altura. Cedric e Athelstane, apesar da hora tardia, sentiam-se preparados para enfrentar qual quer destes grupos, ajudados por dez criados, alm de Wamba e Gurth, com quem no contavam, o primeiro por ser um bobo e o outro um preso. Acrescente-se que, ao atravessarem a mata to a desoras, os dois fidalgos contavam ainda com a sua posio, carcter e, claro, valentia. Os fora-da-lei, a quem a dureza das regras da floresta reduzira a um to desesperado e errante modo de vida, eram, quase todos, camponeses e homens livres saxes, que, Julgava-se, respeitariam os seus compatriotas de alta categoria. A progresso suspendeu-se por gritos de socorro repetidos. Dirigindo-se para donde vinham esses pedidos de ajuda, deparou-se-lhes uma liteira pousada no solo, ao lado da qual se sentava uma mulher ricamente vestida de acordo com a moda israelita, enquanto um velho, cujo gorro amarelo indicava pertencer mesma raa, andava de um lado para o outro gesticulando e dando provas de grande aflio, apertando as mos com fora, como que protestando contra a tragdia que sobre eles tombara. s perguntas de Cedric e Athelstane, o velho judeu, a princpio, somente respondeu evocando a proteco de todos os patriarcas do Velho Testamento contra os filhos de Ismael, que
se preparavam para os fazer em postas. Quando o terror se lhe amainou um pouco, Isaac de Iorque (tratava-se, na verdade,
do nosso velho conhecido) conseguiu explicar-lhes que contratara em Ashby seis homens que, com mulas e uma liteira, pudessem transportar at Doncaster um amigo ferido. Tudo tinha corrido bem at ouvirem da boca dum lenhador que muitos e fortes bandidos se encontravam de tocaia, perto. Os contratados no s fugiram como levaram consigo os animais que suportavam a liteira, deixando-os, a ele e filha, indefessos e sem possibilidade de continuarem, sujeitos a serem assaltados, talvez assassinados, pelos bandidos, que temiam pudessem aparecer dum momento para o outro. - Se Vossas Valias permitirem - acrescentou Isaac em tom humlimo - que dois pobres judeus se coloquem sob a vossa guarda, juro pelas tbuas da nossa Lei que nenhum favor concedido a filhos de Israel, desde os tempos do Cativeiro, ser to prodigamente recompensado. - Co judeu! - proferiu Athelstane, cuja mente era daquelas que acumulavam toda a espcie de ninharias e mesquinhas ofensas. - No te recordas j de ter troado de ns, no dia do torneio? Foge, escapa-te, junta-te aos fora-da-lei. Faz o que quiseres, mas no te chegues a ns. Se roubaram algum como tu, que rouba o mundo inteiro, eu, por minha parte, dar-lhes-ei toda a aprovao. Cedric no secundou a proposta do companheiro. - Ser melhor - props - deixarmos dois dos nossos criados e dois cavalos para os acompanharem at aldeia mais perto. Reduz-nos as foras, certo, mas com a sua grande espada, nobre Athelstane, e o auxlio dos restantes, seremos ainda bastantes para enfrentar vinte que sejam. Rowena, um pouco alarmada meno de salteadores, em nmero e prximos, apoiou inteiramente o seu tutor. Rebeca, libertando-se do estado de abatimento em que permanecera, ergueu-se, e ajoelhando-se beira do palafrm da dama saxnica, beijou-lhe, de acordo com o costume oriental, a orla do manto., Ps-se de p e, retirando o vu, implorou-lhe, em nome de Deus que ambas adoravam e pela revelao do monte Sinai, em que as duas criam, que tivesse piedade e lhes permitisse seguissem com eles. - No para mim que rogo este favor - explicou -, nem sequer para aquele pobre velho. Sei que maltratar e lesar a minha gente falta de somenos importncia, quando no mrito, entre os cristos. -nos, pois, igual sermos diminudos na cidade, no deserto ou nos campos. , no entanto, em nome de algum, querido por muitos, mesmo entre vs, que rogo a vossa proteco. Esse algum est ferido, precisa de cuidados e carinho. Na verdade, se algo lhe acontecer, lament-lo-eis at ao ltimo instante da vossa vida e chorareis o ter-me recusado o que no momento imploro. A forma grave e solene como Rebecca lanara o seu apelo impressionou a bela fidalga saxnia. - O homem velho e fraco - disse para o guardio.
- A donzela, jovem e linda. O amigo deles, doente e em perigo de vida... Judeus que sejam, ns, cristos, no os podemos abandonar desta maneira. Aliviem-se duas mulas da carga, que passar para as de dois dos servos, e elas transportaro a liteira. para o velho e para a filha temos as remontas. Cedric concordou de pronto e Athelstane apenas ps como condio que "viajassem l atrs, ao p de Wamba, que se defenderia com o seu escudo de presunto". - O meu escudo ficou no campo da peleja - interveio o bobo como, alis, sucedeu com os de cavaleiros muito melhores do que eu. Athelstane corou recordao do que lhe acontecera no torneio e Rowena, satisfeita com a humilhao do pouco desejado pretendente, aumentou-lha convidando Rebeca para vir para seu lado. - Se no ficasse mal - agradeceu Rebeca com altiva humildade -, f-lo-ia. No desejo, contudo, pela minha presena, incomodar a minha nobre protectora. Feitas apressadamente as mudanas de bagagem, pois a palavra "salteadores" a todos pusera de alerta, tanto mais que o crepsculo tudo ia tornando mais temvel. Na confuso, retiraram Gurth de cima do cavalo, tendo ele aproveitado a ocasio para convencer o bobo a aliviar-lhe as cordas que o prendiam. Este assim fez e, possivelmente de propsito, deixou-as to frouxas que Gurth no teve dificuldade nenhuma em delas se soltar e logo se esgueirar para dentro das moitas. levou algum tempo at que a sua falta fosse notada. Devia seguir montado atrs dum dos criados e cada um deles pensava que iria junto de outro, pelo que, quando principiaram a segredar sobre o seu desaparecimento, era j to grande o temor dum assalto que nem foi dada grande importncia ao facto. A trilha que seguiam era estreita de mais para permitir mais de dois cavaleiros a par e descia para um pequeno baixo atravessado por um ribeiro, cujas margens eram irregularmente alagadas e cobertas de salgueiros anes. Cedric e Athelstane, na vanguarda, perceberam o risco dum ataque naquele ponto, mas, como nem um nem outro tinham grande prtica de guerreio, entenderam ser, a melhor forma de evitar o perigo, o atravessarem o local o mais depressa que pudesse ser. Avanando desordenadamente, tinham, juntamente com parte dos seus companheiros, acabado de passar o ribeiro, quando foram atacados pela frente, por detrs e pelos lados com tanta impetuosidade que, na sua confusa e pouco preparada condio, quase nem conseguiram esboar uma defesa a srio. Gritos de "Drago branco! Drago branco!", "So Jorge pela Inglaterra!", partindo dos assaltantes, que fingiam ser foras-da-lei saxes, vinham de todos os lados e de todos os lados surgiam inimigos, com tanta rapidez que at parecia multiplicarem-se.
Ambos os chefes saxes foram simultaneamente aprisionados e cada um de conformidade com o seu modo de ser. Cedric, logo que os adversrios se mostraram, lanou um dardo dos que tinha e que, com melhores resultados do que no caso de Fangs, varou um homem, espetando-o contra um carvalho. Exaltado com o xito, esporeou o cavalo contra outro, desembainhando ao mesmo
tempo a espada, que, brandida com fria descontrolada, bateu num galho e lhe saltou da mo, deixando-o desarmado pelo prprio golpe. Foi imediatamente preso e arrancado da montada por dois ou trs bandidos. Athelstane foi apanhado com mais facilidade, pois prenderam-lhe as rdeas e obrigaram-no a desmontar, antes que tivesse tido tempo de empunhar qualquer arma ou tomar qualquer atitude defensiva. O pessoal, atrapalhado com a bagagem, surpreso e aterrado, constituiu presa fcil. O mesmo aconteceu com Lady Rowena, no centro da cavalgada, e com o judeu e a filha, na retaguarda. Do conjunto nenhum escapou, fora Wamba, que revelou muito mais coragem do que aqueles que pensavam ser mais sensatos do que ele. Agarrando numa espada dum dos criados, que, hesitante, a puxava, f-la voltear como um leo, obrigou a recuar vrios dos atacantes, muito embora no tivesse conseguido aproximar-se donde estava o amo. Percebendo a inferioridade numrica, o bobo saltou do cavalo e, na balbrdia, escapuliu-se para dentro do mato, fugindo do local da luta. A salvo, o valente bobo ainda duvidou se deveria ou no regressar para compartilhar do cativeiro do patro, de quem, sinceramente, era muito amigo. "Tenho ouvido falar do prazer da liberdade", murmurou, "mas gostaria que quem o afirma me ensinasse o que devo fazer com ela, agora, que a tenho." Tendo pronunciado as ltimas palavras, foi chamado muito baixo por uma voz cautelosa: - Wamba! - Simultaneamente, um co, que viu ser Fangs, saltava para junto dele, fazendo-lhe festas. - Gurth! - respondeu com igual cuidado. Prontamente o porqueiro se lhe juntou. - Que foi? - perguntou o ltimo. - Que so estes berros e tinir de espadas? - Uma brincadeira da moda - informou Wamba. - Ficou tudo aprisionado. - Quem ficou aprisionado? - indagou Gurth, excitado. - O meu amo, a minha ama, Athelstane, Hundibert e Oswald. - Valha-nos Deus! - exclamou Gurth. Presos como? Por quem? - O nosso amo entrou na luta depressa de mais - explicou o bobo - e Athelstane e os outros, nem depressa, nem devagar.
Esto prisioneiros de homens vestidos de verde com mascarilhas pretas. Atiraram-nos para a erva como tu fazes com as mas bravias para os teus porcos. Rir-me-ia - acrescentou - se no tivesse vontade de chorar - As bgoas rolavam-lhe pela face. O semblante de Gurth adoou-se: - Wamba, empunha uma arma. O teu corao mais rijo do que o teu siso... somos dois somente... mas um ataque repentino, feito por dois homens decididos, pode conseguir muita coisa. Segue-me! - Para onde e para qu? - perguntou o bobo. - Salvar Cedric. - Mas tu no deixaste o seu servio h bem pouco? - Isso foi quando as coisas estavam a correr-lhe bem. Segue-me! Ia o bobo obedecer-lhe quando um terceiro indivduo apareceu, mandando-os parar. Pela roupagem e armas, Wamba teria pensado ser ele um dos fora-da-lei que tinham atacado o patro. No trazia, todavia, mascarilha e o vistoso boldri e a rica
trompa de caa ao ombro, assim como as calmas e imperativas voz e maneiras, mostraram-lhe tratar-se de Loc sley, o arqueiro que vencera, em condies desvantajosas, a competio de arco. - Que significa tudo isto? - quis saber. - Quem assalta, aprisiona e pede portagens nesta floresta? - Veja pelo traje deles, pois esto bem perto - disse Wamba e verificar se so ou no seus parentes... Com os meus nada se parecem, mas com os seus assemelham-se como pintos da mesma ninhada. - Vou j ver isso - resmungou Loc sley. - Ordeno-te que, se tens amor pele, no saias daqui at eu voltar. Obedece-me, pois ser prefervel para os teus amos... Primeiro tenho de me pr to parecido com eles quanto possvel. Retirou o boldri, a trompa e a pena do chapu, dando-os a Wamba. Aps uma mascarilha que tinha no bolso e partiu em reconhecimento. - Ficamos, Gurth - perguntou Wamba -, ou cavamos? Segundo o meu fraco entender, ele tem o equipamento dos ladres demasiado mo para ser um homem de bem. - Mesmo que seja o Demnio, como se calhar - observou Gurth -, nada perderemos em esper-lo. Se pertence ao bando, j os avisou e nada lucraremos fugindo. Alm de que, por experincia prpria, sei no serem, s vezes, os bandidos as pessoas piores de lidar. O arqueiro regressou pouco depois. - Amigo Gurth - esclareceu -, misturei-me com aquela gente e j sei quem so e para onde se dirigem. No h perigo de, para j, maltratarem nenhum dos prisioneiros. Somos s trs e seria loucura no momento tentarmos o que quer que fosse, at porque so muitos, capazes e com sentinelas por todos os lados.
Conto rapidamente poder juntar foras suficientes para os enfrentar. Sois ambos, creio, criados fiis de Cedric, o Saxo, um defensor dos direitos dos Ingleses. No lhe faltaro braos ingleses para o ajudar nesta situao. Venham, vamos buscar ajuda. Sem mais acrescentar, apressou-se pela mata dentro, seguido pelo bobo e pelo porqueiro. Wamba no podia estar calado: - Julgo - disse, mirando o boldri e a trompa que continuava carregando - ter visto a flecha que ganhou estes vistosos prmios. E foi h muito menos tempo do que o ltimo Natal. - E eu - acrescentou Gurth - juraria pela minha crena que j ouvi a voz do arqueiro que os conseguiu. E a Lua no tem mais de trs dias sobre isso. - Amigos - interveio o arqueiro -, quem sou, o que sou, no vem ao caso. Se libertar o vosso amo, ver-me-o como o melhor dos amigos. Se tenho este ou aquele nome, no interessa. Se atiro melhor do que qualquer guardador de vacas, tambm no. Se me apetece andar ao sol ou lua c comigo, e ningum tem nada a ver com o facto. - Enfimos as cabeas nas goelas do leo - comentou Wamba. - Retiremo-la's o melhor que soubermos. - Cala-te - ordenou Gurth. - No ofendas com as tuas maluqueiras, pois confio que tudo correr bem.
Captulo XX Nas longas e medonhas noites outonais, Quando, no meio da mata, se perde o tino, Como soam ao peregrino divinais Vozes de eremito entoando um hino. A msica recebe tom da devoo. Da devoo recebe o seu andamento; E como as aves ao Sol dando gratido. Sobem doces e bem fortes ao firmamento. - O Eremita de St. Clement's Well Passadas umas trs horas de bom andamento, os criados de Cedric e o misterioso guia chegaram a uma pequena clareira na floresta, no centro da qual se erguia um imenso carvalho, cujos ramos se estendiam para todos os lados. Debaixo dele estavam deitados quatro ou cinco homens, enquanto outro, de guarda, passeava dum lado para o outro, ao luar. Ao som de passos, a sentinela deu imediatamente alarme, fazendo levantar os que dormiam, que pegaram nas suas armas. Seis flechas em cordas tensas apontavam para o ponto donde vinham os caminhantes. Reconhecido o guia, descontraram-se e acolheram-nos com todas as manifestaes de rude agrado. - Onde est Miller? - foi a primeira pergunta. - Na estrada para os lados de Rotherham. - Com quantos? - quis o guia, que parecia comand-los, saber. - Com seis homens, e a esperana dum bom saque, se So Nicolau assim o quiser, - Gosto da resposta - disse Loc sley. - E onde pra Allan-a-Dale? - Foi para as bandas de Watting espiar o prior de Jorvaulx. Tambm foi bem pensado - replicou o capito. - E o frade? - Est na cela. - Vou l ter com ele - informou Loc sley. - Separem-se e procurem os vossos companheiros. Reunam foras, pois h caa grossa vista, difcil de apanhar e que vai dar luta. Encontrem-se comigo ao raiar do dia. Dois de vs seguiro
rapidamente na direco de Torquilstone, o castelo de Front-de-Boeuf. Um grupinho de elegantes, mascarados para se parecerem connosco, levam para l prisioneiros. Vigiem-nos cuidadosamente, porque, mesmo que alcance o castelo, antes de agruparmos as nossas foras, ponto de honra para ns castig-los, tendo assim de conseguir meios para o fazermos. Olho neles, portanto. Mandem tambm um de vs, bem ligeiro, convocar gente por aqui em redor. Prometendo cumprir as ordens, partiram para as suas diversas misses, enquanto o chefe e os dois companheiros, que ora o olhavam com todo o respeito, se dirigiam para a capela de Copinanhurst.
Quando a avistaram, uma tnue luz iluminava a veneranda, se bem que arruinada, capela e o singelo eremitrio to apropriado a devoes ascetas, fazendo Wamba observar: "se esta a habitao do ladro, vem confirmar o velho provrbio 'Quanto mais perto da igreja, mais longe de Deus'. E, pela minha cachola", prosseguiu, "parece ser rigorosamente o caso. Escuta o que cantam! Na igreja!" De facto, o anacoreta e o seu convidado entoavam a plenos pulmes uma velha cano de taverna, com o seguinte estribilho: Traz, traz a bilha de grs! Rapaz, rapazote, Traz a bilha, mexe os ps. Hei! Aqui h gente sedenta; Rapaz, traz a bilha de grs!
- V l. No est mal cantado de todo - reconheceu Wamba acrescentando ao coro umas notas da sua lavra. - Mas quem esperaria msica desta saindo da cela dum eremita no meio da noite? - Como posso eu adivinh-lo? - respondeu Gurth. - O padre de Copinanhurst bem conhecido, sabendo-se que abate metade dos veados que com ele se cruzam. O couteiro j se queixou e so bem capazes de lhe despir o hbito e lhe dar uma ensinadela, um dia destes. Enquanto conversavam, os fortes batimentos de Loc sley conseguiram ser ouvidos pelo eremito e pelo companheiro. - Pelas contas do meu tero! - exclamou o primeiro suspendendo subitamente um floreado. - A vm mais hspedes colhidos pelas trevas. Pelas minhas vestes, no quero que apreciem os exerccios que praticamos. Todos os homens tm inimigos, Sr. Preguioso, e alguns h suficientemente malvolos para verem na refeio que, vo trs horas, vos tenho estado a oferecer, a vs, um exausto caminhante, como manifestaes de bebedeira e devassido, vcios perfeitamente contrrios minha profisso e disposio.
- Caluniadores infames! - explodiu o cavaleiro. - Gostaria de puni-los. Contudo, santo padre, verdade todos termos inimigos... Nesta terra mesmo, alguns h com quem preferiria falar atravs dos ferros da minha viseira do que a rosto descoberto. - Enfia to depressa quanto puderes a tua panela de ferro na cabea, enquanto guardo estes pichis, cujo contedo anda j aos encontres dentro da minha. para abafar o barulho que farei (estou com as mos pouco firmes), canta comigo o que ouvires cantar. Deixa para l a letra. Eu prprio no a sei bem. Passou a entoar um trovejante De profundis clamavi, que disfarou o escarcu que fazia a levantar a mesa. Simultaneamente, armou-se, enquanto o cavaleiro ria a bom rir. - Que matinas so essas, a estas horas - indagou uma voz do lado de fora.
- O Cu te perdoe, viajante! - respondeu o eremita, que, com o barulho que fazia e o muito que bebera, reconhecia uma fala que lhe era bem familiar - Segue o teu caminho e no perturbes as minhas devoes e as do meu bom irmo. - Padre maluco! Sou eu, o Loc sley! Abre! - Tudo em ordem - exclamou o eremita para o companheiro. - Quem ele? - interrogou o cavaleiro. - Interessa-me muito sab-lo. - Quem - repetiu o eremita. - Digo-te que um amigo. - Que amigo? - insistiu o cavaleiro. - Pode s-lo para ti e no para mim. - Que amigo? - ecoou o eremito. - A est uma pergunta mais fcil de pr do que de responder. Que amigo? Bem, agora me recordo. aquele guarda honesto de que te falei faz pouco. - Um guarda to honesto quanto tu s pior - sorriu o cavaleiro. - Acredito. Abre-lhe a porta, antes que lhe rebente os gonzos. Os ces, que de princpio haviam feito um estardalhao medonho, calaram-se como que reconhecendo quem falava. Alteraram completamente a sua atitude, passando a esgadanhar a porta, pedindo que deixassem entrar quem se encontrava do lado de fora. O eremita desaferrolhou-a e Loc sley e os seus dois acompanhantes Passaram para dentro. - Eremita - exclamou o arqueiro mal pousou os olhos no guerreiro -, onde foste descobrir este parceiro? - um irmo da minha ordem - informou o frade abanando a cabea. - Temos estado juntos a orar toda a noite. Monge militar, talvez - disse Loc sley. - H mais por a. Ouve, frade. Deixa u rosrio e pega no varapau. Precisamos de todos, leigos e religiosos. - De repente deu um salto para o lado e exclamou. - s doido? Deixaste entrar um cavaleiro que no conheces! Esqueceste as nossas regras?
- Cavaleiro que no conheo? Conheo-o como as palmas das minhas mos - afirmou descaradamente o frade. - Como se chama ele? - O nome dele ... - hesitou um pouco - Sir Anthony de Scrableston... Como se eu bebesse com desconhecidos. - Tu, frade, bebeste foi de mais - disse o monteiro. - Sabes como tenho medo de tagarelices. - Bom homem - disse o cavaleiro achegando-se -, no pegues com o meu jovial anfitrio. Ele apenas me estendeu a hospitalidade que eu lhe exigiria se ma tivesse negado. - Tu exigires-me coisas? - gritou o frade. - Deixa-me trocar o hbito cinzento por uma roupa verde e, se no conseguir que o meu varapau cante uma dzia de vezes no teu cocuruto, nem sou bom padre nem bom monteiro! Despiu o hbito, ficando de gibo e ceroulas, por cima das quais rapidamente enfiou outro gibo e umas bragas verdes. Ajuda-me a apertar isto - pediu a Wamba - e dar-te-ei um copo de vinho pelo trabalho. - Muito obrigado pelo copo - agradeceu Wamba -, mas no sei se ser correcto da minha parte ajudar-te a transformares-te de santo eremita em mateiro pecador. - No te aflijas - replicou o eremita -, confessarei o meu fato verde ao meu hbito cinzento e tudo ficar bem. - Amen! - entoou o bobo. - Um penitente bem arriado deve ter
um confessor de serapilheira. Creio tambm que o teu hbito perdoar tudo s minhas roupas pintalgadas. Ajudou o frade a apertar um sem-nmero de fitas e laos que o gibo e as bragas tinham. Nesse interim, Loc sley chegou-se perto do cavaleiro e, parte, observou-lhe: - No me negareis, Sr. Cavaleiro, que fostes vs quem deu a vitria ao lado ingls contra os estrangeiros, no dia do torneio de Ashby. - E que conclus da, bom homem? - perguntou o cavaleiro. - Ver-vos-ei como um protector dos fracos. - Esse um dos deveres dos autnticos cavaleiros, pelo menos - disse o Cavaleiro Negro. - Gostaria que de mim se no pensasse o contrrio. - Para o propsito que tenho em vista - continuou o monteiro - convm-me no s que sejas bom ingls, mas bom cavaleiro tambm. Preciso do auxlio de todos os homens bons, sobretudo se forem verdadeiros ingleses natos. - No existe ningum para quem a Inglaterra e os Ingleses tanto signifiquem como para mim. - Quero cr-lo do corao - disse o arqueiro. - Nunca esta terra precisou tanto daqueles que a amam como agora.
Escutai-me e contar-vos-ei o que penso fazer. Se fordes o que dizeis ser, tereis no plano um lugar de honra. Um bando de patifes, disfarados de gente bem melhor do que eles, apossaram-se dum nobre ingls chamado Cedric, o Saxo, da sua pupila e de aThelstane de Conningsburgh, tendo-os levado para um castelo nesta floresta conhecido como Torquilstone. Peo-vos que, como ingls e bravo cavaleiro, que ajudeis a salv-los. - Os meus votos a isso me obrigam - respondeu o cavaleiro. Gostaria contudo que, de vossa prpria vontade, me disssseis quem sois e porque me pedis ajuda. - Sou - respondeu o monteiro - um homem sem nome. Amo, porm, a minha terra e os que dela so amigos. Esta descrio tem de te bastar para j, principalmente se tu prprio desejas continuar desconhecido tambm. Acredita que, quando dou a minha palavra, ela to vlida como as tuas esporas de ouro. - No ponho dvidas - afirmou o cavaleiro. - Conheo bem as fisionomias dos homens e na tua leio honestidade e resoluo, Nada mais te perguntarei e estarei a teu lado para a libertao dos cativos. Feito isso, espero que nos separemos com mais conhecimentos um do outro e ambos satisfeitos. - Pronto - disse Wamba, que, vestido o frade, se deslocara para o extremo da diviso, onde no pudera deixar de escutar a parte final da conversa. - Temos ento mais um aliado! Entendo ser o valor deste cavaleiro de melhor liga do que a da f do eremita e a da honestidade do arqueiro Loc sley. Este parece um ladro de veados e o padre um hipcrita dos grandes. - Cala a boca, Wamba! - recomendou Gurth. - Pode muito bem ser assim, mas, mesmo que fosse o Diabo, com chifres e tudo, que me viesse oferecer prstimos para a libertao de Cedric e Lady Rowena, acho que no seria suficientemente religioso para no lhos aceitar e junt-lo s minhas fileiras. O frade estava agora totalmente vestido como um homem livre, com espada e boldri, arco e aljava e uma grande alabarda ao
ombro. Deixou a cela frente do grupo, cerrou cuidadosamente a porta e escondeu a chave junto da soleira. - Ests em condies de funcionar, frade? - riu-se Loc sley. - Ou os copos ainda te andam volta dentro da cabea? - com uma gotinha da gua da fonte de Saint Dunstan, o zumbido que l tenho dentro e a moleza que sinto nas pernas passaro. Aproximou-se da pia de pedra, onde bailavam ao luar as bolhas formadas pela gua a correr, e bebeu uma golada tal que parecia querer esvaziar a fonte. - J alguma vez havias bebido tanta gua, santo clrigo de Copinanhurst? - perguntou o Cavaleiro Negro. - Nunca, desde que a minha pipa rachou, deixando fugir o lquido que continha por vias ilegais, limitando-me bondade do meu patrono, aqui.
Mergulhou a cabea e os braos na gua, que lhe apagou todos os traos da pardia nocturna. Fresco e sbrio, o prazenteiro monge fez girar, em trs dedos apenas, a alabarda sobre a cabea, como se fosse um junco, e perguntou, ao mesmo tempo: - Onde esto esses falsos raptores que levam donzelas contra a sua vontade? Que os diabos me levem se no sou homem para uma dzia deles! - Praguejas, santo padre! - lembrou o Cavaleiro Negro. - No me venhas com santos, nem com meios santos - replicou o padre paisana. - Por So Jorge e pelo Drago, deixei de ser o frade de cabea rapada quando enverguei a minha roupa verde. Posso beber, praguejar e namorar como qualquer outro homem da floresta de West Riding. - Anda, padre - mandou Loc sley. - Fazes mais barulho do que um convento inteiro, noite, depois de o abade se ter ido deitar... Venham tambm, meus senhores. O tempo urge. Temos de juntar todas as nossas foras e braos que pudermos e seremos sempre poucos se tivermos de assaltar o castelo de Reginald Front-de-Boeuf. - Qu?! Foi o Front-de-Boeuf - exclamou o Cavaleiro Negro quem assaltou sbditos reais, na estrada real? Tornou-se ladro e opressor? - Opressor sempre foi - comentou Loc sley. - E, quanto a ser ladro, duvido se alguma vez teve metade da honestidade de qualquer salteador meu conhecido - acrescentou o padre. - Silncio! Mexe-te e cala-te - ordenou o arqueiro. Conduz-nos ao ponto de encontro e no fales de coisas que tm de ser caladas por decncia e cautela.
Captulo XXI Oh! Quantos dias passaram! Anos at, Desde que algum nesta mesa se sentou, Vela ou lanterna nela rebrilhou! Julgo ouvir a voz do tempo passado Murmurando forte na sala vazia. Na arcada sombria soam sons antigos,
Daqueles h muito dormindo na tumba. - Orra, Uma Tragdia Enquanto iam sendo tomadas estas medidas para ajuda de Cedric e dos seus companheiros, os homens armados que os haviam capturado apressavam-se para o local onde tencionavam mant-los como prisioneiros. A noite caa depressa e as trilhas da floresta, que no eram bem conhecidas pelos assaltantes, tinham-nos obrigado a fazer diversas paragens e por mais de uma vez a voltar atrs para retomarem a direco pretendida. Era j alvorada quando, por fim, se viram na rota certa. A confiana e a cavalgada deslocavam-se agora muito mais rapidamente. Travava-se o seguinte dilogo entre os dois bandidos-chefes: - chegado o momento de nos deixar, Sir Maurice - disse o Templrio para De Bracy -, para que possais preparar a segunda parte do drama. A seguir representareis o papel de Cavaleiro Salvador. - Pensei melhor - respondeu De Bracy - e no te abandonarei antes de a nossa presa estar segura no castelo de Front-de-Boeuf. A surgirei perante Lady Rowena tal como sou e acredito que ela me perdoar, ante a veemncia da minha paixo, a violncia de que sou culpado. - E que vos fez alterar o plano? - perguntou o Templrio. - No de vossa conta - respondeu o companheiro. - Espero, Sr. Cavaleiro - ps o Templrio -, que esta mudana de ideias no resulte de suspeitas em relao minha honrada pessoa em si inculcadas por Fitzurse.
- Os meus pensamentos so meus - foi a resposta de De Bracy - e o Diabo sempre se ri quando um ladro rouba outro ladro. Tambm sabemos que nem raios nem coriscos conseguem evitar que um templrio leve um propsito seu para diante. - Ou que um comandante de mercenrios - contraps o Templrio - no tenha medo dum camarada amigo, pois que em todos v m-f. - Essa uma acusao v e perigosa - retorquiu De Bracy. Bastar dizer-te que conheo a moralidade dos Templrios e que por isso te no darei o ensejo de te apossares da bela presa pela qual tantos riscos corri. - Ora! - exclamou o Templrio. - Que temeis? Conheces os votos da minha ordem. - Sei-os de cor - disse De Bracy - e tambm a forma como os seguis. Lembrai-vos, Sr. Templrio, de que as leis da galanteria so muito lassas na Palestina, e, neste caso, no confio na vossa conscincia. - Escuta ento - pediu o Templrio. - Aquela beleza de olhos azuis nada me interessa. H no grupo muito melhor companhia... - O qu? Baixar-te-ias a cortejar a aia? - surpreendeu-se De Bracy. - No, Sr. Cavaleiro - retorquiu altivamente o Templrio, No me baixo perante aias. Prefiro apenas um prmio melhor do que o teu. - Pela Santa Missa! Referes-te judia! - bradou De Bracy. - E se for? Quem me vai impedi-lo?
- Ningum que eu conhea - reconheceu De Bracy -, parte os teus votos e a conscincia quanto a uma ligao com uma judia. - Quanto aos meus votos - explicou o Templrio -, o nosso gro-mestre concedeu-me dispensa. No que se refere conscincia, um homem que matou trezentos sarracenos no pode olhar a pequenas faltas como qualquer donzela da aldeia confessando-se na vspera duma sexta-feira Santa. - Sabers melhor que ningum os teus privilgios - concordou De Bracy. - No entanto, julgava estarem os teus pensamentos mais nas sacas de dinheiro do usurrio do que nos olhos negros da filha. - Posso admirar ambos - disse o Templrio -, alm de que o velho judeu s meio prmio, pois tenho de dividir o esplio com Front-de-Boeuf, que nunca nos emprestaria o castelo de graa. Tinha de deitar as unhas a qualquer coisa que fosse apenas para mim, entre aquilo que saquemos, e a bela judia ser a minha compensao muito especial. Agora, que sabes das minhas intenes, segues agarrado ao teu projecto? Nada tens a temer. - No - insistiu De Bracy. - Ficarei ao lado da minha presa. O que contas pode ser verdadeiro, mas no gosto de privilgios
obtidos por bulas de gro-mestre e de mritos conseguidos pelo abate de trezentos sarracenos. Tens direitos de mais para conseguires uma absolvio total para que possas apoquentar-te com meros pecadilhos. Enquanto estes dois falavam, Cedric tentava arrancar aos que o guardavam indicaes sobre as suas pessoas e o que pretendiam: - Deveis ser ingleses - disse -, e, mesmo assim, Cu, assaltais os vossos compatriotas como se normandos fsseis. Sereis talvez meus vizinhos, logo, amigos meus. No existe ingls que o no seja... Garanto-vos, homens, que, mesmo aqueles de vs que passaram a fugir da lei, sempre gozaram da minha proteco, j que sempre lhes lamentei a misria e combati a opresso que os nobres sobre eles exercem. para que me quereis? para que vos serve a violncia? Sois piores do que os animais nos vossos actos e imitai-los com o vosso silncio? Cedric argumentou e tornou a argumentar com os guardas, mas eles tinham bons motivos para se calarem e no lhe respondiam, nem raiva, nem ao arrazoamento. Seguiram bem depressa, at que, no extremo duma lea de rvores gigantescas, avistaram Torquilstone, o antigo castelo, agora pertena de Front-de-Boeuf. Era uma fortaleza no muito grande, formada por um torreo ou torre quadrada cercada de edifcios mais baixos dando para um ptio interior. Em redor da muralha exterior havia um fundo fosso, que um regato abastecia de gua. Front-de-Boeuf, cujo temperamento o levava a tremendos feudos com os seus adversrios, tinha-lhe feito vrios acrescentos, reforando-o com torres em todos os ngulos da muralha. O acesso fazia-se, como era prprio da poca, por uma barbac arcada, defendida por dois pequenos torrees em cada esquina. Cedric, logo que avistou as plmbeas fortificaes do castelo de Front-de-Boeuf elevando-se, cobertas de musgo e batidas pelo sol da manh, de dentro da mata que as cercava, comeou a compreender melhor as razes do que lhe sucedera. - Fui injusto - disse - para com os ladres e proscritos desta
floresta pensando que estes bandidos faziam parte dos seus bandos. Foi como se confundisse as raposas destes silvados com os ferozes lobos de Frana. Informai-me, ces: a minha vida ou os meus haveres que o vosso amo pretende? Ser demasiado dois saxes, como eu e o nobre Athelstane, possuirmos terras na nao que era patrimnio da nossa raa? Que nos matem completando a tirania que iniciaram cerceando-nos a liberdade. Se Cedric, o Saxo, no pode salvar a Inglaterra, est disposto a morrer por ela. Diz ao teu tirnico amo que eu somente lhe rogo que deixe Lady Rowena seguir honrosamente e em boa paz. Ela mulher e ele nada ter a temer-lhe, pois connosco desaparecero todos os que ousam defender a sua causa.
Os criados prosseguiram na sua mudez, e todos, entretanto, chegaram ao porto. De Bracy entoou por trs vezes a sua trompa e os arqueiros e besteiros que guarneciam a muralha acorreram a baixar a ponte levadia para que passassem. Os prisioneiros, obrigados pelos guardas a desmontar, foram conduzidos a uma sala, onde lhes foi servida uma refeio rpida, refeio que todos recusaram, com a excepo de Athelstane, e mesmo este nobre descendente do Confessor no teve tempo para honrar as iguarias que lhe eram apresentadas, j que um dos captores deu a entender, a ele e a Cedric, que iam ser encerrados numa sala, separados de Rowena. Qualquer resistncia era intil, pelo que se deixaram conduzir para um pequeno quarto, com toscas colunas saxnicas, semelhantes s dos refeitrios e salas de captulo que ainda hoje se podem encontrar nos mosteiros mais antigos. A Lady Rowena separaram-na, com cortesia mas sem a consultarem, do seu squito e levaram-na para um aposento distante. A mesma alarmante distino foi dada a Rebeca, no obstante os inmeros rogos do pai, que chegou a oferecer dinheiro para que a no tirassem de ao p de si. - Descrente mesquinho - rosnou um dos guardas -, quando vires o covil que te foi reservado, no querers a tua filha junto de ti. - E, sem mais comentrios, o velho judeu foi arrastado fora para um lado diferente dos demais presos. Os criados, aps terem sido revistados e desarmados, seguiram tambm para outras dependncias do castelo, sem sequer terem deixado Elgitha para atender sua ama. O apartamento onde os dois chefes saxes foram confinados (pois ser para eles que voltaremos a nossa ateno), embora no momento servisse como sala da guarda, fora primitivamente o grande salo do castelo, relegado depois para funes de menor importncia porque o novo senhor, entre outros aumentos de convenincia, segurana e embelezamento, mandara construir um outro novo, cujo tecto abobadado se apoiava em colunas mais graciosas e ornamentais do que os Normandos j haviam includo na arquitectura local. Cedric percorria o apartamento carregado de pensamentos indignados, quer a propsito do presente, quer do passado, enquanto o seu companheiro aguentava com toda a pacincia e filosofia tudo, exceptuando o desconforto da ocasio. E at isto pouco sentia, pois somente de tempos a tempos se limitava a dar uma resposta vaga s imprecaes de Cedric.
- Sim - dizia Cedric, falando mais para si do que para Athelstane -, foi neste salo que meu pai deu uma festa, juntamente com Torquil Wolfganger, em honra do valente e infeliz Harold, que ento partia contra os Noruegueses, que se haviam aliado ao rebelde Tosti. Foi dentro destas paredes que Harold proferiu a sua magnnima resposta ao embaixador do irmo revoltoso. Muita vez escutei meu pai narrando e tornando a narrar a histria. O enviado de Tosti fora admitido. Quando aqui chegou, quase no cabia mais ningum, de cheio que estava com a nobreza saxnica que bebia sade do seu monarca. - Espero - observou Athelstane, um pouco mais atento a este pormenor - que no se esquecero de nos mandar vinho e comida para o almoo... quase nem nos deram tempo para o pequeno-almoo, e nunca tiro proveito das refeies quando as como logo a seguir a ter andado a cavalo, embora os mdicos sejam de opinio contrria. Cedric prosseguiu sem prestar a mnima ateno interrupo do amigo: - O enviado de Tosti atravessou a sala, indiferente aos olhos carregados que sobre ele caam, e inclinou-se frente ao trono de Harold. "Em que termos, Majestade", perguntou "poder vosso irmo depor as armas e estabelecer a paz convosco?" O generoso Harold gritara-lhe ento: "Amor fraterno e o belo condado de Northumberland". "Mas, caso Tosti aceite essas condies", continuou o enviado, "que terras sero oferecidas ao seu leal aliado, o rei da Noruega?" com ferocidade, Harold respondeu: "Sete palmos de terra inglesa, ou, uma vez que dizem ser Hardrada um gigante, talvez um palmozito mais." O salo vibrou s aclamaes e taas e chifres de beber foram erguidos sade do noruegus, que em breve ocuparia territrio ingls. - Eu teria de o saudar em esprito, porque tenho a lngua colada ao cu da boca - taramelou Athelstane. - O confuso diplomata - seguiu Cedric todo animado, se bem que no estivesse interessando o seu ouvinte -, retirou-se para transmitir a Tosti a funesta resposta do irmo ofendido. Foi ento que as distantes torres de Iorque e as sangrentas correntes do Derwent(1) presenciaram o combate em que, aps terem demonstrado o maior valor, *1.. Em edies anteriores surgiu, neste ponto, um enorme engano topogrfico. A feroz batalha mencionada no texto, que o rei Harold travou e venceu contra o seu irmo, o rebelde Tosti, e um corpo de dinamarqueses ou nrdicos, era, nelas, localizada em Stamford, no Leicestershire, junto do rio Welland. Tratava-se dum engano em que o escritor foi induzido por ter confiado na prpria memria, confundindo dois locais de nomes iguais. Stamford, Strangford ou Staneford, onde a batalha realmente aconteceu, um vau no rio Derwent, a cerca de dez quilmetros de Iorque, e situado naquele grande e rico condado. Uma comprida ponte de madeira sobre o Derwent, da qual ainda resta um pilar, foi duramente disputada. Um noruegus isolado defendeu-a por muito tempo, at que o trespassaram com uma lana enfiada por entre as pranchas de madeira, manejada por algum num barco. Nas redondezas de Stamford, no Derwent, encontram-se muitas recordaes do combate, como ferraduras, espadas, pontas de alabardas ou de chuos. Determinado ponto conhecido por "The Danes" ["Os Dinamarqueses"] e outro como "Battlet flats" (Baixos da Batalha"). Devido tradio, rezando que a arma
que abateu o herico noruegus teria o feitio de pra, embora haja quem afirme ser o barco a ter tal formato, a gente do campo tem por costume iniciar a grande feira que se realiza em Stamford com uma brincadeira que denominam a festa do "Pear-pie" ["Empada de pras"], o que ser uma corruptela de festa do "Spear-pie" ["Empada de lana"). A histria de Iorque, de Dra e, d mais pormenores acerca da batalha, que ocorreu em 1066. A ateno do autor para o equvoco foi alertada, o mais delicadamente possvel, pelo Sr. Robert Belt, de Bossal House. (Fim da nota)
tanto o rei da Noruega como Tosti pereceram, juntamente com dez mil dos seus mais bravos soldados. Quem imaginaria, no glorioso dia em que aquela pugna fora vencida, que o mesmo vento que desfraldava as bandeiras saxnicas em triunfo enfunava j as velas dos Normandos, empurrando-os para as fatdicas praias do Sussex? Quem acreditaria que Harold, dentro de poucos dias, no possuiria mais terra, no seu reino, do que aquela que, na sua fria, destinara ao invasor noruegus? Quem pensaria que vs, nobre Athelstane, descendente sanguneo de Harold, e eu, cujo pai no foi um dos piores defensores da coroa saxnica, seramos encarcerados por um vil normando, exactamente no salo onde os nossos antepassados to grande festa ofereceram? - realmente triste - reconheceu Athelstane. - Conto que no nos exijam resgates muito grandes. De qualquer forma, no creio que nos queiram fazer morrer de fome. J deve ser meio-dia e no aparece jantar nenhum. Espreitai pela janela, nobre Cedric, e vede pelo sol se no ser mesmo meio-dia a passar. - Pode acontecer que seja - respondeu Cedric -, mas no consigo espreitar por aqueles vidros tingidos sem despertar outras recordaes que nada tm a ver com o momento actual e as privaes que passamos. Quando aquela janela foi montada, meu nobre amigo, os nossos pais desconheciam a arte de fazer vidro, quanto mais a de o tingirem. Foi o orgulho de pai de Wolfganger que fez trazer um arteso da Normandia para aplicar nesta sala este novo tipo de decorao que divide a luz dourada do dia do Senhor em tantos e fantsticos matizes. O estrangeiro chegou aqui pobre, mendigante, bajulante e subserviente, sempre a tirar o chapu a todo e qualquer nacional, mesmo aos mais inferiores da casa. Regressou amimado e altivo para relatar aos seus rapazes compatriotas da riqueza e simplicidade dos nobres saxes... uma loucura, oh, nobre Athelstane!... loucura j muito antes profetizada e prevista por aqueles descendentes de Hengist e das suas ferozes tribos que mantiveram a sua pureza de costumes. Tratmos aqueles estrangeiros como amigos do peito, como criados de confiana.
Pedimos-lhes emprestados os artistas e as artes, desprezando a singeleza e robustez em que os nossos maiores tinham vivido, deixando-os dominar-nos pelas artes normandas muito antes de
sucumbirmos s suas armas. Muito melhor teria sido o termo-nos atido nossa dieta simples, mas servida em paz, do que virarmo-nos para esses requintes luxuosos, que tanto passmos a apreciar a ponto de nos tornarmos servos de conquistadores estranhos. - Eu - falou neste momento Athelstane - consideraria qualquer humilde dieta um verdadeiro luxo. estranho, nobre Cedric, como vos recordais to bem de feitos passados e esqueceis a hora do jantar. - perder tempo - resmungou Cedric em aparte e sem pacincia - falar com ele de qualquer coisa que no seja do agrado do seu apetite! O esprito de Hardicanute possuiu-o e no tem outro prazer que no seja empanturrar-se, embebedar-se e bramir por mais. Que pena! -, exclamou, olhando para Athelstane com compaixo - que um esprito to tapado tenha ocupado um corpo to perfeito. Que pena que uma empresa to importante como o a restaurao da Inglaterra tenha de girar em gonzo to perro. Talvez cansando-se com Rowena, a alma dela, mais nobre e mais generosa, possa despertar-lhe algo de melhor, na altura entorpecido dentro dele. Mas, como poder isso verificar-se se Rowena, Athelstane e eu estamos prisioneiros deste brutal bandido que, qui, assim ter agido por temor quilo que a nossa liberdade poderia acarretar contra o poder usurpado pela sua gente?! Foi durante estas reminiscncias dolorosas do Saxo que a porta da priso se abriu para deixar entrar um mordomo com a vara indicativa da sua funo na mo. Este grave personagem avanou pausadamente, seguido por quatro 'ajudantes transportando uma mesa carregada de pratos, cujo aroma aliviou Athelstane dos aborrecimentos sofridos at ento. As pessoas que os vinham servir estavam encapotadas e de mascarilhas. - Que farsa esta? - proferiu Cedric. - Julgais sermos prisioneiros ignorando quem o senhor deste castelo? Dizei-lhe - continuou, aproveitando o ensejo para negociar a liberdade -, dizei ao vosso amo, Reginald Front-de-Boeuf, que sabemos no haver outro motivo para nos tirar a liberdade que no seja a sua ilegal pretenso de se tornar mais rico nossa custa. Dizei-lhe ainda que acederemos sua ganncia tal como, em circunstncias idnticas, acederamos a um vulgar ladro. Que nos indique o valor do resgate que calcula corresponder nossa liberdade e ser pago, desde que as suas exigncias condigam com as nossas possibilidades. O mordomo nada disse, limitando-se a baixar a cabea. - E dizei a Sir Reginald Front-de-Boeuf - interps aThelstane - que eu o desafio para combate de morte, a p, a cavalo, em qualquer local isolado, trs dias aps a minha libertao,
o que, se de facto um cavaleiro, nem recusar, nem protelar. - Transmitirei as vossas mensagens ao cavaleiro - respondeu o mordomo - enquanto comeis. Diga-se que o repto de Athelstane fora lanado com muito pouca elegncia, j que uma boca atafulhada exigindo esforos a ambas as queixadas, em conjunto com a usual hesitao do nobre, pouco efeito incutia ao arrojado convite. Mesmo assim, aquele discurso foi considerado por Cedric como um despertar
de nimo do seu companheiro, cuja indiferena anterior lhe principiava a moer a pacincia. Apertou-lhe a mo cordialmente, demonstrando-lhe toda a sua aprovao, que rapidamente, porm, diminuiu quando aThelstane observou que "lutara com uma dzia de homens como Front-de-Boeuf se, graas a isso, pudesse apressar a sada do calabouo onde tanto alho se punha na sopa". Apesar desta manifestao de retorno apatia e gulodice, Cedric sentou-se-lhe na frente e depressa revelou que, se os males da sua terra o faziam esquecer os alimentos, quando no vista, a sua presena logo lhe trazia todo o apetite dos seus antepassados saxes. Os cativos apreciavam gostosamente a sua refeio quando a ateno lhes foi violentamente chamada por um troar de trompa ao porto. Foi por trs vezes repetido, com tanta fora como se fosse tocado por um cavaleiro frente a um castelo encantado, cujas torres, salas, barbacs e muralhas se desfariam em p perante tais sons. Os saxes saltaram da mesa e abeiraram-se das janelas. Nada viram, contudo, pois davam para o ptio do castelo e o chamado vinha de fora. Deveria ser de grande importncia tambm, dado o rebulio que logo provocou dentro da fortaleza.
Captulo XXII Minha filha... ducados meus... minha filha! meus ducados cristos! Justia... Lei... ducados meus, filha minha! - O Mercador de Veneza Deixando os chefes saxes de volta com o seu banquete logo que a sua insatisfeita curiosidade lhes recordou a vontade ainda no satisfeita de comer, apreciemos as muito mais duras condies de priso impostas a Isaac de Iorque. O pobre judeu fora atirado para um crcere do castelo, enterrado muito abaixo do nvel do solo, mais fundo do que o fosso, e portanto carregado de humidade. A pouca luz ali recebida provinha de duas frestas altas, s quais no se podia chegar com as mos. Permitiam, mesmo com o Sol a prumo, apenas a passagem duma luz difusa e vaga, que se tornava escurido logo que aquele baixasse um pouco. Correntes e grilhes, empregues noutros prisioneiros para lhes travar qualquer tentativa de fuga, pendiam, ferrugentos e vazios, das paredes da masmorra. Nos aros dum desses cadeados viam-se dois ossos bolorentos, talvez duma perna humana, como se um preso no s tivesse sido deixado acol, mas tambm abandonado at s dele restar o esqueleto. Num dos extremos deste antro medonho havia uma grande grelha sobre a qual se entrecruzavam barras de ferro semicarcomidas. O aspecto da masmorra e o perigo iminente, que deveriam fazer gelar a alma dos mais valentes, dera, pelo contrrio, a Isaac uma calma que no ostentava quanto a temores cuja causa era ainda remota e contingente. Dizem os caadores que a lebre sente mais durante a perseguio dos galgos do que quando estrebucha entre as fauces deles.(1)
*1.. De modo nenhum garantimos a veracidade desta afirmao sobre um pormenor de histria natural, que transcrevemos baseados no Manuscrito de Wardour. (N. do T.)
provvel que os judeus, dada a frequncia dos seus pavores em todas as ocasies, tivessem as mentes de qualquer maneira adaptadas a todas as formas de agresso sobre eles exercida que nenhuma existisse j que, quando realmente acontecesse, contivesse para eles o elemento surpresa, que a mais contundente caracterstica do terror. No era, de facto, a primeira vez que Isaac se encontrava em situao to perigosa. Gozava, pois, da experincia para o aconselhar, alm da esperana de poder, como anteriormente, escapar como a presa escapa ao caador. Acima de tudo, dispunha da tenaz obstinao da sua raa e aquela firmeza com que, sabido, os Israelitas aguentam os mais pavorosos males que o poder e a violncia possam sobre eles descarregar, sem ceder exigncia dos seus martirizadores. Neste estado de resistncia passiva, embrulhado nas suas roupas para evitar o contacto com o cho empapado, Isaac, num canto, com as mos apertadas, os cabelos e as barbas desgrenhados, a capa forrada e barrete alto, quela luz tnue, seria um modelo para um estudo de Rembrandt, se aquele clebre pintor tivesse vivido naquele perodo. O Judeu manteve-se imvel durante cerca de trs horas, ao fim das quais ouviu passos nos degraus conduzindo ao crcere. Os ferrolhos correram com rudo, os gonzos chiaram e a porta abriu-se para Reginald Front-de-Boeuf, que, seguido pelos dois sarracenos do Templrio, entrou na masmorra. Front-de-Boeuf, alto e forte, cuja vida se passara entre guerras e feudos e questinculas pessoais e que no olhava a meios para levar to longe quanto pudesse o seu poder feudal, tinha feies correspondentes ao seu carcter, claramente revelando as mais ferozes e perversas paixes. As cicatrizes que se lhe cruzavam no rosto, se fossem na cara de outro, provocariam compaixo ou respeito pelo que de valor significariam. No caso dele, apenas lhe acresciam a ferocidade de expresso. O tremendo baro envergava um gibo de couro bem justo ao corpo, roado e sujo pela armadura. Alm dum punhal, a um dos lados da cinta, contrabalanando o peso do molho de chaves direita, no trazia qualquer outra arma. Os escravos negros que atendiam Front-de-Boeuf tinham-se libertado das suas faustosas vestimentas, mostrando agora calas de linho grosseiro e jaquetas com as mangas arregaadas at acima dos cotovelos, como os carniceiros quando se preparam para o trabalho no aougue. Ambos pegavam em pequenos cabazes e, logo que entraram no calabouo, estacaram porta, enquanto Front-deBoeuf, com cuidado, fechava a porta, dando-lhe duas voltas. Tomada esta precauo, avanou lentamente em direco do Judeu, de quem no despegava os olhos, como que desejando paralis-lo com a vista, como de alguns animais se diz que hipnotizam as suas presas.
Na verdade, parecia que o funesto e prfido olhar de Front-de-Boeuf possua parte desse suposto poder sobre o infeliz prisioneiro. O Judeu conservava-se, de boca entreaberta, olhos postos no selvagem baro, com um Pavor to intenso que, literalmente, parecia encolher-se e diminuir de tamanho sob o exame fsico e calamitoso do duro normando. O desgraado Isaac estava perfeitamente impossibilitado de se levantar para o cumprimentar como o terror lhe recomendava e nem sequer conseguia retirar o gorro ou balbuciar qualquer splica de to perturbado com as torturas e possvel morte que sabia prximas. Pelo contrrio, a imponente estatura do normando aparentava crescer, como a guia que enfuna as penas antes do bote final sobre a sua vtima. Parou a trs passos do canto onde o Judeu se recolhera e fez sinal a um dos escravos para que se acercasse. Um dos negros obedeceu e tirou do cabaz uma grande balana e vrios pesos, que colocou aos ps de Front-de-Boeuf iniciou o acto dirigindo-se assim ao seu pobre cativo: - Co danado duma raa de ces danados - disse, tornando a voz cava e fazendo-a soar nas arcadas da priso -, vs esta balana? O desafortunado assentiu debilmente. - Pois bem, nelas me pesars mil libras de prata, de acordo com os Pesos e medidas da Torre de Londres. - Pai Abrao! - exclamou o Judeu, a quem o perigo dera finalmente voz. - Quem ouviu alguma vez falar num pedido dessa ordem? Quem, mesmo em contos de menestris, ouviu mencionar uma importncia de mil libras de prata? Quem jamais pousou os olhos num fabuloso tesouro desses? Nem em Iorque, saqueassem a minha casa e a de todos da minha tribo, se encontraria um dcimo dessa imensa quantidade de prata de que falas. - Sou razovel - respondeu Front-de-Boeuf -, e, se h falta de Prata, aceitarei ouro. Ao cmbio de um marco de ouro por cada seis libras de prata, salvars essa tua incrvel carcaa de castigos como nunca imaginaste pudessem existir. - Tende piedade de mim, nobre cavaleiro - implorou Isaac. Sou velho, pobre e desamparado. Vencer-me no requer valor. Esmagar uma minhoca nada . - L velho s - concordou o cavaleiro -, para vergonha de quem te deixou ganhar cs na usura e na patifaria... Fraco pode ser que sejas, pois desde quando tm os judeus corao? Mas rico sabido que o s. - Juro-vos, nobre cavaleiro - disse o Judeu -, por tudo aquilo em que creio e pelo que em comum temos... - No Perjures! - interrompeu-o o normando. - No deixes que a tua teimosia dite a tua sorte, antes de saberes e ponderares qual o fim que te aguarda. No creias que falo para te assustar mais e para me aproveitar da covardia da tua gente.
Se no me acreditares, juro-te, Por aquilo em que no acreditas, pelo Evangelho que a Igreja nos ensina e pela autorizao que goza de prender e soltar quem quiser, que o meu intento firme e inabalvel. Esta masmorra no lugar para brincadeiras. Presos dez mil vezes mais importantes do que tu morreram dentro destas paredes e nunca mais ningum
tornou a ouvir falar deles. para ti reservo uma longa e continuada agonia, comparada com a qual as que eles sofreram seriam verdadeiramente suaves. Novamente fez os escravos aproximarem-se e cochichou na lngua deles, pois tambm estivera na Palestina, onde talvez tivesse colhido alguns ensinamentos de crueldade especial. Os sarracenos tiraram dos cabazes carvo de choa, tenazes e uma garrafa de azeite. Enquanto um, com fuzil e pederneira, preparava o lume, o outro espalhava o carvo na grelha que mencionmos e com um fole levava-o ao rubro. - Vs, - disse Front-de-Boeuf -, aqueles ferros por cima do carvo em brasa (2)? - Irs deitar-te naquele leito aquecido, sem roupas, como se fosse a tua Prpria cama. *2.. Esta horrenda tortura poder recordar ao leitor aquela outra que os Espanhis aplicaram a Guatimozin para lhe arrancarem o segredo do local onde escondera o seu tesouro. Na verdade, temos, ainda mais prxima, neste pas, uma barbaridade semelhante, constando de anais, da poca da rainha Mary, que no s falam desta como de outras atrocidades. os leitores estaro recordados que, aps a igreja catlica ter sido banida e o governo da igreja presbiteriana ter sido estabelecido por lei, a posio e, sobretudo, o rendimento da riqueza dos bispos, abades e priores deixaram de pertencer a eclesisticos, passando para beneficirios seculares ou, como os sndicos escoceses os denominavam, titulares de benefcios temporais que no gozavam dos direitos espirituais dos seus predecessores em ofcio. Destes laicos, donatrios dos rendimentos eclesisticos, alguns eram pessoas bem nascidas e de posio, como o famoso Lorde James Stewart, prior de Saint Andrews, que para si conservavam a utilizao dos valores de rendas, terras e proventos da Igreja. Se, por outro lado, esses titulares fossem de condio inferior, iados ao lugar por interesses de algum poderoso, era implcito que o novo abade teria de conceder ao seu patrono a parte de leo dos arrendamentos e doutros contratos referentes a terrenos e dizimas. Daqui se criou a espirituosa designao de bispos tulchan [uma tulchan uma vitela empalhada que se coloca junto duma vaca que perdeu a cria para que aquela continue a dar leite. A semelhana entre uma tulchan e um bispo nomeado para passar benefcios temporais para mos superiores evidente], uma espcie de prelados fictcios, cuja imagem era construda para que o seu patrono e patro pudesse, sob o nome deles, apropinquar-se com a melhor parte dos benefcios recolhidos. Casos, porm, havia em que indivduos que tinham conseguido concesses e benefcios seculares de que no queriam largar mos, mas para o que no gozavam de influncia local bastante, eram forados, por incapacidade pessoal para os manterem, a submeterem-se s exigncias do tirano feudal da regio. Bannatyne, secretrio de John Knox, relata um singular caso de opresso praticado sobre um desses abadei titulares pelo conde de Cassilis, no Ayrshire, cujo poder feudal era vasto, a ponto de ser conhecido como o rei de Carric . Transcrevemos o facto tal como surge no dirio de Bannatyne, lembrando apenas que o seu escritor seguia os pontos de vista do patrono, quer a respeito do conde de Cassilis, como opositor da faco real, quer como absolutamente contrrio ao sistema que apoiava a
transferncia dos rendimentos da Igreja para titulares, em lugar de serem utilizados em fins mais pios, como auxlio ao clero, escolas e caridade para com os pobres. Mistura, na sua um tanto confusa narrativa, justificada repulsa contra o tirano que se servia da tortura em tom ridicularizante para com o torturado, como se, afinal de Contas, o martrio no fosse imprprio para criaturas to ambguas e escorregadias. Intitula-se a histria A TIRANIZAO PELO CONDE DE CASSILIS DUM HOMEM VIVENTE "Mestre Alan Stewart, amigo do capito James Stewart, de Cardonall, obtivera da corrupta corte da rainha a abadia de Crossraguel. O dito conde, julgando-se acima do rei, naquelas bandas, determinou que usufruiria da mesma (como j fazia com diversas outras) para seu bel-prazer, mas, como no conseguia garantias certas para aquilo que o seu insacivel apetite exigia, gizou o seguinte plano: mestre Allan, que vivia na companhia de Laird de Bargany (Um Kennedy tambm), foi tentado pelo conde e amigos a deixar essa proteco e vir divertir-se juntamente com o citado conde. Alterada a sua simplicidade natural, aquele imprudente indivduo Passou a dividir o seu tempo, parte em Maybole, com Thomas Kennedy, tio do citado conde, parte, calmamente, segundo dizia, visitando o local e terras de Crossraguel [a sua abadia], pelo que o mencionado conde, ao disso tomar conhecimento, resolveu pr em prtica formas tirnicas que h muito Concebera. Deste modo, e como rei da regio, prendeu o dito mestre Allan e levou-o para a casa de Denure, onde, durante toda uma estao, foi honrosamente tratado (se que um prisioneiro pode achar qualquer tratamento agradvel), mas, depois de alguns dias terem decorrido, e como o conde no pudesse conseguir o feudo de Crossraguel, que o eu desejo ferventemente apetecia, procurou verificar se por meio duma refeio, a que nenhum almoo ou jantar se comparava, o alcanaria, pelo que o levou para um compartimento secreto. Fazia-lhe companhia o respeitvel conde, o respeitoso irmo e os criados destacados para o servio do banquete. No quarto havia uma grelha sobre um braseiro. Nenhum outro alimento estava vista. O primeiro prato foi assim: "Sr. Abade", disse o conde, "confessai, por favor, ser de vontade prpria que ficastes na minha companhia porque outra no desejais". Ao que o abade respondeu: "Quereis, senhor, que minta para vos dar prazer? A verdade que estou aqui contrafeito. Na realidade, nunca apreciei a vossa companhia." Disse ento o conde: "Todavia, ficareis na mesma comigo." Disse o abade: "No me possvel contrariar-vos aqui dentro.' "Deveis obedecer-me", disse o conde, apresentando-lhe simultaneamente certas cartas para assinar, entre as quais havia promissrias, de cinco e dezanove anos, e uma carta de cedncia de todas as terras de Crossraguel, incluindo clusulas suficientemente necessrias ao conde para o levar para o Inferno. Como o adultrio, o sacrilgio, a opresso brbara e a crueldade e furto em cima de roubo merecem o Reino dos Infernos, o grande rei de Carric no podia fugir-lhe por tanto tempo como o imprudente abade o conseguiu por uma estao. "Assim, verificando a sua repulsa e que de bons modos no alcanaria o que queria, mandou os seus cozinheiros prepararem o banquete. Estes esfolaram o carneiro, ou seja, despiram o abade at ficar com tudo ao lu. Depois amarraram-no chamin, com as pernas para um lado e os braos para o outro, e comearam a alimentar o fogo, ora com as ndegas, ora com as
pernas e, s vezes, com os ombros e braos. para que no crestasse e ficasse em condies, foram untando-o, muito bem untado, com azeite (tal como os cozinheiros deitam molho nos assados). "Senhor! Que crueldade!" E, para que a gritaria do pobre homem no pudesse ser ouvida, taparam-lhe a boca de modo que a sua voz no sasse. Podia at supor-se que algum dos participantes do assassinato do rei [Damley] ali se encontrasse. Mantiveram-no naquele tormento at que o infeliz rogou a Deus que o despachasse depressa, pois s Ele detinha poder para lhe acabar com as dores. O famoso rei de Carric e os seus cozinheiros, percebendo estar o assado em condies, ordenou que o retirassem, comeando o prprio conde a abeno-lo assim: "Benedicite, Jesus Maria, sois o homem mais teimoso que at hoje encontrei. Se soubesse que reis to obstinado, no vos teria dado este tratamento, desta maneira, nem que fosse por mil coroas. Nunca fiz tanto por ningum como por ti". Passados dois dias, deu-lhe dose igual e no parou sem ter conseguido os seus intentos, isto , tudo to bem assinado quanto uma mo meio assada o poderia fazer. O conde, julgando-se seguro de si enquanto tivesse o abade assado sua guarda, mas, ao mesmo tempo, envergonhando-se com a sua presena, vistas as crueldades a que o submetera, deixou a residncia de Denure ao cuidado de certos criados e o abade, meio cozido, l dentro, prisioneiro. O Laird de Bargany, companhia de quem o abade fora arrancado, percebendo (no at que ponto) que o indivduo fora preso, foi a tribunal e conseguiu termos de libertao, a que o conde desobedeceu, pelo que foi dado como rebelde. No havia, no entanto, esperanas, nem de o martirizado ser liberto, nem de o remetente das cartas obter qualquer alvio, Deste modo, naquela altura, Deus foi desprezado, a autoridade desafiada na Esccia, todos esperando sbita mudana do governo daquele cruel assassino da prpria carne, como os lordes chamavam ao conde. E, todavia, mais do que uma vez prestara vassalagem ao rei e ao seu regente. O autor do dirio prossegue relatando as queixas do lesado Allan Stewart, comendador de Crossraguel, ao regente e ao Conselho Privado, declarando ter sido aliciado, parte por lisonja, parte fora, para a escura masmorra de Denure, uma slida fortaleza, construda sobre a rocha, frente ao canal da Irlanda, onde as suas runas existem ainda hoje. Comunicou ter-lhe sido exigido que assinasse determinadas concesses e facilidades de todas as igrejas e curatos pertencentes Abadia de Crossraguel, o que recusara como impensvel, tanto mais que j as havia transferido para John Stewart de Cardonall, a interesse de quem fora nomeado comendador. O queixoso segue explicando que, depois de ameaado, despido, amarrado e os seus membros passados pelo fogo, da forma j descrita, obrigado pelo seu extremo sofrimento, assinara a carta e as promissrias que lhe foram apresentadas e cujo contedo ignorava completamente. Alguns dias mais tarde, sendo convidado a ratificar aqueles documentos perante um tabelio e testemunhas, recusou-se, pelo que tornou a ser submetido mesma tortura, o que, na sua dor, o obrigou a exclamar: "Malditos! Porque no me empalais ou fazeis explodir com plvora, em vez de assim, implacavelmente, me torturardes?", aps o que o conde mandou que Alexander Richard, um dos seus ajudantes, o amordaasse com um guardanapo, ordem que foi cumprida, Deste modo, teve, uma vez mais, de se submeter. A petio terminava informando que o conde, baseado nos
documentos assim conseguidos, tomara posse de Crossraguel, onde vivera e gozam por trs anos. A sentena do regente e do Conselho revela claramente a total ausncia de Justia durante aquele calamitoso perodo, mesmo em questes perfeitamente flagrantes. O Conselho declinou interferir no decorrer de processos de justia do condado (que se encontrava inteiramente sob o controlo do conde de Cassilis) e somente decretou que mandaria que deixassem de molestar o Pobre comendador com a garantia de duas mil libras escocesas. Ao conde foi tambm decretado que deixasse em paz o clebre George Buchanan, dentro da mesma abadia e, em condies semelhantes, sujeito a igual castigo. As consequncias so-nos descritas no dirio: "O mencionado Laird de Bargany, entendendo que justia corrente no ajudava nem oprimidos, nem aflitos, resolveu aplicar novo remdio pelo que, Pela mo de criados seus, assaltou a casa de Denure, onde o desgraado abade estava preso. O rumor correu de Carric at Galloway, e logo se reuniu um grupo de assalariados e mercenrios do bando dos Kennedies, pelo que, em coisa de horas, a casa de Denure foi cercada. O senhor de Cassilis foi o mais arrojado e no perdeu tempo, pelo que, na sua raiva, deitou fogo masmorra, vangloriando-se de que todos os inimigos, dentro da casa, morreriam. "Foi-lhe pedido, aps repreenso dos que estavam l dentro, que fosse mais moderado e no se arriscasse to loucamente. Foi tudo em vo, at que um tiro de arcabuz lhe chamuscou um ombro e lhe abrandou a ira. O Laird de Bargany tinha, anteriormente, obtido das autoridades cartas recomendando a todos os sbditos fiis a Sua Majestade que o auxiliassem contra o cruel tirano e traidor declarado, o conde de Cassilis, cujas cartas e contedo particular publicou, depressa conseguindo a concorrncia de Kyle e Cunynghame e outros amigos, que fizeram que os do grupo de Carric sassem da habitao. Outros a ela se chegaram at a encherem de gente, soltaram o dito Allan e levaram-no para Ayre, onde, publicamente, em frente do cruzeiro do mercado dessa vila, declarou como fora cruelmente tratado, que nem o rei assassinado sofrera tormentos como ele, s com a diferena de que ele no morrera. Por esse motivo, abertamente refutava tudo quanto fizera em extremos, revogando especialmente a assinatura dos trs escritos, nomeadamente as promissrias de cinco e dezanove anos e a carta de foro. A casa ficou e continua a ficar (at este dia 7 de Fevereiro de 1571) a cargo do dito Laird de Bargany e seus criados. A crueldade no venceu nem lucrou e ser eternamente castigada, a no ser que o arrependimento surja depressa. Esta crueldade serviu de exemplo a outros, como nobres degenerados, para que passassem a dar mais ateno ao seu comportamento e evitassem exp-los perante o mundo para que no se envergonhassem da prpria bestialidade e para que as pessoas ficassem avisadas e prontas a recusar, detestar e evitar a companhia desses tiranos que no tm lugar na sociedade humana, devendo ser mandados para o Diabo, junto de quem ardero eternamente pelo seu desrespeito a Deus e crueldade contra a Sua obra. Que Cassilis e o irmo sirvam de exemplo aos demais! Amen! Amen!" Este extracto foi corrigido e ligeiramente modernizado quanto ortografia de modo a torn-lo compreensvel aos leitores comuns. Acrescentarei que os Kennedies de Bargany, que
intervieram a favor do abade martirizado, eram dum ramo mais recente da famlia Cassilis, mas de vistas completamente diferentes e suficientemente poderosos para, neste e noutros casos, a assomarem. O resultado final desta ocorrncia no nos contado. Contudo, como a casa de Cassilis ainda detm os feudos e foros que pertenceram Abadia de Crossraguel, de crer que as garras do rei de Carric tenham, nesses desvairados tempos, tido fora bastante para reterem a presa a que se haviam prendido. Direi tambm que, segundo documentos em meu poder, os agentes, ou country eepers [guardas regionais], da fronteira (entre a Inglaterra e a Esccia) costumavam torturar os seus presos amarrando-os s grades dos foges para lhes arrancarem confisses. (Fim da nota que abrangia vrias pginas.)
Um dos escravos manter o fogo em brasa por debaixo de ti, enquanto outro te untar com azeite os miserveis membros para que o assado no fique queimado... Escolhe, agora, entre aquela cama escaldante e o pagamento de mil libras de prata, pois, pela alma de meu pai, no existe outra opo. - impossvel - exclamou o miservel judeu, - impossvel que o vosso propsito seja verdadeiro. O bom Deus nunca permitiria a existncia dum corao assim to cruel! - No te fies nisso, Isaac - respondeu Front-de-Boeuf -, pois cairias num erro fatal. Julgas que eu, que j assisti ao saque duma cidade, no qual milhares de cristos, compatriotas meus, pereceram sob ferro e fogo e guas, irias agora desviar-me do meu propsito devido aos berros dum nico e miservel judeu?... Ou ser que pensas que estes tipos morenos, que no tm nem lei, nem conscincia, que no seja o desejo de seu amo (ao mnimo aceno de quem empregaro veneno, chuo,
punhal ou cordas), tero d de ti, quando nem mesmo entendem a fala em que ela lhes implorada?... Tem juzo, velhote. Alivia-te duma parte da tua suprflua riqueza. Pe em mos crists um bocado daquilo que tens arrancado pela usura sobre os da mesma religio que as destas mos.
A tua sagacidade saber encher de novo a tua bolsa mirrada. No existem, porm, sanguessugas ou remdios capazes de te tornarem a dar a pele e carne crestadas, que viro quando te estirar naquelas barras. Paga o teu resgate e alegra-te por
poderes escapar duma masmorra cujos segredos poucos puderam revelar. No gasto mais palavras contigo. Escolhe entre o teu vil metal e a tua pele e ossos e, conforme escolheres, ser. - Valham-me Abrao, Jacob e todos os patriarcas do meu povo.
- Evocou Isaac. - No posso escolher porque no disponho de meios para atender vossa exorbitante exigncia! - Agarrem nele e dispam-no, escravos! - ordenou o cavaleiro. Que os seus patriarcas o ajudem, se puderem. os ajudantes, obedecendo mais ao olhar do baro do que s suas palavras, prenderam o infortunado Isaac contra o cho e, segurando-o, aguardaram novo sinal do fidalgo. O infeliz judeu remirava-lhes os rostos, deles e de Front-de-Boeuf, buscando qualquer prova de compaixo. O do baro continuava frio, com o mesmo sorriso, entre o carrancudo e o sarcstico, que apresentara desde o incio, e os dos selvagens sarracenos, onde rolavam os olhos com um vago brilho sob as espessas arcadas, tinham tomado uma expresso ainda mais sinistra mostrando o branco que lhe rodeava a ris e revelando um prazer mrbido pelo que ia acontecer, a par de nenhuma relutncia em serem eles a lev-lo a cabo. O Judeu olhou ento para a fornalha incandescente sobre a qual iria em breve ser estirado e, percebendo no existir qualquer possibilidade de d da parte do seu torcionrio, tomou uma deciso. - Pagarei - disse - as mil libras de prata... Quero dizer acrescentou, aps uma hesitao -, pagarei com a ajuda dos meus irmos, depois do que terei de mendigar porta da sinagoga, j que nunca conseguirei juntar essa soma de que ningum, nunca, ouviu falar. Quando e onde dever ser feita a entrega? - Aqui - informou Front-de-Boeuf -, entregue aqui, aqui pesada e contada no cho deste mesmo calabouo. Cuidavas que me separaria de ti sem ter o resgate nas mos? - E qual a garantia - quis o Judeu saber - que terei em como me soltareis depois do pagamento? - A palavra dum nobre normando, escravo penhorista - bradou Front-de-Boeuf -; a f dum nobre normando, que mais puro do que o ouro e a prata que tu e a tua tribo tm. - Peo perdo, nobre senhor - fez Isaac timidamente -, mas como posso eu confiar na vossa palavra se no confiais na minha? - Porque no tens outra forma - disse severamente o cavaleiro. - Estivesses tu neste momento na tua tesouraria, em Iorque, e necessitasse eu de alguns cequins, serias tu quem ditaria o prazo de pagamento e as garantias. Esta a minha tesouraria. Estou em vantagem e no me dignarei a repetir os termos sob os quais te restituirei a liberdade. O Judeu gemeu profundamente. - Concedei-me - pediu -, pelo menos, juntamente com a minha, a liberdade dos companheiros com que viajava. Insultaram-me por ser judeu, mas, mesmo assim, apiedaram-se da nossa desgraa e foi por terem perdido tempo comigo que parte da minha pouca sorte veio a cair sobre eles. Alm de que podero contribuir tambm para a realizao do valor do resgate.
- Se te ests a referir queles rsticos saxes, l dentro declarou Front-de-Boeuf -, o seu resgate tem outros termos que no os teus. Importa-te com o que te respeita, Judeu. Aviso-te
de que no te metas nos assuntos dos outros. - Serei ento - perguntou o Judeu posto em liberdade apenas com o meu amigo ferido? - Terei de repetir - exclamou Front-de-Boeuf - a este filho de Israel que se meta na prpria vida e deixe o resto em paz?... Fizeste a escolha e s te resta pagar o resgate, e isso mesmo depressa. - Mesmo assim, escutai-me - rogou o Judeu, - Pelo prprio valor da riqueza que ireis obter graas vossa... - Parou, temendo irritar o selvagem normando. Front-de-Boeuf apenas se riu e completou a frase incompleta, a partir donde o Judeu hesitara: - ... custa da minha conscincia, tu, Isaac, ias dizer. Fala! Sou razovel. Aguento as censuras dum perdedor, mesmo que esse perdedor seja judeu. No foste to paciente, Isaac, quando invocaste a justia contra Jacques Fitzdotterel por te ter chamado uma sanguessuga usurria, quando as tuas exigncias lhe devoravam o patrimnio. - Juro pelo Talmude - gritou o Judeu - que estais mal informado sobre o caso. Fitzdotterel sacou do punhal contra mim, em minha casa, quando lhe pedi a minha prata. O prazo de pagamento vencera-se na Pscoa. - No me interessa o que ele fez - disse Front-de-Boeuf. - A questo simples: quando recebo o meu? Quando recebo o dinheiro, Isaac? - Deixai minha filha, Rebeca, ir a Iorque - respondeu o Judeu - com um salvo-conduto, nobre cavaleiro, e, dentro do tempo que um homem, a cavalo, leva a ir e vir, o tesouro ser... nesta altura gemeu, para logo prosseguir - contado neste mesmo cho. - Tua filha! - bradou Front-de-Boeuf! como que surpreendido. - Pelos Cus, Isaac, eu deveria ter adivinhado. Julgava que aquela moa trigueira fosse tua concubina e dei-a como aia a Sir Brian de Bois-Guilbert, segundo o costume que os patriarcas e heris do passado nos deixaram como exemplo. O grito que Isaac soltou ao receber esta lancinante informao fez a abbada vibrar e surpreendeu os dois sarracenos a ponto de o largarem, o que ele aproveitou para se pr de jorro no solo e abraar os joelhos de Front-de-Boeuf. - Levai tudo que pedistes - implorou -, Sr. Cavaleiro, levai dez vezes mais, arrastando-me para a runa e mendicidade, se quiserdes... No! Cravai-me o vosso punhal, queimai-me naquele braseiro, mas poupai a minha filha, pondo-a, com honra, em liberdade! Pela me que vos gerou,- conservai a honra da indefesa donzela! Ela o retrato da minha falecida Raquel e a ltima de seis provas do nosso amor. Quereis privar um vivo do seu derradeiro apoio? Quereis fazer que um pai deseje ver a
sua nica filha morta e enterrada ao lado da me, na tumba dos antepassados? - pena - disse o normando, cedendo ligeiramente - que no tivesse sabido disso antes. Julgava que a tua raa somente amava sacas de moedas. - No penseis to mal de ns, judeus que somos - pediu Isaac, procurando explorar aquele instante de simpatia aparente. - A raposa perseguida, o gato bravo torturado, todos amam as suas crias... A desprezada e perseguida raa de Abrao ama os seus
filhos. - Se assim - disse Front-de-Boeuf -, acredit-lo-ei daqui em diante por considerao para contigo... mas de nada vale agora. No posso evitar o que aconteceu, nem o que se lhe seguir. Dei a minha palavra a um companheiro de armas e no vou quebr-la, nem que fosse por dez judeus e judias juntos. Alm disso, porque ters medo que possa algo ter acontecido rapariga como cativa de Bois-Guilbert? - Acontece! Acontece, de certeza! - bradou Isaac, torcendo as mos em aflio. - Desde quando que os Templrios no so cruis para com os homens e desonrosos para com as mulheres? - Co infiel! - berrou Front-de-Boeuf com os olhos fuzilantes e, talvez, satisfeito com este pretexto para dar largas sua fria. No blasfemes contra a santa Ordem do Templo de Sio e pensa somente em me pagares o resgate prometido, ou ento acautela as goelas. - Ladro! Vilo! - chamou-o o Judeu, respondendo aos insultos do seu opressor com uma raiva que, embora impotente, no conseguia dominar. - No vos pago nada... nem um tosto... sem que a minha filha seja honrosamente libertada! - Perdeste o juzo, israelita? - perguntou duramente o normando. - Tero a tua pele e carne magia que as proteja dos ferros em brasa e do azeite a escaldar? - No quero saber disso! - bradou o Judeu, levado ao desespero pelo amor paternal. - Faz o pior. A minha filha a carne da minha carne e muito mais querida do que estes membros que ameaas. No te darei prata alguma, a no ser que pudesse despej-la derretida por essa garganta de avarento... No, no te dou uma nica moeda, nazareno, nem que fosse para salvar a tua alma danada das penas eternas que a esperam. Toma a minha vida, se quiseres, e ficars sabendo que um judeu, mesmo torturado, sabe impor-se a um cristo. - Vamos ver isso - rosnou Front-de-Boeuf -, pois, pelo Santo Lenho, que a tua tribo tanto odeia, vais sentir o que o ferro e o fogo. Dispam-no, escravos, e prendam-no sobre as barras. Debalde e debilmente resistiu o velho. Os sarracenos, que j lhe tinham arrancado o manto, tratavam de o despir completamente, quando o som duma corneta, vindo do castelo,
chegou at queles fundos, ouvindo-se, logo a seguir, vozes chamando por Front-de-Boeuf. Agastado por ter de suspender a sua diablica inteno, fez sinal aos escravos para tornarem a dar as roupas a Isaac e, juntamente com eles, deixou a masmorra e o Judeu a agradecer a Deus a sua sorte, ou a lamentar o cativeiro e destino da filha, o que, pessoalmente e como pai, deveria ser bem pior.
Captulo XXIII Pois bem. Se o esprito gentil da palavra No consegue mudar-te a maneira de pensar, Tento-te, como soldado, de armas na mo, E, contrariamente ao amor, forar-te-ei.
- Dois Fidalgos de Verona O apartamento para onde Lady Rowena fora levada estava rudemente ornamentado e ostentava certa magnificncia, o que indicava marcas de considerao para com ela que nem a todos eram estendidas. A mulher de Front-de-Boeuf, para quem fora preparado, morrera, porm, h muito, pelo que o desleixo e o tempo tinham quase feito desaparecer todos os embelezamentos que esta lhe tentara, conforme o seu gosto, acrescentar. As tapearias caam em muitos pontos e mostravam-se j desbotadas e comidas noutros, devido ou luz do Sol ou sua antiguidade. Por muito desolador que fosse, como era, a diviso fora vista como a mais apropriada para a herdeira saxnica, que ali fora deixada ficar chorando o seu fado at que os autores do nefando drama se sentissem bem cientes dos papis que lhes tinham sido distribudos numa reunio a que assistiram Front-de-Boeuf, De Bracy e o Templrio e durante a qual, aps longo e acalorado debate, no concernente s vantagens de cada um na audaciosa empresa, fora decidida a sorte dos infelizes prisioneiros. Era cerca de uma hora da tarde quando De Bracy, em favor de quem a expedio fora, em princpio, organizada, surgiu para concretizar os seus objectivos quanto mo e fortuna de Lady Rowena. O intervalo no fora, naturalmente, unicamente dedicado reunio com os seus companheiros, pois De Bracy aproveitara-o tambm para adornar a sua pessoa com todos os atavios da poca. Retirara o casaco verde e a mascarilha, deixando o cabelo longo e abundante cair-lhe em complicados entranados sobre a capa ricamente forrada de peles. A barba fora bem escanhoada. O gibo chegava-lhe at meio da perna e o cinturo que o prendia, e donde, ao mesmo tempo, pendia a sua pesada espada, era todo trabalhado com embutidos de ouro.
J nos referimos moda extravagante dos sapatos que ento corria, mas os de Maurice de Bracy, ostentando pontas dobradas e retorcidas como chifres de cabra, bem mereceriam um primeiro prmio de excentricidade. Era assim que os janotas da altura se vestiam, acontecendo que, neste caso, a beleza, o bom porte, maneiras corteses e franqueza de soldado, muito realavam o todo. Cumprimentou Rowena tirando o gorro de veludo, onde brilhava um broche de ouro com a figura de So Miguel calcando o Prncipe do Mal. Simultaneamente, acenou dama para que se sentasse. Como ela se no mexesse, o cavaleiro retirou a luva da mo direita e fez pretenso de ser ele a lev-la at ao banco. Rowena, com um gesto, declinou o convite, dizendo: - Se estou na presena do meu carcereiro, Sr. Cavaleiro - e as circunstncias no me permitem pensar de outro modo -, fica melhor que a presa se conserve de p at saber do seu destino. - Perdoa-me, bela Rowena - retorquiu De Bracy -, mas estais perante o vosso prisioneiro e no o vosso carcereiro. Ser desses formosos olhos que De Bracy receber a sua sentena. - No vos conheo, senhor - disse a dama com altivez e
dignidade feridas, - No vos conheo e a insolente familiaridade com que empregais o palavreado dos trovadores no pode servir de capa a actos de bandidismo. - a ti, linda donzela - prosseguiu De Bracy no mesmo tom -, e aos teus encantos que tem de ser atribudo tudo quanto possa ter magoado o respeito devido rainha do meu corao e estrela dos meus olhos. - Repito, Sr. Cavaleiro, que vos no conheo e que homem algum, com cadeia e esporas, tem direito a impor a sua presena a uma senhora desprotegida. - realmente pouca sorte minha o ser-vos desconhecido concordou De Bracy -, mas permiti-me pensar que o nome De Bracy nem sempre tem sido esquecido quando menestris ou arautos se referem a feitos de armas, quer nas lias, quer nos campos de batalha. - Que os menestris e os arautos guardem ento o teu elogio, Sr. Cavaleiro - observou Rowena. - So mais prprios para as suas bocas do que para a tua(1). E a propsito, qual deles preservou em trovas ou anais de torneios a grande vitria desta noite, a vitria sobre um velho, acompanhado de poucos e tmidos criados, a quem raptaram uma infeliz donzela, que, depois, levaram fora para o castelo dos bandoleiros? *1.. Sir Walter Scott emprega, relembra-se, as segundas pessoas, do singular e do plural, indiferentemente. (N. do T.)
