A Religiosidade Dos Celtas e Germanos

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 208

A Religiosidade dos

Celtas e Germanos
IV Simpósio Nacional e III Internacional de Estudos Celtas e
Germânicos. UFMA, 5 a 8 de outubro de 2010.
Realização
Grupo Brathair de Estudos Celtas e Germânicos
NEVE: Núcleo de Estudos Vikings e Escandinavos

Coordenação
Prof. Dr. Johnni Langer (UFMA)
Profa. Ms. Luciana de Campos (UFMA)

Comissão Organizadora
Profa. Dra. Adriana Zierer (UEMA)
Fernanda Rosete da Silva (UFMA)
Gracielly Ferreira Nogueira (UFMA)
Kellyenne Silveira Souza (UFMA)
Danillo Sergio da Trindade Soleiro (UFMA)
Zuleide Texeira (UFMA)
Denise Reis Mendes (UFMA)
Priscila Corrêa (UFMA)
Jairo Muniz (UFMA)

Comissão científica
Profa. Dra. Adriana Zierer (UEMA)
Prof. Dr. Álvaro Bragança Júnior (UFRJ)
Prof. Dr. João Lupi (UFSC)
Profa. Dra. Adriene Baron Tacla (UFF)
Profa. Dra. Arlete Mota (UFRJ)
Prof. Dr. Moizés Romanazi Torres (UFSJ)
Prof. Dr. Johnni Langer (UFMA)
Profa. Ms. Luciana de Campos (UFMA)

Apoio
Departamento de História – UFMA
Departamento de História – UEMA
FAPEMA
Johnni Langer
Luciana de Campos (orgs.)

A Religiosidade dos
Celtas e Germanos

São Luís

2009
A religiosidade dos celtas e germanos: anais do IV Simpósio
Nacional e III Internacional de Estudos Celtas e
Germânicos/Johnni Langer; Luciana de Campos (orgs.).
São Luís: UFMA/Gráfica Santa Clara, 2010.
ISSN: 217589480X
1. História antiga. 2. História medieval. I. Langer, Johnni.
II. Campos, Luciana de. III. Grupo Brathair de Estudos
Celtas e Germânicos. IV. Universidade Federal do
Maranhão. V. Título.
CDU: 931
CDD: 930

Índices para catálogo sistemático:


1. Idade Média: História: 940.1
2. Antiguidade: História: 940.0
3. Civilizações antigas: Cultura: 390.0938
4. Civilizações medievais: Cultura: 292.0902
A religiosidade dos celtas e germanos

APRESENTAÇÃO

O estudo da religiosidade antiga e medieval vem se destacando


na produção acadêmica nas últimas décadas, intensificada pelas
perspectivas que concebem sua utilização para entendermos com mais
profundidade as interações sociais e a relação entre as mais diversas
esferas, sejam políticas, institucionais, econômicas e culturais. Aliás,
a própria definição de cultura vem sendo atrelada a um referencial
eminentemente religioso: “Junto a capacidade de produzir e transmitir
cultura, a experiência religiosa é a marca mais distintiva da humanidade”
(Pedro Funari, As religiões que o mundo esqueceu, 2009).
Os estudos envolvendo mitologia e religiosidade constituem
alguns dos principais eixos investigativos sobre os povos celtas e
germânicos. As reflexões sobre teoria do mito, presentes de maneira
muito contundente na academia ocidental desde o Oitocentos, sempre
privilegiou o material advindo dos povos europeus pré-cristãos, seja
com os pioneiros da Psicologia, Antropologia e da História. Mais
recentemente, as investigações da cultura material, da lingüística, da
literatura e da antropologia cultural alargaram os horizontes temáticos
e as problematizações deste tema, confluindo para o campo da história
das religiosidades, denotando enfim, uma nova maneira de perceber
os significados sócio-culturais das formas de crenças dos celtas e
germanos, da Antiguidade ao fim do medievo.
Os artigos reunidos nesta coletânea correspondem a alguns
dos trabalhos apresentados durante o IV Simpósio Nacional e III
Internacional de Estudos Celtas e Germânicos, realizado na UFMA de
5 a 8 de outubro de 2010. Envolvendo desde a perspectiva da cultura
material e da Arqueologia até aos estudos de literatura e mitologia
medieval, os artigos demonstram um amplo espectro de possibilidades
para as investigações da religiosidade dos celtas e germanos. Passando
por fontes literárias, epigráficas, documentos políticos, filolosóficos
e iconográficos, a presente obra permite ao leitor um contato com as
mais amplas perspectivas de investigações a respeito de alguns dos
povos mais importantes para a formação da Europa Ocidental.
Johnni Langer e Luciana de Campos (UFMA)

–5–
A religiosidade dos celtas e germanos

–6–
A religiosidade dos celtas e germanos

SUMÁRIO:
Prefácio
Estudos Celtas:
- Os Gálatas de São Paulo eram celtas?
João Lupi..................................................................................................9
- O ritual sacrificial de humanos e de animais entre os Celtas
Silvana Trombetta.................................................................................24
- Oppida celtibéricos: algumas considerações sobre os assentamen-
tos pré-romanos na Península Ibérica.
Irmina Doneux Santos.........................................................................42
- Mitologia e Religiosidade celta: proposta de interpretação a partir
do pensamento de Carl Gustav Jung.
Fátima Lobo..........................................................................................58
- A visão do diabo n´A demanda do santo Graal
Adriana Zierer..................................................................................... 88

Estudos germânicos:
- Saberes romanos: a religiosidade germânica em César e Tácito
Arlete José Mota................................................................................ 101
- O Conceito de Universal em John Duns Scot
Moisés Romanazzi Torres................................................................. 111
- De Imperador dos Últimos Dias a Anticristo – O papel escatoló-
gico e a demonização política dos imperadores germânicos (1152-
1250).
Vinicius Cesar Dreger de Araujo..................................................... 122
- A cristianização da Escandinávia nas sagas islandesas
Johnni Langer..................................................................................... 143
- Discussões etimológicas e religiosas sobre os berserkir e os ulfheðnar
Pablo Gomes de Miranda.......................................................................
.............................................................................................................165
- Breve análise de dois poemas líricos anglo-saxônicos sob a perspec-
tiva da tradição oral pré-cristã
João Bittencourt de Oliveira............................................................. 176

–7–
A religiosidade dos celtas e germanos

–8–
A religiosidade dos celtas e germanos

OS GÁLATAS DE SÃO PAULO ERAM CELTAS?


Prof. Dr. João Lupi (UFSC/Brathair)

1. A questão que despertou nosso interesse pela resposta à pergunta:


“se os gálatas a quem se dirigia São Paulo eram celtas?” é a seguinte: supondo
que a Epístola se destina aos cristãos celtas que o apóstolo conhecia será que
ela nos ensina algo a respeito desses mesmos celtas? Contra esta hipótese, a
primeira resposta foi negativa: estes gálatas da Epístola não eram celtas. Porém
a investigação valeria a pena porque ela nos instigou a procurar saber algo mais
sobre os gálatas da Ásia, e deste modo colocar mais uma pedra, importante, no
mosaico de povos celtas que tem sido construído pela revista Brathair, e nos
simpósios e colóquios do grupo. Não temos ainda um panorama completo dos
povos celtas, mas uma boa parte dos vestígios dos portadores da cultura celta já
foram abrangidos e reportados por nós, desde os primórdios da Idade do Ferro:
helvécios, lusitanos, belgas, galegos, escotos, bretões, galeses e outros. O que
conhecermos dos gálatas da Ásia pode ajudar a entender o que sabemos dos
celtas ocidentais: preencher lacunas, confirmar dados duvidosos. Por exemplo:
qual a origem dos druidas, e se todos os celtas tinham druidas – Estrabão diz
que sim, porém isso não foi confirmado. Mas há indícios consistentes, e muitos
comentaristas os vêem como positivos, de que entre os gálatas aos quais se di-
rigia o Apóstolo havia celtas, e portanto precisamos conhecer melhor não só a
história e cultura desse povo, que uniu a Europa à Ásia Menor, mas também a
própria Epístola e seus comentadores.
2. Num certo dia do ano 335 a.C. Alexandre chefiava um exército de
soldados macedônios nas montanhas dos Balcãs. Os celtas que habitavam essa
região no alto Danúbio, estavam admirados com a ousadia do jovem mace-
dônio de vinte e um anos que entrara em suas terras, e alguns chefes foram
visitá-lo. Na conversa de um deles com Alexandre estava presente o amigo
Ptolomeu, o que depois foi faraó; trinta anos mais tarde, quando redigiu, ou
ditou, em Alexandria a biografia do seu amigo, Ptolomeu ainda se recordava
da frase que o celta proferiu: “não temos medo de nada a não ser que o céu caia
sobre as nossas cabeças” (Herm 35). Porém Alexandre, deixando os celtas e os
Balcãs, dirigiu-se para Oriente. Quando finalmente o seu império, dividido e
enfraquecido, já não oferecia resistência, os celtas invadiram a Macedônia e
a Grécia, atacaram o Santuário de Delfos, recuaram, e depois dirigiram-se à
Trácia, onde acamparam sob as muralhas da rica cidade de Bizâncio (279). Para
não ser perturbada pelos seus ataques a cidade ofereceu-lhes um bom tributo e

–9–
A religiosidade dos celtas e germanos

consentiu que os celtas se instalassem do outro lado do braço de mar que, pelas
riquezas nele desembarcadas, ficou conhecido como o Saco ou Corno de Ouro
(Xrisokeras). Convidados pelo rei da Bitínia, Nicomedes, envolvido em guerra
civil, os celtas atravessaram o Bósforo e logo começaram sua obra guerreira;
porém alguns preferiram ficar no Corno de Ouro e usufruir das riquezas de
Bizâncio; até hoje esse lugar é conhecido como o bairro de Gálata, onde os
turistas iam visitar a ponte Gálata (que unia o centro da cidade ao bairro, e que
foi destruída por um incêndio), e onde a Torre Gálata foi reconstruída várias
vezes. Aí existiu um palácio, ou Saray, no cruzamento de avenidas em frente ao
atual Consulado da Grã-Bretanha, e nesse lugar nasceu o clube de futebol Ga-
latasaray. Na sua migração para oriente esse bairro foi o último remanescente
pacífico da passagem dos gálatas.
3. “Depois de saquearem a Macedônia e a Trácia passaram à Ásia e todos
os reinos ficavam ansiosos para que eles passassem para outros vizinhos; e eles
estavam tão prontos a servir como mercenários que nenhum exército naqueles
dias parecia prescindir de um contingente de tropas celtas” (Mahaffy 76 – 84).
Eram vistos como invencíveis, mas como estavam prontos para combater em
todos os lados muitas vezes se neutralizavam uns aos outros. E assim, depois
que Nicomedes da Bitínia os contratou, as razias em pouco tempo fizeram dos
celtas o terror da Ásia Menor. Sua violência era uma ameaça para a civilização
helenística. Nas suas incursões os celtas “encheram os corações com uma nova
espécie de terror” ao ponto de inspirar em Pérgamo um novo estilo de escultura
dramática. “As narrativas acerca da crueldade selvagem dos gálatas são assus-
tadoras, pois desrespeitavam todas as normas da guerra civilizada: deixavam
os mortos insepultos, roubavam todos os túmulos antigos, chacinavam e rap-
tavam, e até comiam os filhos dos gregos” (Mahaffy ib); nenhum personagem
das lendas homéricas era tão terrível. “Os gálatas podiam dominar nas batalhas,
mas não conheciam outro uso da vitória que não fosse a pilhagem e a rapina
sem propósito.” Estes “bárbaros do norte não tinham respeito por homens nem
por deuses, pela idade nem pelo sexo, por juramentos nem promessas, nem
tinham sentido de honra ou de misericórdia”(Mahaffy ib).
“Para os povos da Ásia Menor eles deviam parecer um flagelo divino,
um espinho na carne que infligia uma dor insuportável. Sua presença provoca-
va não só ódio e medo mas também o anseio pela chegada de algum salvador
que pudesse livrar o mundo civilizado dessa maldição” (Herm 45). Por isso
Antíoco III foi cognominado Soter, o Salvador, por tê-los derrotado (em 227
a.C).

– 10 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Mas os romanos que os submeteram logo dominaram toda a Anatólia


e rapidamente se tornaram saqueadores, que em menos de uma geração fica-
ram brutais; foram os romanos que dois séculos antes na Península Ibérica não
respeitaram palavra, nem honra, nem deuses e dominaram e massacraram os
lusitanos duas vezes, valendo-se da traição. Portanto há que considerar estas
descrições da brutalidade celta/gálata como obedecendo a um estilo literá-
rio que sempre representa os invasores como bárbaros violentos, que comem
criancinhas; e como os relatos das batalhas são feitos pelos generais ou seus
assessores quanto mais se representar os adversários como terríveis maior será
o mérito de quem os defrontou, quer tenha perdido quer tenha ganhado a bata-
lha: se ganhou, a vitória é grande, se perdeu, a derrota é mínima. Além disso as
próprias esculturas de Pérgamo, especialmente a do “gaulês moribundo” (que
é um gálata) e a do suicídio do gálata, mostram a tragédia do vencido e o alí-
vio do vencedor; as esculturas exprimem, de forma pungente, o sofrimento e a
grandeza desse povo, que os asiáticos temiam e admiravam (Herm 45).
Sobre o modo de vida dos celtas da Anatólia temos poucas informações,
a maior parte provenientes de Estrabão e Plínio: havia um governo colegiado,
composto por um conselho de representantes de cada reino ou região (4 por
região, mais tarde só um); acima deste conselho havia uma assembléia de 300
membros que se reunia anualmente no bosque sagrado, o nemeton ou drune-
meton. E pouco mais os autores antigos nos contam. Porém, desde a década de
1950 uma equipe de arqueólogos do Museu da Pennsylvania, liderada inicial-
mente por Rodney S. Young realizou excavações em Gordion, que pertencia
à área gálata, e encontrou túmulos, e evidências de sacrifícios do tipo celta,
inclusive com vítimas humanas. Contudo uma descrição geral da cultura celta
da Anatólia antes de sua incorporação ao Império Romano ainda está por fazer;
e a provável influência celta na cultura popular da Anatólia central é pouco
conhecida.
4. Vem agora a nossa primeira pergunta: a Epístola de São Paulo aos
Gálatas dirigia-se a esses celtas? Comecemos pelo estudo do texto, e para co-
nhecer o seu conteúdo vamos fazer dela um breve sumário, destacando alguns
pontos que nos parecem de maior interesse para o nosso objetivo.
- capítulo 1: “Paulo apóstolo (enviado) não pelos homens, nem através
dos homens, mas por meio de (dià) Jesus Cristo e por Deus Pai que o ressusci-
tou de entre os mortos, com todos os irmãos que estão comigo, às comunidades
da Galácia: que a graça esteja convosco e a paz que vem de Deus nosso Pai e do
Senhor Jesus Cristo, que se entregou pelos nossos pecados a fim de nos arran-

– 11 –
A religiosidade dos celtas e germanos

car deste mundo de maldade, segundo a vontade de Deus nosso Pai, a quem a
glória pelos séculos, assim seja. Me admiro de que tão depressa abandonastes
aquele que vos chamou pela graça (de Cristo), e que (o trocastes) por outro
Evangelho” (Gl 1, 1-6). Paulo diz e repete: há só um Evangelho de Jesus Cristo,
que ele revelou e que não vem dos homens. Paulo, que foi judeu e perseguiu os
cristãos não tem mais nada a ver com o judaísmo, pois recebeu uma revelação
divina, que lhe chegou diretamente; permaneceu apenas duas semanas junto de
Pedro, confirmando o que tinha recebido, nem conheceu então as comunida-
des cristãs da Judéia (Gl 1, 7-24) portanto não foi com eles que aprendeu o que
pregava de Cristo, mas o recebeu do próprio Cristo.
- capítulo 2: em diversas ocasiões Paulo rejeitou a submissão às práticas
judaicas, pois no seu entender a salvação está apenas na fé em Jesus Cristo, e
nisso ele fora aprovado pelos apóstolos; mas tendo visto as hesitações de Pedro
e de Tiago chamou a atenção deles, insistindo em que os cristãos vindos do
paganismo não deviam ser obrigados a cumprir as normas da Lei dos judeus.
Deixei a Lei dos judeus, diz ele, para viver para Deus: “vivo, mas não sou mais
eu, Cristo vive em mim (...) se a justiça se obtivesse pela Lei Cristo teria morri-
do em vão” (2, 1-21) .
- capítulo 3. “Ó gálatas sem juízo, quem é que vos enfeitiçou?” (3,1)
Começaram tão bem as vossas comunidades segundo o Espírito, diz ele, porque
agora perder o juízo e tornar a viver segundo a carne? Deus fez a promessa a
Abraão, que estendeu a toda a sua descendência, que somos nós. Se durante
algum tempo a promessa ficou sob o domínio da Lei de Moisés foi depois su-
perada por Cristo: nele todos são a herança de Abraão, e já não há judeus nem
pagãos, nem escravo nem livre, pois todos são um só (3, 1-29).
- capítulo 4: aqueles que crêem em Cristo não são mais escravos de obri-
gações, mas são livres na fé. Quem não conhece o verdadeiro Deus é escravo
de deuses que não existem; mas depois que o conhecestes, diz ele, como podeis
voltar atrás e ser escravos de coisas inconsistentes e sem poder? Não deveis
vos submeter às normas que são regidas pelos dias, meses, estações e anos, e
desabafa: “Perdi tempo convosco”. A primeira vez que Paulo lhes anunciou o
Evangelho estava doente, mas foi recebido com alegria e dedicação. Paulo se
queixa amargamente do erro dos gálatas e diz que, como não pode ir vê-los não
sabe o que fazer. E compara a herança de Abraão com os seus filhos, um que
nasceu da escrava Agar, e esse é submetido à Lei, e outro que nasceu da esposa
Sara, e esse é livre (4, 1-31).
- capítulo 5: Quem foi libertado por Cristo não deve voltar ao jugo an-

