Manuel de Moraes: Chronica do Seculo XVII
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Manuel de Moraes - J. M. Pereira da Silva
J. M. Pereira da Silva
Manuel de Moraes: Chronica do Seculo XVII
Publicado pela Editora Good Press, 2022
EAN 4064066409753
Índice de conteúdo
DUAS PALAVRAS
AO LEITOR
MANUEL DE MORAES
CAPITULO PRIMEIRO
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
DUAS PALAVRAS
Índice de conteúdo
AO LEITOR
Índice de conteúdo
Encontra-se na Biographia luzitana do abbade Diogo Barbosa uma succinta noticia de Manuel de Moraes, nascido em São Paulo (Brazil), pelos fins do seculo XVI, ou principios do XVII; autor de uma Historia da America, que se perdeu inteiramente, e de uma memoria em pró da acclamação d'el-rei D. João IVº, publicada em Leyde (Hollanda), no anno de 1641, com o titulo de{II} Prognostico y respuesta á una pergunta de un caballero muy ilustre sobre las cosas de Portugal; condemnado pelo tribunal do Santo Officio, relaxado em estatua no auto de fé de 6 de Abril de 1643, por apostata da religião catholica, e casado com mulher schismatica; e fallecido emfim em Lisboa, naturalmente, segundo o dizer de varias tradições; pela violencia, conforme outras não menos procedentes.
Fallando d'elle igualmente Innocencio Francisco da Silva no seu Diccionario biographico e bibliographico portuguez e brazileiro, accrescenta que pertencêra á companhia de Jesus em São Paulo, e fôra garroteado no auto de fé de 15 de Dezembro de 1647.
Outros escriptores, que procurárão lembrar-lhe tambem o nome, e nós particularmente no supplemento annexo á obra dos Varões illustres do Brazil durante os tempos coloniaes,{III} repetírão sómente o que avançára o abbade Diogo Barbosa, porque nem-uns esclarecimentos lográrão mais a este respeito, por maiores pesquizas que houvessem commettido.
Parece pois evidente que se não poderá jámais esboçar um estudo biographico e regular ácerca de Manuel de Moraes, por lhe faltarem os elementos precisos que illustrem e aclarem a physionomia, vida e feitos de um varão tão distincto, e cuja existencia é todavia incontestavel.
No desejo porém de torna-lo conhecido dos leitores, e de pôr a limpo a sua original e extravagante personalidade, traçamos proceder em relação ao escriptor paulista como o fizemos a respeito do poeta portuguez Jeronymo Cortereal, cuja biographia nos legárão todavia menos incompleta os autores passados.
A chronica de Cortereal terá assim uma{IV} imitação na de Manuel de Moraes. Comprehendia aquella a pintura da nação e da sociedade portugueza durante os ultimos dias de D. Sebastião até o jugo castelhano. Encerrará esta a descripção dos successos occorridos durante o seculo XVII em São Paulo e nas missões jesuiticas de Guayrá; em Pernambuco e nas guerras dos Hollandezes; nos Paizes Baixos e na emigração dos judêos portuguezes; em Portugal e no predominio sangrento da Inquisição.
Confundir-se-hão no mesmo quadro a historia real e a imaginação aventureira. Não é este o ramo mais popular da moderna litteratura, a formula mais estimada pelo publico da actualidade?{1}
MANUEL DE MORAES
Índice de conteúdo
CAPITULO PRIMEIRO
Índice de conteúdo
Quem presentemente seguir da cidade de Santos para a de Sao Paulo aproveitando a estrada de ferro, que se acaba de construir entre os dous pontos mais interessantes da provincia; e lançar os seus olhos curiosos sobre a capital, assentada doce e preguiçosamente nos cimos de serras altanadas, que affrontão os ares; bafejada por uma atmosphera{2} encantadora e portentosamente diaphana; avistada de longe por todos os lados como uma habitação aerea; coroada de torres de igrejas e de edificios risonhos; cercada de campinas que se somem na confusão do firmamento; regada aos pés pelo riacho Tramandatahy, que a pequena distancia, e na propria planicie descoberta, precipita as suas aguas claras e boliçosas no seio do rio Tieté, assemelhando-se já na infancia a um monarcha poderoso quando o assorberbão as copiosas torrentes das chuvas: não póde ao certo imaginar o que fôra esta povoação nos primeiros annos do seculo XVII.
