A Religiosidade Dos Celtas e Germanos
A Religiosidade Dos Celtas e Germanos
A Religiosidade Dos Celtas e Germanos
Celtas e Germanos
IV Simpósio Nacional e III Internacional de Estudos Celtas e
Germânicos. UFMA, 5 a 8 de outubro de 2010.
Realização
Grupo Brathair de Estudos Celtas e Germânicos
NEVE: Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos
Coordenação
Prof. Dr. Johnni Langer (UFMA)
Profa. Ms. Luciana de Campos (UFMA)
Comissão Organizadora
Profa. Dra. Adriana Zierer (UEMA)
Fernanda Rosete da Silva (UFMA)
Gracielly Ferreira Nogueira (UFMA)
Kellyenne Silveira Souza (UFMA)
Danillo Sergio da Trindade Soleiro (UFMA)
Zuleide Texeira (UFMA)
Denise Reis Mendes (UFMA)
Priscila Corrêa (UFMA)
Jairo Muniz (UFMA)
Comissão científica
Profa. Dra. Adriana Zierer (UEMA)
Prof. Dr. Álvaro Bragança Júnior (UFRJ)
Prof. Dr. João Lupi (UFSC)
Profa. Dra. Adriene Baron Tacla (UFF)
Profa. Dra. Arlete Mota (UFRJ)
Prof. Dr. Moizés Romanazi Torres (UFSJ)
Prof. Dr. Johnni Langer (UFMA)
Profa. Ms. Luciana de Campos (UFMA)
Apoio
Departamento de História – UFMA
Departamento de História – UEMA
FAPEMA
Johnni Langer
Luciana de Campos (orgs.)
A Religiosidade dos
Celtas e Germanos
São Luís
2009
A religiosidade dos celtas e germanos: anais do IV Simpósio
Nacional e III Internacional de Estudos Celtas e
Germânicos/Johnni Langer; Luciana de Campos (orgs.).
São Luís: UFMA/Gráfica Santa Clara, 2010.
ISSN: 217589480X
1. História antiga. 2. História medieval. I. Langer, Johnni.
II. Campos, Luciana de. III. Grupo Brathair de Estudos
Celtas e Germânicos. IV. Universidade Federal do
Maranhão. V. Título.
CDU: 931
CDD: 930
APRESENTAÇÃO
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A religiosidade dos celtas e germanos
SUMÁRIO:
Prefácio
Estudos Celtas:
- Os Gálatas de São Paulo eram celtas?
João Lupi..................................................................................................9
- O ritual sacrificial de humanos e de animais entre os Celtas
Silvana Trombetta.................................................................................24
- Oppida celtibéricos: algumas considerações sobre os assentamen-
tos pré-romanos na Península Ibérica.
Irmina Doneux Santos.........................................................................42
- Mitologia e Religiosidade celta: proposta de interpretação a partir
do pensamento de Carl Gustav Jung.
Fátima Lobo..........................................................................................58
- A visão do diabo n´A demanda do santo Graal
Adriana Zierer..................................................................................... 88
Estudos germânicos:
- Saberes romanos: a religiosidade germânica em César e Tácito
Arlete José Mota................................................................................ 101
- O Conceito de Universal em John Duns Scot
Moisés Romanazzi Torres................................................................. 111
- De Imperador dos Últimos Dias a Anticristo – O papel escatoló-
gico e a demonização política dos imperadores germânicos (1152-
1250).
Vinicius Cesar Dreger de Araujo..................................................... 122
- A cristianização da Escandinávia nas sagas islandesas
Johnni Langer..................................................................................... 143
- Discussões etimológicas e religiosas sobre os berserkir e os ulfheðnar
Pablo Gomes de Miranda.......................................................................
.............................................................................................................165
- Breve análise de dois poemas líricos anglo-saxônicos sob a perspec-
tiva da tradição oral pré-cristã
João Bittencourt de Oliveira............................................................. 176
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consentiu que os celtas se instalassem do outro lado do braço de mar que, pelas
riquezas nele desembarcadas, ficou conhecido como o Saco ou Corno de Ouro
(Xrisokeras). Convidados pelo rei da Bitínia, Nicomedes, envolvido em guerra
civil, os celtas atravessaram o Bósforo e logo começaram sua obra guerreira;
porém alguns preferiram ficar no Corno de Ouro e usufruir das riquezas de
Bizâncio; até hoje esse lugar é conhecido como o bairro de Gálata, onde os
turistas iam visitar a ponte Gálata (que unia o centro da cidade ao bairro, e que
foi destruída por um incêndio), e onde a Torre Gálata foi reconstruída várias
vezes. Aí existiu um palácio, ou Saray, no cruzamento de avenidas em frente ao
atual Consulado da Grã-Bretanha, e nesse lugar nasceu o clube de futebol Ga-
latasaray. Na sua migração para oriente esse bairro foi o último remanescente
pacífico da passagem dos gálatas.
3. “Depois de saquearem a Macedônia e a Trácia passaram à Ásia e todos
os reinos ficavam ansiosos para que eles passassem para outros vizinhos; e eles
estavam tão prontos a servir como mercenários que nenhum exército naqueles
dias parecia prescindir de um contingente de tropas celtas” (Mahaffy 76 – 84).
Eram vistos como invencíveis, mas como estavam prontos para combater em
todos os lados muitas vezes se neutralizavam uns aos outros. E assim, depois
que Nicomedes da Bitínia os contratou, as razias em pouco tempo fizeram dos
celtas o terror da Ásia Menor. Sua violência era uma ameaça para a civilização
helenística. Nas suas incursões os celtas “encheram os corações com uma nova
espécie de terror” ao ponto de inspirar em Pérgamo um novo estilo de escultura
dramática. “As narrativas acerca da crueldade selvagem dos gálatas são assus-
tadoras, pois desrespeitavam todas as normas da guerra civilizada: deixavam
os mortos insepultos, roubavam todos os túmulos antigos, chacinavam e rap-
tavam, e até comiam os filhos dos gregos” (Mahaffy ib); nenhum personagem
das lendas homéricas era tão terrível. “Os gálatas podiam dominar nas batalhas,
mas não conheciam outro uso da vitória que não fosse a pilhagem e a rapina
sem propósito.” Estes “bárbaros do norte não tinham respeito por homens nem
por deuses, pela idade nem pelo sexo, por juramentos nem promessas, nem
tinham sentido de honra ou de misericórdia”(Mahaffy ib).
“Para os povos da Ásia Menor eles deviam parecer um flagelo divino,
um espinho na carne que infligia uma dor insuportável. Sua presença provoca-
va não só ódio e medo mas também o anseio pela chegada de algum salvador
que pudesse livrar o mundo civilizado dessa maldição” (Herm 45). Por isso
Antíoco III foi cognominado Soter, o Salvador, por tê-los derrotado (em 227
a.C).
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car deste mundo de maldade, segundo a vontade de Deus nosso Pai, a quem a
glória pelos séculos, assim seja. Me admiro de que tão depressa abandonastes
aquele que vos chamou pela graça (de Cristo), e que (o trocastes) por outro
Evangelho” (Gl 1, 1-6). Paulo diz e repete: há só um Evangelho de Jesus Cristo,
que ele revelou e que não vem dos homens. Paulo, que foi judeu e perseguiu os
cristãos não tem mais nada a ver com o judaísmo, pois recebeu uma revelação
divina, que lhe chegou diretamente; permaneceu apenas duas semanas junto de
Pedro, confirmando o que tinha recebido, nem conheceu então as comunida-
des cristãs da Judéia (Gl 1, 7-24) portanto não foi com eles que aprendeu o que
pregava de Cristo, mas o recebeu do próprio Cristo.
- capítulo 2: em diversas ocasiões Paulo rejeitou a submissão às práticas
judaicas, pois no seu entender a salvação está apenas na fé em Jesus Cristo, e
nisso ele fora aprovado pelos apóstolos; mas tendo visto as hesitações de Pedro
e de Tiago chamou a atenção deles, insistindo em que os cristãos vindos do
paganismo não deviam ser obrigados a cumprir as normas da Lei dos judeus.
Deixei a Lei dos judeus, diz ele, para viver para Deus: “vivo, mas não sou mais
eu, Cristo vive em mim (...) se a justiça se obtivesse pela Lei Cristo teria morri-
do em vão” (2, 1-21) .
- capítulo 3. “Ó gálatas sem juízo, quem é que vos enfeitiçou?” (3,1)
Começaram tão bem as vossas comunidades segundo o Espírito, diz ele, porque
agora perder o juízo e tornar a viver segundo a carne? Deus fez a promessa a
Abraão, que estendeu a toda a sua descendência, que somos nós. Se durante
algum tempo a promessa ficou sob o domínio da Lei de Moisés foi depois su-
perada por Cristo: nele todos são a herança de Abraão, e já não há judeus nem
pagãos, nem escravo nem livre, pois todos são um só (3, 1-29).
- capítulo 4: aqueles que crêem em Cristo não são mais escravos de obri-
gações, mas são livres na fé. Quem não conhece o verdadeiro Deus é escravo
de deuses que não existem; mas depois que o conhecestes, diz ele, como podeis
voltar atrás e ser escravos de coisas inconsistentes e sem poder? Não deveis
vos submeter às normas que são regidas pelos dias, meses, estações e anos, e
desabafa: “Perdi tempo convosco”. A primeira vez que Paulo lhes anunciou o
Evangelho estava doente, mas foi recebido com alegria e dedicação. Paulo se
queixa amargamente do erro dos gálatas e diz que, como não pode ir vê-los não
sabe o que fazer. E compara a herança de Abraão com os seus filhos, um que
nasceu da escrava Agar, e esse é submetido à Lei, e outro que nasceu da esposa
Sara, e esse é livre (4, 1-31).
- capítulo 5: Quem foi libertado por Cristo não deve voltar ao jugo an-
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terior. Quem acha que será justo ou salvo por ser circuncidado e por praticar
a Lei cai em desgraça, pois é só o Espírito que liberta na fé a na caridade. Os
frutos do Espírito Santo e da caridade são: a ajuda mútua, a alegria, a paz, a
paciência, mas os que vivem segundo a carne porque se desviaram da verdade
vivem na desordem, se mordem e devoram uns aos outros, e se destroem; os
frutos dessa vida são: fornicação, impureza, obscenidades, idolatria, feitiçaria,
inimizades, ódios, disputas, invejas, cólera, ciúme, divisões, rivalidades, bebe-
deiras, comilanças e coisas semelhantes (5, 1-26).
- capítulo 6: Termina com uma longa exortação, cujo tema único é: os
irmãos devem ajudar-se mutuamente, sem se cansar de fazer o bem, e para isso
não é preciso ser circuncidado.
O tema da Epístola é claro: quem tem fé em Cristo está livre das obri-
gações do judaísmo, não precisa delas para ser salvo. Por seu lado a situação
dos cristãos gálatas é bem definida: foram evangelizados por Paulo, aceitaram
a fé em Cristo, mas, logo depois (“tão depressa abandonastes”), enganados por
pregadores judaizantes, começaram a adotar a circuncisão e outras obrigações
dos judeus. A nossa questão é: os gálatas a quem Paulo pregou eram judeus que
retornaram às práticas da Lei, ou eram pagãos que, depois de serem cristãos,
adotaram idéias judaizantes? No primeiro caso, se eram judeus não podiam ser
gálatas celtas; mas se eram pagãos podia ser que fossem celtas.
Ora Paulo dá a entender que o uso de rituais judaicos é um retorno,
uma volta atrás, e várias vezes diz explicitamente “voltar atrás” (palin), parecen-
do, pois, dirigir-se a judeus, e não a pagãos. Mas num contexto doutrinário, e
não literal, não é esse o entendimento das frases, pois tanto os pagãos como os
judeus são escravos e vivem fora da verdade; só os cristãos são livres e vivem
de verdade, porque vivem em Cristo. Portanto “voltar atrás” não quer dizer um
retorno de judeus ao judaísmo, mas o abandono da liberdade da fé verdadeira.
Mais ainda, há outras alusões e frases que só podem ser bem entendidas se
se referirem aos gálatas étnicos: refere-se aos pagãos convertidos, ou cristãos
vindos do paganismo, que não devem ser obrigados à Lei dos judeus (2,14); diz
que antes eles foram pagãos e eram escravos de falsos deuses (4,8); as festas e
celebrações segundo os dias, meses, estações e anos (4,10) seriam mais próprias
de pagãos vivendo ritos agrários do que de judeus da diáspora desenraizados
da terra; refere-se à circuncisão como uma prática que fora introduzida entre os
gálatas recentemente (5,2) e não como um costume que os judeus observavam
sempre.
Portanto os gálatas era gentios, isto é, não judeus, mas será que eram
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celtas? Em alguns trechos da Epístola parece que estamos a ver os celtas que
conhecemos de outras descrições: ó gálatas sem juízo, não se mordam uns aos
outros, parem de lutar uns contra os outros, não se destruam entre irmãos,
deixem-se de bebedeiras e comezainas, larguem a feitiçaria e a idolatria (Herm,
43 é desta opinião).
5. Temos ainda, porém, o problema crucial: será que São Paulo este-
ve nas terras dos gálatas celtas, no centro da Anatólia? Não é fácil decidir: os
biógrafos de São Paulo, e os comentários ao livro dos Atos dos Apóstolos e da
Epístola aos Gálatas desenham os itinerários do apóstolo com relativa unani-
midade, mas encontram muitas dificuldades para definir alguns detalhes; e há
lacunas nas informações acerca de comunidades que ele fundou. Os indícios
que podiam decifrar os itinerários nem sempre são claros, como a passagem
nos Atos dos Apóstolos (18,23) que diz que, para confirmar os discípulos, Paulo
percorreu, na terceira missão, o território gálata e a Frigia; o próprio Paulo, na
Epístola aos Coríntios (1 Cor 16, 3), escrita depois da dos Gálatas, menciona as
igrejas do sul da Galácia, mas não as do norte,
Outro testemunho vem do apóstolo Pedro, que na sua primeira Epístola
se dirige aos cristãos “do Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitína” (1 Pe 1,1)
isto é, às regiões do norte da Anatólia; se a Galácia é citada por Pedro neste
contexto geográfico ele não está falando da Província Romana do sul, mas da
sua parte norte, a Galácia celta, onde haveria cristãos - evangelizados por Paulo.
Estes textos nos deixam com a probabilidade de os gálatas da Epístola serem
celtas, mas não com a certeza. Antes de voltar aos textos do Novo Testamento
vejamos os argumentos vindos do mundo civil a respeito das designações ge-
ográficas.
Nas inscrições helenísticas e romanas distingue-se a Galácia da Pisídia
e da Licaonia, ou da Isáuria, portanto quando se nomeia a Galácia seria pro-
priamente dita a terra originária dos celtas. E, posteriormente, os deocumentos
quando se referem à Galácia como Província romana dizem expressamente: “a
província Galática” (Viard, 10), ou “a Galácia e regiões vizinhas”, ou ainda des-
crevem cada uma dessas áreas incluídas na Província. Há apenas um texto de
Tácito que atribui a esse termo gálatas o sentido amplo (observação de Viard,
que se encontra confirmada por Schlier, p.13). Também as assembléias pro-
vinciais se mantiveram separadas e a assembléia da Licaonia ou do Ponto não
faziam parte da Galácia. Para o povo da região central os romanos mantinham
o nome de galo-gregos.
Portanto o testemunho dos textos civis da época de Paulo parece incli-
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da Epístola não eram os gálatas celtas, mas, como vimos, há argumentos con-
trários, há também, como Dunn (p.7) quem afirme que não há argumentos
decisivos a favor de nenhuma opinião. Para nosso desconforto ficamos sem
saber se nestas investigações houve algum tipo de progresso, pois Viard (1964)
diz que a opinião tradicional é a de que os destinatários da carta eram os celtas,
e Lührmann (2001) diz que a tese contrária é que é a antiga.
Outros comentaristas contemporâneos da Epístola são de parecer favo-
rável à tese celta dos gálatas de São Paulo: a Bíblia do Instituto Pontifício (1967,
p.1457) adverte que, apesar de que não se diz explicitamente nos Atos dos
Apóstolos que Paulo tenha fundado congregações cristãs na Galácia celta, “ a
maioria dos intérpretes modernos pensa que os gálatas da presente epístola se-
jam os setentrionais da Galácia estritamente dita. Menos numerosos, mas não
de menor autoridade, são os que se decidem pela parte meridional da Galácia
romana”. E Mateos (1978, p.533) igualmente cauteloso, afirma: “a carta parece
ser dirigida aos gálatas propriamente ditos, isto é, às diversas comunidades não
especificadas da Galácia do norte”.
6. Se entre os destinatários da Epístola havia gálatas celtas então os gála-
tas teriam sido os primeiros celtas a se organizarem em comunidades cristãs,
muito antes dos gauleses e quatro séculos antes dos irlandeses. Porém a conti-
nuidade do cristianismo entre os gálatas não é muito bem conhecida, e apenas
podemos por agora indicar alguns personagens e testemunhos que iniciem ou
orientem uma pesquisa mais completa. Em 366 o jovem dálmata Jerônimo, en-
tão com 17 anos, passeou pela Gália e ficou algum tempo em casa de seu amigo
Bonósio na cidade de Treveris (residência imperial de Valentiniano I); as des-
crições que mais tarde ele fará (Contra Joviniano II, 7 em Fremantle 394) acerca
dos povos e costumes que conheceu é fantasiosa, e horripilante. Por isso há que
ter cuidado com o que ele diz dos gálatas no prefácio ao seu comentário à Epis-
tola de São Paulo (Fremantle 496b-498a), onde ele recorda essa viagem. Diz
Jerônimo que os gálatas são uma tribo de gauleses, curta de inteligência, mas
forte na fé, e “em lugar nenhum o Amen ressoa tão poderoso, como um trovão
espiritual, como quando eles fazem tremer os templos dos ídolos”. E afirma que
naqueles tempo (387) “Todos sabem, tão bem como eu, quantos cismas rasga-
ram e despedaçaram Ancira, capital da Galácia, e quantas diferentes doutrinas
falsas a destroem. Não vou, explicar os catafrígios, os ofitas, os bordoritas, e
os maniqueus, porque estes são nomes conhecidos e desgraçados. Mas quem
ouviu falar, seja em que parte for do Império Romano, dos passalorrincitas, dos
ascodrobes, dos artotiritas e outras esquisitices de que mal sei dizer os nomes?