– 12 –
A religiosidade dos celtas e germanos

terior. Quem acha que será justo ou salvo por ser circuncidado e por praticar
a Lei cai em desgraça, pois é só o Espírito que liberta na fé a na caridade. Os
frutos do Espírito Santo e da caridade são: a ajuda mútua, a alegria, a paz, a
paciência, mas os que vivem segundo a carne porque se desviaram da verdade
vivem na desordem, se mordem e devoram uns aos outros, e se destroem; os
frutos dessa vida são: fornicação, impureza, obscenidades, idolatria, feitiçaria,
inimizades, ódios, disputas, invejas, cólera, ciúme, divisões, rivalidades, bebe-
deiras, comilanças e coisas semelhantes (5, 1-26).
- capítulo 6: Termina com uma longa exortação, cujo tema único é: os
irmãos devem ajudar-se mutuamente, sem se cansar de fazer o bem, e para isso
não é preciso ser circuncidado.
O tema da Epístola é claro: quem tem fé em Cristo está livre das obri-
gações do judaísmo, não precisa delas para ser salvo. Por seu lado a situação
dos cristãos gálatas é bem definida: foram evangelizados por Paulo, aceitaram
a fé em Cristo, mas, logo depois (“tão depressa abandonastes”), enganados por
pregadores judaizantes, começaram a adotar a circuncisão e outras obrigações
dos judeus. A nossa questão é: os gálatas a quem Paulo pregou eram judeus que
retornaram às práticas da Lei, ou eram pagãos que, depois de serem cristãos,
adotaram idéias judaizantes? No primeiro caso, se eram judeus não podiam ser
gálatas celtas; mas se eram pagãos podia ser que fossem celtas.
Ora Paulo dá a entender que o uso de rituais judaicos é um retorno,
uma volta atrás, e várias vezes diz explicitamente “voltar atrás” (palin), parecen-
do, pois, dirigir-se a judeus, e não a pagãos. Mas num contexto doutrinário, e
não literal, não é esse o entendimento das frases, pois tanto os pagãos como os
judeus são escravos e vivem fora da verdade; só os cristãos são livres e vivem
de verdade, porque vivem em Cristo. Portanto “voltar atrás” não quer dizer um
retorno de judeus ao judaísmo, mas o abandono da liberdade da fé verdadeira.
Mais ainda, há outras alusões e frases que só podem ser bem entendidas se
se referirem aos gálatas étnicos: refere-se aos pagãos convertidos, ou cristãos
vindos do paganismo, que não devem ser obrigados à Lei dos judeus (2,14); diz
que antes eles foram pagãos e eram escravos de falsos deuses (4,8); as festas e
celebrações segundo os dias, meses, estações e anos (4,10) seriam mais próprias
de pagãos vivendo ritos agrários do que de judeus da diáspora desenraizados
da terra; refere-se à circuncisão como uma prática que fora introduzida entre os
gálatas recentemente (5,2) e não como um costume que os judeus observavam
sempre.
Portanto os gálatas era gentios, isto é, não judeus, mas será que eram

– 13 –
A religiosidade dos celtas e germanos

celtas? Em alguns trechos da Epístola parece que estamos a ver os celtas que
conhecemos de outras descrições: ó gálatas sem juízo, não se mordam uns aos
outros, parem de lutar uns contra os outros, não se destruam entre irmãos,
deixem-se de bebedeiras e comezainas, larguem a feitiçaria e a idolatria (Herm,
43 é desta opinião).
5. Temos ainda, porém, o problema crucial: será que São Paulo este-
ve nas terras dos gálatas celtas, no centro da Anatólia? Não é fácil decidir: os
biógrafos de São Paulo, e os comentários ao livro dos Atos dos Apóstolos e da
Epístola aos Gálatas desenham os itinerários do apóstolo com relativa unani-
midade, mas encontram muitas dificuldades para definir alguns detalhes; e há
lacunas nas informações acerca de comunidades que ele fundou. Os indícios
que podiam decifrar os itinerários nem sempre são claros, como a passagem
nos Atos dos Apóstolos (18,23) que diz que, para confirmar os discípulos, Paulo
percorreu, na terceira missão, o território gálata e a Frigia; o próprio Paulo, na
Epístola aos Coríntios (1 Cor 16, 3), escrita depois da dos Gálatas, menciona as
igrejas do sul da Galácia, mas não as do norte,
Outro testemunho vem do apóstolo Pedro, que na sua primeira Epístola
se dirige aos cristãos “do Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitína” (1 Pe 1,1)
isto é, às regiões do norte da Anatólia; se a Galácia é citada por Pedro neste
contexto geográfico ele não está falando da Província Romana do sul, mas da
sua parte norte, a Galácia celta, onde haveria cristãos - evangelizados por Paulo.
Estes textos nos deixam com a probabilidade de os gálatas da Epístola serem
celtas, mas não com a certeza. Antes de voltar aos textos do Novo Testamento
vejamos os argumentos vindos do mundo civil a respeito das designações ge-
ográficas.
Nas inscrições helenísticas e romanas distingue-se a Galácia da Pisídia
e da Licaonia, ou da Isáuria, portanto quando se nomeia a Galácia seria pro-
priamente dita a terra originária dos celtas. E, posteriormente, os deocumentos
quando se referem à Galácia como Província romana dizem expressamente: “a
província Galática” (Viard, 10), ou “a Galácia e regiões vizinhas”, ou ainda des-
crevem cada uma dessas áreas incluídas na Província. Há apenas um texto de
Tácito que atribui a esse termo gálatas o sentido amplo (observação de Viard,
que se encontra confirmada por Schlier, p.13). Também as assembléias pro-
vinciais se mantiveram separadas e a assembléia da Licaonia ou do Ponto não
faziam parte da Galácia. Para o povo da região central os romanos mantinham
o nome de galo-gregos.
Portanto o testemunho dos textos civis da época de Paulo parece incli-

– 14 –
A religiosidade dos celtas e germanos

nar-se a favor da denominação da Galácia como referindo-se à região celta, mas


não é um testemunho definitivo.
À luz destas indicações analisemos os itinerários constantes dos Atos
dos Apóstolos. Na segunda viagem diz-se que ele foi à Frígia e à Mísia, e pensou
em ir à Bitínia: nesse caso ele passou pela Galácia dos tolistobages. Se entre a
Frigia e a Mísia tivessem ido à Galácia do Sul o texto o teria dito, pois era o
território mais conhecido; a Galácia a que se refere a narrativa é portanto a
céltica ocidental. Na terceira viagem diz que foi às regiões superiores: anoo-
terikà méree; meros é parte, vez, mas no plural é região; anooteriká é superior,
ou elevado, ou região do interior, ora a região montanhosa da Frígia fica nas
terras dos tolistobages. Kinder e Hilgemann (1964 vol.1, p.106) vão mais longe
e desenham o itinerário por terras de Ancira (terra dos tectosages) e da Capa-
dócia, percorrendo portanto quase toda a Galácia celta; Drane (p.32) também
desenha o itinerário de Antioquia a Éfeso pelo norte.
Passemos aos comentaristas da Epístola. A carta (epístola) foi escrita
entre 52 e 56, e boa parte dos comentadores da Epístola (como Bligh e Allan)
acha pouco provável que houvesse comunidades cristãs entre os celtas da Ana-
tólia quando Paulo a escreveu; esta é a opinião de muitos estudiosos da Epístola
e da vida de São Paulo. Examinemos, porém, a questão mais em detalhe.
Desde o início do cristianismo inúmeros teólogos comentaram a Epís-
tola aos Gálatas; entre os comentaristas mais conhecidos estão: Agostinho, Pe-
lágio, Jerônimo, Teodoro de Mopsuesta, João Crisóstomo, Teodoreto... e mais
tarde Tomás de Aquino, Lutero, Calvino, etc. Entre os nossos contemporâneos,
que também se contam em muitas dezenas, talvez centenas, são raros os que
dedicam, em suas respectivas introduções, mais de duas páginas a tentar escla-
recer quem seriam os prováveis destinatários da carta, se os gálatas celtas do
norte, se os gálatas provinciais do sul.
Entre alguns dos mais antigos comentários à Epístola aos Gálatas está
o de João Crisóstomo, que foi Patriarca de Constantinopla; quando ainda era
jovem e residia em Antioquia, redigiu, por volta de 395, uma homilia sobre a
Epístola, mas nela não há nenhuma referência que nos permita identificar os
seus vizinhos gálatas. Jerônimo também redigiu um comentário, sobre o qual
falaremos mais adiante.
O testemunho mais explícito vem-nos do principal exegeta da Reforma
protestante, João Calvino, que no início do seu comentário à Epístola diz (se-
guimos a ortografia constante na tradução):

– 15 –
A religiosidade dos celtas e germanos

“É bem notório em que partes da Ásia viviam os gálatas e quais eram as


fronteiras do seu país. Historiadores, porém, não concordam quanto ao lugar
de sua origem. É geralmente concordante que eram galli (guerreiros), de onde
veio seu nome gallos-gregos; mas de que parte da Gália vieram é ainda menos
claro. Estrabo pensava que os tectosages tinham vindo da Gallia Narbonenses,
e que os demais eram celtas; e quase todos seguiram essa direção. Mas, como
Plínio coloca os ambianii entre os tectosages, e concorda-se que eram aliados
aos tolistobogii, que viviam nas proximidades do Reno, penso ser mais provável
serem eles os belgas da parte superior do Reno para quem olha para o Canal
Inglês. Os tolistobogii habitavam a parte que agora se chama Cleves e Brabant.
Acredito que o equívoco originou-se do seguinte: um grupo de tectosages que
empreendera uma invasão na Gallia Narbonenses conservou seu próprio nome
e o imprimiu ao país que ocuparam. Isso é sugerido por Ausonius, que diz:
“Ainda para os teutosages, cujo nome original era belgas”. Pois ele os chama
belgas e diz que foram primeiramente chamados teutosages e mais tarde tecto-
sages. Quando César coloca os tectosages na Floresta Hercyniana, considero tal
fato como um resultado de sua migração, e isso, de fato, transparece do contex-
to” (Calvino, 1998, 13) e Calvino prossegue comentando as opiniões de Plínio
e a submissão dos gálatas ao poder romano. E passa à evangelização desses
gálatas: “Nos dias de Paulo, os gálatas encontravam-se sob o domínio romano.
Ele os instruíra fielmente no genuíno evangelho (...)” (ib. 14). Portanto Calvino
duvida sobre a interpretação dos textos romanos que localizam os tectosages e
seus aliados na Gália, mas não duvida de que esses gauleses, ou, mais provavel-
mente, belgas, agora na Ásia, eram os discípulos de São Paulo.
Passando aos comentaristas mais recentes: Schlier (13-14) considerando
estas e outras circunstâncias escreveu: “A designação de Os Gálatas era eviden-
temente costumeira apenas em referência aos habitantes da região da Galácia
e não se estendia aos da Licaonia, da Pisídia, da Isáuria etc.”. Portanto quando
Paulo diz (Gal 3,1) “os gálatas” refere-se àqueles que levam esse nome, e não
aos habitantes do Sul da província Romana, pois teria dito “os licaônios” ou “os
da Pisídia”. Viard (ib p.10) analisando os paralelismos com Epístolas anteriores
(Coríntios) e posteriores (Romanos) conclui: “Tudo concorre, pois, para manter
a opinião tradicional segundo a qual os destinatários da Epístola aos Gálatas
são os gálatas propriamente ditos e só eles”. Em referência mais recente Lühr-
mann afirma: “A antiga tese, de que as comunidades em questão são as do sul
não mais se sustenta”. Além disso parece que Paulo não seria o único missio-
nário cristão na Ásia, e que outros, talvez gnósticos, ou judeus, teriam pregado
na Galácia. Enfim, se alguns comentaristas são de parecer que os destinatários

– 16 –
A religiosidade dos celtas e germanos

da Epístola não eram os gálatas celtas, mas, como vimos, há argumentos con-
trários, há também, como Dunn (p.7) quem afirme que não há argumentos
decisivos a favor de nenhuma opinião. Para nosso desconforto ficamos sem
saber se nestas investigações houve algum tipo de progresso, pois Viard (1964)
diz que a opinião tradicional é a de que os destinatários da carta eram os celtas,
e Lührmann (2001) diz que a tese contrária é que é a antiga.
Outros comentaristas contemporâneos da Epístola são de parecer favo-
rável à tese celta dos gálatas de São Paulo: a Bíblia do Instituto Pontifício (1967,
p.1457) adverte que, apesar de que não se diz explicitamente nos Atos dos
Apóstolos que Paulo tenha fundado congregações cristãs na Galácia celta, “ a
maioria dos intérpretes modernos pensa que os gálatas da presente epístola se-
jam os setentrionais da Galácia estritamente dita. Menos numerosos, mas não
de menor autoridade, são os que se decidem pela parte meridional da Galácia
romana”. E Mateos (1978, p.533) igualmente cauteloso, afirma: “a carta parece
ser dirigida aos gálatas propriamente ditos, isto é, às diversas comunidades não
especificadas da Galácia do norte”.
6. Se entre os destinatários da Epístola havia gálatas celtas então os gála-
tas teriam sido os primeiros celtas a se organizarem em comunidades cristãs,
muito antes dos gauleses e quatro séculos antes dos irlandeses. Porém a conti-
nuidade do cristianismo entre os gálatas não é muito bem conhecida, e apenas
podemos por agora indicar alguns personagens e testemunhos que iniciem ou
orientem uma pesquisa mais completa. Em 366 o jovem dálmata Jerônimo, en-
tão com 17 anos, passeou pela Gália e ficou algum tempo em casa de seu amigo
Bonósio na cidade de Treveris (residência imperial de Valentiniano I); as des-
crições que mais tarde ele fará (Contra Joviniano II, 7 em Fremantle 394) acerca
dos povos e costumes que conheceu é fantasiosa, e horripilante. Por isso há que
ter cuidado com o que ele diz dos gálatas no prefácio ao seu comentário à Epis-
tola de São Paulo (Fremantle 496b-498a), onde ele recorda essa viagem. Diz
Jerônimo que os gálatas são uma tribo de gauleses, curta de inteligência, mas
forte na fé, e “em lugar nenhum o Amen ressoa tão poderoso, como um trovão
espiritual, como quando eles fazem tremer os templos dos ídolos”. E afirma que
naqueles tempo (387) “Todos sabem, tão bem como eu, quantos cismas rasga-
ram e despedaçaram Ancira, capital da Galácia, e quantas diferentes doutrinas
falsas a destroem. Não vou, explicar os catafrígios, os ofitas, os bordoritas, e
os maniqueus, porque estes são nomes conhecidos e desgraçados. Mas quem
ouviu falar, seja em que parte for do Império Romano, dos passalorrincitas, dos
ascodrobes, dos artotiritas e outras esquisitices de que mal sei dizer os nomes?
E os vestígios dessas loucuras antigas duram até hoje. Falta dizer uma coisa,

– 17 –
A religiosidade dos celtas e germanos

para completar o que anunciei ao princípio. Os gálatas, tal como todo Orien-
te, falam grego, mas a língua deles é quase igual à dos Treveros, em que pese
algumas alterações introduzidas pelo contato com a língua grega”. Jerônimo
não conheceu a Galácia ( a não ser talvez de passagem) mas conheceu a Gália
e Treveris, e o que diz a esse respeito pode ser tido como válido, o que nos leva
a supor que sua afirmação sobre o tumulto das heresias na Galácia era verda-
deiro. Passado apenas um século da missão de Paulo à Galácia a cristandade foi
ali palco de agitações montanistas, pois entre 156 e 172 difundiu-se pela Ásia
Menor a doutrina de Montano: originário de Frigia, ele apresentava-se como
profeta carismático que dizia ter recebido visões e revelações e anunciava uma
Nova Era do Espírito Santo. Atribuía às mulheres papel especial na Igreja, e
tinha Maximila e Priscila como suas profetizas; o montanismo atingiu rapi-
damente a Galácia, onde, segundo o relato de Eusébio na História da Igreja (5,
16,4) um bispo foi lá em missão para reduzir a heresia. Disse esse bispo: ”Há
pouco tempo visitei Ancira na Galácia e encontrei a Igreja local ensurdecida
com o barulho desta nova loucura, que não é profecia, como eles dizem, mas
falsa profecia (...). Tanto quanto fui capaz, e com a ajuda do Senhor, falei muitos
dias na igreja acerca destas coisas e respondi a todos os argumentos que eles
apresentavam. A assembleia ficou muito contente e confirmada na verdade”.
Mais tarde os personagens que nos são conhecidos, seus escritos e as tra-
mas em concílios deram a razão a Jerônimo: mais do que outras regiões do cris-
tianismo a Galácia era terreno fértil para todo tipo de fantasias religiosas, ou
com pouco fundamento teológico, e seus líderes enrolavam-se em armadilhas
intelectuais quando tentavam descobrir soluções novas. Assim foi com vários
dos bispos de Ancira durante as disputas sobre a divindade de Cristo contra os
arianos, como foi mais tarde na questão iconoclasta: diversos bispos de Ancira
– Marcelo, Basílio o antigo e Basílio o novo, acabaram depostos e desterrados
pelos concílios porque queriam salvar a fé mas não entendiam a ortodoxia e
emitiam opiniões que os demais bispos não aceitavam.
Em muitos aspectos pontuais o cristianismo da Galácia lembra as ou-
tras faces do cristianismo que conhecemos melhor: o irlandês e o gaulês, mas é
preciso cautela e maior estudo para afirmar que o cristianismo dos gálatas era
tipicamente celta, pois podem ser meras coincidências, e em muitos casos são
questões gerais, comuns a todo o mundo cristão em transição do paganismo
para a nova fé. Mas, sendo interessante lançar hipóteses e sugestões que orien-
tem novas pesquisas, podemos reparar: na atração, por vezes ousada e fantasio-
sa, por doutrinas estranhas e exóticas; na dificuldade com questões doutrinais,
facilmente se enredando no emaranhado de idéias; no caráter impulsivo das

– 18 –
A religiosidade dos celtas e germanos

manifestações e decisões; na liberdade sexual ( o concílio de Ancira de 314


teve que chamar a atenção para o adultério com a cunhada); na consagração de
bispos por apenas dois bispos; na existência de penitenciais. Neste aspecto vale
a pena deter-nos um pouco numa peculiaridade, por ser muito característica
e de certo modo atrevida, que se encontra entre os monges irlandeses, e causa
admiração que já existisse na Galácia. Os monges celtas irlandeses tinham por
costume convidar virgens para dormir debaixo do seu teto, a fim de provar e
mostrar sua capacidade de resistir às tentações da carne; evidentemente Roma
proibiu essa prática. Mas o Cânone 19 do concílio de 314 de Ancira diz textu-
almente: “Se alguma pessoa que consagrou a sua virgindade não cumprir seus
votos seja considerada dígama (bígama sucessiva). Além disso proibimos as
mulheres que vivem como virgens de co-habitar com homens como irmãos”.
Ora essa prática não parece que fosse rara, porque João Crisóstomo, quan-
do já era Patriarca de Constantinopla (397), e portanto com jurisdição sobre a
Galácia, escreveu duas cartas sobre o problema das virgens subintroductae, ou
syneisaktoi, que viviam com os monges debaixo do mesmo teto *. Este tema, e
muitos outros, merecem uma atenção mais cuidadosa.
A permanência da cultura celta muito para além da helenização e da
romanização não nos deve admirar, pois se na Europa de hoje, com cerca de
quinze a vinte séculos de cristianismo, ainda é possível encontrar evidentes
presenças das culturas celtas, não é de estranhar que os gálatas, mesmo acul-
turados, depois de apenas três a quatro século séculos tivessem mostrado que
continuavam celtas. Vale a pena pesquisar mais sobre os gálatas, nossos paren-
tes distantes e esquecidos, mas celtas como muitos de nós.
Mas há muitas dificuldades a enfrentar nesse estudo: a Galácia, sub-
metida primeiro a Pérgamo e depois a Roma, adotou parte dos costumes de
seus dominadores; atacada pelos godos (260-270), a região foi sucessivamente
devastada, conquistada e retomada por árabes, bizantinos, mongóis e turcos
desde a primeira conquista árabe de Ancara, o que levou ao empobrecimento e
despovoamento da região. Ao ser elevada a capital do país em 1923 Ancara era
um pequeno povoado, e ainda hoje em torno dela não há cidades por muitos
quilômetros, nem monumentos (a não ser os frígios e os hititas) ou paisagens
que atraiam os turistas, e os próprios guias não estimulam a visita à Galácia.
Ancara não tem museus com coleções da Galácia celta.
* (subintroductae: introduzidas sorrateiramente; syneisaktos: que entrou
junto; Liddell & Scott fazem um adendo em latim: sociatrices, pudicas vel absti-
nentes, mais geralmente: a governanta da casa do pároco).