O celebrisado Martim Affonso de Souza, donatario das terras que correm do Cabo de São Thomé para o sul até encontrar as ultimas cincoenta leguas reputadas pertencentes á corôa portugueza, e que havião sido concedidas a seu irmão Pedro Lopes de Souza, edificára o arraial de São Vicente, á beira do{3} mar, povoára-o de gente laboriosa e aventureira, e passára aos moradores ordem de internar-se pelo solo, explora-lo, e cultiva-lo, travando amizade e pazes com as tribus gentias e tranquillas que encontrassem pelo caminho.
Seguio-se a São Vicente o arraial de Santos, como porto mais favoravel á navegação e ao commercio, por mais resguardado dos ventos e das furias do oceano. Dobrando depois as serras alcantiladas e graniticas que se avistavão, descobrírão os Portuguezes planicies immensas e uberrimas, que se estendião voluptuosamente pelas alturas dos montes, e fundárão então ahi a povoação de São Paulo, perto das tabas e residencias da tribu de Tyberiçá, que habitava os sitios deleitosos de Piratininga, e acolhêra os invasores como amigos e alliados, contando com o seu auxilio para combater e resistir aos valentes Tamoyos do Rio de Janeiro, que pela parte{4} do Norte commettião assaltos e depredações incessantes, roubavão e assassinavão os vizinhos sem piedade e nem commiseração, e aterrorisavão com as suas façanhas as raças mansas de Carijós, e Goyanazes, que possuião as terras e florestas da parte meridional da capitania hoje denominada provincia de São Paulo.
Não se tinhão ainda derribado as mattas poderosas, que cobrião o solo, e negavão caminho. Não se havião vencido ainda as correntes rapidas e desordenadas dos arroios, que cortavão as communicações com o largo e fundo das suas aguas possantes. Não se encontravão ainda pousos e ranchos semeiados pela estrada, para allivio dos viajantes. Não estavão ainda edificadas as lindas casas de campo, rodeiadas de pomares e jardins, e enfeitadas de flôres cheirosas, que alegrão os sentidos, e extasião com doçuras ineffaveis.
Não apparecia ainda o pittoresco arraial{5} de São Bernardo, brilhando como preciosa quinta de fidalgo no seio de arvoredos fructiferos.
Desde que se attingia ao alto dos serros, de onde se descortina o panorama soberbo das terras inferiores, rasgadas pelo curso caudaloso dos rios, e do mar fremente, que sussurrava de continuo como o gemido da eternidade, até que se chegasse á povoação de São Paulo, fulgurava a só natureza virgem com a magestade das suas arvores, a grandeza dos seus penhascos, a immensidade das suas cataractas de aguas, a extensão dos seus desertos, e a pompa e sombrio dos seus reconditos segredos.
Traçárão-se a esmo os caminhos, descendo e trepando como animaes bravios da solidão. Transpunhão-se os arroios a nado, as catadupas com páos agrestes e mal afeiçoados, que se destruião e atiravão por cima d'ellas para servir de pontes de passagem.{6} Desperdiçavão-se dias e noites inteiras na viagem difficultosa, dormindo-se ao ar, sobre o chão humido, ou em redes pendidas dos galhos das arvores. Que espirito extraordinario imaginaria n'essa época que uma estrada de ferro, movida pelo vapor, levaria hoje em poucas horas os viajantes de Santos a São Paulo, domando a natureza, avassallando os elementos do solo, e correndo mais que as aguias velozes, e quasi tanto como a aragem fresca do vento!
Se por um lado perdeu com a metamorphose a poesia das brenhas, esplendores e primitiva magnificencia das localidades, não resplandece porém nos progressos da sociedade actual, nos descobrimentos arrojados do genio do homem, outra poesia nova, que se reveste igualmente de encantos e vôos admiraveis, posto diametralmente differentes?