E os vestígios dessas loucuras antigas duram até hoje. Falta dizer uma coisa,
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para completar o que anunciei ao princípio. Os gálatas, tal como todo Orien-
te, falam grego, mas a língua deles é quase igual à dos Treveros, em que pese
algumas alterações introduzidas pelo contato com a língua grega”. Jerônimo
não conheceu a Galácia ( a não ser talvez de passagem) mas conheceu a Gália
e Treveris, e o que diz a esse respeito pode ser tido como válido, o que nos leva
a supor que sua afirmação sobre o tumulto das heresias na Galácia era verda-
deiro. Passado apenas um século da missão de Paulo à Galácia a cristandade foi
ali palco de agitações montanistas, pois entre 156 e 172 difundiu-se pela Ásia
Menor a doutrina de Montano: originário de Frigia, ele apresentava-se como
profeta carismático que dizia ter recebido visões e revelações e anunciava uma
Nova Era do Espírito Santo. Atribuía às mulheres papel especial na Igreja, e
tinha Maximila e Priscila como suas profetizas; o montanismo atingiu rapi-
damente a Galácia, onde, segundo o relato de Eusébio na História da Igreja (5,
16,4) um bispo foi lá em missão para reduzir a heresia. Disse esse bispo: ”Há
pouco tempo visitei Ancira na Galácia e encontrei a Igreja local ensurdecida
com o barulho desta nova loucura, que não é profecia, como eles dizem, mas
falsa profecia (...). Tanto quanto fui capaz, e com a ajuda do Senhor, falei muitos
dias na igreja acerca destas coisas e respondi a todos os argumentos que eles
apresentavam. A assembleia ficou muito contente e confirmada na verdade”.
Mais tarde os personagens que nos são conhecidos, seus escritos e as tra-
mas em concílios deram a razão a Jerônimo: mais do que outras regiões do cris-
tianismo a Galácia era terreno fértil para todo tipo de fantasias religiosas, ou
com pouco fundamento teológico, e seus líderes enrolavam-se em armadilhas
intelectuais quando tentavam descobrir soluções novas. Assim foi com vários
dos bispos de Ancira durante as disputas sobre a divindade de Cristo contra os
arianos, como foi mais tarde na questão iconoclasta: diversos bispos de Ancira
– Marcelo, Basílio o antigo e Basílio o novo, acabaram depostos e desterrados
pelos concílios porque queriam salvar a fé mas não entendiam a ortodoxia e
emitiam opiniões que os demais bispos não aceitavam.
Em muitos aspectos pontuais o cristianismo da Galácia lembra as ou-
tras faces do cristianismo que conhecemos melhor: o irlandês e o gaulês, mas é
preciso cautela e maior estudo para afirmar que o cristianismo dos gálatas era
tipicamente celta, pois podem ser meras coincidências, e em muitos casos são
questões gerais, comuns a todo o mundo cristão em transição do paganismo
para a nova fé. Mas, sendo interessante lançar hipóteses e sugestões que orien-
tem novas pesquisas, podemos reparar: na atração, por vezes ousada e fantasio-
sa, por doutrinas estranhas e exóticas; na dificuldade com questões doutrinais,
facilmente se enredando no emaranhado de idéias; no caráter impulsivo das
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A religiosidade dos celtas e germanos
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A religiosidade dos celtas e germanos
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A religiosidade dos celtas e germanos
O sacrifício animal
As fontes textuais e materiais atestam de modo indubitável a prática
do sacrifício animal. De um modo geral, os ossos de animais encontrados em
poços, cavernas e santuários nos quais os rituais eram efetuados, revelam a pre-
dominância de animais domésticos ao invés de animais selvagens. O intuito
seria o de oferecer aos deuses espécies de grande valor para a vida dos huma-
nos: o cão (companheiro na caça), o cavalo (símbolo de poder e status), o boi
(subsistência da comunidade). O animal durante o ato sacrificial poderia ser
queimado inteiro, o que representaria, em termos práticos, uma grande perda
para a comunidade ou ser morto e ter seu corpo cortado em metades – parte
seria destinada aos deuses (queimada ou enterrada) e o restante (comumente as
melhores partes) seriam consumidas pelos sacrificadores e pela comunidade. O
sacrifício animal no qual a comunidade partilhava a carne servia ao propósito
da comunhão entre os indivíduos do mesmo grupo sendo importante para a
reafirmação da ordem social.
Em outros casos, os sacrifícios animais destinavam-se a beneficiar
indiretamente o grupo social. Plínio (Historia Natura, XVI.246) descreve um
importante sacrifício animal que estava relacionado à cura da infertilidade rea-
lizado na Gália e para o qual era utilizado o visgo, planta parasita do carvalho,
árvore que era sagrada para os celtas:
O visgo é raro e, quando encontrado, colhido com grande cerimônia e,
particularmente, no sexto dia da lua...Saudando a lua com uma palavra nativa
que significa “curando todas as coisas”, eles preparam um ritual de sacrifício e um
banquete ao pé da árvore e trazem dois bois brancos cujos cornos são amarrados
pela primeira vez nesta ocasião. Um sacerdote, vestido de branco, sobe na árvore
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A religiosidade dos celtas e germanos
e com uma foice dourada corta o visgo, o qual cai num manto branco. Depois,
finalmente, eles matam as vítimas, rogando ao deus o benefício para aquele que o
requer. Eles acreditam que o visgo misturado na bebida dá fertilidade a qualquer
ser vivo não fértil e que ele é um antídoto contra todos os males
Este sacrifício muito provavelmente destinava-se a propiciar a fertili-
dade de uma pessoa importante na comunidade (como a esposa de um chefe
local) que necessitaria gerar uma descendência para assegurar a perpetuação
do poder e a consequente coesão social do grupo. Quanto à utilização do vis-
go, ele também era empregado para a cura da insônia, pressão alta e tumores
malignos.
O propósito do sacrifício animal também podia evidenciar claras in-
tenções políticas. ROSS (1996), descreve a festa do boi na Irlanda (tarb feis),
cujo intuito era determinar o correto sucessor para o reino de Tara. O boi era
ritualmente morto e o druida ingeria sua carne e o caldo no qual o animal
tinha sido cozido. Os druidas cantavam a “palavra da verdade” sobre ele e, em
seus sonhos ele deveria “ver” o homem mais adequado para ser o rei. Algumas
vezes o sacerdote tinha que ser coberto com o couro do animal sacrificado.
Uma imagem que se reporta ao ritual sacrificial de bovinos aparece claramente
no caldeirão de Gundestrup (século V a.C.). Na representação, três enormes
bois surgem acima das figuras de três guerreiros (acompanhados por cães) que
enfiam espadas nas gargantas dos animais. O imenso tamanho dos bois em
comparação com o dos homens sugere o caráter divino da representação dos
animais. Não obstante, HATT (1989) visualiza nesta composição um sacrifício
no qual há somente imagens divinas: os bois seriam, na verdade, os touros fa-
tídicos cujas mortes deveriam ser executadas pelos dióscuros (em número de
três e não de dois devido às características da representação – um touro para
cada dióscuro). Em todo caso, seja uma representação com imagens humanas
e divinas ou somente divinas, o sacrifício do animal aparece enquanto um ato
ligado à religiosidade celta.
As práticas sacrificiais de bovinos revelam a força de sua permanên-
cia na medida em que se verifica sua modificação e incorporação ao mundo
cristão. Em períodos bastante posteriores, mesmo condenados pela Igreja,
sacrifícios de tal gênero eram realizados. ROSS (1996), menciona o Digwall
Presbytery Records (agosto de 1778), no qual é descrito o sacrifício bovino que
ocorria na Escócia e que foi praticado até o final do século dezoito. A prática
tinha lugar no Monte de Augusto, na ilha de Inis Maree. A ilha era consagrada
ao santo Maelrubha e a cerimônia consistia no sacrifício de bois ao santo pela
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A religiosidade dos celtas e germanos
comunidade local.
O sacrifício bovino bem como o de outros animais é claramente re-
gistrado no santuário de Gournay (Gália). Este local sagrado foi erigido no
século IV a. C. no oppidum de Bellovaci e a grande quantidade de ossos e a or-
ganização do espaço evidenciam rituais intensos e organizados. O propósito do
grande poço central (protegido por um teto) era o de receber os corpos de bois,
os quais eram deixados no local durante seis meses para a decomposição de sua
carne. Depois deste período, os ossos eram removidos e colocados ao lado dos
restos de cavalos, porcos e carneiros numa vala fechada ao redor do santuário.
O exame dos ossos dos porcos e carneiros (estes em maior número) sugerem
que os mesmos foram esquartejados e consumidos para propósitos festivos.
Quanto aos cavalos, não é possível saber com certeza se os mesmos
foram sacrificados ou se já estavam mortos na época da deposição. MÉNIEL
(1992) sugere a hipótese de que os cavalos talvez pertencessem a guerreiros,
uma vez que o santuário possui uma grande quantidade de armas danificadas.
Embora os cavalos tenham igualmente sofrido uma primeira decomposição
(porém, não em um local tão especial e protegido quanto o gado), o tratamento
dado aos ossos difere do que era aplicado aos bois. O gado, na verdade, era
tratado de um modo mais complexo. A análise dos ossos revelou que o bois
tinham idade avançada e quando vivos foram colocados para executar traba-
lhos pesados (puxar carroças ou arar a terra). A execução ritual dos bois seguia
passos precisos: cada animal era morto com um golpe de machado na nuca e
depositado no poço. Após a decomposição do corpo, parte do esqueleto era le-
vado para fora do santuário e outra parte permanecia no recinto. Além disso, os
esqueletos recebiam um peculiar tratamento: antes de sua deposição na entrada
do santuário, as mandíbulas inferiores eram removidas e as cabeças sofriam
golpes de espada que talhavam o focinho.
A presença de armas deliberadamente danificadas (atestando a morte
ritual dos objetos, na qual eles perdem sua função e são retirados do mundo
humano mas conservam seu valor enquanto oferenda ao divino), de ossos de
indivíduos do sexo masculino e dos esqueletos de três mulheres que foram de-
positados perto do fosso central (que podem ter sido sacerdotisas1 do templo)
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A religiosidade dos celtas e germanos
(1997), ressalta o papel da mulher na sociedade celta, a qual podia exercer cargos de poder
como no caso de Boudica, que assumiu a chefia entre os Icenos (Bretanha) após a morte
de seu marido Prasutagus, liderando uma rebelião contra Roma. Entretanto, não se pode
afirmar com certeza que existiam mulheres na função de druidas. O mais aceito é que ha-
veria mulheres sacerdotisas, exercendo funções importantes no templo. Tal fato explicaria
a presença de ossos femininos depositados no santuário de Gournay.
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O sacrifício humano
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De acordo com César (De Bello Gallico, VI, 16), os gauleses sacrifi-
cavam vítimas humanas com propósitos militares ou de aliviar sofrimentos.
Para César, os deuses apreciavam a carnificina daqueles envolvidos em algum
tipo de crime. No entanto, ressalta que vítimas inocentes também podiam ser
sacrificadas:
...aqueles que são atingidos por sérios males e aqueles que estão engaja-
dos nos perigos de uma batalha, sacrificam vítimas humanas ou fazem voto de
fazê-lo...Crêem que para os deuses imortais é melhor aceito, dentre todos, o suplí-
cio daquele que cometeu furto, latrocínio ou outros delitos, mas quando faltam
vítimas deste tipo, resolvem também supliciar quem é inocente.
....para isto existia a religião deles: para ensopar seus altares com o san-
gue dos prisioneiros
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uma turfeira em Lindow Moss (Bretanha). O corpo, que data da Idade do Fer-
ro (século I a.C.), sofreu primeiramente diversos golpes em sua cabeça sendo
posteriormente garroteado (sua garganta foi cortada) e, por fim arremessado
com o rosto para baixo em um pântano . Estas “três mortes”, colocam em rele-
vo a violência simbólica e sagrada do ato ritual. A análise de seu corpo (pele,
resíduos estomacais e intestinais) mostra que o sacrificado igualmente sofreu
uma cuidadosa preparação antes de sua morte, denominada pela antropologia
de “rito de entrada”: seu corpo estava nu e antes de morrer ele ingeriu uma
refeição ritual, da qual fazia parte um pão feito com várias espécies de cereais e
sementes. Neste caso, especificamente, tem sido bastante aceitas hipóteses que
afirmam que a vítima seria um indivíduo de uma camada social elevada. As
análises do corpo indicam que tratava-se de um indivíduo bem nutrido, cujas
unhas também estavam bem cuidadas (diferentemente daqueles que exerciam
trabalhos agrícolas ou eram marginalizados na sociedade celta). Uma das hi-
póteses, é a de que a vítima seria um druida evidenciando, assim, a questão do
auto-sacrifício. Análises realizadas no corpo revelaram que ele data do século
I d.C., período no qual a Bretanha sofreu severas invasões romanas até a con-
quista final em 43 d.C. O sacrifício de um druida, portanto, pode ter servido
ao propósito de estabelecer uma comunicação com o divino (o druida, através
de sua morte e submersão no pântano atingiria o Outro Mundo) ou ao intuito
de ofertar uma valorosa vida (indivíduo pertencente a uma camada social de
prestígio) aos deuses, os quais em retribuição beneficiariam o povo da Bretanha
em seu embate contra os romanos.
Um outro ritual no qual estava presente o auto-sacrifício, era o que
ocorria numa ilha sagrada, situada próxima à foz do rio Loire e que foi relatado
por ESTRABÃO (Geografia IV, 4, 6):
Elas possuem o costume de uma vez por ano remover o teto de seu tem-
plo e colocar outro teto novamente, no mesmo dia antes do pôr-do-sol, cada mu-
lher carregando uma parte da carga; mas a mulher cuja carga cai é rasgada em
pedaços pelas outras; e elas carregam os pedaços ao redor do templo gritando
“eoui”e não cessam até que sua loucura passe; e sempre acontece de alguém em-
purrar a mulher que é destinada a sofrer tal destino.
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local sagrado, o qual devia ser substituído por outro no mesmo dia para que o
local não ficasse sujeito à influência dos espíritos durante o período noturno.
De acordo com GREEN (2002:193), a vítima purificava o santuário e aqueles
que nele prestavam assistência.
Nesses dois casos de auto-sacrifício, a diferença pode ser notada no
propósito do ato e na forma do tratamento do corpo. No caso das sacerdotisas
do rio Loire, existia a intenção de purificar o local e os restos corporais e o
sangue de uma das mulheres são dedicados ao divino junto ao lugar no qual o
mesmo era cultuado. No sacrifício do Homem de Lindow, como já foi dito, a
morte e a posterior submersão do corpo serviu ao intuito da comunicação ou
da oferta ao divino (dom e contra-dom).
A deposição dos corpos, tanto no sacrifício animal quanto no hu-
mano, tinha a intenção de atingir o mundo subterrâneo das divindades. Os
pântanos eram vistos como locais peculiares nos quais dois elementos essen-
ciais à vida humana (água e terra) se misturavam dando origem a uma terceira
forma dotada da capacidade de atuar, simultaneamente, como a porta de saí-
da do mundo terreno e entrada no plano divino. O enterramento dos corpos
nos sacrifícios de fundação tinham igualmente o propósito de atingir o Outro
Mundo. A diferença, no caso, ocorre pelo fato dos corpos encontrarem-se jun-
to às construções para protegê-las ou gerar fertilidade e renovação. É o caso
de alguns enterramentos infantis, cujos corpos eram depositados para atuar
como propiciadores da vida na comunidade, como por exemplo, no sepulta-
mento infantil encontrado na propriedade rural romano-britânica existente em
Winterton. A relação entre a agricultura e os ritos sacrificiais é comprovada
arqueologicamente pela denominada tradição do poço, na qual antigos silos que
armazenavam grãos eram utilizados para colocar restos corporais de indivídu-
os (adultos ou crianças) ou animais ofertados às divindades. A presença destes
poços é constante em várias regiões da Bretanha e CUNLIFFE (1992a) afirma
que o uso dos antigos silos para a deposição não era casual: os silos atuariam
como uma espécie de soleira entre o mundo humano e o divino e as oferendas
nele depositadas expressariam o desejo de fertilidade das plantações.
No entanto, nem sempre é possível verificar se os indivíduos deposita-
dos foram sacrificados pois na maior parte dos casos não há marcas corporais
que denunciem o ato. Talvez os indivíduos sepultados já estivessem mortos em
decorrência de alguma enfermidade quando a deposição foi realizada. Neste
caso, a evidência de uma oferta ao divino é obtida a partir do exame dos demais
objetos encontrados, da presença de ossos de animais como cães ao lado do es-
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A religiosidade dos celtas e germanos
BIBLIOGRAFIA
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A religiosidade dos celtas e germanos
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A religiosidade dos celtas e germanos
3 A autora cita diversos artigos de Jorge, entre eles "Pré-história, IV. Desenvol-
vimento da hierarquização social e da metalurgia", in J. Alarcão (ed.), Nova História de
Portugal, I: 163-251, Lisboa: Presença, 1990.