– 19 –
A religiosidade dos celtas e germanos

7. Bibliografia
- ALLAN, John. La Epístola a los Gálatas. Introducción y comentario.Trad. Or-
lando
Aprile. Buenos Aires, Methopress, 1963.
- BARRACLOUGH, Geoffrey, PARKER, Geoffrey (eds). Atlas da História do
Mundo.
Trad.Lilia Astiz.Londres, Times Books/São Paulo, Folha de São Paulo, 1995
(1978).
- BLIGH, John. La Lettera ai Galati. Trad. Paolo Stàcul. Roma, Paoline 1972
(Londres
1969)
- CALVINO, João. Gálatas. Trad. Valter Graciano Martins. São Paulo, Edições
Paracletos, 1998.
- CHRYSOSTOM. Commentary on Galatians. Apud SCHAFF, Philip (ed): Ni-
cene and
Post-Nicene Fathers. Vol. 13, 1-48. Peabody, Hendrickson, 1995 (1889)
- CIMOK, Fatih.Pérgamo. Trad. Débora Novio. Istambul, A Turizm Yayinlari/
Museu
Arqueológico de Pérgamo. 1994.
- DANIELOU, Jean & MARROU, Henri. Nova História da Igreja - I. Dos Pri-
mórdios a
São Gregório Magno. Trad. Dom Frei Paulo Evaristo Arns OFM. Petrópolis,
Vozes, 1984, 3ªedição.
- DRANE, John e outros (consultores). Atlas da Bíblia. Trad. Edwino A. Roger.
São
Paulo, Paulus, 1985.
- DUNN, James D.G. A Commentary on the Epistle to the Galatians. Londres,
A. & C.
Black, 1993.
- ELUÈRE, Christiane. La Europa de los Celtas.Trad. Juan Vivanco Gefaell. Bar-

– 20 –
A religiosidade dos celtas e germanos

celona,
BSA, 1999 (Gallimard 1992) 72-75.
- EUSEBIUS. The History of the Church. Trad.G.A.Williamson. Nova Iorque,
Barnes
& Noble, 1995 (1965).
- FAHLBUSCH, Erwin, e outros (editors) The Encyclopedia of Christianity.
Eerdmans/Brill, Grand Rapids/Leiden, 1999-2008, cinco volumes.
- FREMANTLE, W.H. Jerome: Letters and Selected Works. SCHAFF & WACE
(eds)
Nicene and Post-Nicene Fathers, Peabody, Henrickson, 1995 (1893) vol.6.
- HERM, Gerhard. The Celts. The People who Came out of the Darkness. Trad.
Weidenfeld and Nicolson (Econ Verlag 1975). Nova Iorque, St.Martin’s Press,
1977
- JEUGE-MAYNART, Isabelle (dir) ,Turquie. Paris, Hachette, Guides
Bleus, 1996.
- KINDER, Hermann e HILGEMANN, Werner. The Anchor Atlas of World
History.
Trad. Ernest A. Menze. Mapas de Harald e Ruth Bukor. Nova Iorque, Double-
day, 1974 (Munique, D. Taschenbuch V., 1964).
- KRUTA, Venceslas. Os Celtas. Trad. Álvaro Cabral.São Paulo, Martins Fontes,
1989
- LÜHRMANN, Dieter. “Galatians, Epistle to the”. Em FAHLBUSCH, vol.2,
p.376-
377.
- MAHAFFY, John Pentland. The Empire of Alexander the Great. Nova Iorque,
Barnes
& Noble, 1995 (1898)
- MATEOS, Juan. Nou Testament. Trad., introd., notas, vocab.Tradução ao ca-
talão de
Josep Rius Camps e outros. Madrid, Ed.Cristiandad, 1978.

– 21 –
A religiosidade dos celtas e germanos

- OEPKE, Albrecht. Der Brief des Paulus an die Galater. Berlim, 1960 citado
por
Zerwick.

- OLIPHANT, Margaret.The Atlas of the Ancient World. Charting the Great


Civilizations of the Past. Nova Iorque, Simon & Schuster/ Londres, Marshall
Editions, 1992.
- PERCIVAL, Henry R. The Council of Ancyra A.D. 314 em SCHAFF & WACE
(dirs), Nicene and Post-Nicene Fathers, Peabody, Hendrickson, 1995 (1900)
vol. 14, 61-75.
- PETERS, F.E. Tha Harvest of Helenism. A History of the Near East from Ale-
xander
the Great to the Triumph of Christianity. Nova Iorque, Barnes & Noble, 1996
(1970).
- PONTIFÍCIO INSTITUTO BÍBLICO DE ROMA. Bíblia Sagrada. São Paulo,
Paulinas, 1967.
- QUASTEN, Johannes. Patrologia. Versão de Ignácio Oñatibia. Madrid, BAC,
1984-
1986, 3 vols.
- ROUX, Hébert. L’Évangile de la Liberté. Commentaire de l’Èpître de Paul aux
Galates. Genebra, Labor et Fides, 1973.
- SCHLIER, Heinrich. Der Brief an die Galater. Göttingen 1949, na tradução
italiana:
Lettera ai Galati. Trad. Maria Bellincioni. Brescia, Paidéia, 1965.
- SCHNEIDER , Gerhard. A Epístola aos Gálatas. Trad. Frei Geraldo Hagedorn.
Petrópolis, Vozes, 1967 (Düsseldorf 1963), 2ªedição, 1984.
- STOTT, John. A mensagem de Gálatas.Trad. Yolanda M. Krievin.São Paulo,
ABU,

– 22 –
A religiosidade dos celtas e germanos

1997 (1968)
- UNGER, Merrill Frederick. The New Unger’s Bible Dictionary. Chicago,
Moody
Press, 1988.
- VIARD, André. Saint Paul. Épître aux Galates.Paris, Gabalda, 1964
- YOUNGBLOOD, Ronald F. (editor geral). New Illustrated Bible Dictionary.
Nashville, Nelson, 1995.
- ZERWICK, Max. Bref Commentaire de l’Épître aux Galates. Trad. Francis
Shanen.
Le Puy/Lyon, Ed. Xavier Mappus, 1965.

– 23 –
A religiosidade dos celtas e germanos

O RITUAL SACRIFICIAL DE HUMANOS E DE ANIMAIS ENTRE OS


CELTAS
Silvana Trombetta (doutora em Arqueologia pelo MAE/USP).

Uma breve palavra sobre os diversos grupos celtas


Atualmente a arqueologia, as fontes textuais e a linguística possibili-
tam aos estudiosos contemporâneos um maior conhecimento sobre os grupos
celtas. A análise conjunta destas categorias evidencia a existência de “povos
celtas” que, comumente, ocupavam regiões como a Gália, Bretanha, norte da
Itália, parte da Hispânia e também, mais ao leste, a Galátia.
A arqueologia é fundamental para a compreensão do modo de vida
destas populações, uma vez que as fontes textuais que mencionam os celtas
foram escritas, principalmente, por gregos e romanos. As tradições celtas eram
em sua maior parte transmitidas oralmente e embora houvesse druidas aptos a
ler e escrever em grego, os ensinamentos não eram redigidos.
O termo celta (Keltoi e Galataei em grego e Celtae e Galli em latim) foi
introduzido pelos gregos e romanos. Porém, não podemos afirmar que estas
populações consideravam-se enquanto integrantes de um mesmo grupo. De
acordo com GREEN (1996), embora os gregos se referissem a estes povos uti-
lizando o termo celta, é bem sabido que Heródoto e Cesar faziam menções a
diferentes grupos não obstante os denominassem pelo mesmo nome. Os celtas
não possuíam uma identidade étnica enquanto um grupo único e homogêneo.
Embora os vários grupos da Europa tenham tido traços comuns em termos de
estrutura social, religião e cultura material, havia uma enorme variabilidade
entre os mesmos. Os escritores da Antiguidade parecem reconhecer nesses gru-
pos traços comuns, porém, é necessário questionar em que medida tradições
comuns podem ser observadas na cultura material e no idioma. As evidências
linguísticas anteriores ao período romano são escassas, pois o norte da Europa
não era letrado durante a maior parte do primeiro milênio a.C. e quando a
escrita foi adotada no mundo celta ela utilizou mais comumente o grego ou o
latim. As primeiras evidências linguísticas celtas aparecem em inscrições mo-
netárias e em documentos da Antiguidade Clássica que contêm nomes de loca-
lidades celtas. Tais documentos sugerem que no período da ocupação romana
(final do século I a.C.), línguas celtas eram faladas na Bretanha, norte da Itália,

– 24 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Gália, Espanha e na parte leste da Europa.


Em termos arqueológicos, os povos celtas estão geralmente relaciona-
dos ao uso do ferro (isto seria um traço distintivo em relação a outros grupos
locais). Não obstante, o mais provável é que os povos denominados celtas exis-
tissem desde a Idade do Bronze Tardio e não se deve pensar, portanto, que os
celtas apareceram repentinamente na metade do primeiro milênio a.C. O mais
provável é que os grupos que viviam na Europa, devido ao contato cultural,
“tornaram-se celtas” ao longo do tempo.
Trataremos neste texto mais especificamente dos grupos celtas exis-
tentes na Gália e na Bretanha, locais onde a presença dos druidas (sacerdotes
que atuavam enquanto mediadores do ato sacrificial) pode ser atestada.

Os druidas, os rituais e sacrifícios


Os druidas pertenciam à camada mais alta da população, possuindo
um status semelhante ao dos cavaleiros. Eles faziam papel de juízes, adivinhos,
astrônomos e de mediadores entre os homens e os deuses possuindo, portanto
um papel essencial nos ritos sacrificiais.
Sacrifícios realizados durante os festivais (tais como Beltain, Imbolc)
ou durante períodos de turbulência social, requeriam ritos específicos para que
a graça fosse alcançada: a imolação de uma vítima humana ou animal devia se-
guir passos pré-determinados, de acordo com a intencionalidade do sacrifício.
Havia desde rituais nos quais as vítimas eram imoladas em homenagem a um
deus visando futuros benefícios para a comunidade, até o auto-sacrifício, no
qual o próprio sacerdote era morto tendo em vista estabelecer uma comunica-
ção com os deuses no Outro Mundo. A necessidade de práticas rituais específi-
cas de acordo com cada festividade e com o propósito do sacrifício, juntamente
com a descoberta de uma série de objetos arqueológicos relacionados à função
sacrificial aponta, sem sombra de dúvida, para a existência de indivíduos in-
cumbidos de exercer este ritual. Os druidas eram os encarregados de presidir
os atos sacrificiais e, muitas vezes, nem sempre era possível distinguir clara-
mente os limites entre seu poder político e sua atividade religiosa. Fossem ou
não alguns druidas possuidores de maior prestígio político do que outros em
comunidades celtas, o certo é que o ato sacrificial exigia que o indivíduo por ele
responsável soubesse manejar o instrumental específico para a ocasião. Objetos
arqueológicos como bastões nos quais o convolvulus (trepadeira cujas sementes
tinham propriedades alucinógenas) aparece representado, evidenciam a exis-

– 25 –
A religiosidade dos celtas e germanos

tência de objetos apropriados para ocasiões ritualísticas.


Não se pode esquecer, no entanto, que as práticas sacrificiais varia-
ram no decorrer do tempo e também de uma localidade para outra. De acordo
com MÉNIEL (1992), o sacrifício assumiu diversas formas tanto nos aspectos
materiais quanto simbólicos modificando-se de acordo com os limites geográ-
ficos e cronológicos. Embora MÉNIEL refira-se ao sacrifício animal realizado
em santuários gauleses, a variação do ato do sacrifício no espaço e no tempo
é verificada no exame de diferentes povos e culturas. A variabilidade também
está presente nos propósitos do sacrifício e nas escolhas das vítimas sacrificiais,
sejam elas humanas ou animais.

O sacrifício animal
As fontes textuais e materiais atestam de modo indubitável a prática
do sacrifício animal. De um modo geral, os ossos de animais encontrados em
poços, cavernas e santuários nos quais os rituais eram efetuados, revelam a pre-
dominância de animais domésticos ao invés de animais selvagens. O intuito
seria o de oferecer aos deuses espécies de grande valor para a vida dos huma-
nos: o cão (companheiro na caça), o cavalo (símbolo de poder e status), o boi
(subsistência da comunidade). O animal durante o ato sacrificial poderia ser
queimado inteiro, o que representaria, em termos práticos, uma grande perda
para a comunidade ou ser morto e ter seu corpo cortado em metades – parte
seria destinada aos deuses (queimada ou enterrada) e o restante (comumente as
melhores partes) seriam consumidas pelos sacrificadores e pela comunidade. O
sacrifício animal no qual a comunidade partilhava a carne servia ao propósito
da comunhão entre os indivíduos do mesmo grupo sendo importante para a
reafirmação da ordem social.
Em outros casos, os sacrifícios animais destinavam-se a beneficiar
indiretamente o grupo social. Plínio (Historia Natura, XVI.246) descreve um
importante sacrifício animal que estava relacionado à cura da infertilidade rea-
lizado na Gália e para o qual era utilizado o visgo, planta parasita do carvalho,
árvore que era sagrada para os celtas:
O visgo é raro e, quando encontrado, colhido com grande cerimônia e,
particularmente, no sexto dia da lua...Saudando a lua com uma palavra nativa
que significa “curando todas as coisas”, eles preparam um ritual de sacrifício e um
banquete ao pé da árvore e trazem dois bois brancos cujos cornos são amarrados
pela primeira vez nesta ocasião. Um sacerdote, vestido de branco, sobe na árvore

– 26 –
A religiosidade dos celtas e germanos

e com uma foice dourada corta o visgo, o qual cai num manto branco. Depois,
finalmente, eles matam as vítimas, rogando ao deus o benefício para aquele que o
requer. Eles acreditam que o visgo misturado na bebida dá fertilidade a qualquer
ser vivo não fértil e que ele é um antídoto contra todos os males
Este sacrifício muito provavelmente destinava-se a propiciar a fertili-
dade de uma pessoa importante na comunidade (como a esposa de um chefe
local) que necessitaria gerar uma descendência para assegurar a perpetuação
do poder e a consequente coesão social do grupo. Quanto à utilização do vis-
go, ele também era empregado para a cura da insônia, pressão alta e tumores
malignos.
O propósito do sacrifício animal também podia evidenciar claras in-
tenções políticas. ROSS (1996), descreve a festa do boi na Irlanda (tarb feis),
cujo intuito era determinar o correto sucessor para o reino de Tara. O boi era
ritualmente morto e o druida ingeria sua carne e o caldo no qual o animal
tinha sido cozido. Os druidas cantavam a “palavra da verdade” sobre ele e, em
seus sonhos ele deveria “ver” o homem mais adequado para ser o rei. Algumas
vezes o sacerdote tinha que ser coberto com o couro do animal sacrificado.
Uma imagem que se reporta ao ritual sacrificial de bovinos aparece claramente
no caldeirão de Gundestrup (século V a.C.). Na representação, três enormes
bois surgem acima das figuras de três guerreiros (acompanhados por cães) que
enfiam espadas nas gargantas dos animais. O imenso tamanho dos bois em
comparação com o dos homens sugere o caráter divino da representação dos
animais. Não obstante, HATT (1989) visualiza nesta composição um sacrifício
no qual há somente imagens divinas: os bois seriam, na verdade, os touros fa-
tídicos cujas mortes deveriam ser executadas pelos dióscuros (em número de
três e não de dois devido às características da representação – um touro para
cada dióscuro). Em todo caso, seja uma representação com imagens humanas
e divinas ou somente divinas, o sacrifício do animal aparece enquanto um ato
ligado à religiosidade celta.
As práticas sacrificiais de bovinos revelam a força de sua permanên-
cia na medida em que se verifica sua modificação e incorporação ao mundo
cristão. Em períodos bastante posteriores, mesmo condenados pela Igreja,
sacrifícios de tal gênero eram realizados. ROSS (1996), menciona o Digwall
Presbytery Records (agosto de 1778), no qual é descrito o sacrifício bovino que
ocorria na Escócia e que foi praticado até o final do século dezoito. A prática
tinha lugar no Monte de Augusto, na ilha de Inis Maree. A ilha era consagrada
ao santo Maelrubha e a cerimônia consistia no sacrifício de bois ao santo pela