- Sois injusta, Lady Rowena - disse o cavaleiro normando, mordendo Os beios, perturbado e falando com mais naturalidade do que a daquela afectada galanteria que inicialmente empregara -; estais isenta de paixo, pelo que no perdoais o vibrar da de outros, mesmo quando provocada pela vossa beleza pessoal. - Peo-vos, Sr. Cavaleiro - disse Rowena -, que acabeis com essa linguagem, mais prpria de menestris vagabundos do que de cavaleiros ou nobres. Ireis obrigar-me a sentar-me se pensais continuar com essas banalidades, sobre as quais qualquer labrego capaz de palrar de agora at ao prximo Natal. Orgulhosa donzela - exclamou De Bracy, picado ao ver que o seu estilo galante apenas provocava desprezo -, sabei ento que manifestava as minhas pretenses vossa mo da forma mais apropriada ao vosso carcter. Ser, qui, mais conveniente faz-lo com arco e chuo na mo do que em fala corts e convencional. - Palavras corteses - respondeu Rowena - encapotando atitudes grosseiras no passam de cinturo de cavaleiro cinta dum palhao ordinrio. No me surpreende que o decoro vos incomode... melhor fora para vossa honra o manterdes a roupa e o vocabulrio dos fora-da-lei do que tudo pretenderdes ocultar sob uma falsa capa de termos e porte gentis. - Aconselhais-me bem - disse o normando. - Como linguagem audaz requer audcia, dir-te-ei que jamais saireis deste castelo a no ser como esposa de Maurice de Bracy. No aprecio entraves s minhas empresas, nem um nobre normando necessita de demasiados escrpulos no lidar com uma donzela saxnia, a quem faz a honra de lhe oferecer a mo. Sois orgulhosa,
Rowena, e digna de ser minha mulher. Que outra forma existiria para vos elevardes a posio honrosa e fidalga que no a de a mim vos aliardes? Como podereis escapar das grades duma casa de campo, onde os saxes se misturam com Porcos, a sua riqueza, para, gloriosamente, ocupardes, como mereceis, o vosso lugar entre aqueles que na Inglaterra contam pela sua beleza ou poder? - Sr. Cavaleiro - disse Rowena -, a granja que desprezais , desde a minha infncia, o meu abrigo, e, acreditai-me, quando a deixar... se isso algum dia vier a acontecer... ser ao lado de algum que aprendeu a no desdenhar o modo como fui educada. - Entendo o que me quereis dizer, senhora - replicou De Bracy -, embora possais julg-lo demasiado obscuro para a minha compreenso. No sonheis, porm, que Ricardo Corao de Leo torne para ocupar o trono e muito menos que Wilfred de Ivanho, o seu favorito, alguma vez vos possa conduzir at junto dele para que vos sade como noiva dum protegido. Outro pretendente sentir-se-ia, talvez, ciumento com o que haveis dito. Eu, firme no meu propsito, no me alterarei com uma paixo infantil e sem esperana como essa. Sabei, senhora, que esse rival se encontra em meu poder,
s dependendo de mim o revelar ou no o facto a Front-de-Boeuf, muito mais perigoso e zelozo do que eu e que no sabe ainda que ele se encontra neste castelo. - Wilfred, aqui? - exclamou, desdenhosa, Rowena. - Isso to verdadeiro como ser Front-de-Boeuf seu rival. De Bracy fixou-a durante algum tempo. - Desconhecers, de facto, a verdade? - perguntou. - No sabers que Wilfred de Ivanho viajava na liteira do Judeu? Um transporte pouco apropriado para um cruzado, cujo brao se destinava conquista do Santo Sepulcro - terminou, rindo-se, trocista. - Se est aqui - Rowena obrigou-se a um tom de indiferena, ainda que trmula de apreenso -, como pode ser ele rival de Front-de-Boeuf? Ou que mais ter a temer aqui para alm dum curto perodo de priso e um resgate honroso, como uso da cavalaria? - Rowena - perguntou o cavaleiro -, estars tu a cair no costumeiro erro do teu sexo, pensando que as rivalidades apenas dependem dos encantos femininos? Fica a saber que, alm de cimes por amor, os h, igualmente, a propsito de riqueza e ambio e que o nosso anfitrio afastar do seu caminho todos quantos representarem obstculos aos seus direitos sobre a baronia de Ivanho, to pronta, intensa e pouco escrupulosamente como se se visse preterido por uma donzela de doces olhos azuis. Se, contudo, acederdes minha corte, o campeo ferido nada ter a temer de Front-de-Boeuf. Em caso contrrio, poders desde j vestir-te de nojo, porque as mos de Front-de-Boeuf no sabem o que piedade. - Salvai-o, pelos Cus! - bradou Rowena, cuja firmeza cedia ao temor da possvel sorte do amado. - Posso... devo... esse o meu propsito - disse De Bracy. Porque, quando Rowena aceitar ser a noiva de De Bracy, quem ousar maltratar o seu parente, o filho do seu guardio e seu companheiro de juventude? Mas ter de ser o teu amor a
comprar-lhe a proteco. No sou um doido romntico que ajude ou melhore o futuro de quem pode vir a ser um srio obstculo entre mim e o objecto dos meus desejos. Emprega a tua influncia junto de mim e ser salvo... Recusa-ma e Wilfred morrer sem que tu fiques mais prxima da libertao. - A tua fala - respondeu Rowena - tem na sua brutal indiferena algo que no se coaduna com os horrores que pretendes transmitir. No creio nem que os teus fins sejam to baixos, nem vejo o teu poder assim to grande. - Agarra-te ento a essa suposio - disse De Bracy - at que o tempo te demonstre como ela falsa. O teu amado est no castelo e ferido... o teu querido amado. Ele uma barreira entre Front-de-Boeuf e aquilo que Front-de-Boeuf quer mais do que a beleza e ambio. Que lhe custar uma punhalada, um espetar dum dardo que lhe calassem a oposio para sempre?
Front-de-Boeuf, se tivesse relutncia em agir tanto s claras, poderia at deixar que as sanguessugas nele sugassem por tempo demasiado, ou permitir ao criado ou aia que dele cuidam o retirarem-lhe a almofada onde pousa a cabea, e Wilfred, no estado em que est, passaria sem efuso de sangue. Cedric tambm... - Cedric tambm! - repetiu Rowena. - O meu nobre e generoso guardio. Mereo o que sofro por, por lembrana do filho o ter esquecido. - Tambm a sorte de Cedric depende da tua deciso - continuou De Bracy. - Deixo-te para que nela medites. At aqui, Rowena aguentara esta difcil situao com inabalvel coragem porque no bem consciente do perigo como srio e iminente. A sua maneira de ser era naturalmente aquela que os fisionomistas atribuem s mulheres muito claras, ou seja, mansa, tmida e delicada. Fora, contudo, temperada, ou, melhor, endurecida, pela educao recebida. Acostumada a ver as vontades de todos, incluindo a de Cedric (alis, muito arbitrrio com os demais), vergarem-se aos seus desejos, adquirira uma espcie de coragem e autoconfiana que era de esperar nascesse da deferncia habitual e constante, dentro do crculo em que vivia. Dificilmente conceberia a possibilidade duma oposio sua vontade e, muito menos, v-la tratada com toda a indiferena. A sua altivez e o hbito de dominar no passavam, pois, de caractersticas fictcias sobrepostas ao que era, realmente, seu, pelo que a abandonaram ao reconhecer o perigo que encaravam, ela, o amado e o guardio. Sentindo o seu querer, cuja mnima exigncia sempre arrastara respeito e ateno, chocar-se com o dum homem de temperamento forte, feroz e decidido e em posio de superioridade, que estava disposto a empregar, toda ela quebrou perante ele. Olhando em redor, como se procurasse uma ajuda que no existia, Soltou algumas interjeies e, erguendo os braos, deixou-se tombar num acesso de desespero e dor. Era impossvel ver-se to bela criatura em tais extremos sem nada se sentir. Assim sucedeu com De Bracy que, embora pouco tocado, se viu embaraado. Na verdade, fora j longe de mais para recuar agora, mas Rowena, na situao que aparentava, no ouviria nem argumentos, nem ameaas. Passeava-se pela sala, ora a pedir dama que se acalmasse, o que fazia em vo, ora hesitando
quanto ao que fazer, Se, pensava ele, me comovo, com as lgrimas dela, que colherei das esperanas para a concretizao das quais tanto me arrisquei, seno troa do prncipe Joo e dos seus companheiros de pndega? "Mesmo assim", disse para consigo, "no me agrada o jogo que estou fazendo. No consigo encarar aquele belo rosto destroado pela dor, ou aqueles olhos
marejados de mgoas. Bem quereria que ela conservasse a sua arrogncia inicial ou, quando muito, que eu tivesse a alma trs vezes mais dura e danada do que a de Front-de-Boeuf! ". Agitado por estes pensamentos, apenas tentava reconfortar a infeliz Rowena, garantindo-lhe que, para j, no havia razo para tamanho desespero. Estava nisso quando o chamado da trompa "rouco e alcanando longe e bem" o interrompeu, como fizera aos demais ocupantes do castelo, suspendendo-lhes os diversos actos de avareza ou devassido a que se entregavam. De todos, talvez fosse De Bracy quem menos lamentou a interrupo, j que o seu contacto com Lady Rowena chegara a um ponto que via sem sada. Nesta altura entendemos ser conveniente dar aos leitores algumas provas mais representativas do que os frvolos incidentes desta parte da nossa histria para justificar um pouco os tristes casos que apresentmos. lastimvel o ter de se pensar que aqueles valentes bares, a cuja tomada de posio perante a coroa se devem as liberdades da Inglaterra, fossem, ao mesmo tempo, tremendos opressores e capazes de excessos contrrios no s s leis do pas, mas ainda quelas da natureza e humanidade. Infelizmente, basta-nos recorrer a um extracto do laborioso (Robert) Henry e, servindo-nos das passagens que recolheu dos historiadores, provarmos que a fico somente se aproxima da triste realidade dos horrores do perodo. A descrio que nos d o autor da Crnica Saxnica, a propsito 'das crueldades praticadas no reinado de Estvo (1135-1154) pelos bares e senhores dos castelos, todos normandos, constitui um bom exemplo dos excessos que praticavam quando davam largas s suas paixes. Oprimiam gravosamente os pobres, forando-os a construir-lhe castelos, que, quando prontos, enchiam de gente perversa, ou, melhor, diablica, que prendia os homens e as mulheres que julgasse de posses, os encerrava em masmorras e torturava para l do que muitos mrtires sofreram. Alguns afogavam-se em lodo, outros eram pendurados, pelos ps, pela cabea, ou pelos polegares, por cima de fogueiras. A uns apertavam-lhes as cabeas com cordas cheias de ns at lhes estoirarem com os miolos, a outros lanavam-nos em fossas repletas de vboras, cobras e sapos. No continuaremos para no ferir a sensibilidade de quem isto l.(2) Como outra amarga amostra dos frutos da Conquista e, qui, uma das mais ponderosas, mencionaremos que a princesa Matilda (1080-1118), se bem que filha do rei da Esccia e, mais tarde, rainha de Inglaterra, sobrinha de Edgar Atheling e me da imperatriz da Alemanha, filha, esposa e me de monarcas, durante a sua estada em Inglaterra, para onde fora educar-se,
foi obrigada a envergar hbito de freira como nica forma de poder escapar aos licenciosos avanos dos nobres normandos. Este fora, explicaria ela a um grande conselho religioso em Inglaterra, o nico motivo por que usara vestes religiosas. O clero, reunido, aceitou a validade da explicao e a admissibilidade das circunstncias em que se baseava, dando assim notvel testemunho da lamentvel licena que enodoava aquele tempo. Era do conhecimento pblico, diz-se, que, aps a Conquista pelo rei Guilherme, os seus seguidores normandos, envaidecidos por tamanha vitria, deixaram de reconhecer qualquer lei que no correspondesse aos seus deformados desejos, passando a roubar terras e haveres dos saxes vencidos e no hesitando em no lhes respeitar esposas e filhas. Era, portanto, vulgar as senhoras e meninas cobrirem-se com vus e recolherem-se em conventos, sem qualquer vocao monstica, mas apenas para defesa da sua honra. Assim desregrada era aquela poca, como consta duma comunicao pblica, feita pelo clero e registada por Eadmer, Nada mais precisamos, portanto, de acrescentar para confirmar a probabilidade das cenas anteriores, que pormenorizmos de conformidade com a autoridade apcrifa do Manuscrito de Wardour.
Captulo XXIV Cortej-la-ei como o leo corteja a leoa. - Douglas Ao mesmo tempo que as cenas atrs relatadas decorriam noutros sectores do castelo, Rebecca, a judia, aguardava o seu destino num pequeno torreo, para onde fora levada pelos seus raptores mascarados. Dentro da diminuta cela encontrava-se uma velha sibila resmungando uma cano saxnica a compasso com o fuso que fazia rodar. A bruxa levantou a cabea entrada de Rebeca, lanando linha judia um daqueles olhares de perversa inveja que a velhice e a fealdade, carregadas de maus pensamentos, descarregam sobre a juventude e a beleza. - Tens de sair daqui, barata caquctica - disse um dos homens. - O nosso nobre amo assim o exige. O quarto para esta formosa hspede. - Ai! - gemeu a velha -, assim que se pagam os bons servios. Ainda me lembro quando uma palavra minha fazia saltar da sela e perder o emprego a homens de armas to bons como o melhor de vs, enquanto agora qualquer moo de estrebaria, como tu, me manda levantar e ir-me embora. - Boa dama Urfried - disse outro dos homens -, no discutas e sai. os mandos do patro so para ser cumpridos a correr. o teu tempo j passou e ests no teu ocaso. s exactamente como
um velho cavalo de batalha que ceivaram finalmente no meio da urze seca... J deste muitos passos de cortesia, mas hoje nada mais podes realizar do que um trpego esquipar. Vamos, desaparece! - Que as fadas transformem ambos em ces - praguejou a velha e que a vossa campa seja cavada num canil! Que Zerneboc , o prfido demnio, vos arranque os membros se conseguirdes fazer-me ir l para fora antes de ter acabado de fiar este linho na minha roca. - Diz isso ao nosso amo, demnio - exclamou o homem, retirando-se e deixando Rebeca em companhia que certamente no apreciava.
- Que raio esto eles a fazer agora? - perguntou para si mesma a bruxa, olhando de revs e maldosamente para a rapariga. fcil de adivinhar... Olhos brilhantes, caracis negros, pele como papel antes de o padre o manchar com os seus unguentos... Ai!, simples adivinhar porque a mandaram para este solitrio torreo, onde os gritos se ouvem to bem como se viessem de cento e cinquenta metros abaixo do cho. Ters mochos por companhia, minha beleza, e os pios deles chegaro to longe como os teus berros. Nem de c - acrescentou, notando o vestido e o turbante de Rebeca. - De que pas s tu? Sarracena? Egpcia?... Por que no respondes? Choras! Por que no falas? - No te zangues, piedosa me - disse Rebeca. - escusado dizeres mais - exclamou Urfried -; as raposas conhecem-se pelo rabo e as judias pelo falar. - Por piedade - implorou Rebeca -, diz-me o que devo esperar como resultado da brutalidade que me trouxe at aqui. Ser a minha vida que pretendem, para que expie pela minha crena? D-la-ei de boa vontade. - A tua vida, querida? - repetiu a sibila. - Que prazer lhes daria o tirarem-ta? Acredita-me: a tua vida no corre perigo. Sers usada como, em tempos, acharam por bem usar uma nobre donzela saxnia. E ter uma judia como tu de se queixar por isso? Olha para mim. Era to jovem e duas vezes mais bela do que tu quando o Front-de-Boeuf, o pai de Reginald, e os seus normandos invadiram este castelo. O meu pai e os seus sete filhos defenderam o que era deles andar a andar, quarto a quarto. Nem um s quarto, nem um s degrau, ficou sem sangue deles. Mas morreram. Morreram todos, e ainda os seus corpos no se tinham arrefecido e o seu sangue coagulado e j eu era presa e objecto de troca dos vencedores. - No existe possibilidade de ajuda? No h meios de fuga? perguntou Rebeca. - Recompensaria fabulosamente o teu auxlio. - No penses nisso - disse a bruxa. - Daqui no h sada se no para as portas da morte... e ser tarde, demasiado tarde acrescentou, abanando a cabea grisalha. - Mesmo quando essas se abrissem para ns... Ser, no entanto, agradvel saber-se que deixaremos neste mundo outros que sofrero tanto como ns. Passa bem. Judia, ou crist, a tua sorte ser igual, pois tens de enfrentar quem no possui nem escrpulos, nem piedade. Passa bem, repito. Acabei de fiar... A tua tarefa ainda est por principiar. - Fica, pelo Cu, fica! - pediu Rebeca. - Fica, nem que seja para me amaldioar e injuriar... A tua presena j constituir
um pouco de proteco. - A presena da Virgem Maria no me serviu de proteco respondeu-lhe a mulher. - Ei-la, ali. - Apontou para uma imagem da Virgem. - V se ela capaz de te salvar do que te espera. Saiu com o rosto contorcido numa espcie de ricto escarnecedor que ainda a tornava mais repulsiva do que aquilo que j era.
Cerrou a porta, deixando Rebeca a ouvir-lhe as pragas atiradas contra os degraus ngremes que desciam do torreo. Rebeca, agora, apenas podia aguardar um destino bem pior do que o de Rowena. Realmente, que probabilidades existiriam de algum estender a mesma meiguice ou cerimnia, ainda que simuladas, dirigidas herdeira saxnia, a um membro da raa oprimida? No entanto, a judia estava melhor preparada, quer pela sua fora de vontade, quer pelos seus hbitos de pensamento, a enfrentar os perigos vindouros. Desde tenra idade, de temperamento forte e observador, sem que a pompa e a riqueza que o pai ostentava dentro de portas e aquelas que se notavam nas casas de outros hebreus abastados lhe tivessem alguma vez vendado os olhos quanto s circunstncias precrias em que os da sua gente viviam. Como Dmocles, no clebre banquete, Rebeca sempre sentira, dentro de todo esses esplendores, a espada que, presa por um cabelo, pendia sobre as cabeas do seu povo. Estas concluses tinham dominado e levado para um plano de raciocnio mais ponderado a sua maneira de ser, que, noutras circunstncias, talvez se orientasse para a altivez, sobranaria e teimosia. De seu pai tomara o exemplo e recebera recomendaes para tratar cortesmente todos que dela se aproximassem. No conseguia, certo, imitar-lhe os extremos de subservincia, visto a mesquinhez mental e o constante estado de tmida apreenso que lhe so inerentes lhe serem completamente desconhecidos. Comportava-se com orgulhosa humildade, submetida dolorosa situao que ocupava como uma filha da raa maldita, mas simplesmente consciente de merecer posio bem mais alta, em virtude dos seus mritos, do que aquela que preconceitos religiosos lhe deixavam aspirar. Deste modo, sempre pronta a esperar a adversidade, adquirira grande firmeza para actuar quando nela envolvida. O momento exigia toda a sua presena de esprito e, por isso, tudo fazia para o fortalecer. Primeiramente inspeccionou o apartamento, que poucas esperanas de fuga ou proteco oferecia. No existia nele qualquer passagem secreta ou porta falsa, e, fora a entrada por onde viera, parecia ser totalmente rodeado pela parede exterior do torreo. A porta no tinha do lado de dentro qualquer fecho ou barra. A nica janela dava para um ptio ameado acima do torreo, que, primeira vista, deu a Rebeca algumas ideias de poder fugir por ali. Depressa, porm, verificou que no permitia qualquer ligao com o resto das muralhas, no passando duma varanda fortificada, isolada e, como era usual, com um parapeito com seteiras, onde se poderiam dispor alguns arqueiros para a defesa do torreo e do muro do castelo daquele lado.
No havia, pois, outra hiptese que no a resistncia passiva e a grande confiana no Cu, prpria das personalidades perfeitas e generosas. Rebeca, ensinada a interpretar erradamente as promessas das Escrituras ao povo eleito, no cara, mesmo assim, no erro de crer ter chegado o momento do julgamento ou pensar que os filhos de Sio seriam, um dia, chamados a receber tudo o que os gentios j gozavam. para j, tudo lhe mostrava tratar-se duma altura de castigo e provao, sendo dever seu aguent-los sem pecar. Mentalizada para se ver como uma vtima do azar, Rebeca, que se conhecia, encheu-se de foras para enfrentar os perigos que, de certeza, viriam. A prisioneira, apesar de tudo, estremeceu e perdeu a cor quando escutou passos na escada e a porta do torreo se abriu lentamente, deixando passar um homem alto, vestido como os bandidos que os haviam atacado. O barrete, enterrado at aos sobrolhos, cobria-lhe parte da face, sendo o resto tapado pela ponta do manto que segurava. Neste disfarce, aparentemente destinado a encobrir a realizao duma aco de que ele prprio se envergonhava, deixou-se ficar parado perante a amedrontada presa. Por muito reles que fosse a sua indumentria, tudo indicava estar embaraado quanto forma de expor as razes que o haviam trazido at ali, dando tempo a Rebeca para se antecipar s suas declaraes. Retirou duas pulseiras e um colar valioso, que ofereceu ao suposto bandoleiro, na suposio de que, amansando a sua cobia, ganharia algo para si. - Tomai-os - disse -, bom amigo, e, por Deus, sede compassivo para comigo e para com o meu idoso pai. Estas jias so valiosas, mas autnticos nadas comparadas com o que ele vos entregar se sairmos deste castelo sos e salvos. - Bela flor da Palestina - respondeu o bandido -, estas prolas, de invulgar oriente, so inferiores brancura dos vossos dentes. Os diamantes rebrilham, mas no tanto como os vossos olhos, e, desde que me dediquei a este mister, sempre preferi a beleza riqueza. - No erreis - exclamou Rebeca. - Tomai o resgate e tende piedade! O ouro trar-vos- compensao, enquanto de ns abusar vos traria remorsos apenas. O meu pai saciar os teus maiores desejos, e, se souberdes agir com sabedoria, podereis, com o que vos pagaremos, retornar sociedade normal, qui ser perdoado pelos erros passados e elevado at onde outros erros no sero mais precisos de cometer. - Bem falado - retorquiu o fora-da-lei em francs, j que o prosseguimento duma conversa em saxo, lngua que Rebeca utilizara desde o comeo, lhe era difcil -, mas ficai sabendo, doce lrio do vale de Bac, que o teu pai j se encontra, neste momento, nas mos dum poderoso alquimista que sabe transformar em ouro e prata mesmo as grades ferrugentas dum calabouo. O venerando Isaac entrar num alambique,
que dele destilar tudo a que quer bem, sem interveno de pedidos meus ou ameaas tuas. O teu resgate ser pago em amor e beleza, at porque outra moeda no aceitarei. - No s um fora-da-lei! - disse Rebeca no mesmo idioma que ele empregara. - Nenhum recusaria uma oferta como a que fiz.
Nenhum fora-da-lei fala como falaste. No s um fora-da-lei, mas, sim, um normando... talvez um normando nobre de nascena. S-o tambm nos teus actos e liberta-te dessa mscara de violncia ultrajante! - E tu, que to bem sabes adivinhar - exclamou Brian de Bois-Guilbert deixando cair o manto -, no s uma autntica filha de Israel, mas em tudo, fora a juventude e a beleza, uma bruxa de Endor. No sou, de facto, um fora-da-lei, bela rosa de Saaro. Sou tambm daqueles que mais depressa cobririam o teu belo colo e braos de prolas e diamantes em vez de tos roubar. - Que mais podes querer de mim - perguntou Rebeca - seno a minha riqueza? Nada temos em comum... s cristo e eu sou judia. A nossa unio seria contrria aos mandamentos da Igreja e da Sinagoga. - Dessa forma seria - riu-se o Templrio - se eu fosse casar com uma judia! Despardieux! Nem que se tratasse da rainha de Sab. Sabers, ademais, doce filha de Sio, que se o mais cristo dos reis me oferecesse a mais crist das suas filhas, com o Linguadoque como dote, eu no poderia despos-la. contra os meus votos amar qualquer donzela, a no ser da maneira como te vou amar. Repara na cruz da minha santa ordem. - Atreves-te a invoc-la, num momento como o presente? lembrou-lhe Rebeca. - Nada tens com isso - respondeu o Templrio -, pois no acreditas no abenoado smbolo da nossa salvao. - A minha crena a que os meus pais me ensinaram - informou Rebeca. - E que Deus me perdoe se sigo f errada! Mas vs, Sr. Cavaleiro, qual a vossa, quando invocais sem escrpulos o que dizeis considerar mais sagrado do que tudo, precisamente na altura em que vos preparais para transgredir o mais solene dos vossos votos como cavaleiro e como religioso?! - Pregaste bem e com solenidade, filha de Sirac! - observou o Templrio -, mas, gentil eclesistica, os teus limitados preconceitos judaicos no te deixam reconhecer o nosso grande privilgio. O casamento seria para um templrio um crime continuado, enquanto quaisquer loucuras menores que faam ser-nos-o perdoadas e prontamente absolvidas, durante o prximo captulo da preceptoria da nossa ordem. Nem o mais sbio dos monarcas, nem o seu pai, cujos exemplos deves conhecer, gozavam de privilgios to amplos como ns,
pobres soldados do Templo de Sio, que o conseguimos pelo esforo na sua defesa. O protector do Templo de Salomo pode exigir o mesmo que Salomo exigia. - Se ls as Escrituras - recordou-lhe Rebeca -, e as vidas dos santos, isso apenas te serve de justificao para a tua depravao e devassido. O teu crime compara-se ao de quem extrai venenos de plantas sadias e teis. Os olhos do Templrio faiscaram repreenso. - Escuta, Rebeca. At aqui falei de bons modos, mas, a partir de agora, a minha voz ser a do conquistador. Apresei-te com o meu arco e as minhas frechas... ests, pela lei de todas as naes, sujeita minha vontade. No cederei um ponto que seja dos meus direitos, nem me absterei de tomar pela fora o que tentares recusar-me.
- Espera! - gritou-lhe Rebeca. - Espera e ouve-me antes de cometeres to mortal pecado! Podes, certamente, dominar-me, j que Deus fez as mulheres fracas, entregando a sua defesa generosidade dos homens. No entanto, farei que toda a Europa, duma ponta outra, tome conhecimento da tua torpeza, Templrio. Servir-me-ei da superstio dos teus irmos, em vez da compaixo, que, de certeza, me negariam. Todas as preceptorias, todos os captulos da tua ordem, sabero que, como um herege, pecaste com uma judia. Aqueles que no tremerem ao saber do teu pecado amaldioar-te-o por teres desonrado a cruz que usas chegando-te a uma rapariga da minha raa. - s esperta - disse o Templrio, bem consciente da verdade do que ela afirmara, pois a sua ordem considerava de forma to categrica actos como o que se preparava para levar a cabo, que, por vezes, os castigava com a prpria degradao. - s mesmo esperta - repetiu. - S que as tuas queixas teriam de ser feitas em voz muito alta para que pudessem ir alm dos muros deste castelo, dentro dos quais murmrios, lamentos e brados por justia se esvaem de igual modo. S uma coisa te salvar, Rebeca. Submete-te ao teu destino... abraa a nossa religio e subirs to alto que muitas damas normandas tero de ficar abaixo de ti em pompa e beleza, tu, a favorita da mais forte lana entre aquelas que defendem o Templo. - Submeter-me ao meu destino!? - perguntou Rebeca. - E, Deus do Cu, que destino esse? Tomar a tua religio? E que religio essa, que permite no seu seio viles como tu? Tu, a melhor das lanas dos Templrios? Covarde cavaleiro! Falso religioso! Cuspo em ti e desprezo-te! O deus de Abrao abriu um caminho para a sua filha escapar a esta infmia sem limites. Acabando de proferir estas palavras, abriu a janela gradeada que dava para o ptio e, com agilidade, saltou-lhe para o parapeito, a medonha altura do solo. Sem esperar uma atitude to drstica e desesperada, Bois-Guilbert nem teve tempo para a evitar ou sequer trav-la. Quando fez meno de avanar,
a rapariga, agora perfeitamente imvel, gritou: - Deixa-te ficar onde ests, orgulhoso Templrio, ou, se for essa a tua vontade, caminha, mas lembra-te de que um s passo mais e saltarei para o vcuo. O meu corpo esfacelar-se- nas pedras, tornando-se irreconhecvel, mas ter-se- salvo de toda a tua brutalidade! Juntando as mos, ergueu-as como pedindo aos Cus piedade para com a sua alma. O Templrio hesitou e a sua audcia, que nunca d ou piedade haviam abrandado, cedeu perante a admirao por to invulgar coragem. - Desce - disse -, rapariga impetuosa! Juro-te pelo Cu, pelo mar e pela Terra que no te molestarei. - No confio em ti - respondeu Rebeca -, ensinaste-me a conhecer as virtudes da tua ordem. A prxima reunio de preceptoria absolver-te- dum juramento que apenas se referia honra e desonra duma miservel donzela judia. - s injusta! - disse o Templrio com fervor. - Juro-te pelo meu nome, pela cruz que trago ao peito, pela espada minha cinta, pelo antigo braso dos meus maiores, juro-te que nada te farei. Se no pensas em ti, lembra-te do teu pai. Posso ser
seu amigo, e aqui dentro ele bem necessita de algum poderoso... - Infelizmente - reconheceu Rebeca -, sei ser assim. Mas poderei eu confiar em ti? - Que o meu escudo seja dependurado s avessas e o meu nome para sempre desonrado - disse Bois-Guilbert - se vieres a ter alguma razo de queixa contra mim! J infringi muitas leis e mandamentos, mas nunca a minha palavra. - Aceito a tua palavra - disse Rebeca - por agora. - Descendo do peitoril, no se afastou, contudo, demasiado do vo. - Aqui fico - informou. - E tu, se tentares diminuir a distncia entre ns, j sabes que esta donzela judia no hesita entre entregar a sua alma a Deus ou dar a sua honra a um templrio. Esta exposio firme e resoluta, condicente com toda a sua expressiva beleza, emprestava sua atitude de maneiras e dignidade algo fora deste mundo. O seu olhar no vacilava, o seu rosto no perdera a cor, durante aqueles instantes to tremendos. Pelo contrrio, a certeza de ter o prprio destino nas mos, podendo fugir infmia recorrendo morte, colorizara-lhe a face, acrescera-lhe fulgor aos olhos. Bois-Guilbert, orgulhoso de si mesmo e bem disposto, pensou que jamais vira ningum to belo, to vivo e to imponente. - Que haja paz entre ns, Rebeca - props. - Paz, se a desejas, mas a distncia. - No tens de ter medo - garantiu-lhe Bois-Guilbert.
- No, no te temo, graas a quem construiu esta torre to alta de causar vertigens e da qual ningum pode saltar e sobreviver. Graas a ele e ao deus de Israel. No, no te temo. - Continuas sendo injusta para comigo - disse o Templrio. pela Terra, pelo mar, pelo Cu, persistes na tua injustia. No sou, por natureza, a pessoa dura e egosta e implacvel que viste em mim. Foram as mulheres que me ensinaram o que a crueldade e, por isso, sobre elas que a exero, Mas no sobre as que so como tu. Escuta, Rebeca: cavaleiro algum jamais empunhou a sua lana to carregado de amor do que Bois-Guilbert. Ela, filha dum barozeco que de seu possua somente uma torre em runas, uma vinha improdutiva e algumas lguas de terreno estril nas Landes, perto de Bordus, era, porm, bem conhecida em todos os locais onde feitos de armas se praticassem, o seu renome era maior que o de muitas damas cujo dote era um condado inteiro. Sim - prosseguiu, andando para l e para c na pequena plataforma onde se encontrava, excitado e quase esquecido da presena de Rebeca -, sim, os meus feitos, os perigos que corri, o sangue que verti, levaram o nome de Adelaide de Montemare, desde a corte de Castela, at de Bizncio. E qual foi o meu pago? Quando regressei, coberto de glria to duramente conquistada, fui encontr-la casada com um fidalgote gasco, cujo nome dificilmente algum conheceria para l do seu desprezvel domnio! Amava-a e ferozmente me vinguei da promessa que no cumprira. A minha vingana, contudo, apossou-se de mim, e, desde aquele dia, separei-me da vida sem que o seu peso - no, no posso ter um lar - possa ser mais aceitvel ao lado duma esposa carinhosa. Na velhice no terei companhia. A minha campa ser solitria e de mim no haver descendentes podendo orgulhar-se do antigo
nome de Bois-Guilbert. Depus aos ps do meu superior o meu livre-arbtrio, o privilgio da independncia. O Templrio um servo em tudo, na denominao. No pode possuir terras e bens e vive, move-se e respira sempre de acordo com a vontade de outrem. - Deus meu! - exclamou Rebeca. - Que vantagens h para recompensar to completo sacrifcio? - O poder da vingana - replicou o Templrio - e a possibilidade de se dar largas ambio. - Fraca recompensa essa - observou Rebeca - para quem desiste do que mais caro existe para a humanidade. - Tal no afirmes, rapariga - bradou o Templrio. - A vingana o prazer dos deuses! E se, como dizem os padres, eles o reservaram, porque o prazer demasiado grande para que mortais dele possam auferir tambm. E a ambio! A ambio a tentao que nem a promessa da bem-aventurana celeste consegue perturbar. - Parou um momento, aps o que acrescentou: - Rebeca! Quem prefere a morte desonra tem de ser de esprito altivo e poderosssimo. Tens de ser minha!...
No, no fujas - pediu. Ters de o ser, sim, mas com o teu consentimento e segundo os teus termos. Ters de aceder a compartilhar comigo as minhas esperanas, que so maiores do que aquelas que se avistam do alto dum trono. Ouve antes de responderes e pondera antes de recusares. O Templrio perde, como afirmaste, o seu poder de livre-arbtrio, mas transforma-se num elemento e num brao dum corpo to poderoso e possante que, frente a ele, at Os tronos estremecem. Ele como uma pinga de chuva que se junta e mistura com o oceano imenso e indomvel, capaz de romper penedos e tragar armadas inteiras. Nesta poderosa ordem, o lugar que ocupo no dos menores. Sou j um dos comandantes-chefes e posso perfeitamente aspirar, um dia, a tornar-me gro-mestre. os pobres soldados do Templo no s poro os seus ps nos cachaos dos monarcas (qualquer monge de sandlias pode faz-lo), mas ainda, com os seus ps recobertos de malha de ao, se alaro aos seus tronos. As nossas guantes arrancaro os ceptros que os reis seguram. Nem o reino do Messias, que vs aguardais em vo, oferecer s vossas tribos dispersas tanto poder como aquele que a minha ambio quer atingir. Sonhava com um esprito elevado para com ele a repartir. Encontrei-o em ti! - E fazeis essas afirmaes a uma mulher do meu povo? surpreendeu-se Rebeca. - Pensai melhor... - No respondas - tornou a dizer-lhe o Templrio - lembrando as diferenas entre os nossos dois credos. Nos nossos conclaves mais secretos vemos tudo isso como historinhas de fadas. No creias que continuamos, como cegos, acreditando nas loucas baboseiras dos nossos fundadores, que trocavam os prazeres terrenos pelo gosto de se martirizarem, morrendo de fome e de sede, pestes e espadas brandidas por selvagens, ao mesmo tempo que defendiam um rido deserto, apenas com valor para olhos iludidos. Cedo a nossa ordem estendeu melhor e mais longe as suas vistas, encontrando maiores prmios para os nossos sacrifcios. As nossas possesses enormes, em todos os reinos da Europa, a nossa fama como militares, que nos abre as portas da cavalaria de todos os pases cristos... tudo isto
se destina a fins com os quais os nossos fundadores nem sequer sonhavam e que, igualmente, escondemos das pessoas fracas, que entram para a nossa ordem para seguir sem pensar os seus princpios arcaicos, cujas supersties os transformam em passivos instrumentos. No levantarei mais o vu que tapa os nossos segredos. Aquele toque de trompa anunciar algo requerendo a minha presena. Pensa nas minhas palavras. Que fiques bem! No te peo que me perdoes a violncia com que te ameacei e que entendera ser a forma correcta de contigo lidar. Saindo do quarto, desceu as escadas, deixando Rebeca ainda mais aterrada com a proximidade da morte a que se expusera do que com a furibunda exposio de toda a ambio daquele audacioso indivduo em cujas mos fora, lamentavelmente,
parar. A primeira coisa que fez foi agradecer ao Cu, na pessoa de Jacob, a proteco concedida e implorar-lhe que a mantivesse, para si e para o pai. Outro nome entrou, quase involuntariamente, na sua prece: o do cavaleiro cristo ferido, a quem a sorte fizera tambm ser apanhado por aquela gente sanguinria e sua inimiga. O corao acalmou-se-lhe de facto, comungando, nas suas oraes, com Deus, e acrescentando s suas devoes a lembrana daquele a que nunca se poderia unir por ser um nazareno e, portanto, um adversrio dos da sua f. Mas o pedido fora, mesmo assim, exposto e nem todos os estritos preconceitos da sua seita conseguiriam demov-la a retir-los.
Captulo XXV O melhor, mas mais difcil de ler, pedao de literatura que encontrei na minha vida. She stoops to conquer Quando o Templrio chegou ao salo do castelo, De Bracy j l se encontrava. - O teu namoro - disse De Bracy - foi, como o meu, interrompido por este estridente chamado. Mas, como vieste depois de mim e aparentemente com maior relutncia, presumo ter a tua entrevista sido mais frutuosa do que a minha. - A corte que fizeste saxnia no resultou, portanto? indagou o Templrio. - Pelos ossos de So Toms de Bec et - respondeu De Bracy -, Lady Rowena deveria estar informada de que no aguento ver mulheres a chorar. - l possvel! - exclamou o Templrio. - Tu, um chefe de mercenrios, a preocupares-te com lgrimas femininas! Umas gotinhas nas chamas do amor sempre fizeram bem, avivando-o. - Muito obrigado pelas tuas gotazinhas - retorquiu De Bracy -, mas as daquela donzela davam para extinguir uma fogueira das grandes. Jamais vi tanto torcer de mos ou mgoas daquele tamanho, desde os tempos de Santa Nobe(1), de que o prior Aymer nos falou. Um demnio aqutico apoderou-se da bela
saxnia. - Tambm uma legio de demos entrou no corpo da judia - disse o Templrio -, j que um somente, nem mesmo Apolon, no conseguiria conjurar tanto orgulho e deciso... Mas onde est Front-de-Boeuf? A trompa toca com mais e mais intensidade. - Est a tratar de negcios com o Judeu, suponho - respondeu friamente De Bracy -, e possivelmente os berros de Isaac abafam o som da trompa. Deveis saber, por experincia, Sir Brian, que um judeu, ao separar-se dos seus tesouros, segundo as condies que o nosso amigo Front-de-Boeuf impe, *1.. Desejaria que o Prior tambm os tivesse informado sobre a altura em que Nobe foi canonizada. Talvez durante aquele perodo luminoso em que "P emprestou a Moiss a sua trompa pag." (N. do T.)
levanta um clamor tal que se sobrepe a vinte trompas e trombetas. Mandemos que algum vassalo o convoque. Front-de-Boeuf juntou-se-lhes pouco depois, interrompido que fora na sua cruel actividade j descrita ao leitor, e que somente se atrasara para dar algumas instrues pelo caminho. - Vamos l descobrir a razo de toda esta infernal barulheira - disse Front-de-Boeuf. - Tenho aqui uma carta que, se me no engano, est escrita em saxo. Mirou-a, deu-lhe voltas e p-la ao contrrio, como se esperasse que, naquela posio invertida, o papel revelasse o seu contedo. Finalmente, passou-a a De Bracy. - Tanto quanto sei, pode at conter qualquer frmula mgica comentou De Bracy, cuja ignorncia estava Perfeitamente de acordo com a dos cavaleiros do tempo. - O nosso capelo tentou ensinar-me a escrever - explicou -, mas todas as minhas letras pareciam lminas de espadas e pontas de seta, e o velhote de cabea rapada desistiu. - Dai-ma - pediu o Templrio. - Tenho algumas qualidades clericais a reforar o meu valor guerreiro. - Aproveitemos, pois, os vossos valiosos conhecimentos - disse De Bracy. - Que diz o papel? - Trata-se duma carta formal de desafio - respondeu o Templrio - e, se no se trata duma brincadeira de bobos, o mais espantoso comunicado que jamais ultrapassou a ponte levadia dum castelo dum nobre. - Bobos? - bradou Front-de-Boeuf. - Quero saber quem ousa fazer bobagens comigo, em casos como estes. Queirais l-la, Sir Brian. De conformidade, o Templrio rezou-lhes o seguinte: Eu, Wamba, filho de Witless, bobo do nobre Cedric de Rotherwood, conhecido por o saxo, e eu, Gurth, filho de Beowulph, porcario... - Ests louco - interrompeu Front-de-Boeuf. - Por So Lucas, o que aqui est escrito - confirmou-lhe o Templrio, que, retomando a leitura, prosseguiu:
Eu, Gurth, filho de Beowulph, porcario do citado Cedric, com a ajuda dos nossos aliados e confederados, a ns juntos neste feudo de justa causa, entre eles o cavaleiro no momento denominado "O Negro Preguioso" e o valente Robert Loc sley, cognominado o "Fende-Varas", a vs, Reginald Front-de-Boeuf e a vossos aliados, sejam eles quais forem, que,
sem causa aparente ou feudo declarado, haveis maldosa e habilidosamente aprisionado o nosso amo, o citado Cedric, a nobre personagem que Lady Rowena de Hargottstandstede, o fidalgo Athelstane de Conningsburgh e tambm diversos outros homens livres, seus guerreiros, servos e criados, e ainda um determinado judeu, chamado Isaac de Iorque, juntamente com sua filha, uma judia, e, finalmente, alguns cavalos e mulas, quando todos esses nobres, seus soldados e criados, cavalos e mulas e os referidos judeu e judia viajavam em boa paz com Sua Majestade, como feudatrios pela estrada real, exigimos que os ditos nobres, nomeadamente Cedric de Rotherwood, Rowena de Hargottstandstede, Athelstane de Conningsburgh, os seus criados, guerreiros e acompanhantes, os cavalos e as mulas e tambm o judeu e a judia, em conjunto com os seus bens e posses, que deles so, sejam entregues a ns, ou queles que escolhermos para os receber, devendo que o seja feito em perfeita sade e estado. No sendo assim, declaramo-vos que vos consideraremos como salteadores e traidores e a vs nos lanaremos para convosco combater em campo aberto ou por cerco, ou qualquer outra maneira, tudo fazendo no sentido de os vencermos ou destruirmos. Que Deus tenha merc de vs. Por ns assinado na vspera do dia de Santo Withold, sob a ramagem do grande carvalho de Hartwill Wal , tendo o acima sido escrito pelo devoto e santo servidor de Deus, da Virgem e de So Dunstan, da capela de Copmanhurst. Em baixo deste documento fora garatujada, em primeiro lugar, um esboo duma cabea de galo com a sua crista, com uma legenda explicando ser este hierglifo a signa de Wamba, filho de Witless. Sob to respeitvel emblema havia uma cruz, a marca de Gurth, filho de Beowulph. Depois, em larga caligrafia, "O Negro Preguioso" e, por fim, uma flecha bastante bem desenhada, o sinal do arqueiro Loc sley. Os cavaleiros escutaram a leitura desta estranha missiva de ponta a ponta, aps o que olharam uns para os outros em silencioso espanto, completamente incapazes de compreender o portento. Foi De Bracy quem quebrou aquele silncio desatando, incontrolavelmente, a rir s gargalhadas, no que se lhe juntou, mais moderadamente, o Templrio. Front-de-Boeuf, pelo contrrio, mostrava-se enervado e pouco inclinado a galhofas. - Aviso-os, muito a srio, senhores - preveniu -, que ser melhor preparardes-vos para enfrentar esta situao do que encar-la com despropositadas risadas. - Front-de-Boeuf ainda no recuperou do trambolho de ontem - observou De Bracy - e acovarda-se simples ideia dum repto, mesmo que parta dum bobo e dum porqueiro.
- Por So Miguel! - respondeu Front-de-Boeuf. - Bem apreciaria que sozinho tivesse de aguentar toda esta aventura. Estes homens jamais ousariam agir com tamanha impudncia se se no apoiassem em bandos fortes e numerosos. H na mata demasiados proscritos revoltados contra a forma como protejo os veados. Uma vez amarrei um deles, que apanhei em flagrante, aos cornos dum touro bravo, que, alis, o desfez em cinco minutos, e as setas que me atiraram foram tantas como as que se atiraram contra os alvos de Ashby... Tu - disse para um dos criados j mandaste investigar em que foras se apoia este desafio? - H, pelo menos, duzentos homens reunidos na mata - respondeu um escudeiro prximo. - Aqui est o resultado - bradou -, de vos ter cedido o meu castelo. No soubeste agir com discrio e trazeis-me um enxame de vespas para cima das costas. - Vespas? - perguntou De Bracy. - Quereis dizer zngos sem ferro. Um bando de madraos que preferem encafuar-se na floresta e destruir a veao em vez de trabalharem para o seu sustento. - Sem ferres? - ops Front-de-Boeuf. - Setas com ponta em forquilha deste tamanho, que no falham nem alvos como uma coroa francesa, picam e picam bem. - Calma, Sr. Cavaleiro - pediu o Templrio. - Reunamos os nossos e faamos uma surtida. Um cavaleiro, melhor, um homem de armas, s suficiente para vinte desses labregos. - O que de mais, de mais - confessou De Bracy. - At me envergonharia lutar com eles. - Certo - atalhou Front-de-Boeuf -, se fossem negros. Turcos ou mouros, Sr. Templrio, ou os pobres camponeses de Frana, bravo De Bracy. S que estes so ingleses sobre os quais no temos mais vantagens do que aquelas que as nossas armas e cavalos nos possam trazer e que de pouco nos valero nas clareiras da floresta. Surtida, dizeis? Quase no temos gente para defender o castelo. Os melhores entre os meus esto em Iorque, o mesmo sucedendo com os vossos, De Bracy. Temos, quando muito, uns vinte, mais os que entraram nesta maluqueira. - No pensais - interrogou o Templrio - que congregaram gente suficiente para assaltarem o castelo? - No, no o penso - disse Front-de-Boeuf. - Estes fora-da-lei tm um chefe audaz, mas, sem maquinaria e escadas, bem como gente experimentada, o meu castelo -lhes mais do que inexpugnvel. - Mandai recado aos vossos vizinhos - sugeriu o Templrio -, pedindo-lhes que tragam gente e venham salvar trs cavaleiros cercados por um bobo e um porqueiro, dentro do castelo de Front-de-Boeuf.
- Mofais, Sr. Cavaleiro - respondeu o baro. - para que serviria esse recado? Malvoisin est em Iorque com a sua gente, o mesmo se dando com os meus outros amigos e tal como eu deveria estar no fora esta vossa tonta empresa. - Chamai-os, ento, de Iorque - lembrou De Bracy. - Se se no assustarem com o drapejar dos meus estandartes ou vista dos meus mercenrios, terei de os considerar como os mais
atrevidos dos bandidos que jamais pegaram em arcos e flechas. - E quem levar essa mensagem? - quis Front-de-Boeuf saber. Todas as trilhas esto cortadas e o mensageiro era logo apanhado. Talvez... -- acrescentou e fez uma paragem. - Sr. Templrio, escreveis to bem como bem sabeis ler. Se arranjarmos material para escrita do meu capelo, que morreu faz cerca de um ano numa farra natalcia... - Se me permitis - interps-se o escudeiro ainda presente -, julgo que a velha Ulfried os tem guardados em qualquer lado como recordao do seu confessor. Fora o derradeiro homem, diz ela, que a tratara com a cortesia e o respeito que matronas donzelas merecem. - Vai busc-los, Engelred - ordenou Front-de-Boeuf -, para que, vs, Sr. Templrio, possais responder a este desafio. Preferia faz-lo a fio de espada do que com a ponta duma pena - disse Bois-Guilbert -, mas seja como quereis. Sentou-se e comps uma epstola do teor seguinte: Sir Reginald Front-de-Boeuf e os seus nobres aliados no aceitam reptos sados das mos de escravos, criados ou fugitivos. Se aquele que se denomina o "Cavaleiro Negro" detm, de facto, as honrarias da cavalaria, saber estar-se degradando pela sua actual associao, no possuindo, a isso devido, qualquer direito a conferncias com cavalheiros de sangue nobre. Quanto aos prisioneiros, numa base de caridade crist, requeremos nos enviem algum do clero para os confessar e com Nosso Senhor os reconciliar, uma vez que nossa inabalvel deciso execut-los esta manh, ainda antes do meio-dia, para que as suas cabeas fiquem expostas nas ameias, assim demonstrando aquilo que pensamos daqueles que se atrevem a pensar no seu salvamento. Deste modo lhes recomendamos o envio dum padre para que se juntem em paz a Deus, atitude esta que constituir o ltimo servio que lhes podeis fazer na Terra. Dobrada a carta, um escudeiro foi lev-la ao mensageiro, que aguardava, fora, uma resposta. Este ltimo, cumprida a sua misso, tornou ao quartel-general dos aliados, provisoriamente armado debaixo dum vetusto carvalho a cerca de trs frechadas do castelo.
Ali, Wamba, Gurth e os seus aliados, o Cavaleiro Negro, Loc sley e o jovial eremita, aguardavam impacientemente novas. Em seu torno e ao longe viam-se inmeros homens, cujos trajes monteiros e rostos batidos pelos elementos no deixavam dvidas quanto sua usual ocupao. mais de duzentos j l tinham chegado e muitos mais, rapidamente, iam fazendo crescer esse nmero. Os que davam ordens apenas se distinguiam por uma pena no barrete, sendo o resto, roupas, armas e equipamento, em todos os aspectos iguais aos dos outros. Alm destes bandos, uma fora, menos ordenada e pior armada, de moradores saxes da cidadezinha das cercanias, bem como muitos servos e criados das extensas propriedades de Cedric, j ali se encontravam para participarem na operao de salvamento. Poucos dispunham de armas que no fossem aqueles
utenslios rsticos que a necessidade transforma em meios blicos. Chuos de caa, foices, malhadeiros e coisas assim. Na verdade, os normandos, seguindo o uso habitual dos conquistadores, no autorizavam que os saxes vencidos dispusessem de armas ou usassem espadas e lanas. Este pormenor reduzia o auxlio dos saxes, tornando-o pouco temvel para os sitiados, como, em outras condies, o seria, dado o seu valor e nmero, que a justeza de razes lhes inspiravam. Foram os chefes desta variegada tropa quem recebeu a carta do Templrio, que logo passou para as mos do capelo para que a lesse. - Pelo bculo de So Dunstan! - exclamou aquele respeitvel membro do clero. - So Dunstan, que conduziu mais ovelhas para o redil do que qualquer outro santo do Paraso, juro que no sei explicar este palavreado, que, em francs ou rabe, est para l dos meus conhecimentos. - Deu a carta a Gurth, que, abanando a cabea, a passou a Wamba. Este olhou-lhe os quatro cantos, com uma careta de fingida compreenso, aproximadamente como um macaco faria, e deu-a a Loc sley. - Se as cartas longas fossem arcos e as curtas flechas, talvez lhes soubesse dar uma volta - disse o honesto arqueiro. - Tal como , o que querem dizer est to safo de mim como um veado a doze milhas de distncia. - Serei, ento, eu o leitor - props o Cavaleiro Negro. Agarrando na carta, leu-a primeiro para si, explicando-a depois em saxo aos que o rodeavam. - Executarem o nobre Cedric! - explodiu Wamba. - Pelo crucifixo, tendes de estar errado, Sr. Cavaleiro. - No, meu prezado amigo - respondeu o Cavaleiro Negro. tal qual vos disse. - Ento, por So Toms de Canterbury - interveio Gurth -, temos de arrasar o castelo, nem que seja fora de unhas.
- No dispomos de outra coisa que no sejam elas - opinou Wamba -, mas as minhas so pouco adequadas para arrancar pedras e argamassa. - Isto s para ganharem tempo - disse Loc sley. - Nunca levariam avante um acto merecedor de punio to severa como sofreriam. - Gostaria - sugeriu o cavaleiro - que um de ns entrasse no castelo e analisasse a situao dos sitiados. J que pretendem um confessor, este santo eremita poderia ir l exercer a sua pia funo e obter as informaes que pretendemos. - Que a peste te leve, a ti maila tua ideia - vociferou o eremita. - Lembro-te, Cavaleiro Preguioso, de que, quando dispo o meu hbito, o meu sacerdcio, a minha santidade e mesmo o meu latim com ele se vo. Nestas roupas verdes abato melhor vinte veados do que confesso um s cristo. - Receio - disse o Cavaleiro Negro -, receio declaradamente no haver aqui mais ningum em condies, nem por instantes, de fazer de padre confessor. Entreolharam-se sem ningum dizer nada. - Noto - acrescentou, algum tempo depois, Wamba - que os loucos so sempre loucos e no deixam de enfiar as cabeas nas argolas que os outros evitam. Sabei, caros primos e conterrneos, que j usei sotaina, antes de envergar este fato
s pintas, e que fui educado para ser frade, antes de ter sido atacado pela doena que me fez querer ser bobo. Julgo que, com a ajuda do hbito do eremita, ao qual a santidade e saber eclesisticos esto indelevelmente ligados, ficarei pronto a administrar conforto corporal e espiritual ao meu reverendo amo, Cedric, e aos seus companheiros de infortnio. - Ter ele juzo bastante para a tarefa? - perguntou o Cavaleiro Negro a Gurth. - No sei - confessou aquele -, mas, se as coisas no lhe correrem como deve ser, ser a primeira vez que a sua maluquice o deixar ficar mal. - Toca a enfiar o hbito, amigo - mandou o cavaleiro -, e colhe do teu patro indicaes quanto situao l dentro. Devem ser poucos, e apostaria sem medo de perder que depressa sucumbiriam a um ataque audaz e decidido. O tempo urge! Vai-te! - Entrementes - informou Loc sley -, cercaremos o local to completamente que nem uma mosca possa passar. - E, virando-se para Wamba, recomendou: - Podes avisar esses tiranos de que pagaro a dobrar qualquer barbaridade que faam aos seus prisioneiros. - Pax vobiscum - entoou Wamba, agora j disfarado de monge. - Imitando o andar grave e solene dos frades, partiu para a sua misso.
Captulo XXVI O mais mexido corcel arrefece. O mais mole, s vezes, fogo traz. Fingir um frei ser louco acontece, Como passar por frei um bobo faz. - Cano antiga Quando o bobo, mascarado com o hbito, de capuz e corda amarrada cinta, se abeirou do porto do castelo de Front-de-Boeuf, o guarda perguntou-lhe quem era e o que desejava. - Pax vobiscum - respondeu o bufo. - sou um pobre irmo da Ordem de So Francisco que aqui vem oferecer os seus ofcios a determinadas pessoas presas aqui no castelo. - Tens ousadia - disse o guarda-porto -, para aqui vires, quando, nestes ltimos vinte anos, fora o bbado do nosso confessor, nenhuma outra ave da tua espcie tem ousado cantar por estes lados. - Mesmo assim, peo-te que transmitas o meu recado a teu amo respondeu o falso padre. - Acredita que o receber de bom gosto e deixar cantar este galo dentro de todo o castelo. - Obrigado - avanou o guarda -, mas, se for castigado por abandonar o meu posto para tratar do teu caso, podes crer que irei confirmar se as setas atravessam ou no os hbitos. com esta ameaa saiu da guarita e foi, de m vontade, at ao salo, informar que um frade solicitava admisso imediata. com surpresa sua, recebeu ordens para que o deixasse entrar sem mais demoras. Como, por via de dvidas, deixara algum a substitu-lo, no mostrou mais hesitaes quanto ao
cumprimento dessas ordens. A autoconfiana com que Wamba enchera a cabea levando-o a encarregar-se desta perigosa incumbncia quase desapareceu quando se viu frente dum homem to amedrontante como Front-de-Boeuf. Endereou-lhe um Pax vobiscum, que cria auxili-lo na mascarada, com maior temor e hesitao do que aqueles que, at altura, ostentara.
Todavia, Front-de-Boeuf, acostumado a ver gente de todas as categorias tremer na sua presena, em nada suspeitou da timidez do suposto padre. - Quem s e donde vens, padre? - disse. - Pax vobiscum - reiterou o bobo. - Sou um msero servo de So Francisco que, ao passar por estas inspitas partes, caiu nas malhas de ladres e, como dizem as Escrituras, quidam viator incidit in latrones, que me mandaram a este castelo oferecendo os meus servios espirituais a duas pessoas condenadas pela vossa meritssima justia. - Muito bem - assentiu Front-de-Boeuf. - Poders tu, bom padre, informar-me se so muitos esses ladres e bandidos? - Gentil senhor - respondeu o bufo -, nomen illis legio, uma legio ser o seu nome. - Diz em palavras que se percebam quantos so, ou nem hbito, nem cordo, te salvaro. - Deus meu - bradou o falso clrigo -, cor meum eructavit, ou seja, quase estoirei de pavor! Sero, calculo... homens livres, arraia-mida... pelo baixo, uns quinhentos. - O qu? - bradou o Templrio, que acabara de entrar. - Sero tantas assim, as vespas? Chegou a altura de as exterminar. E virando-se para Front-de-Boeuf: - Conheceis o padre? - um forasteiro dum convento longnquo - respondeu Front-de-Boeuf. - No o conheo. - No lhe confies, portanto, qualquer misso de viva voz recomendou o Templrio. - Que leve um escrito aos mercenrios de De Bracy para que venham j em socorro do seu comandante. Entretanto, e para que o padreco de nada suspeite, deixa-o, livremente, executar os seus deveres, preparando os porcos dos saxes para o aougue. - Est bem - anuiu Front-de-Boeuf, ordenando a um servente que conduzisse Wamba at ao apartamento onde Cedric e Athelstane estavam confinados. A priso aumentara, em vez de diminuir, a impacincia de Cedric. Percorria a sala duma ponta a outra, como que avanando para acometer inimigos ou entrar na brecha dum castelo, resmungando umas vezes consigo, outras com Athelstane, que, firme e estoicamente, aguardava as consequncias da aventura, digerindo com toda a dignidade a farta refeio do meio-dia e pouco interessado quanto durao do cativeiro, que, conclura, como tudo debaixo do cu, acabaria quando tivesse de acabar. - Pax vobiscum - saudou o bobo entrando. - Que as bnos de So Dunstan, So Dinis, So Duthoe e de todos os demais santos caiam sobre vs e nossa volta. - Entrai, por favor - respondeu Cedric ao falso padre. - Que pretendeis?
- Preparar-vos para a morte - respondeu o bobo. - No possvel - exclamou Cedric. - Perversos e sem pavor como so, no se arriscariam a to declarada e gratuita crueldade. - Lamentvel - acrescentou o bufo. - Faz-los parar na esperana da sua misericrdia corresponderia a segurar um cavalo fugitivo com um fio de seda. Recordai-vos, generoso Cedric e generoso Athelstane, dos crimes carnais que haveis cometido, pois, hoje, tereis de responder em tribunal superior. - Ests a ouvir isto, Athelstane? - perguntou Cedric. - Temos de juntar todo o nosso valor para que morramos como homens, o que vale mais do que vivermos como escravos. - Sinto-me preparado para enfrentar o pior que deles venha e caminharei para a morte com a mesma dignidade com que caminharia para uma boa ceia. - Recomenda-nos, ento, bom padre - pediu Cedric. - Um momento, tio querido - disse Wamba no seu tom normal. sempre melhor olhar bem antes de se saltar. - Pela minha f! - gritou Cedric, reconhecendo aquela voz. Devia ter calculado! - Que era a voz do meu fiel escravo e bobo - complementou Wamba, baixando o capuz. - Se tivesses seguido os meus loucos conselhos, no estarias aqui. Segue-os, agora, e pouco mais tempo aqui ficars. - Que queres tu dizer, patife? - perguntou o Saxo. - Apenas isto - disse o bobo: - que envergues o meu hbito e cordo, pois nada mais tenho da Ordem, e saias calmamente do castelo, deixando-me a tua capa e cinto para que possa dar o passo final em tua vez. - Deixar-te no meu lugar? - surpreendeu-se Cedric proposta. - Enforcar-te-iam, bom malandro. - Mesmo que faam o que lhes lcito - informou Wamba -, no vejo que a tua nobreza se possa afectar com o facto de o filho de Witless vir a pender duma cadeia, como uma cadeia pendeu sobre o seu antepassado vereador. - Pois bem, Wamba - aquiesceu Cedric. Por esta vez acederei ao teu desejo. Simplesmente a troca de roupas ser com Lorde Athelstane e no comigo. - Alto l, por So Dunstan! - Recusou Wamba. - Nenhum motivo h para isso. Est certo que o filho de Witless sofra para salvar o filho de Hereward, mas seria incorrecto que morresse em benefcio de algum cujos antepassados ele no conhecia. - Vilo - gritou-lhe Cedric -, os maiores de Athelstane eram os monarcas de Inglaterra. - Podem ter sido o que quisessem - continuou Wamba -, mas o meu pescoo est demasiado assente entre os ombros para que deixe torc-lo por causa deles. Concluindo, meu querido amo, ou aceitas a sugesto, ou deixas-me siar livre como entrei.
- Deixa a rvore j velha secar para que a esperana da floresta seja preservada. Salva o nobre Athelstane, meu fiel Wamba! dever de todos os de sangue saxo. Tu e eu aguardaremos a ira dos nossos opressores, enquanto ele, livre e safo, tratar de soerguer o esprito dos nossos conterrneos
para nos vingarem. -De modo algum, pai Cedric - disse Athelstane, tomando-lhe a mo, pois, quando queria pensar e agir, os seus gestos e sentimentos eram do mais nobre possvel. - De modo algum repetiu. - Preferiria permanecer neste salo durante uma semana, sem comida, seno po mofento e gua, a aceitar uma oportunidade de fuga que, por altrusmo inato, um escravo oferecera ao seu amo. - Sois tidos por pessoas que sabem - ripostou o bobo - e eu por um doido sem juzo. Contudo, tio Cedric e primo Athelstane, ter de ser o maluco a resolver a controvrsia em vosso lugar e evitar-vos o prolongamento de cortesias. Sou como a gua de John-a-Duc , que s se deixa montar por John-a-Duc . Portanto, se no querem... volto para casa. As atenes no se fazem saltar de mo em mo como uma peteca. - Ide, pois, nobre Cedric - disse Athelstane -, no deixando escapar este ensejo. A vossa presena no exterior encorajar mais amigos a acorrerem em nosso auxlio. Se ficardes, tudo arruinareis. - Existe qualquer esperana de ajuda, vinda de fora? perguntou Cedric ao bobo. - Mais que esperana! - exultou o bufo. - Debaixo da minha capa estareis envergando a farda dum general. Esto reunidos l fora quinhentos homens e, hoje de manh, eu era um dos seus principais comandantes. O meu gorro sem jeito era um casco e a minha espada de madeira um basto de comando. Bem, vamos a ver quanto lucraro eles com a troca dum bobo por um ajuizado. So capazes de perder em valor o que ganharo, talvez, em prudncia. Adeus, meu amo. Sede generoso para com Gurth e com o seu co, o Fangs. Pendurai o meu barrete em crista no salo de Rotherwood para que perdure a memria de eu ter dado a minha vida em troca da de meu amo como fiel... maluco. A ltima palavra saiu-lhe como que com um duplo sentido, entre o srio e o irnico. Os olhos de Cedric carregaram-se de lgrimas. - A tua memria ser mantida - asseverou -, enquanto a fidelidade e a afeio subsistirem face da Terra. Mas, como deve haver modo de salvarmos Rowena, a ti, a Athelstane, no me atormentes mais com esses pormenores. J tinham trocado de roupas, quando nova dvida se apossou de Cedric.
- No conheo outra lngua seno a minha e meia dzia de palavras do afectado normando. Como me hei-de comportar para parecer um reverendo irmo? - A magia reside em duas palavras apenas, - informou o bobo: Pax vobiscum, que a tudo responde. Se fordes e vierdes, se comerdes ou beberdes, se abenoardes ou excomungardes, Pax vobiscum d para tudo. to preciosa para um frade como a vassoura o para as bruxas e a varinha para os prestidigitadores. Dizei-a, mas assim em tom grave e profundo: Pax vobiscum!... irresistvel... Sentinelas, guardas, cavaleiros, guerreiros, escudeiros e pees, todos reagem ao seu poder. Penso mesmo, amanh, se me vierem buscar para me enforcarem, us-la sobre o executor da sentena. - A ser assim - disse-lhe o patro -, foi rpida a minha
entrada nas ordens religiosas. pax vobiscum. Oxal me no esquea desta senha. Adeus, nobre Athelstane, adeus, meu pobre rapaz, cuja grandeza de alma te desculpa a fraqueza da mente. Salvar-te-ei ou regressarei para morrer a teu lado. o sangue real dos nossos soberanos saxes no correr sem que o meu no corra tambm. Nem um s cabelo do valente que se arrisca pelo amo se perder, se Cedric o puder evitar... Adeus. - Adeus, nobre Cedric - despediu-se Athelstane. - Recordai-vos de que os frades sempre aceitam alimentos, quando lhes so oferecidos. - Adeus, tio. No esqueas o Pax vobiscum - acrescentou Wamba. Assim recomendado, Cedric partiu, no se passando muito tempo sem que tivesse de recorrer frmula que o bobo lhe ensinara, dizendo Ser muito efectiva e quase omnipotente. Numa passagem de baixas arcadas, escura, um vulto feminino cortou-lhe o passo. - Pax vobiscum - lanou o pseudo padre, a quem, quando se preparava para seguir, foi respondido, em voz macia. - Et vobis... quaeso, domine reverendissime, pro misericordia vostra. - Sou um pouco surdo - explicou Cedric em saxo e simultaneamente pensando: "O Diabo leve o bobo e o seu pax vobiscum, que falha logo primeira". No era, porm, raro os padres daquela altura terem pouco ouvido para o latim, como a pessoa com quem Cedric se cruzara bem sabia. - Pedia-vos a merc, reverendo padre - respondeu ela na sua lngua -, que vos digneis conceder o vosso conforto espiritual a um ferido, prisioneiro neste castelo, confortando-o como o vosso santo ofcio recomenda. os bons actos enaltecem o convento de quem os pratica.
- Minha filha - disse Cedric muito atrapalhado -, o pouco tempo que posso estar aqui dentro no me permite exercer os meus deveres. Tenho de me apressar... razes de vida e de morte a tanto me obrigam. - Mesmo assim, deixai-me recordar-vos que o vosso voto insistiu a sua interlocutora - no vos permite deixar os sofredores e oprimidos sem palavras de esperana. - Que o Demnio me carregue at aos confins, para junto das almas de Odin e Thor! - explodiu, fulo, Cedric, que, certamente, iria prosseguir no mesmo tom, totalmente incompatvel com o personagem que procurava encarnar, se a voz spera de Urfried, a velha com cara de grgula, do torreo, o no interrompesse: - Como ? - perguntou rapariga. - assim que me pagas o ter-te deixado sair da cela, alm? Fazes que o reverendo padre empregue linguagem imprpria s para se ver livre duma judia que o importuna? - Judia? - disse Cedric, aproveitando-se da interrupo para tentar safar-se. - Deixa-me passar, mulher. Ser perigoso para ti entravares-me o passo. Venho do Santo Ofcio e no quero degradar-me. - Segue-me, padre - convidou a sibila. - No conheces o castelo e no podes sair sem guia. Vem para que eu possa conversar contigo... E, quanto a ti, filha da raa maldita, vai para o quarto do ferido e cuida dele at eu voltar. E,
cuidado, no tornes a sair sem minha autorizao! Rebeca afastou-se. A sua insistncia levara Urfried a deix-la sair do torreo, tendo-a a megera mandado servir exactamente onde ela mais desejava, ou seja, junto de Ivanho, ferido. Toda ela atenta sua perigosa situao e pronta a agarrar-se a qualquer meio de salvao que pudesse surgir, Rebeca julgara que a presena dum sacerdote que, segundo Urfried chegara recentemente ao castelo, de algo servisse. Esperara a passagem do padre, tencionando interess-lo na sorte do cativo. Lamentavelmente, com os resultados que vimos.
Captulo XXVII Louco desgraado! Que poders contar Sendo feitos de dor, vergonha e pecado? Feitos provados, os quais, sabes, vias penar. Mas, anda, comea a contar o teu recado. Sou de outra maneira mais doente, com males e outros piores penares; D-me descanso pobre mente, Algum com ouvido mais paciente, Rogo, peo para me deixares Falar com um amigo na frente. - Hall of Justice, de Crabe Urfried, aps, mediante imprecaes e ameaas, ter afastado Rebeca do caminho, levou Cedric, contra a sua prpria vontade, para um apartamento, cuja porta fechou cuidadosamente. Dum armrio retirou um pichel de vinho e dois copos, que colocou na mesa, declarando, em tom mais afirmativo do que interrogativo: - Padre, s saxo!? No o negues - prosseguiu ao perceber que Cedric no se apressava a contest-la. - A msica do meu idioma natal soa divinamente aos meus ouvidos, se bem que raramente o escute, a no ser da boca de miserveis e degradados servos aos quais os normandos impem, aqui dentro, a mais miservel das opresses. s saxo, padre. Saxo e livre, j que s um filho de Deus. Gosto de te ouvir falar. - No vm ento padres saxes a este castelo? - perguntou Cedric -, Seria, penso, seu dever confortarem os sofrimentos dos humilhados e sofredores filhos da sua terra. - No vm. ou, se vm, tm de apreciar mais o pagode mesa dos conquistadores - retorquiu Urfried -, do que escutar os gemidos dos seus patrcios. o que dizem. Eu quase nada sei. H dez anos que este castelo no abre as suas portas para qualquer padre, a no ser para o debochado do capelo normando que compartilhava as noites de farra com Front-de-Boeuf,
e esse mesmo h muito que se foi para dar contas ao Criador dos seus actos... Mas tu s saxo, um padre saxo, e eu quero
pr-te uma questo. Sou saxo - confessou Cedric -, mas, na verdade, indigno do ttulo de padre. Deixai-me partir. Prometo que voltarei ou que vos enviarei um padre mais prprio para vos escutar a confisso, - Esperai um pouco - pediu Urfried. - Esta voz que escutas ser, em breve, abafada pela terra fria, qual no queria descer Como um animal. O vinho dar-me- alento para relatar os meus horrores - Encheu um copo, bebeu-o com tremenda avidez at ltima gota. - Embrutece - disse olhando para cima -, mas no anima. Bebe comigo, padre, no v a minha histria fazer-te cair. Cedric bem gostaria de escapar a este convvio ominoso, mas, como ela mostrava evidentes sinais de impacincia e desespero, acedeu, aceitando um grande copo. parecendo mais calma, ela comeou: - No nasci, padre, desgraada como me vs agora. Era livre, feliz, honrada e amada. Hoje sou uma escrava mais baixa do que tudo miservel, um brinquedo para os desejos dos meus amos, enquanto tinha beleza, um objecto de troa, desprezo e dio, depois de ela ter passado. Surpreender-te-, padre, que odeie a humanidade e sobretudo a raa que me transformou? Poder esta velha, encarquilhada e decrpita, cuja ira se manifesta em pragas impotentes, esquecer que, um dia, foi a filha do fidalgo de Torquilstone, perante quem um milhar de vassalos tremia? - Tu, a filha de Torquil Wolfganger! - bradou Cedric, recuando um pouco ao isto proferir. - Tu, tu s a filha desse to nobre saxo, amigo e companheiro de armas de meu pai? - Amigo de teu pai! - repetiu Urfried. - Ento encontra-se na minha frente Cedric, o Saxo, porque o fidalgo Hereward de Rotherwood tinha um nico filho, cujo nome era bem conhecido entre os seus compatriotas. Mas, se s Cedric de Rotherwood, porqu as roupas religiosas? Desesperaste-te tentando salvar a ptria e procuraste refgio sombra dum convento? - No importa quem sou - comentou Cedric. - Segue com a tua histria de horror e pecado. quase pecado teres sobrevivido para a contares, isso, isso mesmo - assentiu a pobre mulher. - exactamente esse o remorso duro e implacvel que carrego no peito... um sentimento de culpa que nem todos Os fogos, que hei-de penar ao Alm, diminuiro. sim. Viver nesta casa, tingida pelo nobre e puro sangue de meu pai e irmos, como amante do seu assassino, a pronta e servil escrava dos seus desejos, de envenenar o prprio ar que respiro, tornando-o criminoso e agourento. - Pobre mulher! - no pde Cedric deixar de dizer. - E, enquanto os amigos de teu pai, enquanto todos os verdadeiros saxes, choravam a sua perda e as dos seus filhos,
sem esquecer Ulrica, que julgavam morta, enquanto todos choravam e deploravam e honravam os mortos, tu vivias com o tirano que matara os teus mais prximos e queridos, que desapareceram, no sobrevivendo um nico fidalgo da casa de Torquil Wolfganger... Tu escapaste para cares num amor
ilcito! - Ilcito, sim - concordou a velha. - mais fcil haver amor nas profundas do Inferno do que nestas arcadas sacrlegas. No! Ao menos, disso no me posso acusar, Sempre odiei Front-de-Boeuf e a sua raa desde o fundo da minha alma. Mesmo quando me acariciava. ' - Odiva-lo, mas seguiste vivendo - disse Cedric. - Diz-me: no tinhas um punhal, uma faca, um estilete? bom para ti, j que no renunciaste a tal vida, que os segredos dos castelos normandos sejam como os das sepulturas. Sonhasse eu que a filha de Torquil pecava com o matador do prprio pai, que a minha boa espada saxnia te iria encontrar nos braos que fosse do teu amante. - Terias, realmente, praticado esse acto de justia em memria de Torquil? - disse Ulrica, pois podemos agora pr de parte o falso nome de Urfried. - s, estou certa, o Saxo. No o podes ocultar! At, entre estas malditas paredes, onde, como bem disseste, o pecado e o remorso se envolvem em mistrio inescrutvel, o nome de Cedric soou, e eu, desgraada farrapo, regozijei-me ao saber que ainda respirava em vs um vingador da minha infeliz nao. Tive tambm os meus momentos de vingana... fomentei brigas entre os nossos inimigos, aticei bebedeiras at que crimes se praticaram e o sangue jorrou. Escutei-lhes o estertor. Olha-me, Cedric! Neste rosto feio e estragado haver ainda algum trao de Torquil? - No mo perguntes - respondeu Cedric em tom onde a dor e o nojo se juntavam. - Tais traos apenas se assemelham queles que um demnio pode dar a um corpo que se levanta da campa. - Seja - disse Ulrica -, mas estas mesmas demonacas feies usaram uma mscara angelical quando conseguiram estabelecer a discrdia entre o velho Front-de-Boeuf e seu filho Reginald O negrume do Inferno ocultou o que se lhe seguiu, mas a vingana exige que se erga esse vu, para que se veja o que at aos mortos surpreenderia. H muito que o braseiro da desavena entre o pai tirnico e o filho violento se acendera (eu prpria, em segredo, alimentava este dio contranatural), quando, num momento de embriaguez, o meu algoz tombou sua mesa, abatido pelo prprio filho... Este um dos segredos dentro destas muralhas. Ru, paredes malditas! - acrescentou, voltando-se para o tecto. - E enterrai convosco os que conhecem este repelente segredo! - E tu, msera e pecaminosa criatura - perguntou Cedric que obtereis com a morte do teu raptor?
- Adivinha-o, mas no mo perguntes. Aqui fiquei at que a velhice, velhice prematura, ps as suas marcas em mim, tornando-me troada, desprezada, nos locais onde fora obedecida, e reduzindo o meu poder de vingana, que to grande fora, a pequenas maldades ou pragas sem valor. Fiquei uma velha impotente, obrigada a ouvir no meu torreo o clamor das orgias em que antes tomava parte e os gritos e gemidos das novas vtimas que ali imolavam. - Ulrica - quis Cedric saber -, lamentando ainda, parece-me, os prmios do teu crime e forma como os obtiveste, como ousaste dirigir-te a mim, com estas vestes? V, infeliz, que nem Santo Eduardo te poderia valer se aqui aparecesse em carne e osso. O Confessor podia, com a ajuda do Cu, curar as chagas
corporais, mas s Deus faz sarar a lepra espiritual. - No vos afasteis de mim, apesar de tudo, duro profeta da ira - exclamou ela -, sem dizerdes no que vo acabar estes estranhos sentimentos que abalam a minha solido. Por que que as coisas passadas h tanto tempo se levantam de novo, e em todo o seu horror, na minha frente? Que destino ter no Alm aquela a quem Deus, na Terra, tanto fez penar? Mais valera ter-me virado para Woden, Hertha e Zerneboc , os deuses dos meus antepassados nunca baptizados, que ultimamente me perturbam de dia e de noite! - Eu no sou padre - reconheceu Cedric, afastando-se, com asco, daquela desgraada, desesperada e plena de remorsos. No sou padre, embora esteja vestido como se o fosse. - Padre ou leigo - disse Ulrica -, s o nico homem a Deus temente que contacto nos ltimos vinte anos. Vais deixar-me em desespero? - Arrepende-te - aconselhou Cedric. - Reza e pena e talvez te salves. Eu no posso perder mais tempo. - Ficai um momento mais - pediu Ulrica. - No me deixeis, filho do grande amigo de meu pai, para que o Demo, que tem morado dentro de mim, no me tente a vingar-me do vosso desprezo. Sabeis que, se Front-de-Boeuf vos encontrasse dentro do seu castelo, disfarado de padre, a vossa vida no seria longa? Os seus olhos de falco faz muito que vos observam. - E, se for assim - replicou Cedric -, nem as suas garras e espores obrigariam a minha lngua a dizer o que a minha alma no consentisse. Morrerei saxo... franco e leal. Ordeno-te que te afastes! No me toques! No me demores mais! Front-de-Boeuf -me menos odioso do que tu, degenerada! - Est bem - concordou Ulrica. - No te prendo mais. Segue o teu caminho e esquece, com a insolncia da tua superioridade, que este caco perante ti a filha do amigo de teu pai... Ide, ide. Se o meu sofrimento me separa das gentes, me afasta daqueles de quem ainda ajuda mais poderia contar, tambm terei de me afastar da minha vingana. Ningum me auxilia, mas todos escutaro aquilo que vou fazer, e Adeus!
O teu escrnio quebrou o ltimo lao que me prendia minha raa... a esperana de o meu sofrimento fazer que ela de mim se compadecesse. - Ulrica - disse Cedric, tocado por este apelo -, nasceste para sofrer uma vida de tanta misria e pecado que no vs que no deveras agora entregar-te ao desespero, mas sim ao arrependimento? - Conheces bem mal a alma humana - respondeu-lhe Ulrica. - Agir como agi, pensar como pensei, necessitam dum enlouquecedor apreo ao prazer misturado com uma viva apetncia de vingana e uma altiva conscincia de poder que intoxicam a alma e, mesmo assim, se conservam... Essa fora j desapareceu (para a idade no existe prazer), as rugas de nada servem e a vingana fica reduzida a pragas inteis. A seguir chega o remorso, com todas as suas vboras, lamentaes pelo passado e temores pelo futuro. Ento, quando todos os impulsos fortes j nada so, tornamo-nos em seres infernais que podem saber o que remorso, mas ignoram o arrependimento. As tuas palavras, no entanto, acordaram alguma coisa dentro de mim. Tudo quanto disseste possvel para quem estiver disposto a
morrer! Apontaste-me a vida do desagravo e podes estar certo de que a trilharei. Esse sentimento erra dentro de mim, dividido por outras paixes. De agora em frente possuir-me- inteiramente e a tal ponto que tu prprio virs a afirmar que, fosse qual fosse a vida de Ulrica, a morte a transformou numa autntica filha de Torquil. Foras esto cercando este castelo maldito. Acorre a comand-las e, quando vires uma bandeira vermelha agitar-se na pequena torre na esquina do calabouo, pressionars os normandos com todo o vigor... Tero tanto a enfrentar dentro de portas que escalars as muralhas apesar de tudo que te arremessarem. Segue, rogo-te, o teu destino e deixa-me para cumprir o meu. Cedric ficaria mais algum tempo para melhor se esclarecer acerca do tenebroso intento que ela lhe anunciara, no fora a voz severa de Front-de-Boeuf perguntando: - Onde pra esse padre mandrio? Pelas vieiras de Compostela, transform-lo-ei num mrtir se anda por a a atiar traies entre o meu pessoal. - Que tais profetas so as ms conscincias - disse Ulrica. No ligues. Sai e junta-te aos teus. Lana-lhes o grito de guerra dos saxes e, se te responderem com o cntico guerreiro de Rollo, a tua vingana servir-lhe- de fundo. Isto dito desapareceu por uma porta esconsa, exactamente quando Reginald entrava. Cedric, com alguma relutncia, saudou o altivo baro, que lhe correspondeu com um ligeiro aceno. - Os teus penitentes demoraram a confessar-se. Foi bom assim, porque nunca mais o tornaro a fazer. Preparaste-os para o fim?
- Encontrei-os - titubeou Cedric no melhor francs que conseguia - esperando o pior desde o momento em que souberam o nome de quem os retinha presos. - Que isso? - perguntou Front-de-Boeuf. - A tua fala tem muito de saxo, creio. - Fui educado no Convento de Saint Withold de Burton informou Cedric. - Sim? - disse o baro. - Bem melhor teria sido para vs e para os meus fins que fsseis normando. A urgncia, porm, no permite que se escolham os mensageiros. Esse convento de Saint Withold mais um ninho de mochos a arrasar. Pronto chegar o dia em que os hbitos pouco protegero os Saxes. - Seja feita a vontade de Deus - fez Cedric numa voz cujo tremor Front-de-Boeuf atribuiu a medo. - Entendo - disse. - J ests vendo os nossos homens no teu refeitrio e nas adegas. Faz-me, contudo, um favor e, acontea o que acontecer aos demais, poders dormir como um caracol dentro da tua cela. - s mandar-me. - Cedric mal continha as suas emoes. - Segue-me para que te aponte um portal de sada. - Durante o percurso, Front-de-Boeuf, frente do suposto frade, foi o instruindo quanto a como deveria proceder. - Tu viste, frade, aquela vara de saxes que se permitiu achegar-se ao castelo de Torquilstone. Dir-lhes-s o que te aprouver sobre as condies desta fortaleza de modo a ret-los por vinte e quatro horas. Entretanto leva este escrito... mas, diz-me, sabes ler? - Nada - informou Cedric -, a no ser o meu brevirio, e esse
mesmo porque o sei de cor, bendita seja Nossa Senhora e Santo Withold! - Melhor mensageiro no arranjaria eu. Leva a carta at ao castelo de Philip de Malvoisin. Diz que da minha parte e escrita pelo templrio Brian de Bois-Guilbert e que lhe peo que a envie a Iorque to depressa quanto um homem a cavalo o possa. Diz-lhe ainda que nada tem a temer quanto a ns, pois estamos sos e salvos e junto das ameias. Vergonha seria se tivssemos de nos esconder dum bando de renegados, capazes de se assustarem com o tremular dos nossos pendes e com o trotar dos nossos cavalos! Recomendo-te, padre, que inventes qualquer coisa para os retardar para que fiquem onde esto at que os nossos amigos nos tragam reforos. A minha vingana est bem desperta, como o falco que no adormece sem se ter satisfeito. - Pelo meu santo padroeiro! - exclamou Cedric com pouco useiro entusiasmo. - E por todos os santos que nasceram e viveram em Inglaterra, os teus comandos sero cumpridos:
Nenhum saxo sair da frente destas muralhas. Tenho artes para os saber deter. Ah! J mudaste de cantar, padre. Falas com claro arrojo, como se ambicionasses entrar na matana, embora tu prprio sejas um daqueles sunos. Cedric, que no era l muito perfeito nas artes da dissimulao, sentiu neste momento a falta de sugestes de algum mais adequado, com, por exemplo, a imaginao de Wamba. Mas j os antigos diziam que a necessidade me da inveno, pelo que murmurou algo sob o capuz, a propsito de gentes excomungadas pela igreja e pelo reino. - Despardieux - bradou Front-de-Boeuf -, falaste verdade. Esquecera-me de que os patifes limpam um abade gorducho como se fossem nativos das terras para l do canal de gua salgada. No foi a Santo Ives que prenderam a um carvalho e obrigaram a cantar uma missa, enquanto lhe revistavam bolsos e bolsas? No, por Nossa Senhora! Essa partida foi pregada por Gualtier de Middleton, um companheiro de armas nosso. Foi com uns saxes que tinham furtado os clices e os castiais de S. Bees. No foi? - Tratava-se de hereges - disse Cedric. - Certo. E que beberam todo o bom vinho e cerveja que os frades guardavam para si, enquanto nos recomendam viglias e oraes. Padre! Compete-te vingar tal sacrilgio. Desejo o desagravo ardentemente - murmurou Cedric. - Santo Withold sabe-o. Front-de-Boeuf conduzira-o atravs duma portinhola e por sobre uma tbua, por cima do fosso, at uma pequena barbac, ou defesa exterior, que dava para fora por uma porta muito bem defendida. - Vai-te; e, se executares o meu recado e regressares quando ele tiver sido aviado, vers tanta carne saxnica como carcaas de porcos h nos matadouros de Sheffield. E, como pareces ser um confessor que aprecia o que do bom, no deixes de aparecer aps a matana, j que te darei malvasia bastante para inundar o teu convento. - Com toda a certeza, tornar-nos-emos a encontrar - anuiu Cedric.