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sofridas na região noroeste durante o I milênio a.C. Nos séculos VII e VI a.C.,
há uma primeira mudança, com uma maior exploração da agricultura nos vales
com a criação de castros não-defensivos, mas visualmente delimitadores. No
século II a.C., há uma nova mudança, não causada por incursão romana, mas
por intensificação econômica interna. A autora expõe a segunda fase evolutiva,
demonstrando que não foi uma evolução apenas gerada por fatores externos,
mas dividida em pelo menos duas fases de mudança principais até a conquista
romana e que estas foram propiciadas, principalmente, por fatores internos.
Novas tentativas de interpretação são, portanto, válidas e oportunas, tendo
como base os dados já levantados e compilados (e também já interpretados)
para a Península Ibérica. Porém, não podemos esquecer que, como lembra
Martins (op. cit.: 152), “os conceitos de continuidade e mudança são relativos
e dependem da evidência, ou variáveis, disponível, que pode ser usada para
ler os processos culturais”. É preciso questionar-se sobre quais mudanças sig-
nificativas podem ser observadas quando se consideram longos períodos de
tempo e que importância pode ser atribuída a elas. “Na verdade, mudanças
só podem ser detectadas uma vez que estejam presentes” (idem). Considerando
que os artefatos nem sempre mudam em conexão com as demais transforma-
ções culturais, o pesquisador precisa buscar outros indicadores, tais como pa-
drões de assentamento, mobilidade e as estratégias de exploração de território,
que “tornam claro que mudanças sociais acontecem em um ritmo diferente do
que a dos artefatos portáveis. As mudanças sociais ocorrem mais lentamente,
uma vez que respondem à estabilização das comunidades no espaço, à explora-
ção dos recursos disponíveis e a coações ideológicas. […] Qualquer leitura de
continuidade e mudança é sempre arbitrária quando baseada em raciocínios
contingentes. Isto resulta da nossa inabilidade em lidar com profundidade de
tempos sociais diferentes e seus múltiplos significados, durante os quais comu-
nidades constroem suas vidas” (idem).
A breve análise do estudo de Martins é apenas um exemplo da complexi-
dade regional da Península Ibérica e dos problemas metodológicos existentes.
Tal complexidade aconselha que se faça um corte geográfico para um estudo
mais profundo. Um exemplo deste tipo de estudo é realizado em Tongóbriga,
pela Brown University, com a colaboração dos Drs. Vagner C. Porto e Silvana
Trombetta, doutores do MAE 7.
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ções, sob a direção do Dr. Rolf Winkes, do Center for Old Archaeology and Art, da Brown
University, EUA.
8 E são geralmente aceitas como a marca mais característica do período romano
nas províncias ocidentais.
9 Para Keay, as elites locais foram o principal ímpeto por trás das grandes cons-
truções provinciais, e não os imperadores: "Transformação urbana em um momento de
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mudança política assegurava continuidade social” (p. 195). Mas também fala de uma "não-
romanização", ou não-aceitação – vista na cultura material –, dos elementos sociais não
dominantes (da população em geral).
10 Por civitates, na Gália Central, pode-se entender uma série de pequenos Esta-
dos, cada um deles com pelo menos um local central, ou oppidum, centros administra-
tivos, geralmente fortificados, de cada território, abrigando uma população permanente
não-agrícola e um local de atividades produtivas especializadas para consumo tanto local
quanto para o comércio de longa distância. Algumas civitates parecem ter possuído cen-
tros de comércio especializados em acréscimo aos locais centrais (Colin Haselgrove 1986:
108).
11 Na literatura historiográfica francofônica (principalmente), todos os assen-
tamentos que não oppida são denominados "agglomérations secondaires", literalmente,
"aglomerações secundárias". Mas esta tradução não exprime exatamente o significado de
"agglomération" – uma comunidade culturalmente organizada – denotando um sentido de
"falta de organização" sócio-política e cultural. Por isso, uma tradução mais correta seria
"assentamentos", "comunidades" ou "povoados secundários". E “secundários” simples-
mente pelo fato de não serem as capitais das civitates, mas centros de dimensões menores,
de "importância secundária".
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e havia luta política entre eles. A atitude adotada com relação a Roma era uma
forma conveniente de estabelecer dissensões e rivalidades, havendo facções pró
ou contra os romanos. Neste ponto, há relatos também para os ibéricos de fac-
ções pró e contra os romanos.
O surgimento dos oppida na Europa continental e na Britânia não é
cronologicamente homogêneo, como também não houve um motivo comum
para seu surgimento. O fator principal, para muitos sítios e áreas, foi a defesa
e a concentração da população em um sítio defensivo, mas não para todos.
Existem sítios abertos na Gália e no sul da Germânia que precedem os oppida
defensivos, e mesmo alguns oppida gauleses, como Villeneuve-Saint-Germain,
não possuem uma situação defensiva ideal. De qualquer modo, a organização
política e econômica necessárias para fundar um sítio dessa natureza implica
uma organização tribal desenvolvida capaz de sustentar assentamentos urba-
nos mesmo antes de eles estarem estabelecidos. O contato com o Mediterrâneo
também influenciou o incremento da produção que, por sua vez, estimulou o
crescimento dos contatos comerciais com o Mediterrâneo, tornando-se tam-
bém outro fator para a urbanização (Collis 1996: 170ss).
Embora Collis afirme que a emergência dos oppida tenha desencade-
ado certamente uma reestruturação do território em função da nova divisão,
acredito que uma nova estruturação da sociedade e do território é que tenha
levado ao surgimento de oppida em primeiro lugar. Conhece-se, entretanto,
muito mal este aspecto da evolução do hábitat celta. De todo modo, nos séculos
II e I a.C., os oppida surgiram como uma mudança fundamental no modelo de
assentamento na Europa transalpina. Nos séculos imediatamente anteriores, a
regra, em grande parte da Europa, eram as pequenas comunidades ou aldeias
agrícolas, “e mesmo as fortalezas14 eram um fenômeno raro, limitado, sobretu-
do, à Costa Atlântica da Bretanha e da Inglaterra ocidental” (Collis 1996: 36).
Porém, diferentemente do que afirma Collis, segundo Almagro-Gor-
bea (1994), os castros eram o principal tipo de assentamento no noroeste da
Península Ibérica, sendo muito comuns mesmo após a conquista romana. Os
primeiros oppida apareceram no La Tène C2 (entre 200 e 140 a.C.) (Collis 1989:
20-1), data corroborada por Almagro-Gorbea (1994: 26). Veremos logo mais
que há um conflito na definição dos termos oppidum, hillfort e castro entre os
autores ibéricos e os ingleses e franceses.
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cos desses povoados. “Entendido deste modo, pode se considerar que castro
é um povoado situado em um local de fácil defesa, reforçado com muralhas,
muros externos fechados e/ou acidentes naturais, que protege no seu interior
um conjunto de casas de tipo familiar e que controla uma unidade territorial
elementar, com uma organização social escassamente complexa e hierarquiza-
da” (idem).
Esta definição permitiria, para o autor, diferenciar os castros tanto das
fortificações sem habitações diferenciadas (como atalaias19 ou turres ibéricos),
como de populações mais complexas, “do tipo proto-urbano, como os oppi-
da do Mediterrâneo Ocidental ou da Europa central, embora a transição de
castro a oppidum deva ser considerada gradual tanto com relação ao tamanho
superficial quanto no sentido tipológico e cultural”. Os castros são, sobretudo,
elementos de controle territorial, sendo o fator defensivo secundário. Mas só
controla os recursos (meios de produção e comunicações) de um território re-
duzido. É um controle visual sempre que possível. Estão incluídos na definição
povoados com muralhas e casas de adobe em terrenos planos, mas os castros
mais conhecidos situam-se em áreas montanhosas, onde se utiliza pedra local e
outros materiais nas técnicas construtivas (idem).
Almagro-Gorbea, na verdade, diferencia castros e oppida apenas em
razão do seus tamanhos: os menores castros têm menos de 0,2 ha, sendo meros
recintos que vão paulatinamente aumentando seu tamanho até 5 ha (ou até
7 a 10 ha, em alguns grupos), “tamanho a partir do qual já parecem desem-
penhar função de oppidum, por oferecer ruptura do ranking e por ocupar a
escala máxima de hierarquização, correspondendo a centros de territórios com
povoados menores subordinados; mas esta divisão não deixa de ser arbitrária e
exige ser precisada em cada grupo” (op. cit. 16; grifo meu). Ou seja, os castros
vão crescendo até sobrepujarem outros povoados, tornando-se um oppidum,
centro de uma civitas; mas sempre se levando em conta o grupo regional ao
qual pertence.
Se esta caracterização está correta, difere do visto para os oppida gau-
leses, pois não encontrei referência a um povoado murado pré-existente que
foi se desenvolvendo ao longo dos séculos até tornar-se centro-capital regio-
nal. Ao contrário, vários autores (e especialmente Anne Colin 1998) dizem que
houve mais de um período de construções de oppida, e eram ocupados apenas
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20 Ver, para uma discussão mais aprofundada: Santos 2007, especialmente Capítu-
lo 1, “A Gallia Comata e os Oppida Gauleses”.
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O que se pode concluir de todo este debate sobre castros, oppida e cidades
romanas na Península Ibérica é que, apesar dos avanços nas pesquisas, nada
está definitivamente estabelecido, ou definido. Várias questões permanecem.
Não podemos negar a existência de certo retardamento nas pesquisas e nas
conclusões ocasionado pela influência política peninsular no século XX. Trig-
ger (2004: 122 ss.) nos alerta que, na formação dos estados nacionais europeus
do século XIX, foram utilizados símbolos específicos de identidades. Isto foi
válido, também, para Portugal e Espanha, no século XX. A utilização político-
ideológica do passado cria manipulações arqueológicas na construção de nar-
rativas nacionais. Fowler (2008: 94) afirma que “o passado [é] utilizado como
recurso simbólico”. Para os pesquisadores que trabalham de forma competente
e ética em ciências sociais, a afirmação de Fowler não é novidade. Todo historia-
dor sabe – ou deveria saber – que grande parte da historiografia foi elaborada
pelos vencedores e a busca pela “história dos vencidos” é muito recente, uma
possibilidade que apareceu concretamente com o marxismo. Fowler deve, então,
ser visto, sobretudo, como uma advertência para que não esqueçamos a força
ideológica, legitimadora, que tem o passado reconstruído, especialmente quando
utilizado por grupos de interesse que estão no poder.
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A religiosidade dos celtas e germanos
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A religiosidade dos celtas e germanos
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A religiosidade dos celtas e germanos
Introdução
Nas últimas décadas o pensamento de Karl Gustav Jung tem sido objec-
to de interesse crescente; assim, esta abordagem exploratória parte, do ponto
de vista teórico, do seu pensamento e das suas categorias epistemológicas e
procura analisar a partir do património material e imaterial do Concelho de
Ponte da Barca/ Terras da Nobrega (Briga) a importância da cultura do ponto
de vista psicossocial. Qual a matriz de que o psicólogo deve partir, nas suas
reflexões sobre o Homem, para que a Psicologia, enquanto ciência, seja ciência
do humano? (Miranda Santos, 1961; 1999; 2002; 2005; 2006), eis a questão que
serve de ponto de partida.
Procurar-se-á reflectir, então, sobre a possibilidade de pensar o humano
a partir da iniciativa humana: a História. A perspectiva epistemológica e o pa-
radigma interpretativo é a Historicidade, ou seja, aquilo que (ainda) permanece
da totalidade do que foi feito (Miranda Santos, 2006: 45) e, na base da reflexão
estão as seguintes questões: continuará o homem moderno a ser arcaico nas
camadas mais profundas da sua psique? (Jung, 2000); como aceder às camadas
mais profundas? É possível analisar a psique à margem da História? A vincula-
ção cultural facilita os processos de ajustamento entre as pessoas e as pessoas e
o meio? Esta perspectiva põe em causa o método científico?
A questão da cientificidade foi igualmente colocada por Jung em 1939
no prefácio da obra Psicologia e Religião (1978: 7) e, o autor considera que se
permanece no domínio do método empírico sempre que se observam os fenó-
menos e os dados da experiência, não se procede a considerações metafísicas
e sempre que uma realidade psicológica é partilhada por consensus gentium.
Neste sentido, a mitologia e a religiosidade celta do Concelho de Ponte da Barca
constituem, apenas, uma opção metodológica, a partir da qual se analisará a
herança psicológica comum – inconsciente colectivo.
A Psicologia tem sido marcada por modelos e paradigmas que, no enten-
der de Jung, explicam a psique através de projecções (Jung, 2000) e remissões
para a categoria de acientífica as narrativas que procuram fazer conexões entre
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Mito e religiosidade
Os celtas acreditavam em vários deuses, «existem evidências de mais de
360 nomes de deuses no mundo celta, mas só uns vinte são referenciados mais
do que uma vez, entre os quais: Lugos, Cernunnos, Esus, Sequana, Brigantia,
Epona e Matrona» (Cheers, 2003), estes deram origem, em certos casos, a topó-
nimos, principalmente em Portugal, Espanha e Irlanda (Sainero, 2009). A reli-
giosidade panteísta que os caracterizava estava associada às forças da natureza
e aos seus ciclos; adoravam especialmente as Águas e o Sol (Vasconcelos, 1988,
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1989; Ramón Sainero, 1998), cultos considerados tão antigo como a humani-
dade, celebrados de seis em seis meses. Estudos diversos identificam quatro
festividades lunares: Samhain, 1 de Novembro, marca o fim do Verão e coincide
com o dia das Bruxas (Halloween) e com a matança do gado antes do Inverno;
Imbolc, 1 de Fevereiro, pensa-se que incluía rituais centrados nos ovinos e no
leite e representa o início da Primavera; Beltane, 1 de Maio, Belinos o Deus
do Fogo, a data marca o início do Verão e julga-se que animais, especialmente
vacas, eram conduzidos entre dois fogos; Lughnase ou Lugnasad, 1 de Agosto,
marca a festa das colheitas e os rituais centram-se no casamento entre a deusa
da Terra e o deus Sol (Cheers, 2003; Alonso Romero, 2007). A cultura celta,
semelhante do ponto de vista formal, às demais culturas, interroga: a origem
do cosmos – mitos cosmogónicos; dos fenómenos - mitos etiológicos; o fim das
coisas – mitos escatológicos e, a propósito as suas dúvidas, criou narrativas sim-
bólicas (mitos) que se transmitiram pela via oral, se fixaram no inconsciente
impessoal/colectivo, consolidaram na arte e nos rituais e se transformaram em
elemento essencial para o equilíbrio psicológico individual e colectivo. Toman-
do por referência o espaço geográfico com topónimos em Briga (Sainero, 2009),
surge um segundo padrão de natureza cultural: mitologia e religiosidade.
No Concelho de Ponte da Barca/Terras da Nóbrega (Briga), embora
cristianizado, continua a celebrar-se o dia de Samhain; Imbolc, o início da Pri-
mavera é celebrado no dia de Carnaval (Lindoso), queimado o Inverno na figu-
ra alegórica do Pai Velho e exaltada a Primavera na figura alegórica do Carro
Primavera; Beltane, no dia 1 de Maio, celebra-se o Deus do Fogo, o Deus Sol,
estilizado sob a forma de disco solar (Maios) e, no mês de Agosto, a tradição
religiosa celebra no dia 24, S. Bartolomeu, embora a matriz desta festa se man-
tenha profana.
Por sua vez, o Penedo de S. Martinho, localizado a 28 km da cidade de
Braga e a 5 km do Rio Lima, apresenta certas semelhanças com outros altares,
nomeadamente o «Altar rupestre» de Lácara (Almagro-Gorbea & Jiménez-
Ávila, 2000, pp. 423-442) e de Canto Castrejón e com a proposta de análise de
Jiménez Guijarro (Jiménez, 2004, pp. 87-103). Os degraus esculpidos na pedra
são um detalhe morfológico comum ao altar rupestre de Lácara (Almagro-
Gorbea & Jiménez-Ávila, 2000, p. 431) e de Canto Castrjón (Jiménez-Guijarro,
2004, p. 94). Através deles a Terra comunica com o Céu. As escadas dão acesso
ao Céu, ao Céu que foi brutalmente separado da Terra, quando as árvores e as
montanhas foram cortadas e o Céu se tornou longínquo (Eliade, 1990). O altar
constitui, na linguagem de Eliade, o restabelecimento da ligação, o desfrutar da
beatitude, da espontaneidade e da liberdade perdida em consequência da que-
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22 «In illo tempore, naquele tempo paradisíaco, os deuses desciam à Terra e mis-
turavam-se com os humanos: por seu turno, os homens podiam subir ao Céu, escalando
uma montanha, uma árvore, uma liana ou uma escada, ou ainda deixando-se transportar
pelas aves» (Eliade, 1990, p. 61)
23 «Todos os pinheiros são muito parecidos (ou não os reconheceríamos como
pinheiros), e no entanto nenhum é exactamente igual ao outro. (...) O facto é que cada
pessoa tem que realizar algo de diferente, exclusivamente seu». (Franz, 1964, p.164)
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Diana, deusa dos bosques, filha de Júpiter, banha-se nas águas cristalinas
das fontes, ama a solidão dos bosques e percorre os planaltos durante a noite,
Diana é a evocação dos montes, dos bosques e das serras24. O poder de sim-
bolizar. Diana está presente nas águas da Fonte Santa de Bravães, nas águas da
Fonte do Leite de S. Tome do Vade e nas águas da Fonte de S. João e nas águas
do Rio Lima; protectora, respectivamente, das doenças do corpo, das doenças
na gravidez e das doenças de amor e do nascimento. Na Idade Média S. Mar-
tinho de Dume referiu-se a estes povos de montanha que adoravam o diabo e
os demónios, falavam com eles «no cimo dos montes, e nos bosques frondosos
oferecem-lhes sacrifícios e honram-nos como a Deus» (Martinho, 1803, pp.