– 27 –
A religiosidade dos celtas e germanos

comunidade local.
O sacrifício bovino bem como o de outros animais é claramente re-
gistrado no santuário de Gournay (Gália). Este local sagrado foi erigido no
século IV a. C. no oppidum de Bellovaci e a grande quantidade de ossos e a or-
ganização do espaço evidenciam rituais intensos e organizados. O propósito do
grande poço central (protegido por um teto) era o de receber os corpos de bois,
os quais eram deixados no local durante seis meses para a decomposição de sua
carne. Depois deste período, os ossos eram removidos e colocados ao lado dos
restos de cavalos, porcos e carneiros numa vala fechada ao redor do santuário.
O exame dos ossos dos porcos e carneiros (estes em maior número) sugerem
que os mesmos foram esquartejados e consumidos para propósitos festivos.
Quanto aos cavalos, não é possível saber com certeza se os mesmos
foram sacrificados ou se já estavam mortos na época da deposição. MÉNIEL
(1992) sugere a hipótese de que os cavalos talvez pertencessem a guerreiros,
uma vez que o santuário possui uma grande quantidade de armas danificadas.
Embora os cavalos tenham igualmente sofrido uma primeira decomposição
(porém, não em um local tão especial e protegido quanto o gado), o tratamento
dado aos ossos difere do que era aplicado aos bois. O gado, na verdade, era
tratado de um modo mais complexo. A análise dos ossos revelou que o bois
tinham idade avançada e quando vivos foram colocados para executar traba-
lhos pesados (puxar carroças ou arar a terra). A execução ritual dos bois seguia
passos precisos: cada animal era morto com um golpe de machado na nuca e
depositado no poço. Após a decomposição do corpo, parte do esqueleto era le-
vado para fora do santuário e outra parte permanecia no recinto. Além disso, os
esqueletos recebiam um peculiar tratamento: antes de sua deposição na entrada
do santuário, as mandíbulas inferiores eram removidas e as cabeças sofriam
golpes de espada que talhavam o focinho.
A presença de armas deliberadamente danificadas (atestando a morte
ritual dos objetos, na qual eles perdem sua função e são retirados do mundo
humano mas conservam seu valor enquanto oferenda ao divino), de ossos de
indivíduos do sexo masculino e dos esqueletos de três mulheres que foram de-
positados perto do fosso central (que podem ter sido sacerdotisas1 do templo)

1 Há controvérsias sobre a existência de mulheres druidas. Estrabão (Geografia,


VII 2,3) descreve um rito no qual as mulheres realizavam o ato principal da execução
ritual de prisioneiros militares entre os Cimbros. Embora este grupo não seja celta, Green

– 28 –
A religiosidade dos celtas e germanos

tornam Gournay um sítio particularmente importante para o estudo dos sacri-


fícios humanos e animais.
De modo similar, no santuário de Ribemont (Gália), foram encontra-
dos ossos humanos e de equinos, bem como armas danificadas que, em conjun-
to, denotam a prática sacrificial. Ribemont é particularmente conhecido pela
presença de dois ossuários compostos por partes dos esqueletos de homens e de
cavalos. GREEN (2002), menciona que cada ossuário deveria conter os restos
de aproximadamente 200-250 indivíduos com idade inferior a quarenta anos.
Os ossos dos cavalos também são muito frequentes e encontram-se misturados
aos dos humanos. O santuário possui uma grande fossa (três metros de largura
por dois metros de profundidade) e os ossos nela presentes comprovam que
um grande número de animais foram consumidos no local. De acordo com
MÉNIEL (1992), o animal mais consumido era o porco (cerca de 75%), seguido
do carneiro (23%). Ossos de bovinos aparecem de forma pouco significativa na
fossa – cerca de 5%.
As armas depositadas em Ribemont (século II a.C.) são semelhantes
às encontradas em Gournay e tal fato sugere a hipótese de que estes santuários
eram locais onde existiam rituais marciais que incluiam a deposição de mi-
lhares de armas e escudos propositadamente danificados ao lado de cavalos e
bois sacrificados e restos de banquetes. Os ossos de diferentes tipos de animais,
principalmente porcos e carneiros, revelam que não existiam somente ritos de
agradecimento às forças divinas pela vitória do exército ou que buscavam o
dom e o contra-dom no oferecimento de uma vida aos deuses e a consequente
boa sorte na batalha. Os banquetes que tinham lugar no santuário, afirmavam
a comunhão entre os individuos da comunidade. O exame dos ossos de porcos
e carneiros revelam que as ossadas foram depositadas nas valas após a carne ter
sido consumida pelos presentes, sem que houvesse um tratamento diferenciado
dos esqueletos– tal como ocorria com o boi em Gournay.
Curiosamente, em um santuário na ilha de Hayling (Hampshire, In-

(1997), ressalta o papel da mulher na sociedade celta, a qual podia exercer cargos de poder
como no caso de Boudica, que assumiu a chefia entre os Icenos (Bretanha) após a morte
de seu marido Prasutagus, liderando uma rebelião contra Roma. Entretanto, não se pode
afirmar com certeza que existiam mulheres na função de druidas. O mais aceito é que ha-
veria mulheres sacerdotisas, exercendo funções importantes no templo. Tal fato explicaria
a presença de ossos femininos depositados no santuário de Gournay.

– 29 –
A religiosidade dos celtas e germanos

glaterra), de forma contrária ao comumente verificado em outros locais sagra-


dos, não há evidências de sacrifício bovino. Não há nenhuma conclusão defi-
nitiva sobre o motivo desta ausência. Hipóteses levantadas por pesquisadores
como GREEN (1996), sugerem que a razão para o sacrifício de outros animais
como ovelhas e porcos e a ausência de bois pode ser explicada por característi-
cas da religião local: divindades que não apreciavam este tipo de animal ou uma
excessiva sacralidade do boi (como no moderno hinduísmo) que não permitia
que o mesmo fosse sacrificado. Este fato é extremamente importante para que
não haja generalizações quanto aos tipos de sacrifício realizados entre os celtas
pois permite comprovar que havia variações quanto aos animais imolados.
Com relação ao sacrifício de cães, sua morte ritual podia estar relacio-
nada ao simbolismo que o animal possuía: a cura e a morte, duas instâncias que
caminhavam unidas na percepção celta de regeneração e renascimento após
o fim da vida. Evidências de sacrifícios de cães são encontradas nos já citados
santuários de Gournay e Ribemont. Em Muntham Court (Sussex), corpos de
vários cães foram encontrados a 60 metros de profundidade em associação com
um santuário romano-britânico do século I d.C. Em relação ao sacrifício de
cavalos, o uso destes animais em ritos sacrificiais durante a Idade do Ferro é
atestada no já mencionado santuário de Ribemont. Muitas vezes estes animais
eram enterrados juntamente com seus proprietários, como no caso do enter-
ramento do rei Barrow (Yorkshire, Inglaterra). Este enterramento (século III a.
C.) contém o corpo do guerreiro, seu carro de guerra e seu cavalo, denotando
um sacrifício de acompanhamento. Corpos de cães e cavalos eram os mais pre-
sentes nas mortes rituais que ocorreram na fortaleza de Danebury (Hampshire,
Inglaterra) durante a Idade do Ferro. Os depósitos eram feitos em poços esca-
vados que foram originalmente utilizados para o armazenamento de milho.
Uma explicação para a utilização destes poços pode ser a de um ritual que ex-
pressava uma gratidão aos seres divinos pela manutenção dos víveres (grãos).
Os sacrifícios animais, portanto, eram realizados com o propósito da
comunhão entre os indivíduos de um mesmo grupo, de acompanhamento, de
proteção pelas forças divinas, de obtenção de benefícios (fertilidade, cura) ou
com o intuito de agradecimento aos deuses pela manutenção do ciclo da vida.
Veremos, a seguir, que os sacrifícios humanos podem servir a propósitos se-
melhantes. No entanto, a oferta de uma vida humana é sobretudo valiosa e
requerida em épocas muito especiais dentro da comunidade.

O sacrifício humano

– 30 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Embora não haja dúvidas quanto à existência do sacrifício humano


entre os celtas, ele não era uma prática comum. A realização de um sacrifício
humano ocorria em momentos bastante particulares e cruciais para a comuni-
dade.
Um dos principais atos dos druidas visando o bem comum era o con-
trole das forças sobrenaturais por meio da adivinhação. Isto aparentemente en-
volvia o sacrifício humano (por estrangulamento, morte por punhaladas) e o
consequente exame das marcas da luta de morte ou das entranhas das vítimas
para predizer o futuro.
Estrabão (Geografia IV, 4, 6), relata que:

Eles costumavam golpear o ser humano devotado à morte nas costas


com uma espada, e ler o divino em decorrência da sua luta de morte. Mas, eles
não sacrificavam sem os druidas.

A previsão estava relacionada a importantes eventos no grupo social:


partida para a guerra, semeadura dos campos ou colheita, eleição de um novo
rei. O sacrifício humano também ocorria para estabelecer uma comunicação
com o divino ou para expressar uma grande gratidão às forças sobrenaturais.
Diodoro Sículo, alude ao propósito sacrificial como uma ação de gra-
ças e menciona a presença de indivíduos conhecedores das forças sobrenaturais
necessárias para mediar a comunicação entre os homens e os deuses. Ele tam-
bém discorre sobre os escolhidos para sofrer o ato:
Com relação aos criminosos, eles os mantêm prisioneiros durante cinco
anos e depois os oferecem em honra aos deuses, dedicando conjuntamente muitas
oferendas de primeiros frutos e construindo piras de grande tamanho. Cativos
também eram usados por eles como vítimas para seus sacrifícios em honra aos
deuses (Biblioteca da História, 32, 6)

Ninguém pode realizar um sacrifício sem a presença de um “filósofo”; as


oferendas de agradecimento aos deuses devem ser feitas pelas mãos dos homens
que são conhecedores da natureza do divino e que falam a linguagem dos deuses
(Biblioteca da História, V, 31, 2-5)

– 31 –
A religiosidade dos celtas e germanos

A palavra “filósofo” ao invés de “druida” pode ter sido utilizada pelo


fato dos druidas serem profundos conhecedores da língua e filosofia gregas, o
que os diferenciava dos demais indivíduos da sociedade celta, em sua maioria
iletrados.
Outros escritores antigos como César (De Bello Gallico), Lucano
(Pharsalia), Cícero (Pro Fonteio) Tácito (Annales) relatam a prática do sacrifício
humano entre os celtas. Logicamente, a intencionalidade de classificar os povos
submetidos como bárbaros e possuidores de práticas condenáveis aparece vá-
rias vezes nos textos antigos:

Quem não sabe que os gauleses possuem o costume monstruoso e bárba-


ro de sacrificar homens ? ....como podem os deuses imortais serem apaziguados
pelo crime e derramamento de sangue humano ? (CÍCERO – Pro Fonteio, 31)

De acordo com César (De Bello Gallico, VI, 16), os gauleses sacrifi-
cavam vítimas humanas com propósitos militares ou de aliviar sofrimentos.
Para César, os deuses apreciavam a carnificina daqueles envolvidos em algum
tipo de crime. No entanto, ressalta que vítimas inocentes também podiam ser
sacrificadas:

...aqueles que são atingidos por sérios males e aqueles que estão engaja-
dos nos perigos de uma batalha, sacrificam vítimas humanas ou fazem voto de
fazê-lo...Crêem que para os deuses imortais é melhor aceito, dentre todos, o suplí-
cio daquele que cometeu furto, latrocínio ou outros delitos, mas quando faltam
vítimas deste tipo, resolvem também supliciar quem é inocente.

Tácito (Annales XIV, 30-1) igualmente faz menção a sacrifícios com


caráter bélico, ocorridos na ilha sagrada de Mona (Anglesey) na Bretanha:

....para isto existia a religião deles: para ensopar seus altares com o san-
gue dos prisioneiros

– 32 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Embora as fontes textuais descrevam estas práticas dando-lhes uma


conotação negativa, é essencial lembrar que os sacrifícios humanos também
existiam na Roma Antiga, sendo definitivamente proibidos no século I d.C.
No período da República Romana, por exemplo, gregos e gauleses foram sa-
crificados no Forum Boarium durante a Segunda Guerra Púnica, quando os
romanos sofreram uma severa derrota nas mãos dos cartagineses. O sacrifício
neste caso, tal qual entre os celtas, foi provavelmente efetuado visando futuros
favorecimentos militares por parte dos deuses.
Com relação às fontes materiais, o já citado caldeirão de Gundestrup
possui uma iconografia reveladora de um sacrifício humano. Numa das cenas
do caldeirão, um druida ou um deus, representado em maiores dimensões, sur-
ge afogando ou pendurando uma vítima de ponta cabeça sobre um caldeirão. A
imagem retrata a morte pelo afogamento (morte típica dos destinados ao deus
Teutates, entidade ligada à guerra) ou uma morte na qual o indivíduo era gol-
peado na nuca, dependurado numa árvore e era feito um corte em sua garganta
(ou em sua própria nuca) de modo que ele sangrasse até a morte (morte ritual
característica daqueles ofertados ao deus Esus, o qual tinha uma estreita relação
com a natureza). A presença do exército na imagem do caldeirão (guerreiros
armados com lanças e escudos na parte inferior e cavaleiros com lanças na par-
te superior), leva a crer que o sacrifício fosse oferecido ao deus Teutates2
Em conexão com o documento material, Lucano (Pharsalia I, 444-6),
descreve um sacrifício por afogamento ocorrido na Gália:

Mercúrio-Teutates é apaziguado da seguinte maneira entre os gauleses:


um homem é colocado de cabeça para baixo dentro de um recipiente cheio, de
modo a afogá-lo

2 HATT (1989), novamente visualiza um ato no qual a guerra é realizada entre


entidades divinas. Na imagem em questão, o exército gaulês parte em defesa da deusa
Rigani, ameaçada por Taranis (esposo da deusa) devido a seu caso amoroso com o deus
Esus-Cernunos. Entretanto, o autor visualiza a relação entre o real e o mito na medida em
que a imagem para ele mostra um druida, com todos os seus paramentos, realizando um
sacrifício a Teutates e o episódio “se passa , aparentemente, sobre a terra e coloca em cena
homens terrenos e viventes” (pg.94).

– 33 –
A religiosidade dos celtas e germanos

O caldeirão surge como um objeto que ao recolher o sacrifícado, seu


sangue ou partes de seu corpo atuava, dentro do rito do sacrifício, como objeto
que auxiliava o ato da transformação. É essencial lembrar que no decorrer de
todos os sacrifícios, o impuro - o sangue e o próprio sacrificado (humanos que
poderiam ser criminosos ou prisioneiros de guerra) - transformava-se em puro
através do ato sacrificial. O sacerdote, direcionava o processo de modo a cana-
lizar as energias negativas e transmutá-las em positivas gerando, ao final, forças
provenientes do sacrifício que beneficiavam a comunidade como um todo. A
transmutação da energia era vital para que o ato se concretizasse da manei-
ra correta e era essa transformação que viabilizava o sacrifício de malfeitores
oriundos da própria sociedade celta (indivíduos possuidores de uma especial
energia negativa, que perturbava a comunidade) e de prisioneiros de guerra
(indivíduos valorosos em sua sociedade de origem mas desejosos de aniquilar
a sociedade celta). Eram, portanto, seres dotados de uma especial energia des-
trutiva que era transformada em construtiva durante o ato sacrificial.
Outros objetos poderiam ser utilizados durante o sacrifício. GREEN
(2002:184) discorre sobre evidências materiais encontradas em ricas tumbas
gaulesas de cemitérios da Idade do Ferro e do período romano que têm sido
identificadas como pertencentes a oficiais religiosos, em parte porque os bens
que acompanham o morto sugerem uma atividade associada ao ato sacrificial
ou à cura. Em uma tumba do século II d.C. em Saint-George-lès-Baillargeaux,
na localidade de Viena (Gália) uma faca medindo 32 cm foi depositada junto
com uma série de navalhas e com uma pedra para afiar o corte .
Citando FITZPATRICK (2000:47-9), GREEN (2002:185), revela que
“em tumbas do norte da Gália, instrumentos cirúrgicos aparecem associados a
outros objetos, incluindo baldes de madeira feitos de teixo (árvore que, tal qual
o carvalho, era importante para os druidas) com apliques em metal e, algumas
vezes, pares de colheres que podem ter sido usadas em rituais com propósitos
divinatórios. Uma delas possui a superfície dividida em quatro quadrantes en-
quanto que a outra é perfurada, como que para gotejar algum líquido ou pó
sobre os quadrantes”.
Nem sempre, porém, é possível recuperar todos os dados materiais
relativos aos diferentes tipos de sacrifício pois alguns ritos pressupunham a
destruição total do sacrificado e do que era utilizado para a consumação do
ato. O deus Taranis era associado ao fogo e nos sacrifícios a ele destinados as
vítimas deveriam ser queimadas. CÉSAR (De Bello Gallico, VI, 16) relata um
sacrifício provavelmente destinado a Taranis:

– 34 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Alguns povos possuem figuras humanas de enormes dimensões, de vime


entrelaçado, na qual são colocados homens ainda vivos: é aceso o fogo e as pessoas
presas ali dentro são envoltas pela chama e morrem.