- Toma, para j - continuou o normando porta, metendo-lhe uma moeda na mo relutante. - No olvides que te arrancarei o hbito e a pele se no cumprires a tua misso. - E f-lo-s com o meu consentimento - respondeu Cedric, saindo e deslocando-se rapidamente -, se, quando nos tornarmos a encontrar, tanto merecer. - Voltou-se e, atirando a pea de ouro, exclamou: - Normando maldito, que o teu dinheiro desaparea contigo! Front-de-Boeuf no entendeu bem o que lhe era dito, mas o gesto pareceu-lhe suspeito.
- Arqueiros! - gritou para os guardas. - Enfiem uma flecha naquele monge! No! Esperem! - ordenou j quando os arcos se vergavam. - No vale a pena. Temos de confiar nele, j que nada de melhor existe. Creio que no ousar trair-me. Se for preciso, servir-me-ei para negociar dos outros ces saxes que aqui tenho presos em bons canis. Hei, Giles, carcereiro, traz-me c Cedric de Rotherwood e o outro pacvio amigo dele, Conningsburgh, Athelstane ou l como que se chama. Os nomes deles so uma confuso para bocas normandas e at parece que tm gosto a presunto. Dai-me uma taa de vinho, como disse o prncipe Joo, para tirar este mau gosto. Levai-a para a sala de armas e conduzi os presos para l. As suas ordens foram cumpridas e, quando penetrou no salo de estilo gtico, de cujas paredes pendiam imensos trofus, que o seu valor e o de seu pai haviam ganho, l estavam a botelha de vinho, em cima duma grossa mesa de carvalho, e os dois cativos saxes, guardados por quatro soldados. Front-de-Boeuf bebeu um longo trago e, a seguir, dirigiu-se aos prisioneiros (a forma como Wamba pusera o gorro, as roupas, a pouca luz e o mal como o baro conhecia Cedric, que evitava os seus vizinhos normandos tanto quanto podia e raramente saa das suas terras), sem perceber que o mais importante dos dois se lhe escapara. - Garbosos ingleses - comeou Front-de-Boeuf -, que tal tendes sido tratados em Torquilstone? J percebestes o que a vossa surquedy e outrecuidance(1) na festa dum prncipe da Casa de Anjou vos trouxe? Haveis esquecido como agradecestes a hospitalidade intil de Joo? Por Deus e So Dinis, se no pagardes um resgate a valer, pendurar-vos-ei pelas grades destas janelas at que os milhafres e os corvos vos transformem em esqueletos. Falem, ces saxes! Quanto dais pelas vossas vidas, que nada valem? Hei, tu, Rotherwood, quanto dizeis? - Nem um vintm - respondeu o pobre Wamba. - E, no que se refere minha cabea, se me pendurardes pelos ps, ela, que ficou tonta e baralhada desde que lhe puseram guizos volta, capaz de ficar melhor. - Santa Genoveva! - bradou Front-de-Boeuf -, quem este? - com as costas da mo arrancou o capuz do bobo e, abrindo-lhe a gola, viu-lhe o smbolo da servido, a coleira de prata. - Giles, Clement, ces, velhacos! - berrou o normando furibundo. - Quem trouxestes para aqui - Julgo poder informar - disse De Bracy entrando - que este o palhao de Cedric, aquele que se bateu valentemente em duelo com Isaac de Iorque a propsito de questes de precedncias.
- Ajustarei contas com ambos - prometeu Front-de-Boeuf. prendo-os nos mesmos grilhes, a no ser que o amo deste e este porco do Conningsburgh paguem muito bem as suas vidas. A sua fortuna inteira o mnimo que me podem dar. Tero ainda de afastar esses enxames que zumbem em torno do castelo e assinar declaraes desistindo de pretensas imunidades e passarem a viver sob o jugo, como servos e vassalos. Tero muita sorte se, no novo viver que se est criando, puderem respirar. Ide - ordenou aos criados - e trazei-me o Cedric verdadeiro. Desculpo-vos o engano, desta vez, pois natural confundir-se um louco com um fundirio saxo. - Vossa Excelncia - interveio Wamba, - verificar haver mais loucos entre ns do que fundirios. - Que quer o doido dizer? - perguntou Front-de-Boeuf olhando para os seus, que se tinham deixado ficar, confusos por este no ser o Cedric autntico, cujo paradeiro desconheciam por completo. - Por todos os santos! - exclamou De Bracy. - Deve ter-se escapado, vestido de monge! - Raios do Inferno! - urrou Front-de-Boeuf. - Foi ento aquele javardo de Rotherwood que acompanhei ao portal e soltei pelas minhas prprias mos!... E tu - prosseguiu para Wamba -, cuja maluqueira superior de qualquer outro doido! Eu que te dou as vestes clericais. Serei eu mesmo a torturar-te. Que te arranquem o couro cabeludo e o pendurem num parapeito. o teu mister de brincar; brinca agora, se s capaz! - Tratais-me melhor do que contava, nobre cavaleiro - gemicou o desgraado Wamba, que, habituado a palhaadas constantes, no se intimidava possibilidade de morte imediata. - Se me ireis oferecer o solidu encarnado de que falais, transformar-me-eis de monge em cardeal. - O inconsciente - comentou De Bracy - est decidido a morrer dentro da sua profisso. Front-de-Boeuf, no o abatais. Dai-mo para divertimento dos meus homens. - Dirigindo-se depois a Wamba, perguntou-lhe: - Qual a tua opinio, malandro! Ests pronto a ir para a guerra comigo? - Claro, desde que o meu senhor me autorize - respondeu o bufo -, pois no posso tirar o colarinho (aqui tocou a coleira) sem sua permisso. - Qualquer normando serra uma coleira saxnica - declarou De Bracy. - E da vem - citou Wamba -, o provrbio: Serra normanda em carvalho ingls; canga normanda em cerviz inglesa; Colher normanda em prato ingls, Ingleses governados por normandos. Enquanto assim for, nunca mais a Inglaterra ter felicidade. - Perdes tempo, De Bracy - disse Front-de-Boeuf -, ouvindo as patranhas desse doido, quando a destruio nos espreita.
Fomos ludibriados e as nossas linhas de comunicao com os nossos amigos cortadas por este mesmo cavalheiro com quem te entretens neste momento. Que mais poderemos esperar seno um
ataque repentino? - As muralhas, portanto - props De Bracy. - Desde quando me viste furtar luta? Chama o Templrio para que combata pela prpria pele to bem como tem feito pela sua ordem. Ocupa as ameias com o teu corpanzil. Deixa-me fazer as coisas da minha maneira, e fica sabendo que seria mais fcil os bandidos treparem s nuvens do que s paredes desta fortaleza de Torquilstone. Ou, caso prefiras negociar com os salteadores, porque no servires-te daquele fidalgo que tem os olhos pregados naquele pichei de vinho?... Ei, tu, saxo, continuou falando para Athelstane e oferecendo-lhe um copo molha a gorja com essa boa pinga e diz-nos o que s capaz de fazer pela tua libertao. - O que qualquer homem de carcter faria - respondeu Athelstane - desde que seja homem de verdade. Solta-nos, a mim e aos meus companheiros, e pagar-te-ei mil marcos. - E garantes-nos que essa escria, que nos cerca contra a vontade de Deus e do rei, se ir embora? - Dentro das minhas possibilidades - acordou Athelstane -, dispers-los-ei. Temo somente que meu pai, Cedric, me ajude muito pouco nesse trabalho. - Estamos ento de acordo - repetiu Front-de-Boeuf. Tu e eles sero libertados e a paz ser estabelecida entre ns, desde que pagues os mil marcos. um resgate de nada, saxo, e ters, portanto, de ficar grato pela minha moderao, levando-me a aceit-lo em troca das vossas pessoas. Nota, porm, que o judeu Isaac no faz parte da transaco. - Nem a filha de Isaac - acrescentou o Templrio, que se lhes juntara. - Nem um nem outro - concordou Front-de-Boeuf. - Pertencem a outro grupo que no o saxo. Eu no seria merecedor da designao de cristo - lembrou Athelstane - se lidasse com descrentes como esses. - Tambm Lady Rowena no poder fazer parte do acordo acrescentou De Bracy -, para que ningum venha, mais tarde, dizer que uma donzela me assustou. - Alm disso - recordou Front-de-Boeuf -, o bobo fica igualmente comigo, para que o torne num exemplo para todos aqueles que comigo desejem brincar. - Lady Rowena - disse Athelstane o mais srio que se possa imaginar -, a minha prometida. Nem puxado por cavalos bravos me separaria dela. Quanto ao escravo Wamba, salvou hoje a vida de meu pai Cedric. Daria a minha cabea antes de permitir que lhe tocassem, mesmo com um s dedo.
- Tua prometida! - bradou De Bracy. - Lady Rowena, noiva dum vassalo como s? Saxo, tu ainda sonhas com os tempos dos sete reinos. Recordo-te que o prncipe de Anjou no entrega as suas pupilas a gente da tua linhagem. - A minha linhagem, altivo normando, descende de fonte mais pura do que a dum msero francs que vive custa do sangue daqueles que arrebanha sob o seu estandarte. Os meus antepassados eram reis, bravos na guerra e sbios nos conselhos, que, diariamente, recebiam nos seus sales mais gente do que as tuas tropas totalizam, cujos nomes menestris cantaram, cujas leis esto registadas em Wittenagemotes, cujos restos foram encomendados por santos e sobre os tmulos de
quem se levantaram catedrais. - Toma - disse Front-de-Boeuf, satisfeito com a trepa que o seu parceiro levara -, o saxo respondeu-te a preceito. - To bem quanto um cativo o podia fazer - reconheceu De Bracy com aparente indiferena. - Quem tem as mos atadas pode ter a lngua solta... Mas a tua loquacidade, camarada - continuou falando para Athelstane -, no te conceder a libertao de Lady Rowena. Athelstane, que j falara mais do que costumava, fosse sobre que matria fosse, nada lhe contestou. Entretanto, um criado chegou, interrompendo esta troca de palavras, para anunciar que um monge, ao portal, pedia licena para entrar. - Valha-me So Bennet, protector destes pedintes - resmungou Front-de-Boeuf. - Ser, desta vez, um monge autntico, ou mais um impostor? Revistem-no, escravos! Se tornais a enganar-vos, arranco-vos os olhos e meto-vos carves em brasas nas rbitas! - Que toda a vossa raiva sobre mim caia - props Giles - se este no um raso genuno. O vosso escudeiro Jocelyn conhece-o perfeitamente e garante tratar-se do Irmo Ambrose, monge auxiliar do prior de Jorvaulx. - Que seja admitido - comandou Front-de-Boeuf. - Trar, qui, notcias do seu galhofeiro superior. O Diabo deve estar de frias para que tantos frades e fradalhada andem solta por estas partes. Levem os prisioneiros, e, tu, saxo, pensa no que te foi dito. - Exijo - respondeu Athelstane - um tratamento honroso, com boa cama e mesa, prprias para quem da minha classe e est a negociar o preo dum resgate. Lembro ainda que aquele que se julgar melhor entre vs ter de haver-se em luta comigo em virtude de todo este ultraje minha liberdade. J transmiti pelo mordomo este desafio. Tereis de o aceitar e de me responder. A fica o meu guante. - No aceito reptos de prisioneiros - retorquiu-lhe Front-de-Boeuf. - Nem tu, De Bracy, o fars... Giles continuou -, dependura a luva naqueles chifres, onde ficar at que ele seja de novo um homem livre. Caso, nessa altura,
exigir, ou se se permitir afirmar que por mim foi ilegalmente preso... pelo cordo de So Cristvo!... estar a dirigir-se a um adversrio que jamais se furtou a enfrentar o inimigo, a p, montado, ou com os seus vassalos a ajudarem-no. Entrava Frei Ambrose altamente perturbado quando os presos saam. - Este um Deus vobiscum de verdade - comentou Wamba ao passar perto do reverendo irmo. - Os outros eram falsos. Me do Cu! - bradou o monge para os cavaleiros reunidos. - At que enfim me encontro a salvo entre cristos. - Salvo ests - disse De Bracy. - Quanto ao que toca a cristandade, tens aqui o baro Reginald Front-de-Boeuf, que odeia os judeus como ningum, e o cavaleiro Brian de Bois-Guilbert, cujo passatempo massacrar sarracenos. Se estes no so dos bons, no conheo melhores. - Sei que sois amigos e aliados do meu reverendo pai em Deus, Aymer, prior de Jorvaulx - acordou o monge sem se aperceber do sentido da frase de De Bracy. - Muito lhe deveis, tanto em f guerreira como em santa caridade, pois, como disse Santo
Agostinho, no seu tratado De Civitate Dei... - E o que diz esse demo? - interrompeu Front-de-Boeuf. - Ou, melhor, que dizeis Sr. Padre? O tempo -nos escasso para escutarmos textos sacros. - Santa Maria! sobressaltou-se Frei Ambrose. - Como desmedida a ira destes seculares! Tomai, todavia, nota, garbosos cavaleiros, que determinados velhacos sem escrpulos, sem temor a Deus, respeito pela sua Igreja e ateno bula da Santa S, Si quis, suadente Diabolo... - Irmo, - fez o Templrio -, tudo isso sabemos ou adivinhamos. Dizei-nos com clareza. Ser que o vosso mestre, o Prior, foi aprisionado e por quem? - Precisamente - gemeu Ambrose. - Est nas mos de gente de Belial, que infesta estas matas, em completo desdm pelo sagrado texto recomendando: "No toqueis no ungido do Senhor ou faais mal aos seus profetas". - A est um novo problema para as nossas espadas, senhores - chamou Front-de-Boeuf a ateno dos companheiros. - Em lugar de nos prestar auxlio, o prior de Jorvaulx pede-no-lo neste exacto momento. Aparecem sempre estes preguiosos quando uma pessoa tem que fazer! Mas, diz, frade, que pretende o teu mestre de ns? - com vossa licena, pois - iniciou o frade a explicar -, informei que tendo mos pecaminosas pegado o meu reverendo superior, contrariamente quilo que, como afirmei, nos recomendado, tendo-lhe as criaturas de Belial rebuscado cofres e sacas e roubado duzentos marcos do mais fino ouro, pedem,
mesmo assim, mais dinheiro para o libertarem das suas herticas garras. por esta razo que o meu pai em Deus vos suplica que, como seus caros amigos, o libertem, ou paguem o resgate que lhe exigido, ou o salvem fora de armas, conforme preferirdes. - Que o Demo saia do corpo do Prior - explodiu Front-de-Boeuf que deve ter bebido de mais esta manh. Onde que o teu mestre ouviu falar em bares normandos a abrirem as suas bolsas para livrarem padres que tm dez vezes mais dinheiro do que eles? E como poderemos auxili-lo, de armas na mo, quando estamos aqui enjaulados e cercados por uma fora dez vezes superior nossa e cujo assalto esperamos a qualquer momento? - Era tambm acerca disso que vos desejava falar - disse o monge -, mas no me haveis dado tempo. Deus me perdoe, mas sou j velho e aquela malandragem embaralhou-me. O certo que j esto aqui em frente e erguendo uma trincheira junto muralha. - Para as ameias! - gritou De Bracy -, e vejamos o que fez aquela canalha l fora. - Abriu a janela de grades que dava para uma espcie de balco ou varanda e berrou para os de dentro: Valha-nos S. Dinis! O velhote do monge falou verdade. J se deslocam com manteletes e pavissas(2) e os arqueiros acumulam-se na orla da floresta como nuvens durante um saraiveiro! Reginald Front-de-Boeuf examinou o terreno e imediatamente levou a sua corneta boca, arrancando-lhe um toque, longo e estrdulo, mandando os homens para as respectivas posies. - De Bracy, guarnecei o lado nascente, onde a muralha mais
baixa . Nobre Brian de Bois-Guilbert, a tua profisso ensinou-te bem como atacar e defender. Eu prprio ficarei na barbac enquanto vs cuidais do lado poente. De qualquer modo, amigos meus, no vos limiteis a um ponto apenas. Multiplicai-vos, se possvel for, e acrescentai a vossa presena onde qualquer ataque mais intenso se mostrar. Somos poucos, mas a mobilidade e a coragem compens-lo-o, tanto mais que no encaramos mais do que escumalha. - Srs. Cavaleiros - implorou Ambrose entre o burburinho que a preparao da defesa originava -, ser que nenhum de vs deseja escutar a mensagem do meu reverendo pai em Deus, Aymer, Prior de Jorvaulx? Escutai-me, por favor, Sir Reginald! - Ides pregar para o Cu - rosnou o feroz normando. - Aqui na Terra no h tempo para vos ouvirmos... Hei, Anselm, v se *2.. Manteletes eram aparelhos de recurso e mveis, feitos de tbuas, sob a proteco dos quais os sitiantes avanavam contra locais fortificados. Pavissas eram escudos suficientemente grandes para cobrir todo o corpo e que eram empregados em idnticas circunstncias.
esse alcatro e azeite esto j bem quentes para os despejarmos sobre esses traidores atrevidos. V que no faltem virotes(3) aos besteiros. Ia o meu estandarte com a cabea de boi! Os patifes depressa sabero com quem se vieram meter! - Mas, nobre senhor - insistiu o monge, tentando prender-lhe a ateno -, tomai em conta os meus votos de obedincia e escutai o que o meu superior ordenou vos transmitisse. - Levem daqui este velho tagarela! - disse Front-de-Boeuf. Prendam-no na capela para que possa rezar o seu tero at que este barulho termine. Ser novidade para os santos de Torquilstone tornarem a escutar padres-nossos e ave-marias. J os no devem ouvir desde que os esculpiram na pedra. - No blasfemes contra os santos - lembrou De Bracy. Podem ser-nos precisos antes de pormos esta canalhada a andar. Pouco conto com eles - respondeu Front-de-Boeuf. - Serviro apenas para serem atirados em cima da cabea daquela vilanagem. H um So Cristvo to grande e pesado que s ele chega para acabar com uma companhia inteira. O Templrio, que apreciava a aco dos sitiantes com muito mais ateno do que o brutal Front-de-Boeuf e o seu irreflectido companheiro, exclamou: - Pela f da minha ordem! Estes homens avanam com uma disciplina que no seria de esperar da parte deles. Repara! como se aproveitam de todas as rvores e arbustos e evitam expor-se s flechas e aos virotes! No vejo nem bandeira, nem pendo, mas apostaria a minha corrente de ouro em como esto sendo orientados por um fidalgo ou guerreiro com prtica nas artes da guerra. - Estou a espi-los - disse De Bracy - e percebo um topete de cavaleiro agitando-se sobre o fulgor da sua armadura. Nota! aquele homem alto, de cota de malha negra, ordenando aquela canalha... So Dinis me valha, pois parece ser aquele que denominmos "O Negro Preguioso" e que derrubou Front-de-Boeuf
na lia de Ashby. - Tanto melhor - exclamou Front-de-Boeuf -, dar-me- possibilidades de desforra. Deve ser pessoa com medo de se mostrar, pois nem quis receber o prmio que a sorte lhe trouxe. Eu bem poderia esperar em vo por ele nos lugares onde os nobres e os cavaleiros vo encontrar-se com os seus adversrios. Apraz-me que esteja ali, no meio da malandragem. A aproximao rpida do inimigo fez acabar com esta troca de impresses. Cada cavaleiro seguiu para o seu posto e, frente dos poucos seguidores de que dispunham para a defesa dos muros, passaram a aguardar, com fria determinao, o assalto iminente. *3.. O virote era a seta utilizada nas bestas, sendo a flecha a dos arcos longos. Da o provrbio ingls "Disso farei eu virote ou flecha", significando a inteno de dar uma aplicao qualquer quilo de que se fala.
Captulo XXVIII A raa errante dos demais separada Detm ainda muitas das artes humanas; Os mares, os bosques, os ermos que correm, Revelaram-lhes os seus escuros segredos. Ervas, flores e botes que ningum olhava. Davam-lhes foras ocultas nunca sonhadas. - O Judeu Teremos, nesta altura, de voltar algumas pginas atrs para oferecer ao leitor alguns elementos essenciais para a compreenso desta narrativa. A sua inteligncia alerta ter facilmente compreendido que Ivanho, ferido e aparentemente sem ningum que o auxiliasse, fora, a fortes instncias de Rebeca junto do pai, preparado para ser levado para a casa destes, nos arredores de Ashby. Na ocasio no fora muito difcil levar Isaac a aceder ideia, pois era de natureza bondosa e grato. No entanto, os preconceitos e escrupulosa timidez tiveram, necessariamente, de ser vencidos e ultrapassados. - Abro! - bradou -, ele um jovem justo e o meu corao aperta-se-me vendo o sangue correr dos ferimentos que lhe fizeram ao longo de to dispendioso corselete... mas da a lev-lo para nossa casa! Donzela, pensaste bem? Ele um cristo e a nossa lei probe-nos de lidar com estranhos quando no seja para o proveito dos nossos negcios. - No faleis dessa maneira, querido pai - pediu Rebecca. No podemos, realmente, misturar-nos com eles em banquetes e divertimentos, mas na adversidade e misria o gentio torna-se irmo do judeu. - Pudera eu saber o que o rabino Jacob ben Tudela pensa disso - observou Isaac. - De qualquer modo, o generoso rapaz no pode esvair-se em sangue. Manda que Seth e Reuben o transportem para Ashby.
- No! Deixai-o antes seguir na minha liteira - disse Rebeca. - Eu irei num dos cavalos.
- Expor-te-s aos olhares dos ces de Ismael e Edom - segredou Isaac, desconfiado dos cavaleiros e escudeiros que se juntavam. Rebeca j prosseguia, porm, com a sua piedosa misso, sem lhe prestar a mnima ateno, quando Isaac lhe segurou numa manga e sussurrou: - Pelas barbas de Abrao! E se o rapaz morre? Se morrer nossa guarda, logo nos acusaro e a turba-multa despedaar-nos-. - No morrer, pai - garantiu Rebeca, soltando-se com delicadeza das mos de Isaac -, no morrer, a no ser que o abandonemos, e, nesse caso, seramos responsveis perante Deus e no ante os homens. - Seja - aquiesceu Isaac, largando-a. - Cada gota de sangue que perde di-me, como se fossem moedas minhas caindo-me da bolsa. Sei bem que as lies de Miriam, filha do rabi Manasss, de Bizncio, cuja alma se encontra no Paraso, te tornaram excelente nas artes de curar e que conheces os poderes das ervas e a fora dos elixires. Procede como melhor entenderes. s uma excelente filha, uma bno, uma coroa, um canto, para mim, para a minha casa e para o povo dos nossos patriarcas. As preocupaes de Isaac tinham fundamento, tendo a generosa atitude da sua filha atrado, durante o percurso para Ashby, os prfidos olhares de Bois-Guilbert. O Templrio cruzou-se e voltou a cruzar-se com ela, na estrada, fixando-a ousada e ardentemente. Conhecemos j o resultado que estes encontros viriam a ter, quando o acaso a colocou em poder daquele libidinoso sem princpios. Rebeca, que no perdeu tempo a transportar o ferido para a sua casa provisria, mal l chegou, examinou-o ela mesma e ligou os seus ferimentos. Os leitores de romances e baladas romnticas tm, com certeza, presente, quantas vezes, naqueles sculos de ignorncia, como lhes chamamos, as mulheres se iniciavam nos mistrios da cirurgia e quo frequentemente garbosos cavaleiros se deixavam tratar por aquelas cujos olhos j entretanto lhes haviam perfurado os coraes. Os judeus, homens e mulheres, conheciam e praticavam de h muito todos os ramos da medicina. Monarcas e bares recorriam constantemente aos cuidados dos mais sabedores entre aquela desprezada raa, quando doentes ou feridos. Deles se serviam, no obstante ser crena comum entre os cristos que os fsicos judaicos dispunham de real contacto com foras ocultas, em especial a cabala, cujo nome e origens derivavam dos estudos dos magos de Israel. Os rabinos, por seu lado, no negavam esses contactos com as artes sobrenaturais, o que, como todo o resto, em nada aumentava o dio que se abatera sobre a sua gente, mas diminua o desprezo a que aquele vinha ligado. Um mgico judeu podia ser to detestado como um usurrio judeu, mas era impossvel desprez-lo de forma igual.
, alm do mais, provvel, tendo-se em vista as curas milagrosas que os judeus conseguiam, que, de facto, guardassem somente para si alguns segredos que, dada a forma como eram tratados, ciosamente ocultavam dos cristos, junto dos quais viviam. A bela Rebeca fora educada nos conhecimentos da sua gente, que a sua grande inteligncia tomou, ordenou e alargou muito para l do que sua idade, sexo e at poca pareceriam permitir. Os seus conhecimentos de medicina, que recebera duma velha judia, cujo pai fora um dos maiores doutores, e que, amando Rebeca como se filha fosse, lhe transmitira alguns segredos que, no seu tempo, o pai lhe passara por idnticas razes. Miriam perecera vtima do fanatismo de ento, mas o seu saber continuava na memria da sua exemplar aluna. Rebeca, com tanto saber e tanta beleza, era reverenciada e admirada pela sua tribo, que quase nela via uma daquelas magas privilegiadas, rezadas na Histria Sagrada. O pai, com um tremendo respeito pelo seu saber, que, sem querer, misturava a uma afeio sem limites, permitia liberdades rapariga raramente autorizadas pelos costumes do seu povo, como tivemos j ocasio de verificar, e deixava-se, at no raramente, guiar pela sua opinio, ainda que mesma fosse contrrio. Quando Ivanho chegou casa que Isaac ocupava temporariamente, ainda estava inconsciente, devido s hemorragias que sofrera durante a peleja. Rebeca examinou-lhe o ferimento, aplicou-lhe certos produtos vulnerrios e informou o pai que, se a febre pudesse ser abatida, pois temia-a, dada a grande perda de sangue, e se as propriedades do blsamo curativo de Miriam actuassem devidamente, nada haveria a temer quanto sade do seu protegido, podendo mesmo partir para Iorque no dia seguinte. Esta afirmao deixou Isaac sem saber bem o que fazer. Segundo o seu sentimento de caridade, o ferido cristo deveria ficar em Ashby ou, quando muito na casa que ocupavam no momento, com garantias para o senhorio hebreu de que todas as despesas lhe seriam inteiramente liquidados. Contra isto Rebeca apresentou-lhe um sem-nmero de razes, das quais citaremos somente duas que pesavam extraordinariamente na pessoa de Isaac. Uma era ela no querer, de maneira alguma, confiar o seu frasco de blsamo a qualquer outro fsico, mesmo da sua raa, para que o precioso segredo no viesse a ser desvendado. A outra consistia no facto de o cavaleiro ferido, Wilfred de Ivanho, ser um favorito de Ricardo Corao de Leo, que, se aparecesse, apenas por essa razo o no castigaria pelo facto de ter facilitado os meios monetrios a Joo para a prossecuo dos seus rebeldes intentos. - A verdade est na tua boca - cedeu Isaac a to pesados argumentos. - Seria uma ofensa aos Cus revelarem-se os segredos de Miriam. As benesses celestiais no so para se esbanjar, sejam elas moedas de ouro ou de prata, ou frmulas de fsicos sbios. Tm, sem dvida, de permanecer em poder daqueles a quem a Providncia as confiou. E, quanto a ele,
a quem os nazarenos de Inglaterra chamam Corao de Leo, ser-me-ia prefervel cair nas garras dum leo de Idumeia do que nas dele, se soubesse dos meus negcios com o irmo. Aceito, assim, o teu conselho, e este jovem ir connosco para
Iorque, onde a nossa casa lhe servir de lar at que se restabelea. Se o Corao de Leo regressar, como consta, Wilfred Ivanho servir de defesa contra a fria do rei sobre o teu pai. Se no regressar, Wilfred pagar as nossas despesas quando a sua espada e lana lhe conseguirem riquezas, tal como sucedeu ontem e hoje. Este jovem generoso, cumpre os compromissos nas datas que marca e no hesita em proteger os filhos de Israel, como eu, quando ameaados pelos ladres e pelos seguidores de Belial. S l para o fim da tarde Ivanho voltou a si. Acordou dum sono agitado, confuso, como usual a quem sai dum estado de insensibilidade. Durante algum tempo nem se recordava do que se passara anteriormente sua queda na lia, nem conseguia ordenar os acontecimentos da vspera. As feridas, a fraqueza e a exausto causavam-lhe mal-estar, confundindo-se a recordao de golpes que sofrera e dera, de galopadas desenfreadas, quedas, gritos e tinir de armas, confuso e tumulto. Tentou com xito afastar a cortina que lhe rodeava a cama, apesar das dores que quase lho impossibilitavam. para seu grande espanto, viu-se num quarto magnificamente bem posto, onde coxins substituam as cadeiras e, tal como o restante, se enquadravam no gosto e ambiente levantino. Por momentos julgou se no teria voltado para a Palestina. Esta impresso fortaleceu-se quando, detrs duma cortina larga, surgiu uma figura feminina, cujo trajar era muito mais oriental do que europeu e que, graciosamente, avanou, seguida dum criado de rosto trigueiro. Exactamente quando o cavaleiro se ia dirigir gentil apario, esta pediu-lhe silncio, colocando um esguio indicador sobre OS lbios de rubi, enquanto o seu auxiliar se aproximava e levantava as cobertas do lado de Ivanho para que a maravilhosa judia pudesse verificar se as ligaduras estavam em ordem e os ferimentos a melhorarem. Tudo isto ela fez com uma simplicidade e modstia to encantadoras que, em qualquer poca, ningum deixaria de as apreciar. A viso duma jovem to bonita, inteiramente dedicada ao cuidado dum doente do sexo oposto, modificava-se para se tornar na de algum contribuindo com tudo que podia para aliviar as dores e arrancar um semelhante da gadanha da morte. As ordens de Rebeca, breves e poucas, em hebreu, destinadas ao criado, eram prontamente obedecidas. Os sons duma lngua estranha, por muito duros que pudessem soar, se vindos de outra pessoa, tinham, sados da boca perfeita de Rebeca, todo o agradvel e romntico sabor que a fantasia sempre empresta aos encantos ditos por uma fada boa,
incompreensveis, certo, mas doces, e, dada a bondade que, quase sempre, se notava rode-los, suavizantes tambm. Sem tentar mais perguntas, Ivanho deixou-os proceder como melhor entendessem. Somente quando terminaram, fazendo j a sua graciosa mdica meno de se retirar, a sua curiosidade no mais se pde conter: - Nobre menina - principiou em rabe, que conhecia das suas aventuras no Levante e que pensava fosse melhor compreendido pela moa de turbante e cafet a seu lado. - Rogo-vos, gentil
menina, no me deixeis... A sua bela mdica interrompeu-o com um sorriso que por segundos lhe iluminou a face, onde perdurava uma contemplativa melancolia. - Sou de Inglaterra, Sr. Cavaleiro, embora as minhas roupas e famlia sejam originrias de outras terras. - Nobre menina - tornou Ivanho, para, novamente, ser interrompido. - No me chameis nobre, cavaleiro - disse ela. - Convm que saibais, desde j, que esta vossa criada uma pobre judia, filha de Isaac de Iorque, para com quem fostes, h bem pouco tempo, to generoso e bom. pois mais do que justo que eu e os desta casa vos correspondamos de igual maneira e de acordo com o que o vosso estado exige. - Ignora-se como a igualmente bela Rowena apreciaria a forma como o seu devotado cavaleiro olhava, agora, as feies perfeitas, linhas correctas e olhos vivos da magnfica Rebeca. Olhos que refulgiam sob pestanas de seda que qualquer menestrel compararia estrela do poente iluminando um jasmim. Ivanho era, porm, um catlico demasiado fervoroso para se permitir tal tipo de emoes em relao a uma judia. Rebeca, que j previra isso, tinha-se antecipado dizendo-lhe quem era o pai e a sua gente. Apesar de tudo, a bela e ajuizada filha de Isaac no era totalmente isenta das fraquezas do seu sexo e no conseguiu travar um suspiro vindo do fundo do corao quando o olhar de respeitosa a admirao, aliada a muita ternura, que Ivanho sobre ela lanara foi substitudo por um tratar frio, correcto e retrado, sem quaisquer outros sentimentos que no o da gratido pela gentileza vinda de algum de raa inferior e de quem no seria de esperar. No quer isto dizer que todas as atitudes anteriores de Ivanho fossem mais do que a homenagem normal que a juventude sempre presta beleza, mas sempre doloroso o verificar-se que uma palavra somente possa ter o condo de afastar UM homenagear, ao qual no pode deixar-se de pensar que ela teria direito, relegando-o para posio to baixa que lhe retirava o merecimento. Todavia, a doce candura de temperamento de Rebeca no lhe Permitia acusar Ivanho por aquela demonstrao dos preconceitos do seu tempo e crena. Pelo contrrio, a Judia,
consciente de que o seu doente a via agora como um elemento duma nao condenada, com quem era desaconselhvel manterem-se contactos para alm do mnimo necessrio, no alterou a forma atenta e devotada com que procurava lev-lo convalescena. Comunicou-lhe da sua inteno de o mudar para Iorque para que na sua casa melhor pudesse trat-lo. Tal plano desagradou bastante a Ivanho, pelo que argumentou a propsito do muito trabalho que lhes iria causar. - No haveria - indagou ele - em Ashby ou ali volta qualquer homem livre saxo ou lavrador abastado que se encarregasse do fardo que um compatriota ferido representasse, deixando-o ficar em sua casa at que de novo pudesse envergar a armadura? No existiria um convento saxnico que o recebesse? No seria possvel levarem-no at Burton, onde, sabia-o, Waltheoff, abade de Santo Withold, seu parente, o acolheria? - Bem sei que o pior de todos esses locais - sorriu-se com
tristeza Rebeca - seria indubitavelmente mais apropriado para vs do que a morada dum judeu desprezado. Contudo, Sr. Cavaleiro, sem dispensardes a vossa sade fsica, no podereis mudar de abrigo. A nossa gente, como no ignorais, sabe tratar ferimentos, embora no os inflija. Na minha famlia, especialmente, dispomos de receitas secretas que j vm do tempo de Salomo e cujos efeitos curativos haveis percebido j. Nenhum nazareno... oh, perdoai-me... nenhum mdico cristo vivendo entre os quatro mares de Inglaterra vos poria a andar num ms. - E quanto tempo vais tu levar a consegui-lo? - perguntou Ivanho impaciente. - Uma semana, se fores paciente e seguires o que te recomendar - respondeu Rebeca. - Por Nossa Senhora - disse Wilfred -, se que no pecado evocar o Seu nome aqui, no so alturas para que um cavaleiro se deixe ficar de cama. Se cumprires a tua promessa, donzela, recompensar-te-ei entregando-te tantas moedas quantas o meu elmo possa conter, se bem que no saiba ainda onde as arranjarei. - Cumprirei o que disse - prometeu Rebeca - e dentro de oito dias envergars a tua armadura, desde que me concedas uma graa apenas, em vez de toda essa prata de que falas. - Se o puder e se estiver de acordo com o que um autntico cavaleiro cristo possa oferecer a algum do teu povo replicou Ivanho -, conceder-ta-ei de completa e inteira boa vontade. - Somente desejo - continuou Rebeca - que, a partir de agora, aceites que um judeu possa ser til a um cristo sem desejar outro pagamento que no a bno do Altssimo, que criou judeus e gentios. - Seria pecado no o acreditar! - replicou Ivanho. Entrego-me aos teus cuidados sem qualquer relutncia e sem
mais perguntas, certo de que fars que vista o meu corselete ao oitavo dia. E agora, bondosa clnica, d-me novas de l de fora. Que feito de Cedric, o Saxo, e dos seus seguidores? E a bela dama... - hesitou, como se no desejasse citar o nome de Rowena numa casa judaica -, quero dizer, a rainha do torneio? - E que vs haveis escolhido para to digna posio, atitude que mereceu tanta admirao como o vosso valor pessoal completou Rebeca. Apesar de ter perdido muito sangue, Ivanho corou, percebendo que revelara descuidadamente o muito que sentia por Rowena, quando, realmente, o desejava ocultar. - Era mais sobre o prncipe Joo do que dela que eu pretendia falar - disfarou e tambm do meu fiel escudeiro, que no veio aqui a atender-me. - Deixai-me servir da minha autoridade mdica mandando-vos silenciar para que no vos agiteis com Preocupaes, enquanto eu vos irei informando do que pretendeis. O prncipe Joo abandonou o torneio pressa, partindo para Iorque com os seus nobres, guerreiros e clrigos do squito, depois de ter obtido, a bem e a mal, tanto dinheiro quanto pde daqueles que entendia serem abastados. Consta que quer apropriar-se da coroa do irmo.
- No sem que algum a tal se oponha! - exclamou Ivanho erguendo-se na cama. - E enquanto existirem sbditos leais em Inglaterra. Ao lado dos melhores defenderei o justo ttulo de Ricardo. Um contra dois, se necessrio for. para que o possais fazer, tereis de seguir as minhas indicaes e ficar sossegado. - Certo, menina - aquiesceu Ivanho -, to sossegado quanto estes tempos conturbados mo permitam... E Cedric e os seus? - Um aio dele esteve, faz pouco, aqui, arfando de pressa, para receber de meu pai um pagamento de l dos seus rebanhos e por ele soube que Cedric e Athelstane de Conningsburgh haviam sado muito aborrecidos do pao de Joo e partido para casa. - Foi alguma dama ao banquete? - quis Ivanho saber. - Lady Rowena - disse Rebeca, dando mais clareza resposta do que a que houvera na Pergunta - no foi festa, de acordo com o aio, e segue neste momento para Rotherwood, guardada por Cedric. No que se refere ao vosso fiel Gurth... - Ah! - espantou-se o guerreiro." - Conheces-lhe o nome? Sim, deves conhecer, pois foi da tua mo, tenho a certeza, da tua generosidade Pessoal, que saram os cem cequins que ontem recebeu. - No faleis disso - pediu Rebeca corando muito. - Vejo ser fcil a lngua revelar o que o corao quer esconder. - Mas tanta quantidade de ouro! - disse Ivanho muito srio. Terei, por minha honra, de pag-la a vosso pai.
- Ser como quiserdes - respondeu Rebeca -, quando os oito dias tiverem passado. No faleis, nem penseis nisso para j, ou a tua recuperao poder retardar-se. - Concordo convosco, bondosa menina - aceitou Ivanho -, pois seria mais do que ingratido no o fazer. Dizei-me, porm, algo mais acerca de Gurth e no vos perguntarei mais nada. - Lamento ter de dizer-vos, Sr. Cavaleiro - informou a Judia, que se encontra preso a mando de Cedric. - Percebendo muito bem que esta informao perturbara Ivanho, acrescentou: Mas Oswald disse que, se ele nada mais fizesse atiando a raiva do amo, no tinha dvidas de que Cedric acabaria por perdoar a Gurth, um servidor dedicado e apreciado, que apenas cometeu uma falta menor por amor ao filho do amo. Tambm disse que tanto ele como os seus camaradas, Wamba principalmente, estavam decididos a aconselhar Gurth a que fugisse, caso a fria de Cedric no se amainasse. - Queira Deus que, se for preciso, o faa - rogou Ivanho. Pareo destinado a prejudicar todos que se mostram meus amigos. O meu rei, que me cobriu de honras e distines, tem, como vs, o irmo disposto a roubar-lhe pelas armas a coroa, as minhas atenes trouxeram problemas mais bela entre as mulheres e, agora, o meu pai, com o seu feitio, capaz de acabar com aquele pobre servo em virtude do seu amor e lealdade para comigo. Vs quanto vale este infeliz de quem to afanosamente tratas? Tem juzo e deixa-me partir, antes que o azar, que me persegue como ces farejando um rasto, te colha tambm. - De maneira nenhuma - disse Rebeca. - A tua fraqueza e sofrimento no te deixam entender os desgnios celestes. Retornaste tua ptria, quando ela mais necessitava dos teus braos e esprito fortes, esmagaste o orgulho de inimigos,
teus e do rei, exactamente quando pensavam estar j no topo. Quanto ao que de mau te aconteceu, no repares que O Cu te ofereceu um bom mdico, ainda que escolhido entre os desprezados da Terra? Tem, pois, coragem e confia estares destinado a praticar algo de maravilhoso para este povo. At breve. Depois de teres tomado os remdios que Reuben trar, descansa para que melhor possas aguentar a viagem de amanh. Ivanho concordou com os argumentos dela e obedeceu-lhe. O lquido que Reuben lhe administrou era de propriedades sedativas, pelo que caiu em calmo sono. Na manh seguinte, a dedicada mdica verificou ter a febre abatido, encontrando-se, por conseguinte, em condies de partir. Colocado na liteira que o trouxera da lia, rodearam-no de quantos cuidados foram possveis para que a jornada o no afectasse. Apenas num ponto, e apesar de todos os protestos de Rebeca, a ateno que o guerreiro ferido exigia foi um pouco esquecida. Isaac, como o mercante abastado da dcima stira de Juvenal, via ladres em toda a parte,
sabendo-se presa fcil para normandos rapaces e bandidos saxes, pelo que viajou muito depressa, com paragens muito curtas e refeies muito rpidas, a tal ponto que ultrapassou Cedric e Athelstane, embora estes tivessem partido com vrias horas de avano, porque haviam perdido muito tempo com as protradas refeies no Convento de Santo Withold. Mesmo assim, tais eram a potncia do blsamo de Miriam e a constituio de Ivanho, que aquela quase corrida no teve os resultados nefastos que a gentil mdica temia. Por outro lado, a pressa do Judeu levou a consequncias que no as da velocidade somente. A rapidez, que pedia insistentemente, originou-lhe questes com o grupo que contratara como guardas. Eram saxes e, portanto, muito dados s suas caractersticas nacionais de tudo fazerem na calma e com bom sustento, que os normandos viam como preguia e glutonaria. Ao contrrio de Shyloc , haviam aceitado o encargo na esperana de bem viverem custa do Judeu e enfureceram-se com a celeridade que ele lhes impunha. Reclamaram dizendo estar aquela marcha forada a rebentar-lhes os cavalos. Mais tarde estalou um verdadeiro conflito a propsito da quantidade de vinho e cerveja que Isaac distribua a cada refeio. Foi a tudo isto devido que, descontentes, alarmados pelos perigos iminentes e que Isaac temia poderem encontrar, o abandonaram a meio do caminho sem que pudessem ser convencidos a prosseguir e a dar-lhe a ajuda que deles esperava. Foi nesta lamentvel situao que Cedric viria a encontrar o Judeu e a filha, como sabemos, e a carem, pouco depois, nas unhas de De Bracy e seus apaniguados. A princpio, pouca importncia foi dada liteira, e assim teria continuado se De Bracy, com a sua coscuvilhice, no fosse l espreitar, procurando o objecto das suas ambies, j que Rowena no chegara a retirar o seu vu. De Bracy ficou surpreso ao dar de cara com um homem ferido que, pensando encontrar-se perante salteadores saxes, para quem o seu nome corresponderia a proteco, para si e para os seus amigos, francamente disse ser Wilfred de Ivanho. As noes de cavalheirismo que, mesmo no seu desvario e leviandade no haviam desaparecido de todo em De Bracy, no o
deixaram atentar contra um cavaleiro indefeso e naquele estado e, igualmente, o fizeram no o trair a Front-de-Boeuf, que, sem hesitaes teria acabado com aquele que considerava um entrave plena posse das propriedades que ocupava. Por outro lado, o libertar um pretendente preferido de Lady Rowena, conforme o que se passara no torneio e a prpria expulso de Wilfred da casa do pai claramente implicavam, ficava um pouco acima da generosidade de De Bracy. Uma soluo intermdia foi o melhor que arranjou, decidindo colocar dois escudeiros de guarda liteira com ordens para no deixarem ningum dela se aproximar. Caso interrogados, diriam que tinham ordens e que a liteira vazia de Lady Rowena estava a ser aproveitada para carregar um dos companheiros feridos no recontro.
Em Torquilstone, enquanto o Templrio e o castelo se ocupavam dos seus objectivos pessoais, um do tesouro, outro da filha do Judeu, os escudeiros de De Bracy transportaram o seu suposto camarada ferido para um apartamento distante. Foi mesmo esta a explicao que deram a Front-de-Boeuf quanto ao atraso com que se apresentaram nas muralhas aps o alarme. - Um companheiro ferido! - Surpreendido, zangou-se. - J no de espantar que pacvios e patifes ousem assediar um castelo, que palhaos e porqueiros apresentem reptos e nobres, uma vez que homens de armas se transformam em enfermeiras e mercenrios servem de gatos-pingados, quando um assalto se prepara. para as ameias, malandragem! - bradou no seu vozeiro estentreo, que ribombou nas arcadas, - para As ameias, ou desfao-vos a porrete! Os homens, embatucados, responderam-lhe que nada mais desejariam do que fazer o que lhes era mandado, conquanto Front-de-Boeuf os justificasse junto do chefe, que lhes ordenara atendessem ao moribundo. - Ao moribundo, canalha? - rugiu o baro. - Asseguro-vos que moribundos seremos todos ns se no reunirmos toda a nossa coragem. Mas, esperai, que vos rendo a guarda que fazeis... Vem c, Urfried! Velha! Bruxa saxnia, no ouves? Vai tratar do homem ferido, que parece ter de ser tratado para que estes patifrios peguem em armas. Aqui tendes duas bestas, pols e virotes... Saltai para a barbac e tentai furar uma cabea saxnica por cada disparo. Os dois indivduos, que, como quase todos os da sua profisso, apreciavam aventuras e detestavam a inactividade, correram alegremente para a zona de perigo, deixando o fardo que Ivanho constitua nas mos de Urfried, ou Ulrica. Esta, porm, com o crebro a fervilhar lembrana de agravos e projectos de vingana, logo o transferiu para Rebeca.
Captulo XXIX
Sobe, sobe aquela torre de vigia, meu bravo soldado, Examina o terreno e diz-me como corre a batalha. - A Donzela de Orlees, de Schiller
Os momentos de perigo so igualmente de bondade e afeio. Abrimo-nos agitao dos nossos sentimentos e desvendamos a intensidade daqueles que, em alturas tranquilas, a nossa prudncia oculta, quando no consegue domin-los completamente. Ao ver-se outra vez junto de Ivanho, Rebeca surpreendeu-se com o prazer imenso que tal facto lhe causava, indiferentemente de o ambiente que os rodeava ser de perigo ou, at, quase de desespero. Tomando-lhe o pulso e interrogando-o sobre o seu estado, quer o seu toque, quer o seu tom, se mostravam duma suavidade tal que s poderia ser atribuda a um interesse maior do que aquele que voluntariamente gostaria de deixar transparecer. A voz faltava-lhe, a mo tremia-lhe, e, no fora a fria questo de Ivanho "Sois vs, gentil menina?", nem se lembraria de que as sensaes que a invadiam no podiam ser correspondidas. Suspirou quase infalivelmente, mas as perguntas que passou a pr ao cavaleiro, quanto ao seu estado de sade, saram-lhe em tom perfeitamente normal e de amigvel calma. Ivanho agradeceu-lhe, dizendo que se sentia bem melhor do que contava. - Obrigado, querida Rebeca - disse -, pela tua bondosa interveno. "Chamou-me querida Rebeca", pensou a rapariga, "mas de modo frio e descuidado que to Pouco condiz com o termo. O seu cavalo de guerra, o seu mastim, ser-lhe-o mais queridos do que eu, a aviltada judia". - A minha mente, gentil menina, sofre mais por ansiedade do que o meu corpo com dores. Ao que ouvi queles homens que estiveram a guardar-me at agora, sei ser prisioneiro e, se me no engano, aquela voz que lhes ordenou que se encarregassem de qualquer actividade blica que no percebi qual seria diz-me encontrar-me no castelo de Front-de-Boeuf. Assim sendo,
como vai isto acabar e como poderei defender Lady Rowena e meu pai? "Nem fala do Judeu, nem da Judia", pensou Rebeca. "Mas, afinal, que podemos ns representar para ele? certo estar o Cu a castigar-me por me permitir pensar tanto nele..." Aps esta auto-recriminao, informou Ivanho o melhor que pde e que era pouco, ou seja, que o templrio Bois-Guilbert e o baro Front-de-Boeuf eram quem mandava dentro das muralhas do castelo e que este estava cercado por gente que no sabia quem seria. Acrescentou encontrar-se no edifcio um padre cristo, que talvez soubesse mais do que ela. - Um padre cristo! - Traz-mo aqui, Rebeca, se puderes... diz-lhe que um doente necessita de conforto espiritual... diz o que te ocorrer, mas tr-lo. Algo tenho de fazer, mas o qu no o posso saber sem conhecer como esto as coisas. Rebeca, de conformidade com os desejos de Ivanho, procedeu infrutfera tentativa de conduzir Cedric ao quarto do ferido, sem resultados, como vimos, devido interferncia de Urfried, que tambm esperava o suposto monge. Rebeca regressou para relatar a Ivanho o seu insucesso. No lhes foi, porm, dado muito tempo para lamentarem a perda daquela possvel fonte de informaes ou procurarem outra
forma qualquer de as conseguirem, j que a ruidosa azfama dentro do castelo, preparando-se para a defesa, que de h muito j era intensa, mas que decuplicara agora, quer em movimentaes, quer em alarido, tudo calava. Os passos, pesados mas apressados, dos homens de armas, correndo nas defesas ou nas estreitas passagens e escaleiras que para aquelas davam, tudo atordoavam. s vozes dos cavaleiros, bradando a animar os homens ou a dar instrues, juntavam-se os gritos daqueles a quem eram endereadas. Tremendos que fossem estes rudos, mais horrveis ainda por aquilo que pressagiavam, algo de sublime a eles se juntara, que Rebeca, com a sua inteligncia sensvel, pressentiu. Os olhos brilhavam-lhe, se bem que tivesse empalidecido, e, numa mescla de medo e excitao e noo de grandeza, repetia, parte em murmrio para si prpria, parte para aquele junto de quem estava, as palavras sagradas "Agita-se a aljava, refulgem as espadas e os escudos, gritam os capites!" Mas Ivanho era como o cavalo de batalha dessa mesma sublime passagem, fremente de impacincia pela sua inactividade e ardendo ao desejo de tomar parte na briga de que aqueles sons no eram seno a introduo. - Pudera eu arrastar-me at quela friesta para apreciar o decorrer deste selvagem recontro! - exclamou. - Tivera eu um arco e flechas para atirar, uma acha de armas para desferir,
contribuindo, o menos que fosse com um nada, para a nossa salvao! intil! em vo! Careo de foras e de armas. - No te consumas, nobre cavaleiro - pediu-lhe Rebeca. - Todo o rudo se suspendeu. Qui a lutar j no venham, - Tudo ignoras - disse Ivanho arrebatadamente. - Este silncio significa todos estarem j a Postos nas muralhas, aguardando o ataque iminente. O que escutmos at agora no mais do que o rugir distante da trovoada. Cedo estalar aqui em cima. Pudera eu acercar-me da friesta. - O esforo muito te prejudicaria, nobre cavaleiro - disse a sua assistente, que, percebendo-lhe o intenso desejo de apreciar o que se Passava, acrescentou: - Eu prpria espreitarei pelo gradeamento e te descreverei tudo o melhor que souber. - No, nunca! - gritou Ivanho. - Cada intervalo das grades ser, dentro de momentos um alvo para os arqueiros. Alguma flecha perdida... - Ser bem recebida! - sussurrou Rebeca subindo com agilidade os dois ou trs degraus que levavam abertura de que falavam. - Rebeca! Rebeca querida! - rogou Ivanho. - isso no brincadeira para donzelas! No te exponhas a ferimentos ou, talvez, morte, tornando-me infeliz para sempre por dela ter sido o causador. Protege-te ao menos com aquele broquel, alm, e mostra-te o mnimo que puderes. Seguindo com espantosa Prontido as indicaes de Ivanho e aproveitando-se da proteco do antigo escudo, que apoiou na parte inferior da friesta, Rebeca, relativamente bem defendida, pde ento assistir a parte do que acontecia do lado de fora do castelo e descreveu a Ivanho os preparos a que os assaltantes se entregavam antes da arremetida. Na verdade, o stio onde se encontrava era altamente conveniente para o efeito, visto estar numa quina do edifcio principal,
pelo que Rebeca no s via o que acontecia para l do cercado do castelo como ainda todas as defesas exteriores, que, tudo levava a crer, seriam o Primeiro Objectivo dos sitiantes. Tratava-se de fortificaes de escassa altura e espessura, construdas para a proteco da Porta falsa pela qual Front-de-Boeuf deixara recentemente Cedric sair. O fosso dividia esta espcie de barbac do restante da fortaleza, de modo que, se fosse tomada, a ligao fortaleza seria cortada pelo iar da ponte levadia, Nas obras exteriores existia uma porta frente do portal do castelo, sendo o todo protegido por uma robusta Paliada. Rebeca percebeu, pela quantidade de homens que defendiam este ponto, dever ser ele o que mais temiam fosse acometido e, pela reunio de assaltantes em frente do mesmo, que realmente o haviam seleccionado entre os mais vulnerveis.
Apressadamente, transmitiu a Ivanho estas impresses, acrescentando ainda: - A orla da floresta parece pulular de arqueiros, mas muito poucos apenas saram para j da sua sombra. - Qual a bandeira deles? - perguntou Ivanho. - Que eu veja, no h qualquer insgnia. - Trata-se de coisa nova - murmurou o cavaleiro. - Isso de se avanar sobre um castelo sem se ostentarem bandeiras ou guies estranho. Consegues perceber, pela forma como actuam, quem os comanda? - O que mais me parece faz-lo um cavaleiro de armadura negra. S ele est couraado da cabea aos ps e aparenta dirigir todos sua volta. - Que ostenta o seu escudo? - quis Ivanho saber. - Algo assemelhando-se a uma tranca de ferro e a um aloquete azul-claros em campo negro(1). - Uma barra de ferro e um aloquete azul-claros - repetiu Ivanho. - No sei a quem possa pertencer essa insgnia, mas bem poderia, neste momento, ser a minha. Consegues ler o mote? Dificilmente se v o desenho a esta distncia. Quando o sol lhe bater, dir-te-ei. - No haver outros chefes? - indagou ansiosamente Ivanho. *1.. O autor j foi criticado por falta de conhecimento de herldica colocando metal sobre metal. No entanto, negro, ou sable e azul, ou blau, so ambos esmaltes. (N. do T.) Dever contudo ser recordado que a herldica teve os seus ainda indefinidos comeos durante as cruzadas e que todas as mincias desta cincia foram evoluindo com o tempo e criadas em perodos bem mais tardios. Quem pensar o contrrio deve tambm supor que a deusa dos Armoiriers, tal como a deusa dos armeiros, veio a este mundo completamente equipada com todos os enfeites e decoraes do sector a que preside. Nota adicional. - Corroborando o atrs citado, poder-se- observar que as armas que Godofredo de Bulho para si escolheu, aps a conquista de Jerusalm, foi uma cruz contrapontada cantonada com quatro pequenas cruzes de ouro, em fundo azul, colocando assim metal sobre metal. A confuso parece prevalecer, uma vez que s o ouro e a prata so metais.
(N. do T.) Os herldicos tentaram explicar este facto inegvel de diversas maneiras, mas Ferne sugeriu corajosamente que um prncipe com as qualidades de Godofredo no se podia submeter a regras comuns. O escocs Nisbet e o mesmo Ferne insistem que os comandantes cruzados devem ter permitido a Godofredo este extraordinrio braso, de modo a levarem quem o visse a fazer perguntas acerca dele. Da resultou o nome de arma inquirenda. Com a devida vnia a estas respeitveis autoridades, parece pouco provvel que os prncipes da Europa autorizassem a Godofredo um escudo de armas to contrrio s regras gerais, se que tais regras existiam j. De qualquer modo, isto prova que metal sobre metal, agora um solecismo em herldica, era admitido noutras ocasies prximas daquela em que decorre o texto. Ver Blazon of Gentrie de Ferne, p. 238, ed. 1586, e Heraldry, de Nisbet, vol. 1, p. 113, 2 ed. (Fim da nota.)
- Nenhum que o parea que daqui se possa distinguir - disse Rebeca -, mas, certamente, o outro lado do castelo est tambm a ser assaltado. Creio que se preparam agora para avanar... Que o Deus de Sio nos defenda! Que espectculo medonho! Os que avanam carregam escudos enormes e proteces feitas de pranchas; seguem-se-lhes outros j vergando os seus arcos. Levantaram-nos agora! Deus de Moiss, perdoa s criaturas que fizeste! O relato foi de repente interrompido pela ordem de assalto, estridentemente solta por uma corneta, qual trombetas normandas responderam de entre os merles, enquanto tmbalos de som grave repercutiam em aceitao ao desafio. Os gritos de ambos os lados acresciam o clamor, berrando os assaltantes: "So Jorge pela alegre Inglaterra!" e respondendo-lhes os normandos: "En avant De Bracy! Beau-Sant-Beau-Sant! Front-de-Boeuf la rescoussel!" No seria contudo o barulho que decidiria O conflito, e os esforos intensos dos atacantes tiveram de enfrentar uma igualmente vigorosa defesa por parte dos sitiados. Os arqueiros, cuja vida na mata lhes dera grande percia, disparavam com tanta preciso que, onde quer que um defensor se mostrasse um pouco, logo enormes setas se cravavam no alvo ou perto do local. Este intenso disparar, que prosseguia, espesso e constante como granizo, cada flecha com destino marcado, dirigido contra todas as aberturas e fendas dos parapeitos, bem como janelas e postigos onde algum estivesse ou se supusesse pudesse estar, matou dois ou trs elementos da guarnio e feriu vrios outros. Todavia, confiantes na resistncia das suas armaduras e na Proteco que a sua situao lhes concedia, Front-de-Boeuf e os seus defendiam-se com teimosia equiparvel fria dos atacantes e replicavam com cerradas descargas das suas grandes bestas, fundas e Outros msseis contra a tambm densa chuvada de dardos e setas. Os assaltantes, protegidos, mas no totalmente, iam portanto sofrendo tambm baixas e superiores s dos assaltados. O silvar de flechas era apenas quebrado pelos gritos dos que eram atingidos ou por exclamaes quando algum de valor era
perdido. - E tenho eu de ficar aqui na cama como um abade - bradou Ivanho -, enquanto o jogo do qual dependem a minha vida ou morte travado por outrem! Espreita, novamente, bondosa menina, mas toma cautela! Espreita e diz-me se j avanaram o bastante para iniciarem o assalto. Com paciente coragem, reforada pela orao que rezara durante aquela pausa, Rebeca retomou o seu lugar, tendo o cuidado de se colocar de modo a no ser vista de baixo. - Que vs, Rebeca? - pediu outra vez o guerreiro ferido. - Nada, a no ser uma nuvem de setas to espessa que me atrapalha a vista e esconde os arqueiros que as lanam. - No pode continuar assim - disse Ivanho.
- Se no pressionarem de modo a se atirarem ao castelo pela fora bruta, os virotes e as flechas pouco conseguiro contra as muralhas. Procura o cavaleiro do aloquete e diz-me o que faz, pois, como proceder o comandante, os demais procedero. - No o vejo - informou Rebeca. - Malandro! Ser que foge quando o vento uiva mais forte? - No recuou! No fugiu! - exclamou Rebeca. - Vejo-o agora frente dum grupo junto da estacada da barbac(2). Derrubam os toros e a paliada! Cortam-nos com os seus machados. O seu penacho tremula acima de todos como um corvo num campo de batalha onde s os mortos ficaram. Romperam a barreira! So repelidos! Front-de-Boeuf comanda a defesa! O seu corpo gigante destaca-se da multido. J se atiraram de novo brecha e disputam-na corpo a corpo, mo a mo! Deus de Jacob! Mais parecem duas vagas chocando-se... um conflito entre dois oceanos empurrados por ventos contrrios. Voltou a face, como se no pudesse continuar a olhar espectculo to horrvel. - Continua a espreitar, Rebeca - disse Ivanho, equivocando-se quanto causa da desistncia dela. - Os arqueiros devem ter abrandado, j que o combate , no momento, corpo a corpo. Espreita, pois j no to perigoso. Rebeca f-lo, para exclamar logo de seguida: - Santos profetas! Front-de-Boeuf e o Cavaleiro Negro combatem um com o outro na brecha, enquanto os restantes pararam para melhor os apreciarem. Que o Cu d o triunfo causa dos presos e oprimidos! - Soltou um grito exclamando: - Caiu! J caiu! - Quem? - perguntou Ivanho. - Quem, por Nossa Senhora, quem que caiu? - O Cavaleiro Negro - disse fracamente Rebeca, imediatamente mudando para uma interjeio de alegria. - No! No! Abenoado seja o deus dos exrcitos! Est de novo de p e luta como se a fora de vinte homens se tivesse concentrado em cada um dos seus braos... A espada quebrou-se-lhe... arranca outra das mos de algum... aperta Front-de-Boeuf em golpes sucessivos. O gigante curva-se, cambaleia como um carvalho abatido pelo machado do lenhador e... cai! Cai! - Front-de-Boeuf? - perguntou Ivanho. - Sim, Front-de-Boeuf - respondeu a judia. - Os seus homens, com o altivo Templrio frente, acorrem. O seu nmero obriga
*2.. Todos os castelos e cidades gticos tinham, fora de portas, uma defesa em paliada frequentemente cenrio de escaramuas, j que estas barreiras tinham de ser ultrapassadas antes de as muralhas poderem ser assaltadas. Muitos dos grandes feitos de cavalaria recitados nas pginas de Froissart ali ocorreram.
o campeo a restringir-se um pouco e conseguem arrastar Front-de-Boeuf para dentro das muralhas. - Os assaltantes esto ento senhores do terreno, no esto? quis Ivanho saber. - Esto, esto - confirmou Rebeca. - E apertam os defensores contra os muros. Uns colocam escadas, outros, parecendo um enxame de abelhas assanhadas, tentam trepar, saltando para os ombros uns dos outros... De cima caem pedras, pranchas, troncos... mas os feridos so logo substitudos por foras frescas que os rendem. Meu Deus! Criaste o homem Tua imagem para que a destrusse s suas prprias mos! - No penses nisso - mandou-lhe Ivanho. - No altura para essas coisas... Quem cede? Quem avana? - As escadas foram derrubadas - estremeceu Rebeca. - Os soldados rastejam sob elas como rpteis esmagados. Os sitiados levaram a melhor. - So Jorge os auxilie! - implorou Ivanho. - Os homens livres desistiram? - No. Comportam-se com todo o garbo... O Cavaleiro Negro est junto do porto desferindo tremendas machadadas com a sua acha, golpes que se ouvem acima da peleja. Atiram pedras e paus contra ele. Liga-lhes tanto como a sementes de cardo sopradas pela brisa! - Por So Joo de Acre! - ergueu-se jubiloso Ivanho no leito. - Acho que em Inglaterra s existe um homem capaz de feitos tais! - J estremece o porto - prosseguiu Rebeca -; estala, desfaz-se aos seus golpes. Penetram-no! As fortificaes exteriores esto tomadas! Oh, meu Deus! Levam os defensores de rodilho, fazendo-os cair no fosso. Homens! Se sois homens, poupai os que j no podem defender-se! - E a ponte? A ponte que liga ao castelo? Tomaram-na tambm? perguntou Ivanho. - No - informou Rebeca. - O Templrio cortou-a e escapou-se com alguns dos defensores para dentro do castelo. Os gritos e os gemidos que escutas dizem-te da sorte dos restantes. Meu Deus! ainda pior apreciar uma vitria do que uma batalha! - Que esto a fazer no momento? - insistiu Ivanho. - Diz-me, pois, no ocasio para desmaiares vista de sangue. - Para j, est tudo parado - continuou Rebeca. - Os nossos amigos reagrupam-se. Esto to bem defendidos do inimigo, que a guarnio se limita a atirar-lhes, de tempos a tempos, meia dzia de frechadas, mais para os incomodar do que para os atingir. - Os nossos amigos no vo, certamente, abandonar uma empresa to gloriosamente iniciada e que to felizmente resultou comentou Ivanho. - No. Tenho a certeza de que o bom
cavaleiro, cujo machado despedaou cerne de carvalho e barras de ferro... Curioso - murmurou - haver duas pessoas capazes de praticarem tal acto de fria coragem... Uma barra de ferro e um aloquete em campo negro?... Que significaro? No h mais nada, Rebeca, que possa identificar o Cavaleiro Negro? - Nada - disse-lhe ela. - tudo negro como a asa do corvo. Nada mais se v. Mas, depois de o ter visto empregar a sua fora sem limites, creio que, de agora em diante, o distinguiria entre mil outros guerreiros. Vai para a refrega como para uma festa. H nele algo mais do que fora. Aparenta servir-se tambm da prpria alma e esprito quando enfrenta os adversrios. Deus o absolva do pecado da carnificina. Mete medo e, no entanto, magnfico apreciar-se como o esprito e a fora dum s homem podem triunfar sobre centos. - Rebeca - disse o ferido -, acabaste de descrever um heri. Decerto descansam para retomar foras e arranjar modo de ultrapassar o fosso. com um chefe desses no existem temores, atrasos ou hesitaes. As dificuldades dum trabalho rduo tornam-no mais glorioso ainda. Juro pela honra do meu nome, pela minha amada, que aceitaria dez anos de cativeiro se, antes de para a priso partir, me fosse permitido bater-me ao lado dum guerreiro daquela natureza, numa luta como esta! Rebeca saiu donde estava e aproximou-se do leito do guerreiro: - Esse ardente desejo de aco, essas queixas e protestos contra a tua fraqueza momentnea, faro mal tua convalescena. Como pensas poder bater algum antes de venceres as feridas que te causaram? - Rebeca - respondeu ele -, sabers como difcil para quem foi criado na cavalaria o ter de se manter passivo, quando aces de glria acontecem mesmo a seu lado? O amor ao combate o meu alimento, o p da Mle(3) o ar que respiramos. No vivemos... no desejamos viver sem que tenhamos alcanado a vitria gloriosa. So, donzela, estas as leis da cavalaria s quais nos ajuramentmos e s quais tudo que nos querido oferecemos. - Ai! - exclamou a bela judia. - E que mais isso do que a oferta dum sacrifcio ao demnio da vaidade, um cair no fogo de Moloch? Que vos resta como prmio de tanto sangue? De todas as dores e penares? De todas as lgrimas que provocastes pelos vossos feitos, quebrando lanas e esfalfando corcis? - Que resta? - repetiu Ivanho. - Glria, menina, glria! Glria dourando a nossa sepultura, glria tornando o nosso nome imortal! - Glria? - perguntou a rapariga. - ela a ferrugenta armadura pendendo sobre o esquecido e triste tmulo do guerreiro? *3.. Em francs no texto. Refrega. (N. do T.)
A inscrio apagada que o monge mal sabe traduzir para o peregrino que o interroga? Sero estes os prmios, correspondentes ao sacrifcio de todas as afeies, para se viver uma vida de sofrimento, fazendo os demais sofrerem? Ou ser que h tanto mrito nas toscas limas dos bardos errantes, para se porem de parte amores, afeies, paz e felicidade,
para nelas se ser mencionado por menestris vagabundos, cantando-as em tavernas para os bbados? - Pela alma de Hereward! - bradou o cavaleiro. - Falas sobre o que desconheces. Retiras o puro brilho cavalaria, que, por si s, separa o nobre do vilo, o cavaleiro do rstico, que nos eleva a viver muito para l de todas as honras, nos ergue, vitoriosos, por sobre a dor, o trabalho e o sofrimento, e nos ensina a nada temer seno a desgraa. No s crist, Rebeca, e no podes alcanar o que sente o peito duma donzela nobre quando o seu amado realiza algo que entre os outros o destaque! A cavalaria! Ela a me da mais pura e elevada afeio, o apoio dos oprimidos, a redentora dos ofendidos, um chicote sobre os tiranos. "Nobreza" seria uma palavra oca sem cavalaria e na sua lana e espada que a liberdade encontra o seu maior defensor. - Perteno - reconheceu Rebeca - de facto a uma raa cuja coragem na defesa da sua ptria de todos conhecida, mas que, mesmo quando constitua ainda uma nao, no entrava em guerras, a no ser quando ordenada pela Divindade, ou na defesa da sua terra contra a opresso. O som da trombeta j no faz Jud levantar-se e os seus odiados filhos no passam, hoje, de vtimas de opresso feroz. Haveis dito bem, Sr. Cavaleiro... Sem que o deus de Jacob faa surgir entre o seu povo eleito um novo Gedeo ou outro Macabeu, no est certo que uma donzela judia fale de batalhas e de guerras. A generosa moa concluiu esta tirada em tom magoado, que bem exprimia o quanto sentia a degradao em que o seu povo cara e, simultaneamente, todo o seu azedume ideia de poder Ivanho crer no competir a algum como ela discutir questes de honra ou sequer entender assuntos elevados e generosos. "Que Mal ele me conhece", disse para si mesma, "para poder pensar-me covarde ou mesquinha, s porque censurei a fantstica cavalaria dos nazarenos! Pudesse eu, com o meu sangue, gota a gota, redimir Jud... Ou ao menos levar Deus a salvar o meu pai e este seu protector das garras que o prendem. O altivo cristo veria ento se uma filha do povo eleito seria ou no capaz de perecer to bravamente como qualquer vazia nazarena que se gaba por lhe correr nas veias o sangue dum qualquer chefe brbaro do rude e glido norte!" Olhando para o leito de Ivanho, continuou com o seu devaneio. "Adormeceu. A dor e a excitao levaram o seu corpo exausto a Procurar o descanso adormecendo. Ser pecado que para ele olhe, como se da derradeira vez se tratasse?
possvel que em breve as suas to belas feies deixem, mesmo no sono, de ser animadas pelo esprito de luz que as aviva. Quando as suas narinas j no mais se dilatarem, respirando, e a boca se mantenha aberta e os olhos, parados e de sangue raiados. Quando este nobre cativo, neste castelo maldito, possa ser pisado pelo ser mais nfimo aqui dentro nem sequer reaja ou se mova! E meu pai? Oh! meu pai! Perversa a filha que esquece as suas cs somente por encarar outros cabelos mais jovens e dourados. Que sei eu? Sero estes males mensagens da ira de Jeov contra esta mulher ingrata que s pensa no sofrimento de estranhos, esquecendo os do pai? Que esquece o padecer de Jud para apenas se lembrar da beleza dum gentio? No entanto, desenraizarei esta loucura do meu peito,
nem que a ela juntas venham todas as fibras que a prendem." Envolveu-se no vu, sentou-se um pouco afastada do leito onde jazia o guerreiro ferido, de costas para ele, e procurou encher-se de foras para enfrentar os perigos que pairavam l fora e tambm aqueles que dentro do peito a assaltavam.
Captulo XXX Entrai no quarto, vede a cama; Sua alma no sai suavemente, Qual cotovia subindo ao cu, Na manh de orvalho e brisa doce. Subindo entre lgrimas e ais, No, no! Anselmo no passa assim. - Pea antiga Na calma que se seguiu ao primeiro sucesso dos sitiantes, e enquanto se preparavam para a explorar, uns, e outros, para reforar as suas defesas, o Templrio e De Bracy travavam um curto concilibulo no salo do castelo. - Onde est Front-de-Boeuf? - indagou O ltimo, a quem coubera a defesa do outro lado da fortaleza. - Dizem que foi abatido. - Est vivo - disse o Templrio -, vivo ainda, mas, mesmo que tivesse envergado a cabea de boi que lhe deu o nome e dez placas de ferro a Protegerem-no teria ido da mesma maneira abaixo com aquela machadada. Dentro de escassas horas, Front-de-Boeuf juntar-se- aos seus maiores e o prncipe Joo perder um dos seus mais poderosos braos. - Com que o reino de Satans Muito vir a lucrar - acrescentou De Bracy -, este o resultado de se desprezar em santos e anjos e de se fazer atirar imagens e outras coisas santas por cima da canalhada! - Ide para o... s louco! - admoestou-o o Templrio. - A tua superstio equipara-se falta de f de Front-de-Boeuf. Nenhum de vs pode falar de crenas e descrenas. - Benedicite, Sr. Templrio - respondeu De Bracy. - Cuidado com a lngua, no que me toca. Pela Me do Cu! Sou melhor cristo do que tu e os teus amigos, Pois corre um zunzum de a mais sacra das ordens, a do Templo de Sio, albergar no poucos herticos no seu seio, fazendo Brian de Bois-Guilbert parte desse nmero. - No ligues a tais coisas - aconselhou o Templrio - e pensa, antes, na defesa do castelo. Como lutaram Os viles que te atacaram?
- Como demnios - respondeu De Bracy. - Enxamearam perto da muralha sob o comando, creio, daquele patife que venceu o tiro ao arco, pois reconheci-lhe a trompa e o boldri. Isto so os resultados da poltica de Fitzurse, que encoraja esta canalha ordinria a revoltar-se contra ns. No estivesse eu couraado de alto abaixo, e aquele malandro, que contra mim disparou sete vezes, ter-me-ia varado como se um veado fosse. Acertou
em todas as placas da minha armadura com flechas tais e com tanta fora que os ossos e as costelas me ficaram a vibrar. Valeu-me a cota de malha espanhola que uso por baixo, ou teria ido desta para melhor. - Mesmo assim, conservaste a tua posio - disse o Templrio. - Ns perdemos as defesas exteriores. - Trata-se duma dura perda - reconheceu De Bracy. - A vilanagem tem ali abrigo para melhor acometer o castelo, apanhar algum torreo desguarnecido ou alguma janela esquecida e sobre ns cair. Somos demasiado poucos para atendermos a todos Os locais e os homens j se queixam de que no podem mostrar-se nem um pouco que sobre eles no caia um verdadeiro chorrilho de setas. Front-de-Boeuf est moribundo, pelo que no podemos mais contar com a sua imensa fora. Que pensais, Sir Brian, quanto a entendermo-nos com essa gentalha, entregando-lhe os prisioneiros? - Como?! - bradou o Templrio. - Entregar os nossos prisioneiros e tornarmo-nos o objecto de todo o ridculo e desprezo que sobre ns tombaria como cavaleiros que se atreveram, num ataque nocturno, a prender um grupo de pessoas indefesas, mas que no conseguiram defender um robusto castelo contra um bando de vagabundos e ladres, comandados por bufes e porcarios, o autntico refugo da humanidade? Envergonhai-vos da vossa sugesto, Maurice de Bracy! As runas deste castelo tero primeiramente de me cobrir o corpo e a vergonha antes que aceite to baixa proposta. - Dirijamo-nos, pois, para os muros - disse De Bracy com indiferena. - No h homem, seja ele turco ou templrio, que tanto despreze a vida como eu. Creio, contudo, no ser desonroso o desejar que estivessem aqui mais quarenta dos meus bravos companheiros. Oh, minhas bravas lanas! Soubsseis vs que dia difcil est o vosso capito a viver e depressa aparecereis com a minha bandeira acima dos vossos acerados ferros! E como pronto varrereis todo este lixo l fora! - Tem os desejos que quiseres - disse o Templrio -, mas aproveitemo-nos dos soldados que temos. quase tudo gente de Front-de-Boeuf, odiada pelos ingleses, dadas as suas atitudes de insolncia e violncia. - Tanto melhor - comentou De Bracy. - Esses escravos calejados defender-se-o at sua ltima gota de sangue s para escaparem ao desagravo que os camponeses lhes extorquiriam.
Vamos ao que h para fazer. para morrer ou viver. Vers, Guilbert, que Maurice de Bracy um autntico cavaleiro, digno do seu sangue e da sua linhagem. - s muralhas! - gritou o Templrio; e ambos l foram, inteiramente dispostos a fazer tudo que a sua arte permitisse e as suas foras deixassem para a defesa do forte. Um e outro reconheceram ser a barbac, frente s defesas exteriores, o ponto mais ameaado, em virtude de as ltimas j terem sido dominadas. O castelo estava separado daquela barbac pelo fosso, sendo impossvel aos atacantes acometer o porto sem ultrapassarem aquele obstculo. Tanto o Templrio como De Bracy entendiam, porm, que os atacantes deveriam repetir a tctica do seu chefe, tentando uma nova acometida em fora, chamando a ateno das defesas para aquele ponto e, depois, aproveitarem -se de qualquer descuido noutro local. para Se
Protegerem de tal ocorrncia, os cavaleiros colocaram sentinelas nas ameias, espaadas mas com possibilidade de comunicao entre si para que o alarme, a dar-se, pudesse ser efectivo. Concordaram ainda que De Bracy defenderia O Porto e que o Templrio, com mais ou menos vinte homens, constituiria uma reserva pronta a acudir a qualquer stio em dificuldades. A perda da barbac exterior tinha ainda como lamentvel resultado o facto de, apesar da altura dos muros, os sitiados no poderem apreciar com a mesma exactido a movimentao do inimigo, at porque alguns bosquetes, muito juntos s portas, podiam permitir-lhe que ali se escondesse sem sequer ser percebido. Completamente incapaz de adivinhar onde aconteceria o assalto, De Bracy e os seus sentiam-se na obrigao de prever todas as contingncias, pelo que os soldados, embora valentes, se sentiam abatidos, como normal nas pessoas cercadas por um adversrio com o poder de deciso quanto e quando e onde actuar. Na mesma ocasio, o castelo e principal dos ameaados sitiados jazia num catre, cheio de dores e angstia. No dispunha dos usuais recursos dos fanticos do seu tempo, que, na maioria, por meio de ddiva Igreja, procuravam afastar as penas que, pelos Seus pecados, os aguardavam. Esse refgio, que algumas vezes alcanavam, ainda que se limitasse a um estado de paz de esprito que se sucede a um arrependimento verdadeiro, exactamente como o confuso estupor, resultante do pio, parece aos que o sentem um estado normal, esse refgio, dizamos, era sempre prefervel agonia dum remorso puro. Todavia, entre os defeitos de Front-de-Boeuf, pessoa dura e de pssimo humor e em quem a avareza predominava, estava o de preferir desafiar a Igreja e os seus elementos a comprar-lhes o perdo e a absolvio custa de riqueza. Tambm o Templrio, um descrente doutro tipo, no definia bem o seu aliado quando afirmava no poder Front-de-Boeuf partilhar
completamente de qualquer causa em virtude da sua descrena e desprezo pela f estabelecida, pois que o baro somente entendia que a Igreja vendia os seus produtos demasiado caros e que a liberdade espiritual que oferecia era apenas para se comprar, como aconteceu com aquele comandante de Jerusalm, "a peso de ouro", Front-de-Boeuf, de igual modo, dizia que os remdios no prestavam, porque no estava disposto a pagar honorrios a fsicos. No entanto, alcanara o instante em que todos os tesouros terrenos lhe fugiam na frente. No obstante o seu corao empedernido como uma m de baixo, Front-de-Boeuf olhava, pasmado, para o estril futuro que se estendia sua frente. A febre, que lhe aumentava a ansiedade e a agonia, levava-o a ver o derradeiro leito como inaceitvel, enchendo-o de horrores, que procurava combater com a inveterada teimosia do seu carcter. Um dramtico estado de alma s comparvel ao do daqueles fervilhando de desesperana, remorsos no arrependidos e uma temerosa sensao duma agonia que no passar nem diminuir. - Onde andam esses patifes dos padres - rosnou o baro -, que to caro levam pelas suas bambochatas espirituais? Onde esto esses Carmelitas Descalos, para quem o velho Front-de-Boeuf fundou o Convento de Sant'Ana, lesando desse modo o seu
legtimo herdeiro de tantos prados, bons campos e... Onde param esses ces? Emborcando, aposto, cerveja ou resmungando as suas rezas junto da cama de algum campnio... Eu, o herdeiro do seu fundador... eu, por quem so obrigados a rezar... eu... Viles ingratos, ' o que eles todos so! Deixam-me morrer como um co vadio,sem eira nem beira... Dizei ao Templrio que venha aqui; ele padre e pode fazer algo. Mas no! Preferiria confessar-me ao Diabo do que a Bois-Guilbert, que no conta nem com o Cu, nem com o Inferno... ouvi os velhos falarem de oraes, oraes ditas por eles prprios para dispensarem a interveno de sacerdotes... S que eu no sei diz-las. - Est vivo - disse uma voz estaladia a seu lado - o Reginald Front-de-Boeuf que afirma no saber fazer qualquer coisa? A conscincia pesada e os nervos abalados de Front-de-Boeuf viram nesta voz, que lhe rompera o solilquio, a dum daqueles demnios que, de acordo com a superstio, se sentavam junto dos moribundos para os afastarem de pensamentos e meditaes acerca do porvir eterno. Estremecendo, encolheu-se. De imediato se recomps e exclamou: - Quem est a? Quem s tu, que ousas papaguear as minhas palavras como o corvo da meia-noite? Aproxima-te para que te conhea! - Sou o teu anjo mau, Reginald Front-de-Boeuf - entoou a voz. - Mostra-me ento a tua forma corporal, se s, de facto, um demnio, - respondeu-lhe o quase morto cavaleiro.
- No julgues que me apavoras. Pelos fogos perptuos, pudera eu deitar mo a estes horrores que me cercam, como fiz com os perigos terrenos, e ningum, na Terra, no Cu ou em qualquer lugar, poderia afirmar que jamais me furtei a qualquer luta! - Lembra-te dos teus pecados, Reginald Front-de-Boeuf - disse a voz, que parecia vir do Alm -, das traies, da rapina, dos assassnios! Pensa em quem levou o devasso Joo a lutar contra o seu velho pai... e contra o seu generoso irmo! - Sejas tu demnio, padre ou demo - respondeu Front-de-Boeuf -, mentes com quantos dentes tens! No fui eu s quem levou Joo a revoltar-se! Cinquenta outros cavaleiros e bares, a fina flor do Centro... melhores no existiam... Terei eu de pagar pelo mal de cinquenta? Falso demnio, desafio-te! Desaparece e no assombres mais o meu catre... deixa-me morrer em paz, se s mortal. Se vens do Inferno, o teu momento ainda no chegou. - Em paz NO morrers tu - disse a voz, - Mesmo no momento da morte ters de recordar os teus crimes... os gemidos que soaram dentro deste castelo... no sangue que embebeu os seus soalhos. - No me assustas com as tuas mafarriquices - ripostou Front-de-Boeuf com um funbreo e retrado riso. - O judeu infiel? Trat-lo como fiz foi uma obra de mrito. No verdade serem canonizados aqueles que se cobrem de sangue sarraceno? Os porcarios saxes que matei? No eram eles inimigos da minha nao, da minha linhagem e do meu suserano? Ah! Ah! Como vs, no fcil encontrar falha na minha couraa. J te foste? Calaste-te? - No, infame parricida! - ecoou. - Lembra-te de teu pai ! Pensa na sua morte! Recorda-te do salo coberto com o seu
sangue que escorria das mos do prprio filho. - Ah! - disse o baro, depois de demorada pausa. - E tu, sabendo quem o mal provocou, deves ser omnisciente, como os padres dizem. Esse segredo julgava-o s conhecido por mim e por quem ao meu lado se encontrava... a tentadora, a minha conivente. Vai! Deixa-me, demnio! Vai e fala com a bruxa saxnia, Ulrica, que te dever ter dito aquilo que somente ela e eu testemunhmos. Vai, digo-te! Vai ter com aquela que cuidou do ferido e tratou do cadver, dando ao assassinato e ao assassinado um ar de morte natural. Vai ter com ela, que me tentou, me provocou e que mais lucrou com o crime... Que sofra comigo nas profundas do Inferno! - J as est a sofrer! - exclamou Ulrica colocando-se frente do leito de Front-de-Boeuf. - H muito que bebe dessa amarga taa, somente agora adoada pela cincia de tu dela provares igualmente... No ranjas os dentes, Front-de-Boeuf, no revolteis os olhos, no apertes as mos, nem com elas me ameaces! A mo que, como a do teu famoso antepassado que vos deu o nome e que pde abater dum murro um touro bravo, agora to dbil e impotente como a minha!