243-4). Nos cimos dos montes, os homens procuram aproximar-se dos deuses.
É, ainda o arquétipo da transcendência que se manifesta nos altares da Penín-
sula Ibérica e, quiçá, na Torre de Babel, nas pirâmides dos Egípcios e dos Maias.
A água, fonte de vida, despertou desde a proto-história respeito, admi-
ração e devoção. A água muda de estado continuamente, o que a transforma
numa substância intrinsecamente misteriosa. Alguns investigadores remetem o
culto das águas para a cultura celta. Os Celtas, muito antes dos Romanos, ado-
raram certas fontes; as fontes sagradas, as fontes santas (Alarcão, 1999; Silva,
1986; Lopez-Cuevillas, 1953).
O culto do sol chegou até nós pela tradição dos Maios (Foto 3), no dia
24 «... e no mar lhe chamam Neptuno, nos rios Lamias, nas fontes Ninfas, nos
bosques Dianas; e todos não são mais do que demónios malignos e espíritos mais que
pervertem os homens os homens infiéis, que se não sabem munir com o sinal da Cruz»
(Martinho, 1803, p. 245)
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O Culto do Sol e da água, vincula -, - do latim vincular+ suf. tivo, que sig-
nifica ligar ou que serve para ligar - , a comunidade sente-se vinculada, presa,
apegada e, ao resultado desse vínculo - do latim vincunlum, significa aquilo que
liga ou serve para ligar, fixar, prender - , dessa corda ou atilho que liga a comu-
nidade às tradições damos o nome de vinculação social - do latim vincular +
suf. -ção, que significa acção ou resultado de vincular -. As tradições chamam
e prendem.
A questão da vinculação (Attachment Theory) foi teorizada e desenvol-
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AVALIAÇÃO PRIMÁRIA
AVALIAÇÃO PRIMÁRIA DOS RESULTADOS
Avaliação das
emoções
Resultados positivos Emoção positiva:
felicidade
AVALIAÇÃO SECUNDÁRIA
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ponto de vista funcional são (todas) positivas, todas elas são, de uma forma
ou de outra, suporte de sobrevivência (Ex. sem medo, não há protecção), e a
diversidade de emoções significa o apetrechamento para a diversidade de situ-
ações (Ex. a raiva permite a defesa). Contudo, perante uma situação de ameaça
(Estímulo), o sujeito corre (conduta emociomal), que por sua desempenha a
função de protecção (função da conduta emocional). E, neste sentido, é possí-
vel afirmar que todas as condutas emocionais (correr, morder, vomitar, parar,
examinar…) têm uma função social (protecção, destruição, reprodução, reinte-
gração, afiliação, rejeição, exploração, orientação ou outra). Supondo, então, as
duas situações estímulo - Água e Sol, provocam condutas - emocionais, beber,
banhar, purificar e dançar, brincar, foguear, passear, queimar -, com efeitos di-
rectos nas condutas sociais (Quadro 2).
Avaliação Experiência
Estímulos Outras emoções Acção
cognitiva emocional
Segurança, adoração,
afecto, atracção,
estima, ternura,
Água e Percepção boa do Amor, Atracção
desejo, luxúria,
Sol objecto/estímulo alegria
satisfação, orgulho,
êxtase, euforia,
deleite…
Perigo, irritação,
ódio, vingança,
antipatia,
ressentimento,
Percepção má do Medo, raiva,
amargura, cólera, Repulsão
objecto/ estímulo tristeza
pessimismo,
infelicidade, derrota,
abatimento, pânico,
terror…
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exprime a vida mais exactamente do que o faz a ciência, que trabalha com no-
ções médias, genéricas de mais para poder dar a ideia justa da riqueza múltipla
e subjectiva de uma vida individual» (Jung, 1975, p. 19).
A cultura tem poder vinculativo. A vinculação no sentido de Bowlby e de
Piaget responde a uma necessidade - «Podemos, assim, compreender o que
são os mecanismos funcionais comuns a todos os estádios. Pode-se dizer, de
maneira absolutamente geral que qualquer acção - quer dizer, qualquer movi-
mento, qualquer pensamento ou qualquer sentimento -, responde a uma ne-
cessidade» (Piaget, 1983 b, p. 15)- , a um estado de carência e de imprescin-
dibilidade, emergência do desenvolvimento psicológico e do desenvolvimento
psicossocial; as duas perspectivas exaltam a importância do desenvolvimento
psicológico individual e a identificação do período em que o indivíduo se vin-
cula, por efeito do desenvolvimento das estruturas cognitivas e, a perspectiva
psicossocial contextualiza a transmissão sócio-cultural e a vinculação afectiva
aos espaços.
O meio cultural e a genética são os dois factores determinantes do desen-
volvimento do indivíduo, o primeiro diz respeito aos factores colectivos espe-
cíficos da sociedade, do ambiente e, os segundos são próprios e internos ao
indivíduo (Piaget, 1983 b) e, cada um destes subdivide-se em complexas es-
truturas de coordenação, regulações, equilibração e auto-regulação; assim, se
as crianças de Genebra, Paris, Nova Iorque, Moscovo, Irão, África, Porto, Ilhas
do Pacífico, Ponte da Barca ou S. Luís do Maranhão, actuam da mesma forma
– vinculam-se, cooperam, discutem, brincam, conflituam -, são universais as
trocas interindividuais, o sentido dos conteúdos das transmissões culturais são
específicos (Piaget, 1983 b), no sentido em que Álvaro Miranda Santos os defi-
niu. A questão reside em saber se os factores específicos são suficientes para que
não se verifiquem, nos processos cognitivos, as mesmas leis.
As interacções sociais são universais, os conteúdos das transmissões são
particulares. Em todas as comunidades há, portanto, locais de memória, o que
significa que existem estruturas de coordenação geral e fixações. Assim sendo,
as fixações e a sua perpetuação até à actualidade decorrem daquilo que o gru-
po disponibiliza no acto comunicativo. Evidenciando dupla vinculação: -vin-
cunlum- da comunidade com os montes, as fontes, ….e poder vinculativo da
linguagem - vincular - . A comunidade vinculou-se e socializou a vinculação.
Há luz das neurociências a vinculação emocional conduz à auto-preserva-
ção. As tradições geram, na comunidade, ainda hoje, orgulho, alegria, encan-
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29 «O simples facto de ouvir falar de alguém que ajudou pode ter enorme impac-
te, induzindo uma agradável sensação de exaltação. (…). Elevação é o estado de espírito
frequentemente referido quando as pessoas contam como se sentiram ao assistir a um
acto de coragem, de tolerância ou de compaixão espontâneas. Muitas pessoas sentem-se
emocionadas, senão mesmo excitadas» (Golemam, 2006, p. 85)
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Conclusão
A História contribui para o conhecimento da psique e, seja qual for a op-
ção metodológica relativamente à época história, os seus contributos são ines-
timáveis por através deles se aceder ao si-mesmo que se manifesta através da
historicidade.
Os estudos sobre os Celtas e a Celticidade desenvolveram-se entre nós a
partir, principalmente, de Martins Sarmento (Cardozo, 1961). Num estudo pu-
blicado em 1882 Martins Sarmento (Sarmento, 1882) defende que «os celtas
são um povo moderno na Europa, moderno relativamente às populações que
viviam em plena época da civilização do bronze, entre algumas das quais eles
vieram estabelecer-se» (Sarmento, 1982, p. 1). A historiografia aponta (Lopez-
Cuevillas, 1953; Silva, 1986; Alarcão, 1992; Alarcão, 1999) para um período
compreendido entre o século XII e o Século VI a.C. no qual se terá verificado
a invasão da Península Ibérica e iniciado a cultura castreja. Jorge de Alarcão
avança coma a hipótese da população, nos fins do 1º milénio a.C., estar dividi-
da, por razões políticas, em populi (Alarcão, 1991, p. 2) – populi Bracari, Leuni,
Seurbi, Grovii, Heleni, entre outros-, que faziam parte do reino de Breoghán.
As tradições anteriormente consideradas (Penedo de S. Martinho, Maios, Car-
naval de Lindoso e as Águas Santas) pertencem a um vasto território situado a
norte de Portugal caracterizado pela proximidade das tribos Bracari e Grovii.
Os Romanos criaram a representação de povos belicosos - «Sem dúvida, os
Brácaros eram um povo belicosíssimo. È fora de dúvidas que eles combatiam
com as mulheres armadas e morriam como bravos – sem que nenhum deles re-
cusasse nem voltasse as costas à luta nem proferisse um grito. Por seu turno, das
mulheres que são feitas prisioneiras, umas matam-se a si próprias; outras ainda,
estrangulam os filhos com as suas próprias mãos. Na verdade rejubilam mais
com a morte do que com a condição de prisioneiras» (Apiano, 1991, pp. 92-93).
A interpretação psicológica deste comportamento feminino, na perspecti-
va de Weiner (1982; 1986), relaciona-se com as consequências do resultado
negativo do acontecimento acerca do qual existia uma expectativa positiva e
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têm mais possibilidade de salvação; por isso querem também levar à danação
de outras almas. Eles agem, segundo o pensamento cristão com a permissão de
Deus, castigando aqueles que escolheram em vida os prazeres da carne e não
se arrependeram.
A apresentação do Diabo como um espírito maligno que desviava as pes-
soas do caminho de luz e ensinamentos de Deus veio a reforçar o Cristianismo
como a religião da Salvação. Nesse embate entre o Bem (o reino de Cristo) e o
mal, a Igreja afirmava a eficácia do seu poder perante a luta contra os demônios.
A Demanda do Santo Graal é uma novela de cavalaria do século XIII no
momento de prosificação e cristianização do ciclo arturiano. O manuscrito que
chegou à Península Ibérica faz parte do ciclo da Post –Vulgata da Matéria da
Bretanha, tendo circulado em Portugal por volta de meados do século XIII. O
centro da obra é a busca do cálice sagrado pelos cavaleiros de Artur. Percebe-se
a todo momento na narrativa uma intensa luta travada entre as forças de Deus
e as do Diabo.
A trama da Demanda é a seguinte: com os cavaleiros reunidos em volta da
távola redonda aparece o Santo Vaso, recipiente com o sangue de Cristo na cruz
que alimenta a todos de forma material e espiritual. Porém após esta aparição,
retira-se da corte devido aos pecados do rei e da maior parte dos seus cavalei-
ros, só podendo ser encontrado pelo cavaleiro perfeito, Galaaz. Após a chegada
de Galaaz na corte, a Demanda é iniciada. O cavaleiro que prega a todos para
irem a Demanda é Galvam (Galvão), no entanto, logo no princípio ficamos
sabendo que ele trará mortes e desgraças na busca. Assim, a luta entre Deus e as
forças maléficas, pode ser expressa nas ações dos dois cavaleiros, um Galaaz, o
“cavaleiro eleito” a encontrar o Santo Graal e outro Galvam, nomeado no texto
como o “cavaleiro do diabo”.
Na narrativa fica muito clara a divisão entre os cavaleiros eleitos e os peca-
dores que não conseguirão ver outra vez o Santo Graal. Desde o princípio da
novela é afirmado categoricamente que os cavaleiros não poderiam levar consi-
go damas na viagem ou não conseguiriam encontrar o Santo Vaso. Porém dos
150 cavaleiros da távola redonda apenas os três eleitos principais e mais nove,
num total de doze, poderão ver de novo o Graal. O número doze está associado
aos doze apóstolos de Cristo na Última Ceia.
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Antes de nos dedicarmos aos cavaleiros pecadores com mais atenção, ana-
lisemos primeiramente uma representante de Satã na narrativa, a Besta Ladra-
dora.
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dridos parecem indicar que ela está continuamente grávida de cães que ladram
em seu ventre.
O cão em várias culturas tem uma simbologia ligada ao Além, sendo um
psicopompo, condutor das almas ao Outro Mundo (CHEVALIER; GHEER-
BRANT, 1995, p. 176). Podemos exemplificar com a figura de Anúbis, com a
cabeça de chacal no Egito Antigo ou Cérbero, o cão de várias cabeças que guar-
dava os portões do Hades na Grécia Antiga. Entre os celtas, o cão também pos-
sui caráter sagrado. O maior dos heróis celtas, Cuchulainn, cujo nome significa
Cão de Culann, está associado a este animal, e tal associação era uma vista
como uma grande honra. O jovem, conhecido inicialmente como Setanta pas-
sa a ser chamado de Cuchulainn ao matar o feroz animal do ferreiro Culann e
prometer em troca ser o guardião do ferreiro durante um período. O guerrei-
ro é filho do Deus Lug e o vencedor de todos os combates. Utiliza uma arma
mágica, a lança Gae Bolga. Segundo Sainero, é comparável ao herói Aquiles da
Ilíada, o mais importante dos guerreiros gregos na guerra de Tróia (SAINERO,
1999, p. 171).
Segundo Mcshane em inglês médio o termo questen, referente a Questing
Beast, significa morder e caçar. Um ermitão conta que cinco dos seus filhos
haviam sido mortos pela besta e que quando esta foi ferida havia aparecido a
figura de um diabo, um homem negro, saindo do lago, seguindo versões que o
Diabo tinha aparência humana e/ou poderia transfigurar-se em humano, além
de possuir a cor escura, associada às trevas do local onde habitava.
Outro que vivia perseguindo a Besta era o cavaleiro muçulmano Palamades.
Ela havia matado os seus onze irmãos e durante a Demanda ele a persegue e
procura impedir os cavaleiros da távola redonda de lutarem contra o animal,
o que considera um privilégio seu. Somente após converter-se ao cristianismo
pelas mãos de Galaaz, após perder um combate contra aquele, é que Palamades
consegue realizar o seu intento. A Besta então é ferida e passa a queimar num
lago por toda a eternidade:
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maravilha que ainda ora dura i: aquele lago começou a acaecer e a ferver de
guisa que nunca quedou de ferver, ante ferve e ferverá já, em mentre o mundo
for, assi como os homens cuidam. Aquele lago de tal maravilha como vos conto
prês aquela caentura e agora há nome “o Lago da Besta”. (DSG, 1995, p. 431)
(grifo nosso)
Assim, temos o exemplo do ser do mal derrotado por um cavaleiro valoro-
so, Palamades, que só conseguiu concluir o seu intento depois de ter se tornado
cristão. Voltemo-nos agora a outras manifestações do Diabo, associado agora à
questão dos pecados dos cavaleiros.
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filho bastardo, Elaim, o Branco. Portanto, fica muito claro que na narrativa o
elemento mais importante é a pureza relacionada com abstenção de sexuali-
dade. Galaaz é o mais puro por não demonstrar desejo sexual e suas ações o
aproximam de Cristo.
Fica claro o respeito dos eleitos pela Igreja. Boorz se compromete a passar
toda a Demanda à base de pão e água e os três eleitos adotam posturas peniten-
tes: rezam, jejuam e se confessam com os eremitas que encontram ao longo do
caminho. Persival e Galaaz também realizam ações curativas. Observemos no
Quadro 1 as ações dos bons cavaleiros em consonância com a ideologia cava-
leiresca pregada pelo cristianismo na Idade Média Central:
Quadro 1. CAVALEIROS VIRTUOSOS NA DEMANDA
DO SANTO GRAAL
VIRTUDES:
CARDEAIS PERSIVAL
DEFENSORES DA FÉ
Galaaz converte o muçulmano Palamades
CRISTÃ
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Com relação aos cavaleiros não-eleitos a dar cabo das aventuras do Santo
Vaso, o motivo principal são os pecados e em especial o pecado da luxúria Po-
rém mesmo entre os pecadores há diferenciações. Um primeiro grupo pode ser
representado por Lancelot e Tristão que, embora sejam excelentes cavaleiros,
são pecadores por sua fidelidade ao amor cortês. Ambos desrespeitam o seu
senhor (rei Artur-rei Mars) em virtude do amor que sentem por Guinevere-
Isolda, e por este motivo são luxuriosos.
Lancelot, que tem um sonho no qual vê a si próprio queimando no Inferno
com Genevra (Guinevere) por não conseguir se apartar do seu amor por ela.
Vários autores salientam, como Todorov (1976), que o amor cortês é conde-
nado na narrativa. Lancelot tenta se regenerar, mas por fim mantém-se fiel ao
amor cortês e por este motivo não encontrará o Santo Vaso e nem a salvação
no além-túmulo.
Outro casal adúltero na Demanda e que também queimará no Inferno se-
gundo o manuscrito é Tristão e Iseu (Isolda) que habitam o reino arturiano. Por
este motivo o rei Mars (Marcos) é o maior inimigo de Artur na narrativa e ao fi-
nal da mesma destrói a távola redonda, símbolo do poderio arturiano.