Havia elementos religiosos que relacionavam este deus ao elemento


fogo. Taranis tinha como um de seus atributos uma roda que, de acordo com
a mitologia gaulesa, era inflamada e lançada aos campos para fertilizar a terra.
Numa das imagens do caldeirão de Gundestrup, o deus Taranis (representado
com uma barba) aparece com a roda em sua mão direita, tendo a seu lado direi-
to o deus Teutates. A imagem retrata o momento no qual Taranis, auxiliado por
Teutates, lança a roda em direção à Terra. ZWICKER (in HATT, 1989:188-9),
descreve o relato do martírio de São Vicente, o qual faz menção ao rito da roda
inflamada:

Sobre o território antigo ( ligado a vila de Agen) na região de Metenses,


mais corretamente de Nemetenses ou Vernemetenses, que é uma das mais co-
nhecidas cidades da Gália, a multidão sacrílega dos pagãos tinha o costume de
se reunir para celebrar cerimônias não de uma verdadeira religião, mas de uma
ilusão sedutora, num santuário consagrado a um de seus deuses. Sem dúvida, os
demônios que ali habitavam, enganavam, através de suas manobras mentirosas,
os olhos e os espíritos da multidão que se encontrava reunida, de tal modo que este
povo infeliz acreditava assistir a algum milagre divino, aonde não havia senão
artifícios diabólicos. Com efeito, transpondo a porta deste mesmo templo, como
se ela fosse empurrada por uma vontade divina ou, falando mais verdadeiramen-
te, por um demônio que ali morava, uma roda inflamada costumava sair dali e
descer o cimo da colina até um riacho que corria para a direita. Ela em seguida
tornava a subir a encosta, até o templo do santuário, por um movimento inverso,
vomitando chamas. Esta ilusão se esvaneceu quando em oposição a ela, foi feito o
sinal da cruz. A multidão furiosa dos pagãos, levou o santo à morte.

Não se pode, evidentemente, precisar todos os fatos do relato e nem se


pode negligenciar a intenção da Igreja de condenar os ritos pagãos. No entan-
to, o que se busca não é simplesmente comprovar o que é relatado nas fontes
textuais (sejam elas provenientes da Antiguidade ou do Período Medieval) mas
sim analisar criticamente fontes textuais e materiais de modo a observar o que
cada qual pode revelar a respeito dos povos estudados. O relato e a cena do

– 35 –
A religiosidade dos celtas e germanos

caldeirão de Gundestrup revelam que para os celtas o fogo era um elemento


propiciador da vida: o rito do fogo visava a prosperidade agrícola e o alimento
necessário ao sustento humano. A morte sacrificial realizada pela ação deste
elemento caracterizava o ato do fim de uma vida oferecida a um deus que, por
sua vez, utilizava o mesmo elemento para viabilizar a existência dos homens no
plano terreno. A elaboração pelos celtas de uma estrutura antropomórfica em
vime (citada por César) na qual os indivíduos - possivelmente prisioneiros de
guerra - eram sacrificados ao deus Taranis torna clara a estreita relação entre
contentor e conteúdo: a estrutura antropomórfica e os humanos que a mesma
contém seriam igualmente consumidos pelas chamas durante o ato sacrificial.
Haveria, portanto, a destruição total dos indivíduos e da estrutura utilizada no
rito. Cabe lembrar que não somente o fogo, mas também o sangue e a água são
substâncias vitais para os humanos e sua presença nos atos ritualísticos celtas
atesta a relação necessária e ao mesmo tempo ambivalente destes elementos
para o destino dos homens: elementos sem os quais não se efetiva e vida e atra-
vés dos quais a mesma pode ser suprimida.
A identificação das vítimas sacrificiais é muitas vezes uma tarefa árdua
e, no entanto, para que se possa ter uma dimensão real e não fantasiosa do
sacrifício humano na sociedade celta é extremamente necessário diferenciar os
corpos submetidos ao sacríficio daqueles que foram ofertados após uma morte
natural ou em decorrência de uma enfermidade ou confronto militar. Corpos
encontrados em pântanos (Lindow Moss, Cheshire) são geralmente melhor
aceitos enquanto exemplos de morte sacrificial. Por outro lado, os santuários
de Gournay e Ribemont contém diversos ossos de humanos que podem ter sido
de vítimas sacrificiais ou de indivíduos mortos em combate. “A morte violenta
frequentemente deixa suas marcas, mas a morte também pode ocorrer devido à
guerra, acidentes de caçada ou punição. Desse modo, o esqueleto de um jovem
homem encontrado em um poço que data do início do século I d.C. atrás do
forte de South Cadbury no sudoeste da Bretanha pode ter sido uma oferenda
para os deuses locais para assegurar a defesa contra os invasores. Mas, o corpo
também pode ter sido de um guerreiro morto em batalha, cujo espírito valo-
roso transfere sua força para a fortaleza na qual ele foi enterrado. Do mesmo
modo, o corpo de um jovem enterrado num poço no forte da Idade do Ferro
em Danebury (Hampshire, Inglaterra), durante o primeiro milênio a C., pode
representar uma oferenda de agradecimento, consistindo no corpo de um valo-
roso soldado” (GREEN, 1996:76).
Em outros casos, a morte ritual (com suas características violentas) é
mais facilmente verificada: é o caso do “Homem de Lindow”, encontrado em

– 36 –
A religiosidade dos celtas e germanos

uma turfeira em Lindow Moss (Bretanha). O corpo, que data da Idade do Fer-
ro (século I a.C.), sofreu primeiramente diversos golpes em sua cabeça sendo
posteriormente garroteado (sua garganta foi cortada) e, por fim arremessado
com o rosto para baixo em um pântano . Estas “três mortes”, colocam em rele-
vo a violência simbólica e sagrada do ato ritual. A análise de seu corpo (pele,
resíduos estomacais e intestinais) mostra que o sacrificado igualmente sofreu
uma cuidadosa preparação antes de sua morte, denominada pela antropologia
de “rito de entrada”: seu corpo estava nu e antes de morrer ele ingeriu uma
refeição ritual, da qual fazia parte um pão feito com várias espécies de cereais e
sementes. Neste caso, especificamente, tem sido bastante aceitas hipóteses que
afirmam que a vítima seria um indivíduo de uma camada social elevada. As
análises do corpo indicam que tratava-se de um indivíduo bem nutrido, cujas
unhas também estavam bem cuidadas (diferentemente daqueles que exerciam
trabalhos agrícolas ou eram marginalizados na sociedade celta). Uma das hi-
póteses, é a de que a vítima seria um druida evidenciando, assim, a questão do
auto-sacrifício. Análises realizadas no corpo revelaram que ele data do século
I d.C., período no qual a Bretanha sofreu severas invasões romanas até a con-
quista final em 43 d.C. O sacrifício de um druida, portanto, pode ter servido
ao propósito de estabelecer uma comunicação com o divino (o druida, através
de sua morte e submersão no pântano atingiria o Outro Mundo) ou ao intuito
de ofertar uma valorosa vida (indivíduo pertencente a uma camada social de
prestígio) aos deuses, os quais em retribuição beneficiariam o povo da Bretanha
em seu embate contra os romanos.
Um outro ritual no qual estava presente o auto-sacrifício, era o que
ocorria numa ilha sagrada, situada próxima à foz do rio Loire e que foi relatado
por ESTRABÃO (Geografia IV, 4, 6):

Elas possuem o costume de uma vez por ano remover o teto de seu tem-
plo e colocar outro teto novamente, no mesmo dia antes do pôr-do-sol, cada mu-
lher carregando uma parte da carga; mas a mulher cuja carga cai é rasgada em
pedaços pelas outras; e elas carregam os pedaços ao redor do templo gritando
“eoui”e não cessam até que sua loucura passe; e sempre acontece de alguém em-
purrar a mulher que é destinada a sofrer tal destino.

Neste caso, as mulheres provavelmente eram sacerdotisas do templo e


a morte ritual de uma delas já estava prevista na época da remoção do teto do

– 37 –
A religiosidade dos celtas e germanos

local sagrado, o qual devia ser substituído por outro no mesmo dia para que o
local não ficasse sujeito à influência dos espíritos durante o período noturno.
De acordo com GREEN (2002:193), a vítima purificava o santuário e aqueles
que nele prestavam assistência.
Nesses dois casos de auto-sacrifício, a diferença pode ser notada no
propósito do ato e na forma do tratamento do corpo. No caso das sacerdotisas
do rio Loire, existia a intenção de purificar o local e os restos corporais e o
sangue de uma das mulheres são dedicados ao divino junto ao lugar no qual o
mesmo era cultuado. No sacrifício do Homem de Lindow, como já foi dito, a
morte e a posterior submersão do corpo serviu ao intuito da comunicação ou
da oferta ao divino (dom e contra-dom).
A deposição dos corpos, tanto no sacrifício animal quanto no hu-
mano, tinha a intenção de atingir o mundo subterrâneo das divindades. Os
pântanos eram vistos como locais peculiares nos quais dois elementos essen-
ciais à vida humana (água e terra) se misturavam dando origem a uma terceira
forma dotada da capacidade de atuar, simultaneamente, como a porta de saí-
da do mundo terreno e entrada no plano divino. O enterramento dos corpos
nos sacrifícios de fundação tinham igualmente o propósito de atingir o Outro
Mundo. A diferença, no caso, ocorre pelo fato dos corpos encontrarem-se jun-
to às construções para protegê-las ou gerar fertilidade e renovação. É o caso
de alguns enterramentos infantis, cujos corpos eram depositados para atuar
como propiciadores da vida na comunidade, como por exemplo, no sepulta-
mento infantil encontrado na propriedade rural romano-britânica existente em
Winterton. A relação entre a agricultura e os ritos sacrificiais é comprovada
arqueologicamente pela denominada tradição do poço, na qual antigos silos que
armazenavam grãos eram utilizados para colocar restos corporais de indivídu-
os (adultos ou crianças) ou animais ofertados às divindades. A presença destes
poços é constante em várias regiões da Bretanha e CUNLIFFE (1992a) afirma
que o uso dos antigos silos para a deposição não era casual: os silos atuariam
como uma espécie de soleira entre o mundo humano e o divino e as oferendas
nele depositadas expressariam o desejo de fertilidade das plantações.
No entanto, nem sempre é possível verificar se os indivíduos deposita-
dos foram sacrificados pois na maior parte dos casos não há marcas corporais
que denunciem o ato. Talvez os indivíduos sepultados já estivessem mortos em
decorrência de alguma enfermidade quando a deposição foi realizada. Neste
caso, a evidência de uma oferta ao divino é obtida a partir do exame dos demais
objetos encontrados, da presença de ossos de animais como cães ao lado do es-

– 38 –
A religiosidade dos celtas e germanos

queleto, ou através do próprio posicionamento do corpo enterrado – próximo


às estruturas de fundação de um forte, como no caso de um enterramento in-
fantil junto ao forte romano de Reculver (Kent). No caso dos fortes, nem sem-
pre os esqueletos encontrados eram infantis. Em Danebury, como já foi dito, os
ossos de um jovem homem encontrado num poço do forte pertenceram, muito
provavelmente, a um guerreiro morto em batalha cuja deposição sacrificial ti-
nha a função de proteger o local contra as ofensivas inimigas.
De forma contrária à deposição, nos sacrifícios pelo fogo a consuma-
ção da vítima e sua consequente transformação em fumaça e cinzas fazia com
que a mesma atingisse a esfera do divino. Assim, deposição, consumação pelo
fogo, afogamento e sangramento até a morte, eram ritos nos quais os meios
específicos empregados para causar a morte variavam de acordo com o deus
ao qual o sacrifício era ofertado e de acordo com a intencionalidade do ritual.
Todos, porém, estabeleciam uma relação com o Outro Mundo.
Através do sacrifício os celtas faziam acordos com seus deuses, tal qual
na própria sociedade. As oferendas cumpriam o papel de assegurar a reciproci-
dade, sobretudo com relação às questões ligadas com a segurança da comuni-
dade. Outro aspecto importante, era o papel da violência empregada na morte
das vítimas. O sacrificado não era imediatamente morto: na consumação do
ritual, a violência aplicada possuía um caráter sagrado. “A evidência da desne-
cessária selvageria, mutilação ou “excessiva morte” no tratamento das vítimas
sacrificiais sugere que a violência tinha uma função simbólica similar, talvez,
às percepções subjacentes ao ritual de destruição das armas antes de sua depo-
sição nos túmulos, santuários ou locais aquáticos” (GREEN, 2002:39). O uso
da força tinha como propósito criar uma energia espiritual. A violência, bem
como o drama eram componentes importantes na performance do processo sa-
crificial. De acordo com GIRARD (1990), a violência possuía um papel crucial
no sacrifício e o controle ritualizado da violência - a violência sagrada - era um
saudável antídoto contra a anarquia social.
As diferentes facetas do sacrifício humano exprimem uma conexão
com o divino pautada por ritos nos quais as etapas sacrificiais e a violência
decorrente se adequam aos propósitos do ato (a comunicação com o divino, a
gratidão às forças sobrenaturais, a previsão e o controle de acontecimentos fun-
damentais para a sociedade) e ao tipo de morte sofrida pelo indivíduo ofertado
(pelo fogo, por afogamento, por estrangulamento, por sangramento da vítima).
Compreender aprofundadamente todas estas variáveis significa superar visões
errôneas que qualificam o sacrifício simplesmente como um ato de barbárie. É

– 39 –
A religiosidade dos celtas e germanos

essencial entender a cultura dos grupos celtas e a intencionalidade do sacrifício


no qual se instala, na verdade, um elo entre morte e sobrevivência. É preciso
que um ser vivo seja sacrificado para que o próprio grupo, ou seja, a comuni-
dade, sobreviva.

BIBLIOGRAFIA
a) Fontes textuais
CESAR – De Bello Gallico
DIODORO SÍCULO – Biblioteca da História
ESTRABÃO – Geografia
LUCANO - Pharsalia
PLÍNIO – Historia Natura
TITO LÍVIO – Ad Urbe Condita.

b) Bibliografia Geral:

BRADLEY, I. – The power of sacrifice. Darton, Longman & Todd. Londres, 1995.
CUNLIFFE, B. – The Celtic world. Constable and Company. Londres, 1992
____________ - “Pits, preconceptions and propitiation in the British Iron Age”.
Oxford Journal of Archaeology, 11, pp. 69-83. 1992 a
____________ - The celts: a very short introduction. Oxford University Press.
Londres, 2003.
DUVAL, P. M. – Travaux sur la Gaule (1946/1986) 2 vol. École Française de
Rome. Palais Farnèse, 1989.

– 40 –
A religiosidade dos celtas e germanos

FITZPATRICK, A. – Les druides en Grande-Bretagne. Guichard & Perrins eds.


Londres, 2000.
GIRARD, R – A violência e o sagrado. Ed. Unesp. São Paulo, 1990
GREEN, M. – “Introduction: who where the Celts ?” in GREEN, M. (org) – The
Celtic world. Ed. Routledge. Londres, 1996, pp.3-7
__________ - The world of the druids. Thames and Hudson. Londres, 1997.
_________ - Dying for the gods – human sacrifice in Iron Age and Roman Euro-
pe. Tempus. Gloucestershire, 2002.
HATT, J.J. – Mythes et dieux de la Gaule. Ed. Picard. Paris, 1989.
HINGLEY, R. – Globalizing Roman culture – unity, diversity and empire. Rou-
tledge. Londres, 2005.
JAMES, S. – Exploring the world of the Celts. Thames and Hudson. Londres,
1998

________ - The atlantic Celts: ancient people or modern invention. University of


Wisconsin Press. Madison, 1999
MÉNIEL, P. – Les sacrifices d’animaux chez les gaulois. Editions Errance, 1992.
RENFREW, C. – “Peer polity interaction and socio-political change” in Preucel,
R. e Hodder, I (ed.) - Contemporary Archaeology in Theory. Blackwell Publi-
shers. Oxford, Cambridge, 1996, pp. 114-142,
ROSS, A. – “Ritual and the druids” in GREEN, M. (org) – The Celtic world. Ed.
Routledge. Londres, 1996, pp.423-444.
WAIT, G. – “Burial and the underworld” in GREEN, M. (org) – The Celtic
world. Ed. Routledge. Londres, 1996, pp. 489-511.
WEBSTER, J. – “Sanctuaries and sacred places” in GREEN, M. (org) – The Cel-
tic world. Ed. Routledge. Londres, 1996, pp.445-464.

– 41 –
A religiosidade dos celtas e germanos

OPPIDA CELTIBÉRICOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS AS-


SENTAMENTOS PRÉ-ROMANOS NA PENÍNSULA IBÉRICA
Irmina Doneux Santos (doutoranda, MAE-USP)

Segundo Díaz-Andreu & Keay (1997: 1), a arqueologia ibérica, entre os


anos 1920 e 1970, enfatizou a acumulação de dados e a construção de “cultu-
ras” arqueológicas, uma imposição das ditaduras franquista e salazarista. No
final dos anos 1960, novos estudos, especialmente os de Gordon Childe, com
suas idéias marxistas e concepção de história, “levaram à fundação de escolas
histórico-materialistas que tiveram um papel importante nas interpretações da
arqueologia na Península Ibérica”. Por razões que não são claras, abordagens ar-
queológicas pós-processuais não são populares entre os acadêmicos espanhóis
e portugueses. Para Díaz-Andreu & Keay, um resquício das ditaduras (idem:
2-3). Seja como for, o fato é que, ao ler artigos e trabalhos arqueológicos, per-
cebe-se uma ênfase no acúmulo de dados e informações, na sua catalogação e
tipologia, mas nem sempre sua análise e interpretação são satisfatórias. Maria
Manuela dos Reis Martins (1997: 143 ss.) afirma, por exemplo, que há uma
tradição centenária no estudo dos castros do noroeste de Portugal, iniciada por
Martins Sarmento, que ainda é muito influente. Mas os dados arqueológicos já
são suficientes para superar a visão histórico-cultural clássica que tem sido uti-
lizada para construir a evolução cultural do noroeste ibérico no I milênio a.C.
(ainda utilizada por Silva 1986 e Fabião 1992?). Para Martins, a abordagem de
S. O. Jorge do Bronze Final da região supera essa visão clássica.3
Martins propõe “uma leitura alternativa da dinâmica cultural” para o no-
roeste de Portugal no I milênio a.C., pois seria preciso adotar uma perspectiva
crítica. Motivos: 1) a falta de dados empíricos para a região; 2) também porque
a racionalização dos processos de continuidade e mudança é sempre limitada
pelo caráter relativo e truncado dos dados arqueológicos; e 3) porque os fenô-
menos que formam o objeto de uma análise em um determinado momento no
tempo têm sido selecionados subjetivamente (op. cit. 143-4).
Na visão tradicional (op. cit.: 144 ss.), o noroeste de Portugal forma uma

3 A autora cita diversos artigos de Jorge, entre eles "Pré-história, IV. Desenvol-
vimento da hierarquização social e da metalurgia", in J. Alarcão (ed.), Nova História de
Portugal, I: 163-251, Lisboa: Presença, 1990.