- Vil velha! - gritou Front-de-Boeuf. - Coruja odiosa! s tu, ento, quem vem exultar sobre as runas que ajudaste a criar? - Sou - respondeu ela -, sou Ulrica, a filha do assassinado Torquil Wolfganger e irm dos seus filhos, assassinados tambm. ela quem exige de ti, da tua casa, de teu pai, do nome e da fama dos teus antepassados, tudo que perdeu devido aos Front-de-Boeuf. Recorda os males que pratiquei e reconhece teres sido tu o meu anjo perverso, tal como agora serei eu o teu. Massacrar-te-ei at ao momento da verdade! - Fria detestvel! - urrou Front-de-Boeuf. - Jamais assistirs a tal momento... Eh, Clement, Giles, Eustace, Sant Maur e Stephen, arrastem esta bruxa daqui e atirem-na da muralha de cabea para baixo, Ela atraioou-nos em favor do Saxo! Saint Maur! Clement! Onde estais vs, canalhas? - Tornai a cham-los, bravo baro - disse a velha em tom de assustadora troa. - Chamai os vossos vassalos! Ameaai-os com castigos e priso... Mas, sabes, grande senhor - continuou alterando de sbito de tom -, j no existe resposta, nem ajuda, para ti, nem quem te obedea. Escuta aqueles sons horrendos. - Na verdade, o rumor das hostilidades recomeara e, no momento, muito mais perto das muralhas. - o poder de Front-de-Boeuf, cimentado a sangue, estremece nos seus alicerces perante aqueles que mais desdenhava! O Saxo, Reginald! O ridicularizado Saxo assola as tuas muralhas. Que fazes tu, qual cora exausta, quando o Saxo te assalta o abrigo? - Deuses e demnios - gritou o guerreiro ferido -, dai-me uns minutos de vigor para que me arraste at peleja e morra de acordo com o meu nome! - Nem penses nisso, o valente guerreiro, - disse-lhe Ulrica. A tua morte no ser a dum guerreiro, mas sim a duma raposa, no covil, abafada pelo fumo l dentro penetrando. - Megera! Mentes! - tornou a gritar Front-de-Boeuf -, os meus aguentar-se-o com bravura. As minhas muralhas so robustas e elevadas, os meus companheiros de armas no temem um exrcito de saxes, nem que Hengist e Horsa o capitaneassem! Os gritos
de guerra do Templrio e dos mercenrios esto acima de todos mais. Juro-te que na fogueira da alegria e da vitria que acenderemos te torrarei. Viverei na certeza de que deixaste os fogos terrenos para cares nos dos Infernos, que no possuem demnio mais forte do que j s. - Vai acreditando nisso at prova em contrrio - replicou Ulrica -, No! - interrompeu-se a si mesma. - Vais saber qual ser o teu fim, o fim que te espera e que todo o teu poder, fora e coragem no podem evitar e que chegar at ti vindo desta fraca mo. No notas o fumo sufocante que, aos rolos,
entra neste quarto? Julgavas serem os teus olhos ardentes que j te enganavam? No entendias a razo da tua falta de viso e de ar? Front-de-Boeuf, a causa outra. Tens lembrana do depsito de lenha debaixo deste quarto? - Mulher! - gaguejou em fria Front-de-Boeuf. - No lhe pegaste fogo! No me digas que incendiaste o castelo! - As chamas j crescem rapidamente, pelo menos - informou Ulrica com tremenda calma -, e dentro em pouco ser dado um sinal aos sitiantes para que caiam com todo o mpeto sobre os que as tentaro extinguir. Adeus, Front-de-Boeuf! Que Mista, Zerneboc e S ogula, deuses dos antigos saxes, ou demnios, como os padres lhes chamam agora, substituam no teu leito mortal a companhia que Ulrica te no far. Fica ainda sabendo que Ulrica tambm vai, como parceira dos teus crimes, partir para as mesmas escuras paragens para onde tu caminhas. Talvez isso te agrade. Adeus, parricida, adeus para todo o sempre, Que cada pedra desta arcada repita aos teus ouvidos o eco deste epteto! Saiu imediatamente. Front-de-Boeuf ouviu a pancada grave do fecho cerrando a porta que lhe cortava a nica e fraca via de salvao. Em agonia extrema, ainda chamou pelos servos e aliados: - Stephen e Saint Maur! Clement e Giles! Morro queimado! Ajudai-me, ajudai-me, bravo Bois-Guilbert, valente De Bracy! Front-de-Boeuf que vos chama, o vosso amo, traioeiros escudeiros, que assim me deixais perecer. o vosso aliado, o vosso irmo de armas, vs, cavaleiros perjuros e descrentes! Que todas as pragas caiam sobre as vossas covardes cabeas! No me ouvem, no me ouvem, nem podem ouvir. A minha voz perde-se no bramir da batalha. o fumo cada vez mais espesso. O fogo j se apossa do soalho. Dai-me um nada de ar puro, nem que tenha de morrer logo depois de o ter inspirado. - Em louco desespero, o desgraado continuava gritando, praguejando contra si, contra a humanidade, contra o prprio Cu. - Ah! J surge a fulva chama entre a fumaa! - exclamou, - O Demnio avana contra mim sob o estandarte do seu prprio elemento. para trs, esprito sujo! No irei contigo sem os meus camaradas. Todos, todos so teus. Todos os que guarnecem este castelo. Julgas que s Front-de-Boeuf vai contigo? No! O Templrio mpio e o licencioso De Bracy, a nojenta Ulrica, os homens que me apoiaram, os ces dos saxes e dos judeus, todos me acompanharo. Belos companheiros de viagem sero! Ah! Ah! Riu desvairadamente em gargalhadas que a abbada repetiu. Quem est a rir? Ulrica, s tu? Fala, feiticeira, que te perdoarei. S tu ou o rei dos Infernos se ririam num momento
destes. Fiquemos por aqui. Seria doloroso relatar pormenores acerca do fim daquele sacrlego parricida.
Captulo XXXI brecha, bons amigos, brecha Colmatai-a com sangue ingls. E vs, rapazes, Filhos desta nossa Inglaterra, Mostrai-nos todo o ardor, jurai Ser dignos da vossa gerao. - Rei Henrique Ainda que pouco crente na promessa de Ulrica, Cedric no deixou de a transmitir ao Cavaleiro Negro e a Loc sley, que se mostraram muito satisfeitos por saberem ter um aliado dentro de portas, que, num momento de preciso, lhes poderia facilitar a entrada. Concordaram tambm com o Saxo que um repentino e feroz ataque seria, no obstante as suas desvantagens, o nico Meio para libertarem os presos das garras do cruel Front-de-Boeuf. - O sangue real de Alfredo est em perigo - disse Cedric. - A honra duma dama nobre est em perigo - asseverou o Cavaleiro Negro. - E, por So Cristvo e pelo meu boldri - afirmou o bom arqueiro -, mesmo que o motivo fosse somente a salvao do fiel Wamba, em tudo arriscaria antes que lhe tocassem num cabelo. - O mesmo faria eu - acrescentou o frade. - Bem sei, senhores, que ele um maluco, mas um mestre na sua arte, capaz de nos dar tanto prazer como um bom copo de vinho e um naco de bom toucinho fumado. Digo-vos, irmos, que aquele doido nunca precisar de mais ningum para rezar ou lutar por ele enquanto eu puder dizer missa ou brandir uma partasana. Dizendo isto, volteou a sua pesada alabarda como se fosse um canio nos dedos dum pastor. - Verdade, bom padre - reconheceu o Cavaleiro Negro -, to verdade como se as tuas palavras tivessem vindo da boca de So Dunstan. E agora, bom Loc sley, no vos parece que o nobre Cedric se deveria encarregar do comando deste assalto? - De maneira alguma - interveio Cedric. - Nunca aprendi nem a tomar nem a defender estes antros de tirania que os Normandos
ergueram nesta terra infeliz. Combaterei junto dos mais adiantados, mas quem me conhecer sabe que tudo ignoro da disciplina de combate e das tcticas de assaltos. - Sendo deste modo da parte do nobre Cedric - props Loc sley -, terei todo o gosto em dirigir os arqueiros, e juro que me podero enforcar na rvore onde nos costumamos reunir se os defensores conseguirem mostrar-se nas ameias sem que fiquem sem flechas espetadas em maior quantidade do que ps de
cravinho h no presunto do Natal. - Bem dito, meu bravo - exclamou o Cavaleiro Negro. - Assim, se me consideram capaz de me encarregar dos restantes assuntos e houver, entre esta gente, suficientes homens de valor para acompanharem um autntico cavaleiro ingls, ttulo que sei merecer, estou pronto com toda a minha arte e experincia a comand-los contra o castelo. Distribudos os lugares de comando, foi dado incio ao primeiro assalto, conforme descrevemos ao leitor. Tomada a barbac, o Cavaleiro Negro enviou notcia do feliz acontecimento a Loc sley, pedindo-lhe que vigiasse o castelo to cuidadosamente que tornasse impossvel aos sitiados o reunirem foras bastantes para uma surtida que lhes permitisse retomar as defesas exteriores. O cavaleiro desejava evitar isto a todo o custo, pois estava perfeitamente consciente de que os homens que comandava no passavam de impetuosos mas pouco treinados voluntrios, mal armados para o efeito e pouco atidos disciplina, que, num combate inesperado contra os veteranos dos cavaleiros normandos, com boas armas e de moral elevado, encontrariam grandes desvantagens, j que o seu mpeto e boa vontade no chegariam para dominar a perfeita ordem que o hbito sempre traz. O cavaleiro aproveitou a trgua para mandar construir uma espcie de ponto sobre o qual esperava atravessar o fosso, apesar da resistncia que encontraria contra aquela prancha flutuante. Tratava-se duma obra de certa demora, o que no preocupou grandemente os comandantes, pois dava tempo a Ulrica para executar o seu plano de diverso, fosse ele qual fosse. Quando a jangada ficou pronta, o Cavaleiro Negro exortou os sitiantes: - No vale a pena esperarmos mais, amigos. O Sol j desce e eu tenho problemas a tratar que me no deixaro ficar convosco mais um dia. Alm disso, s por milagre, e a no ser que nos apressemos, que a cavalaria no vir de Iorque para cair sobre ns. Deste modo, que um de vs v dizer a Loc sley que retome os seus disparos contra o outro lado do castelo e avance, fingindo ir assalt-lo. Vs, bons ingleses, ficai comigo, prontos a atirar o ponto sobre o fosso, logo que se abra a porta falsa do nosso lado. Vinde ento atrs de mim para que rebentemos com aquele portal alm.
Alguns de vs podereis no gostar deste tipo de aces ou estardes mal armados para o efeito. Saltai para cima das defesas, puxai as cordas dos vossos arcos at orelha e varai quem quer que aparea l, nas muralhas. Nobre Cedric, querereis comandar o grupo que fica? - De maneira nenhuma, pela alma de Hereward! - exclamou o Saxo. - Comandar no sei, mas que a minha posteridade me amaldioe os ossos no tmulo se no for com os da frente para onde me aponteis. A briga minha, pelo que a vanguarda tambm o . - Pensa, no entanto, nobre saxo - aconselhou o guerreiro. No tens couraa nem corselete, nada mais, a no ser esse ligeiro elmo, um escudo e uma espada... - Tanto melhor - respondeu Cedric -, pois fico mais leve para escalar os muros. E desculpai-me se me vanglorio, Sr. Cavaleiro, mas vereis o que vale o peito nu dum saxo frente
couraa dum normando. - Seja-o em nome de Deus! - aquiesceu o cavaleiro. - Abram a porta e estendam a passagem! o portal, conduzindo da parte interior da barbac e que ficava em frente do porto da muralha principal, abriu-se dum lance. A ponte provisria foi estirada, logo estabelecendo a ligao entre as duas margens do fosso, formando uma precria e escorregadia passagem, permitindo somente que sobre ela corressem a par dois homens de cada vez. Perfeitamente consciente da necessidade de apanhar o inimigo de surpresa, o Cavaleiro Negro, imediatamente seguido por Cedric, lanou-se para a frente e alcanou o outro lado, atirando-se sem hesitaes com a sua acha contra o porto, ele prprio em parte protegido dos projcteis, que vinham de cima, pelos restos da ponte levadia que o Templrio destrura, deixando, no entanto, o contrapeso ficar na parte superior da porta. os seguidores do cavaleiro no dispunham, todavia, de defesas desse gnero. Dois foram imediatamente abatidos, dois outros caram no fosso e os restantes retiraram para a barbac. A posio de Cedric e do Cavaleiro Negro era agora muito perigosa, e mais seria ainda se no fora a constncia de tiro dos arqueiros na barbac, que no cessavam de enviar verdadeiras nuvens de flechas contra as ameias, distraindo os que as guarneciam e conseguindo um certo campo de manobras para os dois chefes, que de outro modo seriam atingidos. De qualquer maneira, a situao ia-se tornando cada vez mais difcil. - Que a vergonha vos cubra - bradou De Bracy para os soldados sua volta. - Denominai-vos besteiros e deixais que aqueles dois ces continuem a actuar mesmo sob as muralhas? Arrancai as pedras de cima dos merles, falta de melhor... Que se arranjem picaretas e alavancas, e abaixo com essa antiga cornija! - ordenou, mostrando um pedregulho que sobressaa do parapeito.
Foi neste mesmo momento que os sitiantes viram a bandeira vermelha agitar-se no torreo de que Ulrica falara a Cedric. Foi Loc sley quem primeiro o notou, quando se apressava para sair das defesas, impaciente quanto ao progresso do prlio. - Por So Jorge! - gritou. - Por So Jorge e pela alegre Inglaterra! carga, meus bravos! No podemos deixar ss o valente cavaleiro e o nobre Cedric para, sem mais ningum, romperem a entrada! Anda, padre louco, mostra-nos como lutas pelo teu rosrio! L para dentro, valentes! O castelo nosso, pois temos amigos no interior! o sinal combinado! Vedes aquela bandeira? Torquilstone nosso! Pensai na honra e no esplio. Um esforo somente e nosso! - Acabando de soltar estas frases, disparou uma frecha, que foi cravar-se no peito dum dos homens de armas de De Bracy, que se preparava para atirar um enorme calhau para cima das cabeas de Cedric e do Cavaleiro Negro. Um outro soldado tomou das mos do morto o p-de-cabra com que ele tentara soltar a cornija, mas, com a cabea varada, tombou, tambm sem vida, nas guas do fosso. Os homens de armas pasmavam, pois nada
parecia poder fugir e resistir fora das flechas do tremendo arqueiro. - Recuais, poltres? - perguntou De Bracy. - Mount joye Saint Dennis! Dai-me a alavanca! Agarrado a ela, espetou-a na cornija solta, cujo peso seria suficiente para destruir os restos da ponte levadia, abrigando os dois atacantes mais avanados e tambm afundar a tosca jangada que tinham usado para vencer o fosso. Todos perceberam o perigo, e mesmo os mais ousados, incluindo o robusto frade, evitaram pis-la. Por trs vezes Loc sley acertou em De Bracy e por trs vezes as setas ricochetearam na excelente armadura do cavaleiro. - Que um raio leve a tua armadura espanhola! - protestou Loc sley. - Tivesse ela sido forjada em Inglaterra e as flechas t-la-iam atravessado como se de seda ou linho fosse. - Chamou ento: - Camaradas! Amigos! Nobre Cedric! Venham para trs, que essa coisa vai cair. No lhe escutaram o aviso, pois o rudo que somente o cavaleiro fazia batendo na porta era bastante para abafar vinte trombetas. o fiel Gurth ainda avanou na ponte de pranchas para avisar Cedric do perigo iminente ou compartilh-lo com ele. Seria tarde de mais. A cornija j se inclinava e De Bracy teria conseguido completar o seu trabalho se a voz do Templrio no soasse bem perto dele: - Tudo perdido, De Bracy! O castelo est a arder! - Ests louco para isso dizeres - replicou o cavaleiro. - No lado oeste tudo so chamas. Tentei, debalde, apagar o fogo. Esta grave informao foi transmitida com a frieza que caracterizava Brian de Bois-Guilbert, mas no to calmamente recebida pelo companheiro.
- Santos do Paraso! - evocou De Bracy. - Que fazemos? Prometo uma vela de ouro puro a So Nicolau de Limoges... - Deixai as vossas promessas - disse o Templrio - e escutai-me. Conduz os homens para baixo de forma a parecer uma surtida. Esto apenas dois homens ali. Corre-os ao longo do fosso at barbac. Eu carregarei a partir do porto principal e ataco a barbac pelo lado de fora. Se retomarmos a posio, garanto-te que resistiremos at chegarem reforos ou obtermos, pelo menos, condies honrosas de rendio. - A ideia boa e com ela colaborarei - assentiu De Bracy. Templrio, tu no me vais abandonar? - Pela minha f e honra declaro que no - disse Bois-Guilbert. - Mas, por Deus, apressa-te. De Bracy juntou, a correr, um troo de homens e andou para a porta falsa, que imediatamente derrubou. Mal ela cara, j o Cavaleiro Negro, com fora portentosa, forava a entrada, indiferente a De Bracy e sua gente. Dois tombaram logo e os restantes recuaram, no se importando com as incitaes de De Bracy. - Ces! - bramiu este. - Deixais que dois homens nos cortem o caminho da salvao? - Ele o Diabo encarnado - contestou-lhe um veterano homem de armas, defendendo-se conforme melhor podia dos golpes do antagonista de negro vestido. - E, se o Diabo - disse De Bracy -, foges-lhe para ires
parar s profundas do Inferno? Atrs de ns o castelo arde, viles! Que o desespero vos conceda foras, ou deixai-me avanar, que me encarregarei do campeo. Bem e cavalheirescamente defendeu, naquele dia, De Bracy a sua fama, adquirida nas guerras civis daquele medonho tempo. As passagens arcadas que davam para a porta falsa serviram de cenrio para o corpo-a-corpo de golpes tremendos desferidos um contra o outro, De Bracy com a espada, o Cavaleiro Negro com a sua temerosa acha. Por fim, o normando sofreu uma pancada que, embora aliviada pelo escudo (doutra maneira nunca mais se teria mexido), lhe bateu com tal violncia no elmo que caiu ao comprido no lajedo. - Rende-te, De Bracy - ordenou o campeo em cima dele, metendo entre os ferros do elmo o fatal punhal que os cavaleiros usavam para despachar os seus inimigos e, por isso, chamado punhal da graa. - Rende-te, Maurice de Bracy, pois, chegue ou no chegue auxlio, tu j s um homem perdido. - No me rendo a vencedores desconhecidos - respondeu debilmente De Bracy. - Diz-me o teu nome ou faz de mim o que quiseres... nunca ningum poder afirmar que Maurice de Bracy foi aprisionado por um campons sem nome. O Cavaleiro Negro segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- Rendo-me. Rendo-me sem condies - respondeu o normando, cujo tom de grave e de indestrutvel obstincia se modificara para outro de profunda mas sombria submisso. - Ide para a barbac - mandou o vencedor em tom autoritrio. - e aguardai l fora as minhas ordens ulteriores. - Deixai-me porm, e primeiro, dizer algo que importante que saibais - pediu De Bracy. - Wilfred de Ivanho est ferido e prisioneiro, podendo perecer no castelo em fogo se no lhe acudirem. - Wilfred de Ivanho! - exclamou o Cavaleiro Negro. - Preso e em perigo de vida! A cabea de todos os homens deste castelo responder se um s cabelo dele se chamuscar. Mostrai-me o caminho. - Aquela escada em caracol - informou De Bracy - conduz ao apartamento onde ele se encontra. Aceitas que te oriente? acrescentou em voz submissa. - No. Ide para a barbac aguardar as minhas ordens. No confio em vs, De Bracy. Enquanto este combate e a curta conversa que se lhe seguiu tinham sido travados, Cedric, frente dum troo de soldados, entre os quais o frade vinha sobressaindo, havia cruzado a ponte mal viram a porta aberta e acossado os desmoralizados e desesperados seguidores de De Bracy, alguns dos quais pediram graa, outros esboaram uma ligeira resistncia e a maioria fugira para o ptio. De Bracy, mirando com perturbao o seu vencedor, disse: - Ele no confia em mim. Mas teria eu merecido a sua confiana? Levantou a espada do solo, tirou o casco, em sinal de rendio, e partiu para a barbac, onde entregou a espada a Loc sley, que lhe aconteceu encontrar. medida que o incndio alastrava, os seus resultados iam-se
fazendo sentir no quarto onde Ivanho se encontrava aos cuidados de Rebeca, a judia. Acordara do leve cochilo aos sons da batalha e a sua companheira, a seu pedido, tornara para a janela para apreciar e lhe transmitir a evoluo da luta, o que lhe foi impossvel durante alguns minutos devido ao ligeiro fumo que se ia adensando. A certa altura comearam a entrar no apartamento verdadeiros rolos de fumo, que os gritos pedindo gua lhes revelaram tratar-se dum novo perigo a encarar. - O castelo arde! - gritou Rebeca. - Arde! Que fazer para nos salvarmos? - Corre, Rebeca, e salva a tua vida - disse-lhe Ivanho. Porque por mim ningum poder fazer nada. - No fujo - declarou ela. - Ou seremos salvos, ou morreremos juntos. Mas, Deus!... o meu pai?... o meu pai? Qual ser o seu destino?
Nesse momento, a porta escancarava-se e o Templrio aparecia perante eles. Estava espectral, com a armadura dourada despedaada e ensanguentada, a peneira meio queimada e quase arrancada do elmo. - Encontrei-te - disse a Rebeca - para contigo partilhar, como prometi, o bem e o mal. Apenas subsiste uma linha de fuga. Ultrapassei mais de cinquenta situaes de perigo somente para ta vir indicar. Levanta-te e segue-me(1). - Sozinha no te seguirei - respondeu Rebeca. - Se s humano, se em ti subsiste algo da caridade humana, salva meu pai e este cavaleiro ferido. - Um cavaleiro - retorquiu o Templrio, calmo como sempre -, um cavaleiro tem de enfrentar a morte, tenha ela a forma duma espada ou a das chamas. E quem sabe como e onde um judeu enfrentar a sua? - Selvagem! - gritou Rebeca. - Prefiro que o fogo me consuma a aceitar a tua ajuda. - No tens escolha, Rebeca! Repeliste-me numa ocasio, mas nenhum mortal o consegue fazer duas vezes. Agarrou a aterrada donzela e, sem lhe ligar aos gritos, arrastou-a para fora do quarto, sem prestar a mnima ateno s ameaas e desafios que Ivanho lhe lanava. - Co do Templo! Ndoa da tua ordem! Liberta a donzela! Bois-Guilbert, traidor, Ivanho ordena-te! Vilo! Arrancar-te-ei o corao! - Nunca te encontraria - disse o Cavaleiro Negro, entrando nesse momento - se no fossem as tuas imprecaes! - Se s um verdadeiro cavaleiro - pediu Wilfred -, no penses em mim e persegue o raptor! Salva Lady Rowena! Atende ao nobre Cedric! - Tudo a seu tempo - disse o guerreiro do aloquete. - Mas tu em primeiro lugar. Agarrou em Ivanho e carregou-o com tanta facilidade como o Templrio fizera com Rebeca e transportou-o at ao porto, onde o deixou aos cuidados de dois elementos seus, tornando ao castelo para socorrer os restantes prisioneiros. Um torreo estava j em labaredas, que saam por janelas e seteiras, mas noutros locais de grossos muros e resistentes abbadas o avano do fogo retardava-se e, a, ainda a fria dos homens triunfava, tal como o pouco mais perigoso elemento
ia triunfando nos restantes pontos. *1.. O autor julga ter esta passagem sido copiada da cena da apresentao de Filidaspes ante a divina Mandane, quando a cidade de Babilnia estava em chamas e durante a qual ele lhe prope lev-la atravs das chamas. Mas o plgio, se o houver, exigiria um tremendo castigo a quem o quisesse provar, pois teria de percorrer os interminveis volumes do grande Ciro at se lhe deparar o original.
Na verdade, os sitiantes perseguiam agora os sitiados de sala para sala, procurando saciar a sua sede de vingana que, de h muito, os soldados do tirnico Front-de-Boeuf lhes havia desperto. A maior parte da guarnio resistiu at ao fim, poucos pedindo graas, nenhum as recebendo. O ar estava pleno de gritos, tinir de armas e gemidos, o cho escorregadio de sangue dos desgraados em agonia ou j mortos. Foi atravs desta cena de confuso que Cedric correu em busca de Rowena, enquanto o dedicado Gurth o seguia, no meio da peleja, indiferente sua integridade, mas sempre defendendo Cedric dos golpes que lhe eram apontados. O nobre saxo teve a felicidade de chegar ao quarto da sua pupila exactamente quando ela, j sem esperana, agarrava um crucifixo contra o peito e aguardava a morte. Entregando-a ao cuidado de Gurth para que a conduzisse para a proteco da barbac, cujo caminho estava j desimpedido e ainda no invadido pelas chamas, Cedric partiu em busca do seu amigo Athelstane, pois de forma alguma aceitaria que o ultimo rebento da realeza saxnica se perdesse. Mas, ainda antes de Cedric ter alcanado o salo onde tinha estado encerrado, j o esprito inventivo de Wamba havia conseguido a libertao, sua e do seu companheiro na adversidade. Quando o rumor do conflito estava no auge, o bobo principiou a berrar a plenos pulmes: - So Jorge e o Drago! So Jorge pela alegre Inglaterra! O castelo nosso - gritos que reforava batendo com dois pedaos de velha e ferrugenta armadura, que encontrara no cho, um contra o outro. Um homem, de guarda do lado de fora, na antecmara, entrou em pnico com a berraria de Wamba e, esquecendo-se de cerrar a porta, correu para avisar o Templrio que o inimigo j tinha invadido o salo velho. claro que os prisioneiros no tiveram a mnima dificuldade em atravessar a ante cmara e o ptio, que presentemente era o palco onde se travam os derradeiros combates. Ali, o fero Templrio lutava, cercado de elementos da guarnio, pees e cavaleiros, que se haviam ajuntado quele guerreiro de nomeada, procurando a ultima hiptese de salvao ou fuga. A ponte levadia fora, s suas ordens, arriada. Estava contudo intransitvel, pois os arqueiros, que at ento tinham mantido aquele lado do castelo sob os seus arremessos, quando viram o castelo a arder e a ponte a baixar, concentraram-se sobre a sua entrada para evitar no s que quem quer que fosse de l de dentro sasse, mas ainda para se assegurarem do seu quinho no saque, antes que tudo se desfizesse em cinzas. Por outro lado, um troo de sitiantes, entrado pela porta falsa, dava agora incio, no
ptio, a um ataque aos ltimos defensores, que se viam, consequentemente, assolados por dois lados. com o nimo do desespero e o exemplo do seu indmito condutor,
os ltimos soldados do castelo combatiam com uma ferocidade extrema e, j que bem armados, conseguiram deter por mais de uma vez os assaltantes, que muito os superavam em nmero. Rebeca, na garupa do cavalo dum dos sarracenos do Templrio, encontrava-se no meio do pequeno grupo. Bois-Guilbert, mesmo naquela confuso, olhava constantemente pela sua segurana. Vrias vezes iria a seu lado, desdenhando a prpria defesa e colocando o seu escudo triangular na frente dela. Outras vezes, partindo de beira dela, soltava o seu brado de guerra e, atirando-se para avante, derrubava os atacantes que mais prximo visse, para logo retomar a sua posio inicial. Athelstane, que, como o leitor sabe, era lento, mas no covarde, percebeu a figura feminina que o Templrio to esforadamente defendia e, pensando ser Rowena que o cavaleiro levava contra a vontade dela, bradou: - Pelo esprito de Santo Eduardo! vou salv-la daquele orgulhosssimo cavaleiro, nem que seja o meu fim! - Ponderai - recomendou-lhe Wamba -, a tua mo apressada vai apanhar rs em vez de peixes e, pelos meus guizos, aquela no Lady Rowena nenhuma. Reparai naqueles caractersticos cabelos negros. Se no sabeis distinguir o preto do branco, podereis ser o comandado. No deixo partir os meus ossos sem saber por quem os partem. E vs sem armadura! Um gorro de seda nunca aparou golpes de ao. Se quereis molhar-vos, molhai-vos. Deus vobiscum, sedento Athelstane - disse largando a tnica do Saxo a que se agarrara at ento. Apossando-se duma maa que viu no cho, ao lado dum guerreiro moribundo, correu para junto do bando do Templrio e, em golpes sucessivos para um lado e para o outro, abatendo um adversrio a cada pancada, pois a sua fora era imensa e duplicara-se agora com a fria, chegou l em questo de instantes. A dois metros de Bois-Guilbert, desafiou-o: - Voltai-vos, templrio de falso corao! Larga aquela em quem s indigno de tocar - bradou. - Volta-te, miservel elemento dum bando de falsos e hipcritas assassinos e ladres! - Co - rangeu o Templrio entre os dentes. - Vou-te ensinar a no blasfemares a propsito da santa Ordem do Templo de Sio! - com estas palavras fez o corcel dar meia volta, baixando-se e enfrentando o saxo. Levantou-se nos estribos, aproveitando a posio do cavalo, e desferiu uma tremenda pancada na cabea de Athelstane. Tal como Wamba dissera, o barrete de seda nunca foi uma defesa contra lminas de ao. To acerada era a lmina do Templrio que cortou a maa que o infeliz saxo ainda levantou para aparar o golpe, como se dum galhito de salgueiro se tratasse, e foi bater na cabea de Athelstane, que imediatamente caiu em terra.
- Ah, Beau-Sant! - gritou Bois-Guilbert -, assim se tratam os maldizentes dos cavaleiros do Templo. - Aproveitando-se do
espanto que a queda de Athelstane a todos causara, berrou: Quem se quiser salvar que me siga! Atravessou a ponte levadia, dispersando os arqueiros que tentaram trav-lo. Os seus sarracenos e seis homens de armas seguiram atrs dele. A retirada foi muito dificultada pelas setas que sobre todos tombavam, mas, mesmo assim, tornearam a barbac, que julgava estaria em poder de De Bracy. - De Bracy! De Bracy! - chamou. - Ests a? - Estou aqui - respondeu De Bracy -, mas fiquei prisioneiro. - Posso libertar-te? - gritou Bois-Guilbert. - No, no! - foi a resposta. - Rendi-me pela minha honra e cumprirei com a minha palavra. Salva-te. Falces perscrutam-nos! Atravessa o mar, deixando a Inglaterra. Mais no ouso dizer. - Pois bem - disse o Templrio. - Tu, que a ficas, recorda-te que redimi a minha palavra. Quanto aos falces, sejam eles quais forem, julgo que os muros da Preceptoria de Templestowe sero bastante fortes para defender a gara de qualquer rapace. E galopou atrs dos seus. Os do castelo, que no tinham conseguido cavalos, seguiam lutando em desespero, mesmo depois da partida do Templrio, mais por no esperarem graa do que por contarem com a vitria. O fogo estendera-se a todo o castelo, quando Ulrica, que o ateara, apareceu num pequeno torreo, qual fria antiga, entoando um cntico guerreiro que os escaldos saxes, antes de terem sido convertidos, entoavam nos campos de lide. O desgrenhado cabelo grisalho voava, a inebriante delcia da vingana completada fulgia-lhe nos olhos entre laivos de loucura. Brandia uma roca, como se fosse uma das fatais irms que fiam e cortam os fios das vidas dos homens. Algumas das estrofes selvticas que entoou manteve-as a tradio. Assim as dissera, naquele cenrio de fogo e sangue: Afiai o fero ao, filhos do branco drago! Acendei a tocha, filha de Hengist! O ao rebrilha, no para banquetes, duro, largo e pontiagudo; No ilumina leito de noiva a tocha, Fumega e cintila como azul sulfreo. Afiai o ao!, crocitam os corvos. Acendei a tocha!, grita Zerneboc . Afiai o ao, filhos do drago! Atia a tocha, filha de Hengist!
Nuvens negras cobrem o castelo; A guia grita, levando-o no peito. No griteis, gris cavaleiro da guia negra! As valqurias esperam Como hspedes os filhos de Hengist que vm. Agitai as vossas tranas, virgens de Vatala. Que soem alegres os vossos tmbales. Muitos passos arrogantes pisaro vossas salas, Muitos elmos l faiscaro.
Cai escura a noite no castelo, As espessas nuvens se acumulam; Cedo ficaro rubras com o sangue dos bravos! O derrubador das florestas a ele se chegar. Ele, o devorador de palcios, Com a sua bandeira flamejante, Vermelha, ampla, medonha, Cobrindo o valor do heri, Regozija-se com o clamor da luta, Aprecia sangue a jorrar quente ainda. Tudo acabar! A espada fende cascos, A lana penetra duras couraas, O fogo devora os paos, Mquinas derrubam muralhas, Tudo tem de acabar! A raa de Hengist j no ... Filhos da espada, a morte no temais! Que as lminas se saciem em sangue; Gozai esse festim de matana luz incandescente dos sales. As vossas lminas vivero convosco; No concedeis graa a ningum. Porque a vingana tem a sua hora, Mas at o dio profundo se extingue! E com ele tenho eu de morrer(2). *2.. As pessoas interessadas nas coisas antigas podero pensar serem estes versos uma tentativa de imitao da velha poesia dos escaldos, os menestris dos velhos escandinavos, a raa que o Laureado to felizmente descrevia como: Prontos a vencer, difceis de ser vencidos, Sorrindo, a morte encaravam. A poesia dos Anglo-Saxes, aps civilizados e convertidos, era diferente e mais doce. Porm, no caso de Ulrica, perfeitamente natural que ela, instintivamente, tivesse regredido s origens, aos tempos ferozes dos seus antepassados pagos. (Fim da nota.)
O fogo era agora uma nica e enorme chama, elevando-se como um farol, tudo iluminando em seu redor. Torre aps torre foi ruindo, com tectos e telhados espalhando mirades de centelhas. Os que ainda combatiam foram obrigados a abandonar o ptio e os poucos que restavam, dispersos, escaparam-se para as matas vizinhas. Os vencedores, reunidos em grandes grupos, apreciavam, com pasmo, as temerosas labaredas que nas suas prprias armaduras se reflectiam. A silhueta enlouquecida de Ulrica, a saxnia, manteve-se vista durante muito tempo, no alto pouso que escolhera, agitando os braos e em endemoninhada exaltao, como se sentisse a imperatriz da conflagrao que provocara. Por fim, com um horrendo
estalejar, o torreo cedeu, levando consigo aquela que acabara com o prprio martirizador. Fez-se um imenso silncio e durante muito tempo ningum abriu a boca ou se mexeu, a no ser para, um ou outro, se persignar. Ouviu-se ento Loc sley dizer: - Saudemos, homens! O covil do tirano caiu! Que cada um traga o que saqueou para o nosso ponto de reunio, junto da rvore grande. Ao romper da manh distribu-lo-ei equitativamente entre ns e os nossos aliados, como prmio deste grande feito de vingana.
Captulo XXXII Todo o Estado tem a sua poltica; Os reinos tm leis, as cidades os forais; At os bandidos escondidos na mata Obedecem a uma certa disciplina, Pois desde Ado, com a sua verde porra, O homem sempre tem vivido em sociedade, com os cdigos para melhor os unir. - Pea antiga Amanhecia nas clareiras do vasto carvalhal. Nos verdes galhos reluziam prolas de orvalho. As coras levavam os seus enhos desde os seus abrigos de grandes fetos at aos espaos mais abertos, onde o veado ostentava os seus imponentes chifres, sem temer a Presena dos caadores. Os bandidos tinham-se agrupado em redor da rvore-da-reunio, onde haviam passado a noite descansando das fadigas do cerco, uns bebendo vinho, outros dormindo, muitos escutando e contando pormenores da jornada, outros ainda apreciando o esplio aos montes, agora disposio do chefe. Aquele esplio era de facto muito grande, pois, apesar de muita coisa se ter perdido no incndio, tinham conseguido apossar-se, sem a mnima hesitao, de grandes quantidades de ouro e prata, ricas armaduras e roupas esplndidas. A lei da floresta, contudo, era to rigorosa que ningum ousaria tomar para si fosse o que fosse, sendo tudo reunido para que o chefe tratasse da sua distribuio. O ponto de reunio era um vetusto carvalho. No se tratava do mesmo at junto do qual Gurth e Wamba, no comeo desta narrativa, tinham sido levados, mas de outro, no centro dum magnfico anfiteatro silvano a cerca de oitocentos metros do castelo arruinado de Torquilstone. Ali, Loc sley ocupou o seu assento (um monte de turfa cobrindo galhos de carvalho entrecruzados), rodeado pelos seus companheiros. Convidou o Cavaleiro Negro a sentar-se sua direita e Cedric esquerda.
- Desculpai-me o -vontade - pediu -, mas nestas matas sou eu o monarca e os meus sbditos no me acatariam o poder caso eu cedesse o meu lugar a outros mortais... Ora bem, quem viu o nosso capelo? Onde est ele, o da cabea rapada? Uma boa
manh como esta, entre cristos, deve iniciar-se com uma missa. - Ningum vira o clrigo de Copmanhurst. - Que os deuses nos acudam - disse o chefe dos bandidos. - Ser que o malandrote do padre ficou colado a alguma caneca de vinho? Quem o viu depois de termos tomado o castelo? - Eu - informou Miller. - Vi-o muito atarefado s voltas com a porta duma adega jurando por todos os santos do calendrio que havia de provar o gasconha de Front-de-Boeuf. - Agora nem todos os santos que h - exclamou o chefe - lhe valero, se bebeu de mais e ficou debaixo dos escombros do castelo. Vai l, Miller! Leva contigo homens suficientes para te ajudarem a procur-lo a partir do stio onde o viste. Atira gua do fosso para cima do rescaldo. Nem que tenha de levantar tudo, pedra a pedra, tenho de encontrar o meu frade. A quantidade de gente que se ofereceu para esta tarefa demonstrava, tendo-se em conta que em breve se iria proceder distribuio dum grande saque, quanto o padre era querido ali. - Entretanto, tratemos da diviso do esplio - anunciou Loc sley -, pois, quando o nosso feito se tornar conhecido, os batidos de De Bracy, Malvoisin e outros aliados de Front-de-Boeuf mover-se-o contra ns, convindo pois que, temporariamente, abandonemos a regio. Nobre Cedric continuou, dirigindo-se ao Saxo -, este esplio ser dividido em dois lotes. Escolhereis o que quiserdes para recompensar os vossos que vieram auxiliar-nos. - Bom homem - respondeu Cedric -, o meu corao sangra de dor. O nobre Athelstane j no existe... o ltimo descendente do Confessor! Todas as esperanas com ele morreram para no mais voltarem. O brilho de esperana que ele representou foi extinto pelo prprio sangue, no havendo mais quem o possa novamente acender! O meu povo, salvo aqueles que me rodeiam, espera que eu carregue os seus respeitveis restos at sua ltima e condigna morada. Lady Rowena deseja regressar a Rotherwood e necessita duma forte escolta. Tenho pois mesmo de partir j. Se aguardei, no foi para receber parte do esplio no qual, por Deus e Santo Withold, nem eu nem nenhum dos meus tocar sequer. Aguardei para agradecer a ti e aos teus audaciosos companheiros o terem salvo no s a minha vida, como a minha honra. - No, no! - disse o bandido-chefe. - A ns apenas coube metade do trabalho... Levai a vossa parte para que possais recompensar os vossos amigos e vizinhos. - Sou suficientemente rico para lhes pagar do meu dinheiro respondeu Cedric.
- E alguns foram suficientemente espertos para se pagarem a si prprios e no partirem de mos vazias. Nem todos andam de fatos s pintas. - Estavam no seu direito - observou Loc sley. - As nossas leis so para ns somente. - Mas tu, carssimo rapaz - disse Cedric, voltando-se e abraando o bufo -, sers recompensado por mim. Ofereceste sem medo a tua vida em troca da minha. Quando todos me tinham abandonado, tu, pobre e fiel louco, apareceste! Brilhavam lgrimas nos olhos do rude fidalgo. Uma mostra de sentimentos que nem a morte de Athelstane conseguira. Havia
algo de semi-instintivo ligando-o ao bobo que se sobrepunha, inclusive, dor. - No o quero! - exclamou o bobo, livrando-se das mos do amo. - Se com a gua dos teus olhos que me vais pagar, tenho de me pr a chorar para te fazer companhia, e l se vai a minha graa toda. H, porm, tio, um modo de liquidares as tuas contas comigo: perdoa a Gurth, que te roubou uma semana de trabalho para a dar a teu filho. - Perdo-lo? - bradou Cedric. - No s o perdoarei como o premiarei. Ajoelha-te, Gurth. - O porqueiro imediatamente lhe obedeceu. - Deixaste de ser um escravo - proferiu Cedric, tocando-lhe com uma vara. - s, para todos os efeitos, um homem livre, tanto na vila como na floresta, tanto na floresta como no campo. Dar-te-ei algumas leiras das minhas terras de Walburgham, que de mim para ti passaro para sempre. E que a maldio divina tombe sobre quem o contrrio venha a afirmar. No mais um servo, mas um homem livre e proprietrio, Gurth ps-se de p e deu dois saltos de alegria. - Venha um ferreiro com uma lima - pediu - para tirar a coleira do pescoo deste homem livre! Nobre amo! Haveis duplicado com este gesto as foras que sempre porei a vosso dispor. Um esprito livre adeja dentro de mim. Sou um homem que se transformou em si prprio. Ou ser o contrrio? Hei, Fangs - prosseguiu para o fiel rafeiro, que, vista da alegria do dono, tambm saltitava de satisfao -, ainda conheces o teu dono? - Eh! - interrompeu Wamba. - Tanto ele como eu te conhecemos ainda, embora continuemos de coleira. Talvez tu venhas primeiro a esquecer-te de ns... - Esquecer-me-ia de mim - retorquiu Gurth - se te esquecesse, bom camarada. Acredita ainda que, se a liberdade fosse tambm apropriada para ti, o nosso amo ta concederia. - No - disse Wamba -, no penses que te invejo, irmo Gurth. O servo fica no salo lareira, enquanto os homens livres tm de partir para as guerras. Como dizia Oldhelm de Malmsbury, "mais vale ser bobo num banquete do que sbio numa refrega".
Ouviram-se passos de cavalos trazendo Lady Rowena e vrios cavaleiros. Acompanhavam-no muitos mais pees que, jubilosamente, agitavam chuos e batiam com as alabardas. Rowena, garbosamente vestida, montando num palafrm castanho, recuperara toda a sua dignidade de porte, restando do seu sofrimento apenas uma ligeira palidez. A sua linda fronte, se bem que triste, mostrava esperana a par de gratido pelo seu salvamento. Sabia estar Ivanho livre de perigo e Athelstane morto. O primeiro facto enchia-a de jbilo e, quanto ao segundo, embora a no alegrasse, ter-se-ia de se lhe perdoar o alvio que sentia vendo-se livre da nica questo em que jamais concordara com Cedric, Vendo o cavalo que ela montava dirigir-se na sua direco, Loc sley e todos os seus se levantaram numa instintiva manifestao de cortesia. Corando e com um gesto de mo e um abaixar de cabea que, por instantes, fez que as suas tranas se juntassem s crinas da montada, agradeceu, em poucas mas gratas palavras, o que Loc sley e a sua gente tinham feito por ela.
- Que Deus vos abenoe, brava gente - terminou. - Que Deus e Nossa Senhora vos recompensem por vos terdes arriscado em defesa dos oprimidos. Se a algum de vs, alguma vez, a comida faltar, que se lembre de mim, pois tenho para lha dar; se algum tiver sede, que tenho vinho e cerveja e que, se os normandos vos expulsarem daqui, tenho florestas, onde os meus corajosos salvadores podero vaguear em total liberdade e onde ningum lhes perguntar de que arcos partiram as flechas que abateram veados. - Mil graas, gentil senhora - disse Loc sley -, em meu nome e no dos meus companheiros. Ter-vos salvo j foi bastante para ns. Ns, que percorremos as matas, praticamos muita loucura. O ter-vos salvo compens-las- em parte. com nova vnia, Rowena ia partir, mas, tendo parado um pouco para esperar por Cedric, que se despedia, viu-se perto De De Bracy, prisioneiro. Estava junto duma rvore, com os braos cruzados, meditando gravemente, pelo que Rowena esperou que nela no reparasse. Contudo, ele ergueu os olhos e, percebendo-a, corou de intensa vergonha. Hesitou, mas depois aproximou-se do cavalo, nas rdeas do qual pegou, ajoelhando perante ela. - Dignar-se-, Lady Rowena, baixar o seu olhar sobre este cavaleiro cativo... sobre este soldado sem honra? - Sr. Cavaleiro - respondeu ela -, em empresas como aquela que haveis tentado, a desonra no est na derrota, mas sim na vitria. - Ainda que a segunda seja mais branda para a alma - disse De Bracy -, que Lady Rowena me perdoe o mal que lhe fiz, merc da malfadada paixo que me tomou, e depressa verificar como nobremente a saberei servir.
- Perdoo-vos, Sr. Cavaleiro - concordou ela -, como crist que sou. - O que quer dizer - atalhou Wamba - que no vos perdoa nada. - Mas nunca poderei desculpar-vos a dor e o sofrimento que a vossa loucura me causaram - prosseguiu Rowena. - Soltai as rdeas do cavalo de Lady Rowena - comandou Cedric. - Pela luz que nos ilumina, s no te trespasso com esta lana, pregando-te ao cho, porque teria vergonha de o fazer. Sossegai, porm, Maurice de Bracy, que havereis de pagar cara a vossa participao nesta suja tramia. - fcil ameaar quem est preso - afirmou De Bracy afastando-se. - Tambm no espanta, pois os Saxes nunca souberam o que eram maneiras. Cedric, antes de seguir, agradeceu muito em especial ao Cavaleiro Negro, a quem, insistindo, rogou que os acompanhasse at Rotherwood. - Sei - disse - que vs, cavaleiros andantes, gostais de procurar a sorte com a ponta das vossas lanas e no apreciais terras ou valores. A guerra, porm, uma amante exigente, e, s vezes, um lar desejado pelos campees errantes. Haveis ganho todo o direito aos sales de Rotherwood, nobre cavaleiro. Cedric tem posses bastantes para reparar os estragos da sorte e tudo que possui est ao dispor do seu salvador. Vinde, pois, connosco para Rotherwood, no como convidado, mas como filho ou irmo. - Cedric j me tornou mais rico - contestou o cavaleiro -,
ensinando-me quo virtuosos so os Saxes. A Rotherwood, irei em breve, bravo Saxo. No momento, questes urgentes me impedem de o fazer. Porm, quando por l passar, terei, qui, algo a pedir-vos que constituir uma prova da vossa generosidade. - Mesmo sem mo dizerdes, j vo-lo concedi - disse Cedric batendo com a mo na manpula do guerreiro. - Est concedido, mesmo que me custe metade do que tenho. - No te comprometas to ao de leve - respondeu o Cavaleiro Negro. - De qualquer modo, espero vir a fazer-te esse pedido. Por agora, adeus! - Quero ainda informar - acrescentou Cedric - que, durante as cerimnias fnebres do nobre Athelstane, estarei residindo no seu castelo de Conningsburgh, que igualmente estar aberto a todos que ali possam compartilhar do banquete funerrio. Permito-me, ademais e em nome da nobre Edith, me do prncipe tombado, dizer que para aqueles que, sem sucesso mas bravamente, lutaram pela salvao de Athelstane de correntes e armas normandas, aquelas portas nunca se cerraro. - mesmo - disse Wamba, j ao lado do patro. - Vai haver comida da melhor. Pena que o nobre Athelstane lhe no possa fazer justia durante o prprio enterro. Mas ele, com certeza,
ergueu os olhos para o alto -, est j mesa do Paraso e certamente honrando-a. - Cala-te e marcha - ordenou Cedric com uma irritao pela piada despropositada que somente a recordao da recente abnegao de Wamba no deixou ir mais alm. Rowena despediu-se graciosamente do cavaleiro do aloquete e partiram em direco da floresta. Ainda mal tinham comeado a andar, quando, atrs deles e vinda de baixo da orla de conferas marginando a mata, saiu uma procisso que percorreu lentamente o anfiteatro florestal para, depois, tomar a mesma direco de Rowena e do seu squito. Os padres do convento prximo, na expectativa das amplas almas que Cedric prometera, acompanhavam um carro, onde jazia o corpo de Athelstane, cantando hinos e caminhando compassadamente, conduzindo-o para o castelo de Conningsburgh, onde seria depositado no jazigo de Hengist, de quem o defunto era remoto descendente. Muitos dos seus vassalos, notcia do seu passamento, haviam acorrido e seguiam no momento o atade, com todas as manifestaes exteriores, pelo menos, da maior dor e mgoa. Novamente, como acontecera perante a beldade saxnia, os bandidos se puseram de p, numa espontnea homenagem, recordando, ao som dos tristes e arrastados cnticos dos frades, os seus camaradas cados na vspera. Tal tipo de recordaes no si, todavia, perdurar naqueles que vivem uma vida de perigos e aventuras, pelo que ainda a cantoria se escutava e j eles tratavam da diviso do esplio. - Bravo cavaleiro - disse Loc sley para o Cavaleiro Negro -, sem o esprito e a fora de quem a nossa empresa talvez no tivesse chegado a bom termo, escolhei deste monte o que quiserdes, quanto mais no seja para vos recordardes da rvore-de-reunio. - Agradeo essa oferta sincera - agradeceu o cavaleiro. Peo, pois, autorizao para ficar com Sir Maurice de Bracy minha disposio.
- teu - respondeu Loc sley - e sorte tem, pois ao tirano estava reservado ir engalanar o mais alto galho daquele carvalho, com tantos mercenrios como bolotas pendurados a seu lado. Mas, como teu prisioneiro, est salvo disso, embora tenha assassinado o meu pai. - De Bracy - bradou o cavaleiro -, ests livre! Parte! Quem te apresou desdenha de ti se vingar. Mas v como te comportas no futuro, para que o pior no tombe sobre ti. Cuidado, Maurice de Bracy! De Bracy baixou-se numa profunda e silenciosa vnia, e ia afastar-se, quando um dos homens e depois vrios outros iniciaram uma berraria imensa, dele troando. O orgulhoso cavaleiro parou instantaneamente, deu meia volta e, fazendo peito, exclamou:
- Calai-vos, cachorros! Abafai chamados que no sois capazes de seguir, quando o veado-real acossado se resolve a vender a vida cara! Eu, De Bracy, desprezo a vossa troa como desprezaria o vosso aplauso. Ide para as vossas tocas e covis, bandidagem! Silenciai-vos. Dum cavaleiro ou dum nobre somente podeis falar quando ele se encontrar a uma lgua das vossas luras. Este inoportuno desafio poderia ter significado para De Bracy uma revoada de flechas, no fora a imediata e imperiosa interferncia do chefe. Entretanto, o cavaleiro pegou nas rdeas dum dos muitos cavalos, vindos das cavalarias de Front-de-Boeuf, que ali pastavam e que faziam parte do saque, montou-o e desapareceu na mata. Acalmado o alvoroo provocado pelo incidente, o bandido-chefe retirou do pescoo o valioso boldri e a trompa que, com a sua percia, ganhara com o arco em Ashby, e disse para o cavaleiro da barra e do aloquete: - Nobre cavaleiro, se no desdenhais fazer o favor de aceitar a trompa que um ingls livre traz, peo-vos que a aceiteis como recordao do vosso garboso comportamento... e se alguma vez precisardes, como si acontecer com cavaleiros andantes, nas florestas entre o Trent e o Tees, de auxlio, tocai trs palavras(1), assim: U-si-ho!, e pode ser que ele prontamente surja. - Demonstrando, entoou a trompa at o cavaleiro ter fixado o chamado. - Mil mercs pela tua oferta, meu bravo - disse o cavaleiro -, pois melhor ajuda que a tua e dos teus nunca eu conseguirei se alguma vez me vir embaraado. - Tocou ele prprio a trompa at fazer estremecer o arvoredo. - To forte e bem tocaste - fez o arqueiro - que nada me custa dizer que sabes tanto das coisas da floresta como das da guerra. J foste, tenho a certeza, caador de cervos. Camaradas decorai estas palavras que ouvistes! Formam o chamado do Cavaleiro Negro do Aloquete. Que quem as escute no perca tempo em voar em seu socorro. Quem o no fizer corrido do bando s chicotadas com a corda do prprio arco. - Viva o chefe! - gritaram os fora-da-lei. - Viva o Cavaleiro Negro do Aloquete! Que cedo nos chame para que veja como servi-lo saberemos! Loc sley iniciou nessa altura a partilha do saque, o que fez com a mais louvvel das equidades e toda a imparcialidade. Ps de lado um dcimo para a Igreja e caridade, uma parte ficou
como uma espcie de fundo geral e outra para as vivas e filhos dos que tinham perecido, *1. As notas das trompas denominavam-se palavras, sendo nos velhos tratados de caa representadas no por caracteres musicais, mas sim por palavras escritas.
ou para missas pelas suas almas, caso no tivessem famlia. A parte restante foi dividida entre os salteadores de acordo com a respectiva categoria e mrito. Nestes casos, as decises do chefe foram dadas com a maior argcia e inteiramente acatadas. o Cavaleiro Negro surpreendeu-se ao verificar que gente vivendo margem da lei era, no seu conjunto, to bem e correctamente dirigida. Tudo quanto viu e apreciou lhe fez crescer a admirao que j sentia pelo chefe Tendo-se os homens retirado com os respectivos quinhes e a parte comum levada pelo tesoureiro e um bandido de elevada estatura, certamente para esconderijo seguro, restava a poro da igreja. - Quem me dera - disse o chefe - novas do meu alegre capelo! Ele que nunca falta quando h viandas a abenoar ou saque a repartir... , alm do mais, seu dever cuidar das dizimas resultantes do nosso bem sucedido empreendimento, ofcio que o desculpa de algumas pequenas irregularidades cannicas. Tenho tambm um santo colega dele prisioneiro perto daqui e queria que um frade me ajudasse a livrar-me dele. Tenho, contudo, muito temor no que respeita sua sorte. - Isso causar-me-ia grande pesar - observou o Cavaleiro Negro, at porque lhe estou devendo uma feliz e hospitaleira noite na sua cela. Vamos at s runas do castelo. Pode ser que nos digam qualquer coisa acerca dele. Conversavam desta maneira quando uma grande aclamao anunciou a chegada de algum que, pela voz estentria, viram logo ser a daquele que julgavam perdido. - Abram-se alas, rapaziada! - exclamou ele -, alas para o vosso pai e para o prisioneiro que traz. Dai-me as boas-vindas de novo! Aqui regresso, ufano como a gua com a presa nas unhas. Abrindo caminho por entre a aglomerao, no meio de gargalhadas e ditotes amigveis, surgiu, triunfalmente magnfico, com a enorme partasana numa mo e a outra segurando uma corda, amarrado ponta da qual vinha o infeliz Isaac de Iorque, dobrado de dores e terror, o frade berrando: - Onde est Allan-a-Dale para me dedicar uma balada ou, ao menos, uns versos? Por Santo Hermenegildo, o patife nunca aparece quando h um mote merecedor de rimas? - Reverendo padre - disse o capito dos ladres -, disseste uma missa muito regada, por muito cedo que seja. Em nome de So Nicolau, quem trazes a? - Algum que a minha lana e espada capturaram, nobre capito - respondeu o frade de Copmanhurst -, ou, melhor, um prisioneiro do meu arco e da minha alabarda. Na realidade, salvei-o de cativeiro bem pior, Fala, Judeu... No verdade que te retirei das fauces de Satans? No te ensinei j o credo, o pater e a Ave Maria?
No terei eu passado uma noite inteira contigo bebendo e explicando-te os mistrios? - Por amor de Deus! - implorou o Judeu. - No haver ningum que me livre deste louco... deste santo homem? - O qu, Judeu? - ameaou o frade. - Abjuras? Lembra-te que se tornares tua falsa f, ainda que no sejas to tenro como um leito (comia um, agora mesmo), no deves ficar mal bem assadinho. Acalma-te, Isaac, e diz comigo: Ave Maria... - No queremos profanaes aqui, padre - disse Loc sley. Conta-nos, antes, onde que topaste com este prisioneiro. - Por So Dunstan, encontrei-o onde esperava melhor mercadoria. Fui l para o fundo das caves para ver o que se poderia salvar, pois, ainda que um copo de vinho queimado com especiarias seja bebida imperial, seria uma pena deixar desaparecer tanto vinhinho duma s vez. J arranjara uma dosezinha dele e ia pedir auxlio a alguns destes malandros aqui volta, sempre prontos a colaborarem em boas aces, para que me ajudassem a dar cabo dele, quando me vi frente a frente com uma grande porta. Ultrapassei-a e fui encontrar l dentro uma quantidade de cadeias ferrugentas e este judeu, que se declarou meu prisioneiro incondicional. Fatigado com o esforo fsico para salvar este descrente, refresquei-me com uns copitos e preparava-me para voltar, quando ouvi estrondos atrs de estrondos e crepitar atrs de crepitar, que vinham duma torre exterior a ruir (que Nossa Senhora absolva as mos que to fracamente a construram) e barrando-me a passagem. Seguiu-se o estampido de outra torre tombando... Pensei que a minha vida acabaria ali e, entendendo ser uma desonra para a minha profisso passar para o outro mundo ao lado dum judeu, ergui a alabarda para lhe rebentar com a cabea. Tive, porm, pena dele e achei por bem pr de parte o pau e empregar armas espirituais em seu lugar. Na verdade, e graas a So Dunstan, a semente caiu em terra frtil. S que, tendo de falar com ele a noite inteira e estando, por assim dizer, em jejum (as pingas com que o agucei nem contam), a minha cabea ficou meio aturdida. Acabei exausto. Gilbert e Wibbald diro em que estado me acharam. Rigorosamente exausto. - verdade - entoou Gilbert -, pois quando retirmos os escombros e demos... por So Dunstan!... com a escada do calabouo e mais alm com uma bota de vinho seca, o Judeu estava quase morto e o frade mais que... exausto, como ele lhe chama. - Patifes! Mentirosos! - retorquiu o frade, melindrado. Fostes vs e os beberres dos vossos companheiros que tudo beberam, chamando-lhe um figo. Seja eu um pago se tudo no guardara para a gorja do chefe! Mas que interessa? O Judeu converteu-se, entendendo tudo quanto lhe expliquei. Se no foi tudo, foi quase tudo to bem quanto eu o percebo.
- Judeu - disse o capito -, isto verdade? Renunciaste tua descrena? - Que algum me faa justia - implorou o Judeu -, pois no entendi uma nica palavra das muitas que este reverendo prelado me endereou durante esta pavorosa noite. Ai de mim!
Encontrava-me to preocupado, cheio de sofrimento e dor, que, mesmo que o patriarca Abrao me viesse pregar, f-lo-ia para ouvidos moucos. - Mentes, Judeu e tu sabe-lo! - rosnou o frade. Recordar-te-ei uma palavra somente da nossa entrevista: prometeste dar tudo quanto tens para a nossa santa ordem... - Valha-me a Santssima Promessa - gritou o Judeu, mais amedrontado do que nunca -, se vez alguma eu disse tal coisa. Ai! Sou velho e pobre e, temo-o, sem filhos. Tende misericrdia de mim e deixai-me partir! - No! - interps o frade. - Se retractas o voto que fizeste, ters de penar por essa atitude - Levantou a alabarda e t-la-ia descarregado sobre os ombros do Judeu se o Cavaleiro Negro no tivesse aparado o golpe. claro que a fria do padre se virou logo para ele. - Por So Toms de Kent! - bradou. - Que eu seja teu criado se no te dou uma ensinadela, Sr. Cavaleiro Preguioso, que te metes onde no s chamado. - Eh, no te zangues comigo! - acalmou-o o cavaleiro. Recorda-te que prometemos amizade e camaradagem para todo o sempre. - No me lembro de nada, meu peralta metedio! - Talvez tenhas esquecido isso - disse o cavaleiro, que parecia gostar de provocar o seu anfitrio do dia anterior -, mas devias lembrar-te de que por minha causa (e j no falo nas tentaes da gula) quebraste os teus votos de temperana e viglia. - Correcto - concordou o frade, mostrando-lhe o seu grande punho. - Por isso mesmo te darei um grande murro. - No quero prendas dessas - informou o cavaleiro -, mas guardarei essa ameaa de bofetada(2) como um emprstimo que te pagarei. *2.. A troca de bofetadas com o padre no estava inteiramente fora da maneira de ser de Ricardo I, caso os romances falem verdade. Num deles, bastante interessante, alis, e a propsito das suas aventuras, na Terra Santa e durante o seu regresso de l, conta-se como utilizou as suas qualidades de Pugilista quando prisioneiro na Alemanha. o seu opositor seria o filho do carcereiro, que, imprudentemente, o desafiara para um combate desse gnero. O rei avanou como lhe competia e apanhou um soco que o abalou, mas, logo a seguir, com o punho, que encerara anteriormente (prtica desconhecida, creio, dos cavalheiros que, hoje, se dedicam a tal desporto), desferiu tal murraa no ouvido do seu adversrio, que o matou logo ali. Ver em, Ellis Specimens of English Romance, o do Corao de Leo.
Os juros so to altos como os que estavam a ser pedidos ao prisioneiro que trouxeste. - Isso resolve-se j - props o frade. - Eh! - interveio o chefe. - para onde vais tu, frade louco? Andar pancada debaixo da rvore da reunio? - pancada, no - foi a resposta do Cavaleiro Negro. - Apenas uma ligeira troca de amigveis cortesias... Bate primeiro, frade, se ousas, que eu, se aguentar, te farei aguentar o meu,
a seguir. - Gozas de vantagem com esse panelo de ferro enfiado na cabea - disse o religioso, - Mas que importa? Vais a terra como o Golias! O frade arregaou a manga at ao cotovelo e, com toda a fora que tinha, mandou um soco ao cavaleiro capaz de abater um boi. O oponente aguentou-o, enquanto todos volta saudavam, j que os murros do frade eram conhecidos, tendo-os quase todos, se no todos, sentido alguma vez, a srio ou a brincar. - Agora, padre - disse o cavaleiro -, se dispus de vantagens na cabea, nenhuma te darei com o punho. Aguenta, se s gente! - Genam meam dedi vapulatori, aqui est o meu rosto, e, se me fizeres mexer, concedo-te de bom grado o resgate, do Judeu. O frade, na sua vanglria, falara assim, mas quem pode fugir sua sorte? O murro do cavaleiro foi tal e to forte que o frade virou de pernas para o ar, para espanto dos presentes. Todavia, levantou-se sem se mostrar zangado ou ressentido. - Irmo - falou ele -, devias ter usado um pouco mais de discrio. Ca como um sapo. Se me tivesses partido o queixo, as minhas missas passariam a ser muito mancas, como mancas so as melodias do gaiteiro a quem amarraram os dedos. De qualquer modo, eis a minha mo como prova de que no mais bulharei contigo, j que perdi a aposta. Acabemos com a rixa e estudemos o resgate do Judeu, que, como o leopardo, que nunca perde as pintas, nunca deixa de ser judeu. - O padre - observou Clement - no est to seguro da converso do Judeu, desde que levou aquele murro. - Vai para o... Que sabes tu, patife, de converses? J no existe respeito? Tudo manda, ningum obedece? Digo-te, amigo, que estava um pouco zonzo quando apanhei o soco do bom cavaleiro, seno no teria cado. Se tornas a zombar de mim, apanhas para aprenderes! - Calma! Todos! - ordenou o capito. - E, quanto a ti, Judeu, estuda o valor do teu resgate. escusado informar-te que a tua raa tida como maldita pelos cristos, pelo que a tua presena entre ns nos incomoda. Vai pensando enquanto eu examino outro gnero de prisioneiro. - Capturaram-se muitos homens de Front-de-Boeuf? - perguntou o Cavaleiro Negro.
- Nenhum valendo resgate - respondeu o chefe. - Uma data de covardolas que soltmos para que procurassem novo patro... j nos tnhamos vingado e com bom lucro. Eles nada valiam. o prisioneiro de que falo coisa fina: um fradeco que veio a cavalo ver o seu superior e que, pelos arreios e vestimentas... A vem o respeitvel prelado, to atrevido como uma pega... Na verdade, ladeado por dois salteadores, era conduzido at ao trono do fora-da-lei o nosso conhecido e amigo prior Aymer de Jorvaulx.
CAPTULO XXXIII
... Flor dos guerreiros, Como vai, Tito Lrcio? Marcos: Como todos os legistas. Condenando uns, exilando outros, Pedindo resgates, perdoando, ameaando. - Cariolano Quer o rosto, quer os modos do abade aprisionado eram um autntico misto de orgulho ofendido, falsa jactncia e temor fsico. - Porque e porqu, meus senhores? - perguntou em tom revelando as trs emoes. - A que ordem pertenceis? Sereis turcos ou cristos, vs, que deste modo tratais um eclesistico? Sabeis o que significa manus imponere n servos Domini? Rebuscastes a minha bagagem, rasgastes as minhas vestes sacerdotais, de fina renda, que qualquer cardeal no desdenharia! Outro qualquer em meu lugar j vos tinha excomungado, aplicando o excommunicabo vos, mas acontece ser eu de boa ndole, pelo que, se mandardes vir os meus cavalos, soltardes os meus irmos, devolverdes a minha bagagem, juntamente com uma ddiva, de cem coroas, a despender em missas no altar-mor da Abadia de Jorvaulx, e a promessa de no comer veao at ao Pentecostes que vem, afiano-vos que esquecerei toda esta loucura. - Santo padre - retorquiu o salteador-chefe -, magoa-me saber que haveis sido to maltratado pelos meus seguidores, a ponto de, paternalmente, nos repreenderdes. - Maltratado?! - repetiu o padre, encorajado pela forma mansa como o capito falara. - Nem um co de raa assim tratado... quanto mais um cristo... ainda por cima padre... e muito menos o prior da santa comunidade de Jorvaulx. Anda por aqui um menestrel profano e bbado, Allen-a-Dale de seu nome - nebulo quidam -, que ousou ameaar-me com castigos corporais, qui a prpria morte, caso eu no pagasse a pronto quatrocentas coroas de resgate, para l de tudo que j me roubara... cordes de ouro, anis de pedras de valor incalculvel. E, alm disso, h o que partiram
e estragaram com as suas rudes mos, como, por exemplo, a minha caixinha de ps e os meus ferros de frisar de prata. - impossvel ter Allen-a-Dale tratado assim to reverente personagem como vs - murmurou o capito. - To verdadeiro como o Evangelho de So Nicodemo! - exclamou o Prior Praguejou aquelas horrveis coisas que dizem l para o Norte, assegurando-me que me enforcaria na rvore mais alta que encontrasse. - Ele disse isso mesmo? Ento, reverendo padre, parece- me que temos de executar as suas ameaas... pois Allen- a-Dale homem de cumprir o que diz(1). Caoais de mim - espantou-se o Prior, forando uma gargalhada. - Aprecio boas piadas, mas... ah! ah! ah!... quando nos rimos a noite inteira, deveremos mostrar-nos srios de manh. - Estou to srio como um padre confessor - informou o capito dos ladres. - Tereis de pagar uma soma bem gorda pelo vosso resgate, Sr. Prior, ou o vosso convento ter de se reunir para novas eleies, visto vs terdes de deixar de ocupar o lugar. - Vs, cristos - perguntou o Prior -, usais termos desses
para com um clrigo? - Cristos? L isso somos, e at com religiosos, para nos ajudarem a dividir o esplio que aqui h - exclamou o fora-da-lei, que a seguir acrescentou: - Que o nosso rechonchudo capelo avance e explique a este reverendo padre os textos correspondentes. O frade, meio, se no totalmente, bbado, que enfiara um hbito sobre as suas vestes verdes, reunia agora os restos de conhecimentos de que outrora, pelo traquejo, dispusera. - Santo padre - entoou -, Deus faciat salvam benignitatem vostram. Sede bem-vindo verde mata. - Que profana farsa esta? - clamou o Prior. - Amigo, se pertences, de facto, Igreja, melhor agirias dizendo-me como me safar desta gentalha, em lugar de estares para a com os dentes arreganhados como um bailador de aldeia.. - Correcto, reverendo padre - concordou o frade. - Apenas sei dum caminho por onde podereis, talvez, escapar. Hoje, para ns, dia de Santo Andr e estamos a recolher as dzimas. - No da Igreja, irmo? Espero-o - disse o Prior. - Tanto da Igreja como dos seculares - respondeu o frade. - Assim sendo, Sr. Prior, facite vobis amicos de Mammone iniquitatis, ou seja: colaborai com a injustia de Mmon, pois outra colaborao no arranjareis. *1. Diz-se ter um comissrio sido da mesma forma confortado por um comandante-chefe a quem se queixara dum oficial general que lhe fizera ameaas parecidas com as do texto.
- Sempre gostei da gente das florestas - disse muito suavemente o Prior. - Andai l, no sejais to duros para comigo. Sei bastante do meio florestal, podendo mesmo tocar uma trompa, alto e bom som, e bramir suficientemente forte para pr os anis dos robles a tinir. Andai l, no me exijais demasiado! - Dai-lhe uma trompa para que demonstre o que alardeia ordenou o capito. De conformidade, o Prior soprou, com quantas foras tinha. O capito abanou a cabea: - Prior, sopras bem, mas no nos basta como resgate. No podemos, como reza a lenda acerca do escrito no escudo do bravo cavaleiro, "soltar-vos com um toque". Alm do mais, entendo que tu, sendo um dos franceses que acrescentam tremidos e trolars, perturbando a velha trompa inglesa, ters de pagar mais cinquenta coroas pelas notas com que corrompeste os velhos e viris toques de caa. - Pois bem, amigo - fez o Prior, irritado -, fazeis bem mal. Rogo-te que sejas mais razovel nesta questo da minha remisso. Em resumo (tenho, desta vez, de engolir o sapo), quanto terei eu de largar para me poder deslocar por onde quiser sem necessitar de cinquenta homens para me protegerem? - No seria correcto - lembrou o tenente do bando ao capito - o Prior indicar o valor do resgate do Judeu e este o do Prior? - s levado da breca! - sorriu-se o capito. - S tu terias uma ideia dessas!... Tu, Judeu, chega c... Olha-me para o padre
Aymer, prior da rica Abadia de Jorvaulx, e diz-nos quanto dever ele pagar pela prpria quitao. Aposto que conheces o rendimento da abadia dele. - L isso sei - reconheceu o Judeu. - Tenho negociado com os bons padres, comprando-lhes trigo, cevada e outros produtos da terra, assim como muita l. Trata-se duma abadia abastada. Come-se e bebe-se l do bom e do melhor. Se um desterrado como eu tivesse uma casa como Jorvaulx e um rendimento daqueles por ms, ou at anual, pagaria muito, muita prata, pela minha libertao. - Co judeu! - praguejou o Prior. - Ningum melhor do que tu, maldito, sabe quo empenhada est a nossa divina casa para acabarmos de pagar a capela-mor! - E o abastecimento das vossas adegas, na estao passada, com uma respeitvel dose de vinho da Gasconha - acrescentou o Judeu. - Mas isso so nadas. - No prestem ateno ao co sem f - protestou o clrigo. Badala como se a nossa santa comunidade se afogasse em dvidas pelos vinhos que somos autorizados a libar propter necessitatem, et ad frigus depellendum. O vilo circuncidado blasfema contra a igreja e os cristos presentes nem protestam! - Assim no vamos a parte alguma - disse o chefe.
- Anuncia quanto nos pode ele pagar sem que, propriamente, lhe esfolemos o couro e o cabelo. - Umas seiscentas coroas - informou o Judeu - pode o bom Prior pagar a Vossas Valias, sem que o seu conforto seja muito balado. - Seiscentas coroas - pensou o Capito alto. - Estou satisfeito. Calculaste bem, Isaac. Seiscentos coroas a tua sentena, Prior. - Foi proferida a sentena! A sentena! bradaram os do grupo. - Salomo no julgaria melhor. - Escutaste-a, Prior - disse o chefe. - Sois loucos? - respondeu o Prior. - Onde arranjo eu uma soma desse tamanho? Nem vendendo a pxide e os castiais do altar de Jorvaulx conseguiria metade, sequer. Alis, para resolver a questo, teria de ir eu mesmo ao convento. Os dois padres que me acompanham ficariam como refns. - O que teria de corresponder a uma confiana cega em ti disse o fora-da-lei -, pelo que os mandaremos a eles buscar o resgate, enquanto tu ficas aqui. No te faltar nem vinho, nem veao, e, j que gostas da mata, mostrar-te-emos coisas que nem no Norte se vem. - Ou, se for de vosso contento - props o Judeu, tentando cair nas graas dos salteadores -, posso mandar buscar a Iorque essa importncia, pois tenho l umas receitas a cobrar. Bastar-me- que o Sr. Prior me passe a relativa promissria- Ele far tudo o que quiseres, Isaac - informou o capito. Aproveitars tambm para mandar trazer o dinheiro do teu prprio resgate. - O meu resgate? - choramingou o Judeu. - valorosos senhores! Estou pobre e falido. Tivesse eu de pagar cinquenta coroas e o resto da minha vida pass-lo-ia agarrado a um bordo, mendigando. - Compete ao Prior julgar esse ponto - respondeu o capito.
Que dizeis, padre Aymer? O Judeu pode pagar uma boa maquia? - Se ele pode pagar uma boa maquia? - ecoou o Prior. - Isaac de Iorque suficientemente rico para remir as dez tribos israelitas que partiram, em escravido, para a Assria! Pessoalmente pouco tenho contactado com ele, mas o nosso despenseiro e o nosso tesoureiro, que lidam muito com a criatura, afirmam que a casa dele, em Iorque, est to repleta de prata e ouro que at vergonha existirem coisas assim em nao crist. um espanto para todas as almas crists que se permita a essas vboras o fartarem- se custa do Estado e da Santa Igreja, sugando-os com as suas usuras e extorses. - Alto a, padre - interrompeu-o o Judeu. - Travai e reduzia vossa ira. Peo licena para lembrar a Vossa Reverncia que no Obrigo ningum a querer o meu dinheiro. certo que, quando religiosos ou leigos,
prncipes ou priores, cavaleiros ou padres, vm, muitas vezes, minha porta pedindo-me, com muito boas maneiras, dinheiro; eu os atendo. Nessa altura "amigo Isaac para aqui, amigo Isaac para acol, empreste-me uns dinheirinhos que a gente liquida-os no vencimento, to certo como existir Deus", ou "bondoso Isaac, se alguma vez ajudaste algum com preciso, este o momento de o tornares a fazer". Mas, quando chega a data de receber o que meu, passo ento a ser um judeu "danado", sobre cuja raa devem tornar a cair as pragas do Egipto e contra quem se atia a populaa. - Prior - cortou o chefe -, judeu que seja, falou bem. Indica, portanto, o valor do resgate dele, sem mais insultos. - Nenhum outro seno um latro famosus, cuja traduo te darei noutra ocasio e mar, colocaria no mesmo banco um prelado cristo e um judeu no baptizado. J que exigis que d um preo ao vosso cativo, dir-vos-ei que errareis se pedirdes um tosto que seja abaixo da mil coroas. - sentena! sentena! - proclamou o chefe. - sentena! sentena! - repetiram os seus assessores. O cristo mostrou como educado e tratou-nos com mais generosidade do que o Judeu. - Valha-me o Deus dos meus antepassados - balbuciou o Judeu. Atirais por terra quem j nada possui? J no tenho filhos e quereis agora tirar-me os meios de sustento? - Se j no tens filhos, menos tens de gastar - comentou o prior Aymer. - Infelizmente, senhor - disse Isaac -, a vossa lei permite-vos desconhecer a fora dos laos que nos unem aos nossos filhos. Rebeca, filha da minha amada Raquel! Se cada folha daquela rvore fosse um cequim e todas elas minhas, d-las-ia de bom grado s para saber se vives e escapaste quele nazareno. - A tua filha no uma de cabelo escuro? - perguntou um dos fora-da-lei. - Ela usava um vu de fina seda bordado a prata? - Usava, usava! - exclamou o velho, tremendo agora de esperana, como antes o fizera de medo. - Que a bno de Jacob sobre ti caia! Sabes alguma coisa dela? - Foi ento ela - disse o salteador - que o altivo Templrio carregou na garupa quando atravessou as nossas fileiras, ontem tarde. Ainda levantei o arco para o vazar com uma flecha. S o no fiz para no ferir a donzela.
- Oh! - gritou o Judeu. - Quisesse Deus que houvesse disparado, atravessando-lhe o peito! Melhor lhe serviria o tmulo dos antepassados do que o leito da desonra que lhe reserva o selvagem e libidinoso Templrio. Ichabod! Ichabod! A tua glria abandonou o meu lar! - Amigos - disse o chefe, olhando em seu redor -, embora o velho no passe dum judeu, a sua dor toca-me.
Trata connosco com toda a sinceridade. Se nos pagares mil coroas, ficas sem vintm? Isaac, obrigado a tornar a pensar em coisas materiais, a que tanto amor tinha, talvez por hbito, a ponto de se contenderem dentro de si com o seu amor paternal, empalideceu, gaguejou e acabou por no negar que algo restaria. - Bem, vai l para onde quer que - aquiesceu o salteador. sem tesouro, bem poderias ter tantas esperanas de rever e redimir a tua filha das correntes que Bois-Guilbert lhe colocou como de abateres um veado com um chuo sem ferro. O teu resgate ser igual ao do prior Aymer, ou, melhor, umas cem coroas menos, perda que aguentarei pessoalmente, no afectando assim esta minha leal companhia. para evitar a horrenda ofensa de cotar um judeu e um prelado cristo pela mesma tabela, ficars com a diferena para o resgate da tua filha. Os Templrios adoram tanto o luzir dos cequins como o rebrilhar de olhos negros. Apressa-te e faz tilintar as tuas coroas aos ouvidos de Bois-Guilbert antes que o pior suceda! Encontr-lo-s, informam-me os meus escutas, na preceptoria da sua ordem mais prxima... Falei bem, rapaziada? Os homens manifestaram, como sempre, a sua total adeso ao seu condutor. Isaac, aliviado de metade das suas preocupaes, pois ficara sabendo que a filha vivia e poderia ser resgatada, jorrou-se aos ps do bandido, esfregando as barbas nos seus borzeguins, e fazia j meno de lhe beijar a orla do casaco verde, quando o capito se afastou, soltando-se das mos que o prendiam com provas de nojo. - Deixa, maldito! Levanta-te! Sou ingls e no aprecio essas prostraes levantinas. Ajoelha-te a Deus, no perante um pecador como eu. - Judeu - interveio o prior Aymer -, ajoelha-te a Deus, na pessoa que o representa no altar e que sabe, com o teu arrependi mento e ofertas condignas ao orago de So Roberto, quantas graas tu e tua filha Rebeca obtero. Choro to bela e graciosa donzela vi-a na lia de Ashby. Alis, Brian de Bois-Guilbert pessoa que me ouve muito. Pensa quanto no valer uma palavra minha aos seus ouvidos... - Ai de mim! - exclamou o Judeu. - Tudo me cai em cima. Sou presa tanto do assrio como do egpcio. - Que mais havia a tua maldita raa de esperar? - perguntou o Prior, que continuou - Porque, como diz a Sagrada Escritura, verbum Domini projecerunt, et sapientia est nulla in, eis (rejeitando a palavra do Senhor, perderam a sabedoria), propterea dabo mulieres eorum exteris (darei, pois, as suas mulheres a outros), neste caso o Templrio, et thesauros eorum haeredibus alienes (e a sua fortuna a outrem), na circunstncia os cavalheiros presentes. Isaac gemeu fundo e, retorcendo as mos, caiu de novo em estado de desespero e desolao.
O chefe da bandidagem, porm, chamou-o parte e disse- -lhe: - Pensa bem, Isaac, neste assunto e v como vais proceder. Aconselho-te que te tornes amigo do padralheco. Ele um vaidoso, cheio de ganncia. Ou, pelo menos, precisa de dinheiro para as suas fantasias. Podes, com facilidade, saciar-lhe a avidez, pois no julgues que acreditei nessa coisa de seres pobre. Conheo como as minhas mos o cofre de ferro onde guardas as tuas sacas de dinheiro. Ora! No conhecerei eu o pedregulho, debaixo da macieira, que a entrada para a cmara abobadada sob o teu jardim em Iorque! - O Judeu ficou branco como a cera. - No temas. De mim no te vir mal algum - prosseguiu o arqueiro -, pois no leso velhos conhecimentos. Esqueceste j o homem livre doente que a tua linda filha, Rebeca, livrou dos grilhes em Iorque, abrigando-o em casa at que a sade lhe voltou? Mandaste-o, nessa altura, embora, com umas moedas na mo... Usurrio como s, nunca na tua vida aplicaste dinheiro to bem na tua vida. S hoje te evitou um prejuzo de quinhentas coroas. - s aquele a quem chamam Diccon Dobra-o-Arco? - interrogou Isaac. - A tua voz bem me lembrava algum. - Sou o Dobra-o-Arco, Loc sley e tambm tenho outro nome, alm destes dois. - Mas amigo Dobra-o-Arco, deves estar enganado quanto ao tal quarto abobadado de que falaste. Posso jurar pelos Cus que apenas l guardo alguma mercadoria, que gostosamente partilharei contigo... cem jardas de pano verde de Lincoln para fazeres casacos para os teus homens, cem varas de teixo espanhol para arcos e um cento de cordas de arco de seda, resistente, redondinhas e impecveis... Tudo isto te enviarei, honrado Diccon, para dispores como entenderes. Somente te peo segredo quanto ao subterrneo em abbada. - Serei to silencioso como um tmulo - respondeu o fora-da-lei - e acredita que me di muito o que acontece com a tua filha. No te posso auxiliar, todavia. As lanas do Templrio, em campo aberto, so demasiado longas para as minhas flechas, que se perderiam como o p. Tivera eu sabido que era Rebeca a raptada, e algo se poderia ter feito. Agora s por palavras se poder resolver a questo. Queres que comece j por falar com o Prior? - Em nome de Deus, Diccon! Ajuda-me a recuperar a filha amada! - Ento, se no me perturbares com as tuas manifestaes de sovinice, tratarei com ele, em teu nome - prometeu o salteador. Afastou-se, mas o Judeu seguiu- o como uma sombra. - Prior Aymer - pediu o capito -, vinde aqui comigo, para debaixo desta rvore. Quero um pequeno aparte convosco. Dizem-me que apreciais bom vinho e sorrisos belos mais do que convm vossa ordem, Sr. Padre.
Nada tenho a ver com isso, claro. Tambm me consta que gostais dum bom casal de ces, boas matilhas e bons cavalos. Nunca ouvi, contudo, afirmar que a opresso e a crueldade, em casos de amor, fossem do vosso gosto... Isaac, aqui, est
disposto a ajudar-vos a alcanar algumas das coisas que mencionei, como prazeres e passatempos, mediante uma saca com cem coroas de prata, que te conceder se intercederdes junto do Templrio para que liberte a sua filha... - To s e pura como quando nos separmos - intrometeu-se o Judeu -, seno no h negcio. - Cala-te, Judeu - ordenou o fora-da-lei -, ou deixo de trabalhar para ti... Que me dizeis, prior Aymer? - A questo complicada - disse o Prior. - Se, por um lado, pratico o bem, pelo outro pratic-lo-ei em favor dum judeu, o que me desagrada, visto ser contra a minha conscincia. Todavia, se um judeu contribui para o bem da Igreja, com um bolo para as obras da construo do nosso dormitrio, j a minha conscincia me aconselha a ajud-lo no caso da filha - Por uma importncia em marcos para o dormitrio... - ou por um punhado de prata para velas do altar, - disse o fora-da-lei. - no por isso que o negcio se vai encravar. - Mas, bom Diccon. Dobra-o-Arco... - tentou o Judeu falar. - Bom Judeu, meu burro, meu lagarto! - explodiu o arqueiro j sem pacincia. - Se queres pensar em nojentos lucros, quando so a vida e a honra da tua filha que esto em jogo, juro pelo Cu que te espremerei todos os maravedis que possuis em coisa de trs dias! Isaac, encolhendo-se, calou-se. - E que garantias terei eu nisto tudo? - indagou o Prior. - Quando Isaac regressar com xito, graas vossa interveno - respondeu o bandido -, juro por Santo Humberto que ou ele vos paga em prata fina, ou lhe trato da sade de forma tal que preferiria ter tido de pagar vinte vezes mais. - Portanto, Judeu - disse Aymer -, j que tenho de me meter neste assunto, passa-me material de escrita... espera... preferiria jejuar vinte e quatro horas a tocar na tua pena. Onde arranjo outra? - Se os vossos escrpulos religiosos vos permitem o emprego do restante material, para a pena h remdio pronto - disse o arqueiro. Levantou o arco e mandou uma frechada a um ganso que passava frente dum numeroso bando, a caminho de distantes e solitrias paragens em Holderness. A ave veio abaixo, espanejando, trespassada pela seta. - Pronto, Prior -, prosseguiu o capito. - Eis aqui penas bastantes para os frades de Jorvaulx escreverem durante um sculo, a no ser que se decidam a fazer crnicas. O Prior sentou-se e, com toda a calma, comps a epstola para Brian de Bois-Guilbert, que, aps lacrada, entregou ao Judeu, recomendando-lhe:
- Esta carta o teu salvo-conduto para a Preceptoria de Templestowe e, julgo-o, a chave para a libertao da tua filha, desde que, claro, a reforces com mercadoria e proveitos a sarem-te das unhas. Nota bem que o bravo cavaleiro Bois-Guilbert e os da sua confraria no do ponto sem n. - Bem, Prior - fez o fora-da-lei -, no vos prendo mais tempo, seno o necessrio para passardes ao Judeu a promissria referente ao vosso resgate, fixado em quinhentas coroas. Torno-o como meu cobrador. Logo, se me constar que procurais fugir liquidao, que Santa Maria me perdoe, mas incendeio a
abadia, contigo l dentro, nem que isso me leve forca dez anos antes do tempo. com muito menos graciosidade do que aquela que empregara na carta para Bois-Guilbert, o Prior preencheu um documento a favor de Isaac de Iorque, declarando ter ele a receber quinhentas coroas para o seu resgate, importncia que prometia, logo que pudesse, saldar. - Peo-vos agora - disse o Prior - a restituio das minhas mulas e cavalos e a libertao dos irmos que me servem, os anis de pedras, as jias e as roupagens de que fui espoliado, uma vez que j paguei a minha remisso. - Quanto aos vossos irmos, Sr. Prior - sorriu Loc sley - , esto livres e seria mesmo injusto det-los por mais tempo. Igualmente vos darei as mulas e os cavalos e dinheiro para o bolso suficiente para chegardes a Iorque. J no que toca a anis, jias, cordes e todo o resto, compreendereis que, sendo ns pessoas de conscincia, no podemos consentir coisas desse gnero nas mos de to venervel criatura como vs, que deve desdenhar dos bens terrenos para que, fortemente tentado por elas, no viesse a agir contrariamente s regras da sua fundao, usando tais vanitosas peas e enfeites. - Pensai bem no que fazeis, senhores - avisou o Prior -, metendo a mo naquilo que patrimnio da Igreja. Tudo aquilo inter res sacras e no sei bem o que suceder se manuseado por mos laicas. - Tomarei eu conta delas - interveio o eremita de Copmanhurst -, usando-as ou envergando-as eu prprio. - Amigo ou irmo - disse o Prior em resposta a esta soluo para as suas incertezas -, se na realidade foste ordenado, recordo-te que tens de responder perante os teus superiores pela parte que hs jogado nos acontecimentos de hoje. - Prior amigo - retorquiu o eremito -, ficareis a saber que perteno a uma diocese muito pequenina, pois sou eu o nico diocesano, que liga tanto ao bispo de Iorque como ao prior de Jorvaulx e ao seu convento inteiro.