Além dos pecadores em virtude do adultério como Lancelot e Tristão ou
de existem pecadores na Demanda que representam a antítese do bom cavalei-
ro. Não respeitam o código da cavalaria: mentem, atacam donzelas, matam à
traição. Esses cavaleiros incidem nos pecados da ira, inveja, orgulho e luxúria.
No manual de cavalaria do filósofo Ramon Llull O Livro da Ordem de Ca-
valaria, que procurava ensinar o comportamento adequado à nobreza, o au-
tor que também defende o modelo do cavaleiro cristão, tal como a Demanda,
afirma que os cavaleiros deveriam seguir as sete virtudes, as três teologais (fé,
esperança e caridade) e as quatro cardeais (justiça, prudência, fortaleza e tem-
perança), conforme já observamos no Quadro 1. Ao mesmo tempo deveriam
proteger o cristianismo e os fracos, lutar contra os infiéis, garantir a manuten-
ção da ordem social e evitar os sete pecados capitais: ira, avareza, preguiça,
inveja, luxúria, gula e orgulho. Observemos a seguir o Quadro 2 sobre os peca-
dores, que estão associados aos vícios na Demanda:
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CAVALEIROS VÍCIOS
LANCELOT
LUXÚRIA
TRISTÃO
LUXÚRIA
GALVÃO
INVEJA
MORDERET
SOBERBA
AGRAVAIM
MENTIRA
LEONEL IRA
Este grupo de maus cavaleiros, no qual se inserem Galvão e Morderete rea-
lizam a luxúria com maldade, atacando donzelas e matando seus pais e irmãos.
São eles os representantes dos cavaleiros criticados por Llull e que deveriam ser
perseguidos, segundo o filósofo, pelos bons cavaleiros. É importante destacar
que esses cavaleiros muitas vezes eram nobres secundogênitos sem terras e ata-
cavam as propriedades de outros senhores, sendo vistos como uma verdadeira
ameaça à ordem feudal. Daí a elaboração de obras que visavam “suavizar” o
comportamento desses nobres, no qual se integram A Demanda do Santo Graal
e o Livro da Ordem de Cavalaria, que defendem um cavaleiro fiel à Igreja nas
suas ações contra os muçulmanos e seguidor das corretas normas cristãs.
Galvam é o cavaleiro pecador por excelência na Demanda. Michel Pastore-
au salienta que nos romances do século XII Galvão (Gauvain) é apresentado de
forma positiva como um exemplo de bom cavaleiro, fiel e galante (PASTORE-
AU, 1989, p. 48). É um representante do modelo de cavaleiro cortês.
Já nas narrativas posteriores, escritas no século XIII com forte influência
cristã, Galvão é um exemplo de mau cavaleiro, contrário aos modelos do ca-
valeiro cortês e cristão. Ele não segue as normas da cavalaria e torna-se um
verdadeiro antagonista. Embora Galvão seja o primeiro cavaleiro a convidar os
demais para a demanda, vários presságios confirmam que ele traria desgraças.
Num primeiro momento, uma donzela feia com uma espada prevê que
aquele cavaleiro que ao segurar a espada a tornasse rubra de sangue, seria o que
mataria mais cavaleiros na Demanda. A profecia se cumpre, pois Galvão ma-
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onel este fica com ódio de Boorz e deseja matá-lo. Tentarão proteger Boorz um
eremita e o cavaleiro Calogrenante e ambos são mortos por Leonel.
Portanto, vários cavaleiros da Demanda se mostram indignos de encontrar
o Santo Graal por pecados como a luxúria, a inveja, o orgulho e a ira. Como
não conseguia mais impedir a luta e após as duas mortes, Boorz decide lutar
contra o irmão, mas Deus impede que a luta continue para evitar que um dos
três cavaleiros eleitos para encontrar o Santo Graal cometesse pecado mortal.
Por isso aparece uma voz do céu e também o fogo para separar os dois irmãos.
Através da conduta dos homens em relação ao sexo feminino, é possível ob-
servar se eles eram bons ou maus cavaleiros. No caso de Mordred, é também o
exemplo do mau cavaleiro, pois, além do fato de agir à traição contra seus com-
panheiros da távola redonda, violenta mulheres e depois as mata (DSG, 1995, p.
213-214). Assim, devido aos pecados na Demanda, dos quais não escapam nem
mesmo o rei Artur, que também possuía um filho bastardo, feito numa donzela
tomada à força, os doze eleitos encontram o Graal. Mais tarde, ao ter as mais
altas revelações do Santo Vaso, este objeto sagrado e o eleito, Galaaz, ascendem
ao Céu junto com os anjos.
CONCLUSÃO
Através da novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal podemos perce-
ber algumas representações sobre o Diabo no período medieval, tanto através
da Besta Ladradora, animal monstruoso ligado ao Diabo e ao feminino, quanto
através do cavaleiro Galvão, o exemplo de cavaleiro pecador e que sintetiza as
faltas dos demais cavaleiros da távola redonda.
A Besta está ligada ao Pacto Demoníaco, associado na narrativa à luxúria e
à misoginia, uma vez que ela é fruto de um desejo incestuoso feminino. Apesar
disso, podemos ver que também os cavaleiros são pecadores e ligados a faltas
como a luxúria, a inveja, o orgulho e a ira.
O modelo de cavaleiro que aparece n’ A Demanda do Santo Graal é o do
cavaleiro cristão, representado por Galaaz. Ele possui todas as virtudes teolo-
gais, cardeais e ainda outras como a simplicidade e humildade. É um exímio
defensor do cristianismo e sua cavalaria é voltada exclusivamente para este fim.
Seu comportamento o aproxima quase que de um santo. O eleito expulsa o
demônio, realiza curas e por fim ascende aos céus com o Santo Graal e os anjos.
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FONTES
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A Demanda do Santo Graal. Ed. Crítica e fac-similar de Augusto Magne.
Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, v. I (1955) e v. II (1970).
A Demanda do Santo Graal. Ed. de Irene Freire Nunes. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1995.
A Demanda do Santo Graal. Texto sobre os cuidados de Heitor Megale. São
Paulo: T.A. Queiroz, 1988.
RAMON LLULL. O Livro da Ordem de Cavalaria (1279-1283). Tradução
de Ricardo da Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Rai-
mundo Lúlio” (Ramon Llull), 2000.
ESTUDOS
BASCHET, Jérôme. “Diabo”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Clau-
de (coord). Dicionário Temático do Ocidente Medieval,São Paulo: EDUSC/Im-
prensa Oficial do Estado,vol I, 2002, p. 319-331.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio
de Janeiro: José Olympio Editora, 1995.
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morrer pela pátria”, ( Odes. III, 2, 13). Cabe destacarmos igualmente um fator
predominante para o sucesso das batalhas: a disciplina rigorosa.
Inseridos em contextos diferentes, narrando fatos e realçando personagens
com objetivos diferentes, César e Tácito servem de exemplo ao que denomina-
mos de olhar do conquistador. Ambos detém-se nos hábitos, costumes e for-
mas de organização político-administrativa dos povos considerados estranhos.
E os estranhos germanos, subjugados, analisados por eles, ganham destaque
por representarem grupos de guerreiros preparados fisicamente (e diríamos
moralmente) para o combate. Compreendemos que quanto maior o valor do
adversário maior será a glória da conquista. Quaisquer que sejam os propósitos
dos dois autores, diversas e interessantes são as possibilidades de estudo dos
aspectos formais e conteudísticos dos Commentarii de bello Gallico, de César
e da Germania, de Tácito. César vai além das proposições que poderiam exem-
plificar um discurso militar, quando se refere não só a detalhadas descrições
topográficas, mas também a aspectos históricos - e diríamos psicológicos - dos
sujeitos enfocados. Tácito igualmente trata de temas relacionados à cultura da-
queles povos.
Sem nos atermos, por questões relacionadas ao propósito deste trabalho,
a uma visão mais ampla a respeito dos historiadores latinos, veremos de forma
sucinta elementos relacionados à biografia e às características estruturais das
obras selecionadas de César e de Tácito. Daremos relevo a certos elementos de
valor literário na obra de César, fato que nos surpreende, uma vez que o texto é
marcadamente um relato de campanha bélica.
Caio Julio César (100-44 a.C.) é citado entre os principais historiadores
latinos, ao lado de Salústio e Cornélio Nepos. Legou-nos os Commentarii
de Bello Gallico e os Commentarii de Bello civili. O vocábulo commentarius
designa aqui uma espécie de diário de operações militares, apontamentos, me-
mória. Para Diana Bowder (BOWDER, 1990: 64), César
...foi a personificação do gênio militar e administrativo dos romanos. Suas
realizações mais notáveis foram a conquista da Gália e a desarticulação perma-
nente da constituição republicana de Roma.
Os Comentários sobre a guerra gaulesa, escritos provavelmente entre os
anos 52-51 a. C., não só relatam as operações militares da conquista da Gália,
campanha que durou dez anos, mas dão preciosas informações sobre a vida, os
costumes e as instituições dos antigos gauleses. Seu estilo é conciso; o texto é
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Ainda no mesmo parágrafo, Tácito comenta que também Ulisses teria che-
gado à Germânia:
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vidades bélicas são bem mais incentivadas. Ocupa-se, então, o autor em par-
ticularidades dos povos no que diz respeito ao embate que irá ocorrer. Tácito
apresenta maiores detalhes a respeito de hábitos relacionados a crenças e atitu-
des perante os deuses.
Tácito, ao falar das práticas religiosas dos germanos, de forma mais ampla
em relação ao texto de Césarexplicita crenças e hábitos, segundo a visão roma-
na, utilizando também nomes do universo mítico greco-romano, mas afirma
que há sacrifícios, como no parágrafo 9:
Deorum maxime Mercurium colunt, cui certis diebus humanis quoque
hostiis litare fas habent. Herculem ac Martem concessis animalibus placant
(Cultuam dentre os deuses especialmente Mercúrio e, para que sejam fa-
voráveis, acreditam que devem sacrificar vítimas humanas. Já Hércules e Marte
são aplacados com animais...).
Observamos passagem citada acima que Tácito usa a mesma frase utilizada
por César para falar do culto a Mercúrio. César afirma: Deum maxime Mercu-
rium colunt (VI, 17); Tacito: Deorum maxime Mercurium colunt. Um detalhe
que merece destaque: César fala dos gauleses.
No mesmo parágrafo 9, Tácito comenta que os germanos não aceitam ide-
alizações antropomórficas para seus deuses:
Ceterum nec cohibere parietibus deos neque in ullam humani oris speciem
adsimulare ex magnitude caelestium arbitrantur.
(Julgam que não se adequa à magnitude dos seres celestes os manter entre
paredes ou mostrá-los com alguma feição humana).
São respeitadíssimas, segundo Tácito, as práticas de adivinhação (no pa-
rágrafo 10): Auspicia sortesque ut qui maxime obseruant...(“os auspícios e as
sortes são amplamente observados...”). Os germanos, além de tirar a sorte uti-
lizando um ramo de árvore frutífera, marcado com sinais e dividido em peda-
ços, consultavam o voo e o canto das aves. E causa admiração ao historiador a
observação atenta do relinchar dos cavalos, também no parágrafo 10:
Proprium gentis equorum quoque praesagia ac monitus experiri: publice
aluntur isdem nemoribus ac lucis, candidi et nullo mortali opere contacti; quos
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pressos sacro curu sacerdos ac rex uel princeps ciuitatis comitantur hinnitus-
que ac fremitus obserua.
(É próprio do povo observar os presságios através do relinchar dos ca-
valos. Eles são alimentados para o interesse público em suas próprias selvas e
bosques sagrados. Têm o pelo branco e nenhum mortal pode ter contato com
eles. São atrelados a um coche sagrado e um sacerdote, um rei ou o principal da
cidade, os acompanham, observando sua respiração e seu relincho).
Para concluir podemos dizer que, mesmo se restam dúvidas quanto à ve-
racidade das informações extraídas dos dois autores, e, se consideramos exa-
gerados os elogios à moral e à fortaleza de caráter dos povos descritos (que
poderiam contrastar com os vícios de seus contemporâneos ), reconhecemos o
valor de suas obras, em especial no que concerne ao olhar romano em direção
aos povos subjugados. Impuseram vocábulos latinos para expressar conceitos,
práticas administrativas e cultos religiosos, sem se preocupar qual era o valor
dos mesmos para os povos enfocados. César e Tácito, entretanto, reconhecem
nos germanos o vigor moral e a força da tradição.
BIBLIOGRAFIA
ACCIOLI, Roberto. César e a revolução romana. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1987.
BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes,
1972.
BOISSIER, Gaston. Tácito. São Paulo: Difusão, s.d.
BOWDER, Diana. Quem foi quem na Roma antiga. Trad. Maristela Ribeiro
de Almeida Marcondes. São Paulo: Art Editora, 1990.
BOWRA, C.M. Virgílio, Tasso, Camões e Milton (Ensaio sobre a epopéia).
Trad. António Álvaro Dória. Porto: Livraria Civilização, 1950.
CANFORA, Luciano. Júlio César: o ditador democrático. Trad. Antonio da
Silveira Mendonça. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, história. São Paulo: Papi-
rus, 1997.
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mente defendeu o papa contra as pretensões capetíngias. Sim, pois sua recusa
em assinar o documento anti-papal denota essa defesa. Dessa forma, sua pro-
dução teológica, lógica e metafísica traz a marca de seus interesses e opiniões de
grupo enquanto oxfordiano de escola e defensor do Papado. Apenas, enquanto
a primeira postura é evidente e, nisto, aceita consensualmente pelos estudiosos
da filosofia medieval, a segunda não parece ser óbvia.
Mas quanto à filiação intelectual de Duns Scot temos que traçar mais al-
gumas linhas. Béraud de Saint-Maurice salienta que sua obra tem um caráter
nitidamente agostiniano nas suas linhas mestras, sempre franciscano nos de-
talhes como no conjunto e muitíssimas vezes de acordo com Santo Tomás e
Aristóteles. Realiza assim uma síntese do agostianismo e do aristotelismo, gra-
ças a uma via media por ele sabiamente aberta entre os dois sistemas opostos
(SAINT-MAURICE, 1947, p.120).
Na verdade, Duns Scot em sua teologia e em sua filosofia, a um fundo agos-
tiniano acrescentava empréstimos da linha aristotélica. Isto, no entanto, não
o impedia de discordar radicalmente (inclusive em princípios fundamentais),
de Santo Tomás e, mesmo, de Aristóteles. Tal fundo agostiniano, por outra,
não implicava numa aceitação total da obra de Santo Agostinho. Por vezes ele
discordou deste, e, mesmo, de Platão. Seria então melhor dizer que Duns Scot,
em vez de uma grande síntese ou uma via média, apenas não foi (diferente da
maioria dos franciscanos), totalmente avesso ao aristotelismo e, mesmo, pro-
curou por vezes combinar elementos das duas linhas, mas dotando-os sempre
de um caráter original.
Mas se podemos de forma relativamente fácil compreender sua filiação in-
telectual, sua filiação política parece ser um tanto obscura. Para compreendê-la,
no entanto, devemos entender melhor o quadro sociopolítico da época e espe-
cialmente a querelas entre o Papado e o Reino da França por ocasião, respecti-
vamente, de Bonifácio VIII e Felipe, o Belo.
De fato, com relação aos processos sócio-políticos, os séculos XIV e XV
foram marcados por um quadro complexo de múltiplas formas de poder em
conflito. Num extremo encontravam-se poderes locais, de toda sorte, que ainda
marcavam profundamente o Ocidente. No outro, os poderes de pretensão uni-
versalista, ainda que decadentes – o Império e o Papado. Entre os dois, se de-
senvolviam as figuras do rei e do Estado Monárquico que, lutando contra todas
essas forças, foram progressivamente se impondo num processo multissecular
de avanços e recuos que, de fato, só chegou à conclusão na Idade Moderna. Foi
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perspectiva de potestas indirecta ratione pecatti dos papas de então, não tendo
a radicalidade do de Bonifácio VIII que, em sua idéia de potestas indirecta,
pretendia, como comentado, de fato governar in temporalibus.
Por tudo, permanece a estranheza com relação ao fato que John Duns Scot,
assumindo a liberdade da filosofia perante a teologia, e valorizando mais que
qualquer outro filósofo escolástico até então a pessoa humana, não assumisse
também claramente a defesa do Estado perante a Igreja e, em particular, peran-
te o Papado.
V. Referências Bibliográficas:
V.b - Bibliografia:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
DE LIBERA, Alain. Penser au Moyen Âge. Paris: Éditions du Seuil, 1991.
----------------------- A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos Séculos XIV e XV. Os Estados. São
Paulo: EdUSP, 1987.
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
----------------------; BOEHNAR, Philoteus. História da Filosofia Cristã:
Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Vozes, 1982.
HEERS, Jacques. História Medieval. São Paulo: Bertrand Brasil, 1991.
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26. That he who is not at peace with the Roman church shall not be considered catholic.
27. That he may absolve subjects from their fealty to wicked men.
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(não nos esqueçamos que ele já havia acompanhado Conrado III em 1147, na
2a Cruzada) e a Carta do Preste João, fica clara a intenção dos autores da carta
que a identificação messiânica deste potentado fosse facilmente ligada a Fre-
derico Barbarossa, além de se configura um estruturado plano de ação para
criar uma nova legitimidade sobrenatural para o Império. Confirmada pelas
alegações de 1157: o Império era independente do Papado. Seu soberano re-
cebia a realeza diretamente de Deus, através da eleição entre os príncipes e é a
partir daí que a denominação do Império é alterada de Imperium romanorum
para Sacrum Imperium romanorum, sendo que os elementos escatológicos só
vinham a confirmar seu status de vice-regente da Divindade.