– 42 –
A religiosidade dos celtas e germanos

unidade geográfica, com uma homogeneidade cultural no I milênio a.C.: a Cul-


tura Castreja; mas é possível detectar diferentes ritmos de desenvolvimento e
expressões culturais sub-regionais.
Na perspectiva histórico-cultural que tem sido utilizada, a definição da
chamada “Cultura Castreja do noroeste ibérico” apóia-se em um tipo de as-
sentamento característico nessa área, os castros.4 Seria uma “cultura” unifor-
me com influência “celta” (étnica e cultural) na população. E uma das fases
principais de sua evolução seria a propiciada pelas migrações indo-européias,
estabelecendo a cronologia evolutiva dos castros e da cultura de todo o milênio,
quando surgem os assentamentos fortificados oriundos da instabilidade causa-
da pelas invasões celtas (também responsáveis pela introdução do ferro).5 Po-
rém, análises posteriores propiciaram um modelo cronológico mais sofisticado:
expressões internas dessa “cultura”, como as fortificações, juntamente com as
premissas das influências celtas e hallstatianas, e eventos associados com a con-
quista romana. “Este modelo está implícito em todas as propostas cronológicas
elaboradas mesmo durante os anos 70 e 80, com novos dados empíricos sendo
acrescentados assim que se tornam disponíveis” (op. cit. 145).6
Já Maluquer de Motes (1973), dentro de uma perspectiva funcionalista,
vê a Cultura Castreja como o resultado de um processo cultural local, repre-
sentando uma adaptação particularmente bem-sucedida ao ambiente regional,
como um resultado de um processo cultural interno (Maluquer de Motes 1975:
269-84). “Entretanto, no final, sua proposta cronológica foi estabelecida com
referência a eventos culturais externos, como a queda de Tartessos, a expansão
celta para o noroeste (c. 500 a.C.) e a campanha de Décimo Júnio Bruto (138-
136 a.C.). Esta interpretação tornou-se amplamente aceita (Acuña Castroviejo
1977: 249; Tranoy 1981: 77; Silva 1986)” (Martins 1997: 145).
Na sua “visão alternativa” (op.cit.: 146-151), Martins analisa as alterações

4 Castro significando assentamento fortificado.


5 Segundo Martins, "a cronologia para o I milênio a.C. para toda a Europa foi
construída sobre um esquema histórico, com referência a fontes literárias e pela adoção de
uma perspectiva étnica e regionalista. Esta visão tem sido questionada apenas recentemen-
te (Pereira Menault 1992)". Na nota 6, p. 153.
6 Exceção: C. A. F. Almeida (1983), Cultura castreja. Evolução e problemática. In:
Arqueologia 8: 70-4, Porto: GEAP, que propõe um modelo baseado no desenvolvimento
interno da cultura.

– 43 –
A religiosidade dos celtas e germanos

sofridas na região noroeste durante o I milênio a.C. Nos séculos VII e VI a.C.,
há uma primeira mudança, com uma maior exploração da agricultura nos vales
com a criação de castros não-defensivos, mas visualmente delimitadores. No
século II a.C., há uma nova mudança, não causada por incursão romana, mas
por intensificação econômica interna. A autora expõe a segunda fase evolutiva,
demonstrando que não foi uma evolução apenas gerada por fatores externos,
mas dividida em pelo menos duas fases de mudança principais até a conquista
romana e que estas foram propiciadas, principalmente, por fatores internos.
Novas tentativas de interpretação são, portanto, válidas e oportunas, tendo
como base os dados já levantados e compilados (e também já interpretados)
para a Península Ibérica. Porém, não podemos esquecer que, como lembra
Martins (op. cit.: 152), “os conceitos de continuidade e mudança são relativos
e dependem da evidência, ou variáveis, disponível, que pode ser usada para
ler os processos culturais”. É preciso questionar-se sobre quais mudanças sig-
nificativas podem ser observadas quando se consideram longos períodos de
tempo e que importância pode ser atribuída a elas. “Na verdade, mudanças
só podem ser detectadas uma vez que estejam presentes” (idem). Considerando
que os artefatos nem sempre mudam em conexão com as demais transforma-
ções culturais, o pesquisador precisa buscar outros indicadores, tais como pa-
drões de assentamento, mobilidade e as estratégias de exploração de território,
que “tornam claro que mudanças sociais acontecem em um ritmo diferente do
que a dos artefatos portáveis. As mudanças sociais ocorrem mais lentamente,
uma vez que respondem à estabilização das comunidades no espaço, à explora-
ção dos recursos disponíveis e a coações ideológicas. […] Qualquer leitura de
continuidade e mudança é sempre arbitrária quando baseada em raciocínios
contingentes. Isto resulta da nossa inabilidade em lidar com profundidade de
tempos sociais diferentes e seus múltiplos significados, durante os quais comu-
nidades constroem suas vidas” (idem).
A breve análise do estudo de Martins é apenas um exemplo da complexi-
dade regional da Península Ibérica e dos problemas metodológicos existentes.
Tal complexidade aconselha que se faça um corte geográfico para um estudo
mais profundo. Um exemplo deste tipo de estudo é realizado em Tongóbriga,
pela Brown University, com a colaboração dos Drs. Vagner C. Porto e Silvana
Trombetta, doutores do MAE 7.

7 Os drs. Vagner Carvalheiro Porto e Silvana Trombetta participaram de escava-

– 44 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Arqueologicamente e historiograficamente, as cidades romanas são per-


cebidas, acima de tudo, como diferentes do grande número de assentamentos
centralizados pré-romanos na Ibéria.8 Também são entendidas como causado-
ras da mudança cultural ocorrida na Península Ibérica após o século II a.C.
Mas, segundo Keay (1997: 194 ss.), não se costuma dar ênfase, nos estudos, à
sua gênese. O período crucial de seu desenvolvimento é o século II e I a.C., se-
gundo as fontes literárias. Mas, “arqueologicamente, estruturas romanas iden-
tificáveis são raras [neste momento] e grande parte da evidência arqueológi-
ca para este período revela pouco mais do que continuidade de ocupação em
assentamentos nativos. Para muitos, a evidência arqueológica para as cidades
romanas apenas possui valor de estudo quando é óbvia e lugar-comum, ou seja,
a partir do período augustano em diante” (op. cit. 194). E, mesmo assim, faz-se
praticamente apenas a descrição do plano urbano e dos edifícios individuais, e
não os seus surgimentos.
Se as cidades romanas se desenvolveram, sobretudo, a partir da segunda
metade do século I a.C., examinar o desenvolvimento delas e, por implicação,
a mudança cultural, exige que se estude a sua evolução por alguns séculos (até,
talvez, o seu declínio populacional e/ou construtivo). Podemos tomar o exem-
plo de Tarraco (Tarragona), a capital da província da Terraconense. Tarraco
(ainda segundo Keay: 197 ss.) já era um significativo assentamento pré-romano
e foi uma importante cidade no período republicano. Porém, pouco sabemos
sobre ela neste período; talvez tivesse um fórum na parte baixa. No período
imperial, Tarraco sofre uma grande transformação, com a construção de todo
um centro monumental. Para Keay, essas transformações urbanas, financiadas
pela elite local, permitem que a “Tarraco imperial possa ser ‘lida’ como um
mapa cognitivo condicionado pela percepção da elite local dos ideais políticos
e religiosos de Augusto e seus sucessores” (op. cit. 204). Tarraco demonstra,
arqueologicamente, uma ruptura com as tradições sociais passadas; mas, ao
mesmo tempo, há uma continuidade das elites dominantes. Há um reforço da
legitimação do status das elites locais.9

ções, sob a direção do Dr. Rolf Winkes, do Center for Old Archaeology and Art, da Brown
University, EUA.
8 E são geralmente aceitas como a marca mais característica do período romano
nas províncias ocidentais.
9 Para Keay, as elites locais foram o principal ímpeto por trás das grandes cons-
truções provinciais, e não os imperadores: "Transformação urbana em um momento de

– 45 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Embora apareçam para nós como inalterados ao longo de tempo, como


estáticos, os monumentos – edifícios, espaços públicos, inscrições, estátuas etc.
– foram sempre se alterando ao longo dos séculos I a V d.C. em Tarraco. De
fato, há mudança dentro de um contexto de continuidade.

A questão da definição de oppida


Os oppida gauleses são considerados as proto-cidades celtas dos séculos II
e I a.C. Mas as civitates10 gaulesas não possuíam uma só forma de povoação. Na
verdade, o oppidum era apenas uma das formas de assentamento encontra-
da.11 Como na Gália, na Ibéria também existiam outros tipos de assentamentos
convivendo com os oppida.
A conquista romana da Península Ibérica ocorreu na esteira da II Guerra
Púnica, quando Roma começa a tomar medidas para assegurar o controle e a
exploração dos territórios conquistados da Hispânia. Era o momento em que
Roma expandia seu domínio militar e político englobando praticamente todo
o mundo mediterrâneo, tanto a Ocidente quanto a Oriente (os reinos helenísti-
cos), por volta de 220 a.C. Mas, enquanto para o Oriente há fontes literárias não

mudança política assegurava continuidade social” (p. 195). Mas também fala de uma "não-
romanização", ou não-aceitação – vista na cultura material –, dos elementos sociais não
dominantes (da população em geral).
10 Por civitates, na Gália Central, pode-se entender uma série de pequenos Esta-
dos, cada um deles com pelo menos um local central, ou oppidum, centros administra-
tivos, geralmente fortificados, de cada território, abrigando uma população permanente
não-agrícola e um local de atividades produtivas especializadas para consumo tanto local
quanto para o comércio de longa distância. Algumas civitates parecem ter possuído cen-
tros de comércio especializados em acréscimo aos locais centrais (Colin Haselgrove 1986:
108).
11 Na literatura historiográfica francofônica (principalmente), todos os assen-
tamentos que não oppida são denominados "agglomérations secondaires", literalmente,
"aglomerações secundárias". Mas esta tradução não exprime exatamente o significado de
"agglomération" – uma comunidade culturalmente organizada – denotando um sentido de
"falta de organização" sócio-política e cultural. Por isso, uma tradução mais correta seria
"assentamentos", "comunidades" ou "povoados secundários". E “secundários” simples-
mente pelo fato de não serem as capitais das civitates, mas centros de dimensões menores,
de "importância secundária".

– 46 –
A religiosidade dos celtas e germanos

romanas, para os territórios ocidentais as fontes são praticamente todas ar-


queológicas (construções militares, habitações, artefatos etc.) 12 (Astin 2000: 1).
Na Europa Central, nos locais onde houve grande crescimento econômico
por volta do século II a.C. e que, por isso, eram mais densamente ocupados,
houve a difusão de um novo padrão de assentamento, com sítios freqüente-
mente defensivos, descritos por César como cidades: os oppida. Embora haja
considerável variação local na forma precisa e na localização desses sítios, eles
atuavam como centros locais, de produção especializada e trocas. Foi adotado
um sistema de escrita e havia uma padronização de pesos e medidas na Eu-
ropa Central e Ocidental. A partir do século III a.C., a cunhagem começou a
ser amplamente utilizada e, no início do século I a.C., moedas de baixo valor
estavam se tornando comuns e eram particularmente associadas a novos sítios
urbanos, tendo um papel significativo na facilitação do comércio (Champion
& Champion 1985: 64).
Embora a evidência histórica seja importante no estudo das sociedades
européias no momento imediatamente anterior à conquista romana, com rela-
ção à Península Ibérica há muito menos relatos que para a Gália.13
No caso da Ibéria, porém, os relatos de Políbio (a fonte principal) e
Posidônio se concentram no período entre o século IV e final do II a.C., e não
mencionam instituições políticas centralizadas. Portanto, as informações de
que dispomos vêm, sobretudo, das fontes arqueológicas e, segundo Almagro-
Gorbea (1994), do estudo comparativo com as comunidades regionais da Alta
Idade Média ibérica. César, para as Gálias, menciona duas transformações im-
portantes nas organizações políticas: a emergência da realeza e sua difusão (se-
gunda metade do século II a.C.) e o surgimento de instituições características
de um Estado (pelo menos na Europa Ocidental, onde as evidências são mais
completas). Os relatos históricos também permitem conhecer a natureza das
relações políticas entre os nobres, dentro de uma mesma comunidade e entre
comunidades. Internamente, o poder estava firmemente nas mãos dos nobres,

12 No caso da Península Ibérica, e do Ocidente romano em geral, segundo Astin,


as fontes arqueológicas de origem romana são mais facilmente identificáveis e analisáveis,
pois não sofrem a interferência de povos com aspectos construtivos muito semelhantes aos
romanos, como no Oriente helenístico.
13 Para a Gália, o relato mais importante, fundamental, é o de Júlio César, De Bello
Gallico.

– 47 –
A religiosidade dos celtas e germanos

e havia luta política entre eles. A atitude adotada com relação a Roma era uma
forma conveniente de estabelecer dissensões e rivalidades, havendo facções pró
ou contra os romanos. Neste ponto, há relatos também para os ibéricos de fac-
ções pró e contra os romanos.
O surgimento dos oppida na Europa continental e na Britânia não é
cronologicamente homogêneo, como também não houve um motivo comum
para seu surgimento. O fator principal, para muitos sítios e áreas, foi a defesa
e a concentração da população em um sítio defensivo, mas não para todos.
Existem sítios abertos na Gália e no sul da Germânia que precedem os oppida
defensivos, e mesmo alguns oppida gauleses, como Villeneuve-Saint-Germain,
não possuem uma situação defensiva ideal. De qualquer modo, a organização
política e econômica necessárias para fundar um sítio dessa natureza implica
uma organização tribal desenvolvida capaz de sustentar assentamentos urba-
nos mesmo antes de eles estarem estabelecidos. O contato com o Mediterrâneo
também influenciou o incremento da produção que, por sua vez, estimulou o
crescimento dos contatos comerciais com o Mediterrâneo, tornando-se tam-
bém outro fator para a urbanização (Collis 1996: 170ss).
Embora Collis afirme que a emergência dos oppida tenha desencade-
ado certamente uma reestruturação do território em função da nova divisão,
acredito que uma nova estruturação da sociedade e do território é que tenha
levado ao surgimento de oppida em primeiro lugar. Conhece-se, entretanto,
muito mal este aspecto da evolução do hábitat celta. De todo modo, nos séculos
II e I a.C., os oppida surgiram como uma mudança fundamental no modelo de
assentamento na Europa transalpina. Nos séculos imediatamente anteriores, a
regra, em grande parte da Europa, eram as pequenas comunidades ou aldeias
agrícolas, “e mesmo as fortalezas14 eram um fenômeno raro, limitado, sobretu-
do, à Costa Atlântica da Bretanha e da Inglaterra ocidental” (Collis 1996: 36).
Porém, diferentemente do que afirma Collis, segundo Almagro-Gor-
bea (1994), os castros eram o principal tipo de assentamento no noroeste da
Península Ibérica, sendo muito comuns mesmo após a conquista romana. Os
primeiros oppida apareceram no La Tène C2 (entre 200 e 140 a.C.) (Collis 1989:
20-1), data corroborada por Almagro-Gorbea (1994: 26). Veremos logo mais
que há um conflito na definição dos termos oppidum, hillfort e castro entre os
autores ibéricos e os ingleses e franceses.

14 Castellieri, em italiano; hillforts, em inglês; e castros, em português e espanhol.

– 48 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Não há dúvidas de que os celtas, tanto da Gália Central como os Ibéri-


cos, conheciam cidades nos moldes gregos clássicos no século II a.C. Entretan-
to, se para os oppida do sul da Gália pode-se falar em influência principalmente
arquitetônica, “para os oppida da Europa temperada a influência diz respeito,
sobretudo, ao fenômeno de estruturação do território, à existência de um sítio
central que controla política e economicamente uma vasta região” (Collis 1989:
21). Fichtl considera o oppidum do fim do período celta como a última evolu-
ção de um tipo de hábitat tradicional no mundo não-mediterrâneo (os sítios
fortificados de altitude da Idade do Bronze e da época de Hallstatt), mas difere
deles profundamente por seu tamanho e, sobretudo, sua função (2005: 33-4).
Neste ponto, a opinião de Fichtl assemelha-se à de Almagro-Gorbea (1994)
para a Península Ibérica: o tamanho é fundamental na identificação de um sítio
como oppidum e não como castro, que seria o tipo de assentamento anterior
que teria evoluído até virar um oppidum.
De forma geral,
O termo oppidum abrange uma ampla série de diferentes
tipos de assentamentos defensivos, muito variáveis em tamanho,
caráter de ocupação e, presumivelmente, função. Ele também ex-
clui um número de assentamentos abertos ou sítios parcialmente
defensivos que possuem muitas das características dos oppida, de-
monstrando que, embora a nucleação por razões defensivas fosse
o fator principal nas origens urbanas, fatores econômicos e sociais
também tiveram seu papel; de fato, sem recursos físicos e contro-
le político centralizado, os próprios oppida não poderiam ter sido
fundados (Collis 1996: 159).
O termo oppidum adquiriu, na Arqueologia, um sentido extremamen-
te preciso. Indica a unidade cultural, a norte dos Alpes, espalhada por grande
parte da Europa, das Ilhas Britânicas à Europa Central, durante todos os dois
últimos séculos a.C., no fim da Idade do Ferro, com semelhanças que podem
ser atribuídas à civilização celta. Atualmente, utiliza-se o termo oppidum para
designar os assentamentos proto-históricos fortificados da Idade do Ferro, não
importando seu tamanho e sua data (também é empregado algumas vezes para
designar as fortalezas hallstattianas). Mas o termo também é utilizado de uma
maneira estrita, limitando-se ao contexto específico da cultura de tipo urbano
dos celtas dos séculos II e I a.C.
Para Fichtl, a organização territorial em civitates gaulesas também es-

– 49 –
A religiosidade dos celtas e germanos

tava relacionada à noção de pagus15. Santuários aparecem, no século II e I a.C.,


e na época galo-romana, como centros de pagi (como Gournay-sur-Aronde,
Oise). Também havia santuários regionais, como o de Ribemont-sur-Ancre
(Somme), que funcionava para várias civitates. “A longevidade de funciona-
mento de tais santuários é acompanhada certamente de uma estabilidade na
ocupação do território. O oppidum encontra, assim, seu lugar em uma evolução
interna do mundo celta; ele se apóia, sem dúvida, em um tipo de sítio ainda
familiar, mas transposto para uma realidade diferente” (Fichtl 2005: 35). Por-
tanto, outro tipo de assentamento secundário é associado, na Gália, a locais de
culto como, por exemplo, o de Nuits-Saint-Georges, na Burgundia (Collis 1996:
167-8). Os santuários galo-romanos são denominados Fana.16 Em Portugal,
também existiam fana, como as ruínas denominadas “Centum Cellas”.17 Não
encontrei, para a Península Ibérica, santuários como centros de pagi, mas não
sei se não existem, se não há estudos ou, simplesmente, ainda não encontrei
esses estudos. Embora Almagro-Gorbea (1994) foque seu trabalho em castros e
oppida (estabelecendo uma diferenciação entre eles, sobretudo evolutiva), não
deixa de mencionar a existência de assentamentos menores, secundários.
Atualmente, os especialistas tendem a aceitar a existência, para a maior
parte dos povos da Comata no período La Tène final, de pelo menos um oppi-
dum com funções de “capital”, centro administrativo e político principal, mas
talvez com um papel menos proeminente que o das capitais do mundo me-
diterrâneo (segundo Bedon 1999: 44-5, citando diversos autores, entre eles J.
Collis, M. Vidal, P.-M. Duval e E. Frézouls). Parece que o mesmo se dá na Pe-
nínsula Ibérica.