- Sois duma irregularidade sem limites - surpreendeu-se o Prior -, um desses desordeiros que se cobrem de santidade a que no tm o mnimo direito, profanam os ritos sagrados e fazem perigar as almas dos que os escutam, lapides pro pane condonantes iis, dando-lhes pedras em vez de po, como reza a Vulgata. - De modo algum - opinou o frade. - Como a minha cabea, para se no rachar, no aguentou o latim, dir-te-ei simplesmente que livrar o mundo de padres vaidosos e das suas jias e bugigangas to justo como foi o saque dos Egpcios. - No passas dum padreco das bouas(2) - rosnou, furibundo, o Prior -, excommunicabovos. - E tu no s seno um hertico e um ladro - contestou- lhe o frade, indignado tambm. - No vou engolir, perante os meus paroquianos, essa afronta que, sem vergonha, me expes, embora saibas teu reverendo irmo. Ossa ejus perfringam, como reza a Vulgata. - Ol! - gritou o capito. - Ser que os reverendos irmos j chegaram to longe? Calma, frade! E vs, Prior, se estais na paz do Senhor, no provoqueis mais o frade... Eremita, deixa que o Prior siga. J nos pagou o resgate...
Conseguiu assim separar os irados padres, que seguiam vituperando-se em mau latim, que o Prior usava com mais fluncia, mas a que o eremito respondia com mais veemncia. O primeiro controlou-se o suficiente para perceber que comprometia a sua dignidade a discutir com um padre das bouas, capelo dum fora-da-lei, e, *2.. curioso verificar-se que em todos os extractos da sociedade existe uma espcie de consolao espiritual para os respectivos elementos, mesmo quando reunidos para propsitos diametralmente opostos aos da religio. Uma chusma de pedintes tem o seu Patrico, os bandidos dos Apeninos contam, no Seu meio, com pessoas agindo como padres e monges, que os confessam e que dizem missas. Indubitavelmente, essas reverendas criaturas, em tais sociedades, tero de adaptar os seus mtodos e proceder dentro da moralidade da comunidade na qual vivem, obtendo, ocasionalmente, um grau de reverncia devido aos seus supostos dons espirituais, sendo, no entanto, normalmente sujeitos a ridicularizaes impiedosas por se revelarem de carcter consistente com aquele dos que os rodeiam. So assim o padre lutador da antiga pea de Sir John Oldeastle e o famoso frade do bando de Robin dos Bosques. Tais personagens estavam longe de ser imaginrios. Existe uma advertncia do bispo de Durham contra os eclesisticos irregulares associando-se aos ladres da raia que profanavam os mais sacros ofcios das funes, celebrando ritos em favor de larpios, ladres e assassinos dentro de cavernas, sem respeito pela forma cannica, vestidos de farra sujos e alterando ou reduzindo a liturgia prpria. (Fim da nota.)
reunindo-se aos seus aclitos, preparou-se para partir com muito menos pompa e em condies muito mais apostlicas, naquilo ao mundo concernente, do que ostentara anteriormente a este encontro. Faltava apenas que o Judeu desse uma garantia do pagamento que ia adiantar do seu resgate e do do abade. Passou-lhe uma ordem, devidamente selada com o seu sinete, dirigida a outro membro da sua tribo, em Iorque, onde pedia que fossem entregues ao portador mil coroas e a mercadoria especificada na nota. - O meu irmo Sheva - gemeu o Judeu - tem as chaves dos meus armazns. - E do subterrneo abobadado? - segredou-lhe Loc sley. - No! No! Deus nos livre! - gaguejou Isaac. - Solta-se o Inferno se mais algum conhecer esse segredo. - Comigo est guardado - garantiu o fora-da-lei -, desde que o teu escrito resulte na verba combinada e citada. Que h agora, Isaac? Morreste? Embruteceste? Ser que o pagamento de mil coroas te tirou a ideia do perigo que corre a tua filha? O Judeu recomps-se. - No, Diccon, no. Parto imediatamente. Adeus, tu, a quem no posso chamar de bom, mas que no posso classificar de mau. Antes de o Judeu partir, o chefe ainda o advertiu: - S liberal nas tuas ofertas, Isaac, e no olhes bolsa no
caso da tua filha. Vai por mim. Todo o ouro que poupares na defesa da causa dela te dar tanta agonia no futuro como se to derramassem derretido pela gorja abaixo. Isaac, gemendo, concordou e partiu, ladeado por dois salteadores altos e espadados, que o guiariam e defenderiam dentro da floresta. O Cavaleiro Negro, que seguira os acontecimentos com interesse, despediu-se nesse momento do bandido. No ocultava o seu espanto perante atitudes to civilizadas entre gente vivendo margem da lei. - As rvores abandonadas - disse o chefe - tambm do frutos bons e os maus tempos no originam mal somente. Entre os que lei tm de fugir, muitos h moderados e at os que lastimam, por assim dizer, o dedicarem-se quilo a que se dedicam. - Estando eu, creio - complementou o cavaleiro -, a falar neste preciso momento com um desses ltimos. - Sr. Cavaleiro - respondeu Loc sley -, todos temos os nossos segredos. Podeis fazer de mim o juzo que quiserdes, assim como eu posso conjecturar acerca de vs, na certeza de que nem um nem outro acertar ao alvo. Deste modo, e como eu no tento desvendar o mistrio que vos encobre, rogo-vos me deixeis conservar o meu. - Peo-vos perdo - disse o cavaleiro -, justa a repreenso. Pode ser que nos tornemos a encontrar, nessa ocasio menos disfarados j. Entretanto, separamo-nos como amigos, no ?
- Aqui tendes a minha mo - adiantou Loc sley. - a dum autntico ingls, ainda que, na altura, fora da lei. - Eis a minha - respondeu o cavaleiro -, que com toda a honra apertar a tua, porque quem faz o bem quando usufrui do poder sem limites para o mal praticar merece louvor no s pelo que de bom executa, mas tambm pelo que de mau no faz. Que tudo te corra bem. Separaram-se em perfeita amizade, partindo o Cavaleiro do Aloquete, montado no seu possante cavalo de batalha, pela floresta dentro.
Captulo XXXIV REI JOO: - Deixa-me dizer-te. amigo, Que ele qual serpente no caminho Onde quer que seja que pouse o p, L est ele frente. Percebes? - Rei Joo Havia festa rija no castelo de Iorque, para a qual o prncipe Joo convidara aquela nobreza, clero e dirigentes cujo auxlio pretendia para poder usurpar o trono ao irmo. Waldemar Fitzurse, sem hbil conselheiro poltico, tinha andado a trabalh-los socapa, temperando-os com a necessria pitada de coragem para que s abertas se decidissem declarar pelo seu lado. A tarefa, no entanto, atrasava-se dada a
ausncia de vrios elementos importantes da conspirao. A tenaz e audaciosa, se bem que brutal, coragem de Front-deBoeuf, o esprito animado e atrevido de De Bracy, a sagacidade e experincia marcial de Brian de Bois- Guilbert, constituam factores importantes no projecto. Assim, e ainda que intimamente praguejassem contra o facto de no terem aparecido at altura, nem Joo nem o seu conselheiro se atreveriam a prosseguir sem eles. Isaac, o Judeu, parecia ter tambm desaparecido, e com ele a esperana de receberem determinadas quantias representativas do subsdio que o Prncipe contratara com aquele e outros israelitas. Esta deficincia podia revelar-se perigosa numa emergncia to crtica. Foi na manh seguinte queda de Torquilstone que na cidade de Iorque principiou a correr um confuso boato, segundo o qual De Bracy, Bois-Guilbert e o seu aliado Front-de-Boeuf teriam sido aprisionados ou mortos. Waldemar transmitiu o rumor ao prncipe Joo, acrescentando temer fosse verdadeiro, pois soubera que tinham partido com um pequeno grupo para armarem uma cilada a Cedric, o Saxo, e aos seus. Noutra altura, o prncipe Joo teria visto esse acto de violncia como uma piada, mas agora, que interferia com os seus planos, bradou contra os seus perpetradores, falou de leis contrariadas, de infraco da ordem pblica e perturbao de propriedade privada duma forma que melhor ficaria ao rei Alfredo.
- Rapinantes sem princpios! - exclamou. - Se alguma vez for monarca em Inglaterra, enforc-los-ei, esse gnero de transgressores, no alto das pontes levadias dos prprios castelos. - Todavia, para que venha a ser o monarca de Inglaterra comentou o seu conselheiro com frieza -, ser no s necessrio que Vossa Graa ature as transgresses desses rapinantes sem princpios, mas ainda que os defenda. Isto no obstante o vosso louvvel zelo pela lei que eles se habituaram a ignorar. Estaramos bem arranjados se os rurais dos saxes percebessem as ideias de Vossa Graa em transformar as pontes levadias feudais em forcas. Aquele atrevido do Cedric parece ser um dos que aceitariam tal possibilidade. Como Vossa Graa sabe, ser perigoso mexermo-nos sem Front-de- Boeuf, Bracy e o Templrio. Alis, j fomos longe de mais para recuarmos em segurana. O Prncipe bateu com a mo na testa, impacientemente, comeando a percorrer o apartamento. - Viles - disse -, traioeiros e baixos viles! Abandonarem-me neste momento! - Talvez, mais, loucos de cabea vazia - acalmou-o Waldemar -, que andam na folia quando h coisas to importantes a fazer. - Que se faz? - perguntou o prncipe Joo, parando em frente de Waldemar. - No sei que mais possa ser feito - respondeu o conselheiro do que aquilo que j ordenei. No vim para aqui lamuriar uma ocorrncia sem ter tomado medidas para a remediar. - Continuas a ser o meu anjo-da-guarda, Waldemar - sorriu o Prncipe. - com um chanceler como tu, o reino de Joo ter renome em todos os anais... Que mandaste fazer? - Ordenei a Louis Win elbrand, tenente de De Bracy, que, com a sua gente, montasse a cavalo e marchasse com bandeiras
desfraldadas para o castelo de Front-de- Boeuf, a fim de o ajudar no que fosse preciso. O rosto de Joo ensombrou-se como o de um menino amimado que se julga ofendido. - Por Deus! - exclamou. - Que ousaste, tu, Waldemar Fitzurse? Que ousadia foi esta? Mandares reunir tropas, erguer bandeiras, dentro duma cidade onde nos encontramos e sem ordens nossas? - Mil perdes, Senhor - disse Fitzurse, resmungando no ntimo contra a vaidade do amo -, mas o tempo urge e at a perda de alguns minutos pode ser fatal. julguei correcto arcar eu prprio com essa questo de tanta importncia para Vossa Graa. - Ests perdoado, Fitzurse - concedeu o Prncipe muito srio. Os fins justificam a tua impensada atitude...
Mas, quem vem a? De Bracy em pessoa! Pela Cruz! Como se apresenta perante ns! Tratava-se, realmente, de De Bracy... ensanguentado, afogueado pela pressa. A armadura ostentava todos os sinais de refrega recente, partida, deformada, coberta de sangue em muitos pontos. A terra e o p quase cobriam o resto, da peneira s esporas. Libertando-se do casco, pousou-o numa mesa e, por momentos, ficou calado como a preparar-se para transmitir novas. - De Bracy! - berrou o Prncipe. - Que significa isto? Fala! Ordeno-to! Os saxes revoltaram-se? - Falai, De Bracy - pediu Fitzurse, quase ao mesmo tempo. --Sempre fostes homem a valer, Onde pra o Templrio? E Front-de-Boeuf? - O Templrio fugiu e Front-de-Boeuf nunca mais o vereis. Um golpe de graa, rubro, desferido entre as labaredas que consumiam o seu castelo, acabou com ele. Apenas eu escapei para vos relatar o acontecido. - Um banho de gua fria - disse Waldemar -, embora nos fales de fogo e conflagraes. - E ainda no vos disse o pior - continuou De Bracy, que, abeirando-se do prncipe Joo, lhe falou baixo e enfaticamente: - Ricardo est em Inglaterra... Vi-o. Falei com ele. Joo empalideceu, cambaleou e teve de se segurar s costas duma cadeira para se aguentar. Parecia algum a quem uma flecha atravessara o peito. - Deliras, De Bracy - titubeou Fitzurse. - No pode ser! - pura verdade - garantiu De Bracy -, aprisionou-me e falei com ele. - Com Ricardo Plantageneta, dizes tu,? - insistiu Fitzurse. Sim. com Ricardo Plantageneta, com Ricardo Corao de Leo, com Ricardo de Inglaterra. - E foste aprisionado por ele? - continuou Fitzurse. - Vem ento frente de foras? - No, somente alguns fora-da-lei o rodeavam, e esses mesmos no sabiam quem ele era. Escutei-o a dizer que tinha de seguir. Somente se lhes juntara para assaltar Torquilstone. - Ai de ns! - gemeu Fitzurse. - isso mesmo tpico de Ricardo, um autntico cavaleiro andante, que erra em busca de aventuras, confiando no seu possante brao, como um segundo
Sir Guy ou Sir Brevis, enquanto os negcios do governo do reino continuam parados e a sua prpria segurana periclita. Que nos propes que faamos, De Bracy? - Eu? Eu ofereci a Ricardo os servios dos mercenrios, o que ele recusou. vou lev-los at Hull, arranjo espao em barcos e partimos para a Flandres. Graas a estes tempos
efervescentes, h sempre emprego para pessoas de iniciativa. E tu, Waldemar, porque no pegas na tua lana e no teu escudo, pondo de parte a poltica. e vens partilhar comigo a sorte que Deus nos destina? - J estou velho, Maurice, e tenho uma filha - respondeu o interpelado, - Concede-me a sua mo, que, custa da minha lana e do meu cavalo, lhe garantirei um futuro condicente com a sua posio - props De Bracy. - De modo algum - disse Fitzurse -, pedirei santurio na igreja de So Pedro. O arcebispo como se fosse meu irmo. No decorrer desta conversa, o prncipe Joo foi acordando do estado de estupor em que cara devido inesperada notcia e comeando a prestar ateno ao que diziam os seus seguidores. "Afastam-se de mim", pensou. "Esto menos presos a mim do que as ltimas folhas de Outono ao galho, que a primeira brisa soltar. Diabos os levem! Como conseguirei eu meios para me safar quando estes malandros me deixarem?" Parou e foi com uma expresso diablica de riso reprimido que quebrou aquela troca de palavras: - Ah! Ah! Ah! Meus caros senhores! Pela fronte de Nossa Senhora, tnhamo-vos por inteligentes, audazes e de raciocnio pronto. No entanto, desprezais todas as riquezas, honrarias e prazeres que vos foram prometidos exactamente no momento em que apenas uma jogada de arrojo se impe. - No vos compreendo - disse De Bracy. - Logo que se espalhe a notcia do regresso de Ricardo, formar-se- um exrcito atrs dele e tudo ter acabado para ns. Aconselho-vos, Senhor, a correr para Frana, ou a pedir proteco Rainha-Me. - No procuramos proteco para ns - exclamou o Prncipe com altivez - que no aquela que conseguiremos falando com o nosso irmo. Mas, quanto a vs, De Bracy e Waldemar, embora Muito me custe, j vejo as vossas cabeas a apodrecerem na porta de Clifford, alm. Estars, tu, Waldemar, convencido de que o arcebispo no deixar levarem-te mesmo de ao p do altar se vir que, dessa maneira, o rei lhe perdoar? E esqueces-te, De Bracy, que Robert Estoteville se encontra entre onde ests e Hull, com todas as suas foras, e que o conde de Essex rene j os seus apoiantes? Se j tnhamos motivos para temer estas levas anteriormente ao regresso de Ricardo, agora ters tu alguma dvida quanto ao lado que os seus comandantes apoiaro? Repara que s Robert de Estoteville tem poder bastante para atirar com os mercenrios todos para dentro do Humber. Waldemar Fitzurse e De Bracy fitaram-se, estupefactos e temerosos. - H somente um caminho para a segurana continuou o Prncipe, cuja fronte se obscurecera -, essa criatura que nos aterroriza viaja sozinha. H que ir ao seu encontro.
- No contem comigo - avisou De Bracy. - Aprisionou-me e concedeu-me merc. No tocarei numa pluma da sua peneira. - Quem falou em lhe fazer mal? - riu, com dureza, o Prncipe. - Amaldioarei quem sequer insinuar que eu o queria abater! No... Uma priso prefervel, seja ela na Gr-Bretanha ou na ustria, no importa. Tudo ficar como quando inicimos a nossa empresa, que se baseava no facto de Ricardo ficar para sempre cativo na Alemanha. o nosso tio Roberto viveu at morrer no Castelo de Cardife. - Sim - concedeu Waldemar -, mas o vosso pai, Henrique, sentia-se mais firme no seu posto do que Vossa Graa pode sentir-se. Continuo dizendo que no existe melhor priso do que aquela que os sacristes fazem... No h calabouo comparvel com a cripta duma igreja. Nada mais tenho a dizer. - Priso ou caixo - disse De Bracy -, lavo da as mos. - Vilo! - chamou-lhe o Prncipe. - E revelas o nosso plano? - Nunca o fiz - ofendeu-se De Bracy -, nem o nome de vilo me pode assentar! - Calma, Sr. Cavaleiro - pediu Waldemar. - Vs, meu Senhor, desculpai os escrpulos do bravo De Bracy, pois julgo poder afast-los. - Tal ultrapassar a vossa eloquncia, Fitzurse - disse o cavaleiro. - Bem, Sir Maurice - prosseguiu o manhoso poltico -, no fujais para o lado como um corcel em pavor sem, ao menos, apreciar melhor a razo do vosso temor. Esse mesmo Ricardo desejveis vs, uns dias faz, encontrar pela frente nas linhas de batalha. Era o mais forte dos vossos sonhos. Ouvi-vos diz-lo centos de vezes. - Sim - concordou De Bracy -, mas, nas condies que indicas, frente a frente no campo de batalha! Nunca me escutaste afirmar desejar assalt-lo s e numa floresta. - Se pensas assim, no s grande cavaleiro - seguiu Fitzurse. - Teria sido numa batalha que Lancelot de Lac e Sir Tristan fama alcanaram? Ou teria sido num recontro de gigantes sombra duma cerrada e desconhecida mata? - Seja como for - respondeu De Bracy -, nem Tristan, nem Lancelot, seriam homens para um Ricardo Plantageneta, e tambm me parece que nunca colocariam um guerreiro isolado em inferioridade numrica. - Sers louco, De Bracy? Que tem de extraordinrio propormos-te, a ti, um comandante de mercenrios, que te contrates e afiances ao servio do prncipe Joo? Foste preso pelo nosso inimigo e em vista disso apareces com problemas, embora as fortunas do nosso patrono, dos teus camaradas e a tua prpria periguem tanto como a honra e as vidas de todos ns? - Repito-te - teimou De Bracy. - Ele concedeu-me a graa de poder continuar vivo. certo que me afastou da sua
presena, recusando-se a deixar-me prestar-lhe homenagem, pelo que no lhe devo nem favor, nem apoio. Simplesmente, nada farei contra ele. - No precisas. Basta que ordenes a Louis Win elbrand que, com um grupo de lanas, parta ao seu encontro.
- Tendes rufies bastantes para esse trabalho - disse De Bracy. - Nenhum dos meus far parte dum projecto desses. - Sers assim to teimoso - perguntou o prncipe Joo -, que me abandones depois de tantos protestos de lealdade me terdes feito escutar? No exactamente desse modo - retorquiu De Bracy. - Ficarei a vosso lado tal como compete a um cavaleiro, seja nas lias, seja em combate. Como salteador, jamais! No est includo nos meus votos. - Vem da, Waldemar - disse o prncipe Joo, - Sou um prncipe infeliz. Meu pai, o rei Henrique, tinha fiis servidores. Bastou-lhe dizer que um padre sedicioso o importunava para, de imediato, o sangue de Thomas-a- Bec ett, santo que fosse, j tingir os degraus do prprio altar. Tracy, Morville, Brito(1), fiis e bravos sbditos, j no h espritos iguais aos vossos, ainda que Fitzurse tivesse deixado um filho que no herdou a sua coragem e dedicao! - No lhe faltam nem uma nem a outra - interps Waldemar Fitzurse -, e, como no existe outra forma, o melhor ser eu encabear to perigosa tarefa. Por muito cara que tivesse ficado a lealdade de meu pai, nada foi comparado com o que tenciono fazer. Mais valera ter de me haver com todos os santos do calendrio do que com o Corao de Leo. De Bracy, a ti encarrego-te de velares pela pessoa do Prncipe e manteres os nimos ao alto. Se vieres a receber o tipo de notcias que espero poder mandar, o nosso projecto no ser mais duvidoso... Pajem - comandou -, acorre minha residncia, diz ao meu armeiro Thoresby para se pr a postos e ordena a Stephen Wetheral, Broal Thoresby e aos trs lanas de Spjinghow que venham imediatamente ter comigo. Que o batedor-Mor, Hugh Bardon, os acompanhe igualmente. Adeus, meu prncipe, at melhores dias. - Saiu da sala. - Vai aprisionar o meu irmo - observou o prncipe Joo com tanta indiferena como se se tratasse dum banal saxo. - Conto que cumpra as minhas ordens e trate o meu caro Ricardo com todo O respeito. De Bracy limitou-se a sorrir. *1.. Reginald Fitzurse, William de Tracy, Hugh de Morville e Richard Brito eram fidalgos da corte de Henrique II, que, instigados pelo soberano, abateriam o celebrado Thomas-a-Bec ett.
- Pela luz da fronte de Nossa Senhora - insistiu o Prncipe -, as nossas ordens foram bem claras, embora talvez as no tenhas escutado, pois encontrvamo-nos na sacada. Fui preciso e positivo no respeitante segurana de Ricardo, e ai de Waldemar se transgredir! - O melhor ser eu passar pela residncia dele e recordar-lhe as instrues de Vossa Graa, pois, tal como no chegaram aos meus ouvidos, podem no ter alcanado os dele tambm. - Deixa, deixa - impacientou-se o prncipe Joo. - Estou certo de que me escutou e tenho outras coisas com que te encarregar. Aproxima-te, Maurice, deixa-me apoiar no teu ombro. Saram da sala nesta atitude de familiaridade, dizendo o prncipe Joo com um ar da mais ntima confidncia:
- Que pensas de Waldemar Fitzurse, carssimo De Bracy? Conta vir a ser o meu chanceler. Temos de ponderar, antes de confiar to elevada posio a algum demonstrando to pouca considerao pelo nosso sangue nesta sua ideia de se precipitar contra Ricardo. s capaz de julgar teres cado na minha opinio por to audaciosamente teres recusado to repelente tarefa. Pelo contrrio, Maurice, honrar-te-ei pela tua virtuosa constncia. H coisas precisas de executar sem que tenhamos de amar ou honrar o seu executante. Poderemos tambm receber recusas para nos servirem que exaltam a nossa estima pelos que nos negam pedidos. A priso do nosso desafortunado irmo no constitui uma referncia conveniente para o importante lugar de chanceler, mas a tua cavalheiresca e corajosa recusa concede-te o basto do marechal-mor. Pensando nisto, comea a agir dentro da tua nova posio. - Tirano inconstante! - murmurou De Bracy, deixando a presena do Prncipe. - A m sorte cai sobre quem nele confia. Teu chanceler! Quem zelava pela tua conscincia no ter problemas em s-lo. Quanto a ser-se marechal- mor de Inglaterra bradou, estendendo os braos como para empunhar o basto do marechalato e adoptando um ar mais importante -, isso, sim, isso de grande valor. Mal De Bracy sara e j o Prncipe exigia os servios dum valete. - Queremos que Hugh Bardon, nosso batedor-Mor, se nos apresente logo que tenha falado com Waldemar Fitzurse. Pouco depois, o batedor-Mor apresentava-se a Joo, que nervosamente media o compartimento. - Bardon - indagou -, que desejava Waldemar de ti? - Dois homens resolutos, conhecedores destas matas bravias do Norte, e peritos em seguir rastos de homens e cavalos. - Arranjaste-lhos?. - Que Vossa Graa sempre confie em mim - respondeu o espio-chefe. - Um deles de Hexamshire, habituado a perseguir os ladres de Tynedale e Tewotdale como um sabujo
fareja uma pista ou um gamo ferido, O outro nado e criado no Yor shire e fez ouvir muitas vezes a sua corda de arcos na feliz Sherwood. Conhece toda a floresta, bosques e clareiras, desde aqui at Richmond. - Est bem - anuiu o Prncipe com a cabea. - Waldemar foi com eles? - Imediatamente. - Acompanhado por quem? - perguntou Joo descontraidamente. - Broad Thoresby vai com ele e ainda Wetheral, aquele a que chamam o Corao de Ao, pela sua dureza e crueza, e mais trs homens de armas do Norte que j pertenceram ao bando de Ralph Middleton. Denominam-se as Lanas de Spyinghow. - Est bem - repetiu o Prncipe, que, depois duma pequena paragem, acrescentou: - Bardon, de importncia para o nosso servio que Maurice de Bracy fique sob observao constante. Sem que ele o note, contudo. Deveremos ser informados de tudo quanto fizer, com quem conversa, o que prope. No falhes nesta responsabilidade. Hugh, baixando a cabea, retirou-se. - Se Maurice me traiu - disse o Prncipe -, e o seu comportamento leva-me a crer que sim, arranco-lhe a cabea,
Captulo XXXV Assanhar o tigre dos desertos hircanianos, Aular o esfaimado leo contra a presa, So perigos menores que atiar as brasas Do fanatismo incontrolado. - Annimo A nossa histria leva-nos de novo at Isaac de Iorque. Montando uma mula oferecida pelo chefe fora-da-lei, escoltado por dois salteadores que lhe serviam de guias e guardas, o Judeu dirigia-se para a Preceptoria de Templestowe para negociar a libertao de sua filha. A Preceptoria no estava a mais de um dia de caminho do arrasado castelo de Torquilstone, esperando o Judeu l chegar antes do cair da noite. Despediu-se dos seus acompanhantes no extremo da floresta, recompensando cada um com uma pea de prata, e apressou-se tanto quanto conseguia. As foras faltaram-lhe, porm, e de forma completa, quando se encontrava a quatro milhas de Temple-Court. As costas e os membros doam-lhe horrivelmente e a ansiedade que o invadia agora, acrescida pelos maus tratos fsicos, tornavam-no incapaz de ir alm duma pequena vila de feira, onde vivia um rabi, sabido na profisso mdica e que conhecia Isaac perfeitamente. Nathan ben Israel acolheu o seu compatriota com toda a gentileza que a sua lei lhes recomendava e que os judeus sempre praticam uns para com os outros. Insistiu para que repousasse, deu-lhe medicamentos apropriados contra a febre que o terror, maus tratos e dor tinham acarretado ao pobre e velho judeu. No dia seguinte, quando Isaac se dispunha a levantar-se e continuar caminho, Nathan objectou contra tal ideia, como anfitrio e fsico. Poderia custar-lhe a vida, argumentou. Isaac, contudo, contestou, explicando-lhe tratar-se duma questo de vida ou de morte ir, nessa manh, a Templestowe. - A Templestowe! - espantou-se o anfitrio, que logo lhe tomou o pulso e resmungou: - A febre passou, mas parece-me alterado e perturbado.
- E porque no ir a Templestowe? - perguntou o paciente. - ] um ponto de reunio daqueles para quem o Povo Eleito um empecilho e uma abominao. Sabes, igualmente, que, nas nossas transaces, somos levados a contactar esses nazarenos de sangue sedentos e que visitamos as preceptorias do Templo, bem como as comendas dos Cavaleiros Hospitalrios, como lhes chamam(1). - Sei-o perfeitamente - assentiu Nathan -, mas sabers tu que Lucas de Beaumanoir, o chefe da ordem deles e a quem se referem como o Gro-Mestre, est, em pessoa, em Templestowe? - Ignorava-o - reconheceu Isaac -, pois as ltimas cartas dos
nossos irmos de Paris davam-no como encontrando- se ali a rogar a ajuda de Filipe contra o sulto Saladino. - Veio, entretanto, para Inglaterra, sem que os seus irmos o esperassem - informou Ben Israel -, e surgindo entre eles como um castigador para punir e corrigir. O seu rosto est contorcido de ira contra os que tm quebrado os votos e o medo grassa entre aqueles rebentos de Belial. Conhece-lo de nome? - Perfeitamente - disse Isaac. - Os gentios vem Lucas Beaumanoir como um perfeito executor de todas as leis dos nazarenos. Os nossos irmos vem-no como um fero destruidor dos sarracenos e um opressor do Povo Eleito. - E com toda a razo o fazem - disse Nathan, o fsico. - Os demais templrios podem ser arredados dos seus intentos pelo prazer ou subornados com ouro e prata. Beaumanoir de casta diferente. Abomina a sensualidade, odeia tesouros e procura aquilo que vem como a coroa do martrio. Que o Deus de Jacob o chame, e depressa, sua presena! A ele e a todos os outros. Sobretudo porque este homem j se atira aos filhos de Jud qual David sobre Edom, considerando o assassinato de judeus to meritrio como a matana de sarracenos. Muita coisa mpia e falsa tem ele proferido a propsito dos nossos remdios, como se de artifcios de Satans se tratassem. Que o Senhor o castigue! - Apesar de tudo - informou Isaac -, tenho de me apresentar em Templestowe, mesmo que o rosto dele fique mais rubro de fria do que uma fornalha. Explicou a seguir a Nathan as razes prementes da sua viagem. O rabi escutou-o com todo o interesse, demonstrando-lhe toda a simpatia, de acordo com os modos do seu povo, ou seja, rasgando as roupas e exclamando: *1.. Os centros dos cavaleiros do Templo eram denominados "preceptorias", sendo o ttulo de quem Ordem presidia, o de "preceptor". Como os mais importantes cavaleiros de So Joo eram conhecidos por "comandantes", as suas residncias eram as "comendas". Por vezes, estes termos eram empregados indiscriminadamente.
- Ah! Filha minha! Pobre beleza de Sio! Ai do cativeiro de Israel! - Percebes - disse Isaac - como me sinto e porque no Posso atrasar-me. Qui a presena do tal Lucas Beaumanoir, a pessoa que neles manda, possa afastar Brian de Bois-Guilbert do mal que congemina e me venha a entregar a minha querida filha Rebeca. - Vai - acedeu Nathan ben Israel -, e usa de sabedoria, pois foi a sabedoria que salvou Daniel do covil dos lees para onde tivera sido lanado. Podem as coisas correr-te como desejas. Se puderes, evita a presena do Gro- Mestre, porque o demnio troa de ns desde manh at tarde. Pode acontecer, se conversares com Bois-Guilbert em privado, que consigas levar a tua a melhor. Diz-se que os malditos nazarenos esto em desacordo dentro da Preceptoria. Que as suas reunies no resultem e os cubram de vergonha! Regressa para esta casa, como se fosse o teu lar paterno, mas manda-me novidades tua frente. Espero fervorosamente que tragas Rebeca contigo, essa
sbia aluna da sbia Miriam, cujas curas o gentio atribui a necromancia. Isaac despediu-se do amigo e, uma hora passada, j estava na Preceptoria de Templestowe. Esta situava-se entre prados e pastagens, doados Ordem pela devoo dum antigo preceptor. Era robusta e bem fortificada, pormenor que os Templrios jamais esqueciam e que a catica situao de Inglaterra fazia recomendar. Dois alabardeiros, de negro vestidos, guardavam a ponte levadia. deslizando para l e para c, ao longo da muralha, em passo cadenciado e lento, parecendo mais espectros do que sentinelas. Os componentes inferiores da Ordem vestiam-se desse modo, desde que o emprego de roupagens brancas, semelhantes s dos cavaleiros e graduados, originara uma grande confuso nas montanhas da Palestina, cobrindo a ordem de vergonha. Volta e meia via-se um cavaleiro a atravessar o ptio, com a sua longa capa, cabea cada sobre o peito e braos cruzados. Se passavam por outro, saudavam -se com um lento e solene cumprimento, seguindo a regra da ordem recomendando-lhes, baseada nos textos sagrados, "Evitaras o pecado usando poucas palavras" e "A vida e a morte esto merc da lngua". Resumindo, o rigor asctico e rgido da disciplina do Templo, que h muito fora olvidado em favor duma prdiga indulgncia licenciosa, parecia, subitamente, ter renascido em Templestowe, sob o olhar severo de Lucas Beaumanoir. Isaac estacou ao porto para estudar qual seria a maneira de pedir ingresso que melhor resultasse em seu favor, pois estava totalmente consciente de que o reviver do fanatismo da Ordem no era menos perigoso para os da sua raa do que o desordenado descalabro anterior. A sua religio faz-los-ia perigar, agora, exactamente como a sua riqueza os expusera a presses na situao passada.
Lucas Beaumanoir passeava num jardinzinho, pertencente Preceptoria e abrangido pelo cercado das fortificaes exteriores, conversando confidencialmente com um irmo que viera consigo da Palestina. O Gro-Mestre era pessoa de idade j avanada, como o demonstrava a sua longa barba grisalha e as espessas sobrancelhas que cresciam sobre um par de olhos aos quais o tempo no extinguira o fulgor. Era um formidvel guerreiro, cujas finas feies conservavam ainda a ferocidade de expresso marcial, embora amaciadas pela abstinncia e orgulho espiritual que, por gosto, aquele asceta intolerante lhes impunha. Apesar de tudo, havia nestes duros traos fisionmicos algo chocante de nobreza, certamente devido ao facto de o seu elevado cargo o levar a frequentemente contactar com monarcas e prncipes e tambm do hbito do exerccio e autoridade mxima sobre bravos e bem-nascidos cavaleiros que a ordem num todo juntava. Era alto e o seu porte no afectado nem pela idade, nem pelo trabalho, era majestoso e impressionante. O seu manto simples de burel branco, segundo o modelo de So Bernardo, ajustava-se- lhe ao corpo e ostentava no ombro a cruz octogonal de pano vermelho prpria da Ordem. No usava nem veiros, nem arminhos, mas, como sinal de respeito para com os seus muitos anos, fora-lhe, de acordo com as regras, permitido debruar o manto com
finssimo velo de anho, que, substituindo as peles e tendo a l para o lado de fora, constituiria o nico sinal de luxo. Trazia numa mo o curioso abacus, ou bculo, com o qual os Templrios so vulgarmente reproduzidos, na ponta do qual havia uma placa redonda com uma cruz da ordem, dentro dum crculo, ou orla, como se diz em herldica, l gravada. O companheiro deste importante personagem vestia quase igual ao seu superior, mas as suas Constantes mostras de deferncia para com ele revelavam que a igualdade a isso se limitava somente. O preceptor, pois era essa a sua categoria, caminhava a par do Gro-Mestre, mas um pouco atrs, embora no tanto que Beaumanoir fosse forado a voltar a cabea enquanto com ele falava. - Conrade - dizia o Gro-Mestre -, caro companheiro das minhas batalhas e tormentos, s tua fiel pessoa Posso confidenciar as minhas preocupaes. S a ti me permitido dizer quantas vezes, desde que vim para este reino, pedi para partir para junto dos Justos. Nada em Inglaterra agradou minha vista, salvo os tmulos dos nossos irmos sob o salo macio da nossa igreja do Templo, naquela altiva capital. "Oh, valente Robert de Ros! ", exclamei interiormente, quando olhava para aqueles bravos soldados da Cruz esculpidos nos seus jazigos! "Oh, valoroso William de Marechal, abre a tua marmrea cela e deixa repousar junto de ti o teu exausto irmo, que preferiria haver-se com cem mil pagos do que testemunhar a decadncia da nossa sacra ordem! "
- Verdadeiro - respondeu Conrade de Mont-Fitchet -, inteiramente verdadeiro. As faltas dos nossos irmos em Inglaterra ainda so maiores do que as dos de Frana. - Porque so mais ricos - concluiu o Gro-Mestre. - Perdoa-me se for um nada vaidoso. Sabes o que tem sido a minha vida de luta contra demnios encarnados e desencarnados, abatendo lees que, rugindo, buscam presas para devorar como um generoso cavaleiro e devoto padre, igual a nenhum que tenhas encontrado, agindo como o bendito So Bernardo nos recomenda no quadragsimo quinto captulo da nossa ordem: Ut Leo semple feriatur(2) Mas, pelo Templo sagrado! O zelo com que me empenhei de corpo e alma tem-me devorado a substncia e a vida, os nervos, as entranhas at ao tutano. Por esse mesmo sacro Templo te juro que, fora alguns antigos que ainda acatam a severidade da Ordem, no vejo nenhum irmo digno desse nome. Que rezam os nossos estatutos e como os cumprem os nossos irmos? No devem envergar qualquer pea ftil e mundana, no ter topete no elmo e ouro nos estribos e nas rdeas. Mas quem se arreia mais altiva e galhardamente do que os pobres soldados do Templo? Pelos estatutos -lhes proibida a falcoaria, a caa com arco ou arcobalista, troar a trompa de caa ou esporear cavalos atrs de presas. Mas, agora, na caa e na altanaria, em todos os desportos da mata e das guas, quem mais pronto a pratic-los est do que os Templrios? No lhes permitido ler seno o que os superiores lhes autorizam, ou escutar o que lido, salvo aqueles textos sagrados que podem ser recitados a certas horas, ou s refeies. No entanto, os seus ouvidos abrem-se s palavras ocas de menestris e os seus olhos percorrem, vidos, rimanos sem sentido. Foi-lhes comandado extirpar magias e heresias. Mas
no! Estudam os segredos cabalsticos dos judeus e a mgica dos sarracenos de Painim. -lhes prescrita a frugalidade, base de razes, caldos, sopas de aveia, carne somente trs vezes por semana, pois o costume de ser comer carne corrompe o corpo. Vejam-se as suas mesas. Ajoujadas de delicadas iguarias. A sua bebida seria a gua. Hoje, "beber-se como um templrio" sinal de se beber do bom e do melhor! Este mesmo jardim, pejado de ervas e rvores estranhas, vindas do levante, seria mais apropriado para o harm dum emir descrente do que para monges cristos cujas hortas se deveriam limitar s ervas de vaso vulgares, E, oh Conrade! Se as quebras de disciplina se ficassem por aqui! Sabe,, perfeitamente que nos vedado receber, agora, aquelas devotas irms que, no comeo, se nos associaram como membros da ordem, porque, *2.. Nos mandados dos cavaleiros do Templo esta frase repetida sob variadissimas formas e ocorre em quase todos os captulos, como se fosse o mote da ordem. Talvez por essa razo tanta vez venha boca do Gro-Mestre.
segundo o captulo quadragsimo sexto, o Inimigo Imundo, servindo-se das companhias femininas, afastou muitos de ns do caminho para o Paraso. O ltimo captulo, por assim dizer a pedra-base sobre a qual o nosso abenoado fundador ergueu a nossa imaculada doutrina, probe-nos de, mesmo s nossas mes e irms, oferecer o sculo da afeio, ut omnium mulierum fugiantur oscula. Tenho pejo de falar, envergonha-me pens-lo, mas a corrupo cresceu a tal ponto que mais parece, nestes tempos, um alude. As almas dos nossos purssimos fundadores, os espritos de Hugh de Payen, Godfrey de Saint Omer e os abenoados Sete que, primeiramente, se alistaram, pondo as suas vidas ao servio da ordem, perturbam-se, certamente, l no Paraso a que ascenderam. Em vises nocturnas, Conrade, aparecem-me os seus santos olhos marejados de lgrimas vertidas pelos pecados e loucuras dos nossos irmos e pela suja e pecaminosa luxria em que chafurdam. Beaumanoir, dizem-me, desperta! O tecido do Templo est manchado, coberto de muitas e entranhadas ndoas, semelhantes s marcas da lepra nas paredes das casas impuras de antigamente(3). - Os soldados da Cruz, que deviam evitar olhares femininos como se de drages fossem, vivem em pecado ostensivo no apenas com as mulheres da sua prpria raa, mas tambm com as amaldioadas pags e as ainda mais amaldioadas judias. Beaumanoir, tu dormes! Levanta-te e faz vingar a nossa causa! Abate os pecadores! Homens e mulheres! Toma o tio de Fineias!... A viso desvaneceu-se, Conrade, mas, quando despertei ainda lhes escutei o ranger das armaduras e o adejar dos mantos. Procederei de acordo com as suas palavras. Purificarei o Templo. As pedras que o sujam sero arrancadas e deitadas fora. - Pensai, reverendo pai - disse Mont-Fitchet -, que a mancha j se incrustou devido ao tempo e aos costumes. Que a vossa reforma seja to cauta, como justa e sbia o . - No, Mont-Fitchet - retorquiu o rspido velho -, ter de ser acerada e clere, A Ordem atravessa a crise da sua existncia. A sobriedade, abnegao e piedade dos nossos antecessores
criaram-nos amigos poderosos... a nossa presuno, riqueza e luxo fizeram-nos potentes inimigos. Temos de nos libertar de tesouros que at aos prncipes tentam... temos de acabar com a presuno que uma verdadeira ofensa... temos de reformar as maneiras que escandalizam o mundo cristo! Ou... nota as minhas palavras... a Ordem do Templo se demolir... e o seu lugar ser esquecido pelas naes. - Que o Senhor nos proteja duma calamidade dessas! - disse o Preceptor. - Amen! - entoou solenemente o Gro-Mestre. *3.. Ver captulo. 13 de Levtico.
- Mas bem, precisamos da Sua ajuda. Garanto-te, Conrate, que nem as foras do Cu, nem as foras da Terra, podem aguentar a maldade desta gerao. Sei que os fundamentos da nossa organizao j esto minados, pelo que cada pedra que lhes acresamos s vem aumentar a importncia da queda para o abismo. Temos de voltar atrs, tornando-nos outra vez nos Campees da Cruz, sacrificando, na nossa vocao, no s sangue e vida, mas os nossos desejos e vcios e ainda o descanso, o conforto das nossas afeies naturais, e actuarmos na convico de que muitos dos prazeres, legtimos para outros, so proibidos, por voto, aos Templrios. Neste momento, um escudeiro, cujas roupas eram puidssimas (j que os aspirantes a esta sacra ordem vestiam, durante o noviciado, as roupas que os cavaleiros deitavam fora), atravessou o jardim e, baixando a cabea numa mesura, aguardou que o Gro- Mestre lhe autorizasse transmitir o recado que trazia. - No muito mais bonito - observou o Gro-Mestre - ver Damian dentro de roupas cheias de humildade crist, em silncio reverente perante o seu superior, do que, como andava dois dias atrs, com um gibo, pintado, bamboleando-se como um atrevido, na sua vaidade de peralvilho? Fala, Damian. Permitimo-lo-te. Que h? - Est um judeu ao porto, nobre e reverendo pai - respondeu o escudeiro -, pedindo permisso para falar com o Irmo Brian de Bois-Guilbert. - Fizeste bem em no-lo transmitir - aprovou o Gro- Mestre. Na nossa presena um preceptor no passa dum vulgar elemento da nossa ordem, que no se pode mexer sem nossa autorizao... mesmo quando, conforme os textos "ouvindo-me, obedeceu-me"... Importa especialmente saber como est procedendo esse BoisGuilbert - acrescentou, voltado para o companheiro. - Os relatrios dizem-nos ousado e valente - informou Conrade. - E com toda a veracidade - acrescentou o Gro-Mestre -, pois apenas em valor no degenermos dos nossos predecessores, os heris da Cruz. O Irmo Brian, todavia, acolheu-se nossa ordem taciturno, desapontado, uma pessoa levada a aceitar os votos e a renunciar ao mundo no por sinceridade, mas mais como algum que o faz para se penitenciar. Desde ento tornou-se num activo e intenso agitador, num boateiro, num maquinador-chefe junto dos que impugnam a nossa autoridade. No se lembra de que a regra dada ao Mestre, juntamente com o basto e a vara, o basto para auxiliar os fracos, a vara
para punir as faltas dos delinquentes... Damian - ordenou -, traz o judeu nossa presena, O escudeiro cumprimentou-o profundamente, partiu e poucos minutos depois voltou, trazendo Isaac de Iorque. Nenhum escravo desnudo empurrado para a presena dum prncipe poderia
aproximar-se do seu julgador com tantas e to profundas reverncias e terror como aqueles que o Judeu evidenciava perante o Gro-Mestre. distncia de trs metros, Beaumanoir mostrou-lhe que no deveria avanar mais. O Judeu ajoelhou-se, beijou o solo em sinal de respeito, levantou-se e ficou perante os templrios com as mos em cruz sobre o peito, a cabea tombada, as maneiras prprias de submisso no Leste. - Damian - mandou o Gro-Mestre -, retira-te e arranja um guarda pronto a intervir ao primeiro chamamento. Que ningum entre no jardim enquanto dele no sairmos. - Curvando-se, o escudeiro afastou-se. - Judeu - disse o arrogante velho -, no prprio da nossa condio comunicar contigo por muito tempo ou gastar tempo e palavras com quem quer que seja. S, pois, breve nas respostas s minhas questes e que a verdade com elas venha. Se a tua lngua te atraioar, arranco-ta por entre essas queixadas de infiel. O Judeu ia dizer qualquer coisa, mas o Gro-Mestre calou-o. - Silncio, descrente! Nem uma palavra na nossa presena, a no ser quando a responder a perguntas nossas. Que queres tu tratar com o Irmo Brian de Bois- Guilbert? Isaac inspirou de pavor e dvidas. Contar a histria poderia ser interpretado como um escandalizar da Ordem. No entanto, se a no narrasse, como conseguiria a soltura da filha? Beaumanoir percebeu a sua imensa apreenso, compadeceu-se e deu-lhe alguma confiana: - Nada temais pela tua desgraada pessoa. Judeu, desde que trates do caso com correco. Novamente te pergunto: que queres tratar com Brian de Bois-Guilbert? - Sou portador duma carta - gaguejou o Judeu - reverendo e valoroso senhor, para o bravo cavaleiro, escrita pelo prior Aymer da Abadia de Jorvaulx. - Eu no dizia que estvamos em m poca, Conrade? comentou o Gro-Mestre. - Um prior cisterciense, desejando enviar uma carta a um soldado do Templo, no arranja melhor portador que no seja um judeu descrente... D-me a carta. O Judeu, com mos trmulas, abriu as dobras do barrete armnio onde, para maior segurana, guardara a missiva do Prior e ia aproximar-se, estendendo o brao e vergando o corpo, do austero interrogador, quando escutou: - Para trs, co! - bradou o Gro-Mestre. - S toco em infiis com a espada... Conrade, pega na carta e passa- ma. Quando lhe foi entregue, Beaumanoir examinou-a e desfazia o cordel que a prendia quando Conrade lhe perguntou, com a mxima delicadeza: - Reverendo, ides romper o selo? - E porque no? - respondeu Beaumanoir com uma carranca.
Literarum, que os Templrios no devem receber cartas, mesmo dos pais, sem o comunicarem ao Gro-Mestre, perante quem as lero? Percorreu a carta, apressadamente e com uma expresso de espanto e horror. Releu-a mais devagar e, depois, passou-a a Conrade com uma mo, enquanto com a outra lhe batia ao de leve, dizendo: - Se isto maneira dum cristo escrever a outro, e ainda mais quando ambos so membros de comunidades religiosas! - Levantou o olhar ao Cu e pediu: - Quando descereis com os Vossos aoites para separar o trigo do joio? Mont-Fitchet ia ler a carta, quando o superior lhe ordenou: - L em voz alta, Conrade, e tu - isto para Isaac -- presta boa ateno, pois vou-te interrogar a seguir. Conrade leu, portanto a carta, cujo teor era o seguinte: Aymer, pela graa divina, prior da casa cisterciense de Santa Maria de Jorvaulx, dirige-se ao Sr. Brian de Bois- Guilbert, cavaleiro da sacra Ordem do Templo, desejando-lhe sade e felicidade nos reguengos de Baco e de nossa senhora Vnus. No referente nossa momentnea condio, caro irmo, informamos estar cativos s mos de certos homens sem Deus nem lei, que ousaram deter-nos e pedir, por ns, resgate. Por eles soubemos da infelicidade de Front-de-Boeuf e que tu houveras escapado com a bela feiticeira judia, cujos negros olhos te encantaram. Apraz-nos cordialmente saber-te a salvo, mas prevenimos-te para te precaveres contra essa segunda bruxa de Endor, que, sem ligar a faces rosadas ou olhos de veludo negro, avana da Normandia para diminuir ou corrigir os teus actos. Peo- te, pois, e com todo o ardor, que estejas to alerta como o Santo Texto diz: Invenientur vigilantes. Como o abastado judeu, pai dela, Isaac de Iorque, me pediu letras, mando- te estas, aconselhando-te, com toda a sinceridade e quase como recomendao, que negocies com ele o resgate da donzela, procurando que arranque de dentro das suas sacas de moedas o suficiente para libertar cinquenta donzelas em muito menores sarilhos, do que j me regozijo pensando na celebrao que, juntos, faremos como irmos de peito e sem esquecer os copos. No a Escritura que afirma Vinum laetificat cor hominis? E tambm Rex delectabitur pulchritudine tua? At ao nosso jubiloso reencontro, desejo-te que passes bem. Escrito neste covil de ladres cerca da hora das matinas. AYMER, PRIOR DE S. M. JORVOLCIENCIS.
Post-scriptum. - A tua corrente de ouro no ficou, afinal, muito tempo comigo e est, agora, cintura dum ladro de cervos, que nela por um apito para ces. - Que dizes disto, Conrade? - perguntou o Gro-Mestre. Covil de ladres! No h residncia mais apropriada para um prior assim. No surpreende que a Mo divina esteja tombando sobre ns e estejamos perdendo a Terra Santa, palmo a palmo, para os infiis, que no tm religiosos como este Aymer... E, pergunto, quem essa segunda bruxa de Endor? - fez em aparte ao seu confidente.
Conrade, mais habituado (qui pela prtica) terminologia galante do que o seu superior, explicou-lhe ser a passagem que o intrigava uma espcie de linguagem que os homens mundanos empregavam a propsito de quem amassem ilicitamente. A explicao no agradou, porm, ao desconfiado Beaumanoir. - Deve ser muito mais do que isso, Conrade. A tua ingenuidade no abarca toda esta profana maldade. Esta Rebeca de Iorque foi aluna da Miriam, de quem ouviste falar. Vais ver como o Judeu o confirma. - Virou-se para Isaac e disse bem alto: - A tua filha est, portanto, prisioneira de Brian de Bois-Guilbert? - Infelizmente, valoroso senhor - tartamudeou o infeliz Isaac -, e qualquer que seja o resgate que exijam a um pobre homem para salvar a filha... - Silncio! - gritou o Gro-Mestre. - Essa tua filha curandeira? - Na verdade, meu senhor - respondeu o Judeu j um pouco mais confiante -, cavaleiros e burgueses, escudeiros e vassalos, agradecem aos Cus as curas que ela pratica. Muitos podem testemunhar que as suas artes os sararam de males que outros no saberiam enfrentar. Ela, porm, goza da bno do Deus de Jacob. Beaumanoir enfrentou o Judeu com um sorriso sinistro. - Vede, irmo - disse -, os ludbrios do inimigo! Vede os iscos com que pescam as almas, oferecendo-lhes tempo na Terra, em troca de felicidade eterna. Bem afirma a nossa santa regra, Semper percutiatur leo vorans. Ao leo! Abaixo o destruidor! gritou, elevando o seu mstico bculo como que a desafiar as foras do mal. - No duvido que a tua filha consiga curas disse ao Judeu -, por meio de palavras, viglias, amuletos e outras cabalas. - No, reverendo e corajoso cavaleiro - retorquiu Isaac - , quase sempre com um blsamo de enorme virtude. - Onde conseguiu ela o segredo? - perguntou Beaumanoir. - Foi-lhe dado - explicou o Judeu com certa relutncia -, por Miriam, uma grande sbia da nossa tribo.
- Ah! Judeu falso! - gritou o Gro-Mestre. - Da mesma Miriam cujos abominveis encantamentos toda a cristandade conhece? Benzeu-se. - Morreu queimada, amarrada a um poste, e as suas cinzas foram espalhadas aos quatro ventos. E que o pior sobre mim e a minha ordem caia se eu no fizer igual com a aluna dela. Ensinar-lhe-ei a no deitar mais encantos em soldados do abenoado Templo!... Damian, pe este judeu l fora e mata-o se resistir ou tentar voltar. com a filha lidaremos ns, conforme a lei crist. O pobre Isaac foi assim expulso da Preceptoria. De nada lhe serviram as ameaas e promessas que, nem sequer foram ouvidas, quanto mais atendidas. No teve outro remdio seno voltar para casa do rabi, onde tentaria, por intermdio dele, saber da sorte da sua filha. Se, at agora, temia pela sua honra, agora temia pela sua vida. Entretanto, o Gro-Mestre convocava o preceptor de Templestowe sua presena.
Captulo XXXVI
No mentira, todos vivem fingindo. Assim, pede o pobre, o corteso Ganha terras e ttulos iludindo, O clero, a troa, com hesitao, Admitem precisar para seu servio. Todos o empregam e quem se contenta Em ser o que nunca lucra com isso. desse modo que o mundo se aguenta. - Pea antiga Albert de Malvoisin, presidente, ou, na terminologia da ordem, preceptor de Templestowe, era irmo de Philip de Malvoisin, referido j, de passagem, neste romance, e muito prximo de Brian de Bois-Guilbert. Entre os elementos, dissolutos e sem princpios, pertencentes Ordem do Templo, Albert de Templestowe sobressaa entre os demais. Diferenciava-se, todavia, do audacioso Bois-Guilbert por saber como cobrir os seus vcios e ambio com um manto de hipocrisia, assumindo exteriormente um fanatismo que dentro de si no sentia. Se o Gro-Mestre no tivesse aparecido sem ser esperado, nada teria visto em Templestowe que se pudesse parecer com qualquer relaxamento de disciplina. Ainda que surpreso e apanhado em falta, Albert de Malvoisin escutou com tanto respeito e aparente contrio a descompostura do seu superior e apressou- se tanto a corrigir os pormenores sob censura, conseguindo to bem e to rapidamente incutir um todo de asctica devoo quela casa de pouca-vergonha e prazer, que Lucas de Beaumanoir foi obrigado a sentir a sua opinio acerca da moralidade do preceptor afastar-se daquela que, nos primeiros contactos, formara. Todas estas impresses favorveis da parte do Gro- Mestre tinham, mesmo assim, ficado fortemente abaladas ao saber que Albert acolhera dentro dos muros daquele local de religio uma cativa judia, que temia fosse uma amante dum dos irmos da Ordem. Assim, quando recebeu Albert, f-lo com grande severidade.
- Est dentro desta manso, dedicada ao propsito da sacra Ordem do Templo - disse o Gro-Mestre -, uma judia para aqui trazida, com vossa conivncia, por um irmo nosso, Sr. Preceptor. Albert de Malvoisin sentiu-se dominado pela confuso, j que a infeliz Rebeca fora confinada num lugar recndito e secreto do edifcio, tendo sido tomadas todas as precaues para que ningum soubesse da sua presena ali. Nos olhos de Beaumanoir percebeu estarem as coisas muitssimo graves, tanto para si como para Bois-Guilbert, se no conseguisse mudar-lhes o rumo que pareciam querer tomar. - Por que vos conservais mudos - insistiu o Gro-Mestre. Ser-me- permitido responder-vos? - disse o Preceptor em tom humlimo e aproveitando a pergunta para ordenar as ideias. - Falai. Tendes permisso - afirmou o Gro-Mestre -, falai e dizei-me se ignorais o captulo da nossa regra recomendando De commilitonibus Templiu in sancta civitate, qui cum miserrimis
mulieribus versantur, propter oblectationem carnis (1) ? - Certamente, reverendo pai - responde o Preceptor. - No alcancei o posto que ocupo na ignorncia das regras mais importantes. - Como acontece, ento, torno a perguntar-te, o teres autorizado a um irmo o trazer para aqui uma amante e sobretudo uma amante que uma feiticeira judia, que, certamente, poluir este santo stio? - Uma feiticeira judia! - exclamou Albert de Malvoisin. Que os anjos nos protejam! - Sim, irmo, uma feiticeira judia - repetiu o Gro- Mestre. Foi o que eu disse. Atreves-te a negar que essa Rebeca, filha de Isaac de Iorque, o usurrio, e aluna daquela porca bruxa Mriam, no est (custa a pens-lo e mais a diz-lo) aqui na Preceptoria? - O vosso saber, reverendo pai - murmurou o Preceptor -, clarificou o meu entendimento. Muito cismara porque teria sido que um cavaleiro to bom como Brian de Bois- Guilbert poderia estar to embriagado com os encantos daquela mulher, que recebi nesta casa com o fim exclusivo de travar as recentes intimidades que poderiam levar perda dum dos nossos irmos. - J aconteceu algo entre eles que corresponda ao romper de votos da parte dele? - O qu? Sob este telhado? - persignou-se o Preceptor. - Que Santa Madalena e as dez mil virgens nos acudam. No! Se pequei recebendo-a, fi-lo convencido de que, assim, atalharia a atraco que um irmo nosso aparentava sentir por essa judia, *1.. A frase que cita refere-se proibio de contactos com mulheres levianas.
to intensa e pouco natural que quase a atribu a a loucura, a ser curada mais pelo caminho do carinho do que pelo do castigo. Mas, uma vez que a vossa sabedoria me esclarece ser a rapariga uma feiticeira, entendo agora todos aqueles amores sem jeito. - Claro, claro! - bradou Beaumanoir. - Vede, Irmo Conrade, o perigo que existe em no se estar atento s redes de Satans? Olhamos para uma mulher apenas para dar prazer vista com aquilo a que os homens chamam beleza, e o Imundo Inimigo logo nos toma em seu poder, completando, por meio de talisms e encantos, uma obra que fora, por descuido ou loucura, iniciada. possvel que, no caso presente, o Irmo Bois-Guilbert nos merea mais piedade do que vontade de o castigar severamente. Mais o apoio do bculo do que a vergastada da vara. Pode ser que os nossos conselhos e oraes o tragam, de novo, para o seio da sua irmandade. - Tremenda perda seria - comentou Conrade de Mont- Fitchet - se a Ordem ficasse sem uma das suas melhores lanas, na altura em que a santa comunidade tanto precisa de todos os braos. Bois-Guilbert, com o seu prprio punho, j abateu trezentos sarracenos. - O sangue desses malditos ces - disse o Gro-Mestre - oferenda digna para os santos e anjos de que eles, blasfemando, riem. com essa ajuda quebraremos os encantos, sob a alada dos quais o nosso irmo caiu. Rebentaremos os laos
de Dalila, como Sanso rompeu as cordas com que os Filisteus o amarraram, e exterminaremos os infiis aos magotes. Quanto a essa meiga que enfeitiou o nosso irmo templrio, ter de morrer. - Mas as leis de Inglaterra? - lembrou o Preceptor, que, embora encantado com o curso que o ressentimento do Gro-Mestre tomara, afastando-se de Bois-Guilbert, temia que as coisas fossem longe de mais. - As leis de Inglaterra - interrompeu Beaumanoir - permitem e prescrevem que cada juiz execute a justia dentro da sua jurisdio. O menor baro pode julgar e condenar ou prender qualquer bruxa, caada dentro dos seus domnios. Ser tal poder negado ao gro-mestre do Templo, dentro da preceptoria da sua Ordem? No. Portanto, julgaremos e condenaremos. A feiticeira ser afastada deste mundo, levando consigo a sua maldade. Que o salo do castelo seja preparado para o julgamento. Albert de Malvoisin cortejou e partiu - no para dar instrues para a preparao do salo, mas sim para avisar Bois-Guilbert de qual o fim que a questo iria ter. Levou-lhe tempo a encontr-lo, espumante de indignao, pois fora, uma vez mais, repelido pela bela judia. - A imponderada! A ingrata! - berrava. - Despreza aquele que, entre sangue e labaredas, a salvou, em risco da sua prpria vida! Pelo Cu, Malvoisin. Esperei at que o telhado
e as traves tombassem minha volta! Um cento de flechas me procuraram, batendo-me na armadura como saraiva contra uma vidraa, e, mesmo assim, apenas empreguei o escudo para a defender. Isto fiz eu por ela. E agora aquela teimosa censura-me porque a no deixei perecer e recusa-me a mnima prova de gratido ou, mesmo, uma remota esperana de alguma vez o vir a fazer. O Demo, senhor da sua raa, concentra-se em cheio dentro dela! - O Demo apoderou-se - disse o Preceptor - de ambos. Quantas vezes te recomendei cautela quanto continncia, que te no era possvel? Quantas vezes te disse haver inmeras donzelas crists tua disposio que veriam como pecado o recusarem ao bravo cavaleiro le don d'amoureux merci? para que foste dedicar-te a uma voluntariosa e teimosa judia? Pela santa missa! Estou a ver que o velho Lucas de Beaumanoir tem razo quando afirma que ela te enfeitiou. - Lucas de Beaumanoir! - exclamou Bois-Guilbert. - So essas as tuas precaues, Malvoisin? Deixaste que o caduco soubesse, que Rebeca est dentro da Preceptoria? - Que poderia eu fazer? - perguntou o Preceptor. - Nada esqueci para que o nosso segredo ficasse bem escondido, mas o caso que algum o desvendou. Se foi o Diabo, no sei. No entanto, conduzi o assunto o melhor que pude. Ests safo se renunciares a Rebeca. Ele lastima-te, vendo-te como vtima de bruxedos. Ela uma feiticeira e como tal pagar. - De modo algum! - berrou Bois-Guilbert. - Pelos Cus, tem de ser assim - contradisse-o Malvoisin. Nem tu nem ningum a pode salvar. Lucas Beaumanoir decidiu j que a morte duma pecadora judia representar um paliativo para as indulgncias amorosas dos Cavaleiros Templrios. Sabes que ele tem poder e fora para levar avante esse pio propsito.
- Ser que as geraes vindouras acreditaro que tanto fanatismo possa ter existido? - interrogou Bois-Guilbert, percorrendo a sala de ponta a ponta. - Aquilo em que vo acreditar, no sei - comentou Malvoisin calmamente -, mas sei que, hoje em dia, noventa e nove por cento do clero e do povo dar o seu men sentena do Gro-Mestre. - J sei! - disse Bois-Guilbert. - Albert, tu s meu amigo. Tens de ajud-la a fugir. Lev-la-emos para qualquer ponto seguro e ignoto. - Nem que quisesse o poderia fazer - replicou o Preceptor. A casa est cheia de gente do Gro-Mestre e de outros que lhe so afectos. E, para ser franco, amigo, no estou disposto a acompanhar-te neste caso, nem que isso me franqueasse os portais do Cu. No tenciono ser despromovido ou mesmo perder a minha preceptoria por um naco de carne judaica. E tu, se me quiseres escutar, deixa esse pssaro e procura outros.
Pondera, Bois- Guilbert. O teu posto actual e as tuas futuras honrarias dependem da tua posio dentro da Ordem. Se persistes nessa paixo por Rebeca, estars a dar a Beaumanoir um motivo para te expulsar que ele no deixar escapar. cioso do basto que as suas mos trmulas empunham e sabe que s um dos que mais anseiam tomar-lho. Arruinar-te-, desde que lhe ofereas um pretexto fcil, como este da gentil judia. Deixa-o levar a dele para a frente porque mais no te possvel. Quando detiveres o ceptro, ters tantas filhas de Jud quantas quiseres, para queimar ou amar. - Malvoisin, tu s de pedra... - Amigo - cortou o Preceptor, no o deixando pronunciar o insulto que certamente se seguiria e que evitou acrescentando: - um amigo de cabea fria, logo um bom conselheiro. No podes, repito, salvar Rebeca. com ela somente poders vir a perecer. Vai at junto do Gro- Mestre, jorra-te a seus ps e diz-lhe... - A seus ps, nunca! Pelo contrrio, dir-lhe-ei nas barbas... - Est certo - interrompeu-o Malvoisin -, diz- lhe nas barbas que o teu amor pela judia cativa no conhece limites. Quanto mais revelares a tua paixo, mais depressa mandas a linda feiticeira para o seu fim, e tu, culpado de crime confesso contrrio aos teus juramentos, escusars de esperar apoio dos teus irmos e ters de trocar os teus sonhos de poder e ambio por qualquer lugarzito onde possas servir como mercenrio nas guerras entre as Flandres e Borgonha. - Dizes bem - fez Brian de Bois-Guilbert aps uns segundos de reflexo. - No posso dar ao velho caquctico qualquer vantagem. Rebeca, que, pela minha mo, iria longe e no o quis, que siga o seu destino, a no ser que... - No modifiques a sbia e necessria resoluo que tomaste recomendou Malvoisin -, as mulheres no passam de joguetes para as nossas horas de lazer. Ambio o que mais importa nesta vida. Que morram mil graciosas ninharias como esta judia para que no se interrompa a trilha maravilhosa que tomaste. para j, separemo-nos, pois no convm sermos vistos a conversar. Tenho de arranjar o salo para o julgamento, - O qu? - perguntou Bois-Guilbert. - para j? - . Os julgamentos fazem-se depressa, quando o juiz j sabe o
que vai sentenciar. - Rebecca - murmurou Bois-Guilbert j s -, vais custar-me muito caro. Porque te no abandonarei ao teu fado como este hipcrita me recomenda. Um esforo mais farei para te salvar. Mas cuidado com a ingratido! Porque, se de novo for repelido, a minha vingana equiparar-se- minha paixo. A vida e a honra de Bois-Guilbert no se pem em jogo quando os prmios so repulsas e desprezo somente.
Ainda o Preceptor quase nem terminara de dar as ordens precisas, quando Mont-Fitchet se lhe juntou. Este estava ao corrente da inteno do Gro-Mestre de julgar a judia como feiticeira. - Deve tratar-se dum engano - disse o Preceptor. - Temos muitas mdicas judias e no as classificamos como feiticeiras, embora faam curas fantsticas. - O Gro-Mestre pensa doutro modo - lembrou Mont- Fitchet -, e v, Albert, feiticeira ou no, prefervel que essa miservel donzela perea do que a Ordem venha a perder Bois-Guilbert ou que se estabelea uma ciso dentro dela. Conheces-lhe o posto elevado e a sua fama como guerreiro. Sabes como o consideram muitos dos nossos irmos. Todavia, nada disso lhe servir se o Gro- Mestre o considerar no uma vtima, mas, antes, um cmplice da judia. Nem que dentro de si estivessem as almas das doze tribos, ser prefervel que seja ela a sofrer sozinha do que acompanhada por Bois-Guilbert na sua destruio. - Tenho estado a convenc-lo a abandon-la - disse Malvoisin. - Haver ainda motivos para se condenar Rebeca por feitiaria? O Gro-Mestre no mudar de ideias perante to dbil evidncia? - Tem de ser tornada mais forte. Mais impugnativa. Entendes-me? - Entendo - anuiu o Preceptor -, e no terei pejo em faz-lo para o bem da Ordem. S que h pouco tempo para se fazerem encaixar as coisas. - Malvoisin, tens de o fazer - insistiu Conrade -, tanto para o bem da ordem como para o teu prprio. Templestowe uma preceptoria pobre. A de Maison Dieu vale o dobro. Faz que esta questo ande para a frente e sers o preceptor de Maison Dieu. Conheces a minha influncia junto do velho chefe. Prometo-te Maison Dieu no frtil Kent. Que dizes? - Entre os que vieram com Bois-Guilbert h dois tipos que conheo bem. Eram criados do meu irmo Philip de Malvoisin que se passaram para o servio de Front-de- Boeuf. Pode ser que saibam algo dos bruxedos desta mulher. - Procura-os imediatamente e, escuta, se uma moeda ou outra lhes aguar a memria, no hesites... - Juraro pela prpria me que bruxa por um vintm. - Vai, pois. Ao meio-dia comea o juzo. Nunca vi o velho to azafamado desde que mandou matar Hamet Alfagi, um converso que tornou para o islamismo. Batia pausadamente as doze o sino do castelo quando Rebeca sentiu passos nas escadas que conduziam ao seu local de priso. O rudo anunciava a aproximao de vrias pessoas, o que, na ocasio, a animou, pois temia mais as solitrias
visitas do fero e ardente Bois-Guilbert do que qualquer outro mal a cair-lhe em cima. A porta da cmara abriu-se e Conrade e o preceptor Malvoisin encontravam-se acompanhados de quatro guardas vestidos de negro e carregando alabardas.
- Filha da raa maldita - bradou o Preceptor. - Levantai-vos e segui-nos. - Para onde e para qu? - perguntou ela. - Donzela - respondeu Conrade -, no te compete interrogar, mas to-somente obedecer. No entanto, ficars sabendo que sers levada perante o tribunal do gro-mestre da nossa santa ordem para responderes pelas tuas ofensas. - O Deus de Abrao seja louvado! - proferiu Rebeca, unindo as mos com devoo. - Um juiz, mesmo que adversrio do meu povo, um protector. Ser com toda a boa vontade que vos seguirei. Deixai-me apenas pr o meu vu cabea. Desceram as escadas em passo lento e cadenciado, percorreram uma longa galeria, at que, passando por uma porta dobradia, penetraram no grande salo que o Gro-Mestre escolhera como sala de audincias. A parte inferior daquela ampla diviso estava plena de escudeiros e soldados, que abriram, no sem dificuldade, alas para que Rebeca, acompanhada pelo Preceptor e por Mont-Fitchet e seguida pela guarda de alabardeiros, chegasse ao assento que lhe fora designado. Quando atravessava a multido, de braos cruzados e a cabea cada sobre o peito, um bilhete foi-lhe posto numa mo. Quase inconscientemente, segurou-o sem o consultar. A certeza da existncia dum amigo entre aquela tremenda assembleia encorajou-a a olhar em seu torno e ver perante quem fora chamada. Observou, portanto, a cena que procuraremos descrever no prximo captulo.
Captulo XXXVII Dura era a lei fazendo que o eleitor Lamentasse do corao dos homens a dor. Dura era a lei que, dura, impunha, mandante, Se apagasse qualquer sorriso cativante. Mas mais duro o usar de poderes seus Um tirano a agir como se fosse Deus. - The Middle Ages O tribunal constitudo para o julgamento da inocente e infeliz Rebeca ocupava um estrado no extremo do grande salo. Tratava-se duma plataforma semelhante quela que j descrevemos como um lugar de honra destinado aos habitantes e hspedes mais distintos nas antigas manses. Num assento elevado, precisamente em frente da r, estava o gro-mestre do Templo em todo o esplendor do seu amplo e ondeante manto branco, segurando o bordo simblico da sua ordem. A seus ps fora colocada uma mesa, que ocupavam dois escrives, capeles da Ordem, cuja obrigao era a de registarem os acontecimentos do dia. As vestes negras, as
calvas e a aparncia recolhida destes dois religiosos contrastavam fortemente com a aparncia marcial dos cavaleiros presentes, que ou eram residentes da Preceptoria, ou tinham vindo como acompanhantes do Gro-Mestre. Os preceptores, pois encontravam-se ali quatro, sentavam-se um pouco mais em baixo e atrs do superior. Os cavaleiros sentavam-se, por sua vez, tambm mais a baixo e atrs desses preceptores. Atrs deles, ainda no estrado, viam-se os escudeiros da Ordem, com as suas roupas de qualidade inferior. Cercava-se toda esta assembleia dum aspecto da maior seriedade. Nos rostos dos cavaleiros percebiam-se traos de ousadia militar, a par de porte solene prprio dos homens da igreja, que, perante o Gro-Mestre, todos faziam por evidenciar. A restante e mais baixa poro do salo enchera-se de guardas, com as suas partasanas, e outros, cuja curiosidade chamara para verem, simultaneamente, um gro-mestre e uma feiticeira hebraica.
Desta gente de classe baixa, a maioria estava, porm, e duma forma ou doutra, ligada Ordem e, de conformidade, vestia-se de preto. A entrada no fora vedada aos camponeses das cercanias, pois Beaumanoir fizera questo em mostrar e tornar pblico um to edificante acto de justia. Os seus grandes olhos azuis, apreciando o ajuntamento, pareciam exaltados por dignidade consciente e auto-atribudo mrito. Os trabalhos iniciaram-se cantando-se um salmo, a que juntou a sua voz doce e ainda no alterada pela idade. A solene frase Venite exultemus Domi-no, tantas vezes entoada pelos Templrios antes de se atirarem ao inimigo, fora vista por Lucas como introduo apropriada para o prximo triunfo sobre as foras da escurido. As profundas e longas notas, saindo das gargantas duma centena de homens acostumados ao canto coral, ecoaram na abbada do salo e ribombaram, agradvel e solenemente, entre os pilares como guas poderosas rugindo. Quando o silncio se fez, o Gro-Mestre olhou em sua volta, notando que o lugar dum dos preceptores estava vago. Bois-Guilbert, que o ocupara, havia-o deixado e sentava-se agora na ponta dum dos bancos destinados aos cavaleiros do Templo, com uma mo cobrindo o rosto e a outra segurando a espada embainhada, com a qual descrevia traos no soalho de roble. - Infeliz! - soltou o Gro-Mestre, lanando-lhe um olhar de compaixo. - Vs, Conrade, como este santo ofcio o perturba, a isto que uma mulher leviana, auxiliada pelo Prncipe das Trevas, pode levar um valente e merecedor cavaleiro! Repara que no nos encara. Tambm no a olha, a ela, e quem sabe quais sero os impulsos do seu atormentador, levando-o a desenhar traos cabalsticos no cho. Qui ameacem a nossa vida e segurana. Cuspimos-lhes, desafiando o sujo adversrio. Semper Leo percutiatur! Tudo isto fora dito em voz baixa ao seu confidente MontFitchet. Agora, elevando o tom, dirigiu-se a todos: - Homens reverendos e valorosos, cavaleiros, preceptores, companheiros desta sacra ordem, meus irmos, meus filhos! - E tambm vs, bem-nascidos e pios escudeiros que aspirais ao emblema da Santa Cruz! E vs ainda, irmos cristos de todas
as categorias! Sabei todos que no foi por mero prazer de exerccio de poder que se convocou esta congregao. Por pouco merecedora que a nossa pessoa seja, foi-lhe concedido, com a entrega deste basto, o poder julgar tudo que respeite nossa santa ordem. O sagrado So Bernardo, na regra da nossa profisso religioso-militar, fez isto constar do quinquagsimo nono captulo(1), que apenas por vontade do Mestre, os irmos assim se juntariam em conselho, deixando-nos *1.. De novo se referem ao leitor as regras da Pobre irmandade Militar do Templo, includas nas obras de So Bernardo. (N. do T.)
liberdade a ns e aos mestres de maior valor, que nos precederam neste ofcio, para decidirmos tanto quanto ocasio como hora e local nos quais um captulo, incluindo toda a Ordem, ou parte dela, deveria ser convocado. -nos tambm, em todos esses captulos, permitido, escutando os conselhos dos nossos irmos, actuar como melhor entendamos. Mas, quando o lobo esfaimado cai sobre o rebanho e tenta arrastar uma das ovelhas, o pastor tem o dever de reunir os seus colegas para que, com arcos e fundas, domine o invasor, de acordo com a recomendao de que o leo deve ser sempre abatido. Chamamos portanto nossa presena uma judia, Rebeca de seu nome, filha de Isaac de Iorque, uma mulher infame, dada a sortilgios e bruxarias, que envenenou o sangue e alterou o siso, no dum rural, mas sim de algum devotado ao servio do Templo... no dum cavaleiro, mas sim dum preceptor da nossa ordem, o mais honrado entre todos. Conhecemos bem o nosso irmo Brian de Bois-Guilbert, reconhecido por todos que me ouvem como um vero e zeloso campeo da Cruz, cujos braos muitos feitos de valor tem praticado, sobretudo na Terra Santa, onde o solo est a ser lavado com o sangue dos infiis que o poluam. A sagacidade e a prudncia do nosso irmo tambm no so inferiores sua bravura e disciplina, pelo que muitos cavaleiros h, no Oriente e no Ocidente, que apontam j o nome de Bois- Guilbert como sucessor deste basto que carrego quando o Cu me quiser aliviar do pesado cargo que ele constitui. Se nos tivessem contado que tal homem, to honrado e ilustre, subitamente esquecera o seu carcter, os seus votos, os seus irmos e os seus fins para se ligar a uma judia, na libidinosa companhia de quem se arrastava por lugares solitrios, que preferia defend-la a ela em vez de a si prprio e que, por fim, cego e aturdido pela sua loucura, a trouxera para dentro das paredes duma das nossas preceptorias, que poderamos ns afirmar seno que o nobre cavaleiro estava possesso por um demnio ou que fora enredado em qualquer encantamento? Se doutra forma pensssemos, esqueceramos estirpe, valor, reputao ou qualquer outro atributo terreno e aplicar-lhe-amos castigo apropriado para expulsar a coisa ruim, de conformidade com o texto rezando Auferte malum ex vobis. So vrios e horrendos os actos de transgresso s regras da nossa bendita ordem nesta lamentvel histria: 1 Deslocou-se sua vontade contra o que diz o captulo trigsimo terceiro, Quod nullus juxta propriam voluntatem incedat, 2 Comunicou com pessoa excomungada, captulo
quinquagsimo stimo, Ut fratres non participent cum excommunicatis, incorrendo em parte em Anathema Maranatha, 3 Conversou com mulheres desconhecidas, contrariamente ao captulo Ut fratres non conversantur cum extraneis mulieribus, 4 No evitou, e tememos mesmo que tenha solicitado, beijos a uma mulher, contrariando a ltima regra da nossa ordem,
Ut fugiantur oscula, segundo a qual os nossos soldados podem cair em armadilhas. Por todas estas mltiplas e horripilantes faltas, Brian de Bois-Guilbert deveria ser expulso da nossa congregao, mesmo sendo a sua pessoa, o seu brao e olho direitos. Fez uma pausa. Um cochichar percorreu a assembleia, e os mais novos, que se haviam sorrido do De osculis fugiendis, mostraram-se srios e, suspensos, aguardaram o que o Gro-Mestre diria a seguir. - Tal e dessa mesma severidade seria o castigo, na verdade, devido a um cavaleiro templrio que, voluntariamente, ofendeu as regras da Ordem em pontos to delicados. Mas se, por encantos e artes, Satans dele se apossou s porque, talvez, pousou a vista numa donzela bonita, temos ento de o lamentar e impor-lhe somente uma pena destinada a purific-lo da sua iniquidade, descarregando toda a nossa indignao sobre o instrumento maldito e provocador da sua queda. Que avancem, portanto, todos os que testemunharam estes lamentveis acontecimentos para que os avaliemos, apreciemos e decidamos se a nossa justia se satisfar com o castigo desta mulher descrente ou se, com o corao sangrante, teremos de proceder contra o nosso irmo. Foram chamadas diversas testemunhas, que comprovaram os riscos a que Bois-Guilbert se expusera para salvar Rebeca do castelo em chamas e o desprezo que revelara ento pela prpria vida na ocasio. Os depoentes pormenorizaram estes factos com o exagero prprio das imaginaes curtas quando excitadas por algo de notvel, sendo essa tendncia natural agravada pela satisfao que as suas informaes pareciam transmitir ao eminente personagem a quem se destinavam. Deste modo, os perigos que Bois-Guilbert ultrapassara, grandes j de si, foram empolados para portentosos nas suas narrativas. A devoo com que o cavaleiro defendera Rebeca foi ampliada para l no s dos limites da circunspeco como para alm de qualquer excesso de zelo cavalheiresco. A deferncia com que lhe escutava as palavras, por vezes severas e repreensivas, foi pintada com tamanho excesso a ponto de, num homem de temperamento altivo, se revelar sobrenatural. O preceptor de Templestowe foi seguidamente convidado a descrever a forma como Bois-Guilbert e a judia haviam chegado Preceptoria. O testemunho de Malvoisin foi prestado com habilidoso cuidado. Aparentemente tendente a poupar os sentimentos de Bois-Guilbert, inclua, aqui e ali, insinuaes de onde se inferiria agir ele sob estado de alienao temporria, tais eram as mostras de paixo que evidenciava pela donzela que trazia. com penitentes suspiros, o Preceptor reconheceu, contrito, ter deixado entrar Rebeca e o seu apaixonado na Preceptoria. - A minha defesa - Concluiu - j foi feita por confisso ao meu reverendo pai e gro-mestre. Ele sabe que no havia mal
com total prazer acatarei a penitncia que me impuser. - Falaste bem, Irmo Albert - disse Beaumanoir. - Os teus motivos eram bons, uma vez que julgaste certo parar um irmo que errava por precipitao louca. A tua conduta, porm, to incorrecta como a de algum que, tentando segurar um cavalo em fuga, agarrando-o pelo estribo e no pelas rdeas, acaba por se machucar sem cumprir o seu propsito. Treze padres-nossos de manh e nove noite manda o nosso fundador que se rezem diariamente. No teu caso, o nmero ser dobrado. Trs vezes por semana permitido aos Templrios comerem carne, mas tu ters de a evitar durante os sete dias da semana, durante seis semanas. Esta ser a tua penitncia. com um ar da maior submisso hipcrita, o preceptor de Templestowe inclinou-se quase at tocar o cho ante o seu superior e regressou ao seu lugar. - No seria aconselhvel, irmo - perguntou o Gro- Mestre aprofundarmos um pouco mais sobre a vida e relaes desta mulher, nomeadamente para apurarmos se ser dada prtica de bruxedos e encantamentos, sobretudo porque o que temos vindo a escutar nos aponta nesse sentido de o nosso pecaminoso irmo ter agido sob a aco de quaisquer tentaes ou enganos infernais? Herman de Goodalric e era o quarto preceptor presente, sendo os outros trs Conrade, Malvoisin e Bois-Guilbert. Herman era um guerreiro idoso com o rosto traado por cicatrizes causadas pelo alfange muulmano, altamente considerado entre os irmos. Ergueu-se, inclinou-se ante o Gro-Mestre, que logo lhe autorizou que falasse. - Anseio saber, reverendo pai, o que o nosso bravo Irmo Brian de Bois-Guilbert tem a dizer destas espantosas acusaes e tambm como v ele o seu infeliz contacto com esta moa. - Brian de Bois-Guilbert - disse o Gro-Mestre -, ouviste a pergunta do nosso Irmo Goodalric e. Ordeno-te que lhe respondas. Bois-Guilbert voltou-se para o Gro-Mestre, mas deixou- se ficar em silncio. - Est possesso por um demnio mudo! Esconjuro-te com este smbolo da nossa sacra ordem! Brian de Bois-Guilbert fez um esforo para ocultar o desprezo e a indignao que sentia e cuja exteriorizao, sabia-o, de nada lhe valeriam. - Brian de Bois-Guilbert - replicou finalmente - no responde, meu reverendo pai, a to vagas e desvairadas acusaes. Se a sua honra est maculada, defend-la- com a espada, que tantas vezes ps ao servio da cristandade. - Perdoamos-te, Irmo Brian - declarou o Gro-Mestre -,
embora o enaltecimento dos teus feitos guerreiros perante ns seja uma glorificao do que fizeste, logo uma atitude vinda do Maldito, que nos tenta a exaltarmo- nos na nossa prpria adorao. Desculpamos-te porque no s tu quem fala, mas sim
por ordens daquele que, com o auxlio celeste, venceremos e expulsaremos desta assembleia. - Um brilho de desdm perpassou pelos olhos de Bois-Guilbert, que, todavia, nada disse. - E agora prosseguiu o Gro-Mestre -, j que a questo do nosso Irmo Goodalric e foi to incompletamente respondida, sigamos com o nosso inqurito e, com a ajuda do nosso patrono, havemos de chegar ao mago deste mistrio de abominao. Que aqueles que conheam mais pormenores acerca da vida e relaes desta judia aqui se apresentem. Houve um certo rebulio no fundo do salo, que, explicaram ao Gro-Mestre, se devia ao facto de se encontrar entre aquela gente um homem que, em tempos, estivera entrevado e que a prisioneira, graas ao seu blsamo, curara, pondo-o a andar. O desgraado campons, saxo de nascena, foi arrastado tribuna, aterrado perspectiva de consequncias penais em virtude de se ter sarado da paralisia por intermdio duma donzela judia. No estava completamente bom, pois ainda se apoiava em muletas. As suas declaraes foram prestadas de bastante m vontade e em grande choradeira. Reconheceu, contudo, que dois anos atrs, quando morava em Iorque, fora atacado por doena dolorosa, na altura em que, como marceneiro, trabalhava em casa de Isaac, o abastado judeu. Ficou sem poder sair da cama at que os remdios receitados por Rebeca, especialmente um blsamo de odor agradvel e termogneo, lhe haviam devolvido parcialmente a aco aos membros. Ademais, acrescentou, ela dera-lhe uma panela desse mesmo unguento e algumas moedas para a viagem at casa do pai, em Templestowe. - Que Vossa Graa Reverendssima me permita dizer - completou o homem -, mas nunca me pareceu que a donzela me quisesse fazer mal, embora, por sua m sorte, se tratasse duma judia. Quando aplicava o remdio, eu rezava sempre padre-nossos e credos e, mesmo assim, a mezinha no perdia a fora. - Cala-te, escravo! - bradou o Gro-Mestre. - Vai-te! S os brutos como tu que mexem e remexem com essas mezinhas diablicas e oferecem o seu trabalho a descrentes. Aviso-te que o Demo pode trazer maleitas s com o objectivo de as curar, conseguindo assim algum mrito. Tens ainda esse unguento de que falaste? O campons rebuscou entre as roupas, com mos a tremer, e apresentou uma caixinha com alguns caracteres hebraicos na tampa, o que para a audincia constitua evidente prova de ter sido o Diabo o boticrio. Beaumanoir benzeu-se e pegou na caixa. Conhecedor das lnguas do Levante, leu com facilidade o que l dizia: "O leo da tribo de Jud venceu."