Quanto à reação da Igreja a esta ofensiva, só podemos descrevê-la como in-
suficiente. A Cúria parece ter sido apanhada de surpresa pelo preparo intelectu-
al da Chancelaria Imperial. Alexandre III contestou a validade da canonização
de Carlos Magno devido esta ter sido realizada por um antipapa reconhecido
apenas pelo Império e sua esfera de influência (Dinamarca e Polônia) e respon-
deu à Carta do Preste João só em 1177, após a derrota do Barbarossa frente à
Liga Lombarda em Legnano (1176) que encerrou suas tentativas de efetivar seu
domínio na Itália.
O LUDUS DE ANTICHRISTO
Por volta de 1160 foi composta, provavelmente na Abadia de Tegernsee (Ba-
vária), uma peça teatral conhecida como Ludus de Antichristo, muitas vezes
encenada para a corte imperial. Seu propósito era apoiar as demandas impe-
riais por legitimidade; já que colocava as demandas do imperador acima das do
Papa para ser visto como legítimo representante de Deus na terra.
No começo do Ludus, existe uma cena que representa a lenda do ùltimo
Imperador: que ele virá a Jerusalém e deporá sua coroa ou em uma árvore no
Monte das Oliveiras ou no Gólgota ao pé da cruz da Crucificação de Cristo ou
no Templo, em cena reminiscente da passagem do Apocalipse em que coroas
são atiradas aos pés de Cristo (Ap. 4:10). O Último Imperador deporá sua coroa
após ter comandado um período de paz que precederá o reinado do Anticristo.
Isso ocorrerá quando o Anticristo aparecer e constituirá uma entrega do poder
a Cristo que então destruirá o Anticristo que havia previamente usurpado o
poder do Imperador.
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Esta lenda também contribuiu para a crença que Jerusalém seria o local
do Juízo Final. De acordo com a lenda do ùltimo Imperador, Jerusalém e não
Roma é que será o foco dos eventos políticos e religiosos decisivos que culmi-
narão com a dissolução do Sacro Império Romano.
O pensamento contemporâneo mantinha que os eventos acerca do reinado
do legendário Último Imperador, o aparecimento do Anticristo, sua morte e o
subsequente Julgamento, tornariam Jerusalém o foco da atenção do mundo; e
isso seria mais um elemento a ser considerado em relação ao maciço envolvi-
mento dos monarcas germânicos da dinastia Hohenstaufen com as cruzadas:
Conrado III e Frederico I em 1147-8, Frederico I em 1188-90, Henrique VI em
1197 e Frederico II em 1228.
A dissolução do Império e o aparecimento do Anticristo sinalizam o fim
dos tempos; esta caracterização corresponde à crença medieval de que o Impé-
rio Romano era o que detinha as forças do Anticristo. Assim que o Imperador
abdica de seu trono em favor de Cristo, torna-se problema deste a luta contra o
Anticristo e sua influência maligna.
Esta cena da renúncia do Imperador é fundamental para a caracterização de
Frederico I em sua luta contra o papa Alexandre III: ao contrário do presunço-
so Anticristo, o Imperador Germânico renuncia ao poder de forma humilde,
devolvendo-o a seu dono de direito, já que o Imperador não passa de Vicarius
Dei, ocupante temporário do trono, pertencente ao Rei dos Reis. Neste aspec-
to a peça serve às necessidades das lutas com o Papado, já que enquanto as
palavras do imperador quando pede que Cristo aceite seu sacrifício da coroa
exsudam humildade, as do Anticristo são pura soberba e o Papa, de acordo com
o dito popular, entra mudo e sai calado, compactuando com aquele que estiver
detendo o poder naquele momento.
No Ludus de Antichristo, o Imperador encarna a justiça e a retidão enquan-
to que o Anticristo é a quintessência do Mal. Esta justaposição de opostos era
típica no período e ao glorificar o imperador, a peça também representava ati-
tudes contemporâneas em relação ao imperador germânico como, por exem-
plo, a Gesta Friderici de Otto de Freising & Rahewin, o Carmen de Gestis Fri-
derici I Imperatoris in Lombardia, a Chronica de Otto Morena e continuadores,
a Carta do Preste João das Índias e canções do Arquipoeta de Colônia como:
Salve mundi domine cesar noster, ave.
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da Sicília, morreu logo após seu marido; e quando, para garantir a segurança
de seu filho, ela deixou-o sob a guarda do Papa, Inocêncio cometeu um grave
erro. Confiando na gratidão do menino, ele apoiou suas pretensões à herança
imperial. Frederico II foi coroado Rei da Germânia em 1215, quando tinha 21
anos e Imperador três anos depois.
A velha disputa entre Reino e Sacerdócio reacendeu-se, só que sua natureza
não era tanto de força material, mas de prestígio e opinião pública. Frederico
II tinha a seu lado a mística que ainda estava ligada ao nome do Império Ro-
mano. Preocupado com os problemas que o incomodavam, olhava com inveja
o passado, os dias da antiga Roma, aquele império mundial cujos líderes tanto
admirava. Ele sonhava em ser o Imperador que restauraria essa glória perdida.
Carlos Magno havia quase conseguido e, mais recentemente, Frederico Bar-
barossa. Frederico II herdou com seu título o respeito e a esperança que os
homens ainda ligavam à idéia imperial. Ele estava bem consciente deste fato.
Era seu objetivo transformar seu título nominal em realidade, ser Cesar, tanto
o herdeiro de Constantino e Justiniano quanto o de Carlos Magno.
Criado na Sicília, onde seus ancestrais normandos haviam modelado sua
corte com o Império Bizantino em suas mentes, ele sonhou em ter o mesmo po-
der que os imperadores bizantinos detinham, como vice-reis de Deus na terra,
ainda que deferentes à Santa Igreja mas em última instância supremos sob os
Céus. A coroa imperial nunca pousou sobre cabeça mais brilhante. Intelectu-
almente Frederico estava entre os homens mais impressionantes de sua época.
Era um bem dotado lingüista, fluente em Francês, Alemão e Italiano, Latim,
Grego e Árabe. Era instruído em Direito, Medicina e História Natural, além de
ter um interesse pessoal em Filosofia.
Embora fisicamente comum, com um tipo baixo e atarracado, seu cabelo e
face vermelhos e olhos míopes, ele poderia, se quisesse, fascinar qualquer um
com seu charme e rapidez de raciocínio. Suas qualidades poderiam ajudar em
sua causa; mas ele foi vítima de seu próprio brilho. O Imperador que as pessoas
procuravam era a tradicional figura paternal, nos moldes de Carlos Magno e
do Barbarossa, não um homem impaciente para com as convenções do mundo
feudal. Frederico desprezava os tolos e desdenhava da piedade vazia. Ele adora-
va espantar os homens com a audácia de seu pensamento e desconsiderava as
sensibilidades alheias; a crença em sua grande missão levou-o a abandonar os
padrões de honra mantidos em seu tempo. Era auto-indulgente e tinha laivos
de crueldade. Seu harém em Palermo era notório; e ele mantinha ali muralha-
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Conclusões:
Henrique IV sobreviveu à Contenda das Investiduras, mas perdeu irreme-
diavelmente a legitimação tradicional dos monarcas germânicos. O Império
não estava preparado para enfrentar uma ofensiva intelectual, que viesse a sola-
par as bases ideológicas de seu poder. Então, a vitória neste round sem dúvida
pertenceu ao Papado. Já Henrique V aproveitou-se de um período de detente
com a Igreja. Os confrontos diminuíram em escala e intensidade e o primeiro
impacto da ofensiva gregoriana já havia sido absorvido. Henrique IV havia sido
um imperador convencional, moldado pelas experiências de seus antecessores
mas seu sucessor era mais flexível e digamos a verdade, tanto Império quan-
to Papado encontravam-se desgastados. O Império necessitava de uma trégua
para reagrupar suas forças e o Papado encontrava-se numa crise de expansão
agravada por problemas internos. O resultado foi a Concordata de Worms
(1122) na qual foi acertada uma paz de compromisso em que o Império ainda
obteve vantagens.
Porém, com a morte de Henrique V em 1125 a disputa pela sucessão impe-
rial dividiu a Germânia aproximadamente pelos 30 anos seguintes entre os Ho-
henstaufen e os Supplinburg-Welf. Nem Lotário III nem Conrado III tiveram
paz suficiente para causar maiores dissabores a Roma. Neste período a Igreja
continuou a lidar com problemas internos como Cismas e o levante comunal
de Roma sob Arnaldo de Bréscia. Podemos inferir que neste período inicial
(1075-1152) não houve uma demonização dos imperadores por parte do Pa-
pado, porque a sofisticação intelectual encontrava-se basicamente a seu lado e
não havia a necessidade de utilizar conceitos mais contundentes na disputa (e
também a Igreja ainda não havia se tornado “imperial” o suficiente para que se
eqüivalessem a desobediência ao Papado, a heresia e o crime de lesa-majestade.
Identificação esta que adveio da perseguição aos hereges durante o século XIII
e sem sombra de dúvida, do período de Inocêncio III).
Com a ascensão de Frederico I, o jogo muda. O Papado foi apanhado de
surpresa, já que durante o século XII o Império passa por uma relativa moder-
nização administrativa, empregando cada vez mais pessoal intelectualmente
qualificado e também houve o renascimento do Direito Romano, diretamente
patrocinado pelo Imperador gerando assim a mudança do paradigma de legi-
timidade político-teológico para o político-jurídico, possibilitou que o Impé-
rio estivesse preparado para uma contra-ofensiva ideológica, capitaneada pelo
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Referências Bibliográficas:
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A religiosidade dos celtas e germanos
A CRISTIANIZAÇÃO DA ESCANDINÁVIA
NAS SAGAS ISLANDESAS
37 Era Viking: o início e término do período conhecido como Era Viking é polê-
mico, mas adotamos os anos de 793 (ataque ao mosteiro de Lindisfarne) e 1066 d.C. (mor-
te de Harald Hardrada) como datas limites. A respeito da história e cultura dos vikings,
consultar: Langer 2009a: 169-192; Haywood 2000; Graham-Campbell 1997; Christiansen
2006; Boyer 2002.
38 Aqui diferenciamos conversão (que implica uma metanóia completa e absoluta,
com o abandono radical de todas as crenças anteriores) e cristianização (que é menos
enfático e pode ser apenas a sobreposição híbrida ou não de uma religião sobre outra).
Agradeço ao historiador prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho (UNESP/Assis) por esse
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A religiosidade dos celtas e germanos
A Brennu-Njáls saga
A Brennu-Njáls saga (A saga de Njál o queimado) constitui uma das mais
famosas sagas islandesas,39 escrita entre os anos de 1275 a 1290 por um au-
tor desconhecido e narrando eventos ocorridos durante os anos 960 a 1020.
Não foi conservado o manuscrito original, sendo a cópia mais antiga datada do
ano 1300-1315, denominada de manuscrito Arna-Magnæan (AM 468 4to). A
primeira vez que foi publicado impresso foi em Copenhagen, no ano de 1772
(Ólasson 1993: 434).
Sua estrutura narrativa possui um denso realismo psicológico e uma
aparência muito moderna, caso seja comparada com as produções literárias da
Europa de então (Haywood 2000: 133). Como em grande parte das sagas dos
islandeses (Íslendigasögur),40 a maioria dos personagens da saga de Njal existiu
historicamente. Apesar da caracterização literária, que distancia a personagem
Njal da realidade, existem indícios arqueológicos que confirmam que ele real-
mente foi atacado e queimado em sua casa, por exemplo. A coerência histórica
da saga segue padrões internos típicos de sua época – a credibilidade dos fatos
não seguia exatamente a fidelidade de como eles aconteceram. O autor da obra
certamente conhecia a Bíblia, outras sagas e documentos literários, islandeses
e estrangeiros, como o Landnámabók, Íslendigabók, Kristni saga, Laxdœla saga,
Orkneyinga saga, Egils saga, Óláfs saga Tryggvasonar, Eyrbyggja saga, entre ou-
tros (Bernárdez 2003: 17; Lönnroth 1976: 33; Hamer 2008: 11).41 Não se sabe se
referencial.
39 As sagas são um tipo de narrativa literária onde se descreve a história de uma
família ou linhagem histórica da Islândia medieval, especialmente os feitos guerreiros que
tiveram lugar entre os anos 874 e 1030. O termo saga vem do verbo islandês segja (“dizer,
recontar”) e é uma exclusividade desta região e do período medieval. O momento de mais
intensa produção das sagas, de 1150 a 1350, foi influenciado em diversas ocasiões pela
literatura clássica e pela hagiografia medieval em latim. O estilo predominante nas sagas é
de uma narrativa factual, objetiva e rápida, regida em prosa, concentrando-se nos fatos de
um personagem “digno de memória” (Langer 2009c: 2).
40 As Íslendigasögur são um subgênero dentro das sagas islandesas, que podem ser
caracterizadas com uma natureza semi-histórica, uma narrativa objetiva, formal e descri-
tiva. No momento da sua composição, elas eram consideradas verossímeis e reais para a
audiência das comunidades nórdicas (Langer 2009c: 3).
41 O mais conceituado estudo sobre a saga de Njal continua sendo o livro de Lönn-
roth 1976.
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A religiosidade dos celtas e germanos
o autor era clérigo ou leigo, e se parte de sua formação deu-se fora da Islândia.
Em todo caso, era uma pessoa de família rica e poderosa, talvez da dinastia
Suinfelling, residente a sudoeste da Islândia, e parte da obra possui influência
de monastérios agostinianos (Hamer 2008: 16).
O principal tema desta saga é a relação entre Njal, um rico e influente
fazendeiro, com seu amigo Gunnar. Esta amizade é testada pela esposa de Gun-
nar, a desonesta e vingativa Hallgerd, que entra em conflito com Bergthora, a
esposa de Njal. Apesar destas desavenças, os dois homens permanecem amigos
e em paz. Mas quando Gunnar é considerado fora da lei (por um envolvimento
em uma disputa de sangue), Njal acaba se envolvendo em assassinatos contra
seus inimigos e ambas as famílias participam de matanças. O clímax da saga é
atingido com a morte de Njal e seus familiares, todos queimados vivos em sua
fazenda. Os assassinos são caçados e mortos pelo filho de Njal, Kári. O fim da
saga ocorre com a reconciliação entre Kári e Flosi, o único sobrevivente dos
incendiários.
Nosso interesse principal na saga de Njal reside nos capítulos 100 a 105,
que trata da chegada do cristianismo na Islândia – um dos episódios das sagas
islandesas mais populares do século XIII (Lonnröth 1976:2). Na realidade, tra-
ta-se da cópia de um texto mais antigo, contido no Íslendigabók (c. 1122-1132)
e na Kristni saga (c. 1250-1254), com algumas modificações.42 Realizaremos
análises de cada passagem deste episódio, para em seguida conceder algumas
reflexões gerais.
A chegada do cristianismo na Islândia
O texto inicia-se com a descrição da troca de governantes na Norue-
ga, antes chefiada pelo conde Hakon Haraldsson43 e substituído por Olaf
42 Bernárdez 2003: 343. Não tivemos acesso ao texto da Kristni saga, para even-
tuais comparações morfológicas e estruturais. Esta fonte é datada entre 1250-1284 (Duke
2005: 345).
43 Também chamado Hakon, o bom (c. 920-960). Rei da Noruega de 936 a 960,
filho do rei Harald, cabelos belos. Apesar de ser um dos primeiros a incentivar a vinda
de missionários cristãos na Noruega, teve um enterro e um memorial tipicamente pagão
(Haywood 2000: 89).
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44 Olaf I (c. 968-1000). Rei da Noruega de 995 a 1000, filho de Harald Fairhair. A
partir de 996 iniciou a cristianização da Noruega e da Islândia (Haywood 2000: 141).
45 Religião se refere em grande parte a atitudes sociais, públicas e visíveis, en-
quanto que religiosidade implica em algo mais íntimo, profundo e, em muitas ocasiões,
escamoteado da vida social. No caso da sociedade nórdica, religiosidade implica em uma
continuidade das práticas mágicas, das crenças folclóricas e da vivência cotidiana e privada
do pensamento religioso. Agradeço ao prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho (UNESP/
Assis) por esses conceitos.
46 Sobre o tema da cristianização da Escandinávia, consultar: Nordeide 2010; Sa-
wyer & Sawyer 2006: 100-128; Langer 2005b: 185-190; Duke 2005: 343-366; Dubois 1999:
139-204; Boyer 1987: 7-152.
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47 Uma pequena história da Islândia, dos primeiros assentamentos até 1118, es-
crita por Ari Thorgilsson entre 1112-1132. Esta versão é a síntese de um manuscrito mais
longo e antigo, que foi perdido. Ari baseou sua crônica histórica na tradição oral, inclusive
de seu pai adotivo, Teit, que nasceu em 997 (Haywood 2000: 105)
48 O estudo foi publicado inicialmente na conceituada revista Scandinavian Stu-
dies 41, 1969 (The noble heathen: a theme in the sagas). Posteriormente, Lönnroth retoma
esta teoria no seu estudo sobre a saga de Njal (1976: 136-148).
49 A ilha atlântica da Islândia foi descoberta em 860 e iniciou-se a colonização
extensiva a partir de 930. Durante o século XIII, a ilha foi acometida de uma concentração
do poder de certas famílias, o que levou a sua anexação pela Noruega em 1262 (Haywood
2000: 101).