Não possuia a povoação de São Paulo nos{7} primeiros trinta annos do seculo XVII mais de trezentas a quatrocentas casas, com cerca de tres mil moradores, gentios catechisados e livres em maioria, Portuguezes, mamelucos ou mestiços de branco e gentio, mulatos e pretos escravos. Erão pela maior parte as habitações simplices choupanas, cobertas de telhas ou de palha; quatro ou cinco igrejas regulares, e não mais de trinta a quarenta predios de apparencia senhoril. Estreitas e tortuosas ruas traçadas sem o nivellamento preciso do solo exigião degráos para subidas e descidas, que communicassem os varios outeiros, sobre que o arraial pousava. Dominando a eminencia banhada aos pés pelo riacho Tramandatahy, pairava a casa da companhia de Jesus, limpamente caiada, erguida em sobrados, coroada de telhas vermelhas, dominando a planicie, que acabava nos montes da Penha, atirando uma cerca repleta de larangeiras, jaboticabeiras,{8} e varias arvores fructiferas pela quebrada do outeiro até as margens do arroio, e encostada á igreja do Instituto modestamente edificada, tendo ao lado uma torre pittoresca e um cemiterio já bastante povoado de sepulcros, e na frente uma praça irregular bem que espaçosa.
As varias classes dos moradores se differençavão igualmente pelos costumes e tendencias. Empregavão-se os escravos nos trabalhos infimos e agricolas. Dedicavão-se os Portuguezes nascidos na Europa ou já no Brazil ao commercio e industria, á construcção e edificação de propriedades, a compras e vendas de terrenos, ou permutas em grosso ou a varejo de objectos de mercancia. Regimentos militares e milicianos defendião a povoação. Algumas ordens monasticas possuião já conventos. Mais numeroso e importante se manifestava porém o Instituto de santo Ignacio de Loyola, ao qual respeitavão{9} as proprias autoridades civis e militares, em obediencia ás ordens terminantes e rigorosas que lhes chegavão da metropole européa, recommendando-lhes todo o apoio e protecção aos jesuitas, como os apostolos mais fervorosos da catechisação dos indigenas, e os esteios mais firmes do altar e do throno. Posto em geral mais viciosos que todos os habitantes, se reputavão os mamelucos descobridores audazes de terras interiores, e exploradores perspicazes dos desertos, incitando continuamente a cobiça dos Portuguezes, que chegavão á povoação nos desejos e ancias de correrem atrás de minas de ouro e prata, que dizião existir para as partes de dentro da capitania, e para os confins e limites do Perú, e de guerrearem os gentios salvagens, que se reduzião ao captiveiro, segundo as leis existentes, quando apanhados sómente nos combates, ou convencidos de crimes.{10}
Formavão os caboclos catechisados uma classe innocente, submissa, devota, mas activa e industriosa. Compunha-se de operarios, agricultores, musicos e cantores. Apprendião todos os officios, e gostavão de procissões religiosas, festas nos templos e solemnidades apparatosas. Veneravão e obedecião aos padres da companhia de Jesus como a seus pais e protectores, seus amigos e mestres, seus medicos e anjos tutelares. Ouvião-lhes os conselhos, attendião-lhes aos sermões e predicas, assistião nas suas escolas ás lições da lingua e grammatica portugueza, ás explicações do catechismo romano, e ao exercicio do canto e musica, com que particularmente os deleitavão os jesuitas, alimentando-lhes a fé, e moralisando-os convenientemente. Applicavão os filhos desde a infancia aos coros das igrejas, ao tanger dos instrumentos sonoros, e ao serviço religioso.
Estava a capitania de São Vicente dominada{11} ainda pelos herdeiros do donatario, e administrada em seu nome por autoridades de sua escolha, conhecidas pelos titulos de locotenentes e capitães-móres. Prestavão todas preito todavia ao governador do Rio de Janeiro em tudo quanto se considerava direcção politica.
Não erão raras as lutas em que se envolvião os jesuitas contra