15 Pagus, -i, cantão, território rural, distrito.


16 O fanum galo-romano foi estudado na dissertação de mestrado de Tatiana Bina,
defendida no segundo semestre de 2008, no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.
17 Embora a arqueóloga Tatiana Bina não concorde que Centum Cellas tenha sido
um fanum.

– 50 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Os assentamentos celtas na Península Ibérica

Para Almagro-Gorbea (1994), houve uma evolução, na Hispânia Celta,


de castros para oppida. Essa evolução “é essencial para analisar sua economia,
sociedade e ideologia, por ser resultado da interação sociedade/meio natural
de uma sociedade agro-pastoril e guerreira, o que explica seus elementos co-
muns dentro das lógicas diferenças geográficas. Derivam de um antigo subs-
trato “proto-celta” do Bronze Final que, no I milênio a.C., evoluiu em culturas
proto-urbanas [com influências mediterrâneas indiretas advindas através de
turdetanos e ibéricos], dando lugar, logo antes do século III a.C., ao surgimento
de oppida e civitates que controlavam um amplo território como centro de uma
sociedade cada vez mais complexa. Mas o interesse nessas tradições [urbanís-
ticas pré-romanas] é que adaptaram as formas da paisagem, do hábitat e os
costumes que perduraram na cultura popular até a atualidade, especialmente
em áreas montanhosas e zonas marginais da Meseta” (op. cit. 13).18
Para o autor, Castro – palavra originária de castrum (ou castellum) –
designa “os pequenos povoados fortificados em altura de fácil defesa” (op. cit.
14-5). Termo empregado habitualmente na Galícia e nas Astúrias, designa a
“Cultura Castreja”, e estendeu-se para os povoados elevados de Portugal, Estre-
madura e das zonas montanhosas da Meseta. Porém, “esta generalização gerou
um uso equivocado na Arqueologia, pois com o mesmo sentido podia também
ser empregado no Vale do Ebro, no noroeste e em outras áreas da Península
Ibérica para povoados similares, como os Campos de Urna do nordeste ou o
mundo ibérico” (op. cit. 15). Além disso, “castro” não é apenas uma concepção
urbanística, mas engloba elementos culturais, econômicos, sociais e ideológi-

18 Na versão em inglês do resumo do texto espanhol de Almagro-Gorbea há algu-


mas "traduções" que vale a pena assinalar. O "castro", na versão castelhana, evoluiu para
oppida; na inglesa, "castro" torna-se sinônimo de hillfort, e não cita os oppida. Também
aparecem como sinônimos proto-histórico e Iron Age. Pessoalmente, prefiro me ater aos
termos "regionais", ou seja, utilizar o termo hillfort apenas para os povoados fortificados
de altura na Grã-Bretanha no período pré-conquista romana; oppida para os povoados
fortificados da Europa Central e Ocidental nos dois primeiros séculos antes de Cristo
(principalmente); e castro para os povoados fortificados ibéricos de modo geral no I mi-
lênio a.C., até, aproximadamente (pois depende da região), o século III e II a.C. quando,
segundo Almagro-Gorbea, transformaram-se em oppida.

– 51 –
A religiosidade dos celtas e germanos

cos desses povoados. “Entendido deste modo, pode se considerar que castro
é um povoado situado em um local de fácil defesa, reforçado com muralhas,
muros externos fechados e/ou acidentes naturais, que protege no seu interior
um conjunto de casas de tipo familiar e que controla uma unidade territorial
elementar, com uma organização social escassamente complexa e hierarquiza-
da” (idem).
Esta definição permitiria, para o autor, diferenciar os castros tanto das
fortificações sem habitações diferenciadas (como atalaias19 ou turres ibéricos),
como de populações mais complexas, “do tipo proto-urbano, como os oppi-
da do Mediterrâneo Ocidental ou da Europa central, embora a transição de
castro a oppidum deva ser considerada gradual tanto com relação ao tamanho
superficial quanto no sentido tipológico e cultural”. Os castros são, sobretudo,
elementos de controle territorial, sendo o fator defensivo secundário. Mas só
controla os recursos (meios de produção e comunicações) de um território re-
duzido. É um controle visual sempre que possível. Estão incluídos na definição
povoados com muralhas e casas de adobe em terrenos planos, mas os castros
mais conhecidos situam-se em áreas montanhosas, onde se utiliza pedra local e
outros materiais nas técnicas construtivas (idem).
Almagro-Gorbea, na verdade, diferencia castros e oppida apenas em
razão do seus tamanhos: os menores castros têm menos de 0,2 ha, sendo meros
recintos que vão paulatinamente aumentando seu tamanho até 5 ha (ou até
7 a 10 ha, em alguns grupos), “tamanho a partir do qual já parecem desem-
penhar função de oppidum, por oferecer ruptura do ranking e por ocupar a
escala máxima de hierarquização, correspondendo a centros de territórios com
povoados menores subordinados; mas esta divisão não deixa de ser arbitrária e
exige ser precisada em cada grupo” (op. cit. 16; grifo meu). Ou seja, os castros
vão crescendo até sobrepujarem outros povoados, tornando-se um oppidum,
centro de uma civitas; mas sempre se levando em conta o grupo regional ao
qual pertence.
Se esta caracterização está correta, difere do visto para os oppida gau-
leses, pois não encontrei referência a um povoado murado pré-existente que
foi se desenvolvendo ao longo dos séculos até tornar-se centro-capital regio-
nal. Ao contrário, vários autores (e especialmente Anne Colin 1998) dizem que
houve mais de um período de construções de oppida, e eram ocupados apenas

19 Atalaya, atalaia, é uma torre ou lugar de vigia.

– 52 –
A religiosidade dos celtas e germanos

durante algumas gerações, raramente chegando a um século. Quanto à divisão


territorial (civitas), ela era étnica, não particularmente hierárquica, apesar de
haver uma hierarquização dentro de cada etnia.20
Nos oppida celtibéricos, a característica que mais se destaca, compa-
rando com o urbanismo de tipo romano, é a falta de um espaço central público,
de uma praça, onde se desenvolvem as principais atividades religiosas, políticas
e administrativas da comunidade. Ou seja, um “fórum” ou uma estrutura que
acolha pelo menos algumas de suas funções. Inclusive, isto parece ser também
válido para as cidades cartaginesas: não havia, até onde se sabe (e o principal
exemplo é a própria Cartago), um espaço livre comum para que a população se
reunisse para exercer atividades políticas e/ou religiosas.
Nesse sistema de urbanização ibérico, o espaço central respondia à ne-
cessidade de guardar rebanhos, sem excluir outras atividades, mas supõe uma
primeira organização planificada dos castros, otimizando a utilização do espa-
ço interno ao introduzir a casa quadrada. Também supõe um melhor aproveita-
mento do sistema defensivo, “o que explica sua crescente difusão para ocidente”.
Não demonstram a existência de estruturas públicas nem diferenciação social
das moradias. “Mas as profundas mudanças na forma e organização interna
das casas indicam uma acentuada transformação da vida doméstica e social”. A
casa retangular torna-se cada vez mais comum, substituindo paulatinamente a
redonda, embora o aparecimento da casa retangular isolada pareça ser anterior
e independente da introdução do “povoado fechado”. “Quanto mais a ocidente
e a norte, as casas redondas e/ou isoladas tenderam a perdurar mais, especial-
mente na Cultura Castreja do noroeste, onde não chegou a se introduzir o “po-
voado fechado” e onde a casa quadrada, isolada, somente se generalizou a partir
de época romana, tendo perdurado as moradias circulares em áreas marginais
até nossos dias” (Almagro-Gorbea 1994: 22-26).
Para Almagro-Gorbea, na Fase Final (a partir do século III a.C.), em-
bora se conservem castros como povoações subordinadas ou em áreas margi-
nais, o tipo essencial de povoamento na Hispânia Celta passa a ser o oppidum.
Arqueologicamente, “o oppidum é um povoado fortificado, geralmente situada
em local elevado, de tamanho relativamente grande, ainda que possa ser infe-
rior a 10 ha. em alguns casos, mas sempre se destacando sobre as demais ao seu

20 Ver, para uma discussão mais aprofundada: Santos 2007, especialmente Capítu-
lo 1, “A Gallia Comata e os Oppida Gauleses”.

– 53 –
A religiosidade dos celtas e germanos

entorno, pois o essencial é que controle um território amplo e hierarquizado,


do qual é o centro político e administrativo. Por isso, pode-se considerar na Pe-
nínsula Ibérica uma teórica Cultura dos Oppida, de desenvolvimento compa-
rável e, em certo modo, paralelo ao assinalado na Europa Central” (op. cit.: 26).
Conceitualmente, para Almagro-Gorbea, o termo oppidum latino re-
fere-se a um espaço fortificado, mas sem uma precisão de tamanho. Porém,
oppidum, em latim, como utilizado por César, refere-se a “cidade”, não especi-
ficamente fortificada. Toponimicamente equivale, continua o autor, no mun-
do celta hispânico, aos nomes terminados em -briga. O topônimo -briga, que
parece estar associado a hábitats importantes e em altura, era tão importante
ideologicamente que permaneceu até época flávia. “Do ponto de vista social,
tais povoados equivaleriam a verdadeiras cidades, independentemente de que
tivessem regime municipal romano ou não, pois assim o indicam os testemu-
nhos históricos e arqueológicos” (op. cit. 30).
Conclusão

O que se pode concluir de todo este debate sobre castros, oppida e cidades
romanas na Península Ibérica é que, apesar dos avanços nas pesquisas, nada
está definitivamente estabelecido, ou definido. Várias questões permanecem.
Não podemos negar a existência de certo retardamento nas pesquisas e nas
conclusões ocasionado pela influência política peninsular no século XX. Trig-
ger (2004: 122 ss.) nos alerta que, na formação dos estados nacionais europeus
do século XIX, foram utilizados símbolos específicos de identidades. Isto foi
válido, também, para Portugal e Espanha, no século XX. A utilização político-
ideológica do passado cria manipulações arqueológicas na construção de nar-
rativas nacionais. Fowler (2008: 94) afirma que “o passado [é] utilizado como
recurso simbólico”. Para os pesquisadores que trabalham de forma competente
e ética em ciências sociais, a afirmação de Fowler não é novidade. Todo historia-
dor sabe – ou deveria saber – que grande parte da historiografia foi elaborada
pelos vencedores e a busca pela “história dos vencidos” é muito recente, uma
possibilidade que apareceu concretamente com o marxismo. Fowler deve, então,
ser visto, sobretudo, como uma advertência para que não esqueçamos a força
ideológica, legitimadora, que tem o passado reconstruído, especialmente quando
utilizado por grupos de interesse que estão no poder.

Felizmente, nas últimas duas décadas, houve um incremento significativo


nas pesquisas arqueológicas na Península Ibérica, com o trabalho sendo reali-
zado não apenas por ibéricos, mas por pesquisadores de linhas teóricas anglo-

– 54 –
A religiosidade dos celtas e germanos

saxônicas. Arqueologicamente, isto significa a introdução de novas idéias, teo-


rias e métodos, no universo luso-espanhol.
Acredito que avanços no nosso conhecimento sobre castros e oppida (e
cidades romanas, em um segundo momento) da Península Ibérica só poderão
surgir com pesquisas arqueológicas, uma vez que, para esta região, há grande
carência de textos clássicos. Na verdade, não é possível, no atual estágio alcan-
çado pela arqueologia na Europa, considerar qualquer estudo da História21 (no
seu sentido amplo) dos povos mediterrâneos e europeus sem uma conjunção
de história e arqueologia.
No caso dos celtibéricos, para discutir a manutenção e a transformação
das suas características com a conquista romana, no contexto da urbanização,
é fundamental verificar arqueologicamente os tipos de assentamentos ibéri-
cos que existiam, antes e durante a dominação e, especialmente, suas trans-
formações, incluindo as diferenças regionais. É um trabalho que apresentará
dificuldades não apenas pela escassez do registro arqueológico (ou melhor, pelo
tamanho do que ainda está para ser pesquisado), mas também porque assenta-
mentos como oppida, castros, vici etc. são de difícil identificação, classificação e
definição, e não eram homogêneos nem regionalmente nem cronologicamente.
Mas tal dificuldade deve ser vista como estímulo, e não apenas como obs-
táculos à pesquisa.

21 Quando utilizo a maiúscula em História, refiro-me não à disciplina história,


mas à noção mais ampla de História como “passado humano”.

– 55 –
A religiosidade dos celtas e germanos

BIBLIOGRAFIA
ALMAGRO-GORBEA, Martín (1994). Urbanismo de la Hispania “Célti-
ca”. Castros y oppida de centro y Occidente de la Península Ibérica. In:
ALMAGRO-GORBEA, Martín & MARTÍN BRAVO, Ana María (eds.).
Castros y Oppida en Extremadura. Madri: Complutense; pp. 13-75.
(Complutum extra 4)
ARRAYÁS MORALES, Isaías (2007). Al voltant de la «romanització» del nord-
est de la Península Ibèrica. Reflexions sobre l’organització territirial i els
fluxos comercials. In: Pyrenae 38/2: 47-72; Barcelona.
ASTIN, A. E. (2000). Cap. 1: Sources. In: ASTIN, A. E. et alii (eds.). Rome and
the Mediterranean to 133 B.C. 2.ed.; 3. reimpr. Cambridge: Cambridge
University Press [1989]: pp. 1-16. (The Cambridge Ancient History; VIII)
BEDON, Robert (1999). Les villes des Trois Gaules de César à Néron dans
leur contexte historique, territorial et politique. [Paris] Picard.
BINA, T. (2008). Os Fana no contexto galo-romano. Dissertação de Mestrado.
São Paulo: Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo (MAE-USP).
CÉSAR, Caius Julius (2003). Guerre des Gaules. Préface de Paul-Marie Duval;
traduction de L.-A. Constans. S/l; Gallimard (para o prefácio, a biblio-
grafia e os mapas; 1981); Les Belles Lettres (para a tradução francesa e
as notas; 1950). (Folio Classique: 1315)
CHAMPION, Timothy & CHAMPION, Sara (1986). Peer Polity Interaction
in the European Iron Age. In: RENFREW, Colin & CHERRY, John F.
(eds.). Peer Polity Interaction and Socio-Political Change. Cambridge:
Cambridge University Press. p. 59-68. (New Directions in Archaeology)
COLIN, Anne (1998) – Chronologie des oppida de la Gaule non méditerra-
néenne. Contribution à l’étude des habitats de la fin de l’âge du Fer. Paris:
Édition de la Maison des sciences de l’Homme. (DAF, Documents
d’Archéologie française; 71)
COLLIS, John (1996) – The First Towns. In: GREEN, Miranda J. (ed.) The Cel-
tic World. Londres e Nova York: Routledge [1 ed. 1995]. p. 159-175.
DÍAZ-ANDREU, M. & KEAY, S. (eds.) (1997). The Archaeology of Iberia. Lon-
dres: Routledge.
FABIÃO, C. (1992?). O passado proto-histórico romano. In: MATTOSO, José
(dir.) (s/d). Antes de Portugal. S/l: Editorial Estampa. (História de Por-

– 56 –
A religiosidade dos celtas e germanos

tugal; vol. I)
FICHTL, Stephan (2005). La Ville Celtique. Les oppida de 150 av. J.-C. à 15
ap. J.-C. 2. éd. Revue et augmentée. Paris: Errance.
FOWLER, D. D. (2008). “Archaeology in the service of the State”. In: MUR-
RAY, T. & EVANS, C. Histories of Archaeology. Oxford: Oxford Uni-
versity Press.
HASELGROVE, Colin (1986). Culture process on the periphery: Belgic Gaul
and Rome during the late Republic and early Empire. In: RENFREW,
Colin & CHERRY, John F. (eds.). Peer Polity Interation and Socio-Poli-
tical Change. Cambridge: Cambridge University Press; (New Directions
in Archaeolgy)
KEAY, Simon (1997). Urban transformation and cultural change. In: DIAZ-
ANDREU, Margarita & KEAY, Simon (eds.) The Archaeology of Iberia.
The dynamics of change. Londres e Nova York: Routledge; pp. 192-209.
(Theoretical Archaeology Group-TAG)
MALUQUER DE MOTES, J. (1973). La originalidad de la cultura castreña. In:
Trabalhos de Antropologia e Etnologia 22, 3: 335-42, Porto: SPAC.
MALUQUER DE MOTES, J. (1975). La cultura castreña de la Edad del Hierro.
In: I Jornadas de Metodología Aplicada a las Ciências Históricas 1: 269-
84: Madri: Dirección General de Bellas Artes y Archivos.
MARTINS, Maria Manuela dos Reis (1997). The Dynamics of change in nor-
thwest Portugal during the first millennium BC. In: DIAZ-ANDREU,
Margarita & KEAY, Simon (eds.) The Archaeology of Iberia. The dyna-
mics of change. Londres e Nova York: Routledge; pp. 143-157. (Theoretical
Archaeology Group-TAG)
SANTOS, Irmina Doneux (2006). A Basilica como elemento de urbanização
na Galia Comata no período de dominação romana. Dissertação de
mestrado; MAE-USP.
SILVA, Armando Coelho F. da (1986). A Cultura Castreja no Noroeste de Por-
tugal. Paços de Ferreira.
TRIGGER, Bruce G. (2004). História do Pensamento Arqueológico. Trad. Or-
dep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus Editora. [A history of archaeo-
logical thought. Cambridge University Press]