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da Era Viking, se tornam na narrativa das sagas, pagãos que não se preocupam
com o paganismo, ou em outras, palavras, adeptos de um credo que está para
ser extinto com o tempo. O seu comportamento “desleixado” com relação à re-
ligiosidade pré-cristã é ao mesmo tempo, um clichê literário e um anacronismo
histórico. Um exemplo semelhante ao de Njal é o personagem Glúmr, que se-
ria supostamente um rei odinista, mas que em momento nenhum da narrativa
explicita qualquer devoção a esta deidade (Víga-Glúms saga 14) ou Ketil, que
afirma que nunca havia feito sacrifícios para Odin (Ketil saha hœngs 5).
O encontro com o feiticeiro Hedin
O recém convertido Hall e Thangbrand iniciam uma jornada missioná-
ria, convertendo e batizando várias pessoas na Islândia, e outras vezes, matando
para isso concretizar-se. Alguns moradores do local recebem o prima signatio
(batismo preliminar, em nórdico antigo: prímsigning), o que implica não em
uma conversão total, mas em um primeiro contato com as estruturas simbóli-
cas da nova religiosidade, sem abandonar totalmente suas crenças antigas.50 Em
uma localidade denominada Kerlingardal, os habitantes da região contratam
um feiticeiro para matar os missionários, denominado de Galdra-Héðinn (He-
dinn, o encantador). O galdr é um conjunto de práticas mágicas relacionadas
com cantos, runas, confecção de amuletos, curas, profecias e maldições. O seu
uso está relacionado diretamente com o deus Odin51 e era praticado durante a
Era Viking (Langer 2009d: 66-90). A saga não detalha o ritual de malefício que
Hedinn empregou para matar Thangebrand, apenas de que seria um grande
blót (sacrifício), realizado no alto da montanha Arnarstakksheid. Nos tempos
pagãos, o blót consistia em um cerimonial público, coletivo e de caráter es-
pecialmente sazonal, conduzido geralmente pelo líder da comunidade – que
servia como sacerdote circunstancial e não profissional. Era relacionado de
um lado, com os festivais de certos deuses e ou espíritos da terra, e de outro,
também a momentos de crise como ataques inimigos ou a morte de um rei
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(Ogilvie & Pálsson 2006: 7) - no caso da saga em questão, uma etapa em que o
missionário enfrenta os perigos do mundo pagão. Mas acreditamos que não é
somente isso.
A literatura possui mecanismos específicos de criação, e o clichê é uma
necessidade que é adequada a um estilo. Ao mesmo tempo em que estes estere-
ótipos fazem parte da criação individual, eles podem também ser sintomáticos
da existência de tradições e crenças ainda vigentes na sociedade, como também
precisam ser evocados devido à audiência presente nesta época (o texto medie-
val era lido coletivamente, ao invés da leitura individualizada e silenciosa).54
Como os textos dos inquisidores tratando de feitiçaria, devemos separar as
crenças e mitos que foram preservadas pela ótica erudita, transformadas em
códigos diferentes e ambíguos (Ginzburg 2007: 287). A recorrência do tema
do controle climático, em nosso entendimento, é a evidência de uma sobre-
vivência da crença mágica, mesmo no período cristão. Os pagãos são capazes
de promover a interferência na ordem natural do mundo (maravilhoso), mas
é algo visto como maléfico (magia), enquanto que a contrapartida, o milagre,
ocorre somente no universo cristão. Mas é uma questão puramente discursi-
va. Do ponto de vista cultural, magia e milagre pertencem à categorias seme-
lhantes (são fantasias criadas para cumprir papéis de valores morais dentro de
uma sociedade, Egilsdóttir 2006: 1), ou seja, ambas são definidas e sustentadas
por crenças coletivas, existindo porque as pessoas crêem (a eficácia simbólica,
Monteiro 1986: 60).
Pagãos versus cristãos na Islândia
Seguindo a saga, Thangbrand persegue e mata o feiticeiro Hedin com
uma lança. Logo após, Njal se converte, com todos os membros de sua casa.
Mas alguns pagãos permanecem ainda convictos de suas crenças. Entre eles,
Thorvald e Ulf Uggason, que proclamam alguns versos difamatórios ao mis-
sionário, entre estes, que estaria ofendendo aos deuses e que ele seria um co-
varde. Juntamente com Gudleiff, o evangelizador golpeia e mata seus inimigos
em uma emboscada. Logo a seguir, um convertido de nome Hjalti Skeggjason
54 “A obra medieval, até o século XIV, só existe plenamente sustentada pela voz,
atualizada pelo canto, pela recitação ou pela leitura em voz alta. Em um certo sentido, o
sinal escrito é pouco mais que auxílio para a memória e apoio. (...) O romance é o primeiro
gênero destinado à leitura, mas é uma leitura em voz alta” Zink 2002: 80-81.
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A religiosidade dos celtas e germanos
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Lítt ætla eg að guð gætti Eu creio que Deus não guardou6 a rena
Gylfa hreins að einu. que cavalga as ondas.7
2. Þór brá Þvinnils dýri 2. Thor agarrou o cavalo de Þvinnil8
Þangbrands úr stað löngu, de Thangbrand, bateu e moveu sua
hristi búss og beysti madeira e o lançou contra as rochas;
barðs og laust við jörðu.
Muna skíð um sjá síðan Não voltará a singrar o mar
sundfært Atals grundar, novamente, o esqui de Atal9
hregg því að hart tók leggja, Pois uma tormenta terrível o deixou
hánum kennt, í spánu. em pedaços.
(Brennu-Njal saga 102).
Todas as traduções ao texto da Brennu-Njal saga são de nossa autoria.
2 Kenning (metáfora poética) para o deus Thor.
3 Nome da embarcação que naufragou.
4 Kenning para sacerdote cristão.
5 Tipo de embarcação da Era Viking, para fins comerciais e de transporte.
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A religiosidade dos celtas e germanos
6 Na tradução de Rodolphe Dareste, 1896: “Odin n’a pas épargné ses vaisseaux” (Odin
não poupou seus navios). Disponível em: http://www.sagadb.org/brennu-njals_saga.fr
Acreditamos que houve um erro interpretativo por parte deste tradutor. O termo no
original, guð, a princípio, pode designar qualquer deus. No caso, Dareste utilizou o con-
ceito que na palavra Gylfa, citada mais adiante, podia ser um modificação para Gylfi,
um dos vários nome do deus Odin. Mas o poema se refere especificamente a falha de
um deus em proteger seu navio, que no contexto do poema, só pode se referir ao deus
cristão e não a Odin. Régis Boyer traduziu a frase como: “Je ne vois pas que Dieu ait pris
grand soin du bateau”. Boyer 1987: 112-113). Segundo Cleasby & Vigfusson 1957: 283,
o termo Gylfa-hreins é uma das várias palavras utilizadas pela poética nórdica para de-
signar navios. Nesta última frase, optamos por nos aproximar da tradução de Bernárdez
2003: 208 e Jesch 2003: 166, aludindo a um kenning.
7 Kenning para navio.
8 Kenning para navio.
9 Kenning para navio.
Steinunn foi uma das raras poetisas da Era Viking cuja obra sobreviveu.
Estes poemas foram preservados em várias versões, o que indica que eram mui-
to populares durante o século XII e XIII (Jesch 2003: 166). Seus versos são cla-
ramente pagãos, contrastando a proteção de Cristo com o poder de Thor, este
último triunfando. A métrica utilizada, dróttkvaett,55 é perfeita. A estrutura dos
versos segue uma tradição escáldica56 em que o herói retratado obtém sucesso
com sua jornada sobre os maus elementos da natureza (tempestades, chuvas,
neblinas, etc). As várias indicações do uso de kennings (metáforas poéticas)
para embarcações, indicam um tipo de poesia de navegação – mas ela inverte a
convenção, descrevendo uma viagem fracassada, sendo a antítese de um poema
de louvor (Jesch 2003: 167).O uso de antigos nomes de reis dos mares (Atall,
Gylfi, Þvinnil) e o tema da navegação e vida náutica é tipicamente masculino
(Straubhaar 2002: 268).
O encontro de Thangbrand e Steinunn foi escrito como tendo sido um
exemplo de performance oral, utilizando trocas verbais como uma espécie de
combate intelectual e verbal. Steinunn inicia o encontro, predicando a fé pagã
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6, que os descreve como guerreiros que lutam sem proteção e sem medo do
fogo ou do aço. A menção mais antiga a esta classe de lutadores vem do século
IX, do poema Haraldskvæði 8, 20, de Thorbjorn hornklofi, que os identifica a
um grupo próximo do rei Hárald, servindo como guarda de elite na batalha de
Hafrsfjord. Posteriormente, as sagas islandesas criam uma imagem negativa e
estereotipada dos berserkers, retratados como violentos, assassinos, arruaceiros
e fanáticos. Na saga de Njal, os próprios pagãos temem o personagem Otrygg.
Isso pode evidenciar uma possível sobrevivência folclórica, onde a memória
social conservou em parte as querelas entre os fazendeiros livres e o grupo dos
berserkers – que segundo algumas referências, eram acometidos de êxtase e
loucura mesmo fora do campo de batalha, como descrito na saga de Egil.
Outra possibilidade é que o escritor criou uma dicotomia entre o he-
rói cristão, Thangbrand, e o campeão do paganismo, Otrygg, justamente para
enaltecer o milagre do crucifixo e a conversão (esta passagem do episódio do
berserker não é mencionada no Íslendigabók). Essa segunda hipótese é confir-
mada pela existência de outra narrativa, muito semelhante e quase do mesmo
período, existente na Vatnsdæla saga 46 (c. 1270-1280), onde uma dupla de
berserkers de nome Hauk, que era temida pelos moradores da região, é con-
frontada pelo bispo Frederick. Este os desafia a atravessar três fogueiras, onde
são queimados e mortos. Após o fato, os habitantes do local são batizados.
Neste caso, o milagre não é apenas indicador da superioridade da nova
religião, mas um substituto para a tradição: no imaginário medieval, o miracu-
loso cristão sobrepunha o miraculoso pagão com o mesmo nível de realismo
e eficácia (Vauchez 2002: 201). O sobrenatural pré-cristão sobrevive mesmo
após as modificações culturais advindas com a nova fé. Várias sagas de bispos
(Byskuppa sögur) utilizam narrativas que eram conhecidas nos tempos antigos:
a imobilidade do corpo, tema presente em uma espécie de magia odínica que
acometia certos guerreiros no campo de batalha (herfjöttur), que ressurge na
imobilidade de um santo após sua morte (Jóns saga); a jornada para fora do
corpo, comum no paganismo (as metamorfoses animais da Kormáks saga e nas
Eddas, entre outras) e nas narrativas de santos (bispos visitam o céu na Guð-
mundar saga) (McCreesh 2006: 1-11).
E também citando outros tipos de fontes nórdicas (como os þættir, as
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Thor é O berserker
exaltado
Controle do Odin e Freyja é desafiado e
Detalhamento: como tendo
clima são difamados morto pelos
mais poder missionários
que Cristo
Odin não
Permanência Odin e Freyja tem poder
das crenças Thor ainda
Estrutura: não tem – Milagre a
mágicas – tem poder
poder serviço do
Malefício cristianismo
Apenas Freyja
Comparação A passagem é mencionada O poema não A passagem
com o não é citada no poema de é citado não é citada
Íslendigabók Hjalti
Acreditamos que a explicação reside na hipótese já alentada anterior-
mente, de um confronto entre uma tradição islandesa com a dominação norue-
guesa (Borovzky 1999: 10-11). Mas ao invés de percebermos essa idéia apenas
no silêncio do missionário Thangbrand após a declamação pública dos poemas
de Steinunn, também a verificamos numa leitura ainda mais ampla do episódio
de conversão. O escritor da saga, coadunado com a audiência de sua época,
identificou a figura de Odin diretamente com a monarquia norueguesa. Sendo
um deus da aristocracia, dos guerreiros, enfim, da elite escandinava pré-cristã,
ele teria condições de representar a opressão advinda da realeza da Noruega
após 1264 (Otrygg aterroriza os pagãos em nossa narrativa). Ao contrário, Thor
é uma deidade identificada aos fazendeiros livres, camponeses, que acolhe em
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61 A respeito do culto ao deus Thor, verificar: Kaplan 2006: 1-11; Dubois 1999: 3,
36, 56-60; Davidson 2001: 79-83, 101-103, 2004: 61-74; Boyer 1997: 153-156, 1981: 117-
130.
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mas reclamando que o rei estava matando seus amigos, antes de mergulhar no
mar. Neste caso Olaf não somente vence e supera seu inimigo, mas o substitui
(Kaplan 2006: 1-9). As antigas funções de Thor, como a de combater os inimi-
gos dos homens (no contexto do paganismo, os gigantes, para o novo imagi-
nário, os demônios), agora são efetuadas pelo rei cristão. A tradição não pode
ser abandonada.
Desta maneira, não podemos concordar com o pesquisador Craig Da-
vis, quando afirma que a Njals saga reconhece o novo status quo da Islândia,
reconciliando para a audiência a nova coligação entre autoridade eclesiástica
e o poder real norueguês (Davis 1998: 453). Existe, obviamente, o reconheci-
mento da superioridade da nova religião, mas o episódio da conversão aponta
para uma critica ao domínio político de então, por meio do descrédito com a
figura de Odin. Já para com o deus Thor, seu poder sobre as forças da natureza
permanece inalterado. Com isso, o islandês, seja o camponês ou o aristocrata,
conserva seu espírito de liberdade e de identificação com um passado consi-
derado melhor, mas agora regido por uma nova religião e um novo direciona-
mento político-social.
Agradecimentos: aos professores João Lupi (UFSC), Ruy de Oliveira Andra-
de Filho (UNESP/Assis) e Luciana de Campos (UFMA), pelos comentários ao
presente texto.
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A religiosidade dos celtas e germanos
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MIRANDA, Pablo Gomes de. Seguindo o Urso e o Lobo: discussões sobre os
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A religiosidade dos celtas e germanos
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A religiosidade dos celtas e germanos
62 Grifos nossos. Os verbos “grenja” e “emja” podem ser traduzidos por rugir e
uivar (ou guinchar), respectivamente, logo temos: “rugiram os berserkir” e “uivaram os
ulfheðnar”.
63 Uma outra referência aos ulfheðnar pode ser vista na Grettis saga, 2.
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68 Tradução nossa.
69 Autor a quem creditamos a composição do poema do qual estamos discutindo.
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Talvez uma possibilidade para essa ligação possa ser dada de maneira
xamânica, aonde através de rituais ou consumo de substâncias alucinógenas,
os guerreiros consigam estabelecer-se nesse estado guerreiro, tomando posse
desse furor. Tem-se falado do consumo de bebidas ou cogumelos alucinógenos:
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Talvez seja perigoso, por outro lado, estabelecer um paralelo mais pró-
ximo entre o xamanismo e o berserksgangr:
75 Por outro lado, concordamos quando o autor conclui que provavelmente não
havia algum culto a parte entre esses guerreiros ou mesmo uma irmandade entre eles, o
que não descarta o fato de que eles pudessem se organizar em pequenos bandos junto a
guerreiros comuns.
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mesmo que consegue manter essa forma encantada durante suas lutas. Nas len-
das lapônicas, encontramos uma moça com seus três irmãos que vivem a lhe
maltratar. Quando ela foge desses irmãos, a mesma passa a ser protegida por
um urso, com quem tem um filho.
Além do urso, na Hrólfs saga kraka, Bera tem mais dois filhos, um com
aparência de Veado e outro com aspecto canino. Os três são animais impor-
tantes na cosmogonia lapônica/finlandesa, o que nos mostra um intercâmbio
cultural com a Escandinávia: o grande urso é uma constelação importante e que
aparece nos primeiros versos do Kalevala, aonde Väinämöinen pede para que
ele, junto ao sol e a lua lhe ajudem no início dos tempos.
Conclusão:
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A religiosidade dos celtas e germanos
necessária para a existência do segundo, ainda que a aparição dos dois seja pro-
blemática nas fontes escritas.
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de 2010.
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A religiosidade dos celtas e germanos
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A religiosidade dos celtas e germanos
76 Habitada pelos antigos Celtas e por outros aborígenes pouco civilizados desde
eras bastante remotas, a Bretanha (Inglaterra) foi conquistada pelos Romanos no século
I d.C., mas a romanização limitou-se, de fato, às Midlands (região central) e à bacia de
Londres. Por volta do ano 410, os Romanos já haviam deixado a ilha, que ficou sujeita às
incursões dos Anglos e dos Saxões; estes rechaçaram as populações celtas até a extremi-
dade da ilha e fundaram, no sul, a heptarquia anglo-saxônica, que não tardou a tornar-se
uma monarquia única, de que Alfredo o Grande (871-899) solidamente estabeleceu suas
bases. Para detalhes sobre a Inglaterra Anglo-Saxônica, veja-se BAUGH & CABLE (1993:
41-71.
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A religiosidade dos celtas e germanos
do norte da Europa. Povos primitivos, belicosos que lutavam entre si, contra as
tribos invasoras dos Daneses (atuais Dinamarqueses), e contra o severo clima
britânico, os Anglo-Saxões ficaram conhecidos por seus apetitosos banquetes,
suas habilidades manuais, suas longas e heróicas histórias, bem como por sua
mesclagem de crenças pagãs com os ensinamentos cristãos. Antes de serem
absorvidos pelos conquistadores normandos da França (a partir de 1066), os
Anglo-Saxões haviam produzido o implacável poema épico Beowulf, de autor
anônimo, e as líricas que pela primeira vez fazem ouvir na literatura inglesa a
fascinação dos ingleses pelo o mar.