- Estranho o poder de Satans - observou -, que consegue transformar as Escrituras em blasfmias, misturando venenos com os alimentos precisos!... Est a algum mdico capaz de nos dizer de que ser feita esta misteriosa pomada? Surgiram dois esculpios. Um, frade, outro, barbeiro. Ambos confessaram desconhecer do que aquilo seria feito. Apenas lhes sabia a mirra e a cnfora, que consideravam como ervas levantinas. com a habitual inveja profissional pelos seus colegas obtentores de bons sucessos, insinuaram ainda que, uma
vez que o remdio lhes era desconhecido, devia, necessariamente, fazer parte de qualquer farmacopeia ilegal e misteriosa, j que eles prprios, que no eram mgicos, conheciam todos os ramos da sua arte e seu exerccio de acordo com a boa f crist. Terminada esta investigao mdica, o saxo pediu delicadamente para lhe ser devolvido o remdio, mas o Gro-Mestre, carregando o sobrolho, interpelou-o: - Como te chamas? - Higg, filho de Snell. - Ento, Higg, filho de Snell - disse o Gro-Mestre -, eu te informo ser melhor tornares a ficar acamado do que aceitares drogas de descrentes, mesmo que elas te ponham a andar. prefervel arrancar os tesouros aos infiis fora do que aceitar-lhes as ddivas ou servi- los por dinheiro. Vai e faz como te mando. - Pobre de mim! - respondeu o campons. - Porque, desculpai-me, a lio j veio tarde de mais, pois no passo dum aleijado. vou transmiti-la, porm, aos meus dois irmos, que servem o rico rabino Nathan ben Samuel, lembrando-lhes o que me haveis dito de mais valer roub-lo do que fielmente o servir. - Ponham-me esse vilo na rua! - ordenou Beaumanoir, que no contava com aquela interpretao da sua mxima terica. Higg, filho de Snell, juntou-se turba, mas, interessado no destino da sua benfeitora, deixou-se ficar a aguardar o resultado do julgamento, mesmo sob o risco de desagradar ao severo juiz, cujo olhar somente era bastante para lhe gelar o corao. Nesta altura, o Gro-Mestre mandou que Rebeca retirasse o vu. Falando pela primeira vez, ela replicou, pacientemente e com toda a dignidade, que no era costume das raparigas da sua raa desvelarem-se em reunies de estranhos. O tom doce da sua voz e a delicadeza da resposta encheram a assistncia de simpatia e d. Beaumanoir, que eliminara em si todo e qualquer sentimento que pudesse interferir com a sua suposta noo do dever, reiterou o comando. Guardas preparavam-se para o fazer cumprir, quando ela se ps em frente do Gro-Mestre, dizendo: - Por amor a vossas filhas, no o faais! - Lembrando-se, continuou: - Ah! Vs no tendes filhas! Mas, pelo amor de vossa me, pelo amor de vossas irms e por amor decncia feminina, no permitais que me tratem assim na vossa presena.
Fica mal a uma rapariga que rapazes lhe tirem quaisquer peas de roupa. Obedecer-vos-ei, todavia - isto numa voz revelando tanta resignao que at o prprio Beaumanoir algo sentiu. Sois um ancio entre os vossos e s vossas ordens exporei o rosto da infeliz moa que sou. Afastou o vu e fitou-os com um misto de acanhamento e grande dignidade. A sua espantosa beleza originou um murmrio de espanto, tendo os cavaleiros mais novos trocado olhares onde se dizia ser compreensvel estar Brian mais preso sua beldade real do que s suas feitiarias imaginrias. Higg, filho de Snell, foi to afectado pela radiosa aparncia da sua benfeitora que gritou para os guardas porta: - Deixai-me passar! Deixai-me passar! Se olhar outra vez para ela, morrerei, pois tambm vou ser culpado do seu assassinato. - Sossega, bom homem - observou Rebeca -, no me prejudicaste
contando a verdade e no me podes valer com queixas e lamentaes. Sossega, rogo-te, e vai em paz. Os guardas quase o puseram fora por compaixo, pois temiam que a sua clamorosa dor lhe trouxesse e lhes trouxesse qualquer castigo. Ele, contudo, prometeu no mais abrir a boca e eles acederam. Os dois homens de armas que Albert de Malvoisin industriara foram, no momento, chamados. Ambos eram patifes calejados e inflexveis, mas, mesmo assim, vista da prisioneira e da sua extrema beleza, sentiram-se de incio afectados. Um olhar significativo do preceptor de Templestowe f-los, contudo, voltar ao normal, deixando- os recitar um colorrio to preciso que um juiz menos parcial logo deles suspeitaria, pois os pormenores eram ou inteiramente fictcios ou triviais e naturais, mas pintados de suspeitas, com exageros que lhe haviam sido ensinados, ou comentrios sinistros da sua prpria lavra. Os dados dos seus testemunhos teriam, modernamente, sido divididos em dois grupos: no importantes, uns, fisicamente impossveis, outros. Todos, naquele obscuro tempo, foram aceites como provas de culpabilidade., Os primeiros constavam de afirmaes de terem ouvido Rebeca falar para consigo em lngua estranha, que as canes que cantava para si eram estranhamente doces aos ouvidos e alma, que falava consigo mesma, parecendo esperar respostas vindas de cima, que as suas roupas eram esquisitas e diferentes das das mulheres de boa reputao, que usava anis com marcas cabalsticas e que bordava marcas desconhecidas nas roupas. Todos estes banais e naturais pormenores foram gravemente registados como provas ou, pelo menos, como indicaes muito suspeitas de Rebeca poder contactar com poderes mgicos. Um outro, no menos equvoco, testemunho foi posto assembleia por um soldado, tendo-o aquela engolido, no obstante a sua evidente incredibilidade.
De acordo com as suas palavras, havia-a visto a tratar dum homem ferido que, com eles, fora para Torquilstone. Fizera, afirmou, determinados gestos sobre as feridas, repetindo uma ladainha que, graas a Deus, ele no entendera, enquanto retirava a cabea dum virote duma das feridas e logo o sangue estancou, a ferida cicatrizou e o moribundo, em coisa de um quarto de hora, j estava nas muralhas a ajudar a testemunha a manejar uma manganela ou mquina de atirar pedras. Esta lria baseava-se, talvez, no facto de Rebeca ter atendido a Ivanho, quando no castelo de Torquilstone. Mais difcil se tornou o descrer da veracidade das afirmaes deste depoente, quando ele, para reforar fisicamente a sua evidncia, tirou do bolso a ponta do virote em questo, que miraculosamente havia sido extrado do corpo do ferido. A coisa, que pesava uma boa ona, serviu de confirmao do relato, por muito estranho que parecesse. O seu camarada, duma ameia prxima, assistira cena entre Rebeca e Bois-Guilbert quando ela ameaara deitar-se da janela abaixo. para no ficar atrs do companheiro, declarou ter visto Rebeca empoleirar-se no parapeito do torreo e a tomar a forma dum cisne alvo de neve que, por trs vezes, voou em torno do castelo de Torquilstone para finalmente pousar no
torreo, assumindo de novo a figura de mulher. Menos de metade disto serviria para condenar irremediavelmente qualquer velha pobre e feia, mesmo que no fosse judia. para Rebeca, apesar de toda a sua beleza e mocidade, era fatal. O Gro-Mestre, colhidas as opinies dos seus, perguntou em tom imponente a Rebeca se ela teria alguma coisa a dizer contra a condenao que ele se preparava para pronunciar. - Invocar a vossa piedade - respondeu ela trmula de emoo -, no estivera eu certa de inutilmente me aviltar. Declarar que tratar-se de feridos e mortos, sejam eles de que religio forem, nunca poderia ser do desagrado do fundador das nossas duas crenas, igualmente de pouco valeria. Argumentar que muito do que estes homens disseram (que o Cu lhe perdoe) contra mim impossvel, pouco me ajudaria, uma vez que lhes aceitais a veracidade. Nenhuma vantagem me adviria se explicasse que as diferenas da minha roupa, linguagem e modos provm do meu povo, melhor diria, da minha ptria, se ptria tivssemos. Tambm no tentarei salvar-me custa do meu atormentador, que, alm, est escutando todas estas conjecturas e invenes que o transformam de opressor em vtima... Deus julgar tanto a mim como a ele! Mas, sofra eu dez mortes iguais que me destinais se vez alguma tivesse prestado ateno ao assdio a que ele me submeteu. Eu, uma prisioneira indefesa, desamparada. Ele, porm, segue a mesma f que vs, pelo que uma s e ligeira frase sua pesa mais do que todos os veementes protestos duma judia.
No transferirei para a sua pessoa a incriminao que contra mim levantais, mas a ele directamente... Sim, Brian de Bois-Guilbert, apelo para ti para que digas se as acusaes que escutaste so verdadeiras! Diz se no sero seno autnticos e mortais monstros de calnia! Todos se calaram, olhando para Brian de Bois-Guilbert. Este continuou em silncio. - Fala! - bradou ela. - Se s homem, se s cristo, fala! Mando-to, pelo hbito que envergas, pelo nome que herdaste, pelo cavalheirismo de que te ufanas, pela honra da tua me, pelo tmulo e restos do teu pai. Mando-te que respondas! Era verdadeiro o que ouviste? - Responde-lhe, irmo - aconselhou o Gro-Mestre -, se o Maligmo, que de ti se apossou, te der foras. Na realidade, Bois-Guilbert parecia perturbado por sentimentos opostos lutando e que lhe tornavam convulsas as feies. Finalmente, com voz constrangida, replicou, fitando Rebeca: - O pergaminho! O pergaminho! - Senhor! - exclamou Beaumanoir. - Isto comprova tudo. O enfeitiado apenas consegue falar do fatal pergaminho, onde est escrito o encantamento a que se deve o seu silncio. Rebeca, no entanto, dera outra interpretao s palavras arrancadas a Bois-Guilbert e, percorrendo com os olhos a nota que lhe haviam entregue e que seguira segurando, leu o que l dizia em caracteres rabes: "Pede um campeo." o sussurro que se seguira incompreensvel resposta de Bois-Guilbert deu tempo a Rebeca para examinar e de pronto destruir a estranha missiva. Quando tudo se acalmou, o Gro-Mestre disse: - Rebeca, nada consegues deste desafortunado cavaleiro, que,
todos vem, o Demnio possui. Que mais tens a dizer? - Para mim existe apenas uma possibilidade de salvao respondeu Rebeca -, mesmo de acordo com as vossas duras leis. A minha vida tem sido miservel... pelo menos nos ltimos tempos. No desprezarei, mesmo assim, a divina ddiva, j que Deus me d ainda um ensejo para a defender. Mantenho a minha declarao de inocncia e declaro falsas as acusaes que me so feitas. Reclamo o privilgio de ser julgada pelas armas, onde o meu campeo me representar. - E quem, Rebeca - interrogou o Gro-Mestre -, alar a sua lana em defesa duma bruxa? Quem ser o campeo duma judia? - Deus dar-mo- - replicou Rebeca, - impossvel que, nesta Inglaterra, feliz, hospitaleira, generosa e livre, onde sempre tantos esto prontos a oferecer as suas vidas em defesa da honra, no haja algum disposto a combater pela justia. Reitero o meu pedido de julgamento pelas armas. Eis o meu penhor! Descalou uma luva bordada e, com digna simplicidade, perante a admirao geral, lanou-a para a frente do Gro-Mestre.
Captulo XXXVIII Eis a o meu repto, Comprovando-te ao mximo O meu marcial penhor. - Ricardo II At Lucas de Beaumanoir se impressionou com a aparncia e conduta de Rebeca. No era de si cruel ou sequer severo, contudo, sendo, naturalmente, frio e de elevado mas errado sentido do dever, a alma fora-se-lhe encardindo pela vida asctica que levava, pelo poder supremo que usufrua e pela suposta necessidade de subjugar a descrena e erradicar a heresia, que considerava como incumbncia pessoal. A sua fisionomia perdeu o costumeiro ar de severidade ao fitar a perfeita criatura na sua frente, s, sem amigos, e, assim mesmo, defendendo-se com toda a galhardia e coragem. Persignou-se duas vezes, como que a duvidar donde lhe viria aquele no desejado amolecer de alma, que, usualmente e em questes do gnero, era mais dura do que o ao da sua espada. Finalmente, falou: - Donzela. Se a piedade que me invade deriva de alguma das tuas artes, enorme a tua culpa. Julgo, porm, dever-se ao lado bom da natureza das coisas, que lamenta que to belo vaso possa estar pleno de perdio. Arrepende-te, filha... confessa a tua feitiaria... deixa a f errada e abraa este santo emblema, e tudo ficar bem para ti doravante. Em qualquer irmandade de regra severa ters tempo para, pela orao e pelo sacrifcio, conseguir um arrependimento de que te no arrependers. Faz isso e vive... Que fez at agora por ti a lei de Moiss para que por ela morras? - a lei dos meus antepassados - respondeu Rebeca. - Foi-nos dada, entre troves e ventos, dentro duma nuvem de fogo, na montanha do Sinai. Nisto, se sois cristos, acreditais tambm, e quem ma ensinou nunca me disse que tenha sido revogada.
- Que o nosso captulo venha - ordenou Beaumanoir - e diga a esta teimosa infiel... - Perdoai-me a interrupo - disse Rebeca brandamente. No passo duma rapariga sem bases para discutir a minha religio,
mas capaz de por ela morrer. Deixai-me, antes, rogar-vos resposta ao meu pedido dum campeo. - Dai-me a luva dela - mandou Beaumanoir. - Trata-se realmente - continuou examinando o delicado tecido e os longos dedos da pea - dum ligeiro e frgil penhor para propsitos to mortais! V, Rebeca! Esta luva est para as nossas pesadas guantes como a tua causa est para o Templo, pois a nossa ordem que ousaste desafiar. - Acrescentai a minha inocncia balana - sugeriu Rebeca - e a luva de seda pesar mais do que a manopla. - Persistes, portanto, em recusar a confessar a tua culpa e a manter o atrevido desafio que lanaste? - Persisto, nobre senhor. - Que desse modo seja, em nome do Cu - aquiesceu o Gro-Mestre -, e que Deus nos aponte o caminho da justia. - men - entoaram os preceptores, cujas vozes foram repetidas pela assembleia. - Irmos - dirigiu-se-lhes Beaumanoir -, estais cientes de que poderia ter recusado a esta mulher o benefcio dum julgamento por armas... Porm, embora judia, ela tambm uma estrangeira indefesa. Deus nos defenda, pois, de ouvi-la invocar uma das mais brandas leis e ns recusarmos-lha. Ademais, somos to cavaleiros e soldados como religiosos, pelo que nos ficaria mal fugir luta que nos proposta. O caso pode resumir-se assim: Rebeca, filha de Isaac de Iorque, por vrias e suspeitosas circunstncias, acusada de feitiaria sobre a pessoa dum nobre cavaleiro da nossa santa ordem, reclama um combate para provar a sua inocncia. A quem, reverendos irmos, dever o penhor do combate ser entregue, nomeando-o nosso campeo? - A Brian de Bois-Guilbert, a quem o assunto pessoalmente respeita - sugeriu o preceptor de Goodalric e - e que, melhor do que ns, conhece a verdade. - Mas se o nosso irmo - contestou o Gro-Mestre ,- se encontra sob o efeito dum encantamento? Falo por precauo, apenas, pois a melhor brao, dentro da nossa ordem, no poderia eu confiar "a ponderosa questo". - Reverendo pai - interps o preceptor de Goodalric e -, nenhum encantamento pode afectar um campeo que voluntariamente se prope lutar num julgamento divino. - Tens toda a razo - reconheceu o Gro-Mestre. - Albert de Malvoisin, entrega o penhor a Brian de Bois- Guilbert... Encarregamos-te - prosseguiu voltado para Bois-Guilbert - do combate, sem duvidarmos de que lutars como um homem, conseguindo a vitria para o lado justo... Quanto a ti, Rebeca, damos-te trs dias, a contar de hoje, para que encontres o teu campeo.
estrangeira, de outra f que no a vossa, arranjar quem queira batalhar, arriscando vida e honra, contra um cavaleiro de renome mais do que conhecido. - No o podemos ampliar - disse o Gro-Mestre. - A luta ter de ser presenciada por ns e vrios assuntos exigem que partamos dentro de quatro dias. - Seja feita a vontade de Deus - assentiu Rebeca. - Deponho a minha f nas Suas mos. para Ele, um instante tanto como uma era inteira. - Falaste correctamente, donzela - assentiu o Gro- Mestre mas ns sabemos onde conseguir algum que se arme como um anjo luminoso. Resta decidir quanto ao local da peleja, que, se calhar, ser tambm o da execuo... Onde est o preceptor desta casa? Albert de Malvoisin, ainda com a luva de Rebeca na mo, falava muito a srio e baixo com Bois-Guilbert. - Que ? - perguntou o Gro-Mestre. - No aceita o penhor? Aceita, j aceitou, reverendo pai - disse Malvoisin, escondendo a luva sob o manto. - Quanto ao local, entendo que a lia de So Jorge, pertencente a esta preceptoria, onde nos treinamos, estaria bem. - De acordo - anuiu o Gro-Mestre. - Rebeca, nessa mesma lia apresentars o teu campeo. Se o no fizeres, ou se o teu campeo for, por deciso divina, derrotado, tu morrers a morte que reservamos para as bruxas. Esta a nossa sentena. Que seja registada e o seu registo lido em voz alta para que ningum duvide ou alegue, depois, ignor-la. Um dos capeles, exercendo as funes de escriturrio, imediatamente transcreveu a ordem para um enorme volume, onde se anotavam as actas dos Templrios, quando se reuniam em ocasies importantes como esta. Mal terminou de escrever, o outro leu alto a sentena do Gro-Mestre, que, depois de traduzida do francs da Normandia, assim corria: Rebeca, uma judia, filha de Isaac de Iorque, tendo sido acusada de feitiaria, seduo e outras prticas condenveis exercidas sobre a pessoa dum cavaleiro da sacra Ordem do Templo de Sio, negou-o, acrescentando que o testemunho nesse dia apresentado contra ela fora falso, perverso e desleal. Assim, por essoine(1) fsico, no lhe sendo permitido combater por sua conta, ofereceu em seu lugar um campeo para a defender nesta questo, dever que cumprir lealmente e de forma cavalheiresca com as armas que forem convenientes, *1.. Essoine quer dizer desculpa, correspondendo, neste caso, ao privilgio de o apelante poder recorrer a outrem em virtude do seu sexo.
sendo tudo custa material da vida dela prpria. Por estes motivos, apresentou um penhor que foi entregue ao senhor e cavaleiro Brian de Bois-Guilbert, cavaleiro da Ordem do Templo de Sio, que aceitou entrar nesta pugna em defesa da sua ordem e de si mesmo, como vtima das prticas da apelante. Perante isto, o reverentssimo e mui poderoso Sr. Lucas, marqus de Beaumanoir, aceitou o citado desafio e o citado essoine, marcando o combate para dentro de trs dias, sendo o local o
cercado conhecido como lia de So Jorge, perto da Preceptoria de Templestowe. O Gro-Mestre ordenou apelante que apresentasse ali o seu campeo, sob pena de execuo como pessoa condenada por bruxaria ou seduo. A apelante ter de aparecer tambm, sob pena de ser presa e vista como covarde em caso de no comparncia. O nobre senhor e reverendssimo padre atrs mencionado mostrou vontade de o mencionado combate dever ser travado na sua presena e de conformidade com tudo que recomendvel e conveniente em tais casos. Que Deus apoie a causa mais justa! - men - entoou o Gro-Mestre. Todos o imitaram, excepto Rebeca, que, olhando para o cu, de mos postas, se deixou ficar esttica por cerca de um minuto. Lembrou depois ao Gro-Mestre, com humildade, que teria de lhe ser permitido contactar com os amigos para que soubessem da sua condio e lhe procurassem, se possvel, um campeo que, em seu nome, lutasse. - justo e legal - assentiu o Gro-Mestre. - Escolhe algum em quem possas confiar e dar-lhe-emos livre facilidade de comunicao contigo no quarto, onde ficars encerrada. - Estar aqui algum - indagou Rebeca - que, por amor ou a uma causa boa ou a uma valiosa recompensa, queira ajudar uma pessoa em aflio? Tudo ficou calado, pois ningum entendia ser seguro, na presena do Gro-Mestre, mostrar-se interessado na prisioneira, no fossem julg-lo partidrio do judasmo. Nem a recompensa, quanto mais a generosidade, conseguiram ultrapassar esse temor. Rebeca ficou por instantes em estado de indescritvel perturbao, para logo exclamar em ingls: - Poder ser assim? Terei eu, em solo ingls, de ver cerceada a magra hiptese de salvao que me resta, por falta duma atitude de caridade que, at ao mais empedernido dos criminosos, se no recusa? Por fim, Higg, filho de Snell, disse: - No passo dum aleijado, mas o pouco que me mexo a ela o devo... Levarei o teu recado - acrescentou, falando para Rebeca -, to bem quanto um entrevado o pode, e quisera eu as minhas pernas voassem, que mais no fora para mitigar o mal causado pela minha lngua. Cus! Quando elogiei a tua caridade, mal imaginava que estava a pr-te em risco.
- Deus - respondeu Rebeca - tudo decide. - Pode modificar o cativeiro de Jud utilizando os mais fracos instrumentos. para levar uma mensagem, tanto serve o caracol (2) como o falco, Procura Isaac de Iorque... aqui tens o bastante para pagares homens e cavalos... e entregai-lhe esta missiva. No sei se ser por inspirao divina, mas sinto no mago que no sofrerei a morte que me ameaa e que um campeo vir auxiliar-me. bom fortnio! A vida e a morte de ti dependem. O campons pegou no pergaminho, que continha meia dzia de linhas em hebreu. Muitos o teriam dissuadido de tocar em to suspeito documento, mas Higg queria mesmo ajudar a sua benfeitora. Ela salvara-lhe o corpo, pelo que no temia que lhe prejudicasse a alma. - Levo - informou ele -, o bom capul (3) e pr-me-ei em Iorque
to rpido quanto homem e besta conseguem. Por sorte, no teve de ir muito longe, pois a quatrocentos metros do porto da preceptoria encontrou-se com dois homens a cavalo, que, pelas roupas e grandes barretes amarelos, viu serem judeus. Aproximou-se e reconheceu num deles o seu antigo patro, Isaac de Iorque, sendo o outro o rabi Ben Samuel. Ambos se abeiravam da preceptoria, tanto quanto ousavam, notcia de o Gro- Mestre ter convocado um captulo para o julgamento duma feiticeira. - Meu irmo Ben Samuel - dizia Isaac -, a minha alma inquieta-se e eu conheo-lhe o porqu. Imputao de necromancia serve muitas vezes de capa para males a fazerem-se nossa gente. - Sossega, irmo - recomendava-lhe o fsico. - Podes lidar com os nazarenos como o demnio que preside s riquezas e, consequentemente, comprar-lhes a imunidade. Nas brbaras cabeas destes ateus corre que at o selo de Salomo conseguia fazer gnios obedecerem-lhe... Mas quem aquele infeliz que ali est agarrado s muletas e parecendo querer falar comigo?... Amigo - disse para Higg, filho de Snell -, no te negarei as faculdades que as minhas artes me consentem, mas no dou nem um aspre a quem pede na estrada. Afasta-te, portanto! Tens as pernas paralisadas? Usa os braos para ganhares a vida. Na verdade, ainda que no sirvas para trabalhos que exijam ligeireza, ou para seres um bom pastor, ou para a guerra, ou para servires um amo apressado, outras ocupaes h... Que se passa, irmo? - perguntou, *2.. Existe aqui um jogo de palavras intraduzvel. Snell, o nome do pai de Higg, , sem dvida, derivado do anglosaxnico snegl, o caracol. (N. do T.) 3.. Capul, isto , cavalo. Em sentido mais limitado, cavalo de trabalho.
interrompendo a sua arenga e olhando para Isaac, que acabava de dar uma vista de olhos ao pergaminho que Higg lhe entregara e, com um fundo gemido, tombara da mula abaixo como morto, parecendo por algum tempo ter perdido completamente os sentidos. - o rabino, alarmado, desmontou e com toda a celeridade lhe aplicou os remdios que via como mais indicados para o momento, tendo mesmo chegado a pegar em ventosas para o sangrar, quando o objecto dos seus cuidados subitamente voltou a si, arrancando o barrete e principiando a cobrir de p a cabea grisalha. O fsico, de princpio, inclinou-se a atribuir to repentina e violenta emoo a um ataque de loucura, mas Isaac cedo lhe demonstrou no ser assim. - Filha do meu sofrer! - gritou. - Melhor te chamasses Benoni e no Rebeca! Porque me no leva a morte a mim, mesmo que, na minha amargura, amaldioe a Deus? - Irmo - surpreendeu-se o rabino -, tu, um patriarca de Israel, dizes frases como essa? A tua filha vive ainda? - Vive - confirmou Isaac -, mas como Daniel no covil dos lees. prisioneira de lacaios de Belial, que sobre ela todas as crueldades exercero, no poupando a sua juventude e beleza. Oh! Ela, que era a verde coroa de palmas nas minhas
cs, vai mirrar como o fruto de Jonas! Filha do meu amor! Filha da minha velhice! Oh, Rebeca, filha de Raquel! As sombras da escurido avassalam-te. - Rel o pergaminho - props o rabino. - Talvez exista ainda alguma maneira de a libertarmos. - L tu, irmo - respondeu Isaac.. - Os meus olhos esto rasos de gua. O fsico leu, mas na lngua dele, as palavras seguintes: para Isaac, filho de Adoni am, a que os gentios denominam Isaac de Iorque. Que a paz e multiplicao da Promessa contigo estejam! Meu pai: fui condenada a morrer por razes que a minha alma no aceita. Por feitiaria. Meu pai: se conseguir encontrar um homem valente para lutar pela minha causa, de espada e lana na mo, de acordo com os costumes dos nazarenos, na lia de Templestowe, de hoje a trs dias, provvel que o Deus dos nossos antepassados lhe d foras para defender uma inocente que ningum ajuda! Caso isto se no consiga, que as virgens da nossa raa se cubram de luto por mim como se duma enjeitada se tratasse, dum veado ferido pelo caador, da flor decepada pela foice do ceifeiro. Olha, pois, em teu redor e v se auxlio haver. Um guerreiro nazareno teraria, qui, armas em meu favor, Wilfred, filho de Cedric, que os gentios denominam de Ivanho. Porm, talvez ainda no aguente o peso da prpria armadura.
Ele d-se com a gente de valor entre os seus e, como fui sua companheira de cativeiro, talvez arranje algum que lute a minha luta. Dizei-lhe, dizei-lhe mesmo, dizei a Wilfred, filho de Cedric, que, quer Rebeca viva, ou Rebeca morra, s-lo- na total inocncia da culpa que lhe atribuem. E se de Deus for o desejo a filha retirar-te, no continues, ancio, nesta terra de sangue e crueza. Vai para Crdova, onde teu irmo vive em paz, sombra do trono de Boabdil, o Sarraceno, pois as crueldades dos mouros sobre a raa de Jacob so muito menores do que as dos nazarenos de Inglaterra. Isaac escutara com relativa calma o que Ben Samuel lhe lera, No fim retomou as atitudes e exclamaes de d levantino, rasgando as roupas, cobrindo-se de poeira e bradando: - Minha filha! Minha filha! Carne da minha carne! Sangue do meu sangue! - Dominai-vos - recomendou-lhe o rabino. - Essas manifestaes de nada vos serviro. Levantai-vos e tratai de procurar esse Wilfred, filho de Cedric. Pode acontecer que te ajude com a sua fora ou com a sua influncia e conselho. Esse jovem um favorito de Ricardo, que os nazarenos apelidam de Corao-de-Leo, acerca de cujo regresso rumores correm por todos os lados e constantemente. Talvez suceda ele conseguir uma carta do rei, com o seu sinete, ordenando a estes sanguinrios, que, desonrando-o, tomaram o nome do Templo, que suspendam a barbaridade que tencionam levar a cabo. - Vou por ele - aquiesceu Isaac. - Ele um rapaz muito bom, a quem o exlio de Jud pena causa. Se ele no puder envergar a armadura, far que outro cristo lute em defesa do Sio oprimido. - No bem assim - corrigiu o rabino. - Falas como quem no conhece o gentio. com ouro compra-se-lhe a bravura, como com o
ouro compras a tua segurana. Enche-te de nimo e parte em busca de Wilfred de Ivanho. Tambm me mexerei, pois seria pecado abandonar-te nesta calamidade. Voarei para a cidade de Iorque, onde esto inmeros guerreiros e homens fortes, entre os quais, de certeza, algum acharei disposto a combater por tua filha. O ouro o seu deus e por riquezas empenham vidas e terras... Preenches-me uma promissria, meu irmo, para que os contrate em teu nome? - Certamente, irmo - anuiu Isaac. - E que o Cu seja abenoado por me ter dado quem me confortasse na minha dor. Seja como for, no aceites as propostas deles primeira, pois est na maneira de ser dessa gente pedirem libras pelo que acabam por aceitar em onas. De qualquer modo, procede como entenderes, j que estou perturbado e o ouro sem a minha filha para nada me serviria.
- Boa viagem - desejou-lhe o fsico. - Que tudo te corra a contento. Abraaram-se e partiram por estradas diferentes. O aleijado ficou a v-los seguir: - Ces judeus! - bradou. - Tratarem um membro da minha guilda como se fosse um escravo dum turco ou dum judeu circuncidado! Bem poderiam ter-me deixado ficar uma ou duas moedas. No era obrigado a trazer-lhes os seus pergaminhos profanos, sob o risco de ficar embruxado, como muitas pessoas me avisaram. Que quero eu saber do nico de ouro que a rapariga me deu se, na prxima Pscoa, tenho de me haver, no confessionrio, com um padre que me vai extorquir duas vezes o seu valor para me dar a absolvio e se vou ganhar a alcunha de correio de judeus para a vida inteira? Acredito ter ficado enfeitiado pela moa, quando estava perto dela... Mas sempre assim vi ser. Quando dela se abeiravam, fossem eles judeus ou gentios, nenhum ficava parado, caso ela desejasse qualquer recado. Pensando bem, dava at a minha oficina e as minhas ferramentas para a salvar.
Captulo XXXIX Impiedosa e fria de alma donzela, Meu peito to orgulhoso como ela. - Seward Apagava-se o dia do julgamento, se julgamento quilo se podia chamar, quando algum bateu porta do quarto onde Rebeca estava presa. Em nada isso a perturbou, uma vez que rezava as suas oraes do fim da tarde, que a sua religio recomendava e que terminavam com um hino que, traduzido, seria algo assim: Quando Israel por Deus amado deixou as terras de escravido, o Deus de seus pais seguiu guiando-os entre fumo e fogo. De dia, atravs de pases atnitos, como uma coluna deslizava, de
noite, as vermelhas areias da Arbia reflectiam-lhe o fero brilhar. Ergueu-se um hino de graas, a que responderam trombetas e pandeiretas. As filhas de Sido acrescentaram-lhes as suas vozes, juntamente com as dos sacerdotes e guerreiros. Nenhum portento perturba agora os nossos inimigos e Israel erra, s e esquecido. Os nossos patriarcas tanto quiseram os Teus caminhos e Tu deixaste-os seguir aqueles que queriam. Mas, sempre presente, embora no momento invisvel, quando brilharem melhores dias, que a Tua lembrana seja um nebuloso vu sobre o fulgor decepcionante e, quando a escurido e a tempestade carem sobre Jud, s paciente e parco no castigo, apenas uma luz viva e brilhante. As nossas armas ficaram nas guas de babilnia, brinquedos para os tiranos, desprezo dos gentios. No h mais incenso nos nossos altares, esto mudas as pandeiretas, as trompas e as trombetas. Tu disseste que o sangue da cabra e a carne do carneiro eu no deveria apreciar. De corao contrito e pensamento humilde o sacrifcio aceitarei. Terminado o hino e retornado o silncio, de novo algum bateu porta levemente.
- Entrai - disse ela -, se sois amigo. Se sois inimigo, tambm vos no posso impedi-lo. - Serei - respondeu Brian de Bois-Guilbert - amigo ou inimigo, conforme o resultado desta conversa.. Alarmada vista daquele homem a cuja concupiscncia e paixo atribua toda a sua infelicidade, Rebeca recuou,, com cautela atenta, mas no em pavor, para o fundo do apartamento, afastando-se o mais possvel, mas disposta a lutar. Enfrentou-o, no em desafio, mas com a deciso de quem no quer provocar um assalto, mas disposto a repeli-lo com unhas e dentes. - No tendes razo para me temer, Rebeca - comeou o Templrio -, ou, se preferirdes, no tendes, agora, razo para me temer. - No vos temo, Sr. Cavaleiro - respondeu Rebeca, com um inalar que contrariava a bravura do seu tom. - grande a minha f, pelo que vos no temo. - No existe motivo - acrescentou Bois-Guilbert -, as minhas anteriores desvairadas tentativas j no so mais de temer. Ao alcance da tua voz encontram-se guardas em quem no mando. Compete-lhes conduzirem-te para a morte, Rebeca, mas, mesmo assim, no permitiro que ningum te insulte. Nem mesmo eu, se, no meu delrio, porque de delrio se trata, a isso me conduzisse. - Valha-me o Cu! - exclamou Rebeca. - A morte o menor dos meus temores, mesmo neste covil de perfdia! - - concordou o Templrio. - A noo de morte facilmente aceite pelos corajosos, quando o seu caminho surge fcil e subitamente. Um enterrar de lana, uma estocada, nada significam para mim. para ti, um salto no vazio, uma punhalada, nada seriam comparados com o que se v como desgraas. Escuta. Talvez os meus sentimentos de honra sejam no menos fantsticos do que os teus, mas ambos sabemos morrer por eles.
- Infeliz - disse a judia -, ests decidido a arriscar a vida por princpios cuja solidez, a frio, sabes no existir. Separares-te dum tesouro pelo que nada ? Comigo no nada disso. A tua deciso pode oscilar ao louco sopro das opinies humanas. A minha firme como uma rocha. - Calai-vos, menina - mandou o Templrio. - As palavras de pouco vos serviro. Ests condenada no a uma morte rpida e fcil, como a misria desejaria e o desespero bem acolhe, mas sim a perecer sob lenta, dolorosa e prolongada tortura, como devida quilo que o fanatismo destes homens denomina de crime. - E a quem, se esse o meu fado, a quem o devo? - interrogou Rebeca. - Certamente quele que por brutal egosmo me arrastou at aqui e no momento, por razes s dele conhecidas, tenta empolar o fim a que me levou. - No creias - disse Bois-Guilbert - que te expus dessa maneira.
Bem quereria defender-te deste perigo com o meu peito, como o fiz contra as frechas que, doutro modo, te haveriam trespassado. - Tivera o teu propsito sido o da defesa duma inocente ripostou Rebeca -, que eu o teria agradecido. como , pretendes apenas ganhar mrito, como tanta vez sucede, e levas-me a afirmar que a vida para mim nada vale para o preo que por ela tu queres exigir. - Cala as tuas censuras, Rebeca - pediu o Templrio. - Sofro dores tambm e no aceito que, repreendendo-me, mas acresas. - Que queres, ento, cavaleiro? - quis a judia saber. - Diz depressa. Se tens algo mais do que assistir misria que causaste, diz-mo. E, nesse caso, pedir-te-ei que me deixes depois s. O passo entre o agora e a eternidade curto, mas terrvel, e tenho pouco tempo para me preparar. - Entendo, Rebeca, que persistes em me atribuir as tuas desgraas, quando tanto gostaria de delas te aliviar. - Sr. Cavaleiro - disse Rebeca -, no pretendo ralhar-vos... mas est mais do que visto que a minha morte se dever vossa desenfreada paixo. - Errais, errais - apressou-se o Templrio a afirmar imputando-me o que no podia prever ou evitar. Adivinhasse eu a inesperada chegada daquele velho baboso, l em cima, a quem uns laivos de valor frentico e os elogios de loucos pela sua abnegao estpida elevaram a posio acima dos seus mritos, acima do bom senso, acima de mim e dos centenares de membros da minha ordem, que pensam livres de doidos e fantsticos preconceitos que lhes servem de base s opinies... - Seja de que maneira for - cortou Rebecca -, haveis-me feito sentar perante um juiz, inocente como sabeis eu estar, haveis contribudo para a minha condenao e, se entendi direito, estais disposto a terar armas em confirmao da minha culpa e como garante do meu castigo. - Tem pacincia, rapariga - bradou o Templrio. - Nenhuma raa sabe to bem como a tua aproveitar-se dos ventos contrrios. Maldita a hora em que tais artes foram ensinadas a Israel disse Rebeca. - A adversidade verga as almas como o fogo dobra o ferro resistente, e aqueles que j no so mais senhores de si tm de se dobrar perante estrangeiros junto de quem vivem como naturalizados em terra alheia. praga, Sr. Cavaleiro, sobre ns tombada, qui merecidamente, pelas nossas faltas e
pelas dos nossos pais. Mas vs, vs, que enalteceis a liberdade como um direito nato, quo mais profunda no ser a vossa desgraa quando vos baixais para diminuir os preconceitos de outros, fazendo-o contra as vossas convices?
- Amargas so as tuas frases, Rebeca - respondeu BoisGuilbert, que no momento se passeava no quarto com toda a impacincia. - No vim, todavia, aqui para trocar acusaes contigo. Fica sabendo que Bois-Guilbert no cede a homem nenhum, se bem que as circunstncias o possam, s vezes, fazer alterar os planos. A sua vontade como a torrente que a rocha pode desviar um pouco, mas que sempre acaba por encontrar o caminho para o mar. O pergaminho aconselhando-te a pedires um campeo de quem julgas que veio, seno de Bois- Guilbert, para quem tu tanto significas? - Um curto descanso antes da morte de pouco me valer. Foi somente isso o que pudeste fazer por algum sobre cujas costas atraste a tragdia e a quem conduziste para a beira da campa? - No, menina - replicou Bois-Guilbert -, no foi s isso que resolvi fazer. No fora a interferncia danada do velho e do maluco de Goodalric e, que, como templrio, finge pensar e julgar de acordo com as regras gerais da humanidade, o lugar de campeo no teria sido dado a um preceptor, mas a um companheiro da Ordem. Nesse caso, eu, e era essa a minha ideia, teria, ao soar da trombeta, surgido na lia como teu defensor, disfarado, certo, de cavaleiro andante em busca de aventuras para a sua espada e escudo. Nesse caso, mesmo que Beaumanoir tivesse eleito dois ou trs dos irmos aqui congregados, a todos teria derrubado com uma lana somente. Dessa forma seria a tua inocncia comprovada e da tua gratido aguardaria eu a recompensa. - Tudo isso, Sr. Cavaleiro - disse Rebeca -, no passa de v jactncia. Uma fanfarronice do que fareis se no houvsseis achado mais conveniente doutro modo proceder. Haveis recebido a minha luva, e o meu campeo, se uma abandonada como eu o conseguir, cruzar lanas convosco. Mesmo assim, ainda ousais armar-vos em meu amigo e protector! - Teu amigo e protector - repetiu o Templrio com toda a seriedade -, me mostrarei, mas, nota, sob que riscos, ou, mais certamente, sob que desonra. No me acuses, depois, quando te apresentar as minhas condies para oferecer o que at agora de mais caro tenho na defesa duma donzela judaica. - Fala de forma que te entenda. - Pois bem - concedeu Bois-Guilbert -, falarei to francamente como o mais arrependido dos penitentes ante seu pai espiritual, de joelhos, num confessionrio. Rebeca, se eu me no apresentar na lia, perderei honra e categoria. Perco o ar que respiro, a estima em que sou tido pelos meus irmos e as esperanas que tenho de alcanar o elevado posto de autoridade, ora nas mos do visionrio e caquctico Beaumanoir, mas que nas minhas tomaria rumos bem diferentes. Esse ser o meu fim se no comparecer para contra ti pugnar. Maldito seja Goodalric e, que me apanhou na arola! E duplamente maldito seja Albert de Malvoisin, que me evitou a resoluo que tomara de atirar com a luva cara do supersticioso e antiquado louco que escutou uma to absurda acusao contra uma pessoa to inteligente e to bela como tu!
- De que serve agora a lisonja e o palavreado bombstico? perguntou Rebeca. - Escolheste j entre o fazer uma inocente perder a vida e o perigar da tua situao e esperanas terrenas. De que vale falar nisso? A escolha est feita. - No, Rebeca - disse o cavaleiro em tom mais suave e aproximando-se dela -, a minha escolha no est feita. Repara... a ti que a deciso compete. Se aparecer na lia, terei de defender a minha reputao e, se o fizer, arranjes ou no campeo, ests condenada morte, amarrada a um poste, com feixes em chamas tua volta, porque no existe cavaleiro que possa, nas armas, competir comigo, salvo Ricardo Corao de Leo e o seu favorito Ivanho. Ivanho, como sabes, no est em condies de combater e Ricardo est numa priso no estrangeiro. Portanto, se eu me apresentar, tu morres, mesmo que os teus encantos possam ter atrado qualquer jovem estouvado que queira defender-te. - Para que serve, diz-me, repetir o mesmo tanta vez? - Para muito - replicou ele. - para que possas apreciar o teu destino sob todos os ngulos. - Abri ento a janela - sugeriu a judia -, para que possa ver o outro lado. - Se eu aparecer - continuou o cavaleiro -, na lia fatal, morrers a lenta e cruel morte, em tortura igual que dizem estar destinada aos pecadores no Alm. Se o no fizer, tornar-me-ei num cavaleiro degradado e desonrado, acusado de feitiaria e conluio com infiis. O nome ilustre que to alto levantei tornar-se- num silvo, num insulto. Perderei a fama, a honra e possibilidades de grandeza que poucos imperadores jamais podero ambicionar. Sacrificarei uma ingente ambio, destruirei projectos to altos como algumas montanhas que os pagos dizem nunca ter sido escaladas e, no obstante atirou-se-lhe, no instante, aos ps -, tudo isto sacrificarei. Perderei a fama, esquecerei o poder j quase ao meu alcance desde que digas apenas que aceitars Bois-Guilbert como teu amado. - Ponde de parte essas loucuras, Sr. Cavaleiro - respondeu Rebeca -, e apressai-vos para junto do Regente, da Rainha-Me, do prncipe Joo, para que no consintam a deciso do Gro-Mestre. Assim me protegereis sem sacrifcios da vossa parte ou exigncias de retribuies minhas. - No trato com essa gente - disse ele agarrando-se cauda do vestido. - contigo e contigo somente que isto discuto. Que mais podes querer? Mesmo que eu fosse um demnio, a morte pior e o meu rival nico a morte. - No pondero nesses males - disse Rebeca, temendo provocar o cavaleiro,- mas, ao mesmo tempo, no desejando aturar-lhe a paixo ou, sequer, fingi-lo. - Procedei como um homem,
como um cristo! Se, na realidade, a vossa f recomenda a piedade, de que tanto falais, mas to pouco praticais, salvai-me desta morte atroz sem exigir pagamentos, que transformariam a vossa magnanimidade numa mera permuta. - No, donzela! - exclamou o arrogante Templrio, pondo- se, num salto, de p. - No te sobrepors minha pessoa. Se renunciar ao meu actual renome e ambio do porvir, ser por ti e juntos teremos de fugir. Ouve-me, Rebeca - novamente
adoou de tom -, a Inglaterra, a Europa, no so o mundo. H stios, onde poderemos viver, bastante grandes mesmo para ambies como a minha. Iremos para a Palestina, onde est Conrade, o marqus de Montserrat, meu amigo e, como eu, livre de peias que embotam o livre raciocinar. Aliar-nos-amos a Saladino e no teramos de aguentar a troa de fanticos que desdenhamos. Abriremos novos rumos para a grandeza prosseguiu, tornando a medir com largos passos o compartimento. - A Europa escutar as passadas daquele que expulsou do seu seio. Nem os milhes que, nas cruzadas, ela manda para o aougue podero defender a Palestina, nem os alfanges das dezenas de sarracenos conseguem abrir caminho naquela terra pela qual as naes lutam, to bem como a poltica e a fora, minhas e daqueles meus irmos que, apesar do velho, a mim se juntaro para o bem e para o mal. Sers rainha, Rebeca. No monte Carmelo te sentarei num trono que, com o meu valor, para ti ganharei, guardando para mim um ceptro, em lugar do ambicionado bculo. - Um sonho - comentou Rebeca -, um sonho vazio da noite. Mas, mesmo que se tratasse duma realidade, no me afectaria. Basta de ouvir falar do poder que desejas. Nunca o compartilharei, at porque no subestimo a ptria e a religio a ponto de querer negociar os seus laos com quem o quer fazer, esquecendo os votos da ordem a que, sob juramento, se ligou, apenas para dar asas aos seus desejos por uma mulher doutra raa. No ponhais preos minha liberdade, Sr. Cavaleiro. No me vendais. generosidade. Protegei os oprimidos por caridade e no Por egosmo. Ide junto do trono de Inglaterra. Ricardo escutar o meu apelo contra estes homens cruis. - Jamais, Rebeca - ops-se o Templrio com ferocidade. - Se renunciar minha ordem, ser por ti e por mais ningum. Se me recusares o amor, restar-me- a ambio. Nem tudo perderei. Baixar-me a Ricardo? Pedir um favor a um orgulhoso daqueles? Nunca! Seria como colocar-lhe a ordem aos ps. Posso abandonar a Ordem do Templo, mas humilh-la ou tra-la, no! - Que Deus me socorra - pediu Rebeca -, porque dos homens nada posso esperar.
- precisamente assim - concordou o Templrio. - Altiva como s, encontraste em mim quem te faa frente. Se entrar na lia com a lana em riste, nada impedir de a usar com todo o vigor. Pensa igualmente no teu destino... a morte que se d aos nefastos mais nefastos entre os criminosos... desfazeres-te numa pira... separares-te nos elementos estranhos que to misteriosamente nos formam. Nem uma relquia restar desse gracioso corpo, que nos permita recordar ter ele vivido e andado. Rebeca, isso no prprio duma mulher. Tens de me aceitar! - Bois-Guilbert - replicou a judia -, ignoras como so os coraes das mulheres ou apenas tens lidado com aquelas que j perderam o seu lado melhor. Digo-te, orgulhoso templrio, que nem na mais feroz das batalhas exibiste vez alguma tanta coragem como aquela de que uma mulher se reveste quando luta por afeio e dever. Sou uma mulher criada com carinhos, naturalmente medrosa e sensvel dor... mas, quando entrarmos nessa lia fatal, tu para lutares e eu para sofrer, sei, de certeza, que a minha valentia ser superior tua. Que passes bem, No perderei mais palavras contigo. O tempo que resta na
Terra a esta filha de Jacob deve ser gasto de maneira diferente. Procurar o Consolador, que oculta o rosto ao Seu povo, mas no se esquece de escutar os que se Lhe dirigem com sinceridade e verdade. - desta forma que nos vamos separar? - quis o Templrio saber. - Tivesse o Cu querido que nunca nos tivssemos cruzado ou que tu fosses nobre de nascimento e crist na f. No, pelo Cu! Quando te fito e penso como vai ser, quando nos tornarmos a ver, chego a desejar fazer parte da tua aviltada nao, com as mos traquejadas nos lingotes e nas moedas, e no na espada e no escudo. Baixando a cabea ante qualquer fidalgote e somente exibindo a minha ferocidade aos meus apavorados devedores em falncia. Aceitava tudo isto, Rebeca, para te ter junto de mim em vida e fugir quilo que vou fazer para a tua morte. - Descreveste os judeus tal como a perseguio que lhes fazes os tornou - disse Rebeca. - O Cu, na sua ira, expulsou-os do seu pas, mas a habilidade que tinham abriu-lhes a nica estrada que subsistia aberta para o poder e influncia. L a histria antiga do povo de Deus e diz-me se aqueles que, por intermdio de Jeov, tantos feitos maravilhosos executaram eram ento uma nao de avaros e miserveis. Ficai ainda sabendo, orgulhoso cavaleiro, que contamos entre ns nomes ao p dos quais a vossa nobreza do Norte fica como a cabaa ao lado do cedro. Nomes que vm dos tempos em que a Presena Divina se juntava de Suas crianas e cujo esplendor deriva no de prncipes da Terra, mas da Voz tremenda que convocava os seus antepassados para se unirem Viso. Assim eram os prncipes da casa de Jacob. O rosto de Rebeca colorira-se-lhe recordao das antigas glrias da sua raa, mas foi empalidecendo quando, com um suspiro, acrescentou:
- Eram deste modo os prncipes de Jud, mas j o no so mais! So pisados como a relva cortada e com a lama misturados. H, contudo, ainda alguns que se no envergonham da sua ascendncia, encontrando-se entre esses a filha de Isaac, filho de Adoni am! Passai bem! No vos invejo a ascendncia de nrdicos pagos e brbaros. No vos invejo a religio que sempre trazeis na boca, mas nunca na alma. - Estou enfeitiado, Deus meu! - bradou Bois-Guilbert. Quase acredito que aquele esqueleto em p falou verdade e que a relutncia com que me separo de ti tem algo de no natural. Formosa criatura - disse aproximando-se, mas com todo o respeito -, to jovem, to bela, to impvida perante a morte e, apesar de tudo, destinada a morrer na infmia e em agonia. Quem por ti no chorar? As lgrimas h vinte anos arredadas destes olhos acumulam-se agora ao olhar-te. O que tem de ser, ser. Nada te salvar. Tu e eu no passamos de cegos instrumentos nas mos do irresistvel fatalismo que nos empurra como se naves fssemos, que a tempestade impelisse uma contra a outra para que, chocando-se, se afundassem. Perdoai-me para que, quanto mais no seja, nos separemos em amizade. No venci a tua pertincia e a minha to firme e inquebrvel como os desgnios do destino. - Os homens - comentou Rebeca - sempre atribuem ao destino as suas loucas paixes. Perdoo-te, mesmo assim, Bois-Guilbert, se bem que sejas o autor do fim da minha passagem pela Terra.
Coisas nobres perpassam pela tua mente poderosa, mas no passam de flores num jardim abandonado que as ervas daninhas j ocupam. - Sim, Rebeca, serei assim - disse o cavaleiro - como tu dizes, por nascena e indomavelmente... e disso orgulhoso, pois sei ocupar, neste bando de loucos e manhosos fanticos, um lugar Proeminente e forte. Estou feito para a guerra desde a minha juventude e com os olhos nela postos, firmes, inflexveis e imutveis, como o mundo verificar. Perdoas-me realmente, Rebeca? - Tanto quanto a vtima o pode fazer ao algoz. - Adeus - despediu-se o Templrio, saindo. O preceptor Albert esperava-o impaciente, na diviso ao lado. - Demoraste-te - observou. - Estou em brasa de impacincia. E se o Gro-Mestre ou o seu espio, o Conrade, tivessem vindo para aqui? Mas que tens tu, amigo? Cambaleias, ests toldado como a noite. Ests bem, Bois-Guilbert? - To bem - retorquiu o Templrio - como um condenado. No! Nem mesmo metade to bem, pois alguns h que, nessa situao, esto prontos a deixar a vida como se dum farrapo velho se tratasse. Por Deus, Malvoisin, aquela rapariga dominou-me.
Estou meio decidido a ir junto do Gro-Mestre, renunciar Ordem e recusar o acto de brutalidade que a sua tirania me impe. - Perdeste o juzo - exclamou Malvoisin. - Arruinar-te- ias sem conseguires salvar a judia que to preciosa te . Beaumanoir nomearia outro em teu lugar e a acusada morreria exactamente como se fosses tu quem lutasse. - Isso falso! Pegarei eu nas armas em sua defesa - gritou o cavaleiro - e, nesse caso, bem sabes, Malvoisin, no haveria ningum na ordem capaz de aguentar o embate da minha lana. - Sabes, porm - recordou o astuto conselheiro -, que nunca ters possibilidades de levar avante esse insano projecto. Vai e diz a Lucas de Beaumanoir que renuncias aos teus votos e vers o que o velho dspota far com a tua liberdade. Ainda mal ters acabado de falar e j te encontrars a muitos metros abaixo do nvel do solo, no crcere da Preceptoria, aguardando o julgamento devido aos cavaleiros covardes. Ou, se ele continuar pensando que ests possesso, ters um leito de palha, escurido e correntes, dentro de qualquer convento distante, atordoado por exorcismos e encharcado de gua benta para de ti afastar o demnio que te tem. Tens de te apresentar na lia, Brian, se no queres ficar perdido e sem honra. - Saio daqui e fujo - disse Bois-Guilbert -, fujo para qualquer terra longnqua que a loucura e o fanatismo no tenham encontrado ainda. Nem uma gota de sangue daquela excelente criatura ser vertida por culpa minha. - -te impossvel fugir - lembrou-lhe o Preceptor. - As tuas divagaes j te levantaram suspeitas, pelo que no te ser autorizado sair da Preceptoria. Tenta. Chega-te ao porto e manda baixar a ponte. Vers a resposta que te do. Ests surpreso e ofendido? Mas no isto prefervel para ti? Se fugisses, que resultaria da tua fuga, seno o inverter do teu braso, a desonra para o teu nome e a tua despromoo? Pondera. Onde escondero a face os teus velhos companheiros de armas se Brian de Bois-Guilbert, a melhor lana entre os Templrios, dado como poltro no meio dos assobios da
assembleia? Quanto nojo no cobrir a corte francesa! com que satisfao no receber o arrogante Ricardo a notcia de que o cavaleiro que lhe fez a vida negra na Palestina perdeu a fama e honra, por causa duma rapariga judia, por quem nem sequer soube fazer um sacrifcio, salvando-a? - Malvoisin - interps o cavaleiro. - Agradeo-te. Tocaste a corda que, em mim, melhor soa. Acontea o que acontecer, o apodo de poltro jamais se acrescentar ao nome de Bois-Guilbert. Quisera Deus que Ricardo, ou algum dos seus favoritos, surgisse na lia. Todavia, vo estar vazias. Ningum se atrever a quebrar lanas pela inocente desamparada. - Tanto melhor para ti, se assim suceder - comentou o Preceptor.
- Se nenhum campeo se apresentar, no ser por tua culpa que essa infeliz donzela perecer, mas sim devido sentena do Gro-Mestre, sobre quem cair toda a falta, que ele, contudo, ver como um elogio e um louvor. - Certo - concedeu Bois-Guilbert. - Se no surgir um campeo, no serei mais do que um elemento da representao, a cavalo, na lia, que nada tem a ver com o que se seguir. - Exactamente - disse Malvoisin. - No representars mais do que a imagem de So Jorge quando carregada em procisso. - Pronto. A minha deciso mantm-se - afirmou o Templrio. - Ela repeliu-me, desprezou-me, rebaixou-me. Porque hei-de perder por ela a boa opinio que os outros tm de mim? Malvoisin, eu irei lia! isto dizendo, saiu apressadamente, seguido do Preceptor, interessado em ver se ele se atinha sua resoluo. Tinha grande interesse na fama de Bois-Guilbert, devido s vantagens pessoais que gozaria, caso, um dia, ele viesse a ser o principal da Ordem, j no falando nas promessas insinuadas por Mont-Fitchet e dependentes da efectivao da condenao da desafortunada Rebeca. Deste modo, e ainda que opondo-se ao lado bom do seu amigo e dispondo de todos os trunfos que um homem sagaz, sereno e egosta possa pretender para se sobrepor a outro, dominado por violentos e contraditrios sentimentos, Malvoisin tinha de se servir de todas as suas manhas para no permitir que Bois- Guilbert se desviasse da rota que aceitara seguir. Era obrigado a vigi-lo continuamente, no fosse ele tornar a pensar em fugas, a interceptar-lhe quaisquer contactos com o Gro-Mestre, no acontecesse romper ele definitivamente com o superior e reacender, de quando em vez, os argumentos com os quais o convencera a apresentar-se como campeo e tudo isto sem apressar ou assegurar o destino de Rebeca, que tinha de seguir o seu curso sem o levar perdio e desgraa.
Captulo XL Afastem-se as sombras... Ricardo, ele prprio, outra vez. - Ricardo III
Quando o Cavaleiro Negro (temos de lhe acompanhar as aventuras) se afastou da rvore-da-reunio do generoso fora-da-lei, seguiu directamente para uma casa religiosa de importncia e rendimentos considerveis, denominada Priorado de So Botolph, para onde Ivanho fora transferido, quando o castelo fora tomado, pelos cuidados do fiel Gurth e do magnnimo Wamba. Ser escusado, nesta altura, relatar o que se passou neste intervalo entre Wilfred e o seu salvador. Bastar informar que, aps sria e longa troca de impresses, o Prior despachou mensageiros com destinos variados e que no dia seguinte o Cavaleiro negro se preparava para prosseguir, acompanhado por Wamba, o bobo, que lhe serviria de guia. - Encontrar-nos-emos - disse a Ivanho - em Conningsburgh, o castelo do falecido Athelstane, j que l que o teu pai, Cedric, d a festa fnebre em honra do seu nobre parente. Quero ver os vossos parentes saxes, Sr. Wilfred, para que, reunidos, melhor os fique a conhecer. A ns vos juntareis para que eu vos reconcilie com vosso pai. Despediu-se afectuosamente de Ivanho, que mostrou toda a vontade de ir tambm, servindo-o, oferta que o Cavaleiro Negro declinou. - Descansa ainda hoje. Pouca fora ters, qui, amanh. No terei outro guia seno o honesto Wamba, que, de acordo com a minha disposio, tanto me servir de padre como de bufo. - Do meu corao vos acompanharei - interps-se Wamba aos festejos fnebres de Athelstane, que, se no forem completos e a preceito, o podero fazer levantar-se do caixo para rezingar com o cozinheiro, com o mordomo e com o escano, coisa que mereceria ser apreciada. Conto, Sr. Cavaleiro, que me desculpareis junto de meu amo, Cedric, caso as minhas piadas o no convenam. - E onde que o meu fraco valor pode, Sr. Bobo, quando a graa brejeira no vale? Dizei-mo.
- O esprito, Sr. Cavaleiro - respondeu o bobo -, pode muito. um patifezinho que v por que lado pode chegar-se a algum e como se defender do vento das suas paixes quando elas sopram raivosas. O valor, porm, um tipo robusto que tudo leva na sua frente. Rema contra o vento e contra a mar, vencendo-os. Portanto Sr. Cavaleiro, embora eu esteja ao de cima, com bom tempo na casa do meu amo, espero que vs intervenhais se a borrasca se levantar. - Sr. Cavaleiro do Aloquete, j que assim gostais de ser conhecido - disse Ivanho. - Temo tenhais escolhido um louco turbulento e palrador como guia. certo que conhece todas as veredas e caminhos da mata to bem como qualquer caador habituado a percorr-los e, fora isso, um indivduo fiel como um co, como sabeis. - N - respondeu o cavaleiro -, se me sabe indicar o caminho, nada me importa que mo torne agradvel. Passa bem, Wilfred. No te permito que te desloques seno amanh, no mximo. - Estendendo a mo, Ivanho levou-a aos lbios. Despediu-se do Prior, saltou para a montada e partiu, com Wamba ao lado. Ivanho ficou, seguindo-os com a vista, at que se perderam nas sombras da floresta que os circundavam, aps o que regressou ao convento. Pouco depois do cntico das matinas, pediu para falar com o
Prior. O velho apareceu, todo apressado, perguntando-lhe como se sentia. - Estou muito melhor - informou Ivanho - do que alguma vez poderia esperar. Ou o meu ferimento era mais leve do que a efuso de sangue me levou a entender, ou este blsamo uma maravilha. Sinto-me perfeitamente capaz de pr a armadura, e ainda bem, pois odeio a inactividade. - Valham-me todos os santos! - invocou o Prior. - Que no deixem o filho de Cedric abandonar o convento antes de totalmente curado! Seria uma vergonha para ns! - Nem eu quereria deixar o vosso hospitaleiro telhado, venerando senhor - sossegou-o Ivanho -, se me no sentisse capaz de aguentar a jornada. - E qual ser o motivo para to sbita partida? - Nunca haveis sentido, santo padre - perguntou o cavaleiro -, uma sensao de algo mau no ar, sem saber a que atribu-la? Nunca a vossa mente se ensombrou como uma paisagem soalheira, de repente coberta por nuvens augurando a borrasca? Entendeis serem esses avisos indignos de ateno e no vindos do nosso anjo-da- guarda, avisando-nos de perigos vindouros? - No o desdigo - benzeu-se o Prior. - Tais coisas so e vm do Cu. Mas, normalmente, tm objectivos e tendncias teis. Mas tu, ferido como ests, que poderias fazer se te assaltassem?
- Prior - esclareceu Ivanho. - Ests errado. Sinto foras bastantes para trocar socos com quem quer que, no caminho, a isso me desafie. E, mesmo que assim no fosse, no arranjaria eu meios para ajudar quem em perigo estivesse que no fossem as armas? sabido que os Saxes no gostam dos Normandos, e quem sabe o que suceder, quando ele surgir entre eles, furiosos com a morte de Athelstane e aquecidos pela beberagem que lhes servida? Vejo a sua ida ali, neste momento, como perigosa, e por isso vos peo me empresteis um cavalo de passo menos duro do que o do meu corcel de batalha. - Com certeza - concordou o bom religioso. - Levareis a minha gua treinada, que vos carregar to bem como se fsseis o abade de Saint Albans. Digo-te ademais que, como Mal in, pois esse o nome dela, no h outra, a no ser cavalos de circo, treinados a andar no meio de ovos, quanto a meiguice e suavidade de passo. s costas dela j compus muitas homlias para o bem dos meus irmos e demais cristos. - Rogo-vos, reverendo - pediu Ivanho -, que mandeis arrear Mal in, ordenando ao mesmo tempo a Gurth que se prepare. - Recordo-vos - persistiu o Prior - que Mal in sabe tanto de combates como o seu dono e aviso-vos no saber se poder com todo o peso das vossas armaduras e armas. Mal in um animal esperto e tudo far para evitar peso a mais. Lembro-me de que, uma vez, pedi o Fructus Temporum ao padre de Saint Bees e ela no se moveu enquanto no substitu o pesado volume por um brevirio pequenino. - Confie em mim, padre - pediu Ivanho. - No a carregarei em demasia, mas, se tentar opor-se-me, ficar mal. Esta frase foi dita quando Gurth j lhe afivelava um par de esporas douradas com tamanho suficiente para convencerem qualquer cavalo relutante das vantagens da obedincia. As imensas e aceradas rosetas das esporas de Ivanho levantaram agora algumas dvidas ao bom prior quanto sua
amabilidade, levando-o a dizer: - Mas, senhor, Mal in no est habituada a esporas! Seria talvez melhor levardes a gua que temos na granja. Deve estar livre dentro de uma hora, est acostumada a carregar-nos lenha e no gosta de comer gro. - Muito obrigado, reverendo padre - agradeceu Ivanho -, mas fico-me com a primeira oferta, tanto mais que Mal in j est ali ao portal. Gurth leva-me a armadura e, quanto ao resto, garanto-vos que no sobrecarregarei Mal in, at porque a no quero aborrecer. Adeus! Ivanho desceu as escadas mais depressa e melhor do que seria de esperar dum ferido em convalescena e montou a gua, ansioso por se livrar do maador do Prior, que se lhe colava tanto quanto a sua idade e peso lhe permitiam, ora cantando os mritos de Mal in, ora pedindo ao cavaleiro que a no esfalfasse.
- Ela est na pior na altura para as raparigas e guas. Riu-se da prpria piada. - Tem mais ou menos quinze anos. Ivanho, que tinha mais que fazer do que atur-lo, no lhe prestou ateno, nem s recomendaes, nem s graas, mandando de cima da gua que o seu escudeiro (pois era esse actualmente o ttulo de Gurth) se lhe pusesse ao lado, e seguiu o mesmo caminho para a floresta que o Cavaleiro Negro tomara. O Prior ficou ao porto resmungando: - Santa Maria, que impetuosos e decididos so estes guerreiros! No lhe deveria ter emprestado Mal in, pois, se lhe acontece algo, o que ser de mim com o meu reumatismo! No entanto, no devo pensar assim tanto nos velhos quando a velha Inglaterra de alguma coisa precisa. Mal in ter de se arriscar. At pode ser que traga mrito nossa casa e algumas recompensas das boas. Se no suceder deste modo, como muitas vezes acontece como os grandes que esquecem os servios dos pequenos, dar-me-ei por bem pago com a boa aco que pratiquei. Bom, vo sendo horas de juntar os irmos no refeitrio para o pequeno-almoo. Nestas circunstncias, so bem mais prontos a obedecer-me do que quando os chamo, com os sinos, para as primas e para as matinas. O Prior l tornou, mancando, para o convento, onde presidiria a uma refeio de bacalhau e cerveja, que iriam ser servidos aos frades como pequeno-almoo. Convencido e cheio de importncia, sentou-se mesa, comentando de forma vaga o muito que sempre fizera pela instituio, o que, noutra altura, teria chamado as atenes. Porm, como o bacalhau fora bem curado e a cerveja era da forte, os monges concentravam-se mais no que engoliam do que no que se dizia sua volta. Alis, no temos conhecimento de nenhum membro daquela comunidade se ter permitido especular quanto s misteriosas insinuaes do seu superior, exceptuando, talvez, Frei Diggory, que, devido a uma terrvel dor de dentes, somente conseguia comer para um dos lados. Entretanto, o Campeo Negro e o seu guia iam, calmamente, atravessando a floresta. O bom cavaleiro, ora trauteava um lai, ora, com perguntas, atiava a tagarelice do criado, o que tornava o seu dilogo numa espcie de comdia musicada impossvel de transcrever para os leitores. Tero, pois, de
imaginar este cavaleiro, tal como o desenhmos, possante, alto, espadado, pesado de Ossos, montado num enorme cavalo de guerra que parecia feito medida do seu corpo e peso, to ligeiro era o seu caminhar. Levava a viseira alada para melhor respirar, mas, como mantinha a parte inferior para cima, no era, mesmo dessa maneira, fcil perceberem-se-lhe as feies. Notavam-se, contudo, as faces trigueiras e coradas, os olhos azuis brilhantes faiscando sob o elmo.
Todos os gestos e modos do campeo exprimiam alegria e confiana e uma disposio que, ignorando perigos, se sentia, todavia, pronta a enfrent-los, caso surgissem, pois a eles estava acostumado, como s pode estar quem conhece bem o que so a guerra e as aventuras. O bobo vestia-se bizarramente, como de costume, tendo somente, e devido aos ltimos acontecimentos, substitudo a espada de pau por uma boa cimitarra e um pequeno escudo a condizer e no uso dos quais, no obstante a sua profisso, se revelara bem eficiente aquando do assalto ao castelo de Torquilstone. Na realidade, o que Wamba sofria era dum irrequietismo constante, que o no deixava parar por muito tempo ou prender-se a qualquer ideia, embora lhe permitisse o tempo necessrio para, bem alerta, executar qualquer tarefa imediata ou apreender algo a suceder em breve. No cavalo movia-se, ora para a frente, ora para trs, chegando-se quase at s orelhas do animal ou at cauda, pondo as duas pernas para o mesmo lado, sentando-se ao contrrio, fazendo caretas e macaquices, a tal ponto que o seu cavalo, no aguentando mais todas aquelas partes, o atirou para a erva, para grande gudio do Cavaleiro Negro, mas que fez que se passasse a comportar mais ajuizadamente da para diante. No momento em que nos aproximamos deles, este alegre duo cantava um viralai muito mais difcil para o palhao do que para o mais culto Cavaleiro do Aloquete. Era assim a sua letra: J h sol, Ana Maria, amor, J faz sol, amor. Faz sol e calor, Amor, logo de manh, Ana Maria. manh e tens de te levantar, O caador j partiu a caar, Sua trompa toca na pradaria, Acorda-te, amor, Ana Maria. - WAMBA Tybalt, amor, no me acordes ainda, Quero do sonho ver a histria finda, Quebrada perder todo o seu sabor. Permite-me que durma, Tybalt, meu amor. Que as aves soltem os seus sons de cristal, Que o caador procure no matagal, Eu quero desta almofada o fragor, A sonhar contigo. Tybalt, meu amor. - Uma bela cantiga - comentou Wamba, quando acabaram. - E, juro pela minha vara com orelhas de jerico, muito moral.
Costumava cant-la junto com Gurth, meu parceiro de brincadeiras, mas agora, graas a Deus e a meu amo, nada, mais nada do que um... homem livre. Uma vez apanhmos porque ficmos to entusiasmados com ela que s samos da cama, entre dormir e cantar, duas horas depois de o Sol ter nascido. Di-me o corpo s lembrana disso. Mesmo assim, cantei-a para vos agradar, senhor. O bobo iniciou ento outra cantilena, que o cavaleiro acompanhou. O CAVALEIRO E WAMBA Trs homens do Sul, Oeste e Levante Cantavam e cantavam um viralai Para a viva de Wycombe, a galante. Mas a qual deles escolher ela vai? O primeiro, de Tynedale, cavaleiro, E que bem canta ele o viralai. Seus pais, conhecidos do mundo inteiro, Ser que a viva no o querer vai? De seu pai rico, nobre de seu tio, Orgulha-se disso no seu viralai, Ela convidou-o p'r lareira p lo frio Porque a viva no o querer vai. WAMBA O outro jurou pelos seus bens e mates, Cantando alto e bem um viralai. Era um cavaleiro vindo de Gales, Que preferir a viva tambm no vai. O Sr. Fulano Cicrano de Tal Cantou com fora um lindo viralai, Dizendo que uma para trs era mal, Diz ao gals ser o primeiro que vai. A seguir, um nobre de Kent, cheio de prendas, Trinou mui bem trinado um viralai, Falando viva de ouro e rendas. Qual a viva que nisto no cai? AMBOS Nobre e guerreiro ficaram na lama E, em coro, cantando um viralai, O homem de Kent, que com ouro abana, aquele por quem a viva cai.
- Bem apreciaria que o nosso anfitrio da rvore grande e o alegre monge, seu capelo, tivessem ouvido esta cano enaltecendo o homem de Kent - disse o cavaleiro. - Eu no - disse Wamba. - S se me dsseis essa trompa suspensa do vosso boldri.
- No passa duma prova duma boa promessa de Loc sley, de que certamente no precisarei. Ao seu toque, sei, acorreria um feroz grupo daquela boa gente. - Aposto que, se no fosse esse presente, no nos passearamos to vontade. - Qu?! Julgas que se no fosse a promessa nos assaltariam? Eu c no digo nada - respondeu Wamba. - As rvores tm ouvidos e as paredes tambm. Mas, respondei-me, Sr. Cavaleiro, quando melhor terem-se o pichel e a bolsa vazios? - Nunca pensei nisso - respondeu o cavaleiro. - Ento nunca mereceste qualquer um cheio, com uma resposta dessas. A certa : pichel vazio quando se cruza com um saxo, bolsa vazia quando se marcha na mata. - Consideras os nossos amigos como foras-da-lei? - Eu no disse isso, ilustre senhor - recordou Wamba. - Pode aliviar-se um cavalo cansado ao fim do dia e livrar o cavaleiro daquilo que a semente de todos os males. S que, pessoalmente, os arreios na cavalaria e a bolsa no quarto so preferveis quando me encontro com esses tipos. Poupa-me trabalho. - Temos tambm de rezar por eles - lembrou o cavaleiro apesar da m conta em que os tens. - F-lo-ei com todo o fervor - concordou Wamba - mas dentro da vila e no na mata, para me no acontecer como ao abade de Saint Bees, que obrigaram a dizer missa dentro dum carvalho oco. - Digas o que disseres, aqueles homens prestaram um grande servio a Cedric em Torquilstone. - Claro - reconheceu Wamba.-, mas isso foi devido ao seu acordo com o Altssimo. - Acordo com o Altssimo? - espantou-se o cavaleiro. - Deus me valha - implorou Wamba. - Eles tm uma conta corrente no Cu, tal qual como o nosso despenseiro chamava s suas contas, direitinhas como as que Isaac, o Judeu, faz com os seus devedores, e, como ele d pouco e muito recebe, igualmente recebem muito. Calculam. A sua usura calculada multiplicando por sete, como os textos sagrados recomendam nos emprstimos de caridade. - Explica-te melhor. Nada sei de nmeros e juros - pediu o ca valeiro. - Muito bem. Se Vossa Graa no sabe, fica a saber que aquela honesta gente equilibra as boas aces com outras muito menos louvveis. Do uma Coroa a um mendicante e tiram cem bezncios a um ndio abade, consolam uma viva custa da rapariga que apanham na mata...
- Quais dessas eram as boas aces e as ms? - interrompeu-o o cavaleiro. - Boa piada! Excelente piada! - bradou Wamba. - Companhia espirituosa e sempre espirituosa sempre agradvel. No haveis dito nada to engraado naquela noite de borracheira com o eremita. Continuando: os homens da mata constrem uma cabana depois de derrubarem um castelo, colmam uma capela depois de saquearem uma igreja. Soltam um preso desgraado depois de matarem um altivo xerife. E, para chegarmos onde quero: auxiliam um saxo em troca dum normando que queimam vivo. So, enfim, ladres muito gentis e corteses. Mesmo assim, sempre bom s os encontrar quando esto em dbito.
- O qu, Wamba? - quis o cavaleiro saber. - Quando se sentem arrependidos e tentam fazer as pazes com o Cu. Quando as contas esto equilibradas, ai de quem se encontra com eles nessa altura! Os viandantes que apanharam a seguir a um gesto bom, como o de Torquilstone, devem ter levado coas tremendas. No entanto - prosseguiu Wamba, chegando-se para mais perto do guerreiro -, h coisas piores de encontrar do que aqueles bandoleiros. - E que sero, seno lobos e ursos? - perguntou o guerreiro. Temos, por exemplo, os homens de armas de Malvoisin - citou Wamba. - Numa guerra civil so como alcateias. Preparam-se, no momento, para fazer a colheita, reforados pelos soldados fugidos de Torquilstone. Se nos cruzarmos com um bando destes, teremos de pagar caro os nossos feitos de armas. Que fareis, senhor, se encontrsseis dois deles? - Pregava-os terra com a lana se nos aborrecessem. - E se fossem quatro? - Apanhavam a mesma dose - respondeu o cavaleiro. - E se fossem seis? - teimou Wamba. - Lembro-vos que somos s dois. Continuareis sem recorrer trompa de Loc sley? - O qu? Tocar pedindo socorro? - explodiu o cavaleiro. - para me defender dessa rascaille (1) que qualquer cavaleiro enxota sua frente como o vento sopra as folhas secas? - Bem. Ento peo-vos - rogou Wamba -, que me deixeis dar uma vista de olhos a essa trompa de to poderoso troar. O cavaleiro retirou-a do boldri e estendeu-a ao companheiro, que imediatamente a ps ao pescoo. *1.. Ral. (N. do T.)
- Tra-la-r - assobiou as notas. - Conheo a msica to bem como outra qualquer. - Que dizes, patife? - rosnou o cavaleiro. - Passa-me a minha trompa! - Sossegai, senhor! Est em boas mos. Quando a Bravura e a Loucura viajam juntas, compete Loucura levar a trompa, porque a sabe soprar melhor. - N, n, malandro! - bradou o Cavaleiro Negro. - Ests a sair dos limites. No me rales a pacincia. - No recorrais violncia, Sr. Cavaleiro - pediu o bobo - , ou terei de dar s de vila-diogo e ficareis sozinho procura do caminho. - V l, levaste-me. Alm de que no tenho tempo para o perder contigo. Fica l com a trompa, mas vamos andando. - No me fareis mal, portanto? - perguntou Wamba. - Garanto-te que no! - Mas dai-me a vossa palavra de cavaleiro - insistiu o bobo, aproximando-se a medo. - Dou-ta, mas anda da - foi a resposta. - Pronto. Tornamos a ser companheiros - disse o bufo, chegando-se vontade. - A verdade que no aprecio socos do gnero do que haveis dado ao frade, fazendo Sua Santidade rolar na erva como um meco. E agora, que a Loucura tem a trompa nas unhas, ser conveniente que a Bravura se prepare, pois, se me no engano, naquela moita, alm, h companhia nossa espera. - Que te leva a diz-lo? - perguntou o cavaleiro.
- Por duas ou trs vezes vi brilhar algo parecendo capacetes no meio da verdura. Se fosse gente de bem, seguia o seu caminho e no escolhia aquele stio, que lembra uma capela para os devotos de So Nicolau. - Bof o dizes - disse o cavaleiro descendo a viseira -, pois creio que acertaste. Em bom tempo o fez, j que trs flechas saram do ponto indicado, batendo-lhe na cabea e no peito. Uma delas ter-lhe-ia chegado aos miolos se no fosse a proteco de ao. As outras duas foram desviadas pela couraa e pelo escudo que carregava. - Obrigado, minha rica armadura! - proferiu o cavaleiro. Wamba, vamos a eles! - bradou arrancando direito moita, onde se chocou com seis homens de armas de lana em riste. Trs das armas quebraram-se contra ele com tanto resultado como se batessem numa muralha de ferro. Os olhos do Cavaleiro Negro dardejavam por entre os interstcios da viseira. Erguendo-se nos estribos com um ar de indescritvel dignidade, indagou: Que significa isto, meus senhores? Ao que os homens responderam desembainhando as espadas e, carregando de todos os lados, bradando:
- Morte ao tirano! - Ah! Santo Eduardo! Ah! So Jorge! - respondeu o cavaleiro, abatendo um adversrio a cada imprecao. - Haver aqui traidores? Os seus oponentes, atrevidos como eram, afastaram-se, mesmo assim, daquele punho que trazia a morte em cada golpe, tudo indicando j que, na sua fora, lhes incutira terror bastante para que fugissem, no fora um cavaleiro de armadura negro-azulada, que se conservara, at ento, oculto, avanar com a sua lana apontada, no ao cavaleiro, mas sua nobre montada, que, dum s lance, abateu. - Golpe de covarde! - exclamou o Cavaleiro Negro, arrastado na queda pelo seu cavalo. Nesse mesmo instante, Wamba soprou com toda a fora a trompa. Tudo se passara to velozmente que, antes, no houvera tempo para nada. O som fez estacar os assaltantes de novo e deu possibilidade a Wamba, mal armado como estava, de acorrer a ajudar o Cavaleiro Negro a levantar-se. - Tende vergonha, poltres! - gritou o da armadura azulada, que parecia ser o chefe. - Ser que temeis um toque de trompa soprada por um bobo? Animados por esta admoestao, atacaram o Cavaleiro Negro, que, encostando-se a um carvalho, tratou de se defender com a espada. O criminoso cavaleiro, que pegara noutra lana e aguardava que o adversrio estivesse bem entretido, galopou na sua direco, esperando empal-lo contra a rvore. O seu intento no se concretizou, porm, devido interveno de Wamba, que, substituindo a fora pela agilidade e pela pouca ateno que os homens lhe prestavam, e se mantivera um pouco margem da luta, alterou a falta carreira do cavaleiro, paralisando-lhe o cavalo com uma espadeirada. Cavaleiro e montada tombaram em roldo. Apesar disso, a situao do Cavaleiro do Aloquete mostrava-se precria, pois, acossado por vrios homens bem armados, j mostrava sinais de cansao, uma vez que tinha de se defender de todos os lados ao mesmo tempo. Eis seno quando uma seta emplumada com penas de ganso fez,
subitamente, um dos mais fortes dos atacantes comer a terra, logo seguida por um bando de homens que, com Loc sley e o prazenteiro frade frente, surgiram na clareira. Estes, entrando na refrega, dispersaram os rufies, dos quais somente ficaram os mortos ou mortalmente feridos, O Cavaleiro Negro agradeceu com toda a dignidade e de forma Muito diferente daquela que, anteriormente, ostentara. J no era mais um ousado soldado a faz-lo, mas sim algum de categoria Muito elevada.
- Muito me interessa - comeou -, mesmo antes de vos agradecer, meus prontos amigos, descobrir quem sero os meus no provocados inimigos. Wamba, levanta a viseira desse cavaleiro blau, que parecia comandar os bandidos. Wamba dirigiu-se para junto do comandante dos viles, que, aturdido pela queda e preso pelo cavalo, ficara sem hiptese de fuga ou resistncia. - Por favor, senhor - disse Wamba -, alm de vosso palafreneiro, tambm sou vosso armeiro. Desmontei-vos e agora retirar-vos-ei o elmo. - Sem ponta de gentileza, tirou-lhe o casco, que rolou pelo relvado, deixando ver- se uma cabea cheia de cs que o Cavaleiro Negro nunca esperaria ver ali. - Waldermar Fitzurse! - surpreendeu-se. - Que leva uma pessoa da vossa categoria a descer to baixo? - Ricardo - respondeu o prisioneiro, olhando-o. - Conheces os homens mal se no sabes at onde a ambio e a vingana podem conduzi-los. - Vingana? - continuou, surpreso, o Cavaleiro Negro. - Nunca te prejudiquei. De mim nada tens para te vingar. - A minha filha, Ricardo, que recusaste! Achas isso pouco para um normando to nobre como s? - A tua filha? ela a razo do teu dio, o motivo por me quereres o sangue?... Afastai-vos, senhores, pois quero falar a ss com ele... E agora, Waldemar, conta-me a verdade. Confessa quem te mandou levar avante esta traio! - O filho de teu pai - respondeu Waldemar -, que, fazendo-o, se limitava a vingar a tua desobedincia a teu pai. Os olhos de Ricardo fuzilaram de indignao. Levando a mo testa, fitou o rosto do humilhado baro, onde a vergonha e o orgulho contendiam. - No me pedes que te perdoe? - quis o rei saber. - Quem est nas garras do leo - disse Fitzurse -, sabe que no valeria a pena. - Conservars a vida se, dentro de trs dias, sares de Inglaterra, indo esconder a tua infmia no teu castelo na Normandia, e na condio de nunca mais citares o nome de Joo de Anjou em ligao com as tuas patifarias. Se te encontrar em solo ingls depois do prazo que te dei, morres... e se te ouo dizer algo contra a honra da minha casa... Por So Jorge! Nem o altar te servir de asilo. Pendurar-te-ei para que sirvas de manjar aos corvos no alto do teu prprio castelo... Dai um cavalo a este cavaleiro, Loc sley. Um daqueles solta que os vossos homens esto a apanhar. - Se no ouvisse uma voz que tem de ser obedecida - comentou o arqueiro -, espetava um chuo neste vilo, poupando-lhe os aborrecimentos da viagem. - s um verdadeiro ingls - cumprimentou-o o Cavaleiro Negro.
- Fazes bem em acatar o meu comando... Eu sou Ricardo de Inglaterra! A estas palavras impressionantes e majestosamente pronunciadas, como convinha a algum de to alta estirpe, como o Corao de Leo, os fora-da-lei ajoelharam-se, prestando-lhe homenagem e pedindo-lhe lhes desculpasse as faltas. - De p, amigos - ordenou graciosamente Ricardo, fitando-os com o usual bom humor, que j substitua o ressentimento que o combate recente lhe incutira s feies. Arfando ainda um pouco devido aco a que fora forado, repetiu: - De p... bons amigos! As vossas faltas, na mata ou nos campos, esto desculpadas pelos leais servios que haveis prestado aos meus sbditos em aflio ante as muralhas de Torquilstone e pelo salvamento, hoje, do vosso soberano. Quanto a ti, Loc sley... - Por favor, no me chameis mais Loc sley, meu real senhor, mas sim pelo nome que, temo, demasiado conhecido para no ter chegado aos vossos ouvidos ainda. Sou Robin dos Bosques na floresta de Sherwood (1). - Rei dos fora-da-lei e prncipe de boa gente! - disse o rei. - Quem no conhece esse nome, que at Palestina j chegou? Assegurai-vos, meu bravo, de que nada do que haveis feito durante a nossa ausncia e nestes anos turbulentos que ela provocou ser lembrado em vosso desfavor. - Bem diz o provrbio - comentou Wamba com um pouco menos de petulncia do que a do costume: Quando o gato est fora, Prs ratos chegou a hora. - Qu, Wamba, ests a? - riu-se Ricardo. - J no te ouvia h tanto tempo que pensara tivesses fugido. - Fugir, eu? - exclamou Wamba. - E desde quando que a Loucura abandona a Bravura? Ali jaz como trofu a minha espada, naquele bom cavalo cinzento que bem gostaria de ver de p, outra vez, conquanto que o seu dono ficasse quedo. certo que, a princpio, a minha roupa s pintas no me deixava combater to bem como, com uma armadura, o faria. Mas, mesmo neste caso, tereis de reconhecer que me sa muito bem, tocando quando toquei e batendo quando bati. - E para bom fim, honesto rapaz - completou o rei. - Os teus servios, Wamba, no sero esquecidos. *1.. Sabe-se, pelas baladas, que este notrio bandido tomava, s vezes, o nome de Loc sley, o nome da aldeia onde nascera, que se no sabe onde exactamente era situada.
- Confiteor! Confiteor! - entoou uma voz submissa muito prxima dos reais ouvidos. - O meu latim no d para muito, mas desde j confesso a minha mortal traio, para a qual peo absolvio antes de ser levado execuo. Ricardo, voltando-se, encarou com o jovial frade, de joelhos e com o varapau, que tanto trabalhara na refrega, pousado ao lado. Tinha arranjado uma expresso da maior contrio, com os olhos voltados para cima e os cantos da boca cados, ou seja, como Wamba diria, como as borlas duma saca. Esta pose de
penitncia extrema no convencia ningum, devido ao ar de brincadeira que todas as suas imensas feies irradiavam, como que proclamando no serem verdadeiros nem o medo, nem o arrependimento. - Que te ps to em baixo, padre maluco? - perguntou Ricardo. Temes que o teu diocesano venha a saber como que realmente serves a Nossa Senhora e a So Dunstan? Sossega-te, homem! No tenhas medo. Ricardo no revela segredos escudados ao tinir de copos. - No, meu ilustre soberano - respondeu o eremita (bem conhecido na literatura de cordel por Frei Tuc ) -, no o basto episcopal que temo, mas, antes, o ceptro real. Ai de mim! Como ousou o meu punho sacrlego tocar na face dum ungido do Senhor? - Ah! Ah! - riu-se Ricardo. - da que o vento sopra? Na verdade, j esquecera esse murro, embora tivesse ficado a zunir o dia inteiro. Mas se esse soco foi bem aplicado, tenho aqui volta estes homens honestos, que testemunharo ter ele sido bem retribudo.:. a no ser que penses ter eu ficado a dever-te qualquer coisa e queiras tornar... - De forma alguma - interrompeu-o Frei Tuc . - o meu foi-me devolvido com os juros devidos. Que Vossa Majestade possa sempre assim liquidar as suas dvidas. - Se as pudesse liquidar a murros, os meus credores nunca me acusariam de esvaziar o errio pblico. - No obstante tudo isso - gemeu o frade, tornando a tomar a mesma hipcrita atitude -, calculo qual ser a pena correspondente ao meu sacrlego murro! - No penseis mais no assunto, irmo - falou o rei. - Apanhei tantos socos dos pagos e descrentes que no vejo qualquer razo em me ofender com o que me foi dado por um frade to beato como o de Copmanhurst. Parece, contudo, meu bom frade, que o melhor para ti e para a Igreja seria eu privar-te do hbito e tomar-te ao servio da minha guarda pessoal, onde cuidarias to bem de ns como o haveis feito para com o altar de So Dunstan. - Senhor meu - implorou o frade -, com toda a humildade vos rogo perdo. Sei que de pronto me concedereis se soubsseis a que ponto o pecado da preguia de mim se apossou.
So Dunstan... bendito seja ele... deixa-se ficar quietinho no seu nicho mesmo quando me esqueo das minhas oraes para Perseguir um veado gordo. s vezes passo a noite fora da cela, fazendo nem sei bem o qu, e So Dunstan nunca se lamuria. um amo dos mais pacientes dos que h entre os que so de pau. Mas, se fosse um membro da guarda do meu rei, embora a honra no tivesse medida, como poderia eu consolar uma viva aqui, apanhar um veadito acol? J sei que seria: "Onde est aquele co do padre?", "Algum viu o Tuc maldito?", "O vilo paisana mata mais caa do que um condado inteiro", diria um guarda, e "Apanha as coras todas", diria outro. Em resumo, majestade, deixai-me ficar tal como me haveis encontrado, ou, se quiserdes estender a vossa magnanimidade sobre uma pessoa, fazei que eu passe a ser visto apenas como um frade da cela de So Dunstan de Copmanhurst, que aceita sempre qualquer esmolinha. - Compreendo-te - disse o rei -, e o santo frade gozar do direito de caar veao nas minhas matas de Warncliffe. Nota,
porm, que apenas podes apanhar trs machos por estao, embora no seja eu rei se no souber que trinta sero. - Vossa Graa pode estar certo de que, com a graa de So Dunstan, arranjaremos forma de multiplicar essa generosa ddiva. - No duvido, bom irmo - concordou o rei. - E como veao no mais do que comida, o nosso despenseiro receber instrues para te entregar, todos os anos, uma pipa de xerez, outra de malvasia e trs de cerveja da boa. Se isso no te saciar a sede, ters de ir corte e ser apresentado ao meu mordomo, - E para So Dunstan? - Perguntou o frade. - Uma capa, uma estola e uma mesa de altar ters tu tambm. Mas acabemos com as brincadeiras, no v Deus castigar-nos por pensarmos mais nas nossas loucuras do que na Sua honra e culto. - Pelo meu padroeiro respondo eu - exclamou o frade, radiante. - Responde por ti, frade - disse Ricardo um tanto severamente. No entanto, logo estendeu a mo ao eremita, que, um pouco envergonhado, se ajoelhou saudando-o. - Menos me honrais com ela aberta do que quando a cerrei - observou o monarca. - primeira ajoelhaste-te, enquanto segunda te prostraste. O frade, receando praticar nova ofensa caso continuasse mantendo a conversa em tom demasiado jocoso (atitude sempre de evitar por aqueles que falam com a realeza), fez uma grande vnia e afastou-se. Nesse instante, dois novos personagens apareceram em cena.
Captulo XLI Todos convidam a nobreza elevada, De vida melhor que a nossa, e mais nada A ver a nossa festa No verde da floresta. Vinde prontos para vs tudo se apresta. - Macdonald Eram eles Wilfred de Ivanho, montado na gua do prior de Botolph, e Gurth, a seu servio, no cavalo do guerreiro. A surpresa de Ivanho foi enorme ao ver o seu senhor todo salpicado de sangue e seis ou sete mortos estendidos na pequena clareira onde o combate se travara. Tambm muito o espantou ver que Ricardo estava rodeado de muita gente da mata, os fora-da-lei, que lhe pareceram squito pouco apropriado para um prncipe. Hesitou, no sabendo se dirigir-se-lhe como ao rei ou como a um cavaleiro andante. Ricardo percebeu- lhe o embarao. - No temas, Wilfred, dirigir-te a Ricardo Plantageneta em pessoa. Est na companhia de bons ingleses, ainda que algo margem do seu caminho devido ao seu sangue um pouco exaltado. - -Sr. Wilfred de Ivanho - disse o chefe dos fora-da-lei aproximando-se. - De nada serviro as nossas garantias depois das do nosso soberano. Dir-vos-ei, contudo, que, entre aqueles que tm sofrido, poucos sbditos melhores ter do que aqueles que o rodeiam no momento. - No duvido, meu bravo - disse Wilfred -, pois s daqueles...
Mas que significam estes sinais de morte e de perigos? Estes homens abatidos e o sangue tingindo a armadura do meu prncipe? - A traio surgiu entre ns, Ivanho - informou o rei -, mas, graas a estes valentes, a traio recebeu o que merecia. Mas, lembro-me no momento, tu s um traidor tambm - acrescentou sorrindo -, um traidor pela desobedincia. No foram as nossas instrues para que repousasses em Saint Botolph at a tua ferida se cicatrizar?
- Est cicatrizada - respondeu Ivanho. - Importa-me tanto como uma alfinetada. Mas porqu, porqu, nobre prncipe, preocupais os vossos seguidores expondo assim a vida em jornadas solitrias e atrevidas aventuras, como se fsseis um vulgar cavaleiro sem outros interesses que no os que a sua lana e escudo lhe possam trazer? - Porque Ricardo Plantageneta - disse o Rei -, se orgulha mais das suas aventuras, ajudado somente pela sua boa espada e pela fora do seu brao, do que de batalhas onde comandasse cem mil homens. - Mas o vosso reino, Senhor - lembrou Ivanho -, o vosso reino ameaa extinguir-se numa guerra civil... os vossos sbditos ficaro sujeitos a males sem fim se perderem o seu soberano num desses perigos que enfrentais diariamente e a um dos quais acabais exactamente de escapar. - Ora, ora! O meu reino e os meus sbditos - replicou Ricardo sem pacincia. - Digo-te, Wilfred, os melhores entre eles fazem os mesmos disparates que eu. O meu fiel sbdito Wilfred de Ivanho, por exemplo, esquece ordens minhas, bem claras, e prega-me sermes a mim, seu rei, por no fazer precisamente o que ele quer. Qual de ns tem mais motivos para ralhar ao outro? Desculpa, no entanto, dedicado Wilfred. O tempo que passei e que vou ainda passar sob incgnito , como te expliquei em Saint Botolph, necessrio para que os meus amigos e nobres fiis possam reunir as foras, a fim de que, quando o regresso de Ricardo for anunciado, ele possa surgir encabeando gente bastante para pr os inimigos a tremer e dominar traies premeditadas, sem sequer desembainhar a espada. Estoteville e Bohun precisam de vinte e quatro horas para avanarem sobre Iorque. Aguardo novas do Sul, de Salisbria, de Beauchamp, no Warwic shire, e de Moulton e Percy, no Norte. O chanceler tem de se assegurar no concernente a Londres. Uma apario demasiado sbita submeter-me-ia a perigos demasiados mesmos para as minhas espada e lana, ainda que apoiadas pelo arco de Robin, pelo varapau de Frei Tuc e pela trombeta do sbio Wamba. Wilfred fez uma vnia acedendo-lhe, pois bem sabia da inutilidade de discusses com o seu arrojado amo, que tanta vez procurava perigos inteis, que podia evitar, mas que considerava imperdovel no procurar. com um suspiro, o jovem cavaleiro calou-se, enquanto Ricardo, que o fizera calar, ainda que no ntimo lhe desse razo, se dirigia a Robin dos Bosques. - Rei dos fora-da-lei - disse. - No tens nada que comer para oferecer ao teu real irmo? Esses patifes para a estendidos, pelo exerccio a que me obrigaram, fizeram- me abrir o apetite. - Honestamente - replicou o chefe -, pois detesto mentir- vos,
- De veao, querers dizer? - terminou o rei, todo bem disposto. - Melhor comida no existe. Alm disso, um rei que no pode andar a caar no pode protestar muito com quem para ele caa. - Ento, se Vossa Graa quiser de novo honrar um dos nossos pontos de encontro - disse Robin -, no faltar carne ali, assim como cerveja e um pouco de vinho para ajudar. O fora-da-lei indicou o caminho, seguido pelo hercleo monarca, mais feliz, talvez, com esta oportunidade de conhecer Robin dos Bosques e os seus mateiros do que se sentar no seu trono a presidir a um magnfico grupo de pares e nobres. A novidade e a aventura eram como o sal para a vida de Ricardo Corao de Leo, que somente a apreciava enfrentando e vencendo perigos. Ricardo Corao de Leo era o exemplo tpico, brilhante mas intil, do esprito dos cavaleiros andantes de romance, dentro do qual se realizava e revivia. A glria pessoal trazida pelos seus feitos era-lhe bem mais querida imaginao do que aquela que uma boa e inteligente poltica de governao o poderia fazer. Por isso o seu reinado foi como o clere e brilhante passar dum meteoro, que cruza o cu, o ilumina com uma desnecessria e portentosa luz, para logo ser engolido pela escurido total. Os seus actos de cavalaria serviram de tema a bardos e menestris, mas no concederam ao seu pas nenhuns dos slidos benefcios que a histria aprecia e conserva como exemplos para a posteridade. Claro que na companhia do momento Ricardo se sentia o melhor possvel. Era alegre, bem disposto e apreciador de boa camaradagem a todos os nveis sociais. Foi preparada, sob a copa dum carvalho enorme, uma excelente refeio silvestre para o rei de Inglaterra por homens que o seu Governo via como marginais, mas que, agora, lhe serviam de corte e de guardas. medida que as canecas iam passando de mo em mo, eles perdiam o acanhamento que a presena do soberano lhes impusera, comeando a cantar e a soltar piadas. Nas canes, os seus feitos eram realados a ponto de comearem a alardear as suas bem sucedidas infraces lei, sem se recordarem de estar na presena do seu natural executante. o alegre rei, ligando tanto sua prpria dignidade como aqueles a seu lado, ria-se, bebia e gracejava tambm. O rude e inato senso de Robin dos Bosques fazia-o ansiar pelo fim de tudo aquilo, at porque temia que algo surgisse a perturbar e, sobretudo, porque notou um certo ar de preocupao em Ivanho. - Sentimo-nos muito honrados - disse em aparte a Ivanho pela presena do nosso soberano. Preferiria, contudo, que, assim, no perdesse tanto tempo precioso para as necessidades do reino. - Dizeis bem e com sabedoria, bravo Robin dos Bosques concordou Wilfred. - E ficai ainda sabendo que aqueles que brincam com Sua Majestade, quando ele est na melhor das disposies, esto a faz-lo com um leo que, mnima provocao, pe as garras e os dentes de fora.
- Haveis tocado no que mais temo - concordou o fora-da-lei. os meus homens so rudes por natureza e vida e o rei to impetuoso como bem-humorado. Ignoro o que o possa ou no ofender. altura de acabar com esta brincadeira. - Tereis de ser vs a faz-lo, meu bravo, pois todas as sugestes que tenho dado ao rei apenas parecem lev-lo a querer continuar por muito mais tempo ainda. - Terei ento de me arriscar ousadia de pedir um favor ao meu soberano - disse Robin dos Bosques. - Por So Cristvo, tem de ser. Seria mal servi-lo o no me arriscar para seu bem... Eh, Scathloc , pe-te atrs daquela moita e toca-me nessa tua Corneta normanda sem demora, sob risco de perderes a cabea se o no fizeres. Scathloc obedeceu ao capito e, passado pouco tempo, a ateno dos convivas era despertada pelo som da corneta. - a corneta de Malvoisin - exclamou Miller, erguendo-se e agarrando o arco. O frade pousou uma garrafa e empunhou o varapau. Wamba parou a meio duma anedota e pegou na sua espada e no escudo. Todos se achegaram s armas. A gente de vida arriscada muda muito rapidamente duma mesa para um campo de batalha, e para Ricardo a interrupo era apenas uma continuao do prazer. Pediu o elmo e outras pores da armadura, de que se aliviara, e, enquanto Gurth lhas enfiava, foi dando a Ivanho instrues muito severas para que, de forma alguma, entrasse na escaramua que, julgava, se avizinhava. - Lutaste por mim centenas de vezes, Wilfred, e eu vi-o. Hoje lutarei por ti e sers tu a apreciar. Robin dos Bosques mandara, entretanto, homens em diversas direces em reconhecimento do inimigo. Quando viu a companhia perfeitamente desfeita, aproximou-se de Ricardo, j completamente armado, e de joelhos pediu perdo ao soberano. - De qu, bom homem? - perguntou o rei sem grande pacincia. No te perdomos j todas as transgresses? Julgas que a nossa palavra anda, como as penas, ao sabor do vento? No tiveste tempo para praticar qualquer novo crime. - Pratiquei-o, mesmo assim - respondeu o fora-da-lei. - O crime de enganar o meu prncipe para seu prprio bem. A corneta que haveis escutado no de Malvoisin, mas somente tocada por minha ordem para se acabar com um banquete que podia demorar horas de grande importncia para todos ns. Ergueu-se, cruzou os braos, com mais respeito do que submisso, e aguardou a deciso do rei, consciente da ofensa, mas confiante na razo que a motivara. O sangue subiu ao rosto de Ricardo, mas isso no passou duma primeira reaco, que o seu sentido de justia logo dominou.
- O rei de Sherwood - perguntou - chora a carne e o vinho que d ao rei de Inglaterra? Muito bem, atrevido Robin, quando me fordes ver a Londres, receber-vos-ei com muito mais largueza. Claro que fizestes bem. Montemos e partamos... Wamba est impaciente. Dizei-me, Robin, no tereis no vosso bando algum que no s d conselhos e indicaes e que fique aborrecido quando ages por tua conta? - Tenho, sim - assentiu Robin -, o meu tenente Joo Pequeno, no momento ausente numa expedio at junto da fronteira escocesa. Confesso, senhor, que os seus conselhos acabam por me maar. Mas, quando penso melhor, vejo que no me posso
zangar com quem s pensa no bem do seu chefe. - Ests certo - anuiu Ricardo. - E eu, com Ivanho, dum lado, a aconselhar-me com o seu ar sisudo e tu, do outro, a levares-me com enganos para o que pensais convir-me, fico com menos liberdade para usar a minha cabea do que qualquer outro rei, cristo ou pago... Meus senhores, partamos para Conningsburgh e no pensemos mais no assunto. Robin dos Bosques informou ter destacado um grupo para a estrada que seguiriam e que no deixaria de descobrir e preveni-los de qualquer emboscada que lhes fosse montada. Disse-lhe estar seguro de no correrem perigo, mas que, se o houvesse, recuassem, pois mandara um forte contingente de arqueiros atrs deles. As inteligentes e cuidadas precaues tomadas por sua causa impressionaram e provocaram a maior satisfao a Ricardo, apagando-lhe quaisquer restos do aborrecimento que tivesse ainda quanto ao engano em que o capito o fizera cair. De novo lhe estendeu a mo, garantindo-lhe total perdo e futuros favores, bem como a sua firme resoluo de reprimir o tirnico exerccio quanto a direitos na floresta e outras leis opressivas que tantos ingleses levaram rebelio. As boas intenes de Ricardo para com o ousado fora-da-lei no se concretizaram devido morte prematura do rei, e Carta da Floresta, arrancada fora das mos de Joo, que sucederia ao seu herico irmo. Quanto ao resto da histria de Robin dos Bosques e da sua morte por traio, encontram-se naqueles manuscritos que outrora se vendiam quase de graa: Outrora por nada, hoje a peso de ouro. As coisas correram como o fora-da-lei dissera. O rei, Ivanho, Gurth e Wamba chegaram sem qualquer percalo ao castelo de Conningsburgh, com o Sol ainda acima do horizonte. Poucas paisagens haver to belas, na Inglaterra, como a que rodeia aquela velha fortaleza saxnia. O rio Dom corre suavemente frente a um anfiteatro, onde campos cultivados se misturam com a floresta e, num monte subindo do rio,
bem defendido por muralhas e valas, se eleva a velha construo, que, como o seu nome significa, era, antes da Conquista, a residncia dos reis de Inglaterra. As muralhas exteriores talvez tenham sido acrescentadas pelos Normandos, mas a interior mostra a sua muita antiguidade. Est na encosta dum dos ngulos do ptio, formando um crculo perfeito com cerca de oito metros de dimetro. Os muros espessos so defendidos por botarus que, saindo do crculo, vo encontrar-se e encostar torre, como que para a sustentar ou defender. Estes arcos botantes so macios desde a base quase at ao topo, que termina em torrees que comunicam com a fortaleza. A viso a distncia da imensa construo e dos seus extraordinrios pormenores d tanto prazer aos apreciadores do pictrico como o seu interior e oferece aos antiqurios, cuja imaginao os transporta para os tempos da Heptarquia. Uma elevao, nas vizinhanas, tida por ser o tmulo de memorvel Hengist e no adro da igreja prxima existem vrios monumentos, curiosos e muito antigos(1).
*1.. Quando pela ltima vez visitei esta interessante e vetusta runa, um dos poucos restos de fortificaes saxnias que ainda existem, pensei muito seriamente em desenvolver uma espcie de teoria que o recente contacto com a arquitectura dos Velhos escandinavos me sugerira. As circunstncias obrigaram-me, porm, a seguir viagem e no tive tempo para mais do que uma rpida vista de olhos a Conningsburgh. No entanto, a ideia tem persistido na minha mente de modo tal que no resisto a escrever uma ou duas pginas para pormenorizar a minha hiptese, deixando que melhores antiqurios corrijam ou refutem as minhas talvez demasiado apressadas concluses. Quem visitou as ilhas Shetland conhece os castelos que os locais denominam de burghs e os escoceses das Terras Altas, que igualmente os tm, quer nas ilhas, quer em terra firme, de duns. Pennat fez uma gravura famosa, com Um motivo desses, Dun-Dornadilla em Glenelg. Muitos outros existem, todos com as mesmas caractersticas arquitectnicas apontando um estado social muito primitivo. O espcime mais perfeito encontra-se na ilha de Mousa, perto da Shetland principal, que deve estar quase como quando era habitado. Consta duma s torre redonda, com as paredes convergindo levemente, para depois se salientarem, formando um recncavo, que permitiria aos defensores melhor protegerem a sua base. feita de pedras toscas, cuidadosamente escolhidas e colocadas em crculo, muito macias, mas sem qualquer espcie de argamassa. A torre, ao que parece, nunca teve telhado. No centro do local que envolvia fazia-se uma fogueira, sendo natural que originalmente a Construo no passasse duma parede erguida para defender reunies de conselho. Mas, ainda que a habilidade dos construtores no tivesse chegado para a cobrirem, chegou para que tivessem feito muitos apartamentos no seu interior. A parede dupla, criando um espao de mais ou menos um metro e meio, que coberto por lajes a diversas alturas, formando como que diversos andares at ao cimo da torre. Cada uma destas galerias dispe de quatro friestas voltadas para os pontos cardeais e subindo, precisamente umas sobre as outras, piso a piso. Estas linhas perpendiculares de aberturas deixariam entrar o ar e sair o fumo do fogo que, em baixo, se acendia. O acesso das galerias umas para as outras tambm primitivo. Um caminho inclinado corre em espiral ao longo do edifcio, ligando os vrios andares. No exterior no h janelas. Acrescento que o Ptio deveria igualmente servir para guardar gado. Era assim a arquitectura vulgar do tempo em que os Nrdicos, errando pelos mares, iam arrancar s naes mais civilizadas o que podiam. Nas Shetland h muitas dezenas destes burghs em cabos, promontrios, ilhotas e outros pontos bem escolhidos. Recordo-me de um deles, numa ilhazinha, no lago, perto de Lerwic , que, na preia- mar, comunicava com o mar e Cujo acesso era de alto interesse, visto ser feito por um carreiro coberto por sete centmetros e meio a dez centmetros de gua. Fazia ngulos muito agudos no seu percurso at ao burgh, devendo os seus utentes conhec-lo muito bem, enquanto os estranhos, qui aproximando-se com intentos hostis, lhe ignoravam os desvios e cairiam no lago, que, ali, tem os seus dois metros de profundidade, mais ou menos. Trata-se, evidentemente, dum esquema do Vauban ou do Cohorn da poca. A construo mostra no conhecer o arquitecto nem argamassa, nem qualquer outro tipo de cimento, nem de ser capaz de lanar
um arco, construir um telhado ou abrir uma escada. Mesmo nesta ignorncia, Porm, sabia como escolher os locais, regulamentar o seu acesso e dar uma correcta formao s suas obras, j que todas evidenciam um conhecimento das artes pouco condicente com tanto desconhecimento de arquitectura. Sempre julguei que um dos mais curiosos e valiosos objectivos das pessoas interessadas em antiguidades seria o descobrir os progressos da sociedade nos seus esforos, desde h muito para trs, para procurar melhorar a rudeza das suas primeiras tentativas at alcanarem a excelncia ou, como frequentemente sucede, fazerem novas e fundamentais descobertas, que, sobrepondo-se a conhecimentos mais antigos, neles se adaptam. Um exemplo seria a descoberta recente do gs, suficientemente desenvolvida de modo a poder ser aplicada no uso domstico, levando, daqui a algumas centenas de anos, os cabeas da Sociedade de Antiqurios a, perante umas espevitadeiras, criarem as mais sbias teorias acerca da forma e fim de tais acessrios Dentro do mesmo princpio, vejo o curioso castelo de Conningsburgh (a poro saxnica dele, claro) como um passo em frente naquela rude arquitectura, se tal nome era, como natural, j conhecido pelos Saxes e outras gentes do Norte. Os construtores j sabiam usar argamassa e fazer telhados em edifcios, o que representava grandes melhoramentos em relao ao burgh original. Mas, no seu traado redondo, formato apenas prprio dos castelos mais antigos, as divises como que escavadas nas paredes e muralhas, a dificuldade de acesso entre os andares, Conningsburgh ainda retm a simplicidade inicial e revela claramente os muitos passos que os homens teriam de ter dado desde os seus primitivos abrigos, como as galerias do castelo de Mousa, at aos esplndidos castelos normandos de severa graa gtica. Ignoro se o que digo novidade e se um exame mais atento o confirmar, mas penso, baseado na minha apressada visita, que Conningsburgh ser de interesse para quem se dedicar a estudos mais profundos da arquitectura castrense anterior Conquista normanda. Seria conveniente fazer-se um modelo de cortia do castelo de Mousa, uma vez que em plano no se entende bem. O de Conningsburgh poder ser descrito assim: "O castelo grande e situado numa agradvel encosta subindo desde o rio, mas muito abaixo do monte onde cresceu a cidade, e fica num extremo dum magnfico e frtil vale, num anfiteatro florestado por onde corre o manso Dom. Perto do castelo encontra-se a elevao que se diz ser o tmulo de Hengist. A entrada flanqueada esquerda por uma torre redonda de base, alargando-se ao de leve, semelhante qual existem vrias outras na muralha exterior, A entrada possui pilares para o porto e, do lado leste, o fosso e os aterros so duplos e muito fundos. No cimo do muro do adro da igreja v-se um tmulo com dois corvos ou pssaros semelhantes em altorelevo. No lado sul do adro h uma pedra em forma de caixo, com um homem a cavalo nela esculpido, outro homem com um escudo lutando com uma serpente alada e ainda outro atrs dele, com escudo tambm. Pertenceria, talvez, a um dos estranhos cruzeiros vulgares na regio. O nome de Conningsburgh, que aparece j em edies antigas da Britannia, leva a concluir-se ter sido residncia de reis saxnicos. Pertenceu, depois, ao rei Harold. O Conquistador ofereceu-o a William de Warran, com todos os privilgios e jurisdio
extensiva a vinte e oito vilas. Num dos cantos da sua rea, que irregular, eleva-se uma torre maior, ou de menagem, numa elevao onde h, ainda, seis botarus, que se estendem escorando e suportando a construo e que, continuando, terminam em torrees. A torre no interior forma um crculo completo de seis metros e trinta, tendo as paredes quatro metros e vinte de espessura. A subida para dentro da torre feita por uma escaleira muito ngreme de um metro e trinta e cinco de largo, saindo do lado sul e conduzindo a um portal baixo, sobre o que existe um arco cruzado por uma pedra de trave. para l desta porta h uma escada que atravessa a parede sem comunicar com a diviso do primeiro piso no centro da qual se abre a passagem para a masmorra. Nenhum destes compartimentos iluminado a no ser por uma abertura no cho do terceiro andar, quarto que, como o que lhe fica por cima, de macia pedra lavrada, com foges e um arco apoiado em colunas. No terceiro andar, ou quarto da guarda, v-se uma pequena alcova com uma friesta, qui um quarto de dormir, e um nicho para uma imagem ou pia de gua benta. Mr. King entende ser este um castelo saxo dos primeiros anos da Heptarquia. Mr. Watson descreve-o como segue: "Do primeiro para o segundo andar (o terceiro a contar de baixo) h uma escada de um metro e meio de largo. A escada seguinte, a que se chegava talvez por uma escada de mo, leva ao quarto andar. A dois metros da porta, no topo da escada, h uma abertura virada quase para leste, acessvel se se caminhar pelo saliente da parede que vinte centmetros menos espessa ali em cima. Esta ltima abertura d para um quarto ou capela com trs metros por trs metros e sessenta e quatro metros e meio de p-direito, arcada, de cantaria e suportada por colunas pequenas e cilndricas. Os seus capitis e arcos so saxnicos. Possui uma abertura virada a nascente e em cada lado da parede, a cerca de um metro e vinte do solo, esto pias de pedra e canos de ferro para levar gua atravs ou para dentro da parede. A capela faz parte dum dos botarus, mas no se nota de fora, pois at a friesta, que comprida, mal se v. No lado esquerdo desta capela h um oratrio com dois metros e quarenta por metro e oitenta, metido no muro, com um nicho e um postigo. A quarta escada, vinda debaixo, a trs metros da porta da capela, conduz at ao topo da torre, por dentro da muralha, que, em cima, no tem mais de trs metros. O p-direito de cada andar de quatro metros e meio, pelo que a torre ter uns vinte e dois metros de alto. O seu interior forma um crculo com cerca de trs metros e sessenta de dimetro. O poo, no fundo da masmorra, est cheio de pedras. " Edio da "Britannia" de Camden, de Gough, 2 ed., vol. in p. 267. (Fim da nota.)
Quando Ricardo Corao de Leo e o seu squito se aproximaram da rude mas imponente construo, esta no ostentava as defesas extensas que agora tem, o arquitecto saxo esgotara a sua arte tornando a Torre principal defensvel e no construra volta mais do que uma grosseira paliada.
em curso exquias do senhor defunto. No ostentava qualquer emblema demonstrativo do nascimento e categoria do finado, pois os brases eram ainda uma novidade entre a prpria cavalaria normanda e totalmente desconhecidos pelos Saxes.
No entanto ao porto via-se outro estandarte, com um cavalo branco, o smbolo bem conhecido de Hengist, indicando a nacionalidade e a estirpe do morto. volta do castelo era a confuso, pois esses banquetes funreos davam lugar a geral e profusa hospitalidade, no s para os parentes, mas tambm para quem quer que passasse. A riqueza e a nobreza do falecido exigiam que o costume fosse seguido a rigor. De conformidade, viam-se vrios grupos subindo e descendo o monte, onde o castelo se situava, e, quando o rei e os seus acompanhantes atravessaram os portais, depararam-se-lhes cenas pouco condicentes com o motivo do ajuntamento. Aqui, cozinheiros tratavam de assar bois enormes e carneiros, ali, pipos de cerveja prontos a serem servidos a quem fosse chegando. Via-se gente de toda a sorte devorando a comida e emborcando as bebidas postas sua discrio. Um servo saxo seminu procurava apagar num s dia a quase fome e secura de seis meses, enquanto burgueses e comerciantes, mais evoludos, iam engolindo os seus petiscos e apreciando a qualidade da cerveja. Alguns normandos mais pobres, que se reconheciam pelo queixo rapado e roupagem curta, apreciavam com desdm as solenidades, embora partilhassem com todo o gosto do que de graa lhes era oferecido. Havia, claro, mendigos s dzias, a par de soldados recm-chegados da Palestina (de seu moto-prprio, imagina-se), vendedores ambulantes expondo os seus artigos, artfices em busca de emprego,. palmeiros e padres errantes, menestris saxes, bardos galeses, orando ou tocando melanclicas msicas
nas suas harpas, crowths e rotes (2). Um deles elogiava Athelstane em dolente panegrico, enquanto outro, em poema genealgico, ia dizendo os complicados nomes da sua fidalga linhagem. Bobos e malabaristas no faltavam e ningum via qualquer falta de respeito no exerccio das suas artes. Na verdade, o pensar dos Saxes quanto a estes momentos tinha tanto de rude como de natural. Se a dor fazia sede, bebia-se, se dava fome, comia-se. Se se estava abatido e triste, havia motivos, havia formas, para se animarem e se divertirem. os assistentes sabiam disso e tratavam de se consolar, se bem que, de quando em quando, recordando-se do motivo que ali os trouxera, os homens gemessem e as mulheres, que eram muitas, carpissem em altos gritos. Tal era O espectculo que Conningsburgh oferecia a Ricardo e aos seus. O administrador, que no se dignava ligar aos grupos de convidados menores, constantemente para c e para l, a no ser nos casos em que era necessrio manter a ordem, foi atrado pelo aspecto imponente do monarca e de Ivanho, at porque, como se lembraria depois, aquelas feies lhe eram vagamente familiares. Ainda, alm disso, era raro, em
cerimnias saxnias, aparecerem cavaleiros, pelo que a sua presena teria de ser vista como honra especial para com o finado e sua famlia. Deste modo, nas suas vestes negras e segurando o basto branco da sua posio, abriu-lhes caminho entre a multido e levou-os at junto da entrada da torre. Gurth e Wamba logo encontraram conhecidos entre os presentes e preparam-se para por ali ficarem at que os chamassem. *2.. Crowths, ou crowds, eram uma espcie de violinos. A rote, um gnero de viola, ou, melhor, realejo, cujas cordas eram comandadas por uma roda, donde O Seu nome.
Captulo XLII Encontrei-os a Marcelo velando, Ao som de muitas suaves melodias, De cantos, lgrimas e elegias, Carpideiras o morto a carpir, Toda a noite gritando, sem sorrir. - Pea antiga O acesso torre de menagem de Conningsburgh muito peculiar, reflectindo a rude simplicidade dos dias em que ela foi construda. Uma escada de degraus ngremes e estreitos, quase precipituosa, leva a um baixo portal do lado esquerdo, onde, o curioso por coisas antigas pode, ou podia, pelo menos h uns anos atrs, seguindo outra pequena escada cavada na parede principal, chegar ao terceiro andar da construo. Os dois inferiores so masmorras ou armazns sem ar ou luz, salvo os que vm duma abertura quadrada no terceiro andar, com o qual deveriam comunicar por escadas de mo. O acesso ao ltimo piso feito por escadas dentro do botaru exterior. Foi por esta difcil e complexa entrada que o bom rei Ricardo, seguido pelo seu dedicado Ivanho, foi conduzido ao apartamento circular que ocupa todo o terceiro piso a contar do solo. Wilfred aproveitou a ocasio para tapar o rosto com o manto, pois fora tido como conveniente o no se apresentar ao pai sem que o rei lhe fizesse sinal para tal. No apartamento, volta duma grande mesa de carvalho, sentavam-se cerca de uma dzia de representantes das mais dignas famlias saxnicas dos condados adjacentes. Eram todos velhos, ou, pelo menos, de certa idade, j que os mais novos, para grande aborrecimento dos seus maiores, haviam, como Ivanho, saltado a barreira que h meio sculo separava os Normandos, vitoriosos, dos Saxes, vencidos. Os olhos baixos e expresses tristes destes venerandos senhores, o seu silncio e posturas sombrias, contrastavam fortemente com a descontraco que reinava na parte de fora do castelo. As suas cs e negros mantos soltos enquadravam-se bem naquele esquisito e rude apartamento que ocupavam.
Pareciam antigos adoradores de Woden, ressuscitados para carpirem a decadncia da sua glria passada. Cedric, embora ocupando um lugar igual ao dos demais, assemelhava ser, por acordo geral, o principal da assembleia. A entrada de Ricardo, que, para ele, era o Cavaleiro do Aloquete, ergueu-se muito compenetrado, dando-lhe a usual saudao de Waes hael, e, simultaneamente, levantou uma taa. O rei, para quem os costumes dos seus sbditos ingleses no eram desconhecidos, replicou com as palavras apropriadas, Drinc hael, e serviu-se duma taa que o copeiro lhe passara. A Ivanho foi dirigida uma semelhante cortesia, que acusou baixando apenas a cabea, no fosse o pai reconhecer-lhe a voz. Terminado este cerimonial, Cedric, dando a mo a Ricardo, conduziu-os a uma pequena e tosca capela, ao lado, encaixada, por assim dizer, na parede. Como ela dispunha somente dum postigo, seria muito escura se l dentro no ardessem duas tochas, cuja rubra e fumarenta luz iluminava o tecto arcado, as paredes nuas, o rude altar de pedra e a cruz, tambm de pedra, que ali havia. frente do altar estava um atade com trs padres de cada lado, dedilhando os seus rosrios e resmungando as suas oraes, com grandes mostras exteriores de profunda devoo. Pelo servio seriam pagas boas graas ao seu convento, o de Santo Edmundo, pela me do finado. Assim, e para que fossem bem merecidas, todos os irmos, excepto o sacristo coxo, tinham ido para Conningsburgh, onde, por turnos, seis deles estavam ininterruptamente praticando os ritos devidos junto do caixo de Athelstane, enquanto os restantes aproveitavam para compartilhar dos petiscos e divertimentos que estavam sendo oferecidos. Mantendo a sua pia guarda e companhia, os bons monges prestavam especial ateno de modo a nunca interromperem os seus hinos, no fosse Zerneboc , o velho demnio saxo, aproveitar-se e pr as garras no falecido Athelstane. Tinham tambm todo o cuidado em no permitir que nenhum leigo tocasse a mortalha que servira no funeral de Santo Edmundo, profanando-a com as suas impuras mos. Se, na realidade, alguma entre todas estas aces fosse de alguma utilidade para o defunto, ele teria de facto todo o direito a esper-las, pois, alm de cem marcos de ouro, pagos com almas, a me de Athelstane revelara a sua inteno de doar quela fundao as melhores terras que ele possura, garantindo assim oraes perptuas no s pela alma dele como pela do seu falecido marido. Ricardo e Ivanho seguiram Cedric, o Saxo, at ao morturio, onde o ltimo lhes indicou com solenidade o extemporneo descanso final de Athelstane. Seguindo-lhe o exemplo, benzeram-se devotadamente, balbuciando umas oraes pela bem-aventurana da alma do defunto.
Executada esta piedosa atitude, Cedric fez-lhes sinal para que seguissem o seu silencioso vogar pela sala. Subiu uns poucos degraus e, com grande cautela, abriu a porta do oratoriozinho junto da capela. Era de dimenses reduzidas e, como a capela, construdo na prpria muralha. Como o postigo que tinha estava virado a poente e se alargava para cima, um raio de sol, caindo por ele, penetrava, iluminando uma mulher de aspecto muito digno e cujo rosto continha ainda todas as marcas duma
grande beleza. As suas longas vestes de nojo e a sua negra touca realavam-lhe a brancura da pele e a beldade das claras e exuberantes tranas, onde nenhum cabelo branco surgira ainda. Mostrava-se profundamente triste, mas resignada. Numa mesa de pedra, sua frente, viam-se um crucifixo de marfim e um missal com as pginas plenas de maravilhosas iluminuras e a capa recamada de ouro. - Nobre Edith - disse Cedric, aps profundo silncio premeditado, para que Ricardo e Ivanho observassem bem a senhora. - Eis aqui ilustres desconhecidos que desejam apresentar-vos os seus psames. Um deles o bravo cavaleiro que to valorosamente lutou pela defesa daquele que ora lamentamos. - Os meus agradecimentos pela vossa bravura - disse a dama -, ainda que o Cu a no tivesse tomado em conta. Agradeo de qualquer modo a vossa gentileza, e a do vosso companheiro, que vieram perante a viva de Adeling e me de Athelstane nesta hora dolorosa e de lamentaes. Cuidai bem deles, meu querido parente. Confio-vo-los para que nada lhes carea sob este tecto. com uma grande vnia me dorida, os visitantes retiraram-se atrs do seu guia. Outra escada coleante levou-os a outra sala de tamanho idntico ao da primeira onde tinham ido e que, igualmente, ocupava todo o andar imediatamente superior. Dali, mesmo antes de a porta se abrir, saa msica coral, grave e melanclica. Entrando, viram-se na presena duma vintena de matronas e donzelas, de sangue azul saxo. Quatro delas, com Rowena a dirigi-las, cantavam um hino pela ama do defunto, do qual eles s conseguiriam recordar o pouco que se segue: P s e p sers, Nada mais tu dars, Tua alma se foi, Foi do que a encerra Ser comida pela terra Como a todos si. Agora, s, sozinha, Tua alma caminha, Procurando lugar
Onde ser castigada Pla maldade causada Aqui, neste passar. A sofrers tortura, Mas a Virgem mui pura Dela te livrar. Graas a oraes, Salmos e canes, Ela te livrar. Enquanto esta endecha era cantada, baixo e circunspectamente, outras bordavam um grande plio destinado a cobrir o caixo de Athelstane, com toda a agilidade e arte, e outras seleccionavam flores dos cestos ali colocados, preparando coroas. Portavam-se com o maior decoro, se bem que sem grandes
evidncias de perturbao. No entanto, de quando em vez, um cochicho ou sorriso tinham de lhes ser calados pelas mais velhas e muitas das raparigas se mostravam bem mais interessadas em ver se os vestidos lhes ficavam bem do que nas ttricas cerimnias que decorriam. Nenhuma destas atitudes, sejamos francos, se alterou com a entrada dos dois cavaleiros, que, pelo contrrio, originou muitos olhares, espreitadelas e segredinhos. Apenas Rowena, demasiado orgulhosa para se mostrar v, cumprimentou o seu salvador com uma demorada saudao, sria mas no dorida e, qui, muito mais preocupada com o destino de Ivanho do que com o funeral do seu parente. para Cedric, porm, que no discernia muito bem um certo nmero de coisas, a dor da sua pupila parecia-lhe mais funda do que a de qualquer outra das donzelas, pelo que achou por bem declarar ser ela "a noiva do nobre Athelstane". de crer que tal afirmao no ter feito aumentar muito a simpatia de Wilfred pelos doridos de Conningsburgh... Tendo assim feito os visitantes passar pelos vrios apartamentos onde, sob formas diversas, as exquias de Athelstane se celebravam, Cedric transportou-os para um quartinho destinado, como afirmou, aos hspedes de maior categoria, que, talvez, no conhecendo bem o morto, preferissem no se juntar queles mais afectados pela lamentvel perda. Depois de ver se tudo estava em ordem, ia retirar-se, quando o Cavaleiro negro lhe pegou na mo, dizendo: - Permito-me lembrar-vos, nobre fidalgo, que, quando nos separmos, vs me haveis prometido um obsquio em recompensa do servio que tive a felicidade de vos prestar. - Est concedido, logo que o mencioneis. No entanto, num momento destes... - Tambm isso me veio ideia - concordou o rei -, mas, sendo o meu tempo curto, permito-me dizer que entendo que,
ao fechar-se o tmulo de Athelstane, certos preconceitos e opinies tomados de nimo leve com ele devero ser enterrados. - Sr. Cavaleiro do Aloquete - cortou-o Cedric, corando um pouco -, julgo que essa recompensa vos dir respeito somente e a mais ningum, pois, no que respeita honra da minha casa, os estranhos no tm voz. - Nem eu imporia a minha - aquiesceu o rei suavemente -, a no ser que me reconheais tal direito. Por agora, julgais-me ser apenas o Cavaleiro do Aloquete... Reconhece-me ento como Ricardo Plantageneta. - Ricardo de Anjou! - bradou Cedric, recuando de surpresa. No, nobre Cedric!... Ricardo de Inglaterra!... cujo maior interesse e desejo o de ver os seus filhos unidos todos uns aos outros. Ento, valoroso fidalgo, no vos ajoelhais perante o vosso prncipe? - A sangue normando nunca o fiz - respondeu Cedric. - Guarda pois a tua homenagem - acedeu o monarca - para quando te tiver provado que protejo igualmente normandos e saxes. - Prncipe - declarou Cedric - sempre fiz justia vossa bravura e valor. No ignoro igualmente a vossa pretenso coroa como descendente de Matilda, sobrinha de Edgar Atheling e filha de Malcolm da Esccia. Acontece, todavia, que Matilda, ainda que de sangue real saxo, no era herdeira do trono. - No serei eu a discutir o meu ttulo contigo, bom fidalgo
disse Ricardo calmamente. - Pedir-te-ei somente que olhes em teu torno e me apontes quem comigo entendes deva competir. - E vieste tu aqui, Prncipe, para me dizeres isso? perguntou Cedric. - para me mostrares a runa da minha raa, exactamente no momento em que a campa se vai fechar sobre o ltimo rebento da realeza saxnia? - A face escureceu-se-lhe. - Haveis soltado palavras duras e inoportunas... - No, no, pela Santa Cruz - interps o soberano. - Apenas as disse com toda a confiana que um homem de valor tem noutro valente tambm. - Falaste bem, rei... pois rei reconheo seres e continuares a ser, mesmo com a minha dbil oposio. Eu nunca o poderia evitar, embora a tentao seja muita e ao alcance. - Tratemos antes da minha recompensa - mudou o rei -, que reclamo, com toda a confiana, no obstante no reconhecerdes a legitimidade da minha soberania. Exijo-te que, como homem de palavra e que no quebra juras, sob pena de te considerar um falso e nidering (1), que perdoes e recebas nos teus braos paternais o bom cavaleiro Wilfred de Ivanho. *1.. Infame.
Tenho interesse pessoal nessa reconciliao... a felicidade dum amigo meu e um acabar de dissenes entre dois dos meus fiis sbditos. - Aquele , ento, Wilfred? - apontou Cedric para o filho. - Meu pai! Meu pai! - exclamou Ivanho, prostrando-se- lhe aos ps. - Perdoai-me, peo-vos! - Tens o meu perdo, filho meu - concedeu Cedric, fazendo-o levantar-se. - O filho de Hereward sabe cumprir a sua palavra, mesmo quando dada a um normando. Simplesmente quero ver-te dentro de roupas inglesas. Sem capas curtas, bons arrebicados, sem plumagem, dentro da minha decente casa. Aquele que volta a ser o filho de Cedric no pode negar a sua ancestralidade inglesa... Ias dizer qualquer coisa - cortou-o com severidade -, e eu calculo o qu. Lady Rowena tem de cumprir dois anos de luto pelo noivo. Todos os nossos antepassados saxes nos amaldioariam se procurssemos um novo casamento para ela perante a campa daquele a que estava prometida. Aquele que, por nascimento e nobreza, tanto a merecia, mas que se foi. O fantasma de Athelstane rasgaria as suas sangrentas mortalhas e surgiria nossa frente para proibir tal desonra sua memria. Foi como se as palavras de Cedric fizessem levantar um espectro, pois, mal acabara de as proferir quando Athelstane, amortalhado, escancarou a porta e se apresentou perante eles, plido e desfigurado como algo vindo do Alm (2). Os resultados desta apario junto dos presentes foram pavorosos. Cedric encostou-se parede, o mais longe que lhe era possvel e ali apoiado, pois quase nem se tinha em p, fixava, esgazeado, o amigo, com a boca aberta. Ivanho benzeu-se, orando em saxo, latim e francs, enquanto Ricardo entoava um Benedicite, logo seguido dum Mort de ma vie!, praguejado. - Em nome do Santo Deus! - dirigiu-se Cedric ao suposto espectro do defunto amigo -, se s mortal, fala! Se s um esprito, diz-nos porque nos procuras ou se existe algo que eu
possa fazer para que em paz descanses. Vivo ou morto, fala comigo, nobre Athelstane, fala comigo, Cedric! - F-lo-ei - respondeu a apario com toda a compostura - logo que tenha retomado o flego e quando me deres tempo. Vivo, disseste? To vivo quanto pode estar algum que, vo trs dias, melhor, trs sculos, est a po e gua. Sim, po e gua, pai Cedric! *2.. A ressurreio de Athelstane tem sido muito criticada como uma improbabilidade, mesmo nesta to fantasiosa obra. Trata-se duma manobra a que o autor teve de recorrer para satisfazer a vontade do seu impressor e amigo, que se mostrava inconsolvel ao ver aquele saxo, pura e simplesmente, enviado para a cova.
Por todos os santos do Cu! H trs dias que no me passa na gorja coisa melhor, e valha-me Deus o eu pod- lo dizer agora! - Mas, nobre Athelstane - disse o Cavaleiro Negro -, vi com estes olhos o fero Templrio abater-vos l para o fim do assalto a Torquilstone e pensei, tal como Wamba, que ele vos rachara de alto abaixo at aos dentes (3). - Pensastes mal, Sr. Cavaleiro - respondeu Athelstane -, e Wamba mentiu. Os meus dentes esto no stio e em ordem, como demonstraro refeio que quero j, graas espada do Templrio, que me bateu de lado, quando a desviei com a minha boa clava. Se tivesse um elmo, nem teria sentido nada e ter-lhe-ia respondido de modo tal que lhe cortaria a retirada. Tal como aconteceu, ca, estendido e estonteado, mas no ferido. Outros dos dois campos tombaram em cima de mim, de forma que s recuperei os sentidos j dentro do caixo, aberto, graas a Deus!) junto do altar de Santo Edmundo. Espirrei, gemi, acordei, e ter-me-ia levantado se o sacristo e o abade no acorressem ao barulho, surpresos e, decerto, desagradados ao verem vivo aquele de quem se criam herdeiros. Pedi vinho e deram-me uma gota, mas devia estar drogado, pois adormeci, s acordando muitas horas depois, com os braos enfaixados e os ps to amarrados que ainda me doem os tornozelos lembrana, no meio da escurido total, talvez na masmorra do maldito convento deles. Pelo ar abafado, parado e cheiro mofento, entendi tambm ser stio de enterros. Pensava muita coisa estranha sobre o que me acontecera, quando a porta se abriu e os patifes dos monges apareceram. Queriam convencer-me de que estava no Purgatrio, mas eu conhecia muito bem a voz grossa e arfante do abade. Por So Jeremias! Como o seu tom era diferente daquele que usava para me pedir que lhe passasse um pouco mais de carne! Aquele co comeu em minha casa desde o Natal at aos Reis. - Tende calma, nobre Athelstane - recomendou o rei, - Tomai ar. Contai a vossa histria mais devagar. Diabos me levem se ela no merece ser ouvida como se dum romance se tratasse. - Ah! Mas, pela vara de Bromeholm, no houve ali romance nenhum! - bradou Athelstane. - Um po de cevada e uma pinga de gua foi tudo quanto eles me deram, aqueles sovinas traidores que o meu pai encheu com carne de porco e trigo quando eles andavam a massacrar os pobres dos servos e dos escravos com as suas lamrias. Vboras dum ninho de vboras! Darem po de cevada e gua a um protector como tenho sido para eles! vou
deitar-lhes fumo na toca, nem que me excomunguem! *3.. Como j se disse atrs, Sir Walter Scott usa as segundas pessoas do singular e do plural indiferentemente. (N. do T.)
- Em nome de Nossa Senhora, nobre Athelstane - pediu Cedric, agarrando-lhe um brao -, como escapastes a to grave perigo? Tiveram piedade? - Piedade, eles? - berrou Athelstane. - As rochas derretem-se ao sol? Ainda ali estaria se no fora o distrbio que veio do convento (que, agora, sei tratar-se de movimento para irem comer durante a minha fnebre celebrao), que os afastou, pois queriam sepultar-me vivo, Bem os ouvi a grasnar salmos pela alma do corpo com que, mal sabia eu, queriam acabar. Foram-se, de qualquer modo, e eu fiquei espera de alimentos. Em vo, claro, pois o reumtico do sacristo estava mas era a encher-se sem se lembrar de mim. Por fim apareceu, aos bordos e a feder a vinho tratado. A animao desempederniu-lhe o corao, levando-o a dar-me uma fatia de empada e uma garrafita de vinho, em lugar da rao anterior. Comendo e bebendo, senti-me mais fortalecido e, ao ver que o sacristo, demasiado tocado para cumprir bem as suas funes de chaveiro, deixara a porta aberta, ganhei nimo. A luz, a comida e o vinho puseram-me a imaginao a trabalhar. A argola a que as minhas correntes se prendiam estava bem mais ferrugenta do que eu e o abade imaginvamos, pois at o ferro no aguenta aquelas caves infernais... - Tomai ar, nobre Athelstane - aconselhou outra vez Ricardo -, e petiscai algo antes de prosseguirdes com to ttrico relato. - Petiscar? - repetiu Athelstane. - J comi hoje cinco vezes e, mesmo assim, um naco daquele apetitoso presunto no me cairia nada mal. Peo-vos, ilustre senhor, que o faais acompanhar dum bom copo. Os presentes, ainda embatocados, satisfizeram o ressuscitado, que continuou. - Tinha, no momento, audincia acrescida, j que Edith, aps ter dado algumas ordens a executar dentro do castelo, entrara atrs do morto-vivo, no compartimento dos visitantes, juntamente com tantos convidados, homens e mulheres, quantos ali coubessem, ficando muitos na escadaria a receber verses. completamente modificadas dos factos que iam, ainda mais alterados, passando para os de baixo, que, por sua vez, os transmitiam populaa l fora completamente deturpados. Athelstane, como dizamos, continuou descrevendo a sua fuga: Solto da argola, arrastei-me pelas escadas acima, to bem quanto um homem algemado e fraco de jejum o pode conseguir. com esforo imenso e guiado pelo som alegre de msica, alcancei o quarto do ilustre sacrista, que, se mo permitem afirmar, dizia uma missa-negra ao lado dum enorme e espadado irmo, de hbito e capuz cinzentos, que recordava mais um ladro do que um monge. Surgi no meio deles e com a minha mortalha e correntes chocalhando, como uma alma do outro mundo. Ambos se mostraram estupefactos, mas, quando virei o sacristo com um murro, o outro desferiu uma tremenda porrada com um varapau...
- Tem de ser o nosso amigo Frei Tuc - comentou Ricardo para Ivanho. - Que seja o Demo em pessoa! - admitiu Athelstane. Felizmente, falhou-lhe a pontaria e quando me viu avanar, deu s de vila-diogo. Libertei as minhas pernas com uma chave que estava cinta do sacristo. Pensei rebentar-lhe os miolos, mas a lembrana da talhada de empada e do vinho que o maroto me levara travaram-me o intento. Descarreguei-lhe meia dzia de pontaps, deixei-o no cho, introduzi na bolsa um bocado de carne cozida e uma bota de vinho com que os dois venerveis irmos se estavam a regalar, fui ao estbulo, onde encontrei o meu cavalo preferido, que, qui, fora posto de parte para o servio do abade. Vim to depressa quanto pude para aqui, espavorindo todos com que me cruzei, sobretudo porque tapei a cabea com o carapuo para que no me distinguissem. S consegui entrar no meu prprio castelo porque me julgaram ser o ajudante do malabarista que divertia as pessoas l dentro, esquecendo-se de que assistiam a um funeral. O administrador julgou-me disfarado de urso para uma representao e permitiu-me o acesso. Apresentei-me a minha me, comi qualquer coisita e vim procurar-vos, meu bom amigo. - E encontraste-me - concluiu Cedric - pronto a levar avante os nossos projectos de honra e libertao. Nenhum dia ser mais auspicioso do que o de amanh para a nobre raa saxnia. - No me faleis em livrar quem quer que seja. J me livrei a mim mesmo e desejo agora punir o patife do abade. Vai ficar dependurado no alto de Conningsburgh pela capa e estola. Se as escadas forem estreitas de mais para as suas banhas, fao-o iar l para riba. - Mas, meu filho - lembrou a me -, pensa na posio dele. - Penso! nos meus trs dias de jejum - replicou Athelstane. vou sangr-los todos! Front-de-Boeuf ardeu vivo por muito menos, pois, ao menos, dava boa mesa, mesmo aos seus prisioneiros, ainda que o cozinheiro abusasse do alho. Estes hipcritas e ingratos escravos, tantas vezes autoconvidados para a minha farta mesa, onde alho no aparece, morrero! Morrero! Pela alma de Hengist! - E o papa? - recordou Cedric. - E o Demnio? - contestou Athelstane. - Morrem e no se fala mais neles. Mesmo que fossem os melhores frades do mundo, todos passariam bem sem eles. - Acalmai-vos, nobre Athelstane - disse Cedric -, esquecei essa malandragem, pensando na gloriosa carreira que se vos abre. Dizei a este prncipe normando, Ricardo de Anjou, que, mesmo tendo corao de leo, no poder ocupar o trono de Alfredo quando um dos descendentes do Confessor vive para lho disputar.
- O qu!? - bradou Athelstane. - Este o mui nobre rei Ricardo? - Ricardo Plantageneta em pessoa - confirmou Cedric. Escuso de vos lembrar que, como visitante de boa-f, no pode ser injuriado ou aprisionado. Bem conheceis os vossos deveres para com ele. - E, por minha f - disse Athelstane -, o meu dever, como sbdito, prestar-lhe menagem, com toda a minha alma e
corao. - Filho - recordou Edith -, recorda os teus reais direitos. - Lembra-te da liberdade da Inglaterra, prncipe degenerado! - gritou Cedric. - Minha me e meu amigo, acalmai-vos. Po, gua e crcere so ptimos contra ideias ambiciosas, e posso dizer que me ergui da tumba muito mais sabedor do que era quando a ela baixei. Parte dessas loucas folias fora- me incutida pelo prfido abade Wolfram, e bem vistes que tipo de conselheiro ele . Desde que essas tramias foram postas em funcionamento, no tenho feito mais do que andar daqui para ali, apanhar indigestes, golpes, prises e fome. Alm do mais, para se concretizarem, exigiriam a morte de milhares de pessoas de paz. Digo- vos: quero reinar dentro dos meus domnios e em mais parte nenhuma. O meu primeiro gesto como tal ser enforcar o abade. - E a minha pupila, Rowena? - perguntou Cedric. - No acredito que a ireis abandonar. - Pai Cedric - disse Athelstane -, sede razovel. Lady Rowena no quer saber de mim. Adora mais o dedo mindinho da luva do meu parente Wilfred do que toda a minha pessoa. Ei-la para o confirmar... No enrubesas, querida parenta, pois no vergonha nenhuma o amares um cavaleiro da corte em lugar de um fidalgote da provncia. E no te rias tambm, pois as mortalhas e rosto plido no so motivos para mofa. Bem, se queres continuar a rir, arranjar-te-ei melhor motivo. D-me a mo, ou, melhor, empresta ma, porque somente ta estou a pedir por amizade. Aqui est, primo Wilfred de Ivanho, em teu favor, renuncio... Eh!. Por So Dunstan! O primo Wilfred desapareceu. Mas, a no ser que os meus olhos ainda estejam zonzos pelo jejum, ainda agora ele a estava. Todos procuravam Ivanho, mas ele sumira-se. Descobriu-se, por fim, que um judeu tinha vindo procur-lo e que, aps curta conversa, chamara por Gurth e pelo seu armeiro e deixara o castelo. - Bela prima - dirigiu-se Athelstane a Rowena -, se no pensasse que esta partida repentina se deve a razes gravssimas... - S ento reparou que, tendo-lhe largado a mo ao notar a falta de Ivanho, Rowena, muito envergonhada com toda aquela cena, se escapara do apartamento. - Claro - comentou Athelstane -, as mulheres so bichos em que nunca se pode confiar, excepo dos monges e dos abades.
Que Deus me castigue se no contava com os seus agradecimentos e talvez com um beijo. Se calhar, esta mortalha deita olho mau, pois todos me fogem... A vs, nobre rei Ricardo, com os mais sinceros votos, presto a minha homenagem... Ricardo igualmente partira, no se sabendo para onde. Mais tarde apurar-se-ia que, no ptio, fizera o Judeu vir sua presena, trocara umas palavras com ele, pedira um cavalo, montara-o, obrigando o Judeu a fazer o mesmo noutro animal, e partira a uma velocidade que, segundo Wamba, fazia perigar o toutio do israelita. - Pela minha salvao! - exclamou Athelstane. - Esto possessos. Zerneboc entrou no meu castelo durante a minha ausncia. Volto amortalhado, sado do sepulcro, e todos desaparecem ao som da minha voz. No vale a pena pensar mais nisso. Venham, amigos que ainda restam. Vamos para o salo de
banquetes, antes que mais de vs desapaream. Conto esteja ainda bem sortido, como si nas exquias dum nobre saxo. No nos atrasemos, no v o mafarrico levar a ceia consigo.
Captulo XLIII Que os pecados de Mowbray pesem tanto para ao corcel seu mpeto travar, Atirando-o para o meio do cho. O patife, o malvado! - Ricardo III Regressemos para fora do Castelo, ou Preceptoria, de Templestowe, quando a fatal sorte de vida ou de morte de Rebeca fora lanada. Havia grande movimento e animao, como se toda a vizinhana tivesse ido para a rua, para qualquer festa ou romaria. A triste verdade que o gosto de apreciar o sangue e a morte era comum naquela poca, com os torneios e lutas singulares habituando as gentes aos sanguinolentos espectculos de valentes abatendo-se uns aos outros. Mesmo agora, quando a moral melhor compreendida, uma execuo, um desafio a doer, um tumulto, uma reunio de reformistas radicais, atraem, com perigo para ela prpria, grande multido de gente, sem outro interesse que no o de ver o que d, ou verificar se os heris do dia so mesmo bons ou no. Os olhos duma aprecivel quantidade de pessoas estavam, assim, pregados no porto da Preceptoria de Templestowe, a fim de apreciarem a procisso, enquanto um nmero maior ainda se apinhava em torno da lia pertena do estabelecimento. Este cerrado abrangia um pedao de terreno plano, colado Preceptoria, que fora cuidadosamente aplanado para que l pudessem ser praticados os desportos militares e de cavalaria. Situava-se no cume duma suave eminncia e estava rodeado por uma paliada. Uma vez que os Templrios apreciavam gente a v-los executar os seus feitos de cavalaria, bancadas e galerias encontravam-se ali disposio de todos. Nesta altura tinha sido montado um trono para o Gro- Mestre, no lado poente, com bons lugares para os preceptores e cavaleiros da Ordem. Sobre estes drapejava o sagrado estandarte denominado Le Beau-Sant, a insgnia, como o seu nome era o grito de guerra dos cavaleiros do Templo.
No lado oposto da lia, uma pilha de toros, dispostos em torno dum mouro profundamente enterrado no solo, de forma a deixarem espao para a vtima que iam consumir poder entrar no crculo fatal, no centro do qual seria presa estaca com cadeados que j l se encontravam. Junto deste aparelho de tortura e morte viam-se quatro escravos negros, cuja cor e feies, ento pouco conhecidas em Inglaterra, atemorizavam a massa que os fixava, como se fossem demnios aguardando para levarem a cabo as suas infernais tarefas. Aqueles indivduos quase no se moviam, excepto a sinais do que parecia comand-los, para ento ajustarem ou acrescentarem qualquer
cavaco. No olhavam para ningum, parecendo afastados de tudo que no fosse a sua horrvel funo. Se falavam uns com os outros, os beios bolbosos abriam-se-lhes, deixando mostra dentes alvssimos, como que num esgar de antecipao ideia do que iam fazer. O povo, nesses momentos, no podia deixar de julgar serem eles os espritos com que a bruxa comunicara e que, chegado a termo o seu tempo, tinham acorrido para colaborar no seu medonho castigo, Cochichavam entre si, relatando o que Satans tinha ultimamente feito, exagerando, como seria de esperar, as demonacas capacidades. - Ouvistes, padre Dennet - dizia uma daquelas bisonhas criaturas, j bastante velha -, que o Diabo em carne e osso levou o grande fidalgo saxo Athelstane de Conningsburgh? - Ouvi. Mas teve de o trazer de volta, graas a Deus e a So Dunstan. - Como ? - perguntou um jovem vivo, com um gibo verde bordado a ouro e tendo a seu lado um rapazote gordo com uma lira s costas, revelativa da sua profisso. Alis, o menestrel parecia ter categoria, pois, alm da sua rica vestimenta, trazia ao pescoo um cordo de prata do qual pendia a wrest, ou chave, com que afinava o seu instrumento. No brao direito carregava uma placa, de prata tambm, que, em lugar de os tentar, como era usual, o braso do fidalgo de quem dependia, tinha somente gravada a palavra SHERWOOD. - Que quereis dizer com isso? - disse metendo-se na conversa. - Vim procurar um motivo para as minhas rimas e, por Nossa Senhora, parece que encontrei dois! - Est mais do que provado que Athelstane de Conningsburgh, depois de ter estado morto durante quatro semanas... - Isso no possvel - interveio o menestrel -, pois vi-o vivo no torneio de Ashby-de-la-Zouche. - Morto ou trasladado - disse outro -, ouvi os monges de Santo Edmundo cantar-lhe hinos fnebres. Alm disso, o Castelo de Conningsburgh abriu-se para um banquete fnebre, onde davam esmolas e onde eu teria ido se a Mabel Par ins...
- Sim, senhor, Athelstane era morto - confirmou com um abaixar de cabea, o velhote -, e tanto pior, pois o velho sangue saxo... - Contai-me, contai-me essa histria - pediu insistentemente o menestrel. - Sim, sim. Arranja l uma histria - sugeriu um corpulento frade do grupo e que segurava um pau que tanto parecia um bordo de peregrino como um varapau e que, certamente, seria qualquer um deles, conforme as convenincias. - Venha a tua histria - insistiu -, no deixes passar o dia sem no-la contar. O tempo urge. - Com licena de Vossa Reverncia - disse Dennet -, um padre bbado veio de visita ao sacristo de Santo Edmundo... - No agrada a nossa reverncia - atalhou o frade -, a existncia dum bicho que seja um padre com os copos, ou, melhor ainda, que um leigo a ele se refira. Tende modos, homem, e dizei antes que a santa criatura tinha estado a meditar, o que pe a cabea roda e os ps pouco seguros, como quando a barriga est cheia de vinho novo. J me encontrei nesse desagradvel estado. - Est bem - prosseguiu Dennet -, um santo irmo veio visitar o sacristo de Santo Edmundo. Bem, o visitante era um padre
feito pressa, que caa metade dos veados que so abatidos na floresta, que gosta do som duma caneca mais do que do da campainha e acha que uma boa refeio superior ao brevirio. Tambm um bem- disposto que volteia o cajado, estica o arco e dana como ningum no Yor shire. - Esse ltimo troo do teu discurso - comentou o menestrel -, acaba de te salvar uma ou duas costelas. - Schiu! No lhe tenho medo - disse Dennet. - Posso estar velho, mas quando combati pela Cruz e pela caldeirinha em Doncaster... - Esquece isso! Conta a histria - pediu o menestrel. - Pronto. A histria apenas: Athelstane de Conningsburgh foi enterrado em Santo Edmundo, - peta e das grandes - vociferou o frade. - Vi-o ser levado para o seu Castelo de Conningsburgh. - Ento contai vs a histria, senhores - amuou-se Dennet ao ver-se contradito. Deu um trabalho at que o menestrel e o outro o convencessem a retomar a palavra. - Aqueles dois frades sbrios - soltou por fim -, j que o reverendo, aqui, os quer sempre assim, tenham ou no bebido muito ou pouco durante o dia, foram despertados por uns angustiantes gemidos e arrastares de correntes e Athelstane entrou-lhes pelo quarto dentro, gritando: "Ah! pastores malditos!" - falso - atalhou o frade -, ele no abriu bico. - Com que ento - interrompeu o menestrel, afastando-se dos rsticos -, levantou-se outra perdiz?
- Fica sabendo, Allen-a-Dale - disse o eremita -, que vi Athelstane com estes olhos que a terra h-de comer. Vinha envolto numa mortalha e fedia a defunto. Nem o cheiro do melhor vinho mo limpa do nariz. - B! - exclamou o menestrel. - Ests a gozar comigo. - De modo algum - replicou o frade. - Desferi-lhe uma porrada com o meu varapau, daquelas de virar um touro, que lhe passou atravs do corpo como se este fosse de fumo. - Por Santo Humberto - bradou o menestrel. - Essa uma histria de pasmar, merecedora de ser posta a rimar com alguma velha msica. o velho frade comea a arrepender- se! - Ri-te quanto quiseres - disse Frei Tuc -, mas, se te apanho a cantar um tema desses, que o esprito maligno ou benigno mais prximo me leve j se no levas uma tosa. No nada como ests a pensar, tanto que resolvi logo fazer qualquer coisa de bom, como ver uma bruxa a arder, entrar num combate judicial ou algo semelhante, e por esse motivo aqui vim. Assim conversavam, quando o pesado sino da Igreja de So Miguel de Templestowe, um imponente edifcio erguido numa aldeia um pouco afastada da preceptoria, lhes cortou a palavra. Uma aps outra, as graves batidas encheram o vazio, com intervalos entre elas suficientes para que cada uma morresse ecoando ao longe, antes de a seguinte tudo vir a atordoar. Este bater anunciava a cerimnia a que uma multido de coraes constrangidos acorrera, olhando, no momento o porto da Preceptoria, donde viriam o Gro-Mestre, o campeo e a r. A ponte levadia foi finalmente baixada e um cavaleiro empunhando uma desmedida bandeira da Ordem saiu, precedido por seis trombeteiros e seguido pelos cavaleiros, preceptores, dois a dois, e pelo Gro-Mestre, montando um poderoso mas
modestamente arreado corcel. Atrs deste vinha Brian de Bois-Guilbert, com uma brilhante armadura, mas sem a lana, que era transportada por dois escudeiros. O seu rosto, meio tapado pela pluma do seu bon, revelava uma expresso de forte paixo, mas na qual o orgulho e a dvida se gladiavam. Plido como a cera, como se no dormisse h muitas noites, mas dominando o seu cavalo de batalha com a graa e o jeito habituais e prprios da melhor lana do Templo. Todo ele era grandioso e imponente, mas os que melhor lhe examinavam as feies logo delas afastavam a vista. De cada lado cavalgavam Conrade de Mont-Fitchet, e Albert de Malvoisin, padrinhos do campeo. Traziam roupagem de paz, as vestes brancas da Ordem. Seguiam- se outros companheiros do Templo, muitos escudeiros e pajens, de preto, aspirantes honra de um dia virem a ser cavaleiros da Ordem. Depois destes nefitos marchavam guardas apeados, tambm de negro, entre os quais se destacava a mancha branca da acusada, avanando lenta
e compassadamente para o local onde o seu destino se decidiria. Tinham-lhe sido retirados todos os ornamentos, no estivesse, por acaso, entre eles, alguns dos amuletos que Satans costuma dar s suas Vtimas para lhes retirar a capacidade de confisso, mesmo sob tortura. Um grosseiro vestido branco substitura os seus trajes levantinos. mesmo assim, era tanta a coragem e a resignao no seu rosto que, mesmo naquelas roupas sem qualquer decorao, a no serem as longas tranas pretas, faziam vir as lgrimas aos olhos de todos que a apreciavam e at os mais ferozes fanticos lamentavam que o Demo tivesse ocupado to bela habitao. Uma turba de pessoas inferiores da Preceptoria andava a seguir a ela, com toda a ordem, de braos cruzados e olhos postos no cho. Esta lenta procisso subiu a suave eminncia no cume da qual estava a lia, que entraram e percorreram, comeando pela direita e s parando quando haviam completado todo o crculo. Houve ento um burburinho momentneo, quando o Gro-Mestre e todos os outros desmontaram, excepto o campeo e os padrinhos, que, sempre a cavalo, foram conduzidos para fora da lia por escudeiros que os esperavam. A desgraada Rebeca foi conduzida para uma cadeira preta perto da pira. Viu-se que estremeceu quando olhou pela primeira vez para aquele stio horrvel, onde continuavam preparativos para o fim do seu corpo. Fechara os olhos e, certamente, rezara, pois que os lbios se lhe moviam quase imperceptivelmente. Passado um pouco, abriu os olhos, fixou a pilha, como que para com ela se familiarizar, e depois, com toda a naturalidade, afastou a vista de l. O Gro-Mestre j se sentara e, quando todos os cavaleiros da Ordem se instalaram igualmente, atrs e sua volta, de acordo com as diversas categorias, um longo e floreado trombetear anunciou ter o tribunal aberto. Malvoisin, um dos padrinhos do campeo, avanou e colocou a luva da judia, o smbolo do repto, aos ps do Gro-Mestre. - Valoroso senhor e reverendo pai - disse -, eis aqui o bom cavaleiro Brian de Bois-Guilbert, preceptor da Ordem do Templo, que, tendo aceite este repto que acabo de depor aos ps de Vossa Reverncia, se comprometeu a fazer o seu dever
combatendo, hoje, para que se prove que a donzela judia, Rebeca de seu nome, merece a sentena lida em captulo da mui sacra Ordem do Templo de Sio, condenando-a morte como feiticeira. Est aqui, repito, para batalhar, com toda a honra e cavalheirismo, caso seja esse o vosso nobre e santificado desejo. - J jurou - perguntou o Gro-Mestre - em como a causa justa e honrosa? Trazei o crucifixo e o Te igitur. - Senhor e mui reverendo pai - respondeu Malvoisin -, o nosso irmo aqui presente j prestou essa jura perante o bom cavaleiro Conrade de Mont-Fitchet. Alis, nem necessitaria de
o ter feito, uma vez que o seu adversrio descrente e no pode fazer igual declarao. A explicao foi considerada satisfatria, com grande alegria para Albert, fino cavaleiro, que previra a dificuldade, ou talvez a impossibilidade, de se conseguir que Bois-Guilbert fizesse um juramento daqueles, perante a assembleia, e recorrera quele subterfgio. O Gro-Mestre, aceite a justificao de Albert de Malvoisin, mandou que um arauto cumprisse os seus deveres. Novamente soaram trombetas e um arauto proclamou bem alto: - Oyez, oyez, oyez! Eis aqui o cavaleiro, Sr. Brian de BoisGuilbert, pronto a competir com qualquer cavaleiro livre de nascimento que deseje defender a causa da judia Rebeca como campeo, a quem ser dada igualdade de sol e de vento no campo e tudo o mais que um combate leal possa exigir. As trombetas fizeram-se ouvir mais outra vez, seguindose-lhes um absoluto silncio. - No se apresenta qualquer campeo para a apelante - comentou o Gro-Mestre. - Arauto, vai e pergunta-lhe se espera algum para defender a sua causa. O arauto obedeceu e Bois-Guilbert, virando, de sbito, a sua montada, trotou tambm para l, contrariando os conselhos de Malvoisin e Mont-Fitchet. - isto compatvel com os regulamentos? - interrogou Malvoisin, olhando para o Gro-Mestre. - , sim - informou Beaumanoir -, pois neste apelo ao Juzo Divino no se pode proibir que os adversrios se comuniquem para que a peleja melhor possa ser travada. Entretanto, o arauto dirigia-se a Rebeca nos seguintes termos: - Donzela. o honorvel e reverendo Gro-Mestre manda- te perguntar se tens campeo para por ti, neste dia, lutar, ou se te reconheces culpada e merecedora da sentena. - Dizei ao Gro-Mestre - replicou Rebeca - que insisto na minha inocncia e que reconhecer o crime corresponderia a tornar-me culpada da minha prpria morte. Dizei-lhe ainda que lhe rogo atrase tanto quanto possvel o torneio para se ver se Deus, sempre a ltima esperana dos homens, me manda um salvador. O arauto retirou-se para transmitir estas palavras. - Deus nos livre - exclamou Lucas de Beaumanoir - de permitir que judeu ou pago nos acuse de injustia. Esperaremos, at que a sombra cubra o campo de nascente a poente, a ver se algum aparece a ajudar aquela infeliz. Quando o dia acabar, ela que se prepare para com ele morrer. Esta deciso foi comunicada a Rebeca, que, primeiro, baixou a cabea em assentimento e, a seguir, cruzou os braos,
voltou os olhos para O alto, como que esperando que de l viesse o que da terra no parecia vir. Foi durante essa pausa que a voz de Bois-Guilbert lhe soou aos ouvidos. Fora em sopro, mas assustou-a mais do que o que o arauto lhe informara. - Rebeca - fizera o Templrio -, ouves-me? - Contigo nada quero, homem cruel e sem Corao - foi a resposta da pobre menina. - Est bem. Mas ser que me entendes? - insistiu o cavaleiro. - O som da minha prpria voz horrvel para mim mesmo. Desconheo o cho que piso, porque o piso e o que me trouxe para aqui. Esta fica... essa cadeira... aquelas achas... Sei que so... para o que so, mas parecem-me irreais... espectculo medonho que me apavora os sentidos com vises mais tremendas, todavia, mas em que no acredito. - A minha mente e sentidos esto lcidos - respondeu Rebeca -, ambos me dizem serem aquelas achas destinadas a acabar com o meu corpo para que, num momento horrvel de dor, possa passar para lugar melhor. - Sonhos, Rebeca, sonhos - disse o Templrio. - Vises sem nexo, rejeitadas at pelos vossos mais doutos saduceus. Escuta-me - props com animao: - h melhores possibilidades para ti do que aquelas que aqueles idiotas e aquele caquctico imaginam. Monta, atrs de mim, no meu corcel Zamor, que nunca deixou o amo ficar mal. Ganhei-o em combate singular com o sulto de Trebizonda... Monta, digo-te, e em coisa de uma hora os nossos perseguidores tero ficado muito para trs e um mundo novo se revelar perante ns, de prazer para ti, uma nova carreira e fama para mim. Rio-me do que comentarem e disserem e no me importo que apaguem o nome de Bois-Guilbert da sua lista de escravos monsticos. com sangue lavarei toda e qualquer ndoa que me ponham. - Some-te, tentador! - gritou Rebeca. - Nem nesta ltima extremidade conseguirs que me afaste um nada sequer donde estou, ainda que de inimigos rodeada, Pois tu s, certamente e ainda, o meu pior inimigo... Some-te, em nome de Deus! Albert de Malvoisin, preocupado com a demora, chegou- se, interrompendo-os. - A rapariga reconheceu-se culpada? - indagou. - Ou teima na sua inocncia? - A sua resoluo inabalvel - disse Bois-Guilbert. - Anda, ento - recomendou Malvoisin -, e ocupa o teu lugar, aguardando. As trevas crescem. Vem, bravo Bois- Guilbert. Vem, esperana da nossa ordem, que em breve encabears, - Ao falar colocara uma mo na brida do cavalo, puxando-a com firme gentileza, para que voltasse ao seu posto.
- Eh! falso vilo! - zangou-se Brian. - Que fazem as tuas mos nas minhas rdeas? - Libertando-se dele, seguiu para o topo da lia. - Ainda subsiste nimo dentro dele - observou Malvoisin em aparte para Mont-Fitchet -, mas, como o fogo- gregus, queima quem dele se abeira. Os juzes j aguardavam, na lia, h duas horas, o aparecimento dum lidador.
- H bons motivos - opinou Frei Tuc -, pois ela uma judia. Porm, segundo a minha ordem, no est bem que algum to jovem e to bela morra sem que ningum alce um dedo em sua defesa. Fosse ela dez vezes mais bruxa, mas um niquinho crist, que eu levantaria o meu varapau para o deixar tombar sobre o casco daquele altaneiro templrio, e as coisas no ficavam como esto... Era contudo opinio geral que ningum tomaria posio por uma feiticeira judia. Os cavaleiros, instigados por Malvoisin, principiavam, portanto, a murmurar que chegara a altura de se executar a sentena. Foi ento que se avistou um cavaleiro, a galope, na plancie, dirigindo- se para ali. Centos de vozes bradaram: "Um campeo! Um campeo! ", e, pondo de parte todos os preconceitos, aclamaram-no quando entrou na lia. Vendo melhor, poucas garantias oferecia, porm. O cavalo, estafado por muitas milhas de correria, quase caa sob o peso do cavaleiro, e este, embora impvido, quase se no aguentava na sela, por fraqueza, cansao, ou ambas as coisas. Ao arauto que lhe perguntara o nome, o ttulo e o propsito, o cavaleiro desconhecido respondera pronta e arrojadamente: - Sou um cavaleiro nobre e honesto que aqui venho sustentar com a minha lana e espada a justa causa de Rebeca, filha de Isaac de Iorque, demonstrando a injustia e a falsidade da sentena que lhe impuseram. para tal, desafio o Sr. Brian de Bois-Guilbert, que considero um traidor, um assassino e um mentiroso. Neste campo, em corpo-a-corpo, com o auxlio de Deus, de Nossa Senhora e de So Jorge, o provarei! - O desconhecido ter de provar - interveio Malvoisin - que de facto cavaleiro e de boa linhagem. O Templo no envia os seus campees contra gente sem nome. - O meu nome mais conhecido - respondeu o cavaleiro, retirando o elmo - e a minha linhagem mais pura do que a tua, Malvoisin. Sou Wilfred de Ivanho. - No combaterei contigo agora - disse o Templrio com voz cava. - Cura-te, arranja um cavalo fresco, e pode ser ento que me digne acalmar-te os impulsos juvenis que te levam a tais bravatas. - Ah!, orgulhoso templrio! - gritou Ivanho. - Esqueces-te de que por duas vezes esta lana te fez ir a terra? Lembra-te das lias de Acre e de Ashby! Recorda a tua gabarolice nas arcadas de Rotherwood, onde, apostando a tua corrente de ouro contra
o meu relicrio, prometeste que batalharias com Wilfred de Ivanho, recuperando a honra perdida! Por esse mesmo relicrio e pela sagrada relquia que contm, denunciar-te-ei como um covarde em todas as cortes da Europa, em todas as preceptorias, a no ser que comigo lutes e sem demora. Bois-Guilbert olhou, irresoluto, para onde Rebeca estava, para logo a seguir bradar com fereza: - Co saxo! Empunha a lana e prepara-te para a morte, que vieste procurar! - O Gro-Mestre permite o combate? - perguntou Ivanho. - No posso deixar em claro o teu desafio - disse o GroMestre - desde que a donzela te aceite como campeo. No entanto, preferiria ver-te em melhores condies. Sempre foste inimigo da nossa ordem, mas desejaria que houvesse equilbrio no combate. - Assim estou, assim lutarei - replicou Ivanho. - Ser Deus a
resolver. nas Suas mos que me ponho. - Marchou at junto de Rebeca e perguntou-lhe: - Rebeca, aceitas-me como teu campeo? - Aceito, aceito - anuiu, emocionada e agora muito mais trmula de comoo do que anteriormente de temor morte. Aceito-te como o campeo que o Cu me envia. Mas... no... os teus ferimentos no se fecharam ainda... No lutes com aquela orgulhosa criatura... para que hs-de morrer tambm? Ivanho, porm, j ocupara a sua posio, baixara a viseira e aprontara a lana. O mesmo fizera Bois-Guilbert, tendo o seu escudeiro notado que o seu rosto, para l das muitas emoes que o crispavam e que todo o dia se apresentara cinreo, estava, no momento, afogueado. O arauto, vendo os campees em posio, levantou a voz por trs vezes: - Faites vos devoirs, preux chevaliers! - Ao terceiro grito, afastou-se para um dos lados da lia e declarou que ningum, sob risco de morte imediata, perturbasse o campo de luta. O Gro-Mestre, que empunhava o smbolo do repto, a luva de Rebeca, atirou-o para a lia, exclamando a ordem fatal: - Laissez aller! Soaram as trombetas e os cavaleiros correram um para o outro a todo o galope. O esfalfado cavalo de Ivanho e o seu no menos cansado cavaleiro caram, como era de esperar, sob o forte impacte da lana do Templrio e sua possante montada. J se sabia que assim seria. Contudo, e apesar de a lana de Ivanho somente ter tocado o escudo de Bois-Guilbert, este lidador, para surpresa geral, rolou na sela, perdeu os estribos e caiu na terra batida. Ivanho libertou-se do cavalo tombado e, pondo-se de p,
preparou-se para tentar melhor sorte com a espada. O seu antagonista, todavia, no se movia. Wilfred, pisando- lhe o peito com um p e encostando-lhe a espada garganta, ordenou-lhe que se rendesse, ao que Bois- Guilbert nada respondeu. - No o acabeis, Sr. Cavaleiro! - gritou o Gro-Mestre. - No est confessado nem arrependido. Matar-lhe-eis corpo e alma. Damo-lo por vencido. Baixou lia e ordenou que o elmo do campeo tombado fosse retirado. Tinha os olhos fechados. A vermelhido ainda se lhe notava na testa. Abriu nesse momento os olhos. Estavam fixos e vidrados. O rubor desvaneceu-se, dando lugar palidez da morte. A lana do adversrio nada lhe causara. Morrera vitimado pela violncia das prprias paixes. - Trata-se, sem sombra de dvida, duma deciso de Deus anunciou o Gro-Mestre olhando o firmamento: - Fiat voluntas tua!