Ainda de acordo com POOLEY (1968), quando os Anglo-Saxões in-
vadiram a Inglaterra eles eram um povo basicamente agrícola e seminômade.
Eram organizados em duas classes sociais: os earls da classe dirigente, que
podiam reivindicar títulos de realeza ao fundador da tribo; e os churls77, que
eram criados ou escravos cuja linhagem somente podia ser traçada até um
ex-cativo desventurado da tribo. Durante séculos, os Anglo-Saxões haviam
vivido entre vizinhos hostis, e consequentemente eles admiravam grandemen-
te o líder guerreiro individual e os ideais de coragem que se exigiam dele.
Ao mesmo tempo, mesmo na época da invasão, eles entendiam o conceito
de uma organização social como mais importante do que a individual, já que
possuíam, além de leis severas, também um certo grau de conscientização.
O guerreiro ocupava uma posição de destaque na sociedade anglo-saxônica.
O prestígio de um guerreiro bem-sucedido era imenso. Até mesmo o rei era
essencialmente um guerreiro. Embora reinasse em absoluto, ele estava atento
aos conselhos de sua assembleia de anciãos, Witan78 (“os sábios”). Esse gru-
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que se perpetuava a história dos Anglo-Saxões. O scop tinha que ser mestre de
sua arte, ser capaz de recitar milhares de versos de memória e qualquer execu-
ção medíocre seria o bastante para colocá-lo em situação ridícula e acarretar
até mesmo a perda de sua proteção real. Isso, contudo, não quer dizer que o
scop recitava uma composição inteira de memória (lembrando que o poema
Beowulf contém 3182 versos), já que há evidências de que a improvisação re-
pentina de uma estrofe era também a marca de um habilidoso menestrel. Daí,
talvez, variantes encontradas em alguns manuscritos preservados.
Era costume, em grandes ajuntamentos de pessoas, um scop execu-
tar canções que narravam histórias que mesclavam temas religiosos com os
feitos de heróis como Beowulf82 ou outros heróis do passado, inclusive das
sagas islandesas. A plateia, composta por nobres da corte, ouvia atentamente
essas narrativas; a rainha e seu séquito hospitaleiramente passavam a taça ce-
rimonial de hidromel e em seguida discretamente se retiravam; os guerreiros
ouviam outras histórias enquanto degustava mais hidromel.
ção de fonemas num verso ou numa frase, especialmente as sílabas tônicas) como princi-
pal método de estruturação para unificar linhas de poesia, ao contrário de outros métodos
como a rima tradicional. A poesia skaldica (composta por notórios skalds, os poetas da
Islândia medieval) é escrita com um sistema métrico estrito, verso aliterativo e com muitas
figuras de linguagem, inclusive as kennings. Veja-se também nota 10.
82 Em Beowulf, por exemplo, há várias passagens onde se registra a participação
do scop, dentre elas destam-se: o banquete em Heorot (vv. 491-98), os feitos de Beowulf
após haver derrotado o monstro Grendel (vv. 866-884; 1062-69). Entre os Vikings, esses
contadores de histórias eram conhecidos como skalds (veja-se nota 4).
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conceitos daTeologia Cristã até então desconhecidos, tais como o Pecado Original (Gen.
1: 15-17), a Encarnação de Cristo (Mq 5: 2; Jo 8:58; Lc 2; 40, 52) e a Trindade (Rom. 1:20;
Col2:9).
85 Na poesia aliterativa do inglês anglo-saxônico, a unidade é o verso. Os versos
são dispostos em pares aliterados (sequência de fonems consonantais idênticos ou congê-
neres, dentro da mesma unidade métrica, sobretudo em sílabas tônicas iniciais). O par de
versos é o mesmo da linha tipográfica. Cada verso é frequentemente denominado meia
linha. Exemplo:
wintra dæl in woruldrice. Wita sceal geþyldig, [The Wanderer, v. 65]
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A religiosidade dos celtas e germanos
A cesura é o corte ou pausa que se observacomo element estrutural de certos versos, se-
parando-lhes os membros métricos ou hemistíquios. Para o detalhamento da métrica na
poesia anglo-saxônica, veje-se DIAMOND, 1970: 46-67.
86 Kennings (do norueguês antigo kenningar, singular kenning): recurso estilístico
que consiste em expressar uma coisa em termos de outra. As kennings estão particular-
mente associadas com a prática da poesia aliterativa, onde tendem a tornar-se fórmulas fi-
xas. As kennings são comuns na poesia germânica medieval e são também encontradas nas
inscrições rúnicas nórdicas, nos poemas anglo-saxônicos, e na Edda poética (conjunto de
textos em norueguês antigo, originalmente em versos, encontrados na Islândia). Os skalds
(bardos da era viking) faziam largo uso de kennings (SHIPLEY, 1970:171). Nos poemas,
em tela, há dezenas de kennings, como por exemplo: sumeres weard (The Seafarer, v. 53)
“sentinela do verão”, em referência ao cuco; hwæles eþel (id. v. 60) “habitação da baleia”, em
referência ao mar; gold-wine (The Wanderer, v. 35) “amigo de ouro”, para designar um rei
ou senhor bondoso.
Em Beowulf, por exemplo, há várias passagens onde se registra a participação do scop,
dentre elas destam-se: o banquete em Heorot (vv. 491-98), os feitos de Beowulf após haver
derrotado o monstro Grendel (vv. 866-884; 1062-69). Entre os Vikings, esses contadores
de histórias eram conhecidos como skalds (veja-se nota 3)
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3. OS POEMAS
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89 Os poemas que se seguem foram extraídos de FULD and POPE (2001: 87-110).
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The Wanderer é uma canção épica, de elevado tom elegíco que fala de
um homem que esteve exilado de seu clã, e agora se vê forçado a perambular
sozinho pela terra. A separação de seus entes queridos e de seu senhor parece
ser o pior destino imaginável. O poema transmite as meditações de um exilado
solitário sobre suas glórias do passado como um guerreiro a serviço de seu su-
serano, seus sofrimentos do presente e os valores da paciência e a fé em Deus.
O guerreiro é identificado como um eard-stapa (v. 6), que se pode traduzir
por “errante” ou “nômade”, que vagueia através dos mares gelados e percorre
o “caminho do exílio” (wræc-lasta, v. 32). Ele relembra os dias em que servia
seu senhor no comitatus90, banqueteavam juntos e recebia presentes precio-
sos. Contudo, o destino (wyrd91) se virou contra ele quando ele perdeu seu
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A religiosidade dos celtas e germanos
mente a fate (“destino ou fado”). Cf. o ingles moderno weird, que ainda retém o significado
original principalmente na Escócia. O termo cognato em norueguês antigo é urðr, com
sentido semelhante, mas também personalizado como um dos Norns (“espíritos coletivos
femininos”). Os poetas nórdicos, especialmente nos poemas édicos, falam repetidamente
do julgamento (dómr) ou veredito (kviðr) dos norms, o que quer dizer “morte” ou “uma
vida no exílio”, de modo que amorte é iminente. Para o estudo aprofundado da mitologia
nórdica, veja-se (LINDOW, 2001)
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A religiosidade dos celtas e germanos
um poema explorou tal tema com tanta eficiência como The Wanderer. Outro
tema tradicional também aparece aqui, o Ubi sunt (“onde estão?”), motivo das
líricas latinas medievais, as duas palavras latinas começando qualquer varia-
ção sobre a pergunta:
Hwær cwom mearg? Hwær cwom mago?
Hwær cwom maþþumgyfa?
Hwær cwom symbla gesetu?
Hwær sindon seledreamas? (vv. 92-95)
[Aonde foi o cavalo? Aonde o cavaleiro?/ Aonde o doador do
tesouro? / Onde estão os assentos do banquete? / Onde estão os
divertimentos no saguão?]
A expressão eloquente dada a esse tema em The Wanderer apresenta
o poeta como um escritor elegante e instruído, altamente qualificado em seu
ofício (CARLSEN; CARLSEN, 1985: 20-21).
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poeta se propõe a relatar para sua audiência sobre sua honestidade e sua auto-
revelação. Fala de seu sofrimento ilimitado, tristeza, e dor de sua longa e so-
litária viagem pelo mar. As condições adversas afetam tanto seu corpo físico
quanto seu senso espiritual. Entretanto, em nenhuma parte do poema ele nos
esclarece as razões de seu exílio.
Mæg ic be me sylfum soðgied wrecan,
siþas secgan, hu ic geswincdagum
earfoðhwile oft þrowade,
bitre breostceare gebiden hæbbe,
gecunnad in ceole cearselda fela,
atol yþa gewealc, þær mec oft bigeat
nearo nihtwaco æt nacan stefnan,
þonne he be clifum cnossað. Calde geþrungen
wæron mine fet, forste gebunden, (vv. 1-9)
[Posso recitar uma verdadeira canção sobre mim,
falar das minhas viagens, como eu muitas vezes suportei
dias de faina, horas difíceis, [como eu] tenho sofrido
implacável tristeza no coração, ter conhecido no navio muitos
pesarosos domicílios, o terrível arremesso das ondas, onde a in-
quietante ronda noturna frequentemente me apanhava na proa
do navio, quando ela se agita de encontro aos rochedos. Meus
pés estavam encolhidos de frio, atados pela geada com grilhões
congelados]92
Percebe-se que o narrador estava faminto, solitário, exausto, e acima
de tudo com frio; a palavra cald ou ceald “frio” é empregada cinco vezes na
sua forma simples ou composta somente nos primeiros versos (8, 9, 14, 19 e
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A religiosidade dos celtas e germanos
33), sem contar repetidas referências a termos e expressões da mesma área se-
mântica, como geada, gelo, granizo, neve e sincelos. Eis algumas ocorrências:
forste, v. 9; hrím, vv. 17 e 32; iscealdne sæ, v. 14 “mar gelado”; iscaldne wæg, v. 9
“onda gelada”; isigfeþera, v. 24 “de pluma gelada” (referência a stearn “andori-
nha-do-mar”); sniwde, v. 31 “nevou”; hrimgicelum, v. 17 “sincelos congelados”.
Além da expressão de sentimento pessoal, o poema também contém
alguma descrição incidental do modo de vida dos Anglo-Saxões. O relaciona-
mento íntimo entre o senhor e seus subordinados é revelado em passagens do
tipo:
Forþon nis þæs modwlonc mon ofer eorþan,
ne his gifena þæs god, ne in geoguþe to þæs hwæt,
ne in his dædum to þæs deor, ne him his dryhten to þæs hold,
(vv. 39-41)
[Deveras não há no mundo homem de alma tão livre; nem tão
gracioso em dar, nem tão audaz na juventude; nem tão valente
nas proezas, nem tão querido de seu senhor]
O costume do saguão de hidromel, onde o senhor e seus dependen-
tes se reuniam para beber, banquetear e cantar é sugerido nos seguintes ver-
sos:
Ne biþ him to hearpan hyge ne to hringþege,
ne to wife wyn ne to worulde hyht,
ne ymbe owiht elles, nefne ymb yða gewealc,
ac a hafað longunge se þe on lagu fundað. (vv. 44-47)
[Nem os acordes da harpa, nem o recebimento de anéis93; nem
93 Fazia parte dos costumes dos reis anglo-saxônicos recompensarem seus súditos
com anéis ou outros objetos valiosos para afirmar uma mútua obrigação moral de lealdade
e proteção. O grande poema épico Beowulf também retrata essa cerimônia, quando, no pa-
lácio de Hrothgar, o herói recebe valiosos presentes em reconhecimento pela sua bravura
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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A religiosidade dos celtas e germanos
corte, esses animadores exaltavam os feitos dos deuses e heróis, com cantos
de amor e aventura. Além de ser um animador que compunha e executava
suas próprias obras, o scop atuava como uma espécie de historiador e preser-
vador da tradição oral dos povos germânicos. Contudo, já que essa literatura
destinava-se a ser cantada, somente uma pequena parte dela foi registrada na
escrita. Grande parte dessa literatura pode ter se perdido, restando apenas
cerca de 30.000 linhas de versos e um pouco mais de prosa, principalmente as
de cunho religioso.
Não se sabe quando esses dois poemas líricos foram escritos nem
quem foram seus autores. Ambos constam do Exeter Book, uma coleção que
contém grande parte da poesia do período anglo-saxônico. A maioria dos pes-
quisadores sugere o início do século VIII como a época provável de sua com-
posição. Ambos os poemas são monólogos dramáticos proferidos por perso-
nagens específicos – em ambos, um marinheiro que pode ou não representar
o próprio autor.
Em The Seafarer, a árdua vida no mar é glorificada em contraste com
a vida tranquila em terra firme. O poeta discute as misérias e atrações da vida
no mar, passando, em seguida, a comparação entre os valores terrenos e as
recompensas celestiais. Há duas leituras possíveis do poema: uma é a de que
ele representa um diálogo entre um marinheiro ancião e um jovem que deseja
seguir a vida no mar; a outra é a que procura relacioná-lo à prática da peregri-
nação penitencial, ou (como The Wanderer) à tradição cristã do homem como
degredado do Paraíso, perambulando como um peregrino na terra.
Já em The Wanderer, a vida de um velho marinheiro é também apre-
sentada como sofrida – porém, por uma razão diferente, que confere ao poe-
ma sua força emocional inigualável. O marinheiro aqui vive um dilema entre a
fascinação do mar e o ressentimento dos contratempos e riscos que essa opção
de vida pode acarretar. Ele se vê contemplando o mar desolado, sem rumo,
peregrinando de um ponto a outro, em exílio perpétuo. Embora nem sempre
fora marinheiro, os revezes das impiedosas atividades marinhas podem ter
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A religiosidade dos celtas e germanos
contribuído para torná-lo judicioso. Ele sonha com sua felicidade do passado
e reflete sobre as vicissitudes da vida humana.
Essa situação é intensamente indicativa de uma Grã-Bretanha duran-
te o período de suas maiores sublevações: primeiramente a conquista dos Cel-
tas, depois a dos Anglo-Saxões, em seguida os ataques-surpresa dos Vikings e
a ocupação dinamarquesa. O mosteiro de Beda saqueado. Iona devastada. Ne-
nhum monge ou freira que soubesse ler e escrever restou em Northumbria. A
abadia de Whitby despojada de seus objetos de valor. E muitas vezes os Getas,
Anglos ou Frísios que foram para a Grã-Bretanha haviam deixado (ou foram
compelidos a deixar) seu torrão natal por causa de castelos incendiados, tribos
dispersas, parentes assassinados etc.
Os dois poemas em questão são considerados como elegíacos, um
dos principais gêneros da poesia anglo-saxônica. São poemas cujo tom é quase
sempre terno e triste, refletindo sobre grandes perdas e reminiscência de tem-
pos melhores e mais felizes que o poeta tenha vivenciado. Consequentemente,
os temas desenvolvidos, ou seja, o exílio e separação dos senhores, são, de fato,
experiências ou observações pessoais dos narradores. Embora o conteúdo dos
poemas seja primeiramente a expressão de sentimento pessoal, eles contêm
alguma descrição incidental do modo de vida dos Anglo-Saxões.
Quanto à religiosidade, julgamos oportuno lembrar que a literatura
da época fala da luta das pessoas para compreender qual a fé seria válida, de-
pois de descobrirem que os valores cristãos incluíam, dentre outros dogmas,
a crença numa vida após a morte no Céu94 ou no Inferno95, dependendo do
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A religiosidade dos celtas e germanos
pecado cometido durante a vida terrena. Riqueza, glória e fama na terra, por
exemplo, de nada valem no Céu. Aceitar o Cristianismo significava que seus
heróis na literatura não mais poderiam seguir a tradição rechaçando o destino
para ganhar a fama. Os Anglo-Saxões ficaram, pois, divididos entre os valo-
res religiosos que uma vez conheceram e as perspectivas potencialmente mais
esperançosas trazidas pelo Cristianismo. Por causa do tom marcadamente ele-
gíaco desses poemas, os estudiosos usualmente admitem que a melancolia era
um traço nato dos Anglo-Saxões; porém, quando considerando a nova religião
à qual eles logo se esforçaram por adaptar, os mesmos estudiosos então perce-
beram que a transição do pensamento anglo-saxônico do desafio pagão para
a resignação cristã, da glória da fama imperecível para o nada desse mundo,
possivelmente poderia causar a melancolia na poesia anglo-saxônica, que in-
funde tal caráter alienígena no coro da canção heróica (PHILLPOTTS, 1991:
11-13).
O tom de cada poema inicia com elementos pagãos e termina por
interpolações de elementos do Cristianismo. Em “The Seafarer”, percebemos
a predominância de elementos pagãos, como por exemplo o ato de “cremação
na pira funerária” (oþþe on bæle forbærnedne, v. 114), e a exaltação e glorifi-
cação dos valores pagãos após a morte, no início do poema. Diversos elemen-
tos cristãos, entretanto, contrabalançam esse tom predominantemente pagão.
Uma interpelação cristã evidente ocorre quando o poeta diz: Stieran mon sceal
strongum mode, ond þæt on staþelum healdan [“O homem deve controlar suas
paixões, e manter todas as coisas em equilíbrio”, v. 109], declaração que con-
trasta frontalmente com os preceitos e crenças anglo-saxônicas. Além disso, os
versos
his geworhtne wine. Wyrd biþ swiþre,
meotud meahtigra þonne ænges monnes gehygd. (vv. 115-116)
[A fé é mais forte e Deus mais poderoso do que o pensamento
de qualquer homem.]e
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A religiosidade dos celtas e germanos
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