Quando se refez do espanto que o invadira, Wilfred de Ivanho perguntou ao Gro-Mestre se entendia ter ele pugnado dentro da justia e hombridade. - Sim, com toda a hombridade e legalidade - acordou o Gro-Mestre. - Declaro a donzela livre e inocente. As armas e o corpo do vencido esto ao dispor do vencedor. - No lhe tomarei as armas - disse o cavaleiro Ivanho -, nem lhe vexarei o corpo. Lutou pela cristandade. Foi a mo de Deus e no a do homem que hoje o venceu. No entanto, que as suas exquias sejam o mais simples possvel, como convm a quem morreu por causa injusta. No que refere donzela... Passos de muitos cavalos ouviam-se e to depressa que tudo faziam estremecer. O Cavaleiro Negro entrou na lia com um numeroso grupo de homens de armas e vrios cavaleiros com as armaduras rebrilhando. - Cheguei tarde - proferiu, olhando em seu redor. - Queria ser eu a impor justia a Bois-Guilbert... Ivanho, achas bem teres-te arriscado a uma aventura destas, quando mal te aguentas na sela? - Foi o Cu, meu senhor - respondeu Ivanho -, quem venceu este homem orgulhoso, no lhe permitindo a honra de por vs ser abatido. - Que descanse em paz - acrescentou Ricardo fixando o corpo -, se puder ser. Foi um garboso cavaleiro e morreu com a sua armadura... Mas no percamos tempo. Bohum, cumpre o teu dever! Este cavaleiro destacou-se do meio dos acompanhantes reais e, colocando uma mo no ombro de Albert de Malvoisin, declarou:
- Prendo-te por alta traio! O Gro-Mestre, que o espanto calara, falou agora: - Quem se atreve a prender um cavaleiro da Ordem do Templo de Sio, dentro dos limites da sua prpria preceptoria? Por autoridade de quem acontece um ultraje destes? - Sou eu quem executa a priso - informou o cavaleiro -, eu Henry Bohum, conde de Essex e gro-condestvel de Inglaterra. - E prende Malvoisin - concluiu o rei, levantando a viseira por ordem de Ricardo Plantageneta, aqui presente... Conrade Mont-Fitchet, tens sorte em no seres meu sbdito, seno acontecer-te-ia como a Malvoisin e a seu irmo Philip, que morrero antes que uma semana passe. - Opor-me-ei a tal sentena combatendo-a - declarou o Gro-Mestre. - Templrio a quem o orgulho cega! - bradou o rei. - No podes! Olha e v que naquelas torres o estandarte real ingls que flutua e no a bandeira do Templo. Ganha juzo, Beaumanoir, e no te oponhas em vo. Tens a cabea metida entre as fauces do leo. - Contra ti apelarei em Roma - disse o Gro-Mestre -, como usurpador das imunidades e privilgios da nossa ordem. - Faz isso - concordou o rei -, mas, para teu bem, convir que no me acuses agora de usurpao. Dissolve o teu captulo e parte com os teus seguidores para outra preceptoria (se alguma conseguires encontrar) onde no se tenha conspirado traioeiramente contra o rei de Inglaterra... Ou, se preferires, deixa-te ficar como nosso hspede e espectador da nossa justia. - Hspede na casa onde fui patro? - explodiu o Templrio. - Nunca... Capeles, cantai o salmo Quare fremuerunt
Gentes?... Cavaleiros, escudeiros e seguidores do sagrado Templo, aprontai-vos para acompanhar a bandeira de Beau-Sant! O Gro-Mestre exprimira-se com dignidade altura da do prprio rei de Inglaterra, incutindo coragem aos seus surpresos e desnorteados seguidores, que o rodearam como ovelhas em volta dum co de guarda quando escutam os lobos a uivar ao longe. No se mostravam, porm, atemorizados como um rebanho. Os seus semblantes carregados e os olhares hostis diziam tudo o que as palavras no podiam. Agruparam-se num ourio de lanas, saindo dos mantos brancos dos cavaleiros pontilhando as vestimentas pretas dos seus inferiores, como caudas de arminho num manto negro. A multido, que levantara um brado de protesto, calou-se e observou em silncio temeroso aquele formidvel e experimentado corpo que sempre temera e sempre evitara. O Conde de Essex, ao v-los agruparem-se, roseteou as ilhargas do cavalo e, galopando para trs e para a frente, preparou os seus para um possvel embate com aquela fora to potente.
Somente Ricardo, que se sentia deleitado com a perigosa situao provocada pela sua presena, marchou lentamente ao longo da vanguarda dos Templrios, dizendo bem alto: - O qu, senhores? No existe, entre tantos e to garbosos cavaleiros, um nico que queira cruzar lanas com Ricardo? Senhores do Templo, vossas damas tornar-se-o torresmos se nenhuma merece o quebrar duma lana. - Os irmos do Templo - soltou o Gro-Mestre, colocandose-lhe na frente - no entram em querelas to ocas e profanas... e nenhum templrio cruzar lanas contigo na minha presena. O papa e os prncipes europeus sero os juzes da nossa questo e resolvero se um prncipe cristo, como tu, bem procedeu tomando a posio que acabaste de tomar. Se no nos atacarem, partiremos sem ningum atacar. tua honra confiamos as armas e bens que no levamos e tua conscincia deixamos o escndalo e ofensa que neste dia causaste cristandade. Isto dito e sem aguardar rplica, o Gro-Mestre deu o sinal de partida. As trombetas entoaram um selvtico acorde de gosto levantino, o toque de marcha prprio dos Templrios. Formaram-se em coluna e afastaram-se to lentamente quanto possvel, demonstrando desta maneira obedecerem s ordens do seu mestre e no por medo fora superior que se lhes opunha e os obrigava a retirarem-se. - Pela fronte de Nossa Senhora! - exclamou o rei Ricardo. Que lamentvel no serem estes Templrios to leais como disciplinados e valentes so. A populaa, como um canito que s ladra quando aquele que desafia desaparece, soltou um grito fraco, logo que o ltimo esquadro se afastou. Na confuso desta retirada, Rebeca nada viu e ouviu. Estava nos braos do seu idoso pai, tonta, quase sem sentidos, devido a toda a alterao de coisas. Uma frase de Isaac a chamaria realidade. - Vamos, querida filha, meu tesouro recuperado. Vamo- nos pr aos ps daquele generoso jovem. - Isso no - disse Rebeca. - No, no... no. Nesta altura no me atrevo a falar-lhe, pois... ai de mim!... diria mais do que quero. No, meu pai, saiamos j deste stio de perversidade.
- Mas, filha minha - insistiu Isaac -, deixar quem voou, como se gozasse de toda a sade, com lana e escudo na mo, esquecendo a prpria vida, para te salvar, apenas para te salvar? E logo tu, que s de raa diferente da dele. Temos de lho agradecer. - Estou... estou-lhe o mais completa... totalmente grata gaguejou Rebeca. - Muito, muito mais, do que... mas agora, no. Pela memria de Raquel, pai, faz-me a vontade. Nesta altura, no. - Ter de ser - persistiu Isaac -, ou pensar que somos ces ingratos.
- V, pai. O rei Ricardo est l e... - Certo, minha maravilha, meu tesouro. Afastemo-nos. Deve necessitar de dinheiro, pois acaba de regressar da Palestina, ou, como dizem, da priso, e, se precisar de algum, pode exigir-mo baseando-se na minha simples transaco com seu irmo Joo. Tens razo. - Apressando-se ele agora, levou a filha ao longo da lia at ao transporte de que se servira, chegando muito depressa a casa do rabino Nathan. Tendo-se retirado a judia, cuja sorte fora o fulcro das atenes do dia, o interesse da populaa transferira-se para o Cavaleiro Negro, aplaudindo, no momento: "Viva, o rei Ricardo Corao de Leo! Abaixo com os Templrios usurpadores!" - No obstante toda esta lealdade de boca - comentou Ivanho para o conde de Essex -, foi bom o rei ter tido o cuidado de ter trazido consigo tantos dos seus fiis colaboradores. Abanando a cabea e sorrindo, o conde disse: - Bravo Ivanho! Tu, que to bem conheces o nosso amo, julgas capaz de to prudente precauo? Eu caminhava para Iorque, pois sabia que o prncipe Joo para l se dirigia, quando me encontrei com o rei Ricardo, tal cavaleiro andante, galopando como um louco para aqui para, sozinho, resolver o assunto do Templrio e da judia. Deixou-me acompanh-lo de m vontade. - E que novas h de Iorque, caro conde? - perguntou Ivanho. - Os rebeldes esperam-nos? - Tanto como as neves do Inverno esperam o sol do Vero. Dispersaram-se e foi o prprio prncipe Joo quem trouxe a notcia! - O traidor! O traidor insolente! - surpreendeu-se Ivanho. Ricardo no mandou confin-lo? - Recebeu-o como se estivessem a chegar duma caada. Apontou para mim e para os nossos homens de armas, comentando: "Sabes, irmo, tenho comigo alguns homens enfurecidos. Seria conveniente que te juntasses a nossa me, apresentando-lhe os meus votos de afeio, e com ela te deixares ficar at que esta gente esfrie." - Foi s isso que disse? - perguntou Ivanho. - Qualquer um pode afirmar que este prncipe, com tanta clemncia, convida rebelio. - Exacto - assentiu o conde. - Precisamente como brinca com a morte todo aquele que, ainda com grandes ferimentos, se mete em combates. - Perdoo-te a graa, conde - sorriu Ivanho -, mas lembrai-vos de que arriscava apenas a minha vida, enquanto Ricardo o faz com o bem-estar do seu reino. - Os que pouco cuidam do bem-estar prprio raramente atentam no dos demais... Mas apressemo-nos para o castelo, onde
Ricardo pondera como castigar alguns elementos rebeldes menores, ao mesmo tempo que desculpa os maiores.
Das investigaes, que se seguiram e que nos so prolongadamente descritas no Manuscrito de Wardour, conclui-se, ao que parece, que Maurice de Bracy fugiu para l do mar, oferecendo os seus servios a Filipe de Frana, Philip de Malvoisin e seu irmo Albert, o preceptor de Templestowe, foram executados, mas Waldemar de Fitzurse escapou, partindo para o desterro. Quanto ao prncipe Joo, por causa de quem toda a traio se urdira, no foi nem sequer repreendido pela me. Ningum, porm, chorou a sorte dos dois Malvoisins, que apenas tiveram a morte que os cruis, os falsos e os opressores merecem. Pouco tempo aps o torneio, Cedric, o Saxo, foi chamado corte do rei Ricardo, que, a fim de pacificar os condados que a ambio de Joo levantara, estava reunida em Iorque. Cedric resmungou e bufou convocao, mas no deixou de a acatar. Na realidade, o regresso do rei Ricardo abafara-lhe toda e qualquer esperana que tivesse de reposio duma dinastia saxnia em Inglaterra. Na verdade, se os Saxes se juntassem sob o pendo de fosse quem fosse para desencadearem uma guerra civil, nada alcanariam, pois a posio de Ricardo era indisputvel, pela sua popularidade, qualidades pessoais e fama guerreira, ainda que a sua administrao fosse descuidada e indiferente, ora indulgente, ora desptica. Alm de tudo mais, at mesmo Cedric tinha relutantemente de reconhecer que o seu plano para uma completa unificao dos Saxes mediante o casamento de Rowena com Athelstane no era exequvel, visto ambas as partes o no desejarem. Nunca, no seu entusiasmo, contara com um pormenor destes, e, mesmo quando a falta de atraco mtua se manifestou clara e evidentemente, muito lhe custou a aceitar que saxes de sangue real pudessem opor-se, por razes pessoais, a uma aliana necessria para a prosperidade da nao. Era um facto, contudo. Rowena sempre mostrava o seu desdm pela pessoa de Athelstane e este era agora igualmente claro e positivo ao proclamar a sua deciso de no mais desejar cortej-la. Mesmo a obstincia de Cedric teve de ceder perante tamanhos obstculos, pois no podia junt-los agarrando cada um pelo brao e obrigando-os ao que no queriam. Fez ainda uma derradeira tentativa junto de Athelstane, que em nada resultou, pois aquele renascido rebento da realeza saxnia somente se interessava agora, como os senhores rurais de hoje, por tremendos conflitos com o clero local. Consta que, depois de todas as suas ameaas ao abade de Santo Edmundo, o esprito de vingana de Athelstane, abalado pela sua bondosa indolncia e rogos de sua me, Edith, muito chegada, como a maioria das senhoras (de poca) Ordem, se satisfez encerrando o abade e os monges na masmorra de Conningsburgh por trs dias, quase sem alimentos.
Por esta atrocidade ameaou-se o abade com a excomunho, queixando-se atrozmente de males estomacais e intestinais que o achacavam, e aos seus frades, resultantes do injusto e tirnico tratamento recebido. Foi no meio desta controvrsia
que Cedric o foi encontrar, sem cabea para pensar noutras coisas. Quando o nome de Rowena foi citado, Athelstane logo aproveitou para beber uma taa sua sade, desejando que brevemente se confirmasse o seu noivado com o seu parente Wilfred de Ivanho. Era bvio nada mais se poder fazer com ele. OU, como Wamba diria, numa frase que conseguiu chegar desde esse tempo at aos nossos dias, "era um galo que cantava baixo". Entre os dois namorados e Cedric levantavam-se agora duas barreiras: a teimosia do ltimo e o muito pouco que gostava da dinastia normanda. A primeira foi-se derretendo com o carinho da pupila e com o muito orgulho que no conseguia disfarar pela fama do filho. Tambm no era de todo insensvel a ideia de juntar a sua linhagem de Alfredo, uma vez que as mais altas pretenses de Eduardo, o Confessor, tinham para sempre sido abandonadas. A averso de Cedric raa dos reis normandos tambm perdia bases, primeiro pela impossibilidade de livrar a Inglaterra da nova dinastia, sentir que levou muitos ingleses a prestarem homenagem ao rei de facto, e segundo pelas atenes de Ricardo, que altamente apreciava o seu humor sem papas na lngua e que, para se citar o Manuscrito de Wardour, de modo tal lidou com o fidalgo saxo que no se tinham ainda passado sete dias e j ele dera o seu consentimento para o enlace da sua pupila Rowena com o filho, Wilfred de Ivanho. As npcias do heri, assim formalmente aprovadas, foram celebradas no mais augusto dos templos, a Catedral de Iorque. Assistiu o prprio rei, cujo comportamento nesta ocasio, como em tantas outras, concedeu aos at ento espoliados e degradados Saxes uma melhor esperana de obterem os seus justos direitos do que certamente iriam conseguir recorrendo a hipotticas guerras civis. A Igreja revestiu a boda com toda a solenidade e esplendor que Roma to bem e com to brilhantes efeitos sabe emprestar. Gurth, elegantemente vestido, serviu de escudeiro ao seu jovem amo, que to dedicadamente servira. Wamba ostentava um barrete novo, cheio de guizos de prata. Companheiros de Wilfred em muitos perigos e na adversidade, para sempre ficariam, como natural, ao seu lado e com ele compartilhando da sua prspera carreira. Alm destes convidados da casa, assistiram a este distinto casamento muitos fidalgos, tanto normandos como saxes, a que, jubilosamente, se juntaram as classes mais baixas. Este matrimnio constituiria, pois, um sinal de paz e harmonia entre as duas naes, que, a partir dessa data, to completamente se misturaram que qualquer distino entre elas se tornou impossvel de perceber. Cedric viveria para ver essa unio quase se completar, pois, medida que socialmente se mesclavam e entre si se casavam, os Normandos foram perdendo a sua altivez e os Saxes saindo da sua rusticidade. Porm, seria somente no reinado de Eduardo III (1327-1377) que o idioma hbrico, agora denominado ingls, passou a ser falado pela corte em Londres e a hostil separao entre Normandos e Saxes desapareceria por completo. Dois dias depois deste feliz enlace, Lady Rowena foi informada por sua aia, Elgitha, de que uma donzela pedia licena para vir sua presena, que rogava fosse em privado. Rowena surpreendeu-se, hesitou, teve curiosidade e, por fim, mandou que a menina fosse admitida e que a criadagem se retirasse.
Entrou, nobre e imponente, com o longo vu branco que a envolvia delineando, mais do que escondendo, a sua elegncia e majestade. O seu porte era respeitoso, sem ponta de temor ou inferioridade. Rowena tinha tendncia para reconhecer e respeitar os sentimentos dos outros. Ps-se de p e teria acompanhado a sua formosa visitante at cadeira se ela, olhando para Elgitha, no tivesse reiterado o pedido para falarem a ss. Elgitha tinha acabado de sair e j, para surpresa da Sr.a de Ivanho, a sua radiosa hspede, pousando um joelho no solo, lhe pegava numa mo, que encostou testa. Levou depois a cabea ao soalho e, indiferente aos protestos de Rowena, beijou-lhe a orla da saia. - Que significa tudo isto? - perguntou, surpresa, a jovem noiva. - Ou, melhor, porque me prestais to raras deferncias? - Porque a vs, Sr.a de Ivanho - disse Rebeca, erguendo-se e retomando toda a compostura e dignidade de maneiras - , que, completamente e sem recusas, poderei pagar a dvida de gratido que tenho para com Wilfred de Ivanho. Sou, e perdoai-me que uma mulher da minha nao vos homenageie, a infeliz judia pela vida de quem o vosso esposo ps em risco, e em speras circunstncias, a prpria vida, na lia de Templestowe. - Donzela - respondeu Rowena -, nesse dia Ivanho no fez mais do que parcialmente liquidar a imensa caridade que lhe haveis estendido quando ferido e em sofrimento. Dizei: algo haver que por vs possa fazer? - Nada h - disse Rebeca calmamente -, seno transmitir- lhe a minha gratido e o meu adeus. - Deixais, portanto, a Inglaterra? - indagou Rowena, ainda mal refeita da surpresa que esta visita lhe causara. - Deix-la-ei ainda antes da a Lua se tornar a mudar. O meu pai tem um irmo ocupando um lugar exaltado na corte, Mohammed Boabdil, rei de Granada. para l iremos, certos de paz e proteco, que o pagamento que os muulmanos cobram nossa gente nos garante.
- E no vos sentis protegida em Inglaterra? - quis Rowena saber. - O meu marido goza da benevolncia do rei... e o rei justo e generoso. - Senhora - retorquiu Rebeca -, no o duvido... mas as gentes de Inglaterra so de raa fera, estando sempre em querelas com os vizinhos ou entre si, sempre prontos a enfiar espadas nas tripas uns dos outros. Terra assim no segura para o nosso povo. Efraim uma rola tmida... Isaac um escravo de trabalho. Nesta terra de guerras e sangue, cercada de inimigos e revolvida por lutas intestinas, Israel no pode esperar o descanso. - Mas vs, donzela - disse Rowena -, vs nada tendes a temer de certeza. Aquela que tratou de Ivanho ferido - e, entusiasmando-se, continuou - nada tem a temer nesta terra, onde normandos e saxes entre si disputaro o direito de vos servir. - As tuas palavras so belas e mais belo o teu propsito. Mas no pode ser... Levanta-se entre ns um muro. A nossa educao, a nossa religio, probem-nos a ambas que o ultrapassemos. Adeus... Mas, antes, concede-me uma graa, dignando-vos levantar esse vu para que vos aprecie o to cantado rosto.
- Quase nem merece ser olhado - respondeu Rowena. Porm, certa de que a minha visitante o mesmo far, retirarei o meu vu. Tirando-o e, em parte por se saber formosa, em parte por acanhamento, corou tanto que rosto, testa, pescoo e colo lhe ficaram rubros. Tambm Rebeca se ruborizou, mas por instantes apenas. Dominada por sentimentos mais elevados, a cor apagou-se como o Sol, tarde, no horizonte. - Senhora - disse -, o rosto que acabais de me revelar nunca o esquecerei. Nele reina a gentileza e a bondade e, se um pouco de orgulho ou vaidade terrenos se misturarem em to belas feies, como poderemos ns reprovar que o que da terra dela alguma mostra tenha. Nunca, nunca olvidarei vosso rosto, e Deus seja abenoado por o saber deixar unido ao meu nobre salvador a... - Parou subitamente, com os olhos cheios de lgrimas. Limpou-as pressa e respondeu s ansiosas questes de Rowena. - Estou bem, senhora. S que o meu corao se aperta ideia de Torquilstone e da lia de Templestowe. Adeus. Aceitai este cofrezinho. Que o seu contedo vos no surpreenda. Rowena abriu a caixinha encastoada de prata. L dentro refulgiam um colar e uns brincos de brilhantes de valor incalculvel. - -me impossvel - disse, entregando-lhe a caixa -, no posso aceitar um presente desta valia. - Conservai-o, senhora - insistiu Rebeca. - Tendes poder, posio, respeito e influncia. Ns temos fortuna, a base da nossa fora e fraqueza. O valor destas minhas ninharias, mesmo que multiplicado por dez, valeria menos do que o menor dos vossos desejos, para vs o presente , pois, de pouco valor e para mim, que vo-lo ofereo, bastante menos ainda.
No me deixeis crer que pensais to mal da minha gente como a maioria o faz. Pensareis que darei mais valor a estes pedaos reluzentes de pedras do que minha liberdade? Ou que o meu pai os aprecia mais do que honra da sua nica filha? Aceitai-os, senhora. Eu jamais tornarei a usar qualquer jia. - Sois infeliz? - perguntou Rowena, a quem o tom das ltimas palavras chocara. - Oh! Fica connosco. Os conselhos dos nossos santos homens afastar-te-o da tua f errada e eu serei uma irm para ti. - No, senhora - prosseguiu Rebeca, sempre calma e com voz na mesma triste -, no pode ser. No deixarei a f dos meus antepassados como um vestido velho imprprio para novos climas, que se deita fora. Aquele a que devotarei a minha vida futura confortar-me- se lhe obedecer vontade. - Tendes ento conventos para onde vos retirar? - indagou Rowena. - No - respondeu a judia -, mas, entre a nossa gente, desde os tempos de Abrao, sempre houve mulheres dedicando-se ao Cu, bons actos e bondade praticando, tratando dos doentes, alimentando os famintos e ajudando os aflitos. Rebeca ser mais uma delas. Dizei isto a vosso marido, caso ele pergunte por aquela que do mal livrou. A voz de Rebeca tremera-lhe sem querer e rodeara-se dum carinho muito superior quele que pretenderia, talvez, deixar transparecer. Apressou-se a despedir-se de Rowena. - Adeus - disse. - Que Aquele que nos fez, judeus e cristos, vos cubra das maiores bnos. A barca que nos levar
levantar ferro logo que cheguemos ao porto. Como que deslizando, saiu do apartamento, deixando Rowena to confundida como se tivesse estado a contactar com uma apario. A bela saxnia relatou esta entrevista ao marido, que com ela ficou muitssimo perturbado. Juntos viveram muitos anos, felizes na sua afeio to cedo nascida. Ainda mais amor sentiam um pelo outro recordao dos impecilhos que haviam surgido no seu caminho para a felicidade.. Apesar de tudo isto, teria interesse saber-se se a recordao da beleza e magnanimidade de Rebeca no viriam mente da linda descendente de Alfredo com mais frequncia do que aquela que desejaria. Ivanho distinguiu-se ao servio de Ricardo e foi, por muitas vezes, largamente agraciado com favores reais. Mais alto subiria se no fora a prematura morte do herico Corao de Leo, cerca do Castelo de Chlus, perto de Limoges. com a vida do generoso mas impetuoso e romntico monarca acabaram-se os projectos que a sua ambio e generosidade haviam criado.
A ela podero, com pequenas alteraes, ser dedicadas as linhas compostas por Johnson para Carlos da Sucia: A praias estranhas seu fado destinou, Uma praa menor e mo larga herdou; Seu nome o mundo tem na memria Como grande, com lugar na HiSTRIA. FIM
SIR WALTER SCOTT (1771-1832) Walter Scott pertencia a uma famlia da pequena nobreza escocesa. O pai, que cumpria as funes de procurador da corte em Edimburgo, era um desses lairds da Esccia cujas famlias forneciam tradicionalmente o seu contingente de soldados ou de aventureiros. O prprio Walter Scott refere que, na sua infncia, muitas vezes sonhou com ser um deles. A conjuno destes sonhos com as circunstncias literrias do romantismo iria torn-lo num dos mestres do romance pico de aventuras. Mas a sua infncia deveria influenciar ainda, de outra maneira, a vocao literria. Uma doena torna-o incapaz de levar a cabo a actividade militar e aventureira com que sonhara. Tal circunstncia leva-o a compensar, pela imaginao literria, a impossibilidade de se tornar um homem de aco. A vocao literria de Walter Scott , pois, uma vocao romntica, como o sero na mesma poca, em Frana, as de um Chateaubriand ou de um Stendhal. E os romnticos franceses, junto dos quais ser to popular, consider-lo- o um irmo espiritual. Aps os estudos de Direito, Walter Scott foi nomeado xerife do condado de Selhir . Durante este perodo, interessa-se com paixo pela literatura germnica e traduz o Goetz von Berlichinger, de Goethe (1799). Um pouco mais tarde, entre 1802 e 1803, publica uma recolha folclrica de antigas canes, que ir constituir o seu primeiro sucesso literrio. Progressivamente, e encorajado por esta primeira tentativa,
publica, em 1805, The Lay of the Last Minstrel. Os dez anos seguintes sero consagrados a esta poesia, que oscila entre a balada e o recitativo lendrio, e de que as principais obras sero, em 1810, The Lady of the La e e, em 1813, Ro eby. Neste perodo, a reputao de Walter Scott aumenta, quer na Inglaterra, quer em toda a Europa. com os proventos que obtm pode, em 1811, adquirir a propriedade de Abbotsford, onde constri, no quadro natural das montanhas escocesas que lhe so queridas, um castelo de estilo medieval que, da em diante, ser o lugar da sua vida e da sua actividade literria.
A partir de 1814, Walter Scott vai entrar definitivamente na via do romance. Com efeito, ento que publica, sem nome de autor, Waverley, que se tornou um sucesso. A partir da, at 1827, os romances de Scott sero sempre publicados como sendo escritos pelo "autor de Waverley". Esses romances sucedem-se com um ritmo rpido e fazem do seu autor o fundador do romance histrico romntico. o caso de, para citarmos os principais, The Antiquary (1816), Rob Roy (1818), The Bride of Lammermoor (1819), Ivanho (1820), Quentin Durward (1823), The Fair Maid of Perth (1828). Em 1826, aps a falncia de uma casa editora a que estava associado, Walter Scott arruinou-se e teve de dedicar-se a outros trabalhos, como uma biografia de Napoleo, publicada em nove volumes, em 1827. na pobreza que iria morrer, cinco anos mais tarde, o grande criador do romance histrico, cuja influncia se exerceria profundamente sobre toda a literatura romanesca do sculo XIX.
NOTA Introdutria Sir Walter Scott criou os romances histricos, marcando-os de tal modo com a sua personalidade que, parte alteraes mnimas, assim se mantiveram por mais de um sculo. Na literatura de lngua inglesa, James Fenimore Cooper, Bulwer Lytton, Charles Reade e Charles Kinsley so declarados seguidores do seu estilo, como o foram, no continente, Alexandre Dumas e Vtor Hugo em Frana, Manzoni na Itlia e G. M. Ebers na Alemanha. Numa gerao posterior, Robert Louis Stevenson aprovaria cordialmente os temas de Scott, conquanto que, simultaneamente, lhe lastimasse a tcnica. Completara quarenta e trs anos quando terminou e anonimamente editou, no Outono de 1814, o Waverley, conto em prosa que iniciara e pusera de parte dez anos atrs. Antes desta obra existia quase toda uma vida de compilaes de antigas baladas e velhos romances, edies de clssicos ingleses, como Swift e Dryden, de tradues de baladas alems e composio de longos poemas narrativos de sua criao. A partir da, porm, passou a ser "o autor do Waverley", mesmo depois de o difano manto do anonimato ter desaparecido em 1826. Cada um dos estratos da carreira literria de Scott sucedeu, com toda a naturalidade, ao anterior. Aps ter coligido velhas baladas e traduzido outras mais actuais, no foi necessrio
mais do que um pequeno passo para passar composio do desarticulado Lady of the Last Minstrel. Entre os que a este se seguiram, Marmion e The Lady of the La e eram autnticas novelas melodramticas em verso. No entanto, comeavam-lhe a faltar temas para a poesia. Foi ento, tambm, que lhe surgiu pela frente um vigoroso oponente. Francamente e com sagacidade escocesa, admitiu dever afastar-se das rimas, j que Byron, com os seus exticos contos orientais, tudo varria. Evitando tal concorrncia, voltou-se para a prosa e para o romntico passado da sua terra nativa. Nos cinco anos que se seguiram a 1814 publicou nove obras de fico, num total de vinte e quatro volumes. Todas tratavam questes escocesas, todas decorriam em ambientes escoceses. Embora sejam vistas, no seu conjunto,
como romances histricos, os perodos das suas aces situavam-se entre o seu contemporneo, como o Guy Mannering e The Antiquary, at, l para trs, nos "tempos de morte" da rebelio dos Covenanters, de 1685 como em Old Mortality. Somente na banal e de pouco xito Legend of Montrose se atreveu Scott a recuar mais de sculo e meio relativamente ao seu tempo. Na verdade, fora inteno sua, no Waverley, fazer contrastar a rude vida feudal nas Terras Altas escocesas, antes de 1745, com os mais brandos costumes de sessenta anos mais tarde. Em jovem, Scott conversara com gente mais velha, que conhecera em primeira mo todas as tragdias e excitao da mal predestinada pretenso ao trono do prncipe Carlos Eduardo. Acontecimentos mais antigos ainda, como os tumultos de Porteous, em 1736, citados nos captulos iniciais do Heart of Midlothian, e a rebelio de 1715, no Rob Roy, eram quase transcries de testemunhos oculares. Na Esccia, o viver e o pensar rurais no se tinham alterado tanto assim, continuando vivos os vestgios do esprito dos Covenanters, como Robert Burns aprendeu sua custa, - durante a juventude de Scott. Alm de mais, Scott conhecia perfeitamente todos os pormenores fsicos dos seus cenrios, desde o velho Tolbooth, em Edimburgo, at ao covil de Rob Roy no Loch Achray. Cavalgara as solitrias e perigosas estradas da Border, que descreve no Guy Mannering, conhecia os penhascos da costa leste, no obstante, distradamente, ter descrito a um pr do Sol a oriente. Todo e qualquer local da Esccia com histria, tradies ou supersties era conhecido por Scott e por ele utilizado nos seus escritos. Mais importante que tudo, Scott compreendia bem a sua gente, a todos os nveis, do mais nfimo seareiro at aos senhores da magistratura. Os seus enredos eram sempre convencionais e, frequentemente, superficiais, os seus heris-fidalgos, meros jovens arrojados, as suas heronas virtuosas para l das fronteiras da insipidez. certo que a par desses fidalgos aparecem os seus vizinhos, os seus rendeiros, os seus criados - Dandie Dinmont, Bailie Nichol Jarvie, Cuddie Headrigg, Edie Ochiltree, Andrew Fairservice, Jeame Deans, Meg Merrilees -, uma rica e variegada galeria de personagens que tinham vindo a ser enquadrados, desde a morte de Sha espeare, na literatura inglesa e cuja presena transforma os livros onde surgem de simples romances de aventuras em novelas de costumes e torna
suportvel o tdio que Lady Bellenden, Jonathan Oldbuc e Jedediah Cleishbotham constituem. De modo instintivo, Scott percebera e aplicara o princpio, ainda regendo a fico clssica, que leva a dar a pessoas que realmente existiram lugares secundrios nos textos.
Reis e rainhas aparecem como deus ex machina, nunca como protagonistas. A trilha do heri-fidalgo pode cruzar-se com a da realeza, mas nunca com ela coincide. A noo de distoro , desta forma, maximamente atenuada. Em 1819, Scott sentiu, de novo, que os assuntos se lhe tinham esgotado. As vendas baixavam. O que de facto acontecera fora ter inundado o mercado de alto a baixo com maior rapidez do que aquela que os leitores podiam acompanhar. Julgou, no entanto, que o pblico se saturara de cenas escocesas, de falares escoceses. "Cingindo-me", concluiu, "a coisas puramente escocesas," - poderia no s abusar da pacincia dos leitores como reduzir a minha capacidade de lhes dar prazer." Ivanho o primeiro fruto dessa concluso, que o seu pronto sucesso justificou. Na verdade, Ivanho o ponto alto da popularidade de Scott. Publicado em trs volumes, ao preo elevado de 10 xelins cada um, teve uma venda inicial de doze mil cpias. Nunca outra obra anterior conseguira nada de parecido. Nenhuma subsequente o conseguiria. Isso seria invivel. Um prottipo pode ser produzido uma vez e uma vez somente e o enredo de Ivanho tornara-se num padro no apenas para o restante da carreira de Scott, mas, igualmente, para os romancistas oitocentistas em geral. O Herdeiro Perdido ou Desaparecido, a Donzela em Aflio e o sinistro Vilo eram, claro, figuras familiares dos palcos. O prprio Scott j delas se servira no Guy Mannering e na Old Mortality. No Ivanho retirou o melodrama do palco e levou-o at aos lares de cada um. Estabeleceu convenes menores, como fizera com as maiores. Assim criou heronas rivais, uma delas morena e com um mnimo de inteligncia e coragem, a outra, uma loura, indefesa e amimada, que vem a casar com o heri. Ainda aqui a conveno de que os viles, merecedores dos piores dos fins, devem morrer s mos dos heris no sucede. Front-de-Boeuf acabado por Ulrica e Bois-Guilbert morre dum oportuno ataque cardaco. Toda a aco decorre num fundo prenhe de nomes histricos, se bem que qualquer semelhana com acontecimentos reais seja pura coincidncia. Os nicos factos exactamente autnticos de toda a narrativa so o caso de o rei Ricardo ter sido resgatado em 1194 e a pretenso do prncipe Joo de lhe usurpar o trono. Logo que se viu liberto, Ricardo veio a Inglaterra apenas pelo tempo suficiente para cobrar tantos impostos quanto pudesse. Os seus verdadeiros interesses polticos estavam em Frana e na Palestina. Nunca errou, disfarado, pelo seu reino, nem entrou, incgnito, em torneios. Scott d-lhe uma maneira de ser que um misto de Arum-al-Raxid, das Mil e Uma Noites, e de Henrique V, de Sha espeare. outros personagens tm, do
mesmo modo, origens literrias. O prior Aymer o monge de Chaucer transferido do sculo XIV para o XII, constituindo um anacronismo, j que a corrupo e o mundanismo monsticos no eram, nos ltimos tempos da poca das cruzadas, ,sequer endmicos. Mais deslocado, talvez, o frade, visto as ordens mendicantes s se terem estabelecido vrias dcadas mais tarde do que a ocasio em que a histria se passa. A rude abundncia do salo de Cedric recorda a casa do Fundirio de Chaucer, onde a comida e a bebida "choviam" tambm. Isaac de Iorque uma cpia de Shyloc . Wamba , em parte, o Bobo de Lear, em parte Feste e Touchstone. Gurth o criado estereotipado dos dramas cor Herdeiros Perdidos. O que faz principalmente falta no Ivanho so personagens bem temperadas que, volta e meia, quebrem toda aquela retrica e pomposidade com um banho de conversa fresca e de todos os dias e manifestaes de senso comum. A discusso filolgica de Wamba com Gurth um magro substituto das magistrais evases de Cuddy Headrigg ou da ingnua eloquncia de Jeanie Dean. Scott enfrentava o problema, nunca inteiramente resolvido por romancistas e dramaturgos, que consiste em transcrever a fala de gente que viveu no antanho e que, sabe-se, se expressava de modo diverso do actual. A soluo esteve em empregar cadncias enfticas, mais prximas da dico das tragdias do sculo XVIII do que de qualquer conversa normal. No h qualquer distino entre a forma de falar de Bois - Guilbert e Fitzurse e do prior Aymer e de Frei Tuc . Os trabalhos de Scott posteriores a Ivanho revelam um declnio progressivo de qualidade, mais evidente hoje do que no seu tempo. Livros como Quentin Durward e Redgauntlet eram suficientemente melhores do que os de quaisquer outros escritores do gnero para deixarem que as pessoas entendessem que os enredos se haviam cristalizado e que a maioria das personagens eram velhos conhecidos do Ivanho sob nomes diferentes. Scott preocupava-se to pouco com o seu repetitivo como com os seus anacronismos. A este ltimo propsito mostrava-se totalmente descontrado: " extremamente provvel o ter confundido os modos de dois ou trs sculos, colocando no reino de Ricardo I circunstncias mais apropriadas a eras anteriores ou posteriores." A importncia dos anacronismo varia. Se factuais, no passam de pecadilhos. Ningum se aflige quando Sha espeare pe um relgio batendo as horas na Roma de Jlio Csar. Um anacronismo moral, contudo, bem mais srio, e Scott, ao buscar um motivo formal sob a aco do Ivanho, comete-o. Cedric, -nos dito, sonhava com a restaurao de uma dinastia saxnica, de linhagem anterior Conquista. Nunca existiu, porm, uma dinastia saxnia no sentido em que, mais tarde, haveria a Tudor e a Stuart. Antes da Conquista, a coroa de Inglaterra mudava de mos mais por eleies ou usurpaes do que por descendncia. Scott transplanta o jacobinismo pegajoso da Gr-Bretanha do sculo XVIII para o perodo onde at os Plantagenetas dominantes se sentiam periclitantes nos tronos que herdavam. Resumindo: Scott era um antiqurio romntico e, de forma alguma, um socilogo ou arquelogo. Abbotsford um exemplo perfeito da sua imaginao - parte um primor, parte pretenso gtico. Sentia-se fascinado pelas roupas que as pessoas usavam, pelas armas que empunhavam. Contudo, tinha como certo que "opinies, modos de pensar e de actuar, ainda que influenciados pela localizao temporal duma sociedade, sempre
se pareciam profundamente uns com os outros atravs dos tempos". Isto s parcialmente verdadeiro. As pessoas de todas as idades sempre tiveram as mesmas emoes e os mesmos apetites, mas o que pensavam do mundo em que viviam era condicionado pelas instituies desse mesmo mundo. Seja qual for o sistema dentro do qual se nasce - o Zen, a Inquisio, a monarquia absoluta ou a escravatura -, a maioria sempre o v como inevitvel e correcto. Exactamente como Mar Twain, Scott nunca entendeu a Igreja medieval. possvel que tenha pensado terem as cruzadas resultado de algo mais do que desejo adolescente de actividade, mas o caso que nunca o reconheceu emocionalmente. A sua mente lcida e o seu bom senso rejeitavam o fanatismo exactamente como repudiava histrias de fantasmas. Com todas estas limitaes, como se explica que o Ivanho se continue a imprimir? simples a resposta. Scott possua o atributo primeiro do romancista, sem o qual todo o labor teorias artsticas, toda a seriedade de propsito, nada valem: sabia contar uma histria. O seu enredo poder parecer parado, mas quando, finalmente, se comea a desdobrar, o leitor tem de o acompanhar. Sequestros, disfarces, feitos de armas, virtude em aflio - afectados leitores podero pretender manifestar indiferena perante excitantes situaes, mas, uma vez colhidos nas suas malhas, viv-las-o at ltima linha. No auge da aco, mesmo o concurso de tiro ao arco Impiedosamente escarnecido por Twain e Stephen Leacoc -, tudo toma plausibilidade. No de espantar! os ingredientes j haviam dado boas provas de si antes de Scott deles se ter servido: Robin dos Bosques imortal. Nenhum crtico resumiu melhor as foras e as fraquezas de Scott do que ele prprio, depois de ter, pela terceira vez, lido o Orgulho e Preconceito. "Jane Austen", disse, "tinha um talento para descrever os acontecimentos, os sentimentos e a forma de ser das pessoas vulgares que considero a coisa mais maravilhosa que at hoje encontrei. Um grande estardalhao consigo eu ou qualquer outro, mas aquele toque requintado, que torna as coisas e as pessoas banais em interessantes e d verdade descrio de sentimentos, -me inteiramente vedado."
Este um ponto a recordar. Viramo-nos para Scott precisamente por ele ser o estardalhao e nunca porque seja intimista ou psicanaltico. Aceitando-o como foi, pode ainda entusiasmar-nos com a magia das fugas e de perseguies, aventuras singelas que, actualmente s os escritores de western e de livros policiais tm a coragem de escrever. DELANCEY FERGUSON PREFCIO DO AUTOR
Ora frente do cabresto, ora o carro a puxar, Muitas vezes partindo. sempre desejando voltar(1).
Prior O autor dos romances de Waverley tinha at ento gozado de tal Popularidade que bem podia, no seu campo literrio, ser denominado l'enfant gt do sucesso. Era evidente, contudo, que publicaes demasiado frequentes acabassem por cansar o pblico, a no ser que, de algum modo, conseguisse emprestar s obras seguintes uma qualquer aparncia de novidade. Maneiras escocesas, dialecto escocs e personagens escoceses, aqueles que o escritor melhor e de mais perto conhecia, constituam os fundamentos com os quais contara para obter efeito nas suas narrativas. Obviamente, este gnero de interesses tornar-se-ia sempre igual e repetitivo se a eles teimasse recorrer e faria que os leitores se sentissem como nas palavras de Edwin, na Histria de Parnell: "Agora ao contrrio!", grita ele "E para j, j basta, "Pois j sabemos como ." Nada mais perigoso para o renome dum professor de Belas-Artes do que permitir (quando o possa evitar) que o apodo de maneirista lhe seja dado, ou criar a impresso de apenas ser capaz de xito dentro dum estilo especial e limitado. O pblico em geral aceita muito prontamente a opinio de que quem lhe deu prazer usando determinada forma de composio , em virtude desse mesmo talento, incapaz de se aventurar noutros campos. O resultado desta repulsa das pessoas para com aqueles que lhes do gosto, quando tentam alargar as suas possibilidades, pode ser apreciado nas censuras, usualmente vistas como crticas, *1. Referncia ao facto de o autor voltar frequentemente cena depois de a ter deixado.
feitas a actores e artistas que ousam modificar o caminho dos seus esforos para que, fazendo-o, possam melhor abrir o leque da sua prpria arte. Neste ponto de vista algo existe de justo, podendo at ser considerado como inevitvel. Assim possvel acontecer com frequncia que a um actor senhor de superiores qualidades necessrias para a boa comdia seja vedado o direito de poder sobressair na tragdia. Em pintura ou nas letras, um artista ou um poeta pode dominar exclusivamente linhas de pensamento ou poderes de expresso que o confinem a um s tipo de assuntos. Mais vulgarmente ainda, ser a mesma capacidade que levou algum at popularidade num domnio especfico lhe oferecer o sucesso noutro tambm. Isto d-se mais no campo literrio do que no teatro ou na pintura, porque o aventureiro naquele sector no tem a sua aco restringida por quaisquer caractersticas especiais, modo de ser apropriado a papis definidos, ou hbitos mecanizados quanto a como se servir do lpis obrigando-o a no mudar de motivos. Seja este razoamento correcto ou no, o autor em questo
percebeu que, prendendo-se a coisas escocesas, somente iria, muito possivelmente, aborrecer os leitores e ainda diminuir o seu poder pessoal de lhes causar satisfao. Num pas altamente culto, onde tanto gnio se oferece mensalmente para entreter gente, um tpico fresco, como aquele a que teve a felicidade de deitar mo, como uma nascente virgem no meio do deserto, Os homens agradecem-na s estrelas e chamam-na um luxo. Mas quando homens e cavalos, camelos e dromedrios a calcaram e espezinharam, tornando-a num lodaal, apresenta-se como repugnante queles que primeiro e com gosto haviam dela bebido. Quem a encontrou, portanto, se desejar manter a sua reputao junto da sua tribo, ter de demonstrar qualidades encontrando novas fontes por descobrir. Se o escritor que se sente cingido a determinado grupo de assuntos tentar conservar o seu nome pela incluso de novidades que formem mais atraentes as mesmas questes que anteriormente lhe haviam trazido sucesso, existem razes certas para que, a partir de determinado ponto, falhe. Caso uma mina no seja bem explorada, a fora e a capacidade dos mineiros esgotam-se. Caso imite de perto narrativas a que soube dar bom efeito, estar predestinado a "perguntar-se porque que j no agradam mais". Se insistir apresentando, sob outro ngulo, temas que j bateu, cedo verificar que aquilo que fora bvio, gracioso e natural se esgotou e que, para obter o encanto indispensvel s novelas, ter de recorrer caricatura e, para no cair na trivialidade, de se mostrar extravagante. Talvez no seja preciso enumerar os muitos motivos pelos quais o autor das "novelas escocesas", como eram inicialmente conhecidas, pudesse desejar fazer uma experincia num texto puramente ingls.
Era tambm seu intento tornar esse experimento to completo quanto possvel, apresentando-o como os resultados dos esforos dum novo candidato a ser louvado para que nenhum preconceito, favorvel ou no, se lhe ligasse. transformando-o numa mera obra mais do autor de Waverley. Afastou-se, no entanto, desta inteno, por motivos a apontar mais para diante. O perodo escolhido para a narrativa decorre no reinado de Ricardo I (1157-1199), repleto de figuras cujos nomes somente bastam para chamar a ateno e ostentando ainda um chocante contraste entre os Saxes, que trabalhavam a terra e os Normandos, todavia agindo como conquistadores, relutantes quanto a misturas com os vencidos e desdenhando v-los de igual para igual. A ideia deste contraste foi colhida da engenhosa e infeliz tragdia Runnamede, de Logan, na qual, mais ou menos na mesma poca, o autor colocara bares saxes e normandos uns contra os outros. No se lembrou, porm, de estabelecer qualquer contraste entre as duas raas quanto a costumes e sentimentos, e, na verdade, alterou at a veracidade histrica, apresentando os Saxes ainda existentes como tal como uma raa nobre de marciais e exaltados princpios. Eles, os Saxnicos, sobreviveram de facto como um povo e algumas das suas antigas famlias detinham riquezas e poder,
muito embora constitussem excepes na generalidade da sua gerao, que vivia em condies muito baixas. O escritor julgou que a existncia no mesmo pas de duas raas, os vencidos, caracterizados pelas suas simples, ingnuas e obtusas maneiras e um esprito livre resultante das antigas instituies e leis, e os vencedores, assinalados por um grande renome militar, gosto de aventuras e tudo mais que os elevasse fina flor da cavalaria, juntamente com outras figuras coevas e da terra, devia interessar os leitores pelas suas diferenas, desde que o escritor soubesse cumprir o seu papel. A Esccia fora ultimamente exclusivo cenrio do que se denominara "romance histrico", pelo que as cartas preliminares de Mr. Laurence Templeton se revelaram em certa medida necessrias. para estas e para a introduo se chama a ateno do leitor, como expressivas do propsito e opinies do autor aquando da resoluo de se encarregar, sob reservas, ainda que consciente de que a no atingiria, da meta que se propusera. Seria quase desnecessrio pretender-se fazer passar Mr. Templeton por uma pessoa real. Recentemente fora feita por um desconhecido uma espcie de continuao das Tales to my Landlord e supunha-se que a "Epstola dedicatria" poderia passar por algo semelhante e capaz de, apontando para pistas falsas, induzir os leitores a crerem tratar-se dum trabalho de novo candidato sua ateno.
Depois de uma poro considervel do trabalho ter sido acabada e impressa, os editores, que haviam fingido ver ali uma semente de popularidade. protestaram alto e bom som contra o seu aparecimento como uma obra absolutamente annima, argumentando haver vantagens em ser apresentada como produzida pelo autor de Waverley. O autor no levantou qualquer teimosa resistncia, pois aceitava j a opinio do Dr. Wheeler, da excelente histria de Miss Edgeworth, Manoeuvring, segundo a qual "truque em cima de truque" poderia transformar-se em futilidade. O livro surgiu, pois, como uma reconhecida continuao dos romances de Waverley, havendo que aceitar-se ter tido um acolhimento to agradvel como o dos anteriores. Anotaes teis para a compreenso pelo feitor de personagens como o Judeu, o Templrio, o Comandante dos Mercenrios ou Companheiros Livres so feitas, mas de modo muito resumido, j que a histria nos d informaes completas sobre eles. Na histria, uma parte existe com a boa fortuna de ter cado nas graas dos leitores e que foi quase directamente transferida dum romance muito mais antigo. Refiro-me ao encontro do rei Ricardo com Frei Tuc na cela do prazenteiro eremita. Na sua generalidade, o tom da histria pertence a todas as classes e naes que entre si competem com descries das divagaes de enaltecidos soberanos que disfarados buscam informaes ou divertimentos junto dos estratos mais baixos. entre aventuras divertidas para quem as l ou escuta, dadas as divergncias entre a aparncia externa do rei e aquilo que realmente . O contador de histrias orientais explora este tema com as expedies de Harum-al-Raxid (764?-809) e os seus fiis companheiros, Mesrur e Giafar, a altas horas da noite,
pelas ruas de Bagdade; a tradio escocesa conta-nos exploraes semelhantes de Jaime V (1512-1542), conhecido nos seus giros pelos nomes de "Goodman de Ballengeigh", como Comandante dos Fiis, e "Il. Bondocani", quando incgnito. Tambm os menestris franceses no deixaram fugir este tema to popular. Deve existir uma base original normanda para o romance escocs em verso Rauf Colziar, no qual Carlos Magno surge como hspede dum carvoeiro(2). Parece ter sido ele o modelo de muitos outros poemas do gnero. Na alegre Inglaterra no havia falta de baladas populares baseadas no tema. O poema "John the Reeve or Steward", citado por Bishop Thomas Perey, - nas Reliques of Ancient English Poetry (1765), diz-se ser baseado numa ocorrncia semelhante. H ainda "The King and lhe Tanner of Tamwerth", "The King and the Miller of Mansfield", *2. Este altamente curioso poema, durante muito tempo um desideratum da literatura escocesa, julgado irremediavelmente perdido, veio a ser reencontrado quando das buscas feitas pelo Dr. Irving na Advocates Library e reimpresso por David Laing, de Edimburgo.
e outros com enredos parecidos. Contudo, o conto deste tipo de que o autor de Ivanho se serve tem uma origem dois sculos anterior dos outros dois que se apontaram. Foi primeiramente dado a conhecer ao pblico naquele interessante registo de literatura antiga, recolhida graas aos esforos conjuntos de Sir Egerton Brydges e de Mr. Hazlewood. que foi a revista The British Bibliographer, de onde se transferiu, pelas mos do reverendo Charles Henry Hartshorne. M. A., editor dum bom volume intitulado Ancient Metrical Tales, printed chiefly from original sources, 1829. Mr. Hartshorne no aponta outra origem parte o excerto do artigo no Bibliographer intitulado "The King and the Hermite". Um resumo do mesmo revela-nos a sua semelhana com o encontro do rei Ricardo com Frei Tuc . O rei Eduardo (no nos diz qual seria, entre os monarcas deste nome, mas, pelo temperamento, calcula-se que fosse Eduardo IV) deixara a corte para uma faustosa caada na floresta de Sherwood, onde, como no raro acontecer em romances, o prncipe encontra um veado de tamanho e agilidade fora do comum, que persegue incansavelmente at se perder do seu squito. com ces e cavalo exaustos, percebe, na penumbra da floresta, a noite caindo. Apreensivo, como natural, longe de todo o conforto, o rei lembra-se de ter ouvido dizer que os pobres, quando preocupados quanto a abrigo onde passarem a noite, se dirigiam a So Julio, que, no calendrio dos santos, ocupa a posio mxima entre os patronos dos viajantes em apuros. De conformidade, Eduardo reza-lhe e, muito possivelmente guiado pelo bom santo, atinge uma vereda na grande mata que o leva at uma capela perto da qual um eremita ocupa uma cela. O rei, escutando o eremito a conversar com um companheiro de solido, pede humildemente que lhe seja dada recolha. "No disponho de lugar para senhores como vs", respondem de dentro. "Vivo, aqui no bravio, de razes e cascas, e no posso receber nem o mais pobre dos pobres, a no
ser que fosse para lhe salvar a vida." O rei pergunta qual o caminho para o povoado mais prximo e, entendendo que teria de tomar uma estrada que somente encontraria com dificuldade mesmo luz do dia, declara que, com ou sem autorizao do anacoreta, seria seu hspede nessa noite. deixado entrar, no sem ser devidamente informado pelo eremita de que, se no envergasse as suas vestes eclesisticas, de pouco lhe serviriam as ameaas e que cede no por intimidao, mas para evitar escndalos. O rei entra na cela, onde um feixe de palha lhe ajeitado de modo a servir-lhe de cama. Consola-se com o telhado por cima de si, pensando que Uma noite depressa passa.
Sentindo, porm, outras necessidades, clama por uma ceia, observando: "com certeza haveis de reconhecer Que, aps o triste dia que tive de ter, Uma noite de alegria desejo passar." Esta insinuao de como gostaria de ser confortado, acrescida da informao de ser ele um corteso que se perdeu na grande caada real, no consegue levar o eremita a dar-lhe mais do que po e queijo, que o no satisfazem, como no lhe agrada a "bebida fraquinha" que lhe trazida. Por fim, o rei diz claramente o que pretende e que at ento somente insinuara. E diz o rei: "Por Deus verdadeiro, Vivendo num lugar to prazenteiro, Na floresta algo deves colher; Quando os monteiros vo descansar, De todos o melhor hs-de apanhar Entre os muitos veados a correr. No parece ser coisa incorrecta Tu teres um arco e tanta seta, Ainda que sejas, frade a valer." O eremito, por seu lado, contesta manifestando a sua apreenso quanto ao convidado o querer levar confisso de qualquer acto contrrio s leis da caa, que, passado a ouvidos reais, corresponderia sua morte. Eduardo promete-lhe segredo e insiste em que lhe arranje carne de veado. O frade lembra-lhe os deveres prprios dos clrigos e persiste afirmando-se inocente de qualquer falta. "Muitos dias tenho passado Sem na carne poder tocar, Bebendo s leite de vaca. Agasalha-te, vai dormir. Protejo-te com minha capa, Que te ir aconchegar." O manuscrito deve estar incompleto, pois no se descobre o motivo que finalmente leva o frade a servir o rei. Contudo, denomina o hspede de "boa pessoa", garante que poucos assim o tm visitado e apresenta-lhe o melhor que h na ceia. So postas duas velas na mesa iluminando po, empadas, caa da melhor, tanto salgada como fresca, de que escolhem bons nacos. "Teria de ter comido po seco",
afirma o rei Eduardo, "se no tivesse insistido tanto nas tuas qualidades de arqueiro. Agora, para poder ter comido como um prncipe, precisava duma bebidinha." Tambm isto o anacoreta fornece, mandando o ajudante buscar um vaso de quatro gales escondido debaixo dum dos cantos da ca ma, comeando de imediato os trs a beber a srio. A pndega segue sob a orientao do frade, que vai proferindo frases empoladas, mas apropriadas, que cada bebedor tem de repetir antes de esvaziar o copo, algo correspondente aos brindes que mais tarde surgiriam. Um bebedor dizia fusty bandias, ao que o outro era obrigado a responder Stri e pantnere, enquanto o monge ia soltando piadas a propsito da falta de memria do rei, que por vezes se esquecia do que tinha a dizer. A noite passa-se neste pagode. De manh, antes de partir, o rei convida o seu anfitrio a ir corte para que lhe possa retribuir a hospitalidade e mostra-se extremamente satisfeito com as horas que passaram juntos. O prazenteiro eremita acede por fim a arriscar-se a ir ali procurar Joc Fletcher, o nome que o rei assumira. Antes de o rei partir, o monge ainda lhe faz umas demonstraes da sua percia como arqueiro. O rei, regressado ao pao, retoma os seus afazeres. O romance vago. no explicando como o monge descobre a verdade, o que provavelmente ser como noutros contos do mesmo gnero em que o anfitrio, preocupado por ter, talvez, faltado ao respeito ao soberano quando incgnito, fica agradavelmente surpreendido quando recebe honrarias e recompensa. Na coleco de Mr. Hartsthorne existe um romance, cujo teor muito semelhante, chamado King Edward and the Shepherd(3), que bem analisado, mais curioso do que o The King and the Hermit(4), mas que no momento no viria a propsito(5), pois somente se desejava mostrar as parecenas do eremita pouco ortodoxo com Frei Tuc da histria de Robin dos Bosques. O nome de "Ivanho" vem duns versos antigos. Todos os romancistas, numa ou noutra ocasio, pretenderam como Falstaff, arranjar uma oportunidade para conseguirem nomes de bom agrado. Neste caso, o autor recordou-se duns versos onde apareciam os nomes de trs casas senhoriais confiscadas pelo antepassado do celebrado Hampden, *3. O Rei Eduardo e o Pastor. (M do T) 4. O Rei e o Eremita. (N. do T.) 5. Como o eremita, o pastor cria grande confuso numa caada real. Serve-se, porm, duma funda e no dum arco. Utiliza tambm frases especiais quando bebe, sendo o "santo" Passelodion e a "senha" Berafriend. Entende-se a graa que os nossos antepassados viam nestas coisas, que, no fundo, no passavam de desculpas para os copos.
devido a os seus proprietrios terem batido no Prncipe Negro com uma raqueta quando, jogando tnis, discutiam. Tring, Wing e Ivanho, Pelo golpe que apanhou, A praa todos levou, E bem que por a ficou. O termo agradou ao escritor por dois motivos, sendo, em
primeiro lugar, um velho nome ingls e, em segundo, porque nada revelava do contedo da narrativa. Esta ltima caracterstica via-a como de grande interesse e importncia. Um ttulo tem de atrair o interesse dos livreiros ou editores. que, acontece, baseados nele somente, conseguem efectuar vendas com a obra ainda no prelo. Tambm sucede que, quando o autor permite que o ttulo crie sua volta grande expectativa antes da sua publicao, a obra a ela no venha a corresponder, constituindo um erro tremendo para a sua reputao literria. Alm disso, quando aparece um ttulo como The Gunpowder Plot (6) ou qualquer outro ligado histria, os leitores, sem sequer terem visto o livro, j formaram uma ideia sobre o que tratar e do gnero de prazer que lhes proporcionar. Poder ficar desapontado e acusar a pessoa do escritor desse seu sentir. Deste modo, o aventureiro literrio ver-se- criticado no por no ter acertado no alvo, mas, sim, por ter atirado a sua flecha numa direco em que nem mesmo tinha sonhado. Poder-se- acrescentar que na sua obra o escritor incluiu tambm um nome dos da lista de guerreiros normandos do Manuscrito de Auchinlec , o do tremendo Front-de-Boeuf. Ivanho foi, desde que surgiu, um sucesso, podendo dizer- se que concedeu ao autor liberdades propiciadoras da execuo de composies fictcias tendo por cenrio a Inglaterra e a Esccia. A figura de Rebeca criou tal impresso entre muitas das leitoras que o escritor chegou a ser censurado por, ao estabelecer o destino dos seus personagens, no ter dado a sua mo a Ivanho, em vez da menos interessante Rowena. Mas, j no se falando nos preconceitos do tempo, tornando tal unio quase impossvel, dir-se- que teria pensado que um personagem to altamente virtuoso e de esprito to elevado se lhe degradariam as virtudes compensando-as com prosperidades materiais. A Providncia v valia no mrito de quem sofre, mas doutrina perigosa e qui fatal ensinar aos jovens, os maiores leitores de romances, que a rectido de conduta e de princpios est naturalmente ligada ou correspondentemente *6.- A conspirao da plvora. (N. Do T.)
premiada pela satisfao das paixes ou realizao de desejos. Em resumo: se a um personagem virtuoso e altrusta dado o acaba por receber riquezas, grandezas, categoria ou ser premiado por paixes semelhantes que Rebeca sentia por Ivanho. o leitor concluiria que a virtude compensa. S que uma vista de olhos nossa volta nos revela que o altrusmo, o sacrificar de paixes a princpios, raramente so deste modo recompensados, sendo o mais comum tais grandiosas atitudes receberem algo que muito maior: uma paz de esprito que o mundo nunca pode dar ou tirar. (SIR WALTER SCOTT) Abbotsford. 1 de Setembro de 1830.
Epstola Dedicatria AO REV. DR. DRYASDUST, F.A.S. (1) Residente em Castle Gate, Iorque Mui caro e estimado Senhor Seria quase desnecessrio mencionar as muitas e lgicas razes que me levaram a colocar o seu nome nas primeiras pginas da obra que se segue. No entanto, a mais forte de todas vos pode, talvez, vir a ser refutada pelas imperfeies do trabalho. Esperasse eu torn-la digna da sua patronizao e logo o pblico reconheceria a justeza da apresentao dum escrito destinado a ilustrar a antiguidade domstica da velha Inglaterra, e em especial dos nossos antepassados saxnios, ao ilustre autor de Essays upon the Horn of Kng UIptius, and on the Lands bestowed by him upon the patrimony Of St. Peter. Estou, todavia consciente de que a maneira, leve, Pouco satisfatria e trivial, como os resultados das minhas investigaes no passado foram transferidos para o papel impede a obra de pertencer quela classe que altivamente tem o mote Detur dgniori, e, por isso mesmo, temo incorrer no crime punvel de presuno ao colocar o venervel nome do Dr. Jonas Dryasdust no comeo dum livro que os antiqurios mais exigentes classificaro entre os fteis romances e novelas de hoje em dia. Desejo de todo o corao justificar-me ante tal possvel acusao, pois, ainda que confie na apologia benevolente da sua amizade, no quereria ser condenado pelo pblico por falta to grave como aquela que os meus temores me dizem poder vir ser acusado. Sou, pois, obrigado a recordar-lhe a discusso que tivemos sobre este tipo de trabalhos, num dos quais as questes privadas e familiares do seu douto amigo nortenho Mr. Oldbuc de Mon burns *1. - Fellow of the society of Arts (membro da Sociedade de Artes). (N. do T.
foram to injustificadamente postas a nu, e durante a qual analismos a razo da sua popularidade nesta poca indolente, exigindo, seja qual for o seu mrito, que sejam escritos pressa. logo de modo contrrio a todo as regras prprias das epopeias. Julguei ento ser sua opinio encontrar-se o encanto inteiramente na arte com que autores desconhecidos, quais um segundo M Pherson, dos armazns de antiguidades. que, espalhadas em seu redor, lhe supriam a preguia ou falta de inventividade. recordando-lhe acontecimentos que, de facto, no h muito haviam sucedido no seu pas, pelo que incluiu na sua histria personagens autnticos a quem nem sequer se deu ao trabalho de ocultar os nomes. No se passaram mais de sessenta ou setenta anos, de acordo com a sua opinio, sobre o tempo em que todo o Norte da Esccia tinha um governo quase to simples e patriarcal como o dos nossos fiis aliados
Mohaw s e Iroqueses (2). Admitindo-se que. se o escritor no viveu nos tempos que descreve, dizia o senhor, ter de ter conhecido pessoas que pertenceram e cresceram nesses mesmos tempos. Mas, mesmo nestes ltimos trinta anos, tanta coisa mudou na Esccia que as pessoas olham para os costumes sociais dos seus antepassados imediatos como se dos da rainha Ana (1702- 1714) ou at do perodo da revoluo (1653-1658) se tratasse. Continuando, disse: "Com os elementos sua disposio, pouco pode haver que embarace um escritor, se se exceptuar o muito de que dispe para escolher, no surpreendendo portanto que, mal comece a trabalhar uma mina to rica, consiga obter crditos e lucros muito superiores facilidade do seu labor. " Admitindo (no o poderia negar) a verdade destas concluses, no posso deixar de estranhar que nenhuma tentativa tenha sido feita para se aguar o interesse pelas tradies e maneiras da velha Inglaterra, parecena das que se conseguiram a propsito dos nossos mais pobres e menos celebrados vizinhos. O verde de Kendal, ainda que seja mais antigo, dever-nos- ia ser to querido como os variados xadrezados o so no Norte. O nome de Robin Hood dever ecoar to alto como o de Rob Roy, assim como os patriotas ingleses nos devero merecer o mesmo respeito que os Bruces e os Wallaces da Calednia. Se o cenrio meridional menos romntico e sublime do que o das nossas montanhas nortenhas, *2. Tribos de ndios norte-americanos. N. do T.)
ter-se- de lhe reconhecer uma proporcional superioridade em beleza e doura para que, perante o todo, possamos exclamar como o patriota srio, "No sero o Farpar e o Abana, rios de Damasco, melhores do que todos os rios de Israel?" As objeces ao meu propsito, caro Doutor, eram, como se lembrar, de duas espcies. Insistia nas vantagens de que o escocs dispunha na proximidade dos tempos que tratava. Muitos, ainda vivendo, fez-me notar, se lembravam de gente que tinha no s visto o clebre Roy M Gregor, mas at se tinham divertido e lutado ao lado dele. Todas aquelas questes mnimas pertencentes vida privada e maneira de ser que do verosimilhana a uma narrativa e vida dos personagens so ainda lembradas na Esccia. Na Inglaterra, pelo contrrio, a civilizao j se instalou completamente h tanto tempo que as ideias dos nossos antepassados apenas podem ser vislumbradas em bolorentos registos e crnicas, onde os seus escritores parece terem, perversamente, conspirado para eliminar todos os pormenores de interesse, substituindo-os por floreados de eloquncia monstica ou banais reflexes morais. Colocar em despique um escritor ingls e outro escocs, dando-lhes como tarefa o reincorporar e o revivalizar de tradies das suas naes, era, segundo o seu ponto de vista, altamente injusto e desigual. O mgico escocs, afirmou-se, seria a bruxa de Lucan, que, com toda a facilidade, percorria um campo de batalha muito recente, escolhendo para ressuscitar, graas s suas feitiarias, um corpo que pouco antes fervilhava de vida e cuja garganta ainda mal acabara de emitir o seu ltimo som. At o poderoso Erictnio se veria obrigado a escolher um
assunto desses que apenas a bruxaria poderia reanimar: [...] gelidas leto scrutata medullas, Pulmonis rigidi stantes sine vulnere fibras Invenit, et vocem defuneto in corpore quoerit. O autor ingls, por seu lado, sem se lhe atribuir menos sagacidade do que ao nortenho Warloc , pode, comentou, apenas dispor da liberdade de escolher o seu enredo sujando-se na poeira antiga. onde nada se encontra a no ser ossos calcinados, mofentos e desarticulados, semelhantes aos que cobriram o vale de Josafat. O senhor manifestou tambm a sua preocupao quanto a os pouco patriticos preconceitos dos meus conterrneos poderem no lhes permitir imparcialidade em relao ao trabalho que eu tentava apresentar-lhe como um xito possvel. E isto, afirmou-me ainda, no era inteiramente devido a uma preferncia geral pelo que era estrangeiro,
mas resultante em parte das improbabilidades advindas das condies especiais em que se situam os escritores ingleses. Se se lhes descreve um acumulado de ms maneiras e um estado social primitivo como o das Terras Altas escocesas, esto prontos a aceit-lo. E com razo, tratando-se de leitores vulgares, ou nunca sequer viram aquelas regies ou, quando muito, numa excurso de Vero, deram uma vista de olhos queles desoladas terras, onde comeram mal, dormiram pior em camas de rodas, passaram de desolao em desolao, mas sempre prontos a aceitar, toda e qualquer coisa estranha que lhes contassem acerca daquele povo bravio, extravagante e perfeitamente condicente com o ambiente. Mas essas mesmas pessoas, bem sentadas nas suas aconchegadas salas de estar, ao calor da sua lareira, no se mostraro muito dispostas a aceitar que os seus prprios antepassados tenham vivido vidas muito pouco diferentes daquelas, que a torre em runas que vem das suas janelas albergou, uma vez, um baro perfeitamente capaz de o enforcar sem qualquer tipo de julgamento, que os moos que lhe cuidavam do quintal eram h uns sculos meros escravos e que a total e completa fora feudal se estendia aldeia prxima, onde agora o advogado goza de maior importncia do que o senhor do solar. Embora reconhecendo a fora de tais argumentos, confesso no os considerar inultrapassveis. A falta de material , de facto, um escolho imenso, mas ningum sabe melhor do que o Dr. Dryasdust que quem se embrenha nas coisas antigas encontra sempre pormenores acerca da vida privada dos nossos maiores, dispersas pelas pginas da histria, onde, isolados, representam papel menor, mas que, coligidos, permitem iluminar muito satisfatoriamente a vie prive dos nossos avs,,,;. Na verdade, estou convicto de que, embora eu Possa falhar a minha tentativa, com bastante trabalho de investigao e aproveitamento do que j conhecido, como sucedeu com o Dr. Henry, do falecido Mr. Strutt e, acima de todos, Mr. Sharon Turner, algum melhor do que eu alcanar sucesso. Desta forma, protesto de antemo contra qualquer argumento baseado no falhano da presente tentativa. Por outro lado, e como disse j, se conseguir um retrato verdadeiro dos antigos costumes ingleses, poder-se esperar toda a boa vontade e bom senso dos meus compatriotas para um bom acolhimento.
Tendo, o melhor que pude, respondido ao primeiro grupo de objeces, ou, pelo menos, demonstrado a minha deciso de ultrapassar todas as barreiras que a sua prudncia possa ter erguido, dar-lhe-ei, em pequeno resumo, conhecimento das minhas caractersticas pessoais.
Na sua opinio, parecia que a prpria profisso de pessoa dada s coisas antigas, trabalhando em coisas srias. ou, como o vulgo poder frequentemente pensar, aborrecidas e pormenorizadas, devia ser vista como incapacitante para quem quisesse contar uma histria destas. Permita-me, porm, caro Doutor, dizer-lhe que essa observao mais formal do que substancial. certo que obras to ligeiras podero no servir ao severo gnio do nosso comum amigo Mr. Oldbuc . No entanto, Horace Walpole escreveu uma histria de duendes que a muitos encantou e George Ellis conseguia transferir toda a fascinao brincalhona dum humor com tanto de delicioso como de raro para o seu Abridgment of the Early English Metrical Romances (3). Desta maneira, ainda que possa vir a lamentar a minha audcia momentnea, disponho, quanto mais no seja, de precedentes respeitveis a meu favor. indiscutvel que um antiqurio mais exigente do que eu poder pensar que o misturar de verdade com fico me leva a poluir a histria com inventos modernos, dando falsas impresses nova gerao no que respeita poca que descrevo. Aceito a contraposio como vlida, mas rebato-a com as consideraes que se seguem. exacto que nem posso, nem pretendo, manter uma exactido total. mesmo em questes ligadas s vestes, quanto mais em pontos de maior importncia como a lngua e as maneiras. Mas o motivo que me probe escrever os dilogos do livro em anglo-saxo ou francs da Normandia, e que me no deixa apresentar ao pblico um trabalho com personagens de Caxton ou Wyn en de Worde, o mesmo que evita quaisquer pretenses para me limitar ao perodo durante o qual a histria decorre. Necessita-se, para dar interesse ao assunto, que seja como que traduzido para modos e falares actuais. Nunca ningum conseguiu incutir tanta fascinao literatura oriental como a que o Sr. Galland obteve na sua primeira verso das Mil e Uma Noites, onde, retendo, por um lado, todo o esplendor dos costumes do Oriente e, por outro, a selvajaria da fico do mesmo Oriente, os misturou com sentimentos e expresses de cotio, tornando-os inteligveis e interessantes. ao mesmo tempo que abreviava as longas e montonas narrativas, resumia as maadoras reflexes, punha de parte as repeties sem fim do original rabe. No final, os contos no eram to puramente orientais, mas declaradamente muito mais apropriados ao mercado europeu, onde alcanaram um xito sem rival, *3. - Eptome de Antigos Romances Ingleses em Verso, (N. do T.)
afastados daquilo a que o leitor ocidental est acostumado. Fazendo justia multido que, esperano-o. devorar com avidez este livro, descrevi os nossos antigos em linguagem moderna e talhei as personalidades e sentimentos dos meus tipos de maneira que o leitor hodierno no se sinta demasiado envolvido pela secura da antiguidade pura. Neste ponto, ouso insistir, no excedi a licena permiti da a quem escreve fico. O falecido Mr. Strutt, autor de raro engenho, agiu, no seu romance Queen-Hoo-Hall, segundo outro princpio; e, fazendo uma distino entre o que antigo e o que moderno, esqueceu-se, julgo eu, de que a grande zona neutra, a maior proporo, constituda tanto por costumes e sentires comuns a ns e aos nossos antepassados e destes para ns transmitidos sem alteraes, j que, sendo princpios naturais, tm de existir identicamente em ambas as sociedades. Assim, um homem de talento e de grande saber como antiqurio limitou o seu trabalho, dele retirando tudo que no fosse suficientemente obsoleto a ponto de estar esquecido e j no ser compreensvel. A licena que reivindico to necessria para o meu projecto que me atrevo a abusar um pouco mais da sua pacincia para melhor ilustrar a minha argumentao. Quem pela primeira vez contacta com Chaucer, ou outro poeta antigo, fica to surpreendido pela grafia antiquada, consoantes dobradas e aspecto desactualizado da lngua, que bem capaz de afastar para o lado a obra. aborrecido por v-la to cheia da ferrugem da velhice que o no deixa perceber e apreciar toda a sua beleza. Contudo, se algum amigo inteligente e sabedor lhe demonstrar que as dificuldades que o assustaram so mais aparentes do que reais, lho ler em voz alta, ou passar os termos vulgares para a ortografia actual, revelar ao proslito que somente uma dcima parte das palavras so, na realidade, arcaicas e facilmente o convencer a achegar-se quela "fonte de ingls impoluto" com a certeza de que, com um nada de pacincia, lhe ser fcil apreciar tanto o humor como a ternura com que o velho Geoffrey (1340?-1400) deliciou a era de Crssy e de Poitiers. Vamos um Pouco mais longe. Se o nefito, no seu recmdescoberto amor Pelo antigo, decidisse tentar imitar o que ora admirava, ter de comentar-se ser esse procedimento muito pouco judicioso se se pusesse a seleccionar no glossrio os termos e frases obsoletos que contm e empregasse somente aqueles que hoje se mantm, Foi este o erro do infeliz Thomas Chatterton, que, para imprimir sua linguagem
um aspecto de antiguidade, rejeitou todos os termos modernos e fabricou um dialecto diferente de qualquer outro jamais falado na Gr-Bretanha. Quem quiser imitar a lngua de antigamente com xito ter de atender mais sua gramtica, formas de expresso e disposio do que esforar-se na recolha de palavras antiquadas e fora do corrente que, como asseverei, aparecem nos escritores de antanho, com algumas diferenas de sentido. na proporo de uma em cada dez. O que me serviu para a linguagem tem ainda mais razo de ser no respeitante a sentimentos e costumes. As paixes, as nascentes de onde emanam. em todas as suas formas, so, de modo geral, as mesmas em todos os nveis e condies, em todos
os pases e pocas, pelo que resulta, logicamente, que as opinies, formas de pensar e aces, se bem que influenciadas pela situao social momentnea, tero, no seu todo, de se assemelhar entre si. Os nossos antepassados no tinham em relao a ns maiores diferenas do que as existentes entre judeus e cristos, por exemplo. Tinham "olhos, mos, rgos, dimenses, sentidos, afeies, paixes", e "comiam a mesma comida, feriam-se com as mesmas armas. estavam sujeitos s mesmas doenas, os mesmos veres e invernos os aqueciam e arrefeciam", exactamente como a ns. O teor das suas afeies e sentimentos ter de ter existido em relaes semelhantes s que temos. Conclui-se, portanto, que na matria de que um escritor dispe para um romance ou obra de fico como aquela a que deitei mos h uma grande poro tanto da fala como dos costumes apropriados ao tempo corrente e quele em que a aco decorre. permitindo-lhe a liberdade de escolha que da resulta e um alvio da sua tarefa, muito maiores do que a comeo possa parecer. Procurando exemplos numa arte irm, os pormenores do antiqurio sero comparados s caractersticas especiais duma paisagem a desenhar-se. A torre de menagem exige devida majestade, as figuras que lhe so acrescidas tero de revelar o carcter e as roupagens do tempo; a obra ter de reproduzir os pormenores tpicos, a cena escolhida como assunto. com penedos erguendo-se e cataratas despenhando-se. As cores tambm tero de ser copiadas da natureza, sendo o cu nublado ou sereno, conforme o tempo. e as tonalidades gerais as que predominem na paisagem. O pintor est preso pelas regras da sua arte imitao dos pormenores naturais, no lhe sendo, porm, imposto o ter de descer at aos mais nfimos pormenores, ou representao precisa de todas as ervinhas, flores ou rvores aparecendo no local. Estes e os menores efeitos de luz e sombra, prprios da cena na sua generalidade, esto, evidentemente,
ao dispor do artista de acordo com o seu gosto e sensibilidade. evidente que a permisso estendida em ambos os casos tem limites. O pintor no dever acrescentar algo que contrarie o clima ou a situao em que se enquadra a sua paisagem. No dever pr ciprestes em Inch-Merrin, nem pinheiros-silvestres em Perspolis. O escritor ocupa posio idntica. Por muito longe que avance na descrio de paixes e sentimentos em relao a escritos antigos que imite, nada lhes poder acrescentar que seja inconsistente com a poca que relata. Os seus cavaleiros, escudeiros, pees e guardas podero ser um pouco melhor explicados do que nas ingnuas linhas das iluminuras de velhos manuscritos, mas os caracteres e costumes tero de ser conservados. Sero as mesmas figuras desenhadas por mo mais firme ou, mais modestamente falando, executadas de acordo com um perodo em que os princpios artsticos so melhor compreendidos. As suas palavras no tm necessariamente de ser obsoletas e incompreensveis, mas, se possvel, no incluiro qualquer termo ou fraseado directamente demonstrando a sua origem moderna. Uma coisa empregar fala e sentimentos comuns a ns e aos nossos avs e outra dar a estes formas de sentir e modos de expresso dos seus descendentes.
esta, meu caro amigo, a poro mais difcil do meu trabalho. com franqueza, pouco espero poder satisfazer nesse ponto, quer o seu julgamento menos parcial, quer os seus mais vastos conhecimentos, at porque somente a custo satisfarei os meus prprios. Tenho conscincia de que serei considerado ainda menos verdadeiro quanto a consonncia e costumes por aqueles dispostos a escalpelizar a minha histria de acordo com rgidas referncias do perodo que os meus personagens ocupam. Pode ser que l tenha includo muito pouco denominvel moderno, mas extremamente provvel o ter confundido coisas ocorridas com dois ou trs sculos de intervalo e exposto no reinado de Ricardo I, acontecimentos mais possveis cem anos antes ou um bom bocado depois. Conforta-me pensar que enganos desses escaparo ao leitor mdio e que compartilharei desse aplauso mal devido com os arquitectos que, no seu gtico hodierno, introduzem, sem ponta de hesitao. regra ou mtodo. ornamentos pertencentes a outros estilos e perodos artsticos. Aqueles cujos estudos profundos lhes concedem meios de apreciao das minhas escorregadelas mais severos mostrar-se-o, qui, um tanto lenientes, pois sabem da dificuldade em causa. O meu esquecido e modesto amigo Ingulphus facultou-me inmeras sugestes, mas acontece
que a luz que o monge de Croydon e de Geoffrey de Vinsauff se dilui na aglomerao de assuntos Pouco interessantes e pouco inteligveis a ponto de nos fazer voar alegremente para as deslumbrantes pginas do bravo Jean Froissart (1333?-1400), se bem que estas tenham florescido num tempo bem distante do da minha histria. Portanto, amigo, se dispuser de generosidade bastante para me perdoar a presuno de armar para mim prprio um coronel de menestrel, feito numa parte de prolas autnticas e antigas e noutra de fancaria, estou convencido de que a sua opinio sobre a dificuldade do trabalho se conciliar com a sua imperfeita execuo. Pouco tenho a dizer acerca dos meus materiais. Encontram- se sobretudo no curioso manuscrito anglo-normando que Sir Arthur Wardour to ciosamente guarda no terceira gaveta do seu armrio de carvalho, quase no permitindo que se lhe toque, apesar de no conseguir ler uma s linha do texto. Nunca teria sido autorizado, durante uma visita Esccia, a ler aquelas preciosas folhas por tanto tempo se no lhe tivesse prometido de modo convincente que o designaria como o Manuscrito de Wardour emprestando-lhe uma individualidade de tanta importncia como a dos Manuscritos Bannatyne, Auchinlec e outros monumentos de pacincia dos iluministas gticos, Submeto sua considerao uma lista do contedo deste curioso documento, que talvez acrescente, com a sua aprovao, ao terceiro volume da minha histria, caso o impressor continue a exigir mais texto, logo que a minha narrativa esteja pronta. At sempre, bom amigo. J disse o suficiente para explicar ou apoiar a tentativa que fiz e que, contra as suas dvidas e a minha prpria capacidade, ainda acredito no ter sido v. Fao votos para que tenha recuperado da pontada de gota e sentir-me-ia feliz caso o seu mdico lhe autorizasse uma deslocao at aqui. Foram desenterrados vrios objectos curiosos perto da muralha e na prpria estao de Habitancum. A propsito desta, suponho que ter lido sobre o vndalo que
destruiu a esttua, ou, melhor, o baixo- relevo popularmente conhecido por "Robin de Redesdale". Parece que a fama de Robin atraa mais visitantes do que o crescimento da urze permitia naquele terreno valendo um xelim por acre. Reverendo embora, rogo-lhe que, por uma ocasio, se torne vingativo e ore comigo para que o brbaro sofra dum ataque de pedras tal que lhe parea carregar nas vsceras todos os fragmentos do pobre Robin.
No mencione isto em Gath para que os Escoceses se no regozijem por terem encontrado na casa dos seus vizinhos um caso parecido ao da destruio incrvel do Forno de Arthur. Se entrarmos neste terreno as nossas lamrias no tero mais fim. Os meus cumprimentos a Miss Dryasdust, a quem dir que tudo fiz na minha ltima visita a Londres para lhe arranjar os culos que pretendia e que j lhe mandei, esperando que tenham chegado em ordem e para sua inteira satisfao. Segue esta pelo recoveiro, pelo que temo demore um pouco(4). As ltimas novas que me chegam de Edimburgo relatam que o cavalheiro que ocupa a posio de secretrio da Sociedade de Antiqurios da Esccia (5) um dos melhores desenhadores do reino, pelo que muito se espera do seu jeito e zelo quanto reproduo de antiguidades do patrimnio que o tempo vai varrendo, qual vassoura de John Knox durante a Reforma. Uma vez mais, at sempre. Vale tendem, non immemor mei. Subscrevo-me respeitosamente, caro e reverendo Senhor Muito atentamente. LAURENCE TEMPLETON Toppingwold, Near Egremont, Cumberland, 17 de Novembro de 1817. *4. Esta previso tornou-se autntica dado que o meu douto correspondente s viria a receber a carta um ano depois de ter sido escrita. Menciona o facto para que o cavalheiro ligado a questes de ensino que agora ocupa o principal posto de controlo dos correios tente, por favor, mitigar um pouco as imensas taxas postais actuais, passando a melhor tratar os correspondentes das Sociedades Literria e Antiquria. Sei que isto j foi tentado, mas que a mala- posta arriou devido ao peso de encomendas dos scios e a empresa posta de parte. com certeza, porm, seria fcil dar mais robustez a esses veculos, fortalecendo-lhes a boleia e alargando-lhes o rodado para que melhor aguentassem a cincia dos antiqurios. Mesmo que passem a mover-se um pouco mais devagar, isso at ser agradvel para os viajantes tranquilos como eu. (Nota de L. T.) 5. Ao gosto e habilidade de Mr. S ene de Rubislaw, cujo nome est aqui subentendido, deve o escritor as gravuras ilustrativas das diversas localidades mencionadas nestes romances (1829).