– 57 –
A religiosidade dos celtas e germanos

MITOLOGIA E RELIGIOSIDADE CELTA: PROPOSTA DE INTERPRE-


TAÇÃO A PARTIR DO PENSAMENTO DE CARL GUSTAV JUNG

Profa. Dra. Fátima Lobo (Universidade Católica Portuguesa)

Introdução
Nas últimas décadas o pensamento de Karl Gustav Jung tem sido objec-
to de interesse crescente; assim, esta abordagem exploratória parte, do ponto
de vista teórico, do seu pensamento e das suas categorias epistemológicas e
procura analisar a partir do património material e imaterial do Concelho de
Ponte da Barca/ Terras da Nobrega (Briga) a importância da cultura do ponto
de vista psicossocial. Qual a matriz de que o psicólogo deve partir, nas suas
reflexões sobre o Homem, para que a Psicologia, enquanto ciência, seja ciência
do humano? (Miranda Santos, 1961; 1999; 2002; 2005; 2006), eis a questão que
serve de ponto de partida.
Procurar-se-á reflectir, então, sobre a possibilidade de pensar o humano
a partir da iniciativa humana: a História. A perspectiva epistemológica e o pa-
radigma interpretativo é a Historicidade, ou seja, aquilo que (ainda) permanece
da totalidade do que foi feito (Miranda Santos, 2006: 45) e, na base da reflexão
estão as seguintes questões: continuará o homem moderno a ser arcaico nas
camadas mais profundas da sua psique? (Jung, 2000); como aceder às camadas
mais profundas? É possível analisar a psique à margem da História? A vincula-
ção cultural facilita os processos de ajustamento entre as pessoas e as pessoas e
o meio? Esta perspectiva põe em causa o método científico?
A questão da cientificidade foi igualmente colocada por Jung em 1939
no prefácio da obra Psicologia e Religião (1978: 7) e, o autor considera que se
permanece no domínio do método empírico sempre que se observam os fenó-
menos e os dados da experiência, não se procede a considerações metafísicas
e sempre que uma realidade psicológica é partilhada por consensus gentium.
Neste sentido, a mitologia e a religiosidade celta do Concelho de Ponte da Barca
constituem, apenas, uma opção metodológica, a partir da qual se analisará a
herança psicológica comum – inconsciente colectivo.
A Psicologia tem sido marcada por modelos e paradigmas que, no enten-
der de Jung, explicam a psique através de projecções (Jung, 2000) e remissões
para a categoria de acientífica as narrativas que procuram fazer conexões entre

– 58 –
A religiosidade dos celtas e germanos

o inconsciente pessoal/ experiências e impressões individuais e o inconsciente


impessoal/ fantasias mitológicas; por sua vez, Aguirre (2000, p. 109) considera
que se analisa a «conduta humana de forma redutora a partir de ratos e pombas
de laboratório, sem querer saber que o Homem superou o determinismo instin-
tivo, que se pensa como ser biográfico, histórico, intencional e transcendente,
que constrói o mundo e a cosmovisão em que habita e que o seu comportamen-
to não pode ser interpretado à margem da sua realidade simbólica».
Comecemos, então, por admitir que a História, enquanto expressão do
património da humanidade e registo das suas actividades intencionais (Miran-
da Santos, 2002; 2006) constitui o referencial fundante da Psicologia, enquanto
ciência humana e ciência do humano; perspectiva partilhada pela Psicologia
Cultural que associa a cultura ao diálogo científico acerca do comportamento
humano (Jahoda, 1982; Serrano, 1995; Goleman, 2006; Cole, 1996; Aguirre,
2000), recuperando o pensamento de Karl Gustav Jung que em 1918 advertiu
para a necessidade dos pesquisadores da psique se libertarem da psique indi-
vidual e perscrutarem na «história do espírito humano em geral» (Jung, 2000,
p. 31).
A Psicologia constitui-se, então, a partir do acontecer histórico-cultural
e dos seus conteúdos simbólicos; esta perspectiva epistemológica integra a his-
tória de todas as ciências, porque todas as ciências são ciências do homem, para
além da estrutura das sensações e da consciência – Estruturalismo; da Biologia
e da analogia Homem-animal - Funcionalismo; do inconsciente individual e
nas pulsões sexuais – Psicanálise Freudiana; dos comportamentos e estímulos
ambientais – Behaviorismo; da organização perceptiva – Gestaltismo; ou no
mapeamento das funções cerebrais – Neurociências; entre outras. Os conte-
údos, as formas supra-orgânicas que preservam conhecimentos acumulados,
institucionalizados nos mitos, no folclore, nas bibliotecas, em suma na História
e, o pressuposto Junguiano, de que dependemos mais daquilo que imaginamos
e do passado ancestral, do que daquilo que fazemos, das nossas atitudes e do
presente que vivemos, constituem outros pressuposto de partida. Esta opção
metodológica diminui o efeito projectivo, porque através da História acede-
se ao Si-mesmo (Selbst), à «totalidade do homem» (Jung, 1978, p. 87). E Carl
Gustave Jung define-o da seguinte forma: «É primeiro de tudo, o centro da
consciência, o eu. (…). O eu abrange, além disso, uma quantidade enorme de
lembranças. Se de amanhã eu despertasse sem a mínima lembrança, nem se-
quer saberia quem sou (...). Todavia, o elemento essencial parece ser o estado
afectivo» (Jung, 1975, p 119). Lembrança e afectividade, a priori em sentido
kantiano, na medida em que constitui a condição de produção de fantasias

– 59 –
A religiosidade dos celtas e germanos

(Jung, 2000, p. 15); a História constitui a unidade de análise e o lugar do eu, e


a identidade da psique através da qual se manifestam os conteúdos transcul-
turais e a história da humanidade (Henderson, 1964; Jung, 1975; Jung, 1978;
Jung, 2000;). A narrativa histórica revela simultaneamente a forma, o conteúdo
e as sucessivas modificações, desde as épocas remotas em que a parte funda-
mental da vida psíquica aparentemente se situava fora, nos objectos humanos
e não humanos, até à actualidade; ao ocupar-se da psicologia arcaica, ocupa-se
também da psicologia do homem moderno civilizado, porque, «independente-
mente de seu elevado grau de consciência, continua sendo um homem arcaico
nas camadas mais profundas da sua psique. Da mesma forma que nosso corpo
continua sendo o corpo de um mamífero, com toda uma serie de vestígios de
estágios mais primitivos da evolução que remetem a animais de sangue frio,
também nossa psique é produto de um processo evolutivo que, se remontarmos
às origens, manifesta inúmeros traços arcaicos» (Jung, 2000, pp. 53-54).
A natureza do inconsciente não se esgota, portanto, no inconsciente in-
dividual/ pessoal. Há fantasias que não possuem conexão com as experiências
da vida pessoal - fantasias mitológicas -, são a expressão no ser humano para
além de si mesmo e, noutro sentido, da estrutura hereditária do cérebro e do
produto da sua actividade criativa (Jung, 2000) e, se a actividade cerebral conta
a história da humanidade a cultura exerce o seu impacto sobre a actividade
cerebral, é necessário compreender, igualmente, a estrutura hereditária do cé-
rebro que traz consigo toda a «história remotíssima e natural que vem sendo
transmitida de modo vivo desde tempos imemoriais (…). E esta estrutura con-
ta sua história que é a história da humanidade» (Jung, 2000, p. 15); o incons-
ciente colectivo permanece submergido na estrutura do cérebro e conhece o ser
humano para além de si mesmo, conhece-o «como ele sempre foi e não como é
neste momento. Conhece-o como mito» (Jung, 2000, p. 15), isto é, como cone-
xão que não corresponde a qualquer experiência da vida real.

Mito e religiosidade
Os celtas acreditavam em vários deuses, «existem evidências de mais de
360 nomes de deuses no mundo celta, mas só uns vinte são referenciados mais
do que uma vez, entre os quais: Lugos, Cernunnos, Esus, Sequana, Brigantia,
Epona e Matrona» (Cheers, 2003), estes deram origem, em certos casos, a topó-
nimos, principalmente em Portugal, Espanha e Irlanda (Sainero, 2009). A reli-
giosidade panteísta que os caracterizava estava associada às forças da natureza
e aos seus ciclos; adoravam especialmente as Águas e o Sol (Vasconcelos, 1988,

– 60 –
A religiosidade dos celtas e germanos

1989; Ramón Sainero, 1998), cultos considerados tão antigo como a humani-
dade, celebrados de seis em seis meses. Estudos diversos identificam quatro
festividades lunares: Samhain, 1 de Novembro, marca o fim do Verão e coincide
com o dia das Bruxas (Halloween) e com a matança do gado antes do Inverno;
Imbolc, 1 de Fevereiro, pensa-se que incluía rituais centrados nos ovinos e no
leite e representa o início da Primavera; Beltane, 1 de Maio, Belinos o Deus
do Fogo, a data marca o início do Verão e julga-se que animais, especialmente
vacas, eram conduzidos entre dois fogos; Lughnase ou Lugnasad, 1 de Agosto,
marca a festa das colheitas e os rituais centram-se no casamento entre a deusa
da Terra e o deus Sol (Cheers, 2003; Alonso Romero, 2007). A cultura celta,
semelhante do ponto de vista formal, às demais culturas, interroga: a origem
do cosmos – mitos cosmogónicos; dos fenómenos - mitos etiológicos; o fim das
coisas – mitos escatológicos e, a propósito as suas dúvidas, criou narrativas sim-
bólicas (mitos) que se transmitiram pela via oral, se fixaram no inconsciente
impessoal/colectivo, consolidaram na arte e nos rituais e se transformaram em
elemento essencial para o equilíbrio psicológico individual e colectivo. Toman-
do por referência o espaço geográfico com topónimos em Briga (Sainero, 2009),
surge um segundo padrão de natureza cultural: mitologia e religiosidade.
No Concelho de Ponte da Barca/Terras da Nóbrega (Briga), embora
cristianizado, continua a celebrar-se o dia de Samhain; Imbolc, o início da Pri-
mavera é celebrado no dia de Carnaval (Lindoso), queimado o Inverno na figu-
ra alegórica do Pai Velho e exaltada a Primavera na figura alegórica do Carro
Primavera; Beltane, no dia 1 de Maio, celebra-se o Deus do Fogo, o Deus Sol,
estilizado sob a forma de disco solar (Maios) e, no mês de Agosto, a tradição
religiosa celebra no dia 24, S. Bartolomeu, embora a matriz desta festa se man-
tenha profana.
Por sua vez, o Penedo de S. Martinho, localizado a 28 km da cidade de
Braga e a 5 km do Rio Lima, apresenta certas semelhanças com outros altares,
nomeadamente o «Altar rupestre» de Lácara (Almagro-Gorbea & Jiménez-
Ávila, 2000, pp. 423-442) e de Canto Castrejón e com a proposta de análise de
Jiménez Guijarro (Jiménez, 2004, pp. 87-103). Os degraus esculpidos na pedra
são um detalhe morfológico comum ao altar rupestre de Lácara (Almagro-
Gorbea & Jiménez-Ávila, 2000, p. 431) e de Canto Castrjón (Jiménez-Guijarro,
2004, p. 94). Através deles a Terra comunica com o Céu. As escadas dão acesso
ao Céu, ao Céu que foi brutalmente separado da Terra, quando as árvores e as
montanhas foram cortadas e o Céu se tornou longínquo (Eliade, 1990). O altar
constitui, na linguagem de Eliade, o restabelecimento da ligação, o desfrutar da
beatitude, da espontaneidade e da liberdade perdida em consequência da que-

– 61 –
A religiosidade dos celtas e germanos

da22. O altar representa o simbolismo da ascensão, a proximidade aos deuses.


Tal como o Xamã pelo êxtase «restabelece a capacidade de comunicação que
existia in illo tempore entre o Céu e a Terra» (Eliade, 1990, p. 66), a comunida-
de através do ritual de ascensão do altar pétreo têm acesso ao Céu, tal como era
antes da queda. Motivo porque adoram o diabo e os demónio, falam com eles
«no cimo dos montes, e nos bosques frondosos oferecem-lhes sacrifícios e hor-
ram-nos como a Deus» (Martinho, 1803, pp. 243-4). Os altares, segundo M.-L.
von Franz (1964) representam, também, o silêncio, enquanto atitude no pro-
cesso de individuação que conduz ao self, à totalidade da psique (Franz, 1964,
p. 163) e, porque o processo de individuação é pessoal, as diferenças simbólicas
que as culturas expressam não deixam de revelar a especificidade do humano23.
Os deuses da mitologia pré-romana, romana e cristã, convivem com
Neptuno, o deus do mar e das águas entre os romanos e corresponde ao deus
Posídon na mitologia grega, o deus «Sacudidor da Terra» (Homero, 2003, p.
136). Símbolo das qualidades masculinas da força colectiva - iniciativa, co-
ragem, objectividade e sabedoria espiritual (Franz, 1964, p. 194), tal como a
anima constitui a personificação das tendências psicológicas femininas (Franz,
1964, p. 177).
As Ninfas, filhas de Júpiter para a mitologia greco-romana, divindades
dos rios, dos bosques e dos montes, protegiam as crianças no ventre materno,
os produtos da terra, o reino vegetal e animal e, se a ninfa Calipso reteve à
força Ulisses - «Disse ele que vira Ulisses em grande sofrimento numa ilha, no
palácio da ninfa Calipso, que à força lá o retinha» (Homero, 2003, p. 278)- ,
também Vasco da Gama nas viagem de navegação evocava as ninfas do Tejo e
do Mondego.
«Um ramo na mão tinha... Mas, oh, cego
Eu, que cometo insano e temerário,

22 «In illo tempore, naquele tempo paradisíaco, os deuses desciam à Terra e mis-
turavam-se com os humanos: por seu turno, os homens podiam subir ao Céu, escalando
uma montanha, uma árvore, uma liana ou uma escada, ou ainda deixando-se transportar
pelas aves» (Eliade, 1990, p. 61)
23 «Todos os pinheiros são muito parecidos (ou não os reconheceríamos como
pinheiros), e no entanto nenhum é exactamente igual ao outro. (...) O facto é que cada
pessoa tem que realizar algo de diferente, exclusivamente seu». (Franz, 1964, p.164)

– 62 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,


Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo»
(Camões, VII).

Diana, deusa dos bosques, filha de Júpiter, banha-se nas águas cristalinas
das fontes, ama a solidão dos bosques e percorre os planaltos durante a noite,
Diana é a evocação dos montes, dos bosques e das serras24. O poder de sim-
bolizar. Diana está presente nas águas da Fonte Santa de Bravães, nas águas da
Fonte do Leite de S. Tome do Vade e nas águas da Fonte de S. João e nas águas
do Rio Lima; protectora, respectivamente, das doenças do corpo, das doenças
na gravidez e das doenças de amor e do nascimento. Na Idade Média S. Mar-
tinho de Dume referiu-se a estes povos de montanha que adoravam o diabo e
os demónios, falavam com eles «no cimo dos montes, e nos bosques frondosos
oferecem-lhes sacrifícios e honram-nos como a Deus» (Martinho, 1803, pp.
243-4). Nos cimos dos montes, os homens procuram aproximar-se dos deuses.
É, ainda o arquétipo da transcendência que se manifesta nos altares da Penín-
sula Ibérica e, quiçá, na Torre de Babel, nas pirâmides dos Egípcios e dos Maias.
A água, fonte de vida, despertou desde a proto-história respeito, admi-
ração e devoção. A água muda de estado continuamente, o que a transforma
numa substância intrinsecamente misteriosa. Alguns investigadores remetem o
culto das águas para a cultura celta. Os Celtas, muito antes dos Romanos, ado-
raram certas fontes; as fontes sagradas, as fontes santas (Alarcão, 1999; Silva,
1986; Lopez-Cuevillas, 1953).
O culto do sol chegou até nós pela tradição dos Maios (Foto 3), no dia

24 «... e no mar lhe chamam Neptuno, nos rios Lamias, nas fontes Ninfas, nos
bosques Dianas; e todos não são mais do que demónios malignos e espíritos mais que
pervertem os homens os homens infiéis, que se não sabem munir com o sinal da Cruz»
(Martinho, 1803, p. 245)

– 63 –
A religiosidade dos celtas e germanos

1 de Maio; do S. João, no dia 24 de Junho e pela tradição do Carnaval (Fotos 1


e 4) que coincide com o fim do equinócio de Inverno e o início do Solstício de
Verão, início, portanto, do período solar. O Carnaval de Lindoso marca o início
do período solar, o fim o Inverno (Equinócio de Inverno, no mês de Março) e
o início do Verão (Solstício de Junho), disponibilidade para o invisível, para o
religioso (Lobo, 2005).
A religião do ponto de vista psicológico e, na perspectiva Junguiana,
faz parte da constituição do sujeito, pertence à natureza humana, mas não é
criação sua, no sentido em que o sujeito humano não é o seu criador, mas a
sua vítima, por estar possuído por uma presença que se manifesta através de
um dado. A religião é, no que concerne à forma, a disponibilidade para a ex-
periência do numinoso, a disponibilidade para o assentimento e consentimento
à vontade e poder divino, tal o significado latino da palavra númen; no que
concerne ao conteúdo, e seguindo ainda a perspectiva de K. Gustav Jung, diz
respeito à «propriedade de um objecto visível, ou o influxo de uma presença
invisível, que produz uma modificação especial na consciência» (Jung, 1978,
p. 9). Compreende-se que, nesta perspectiva, a vivência religiosa seja supra-
individual e supra-colectiva, «uma condição do sujeito, e independente da sua
vontade» (Jung, 1978, p. 9) é, e intrínseca do ponto de vista ontológico o que
permite identificar padrões transversais às diferentes manifestações religiosas,
independentemente das culturas, das confissões e das épocas; na essência toda
a confissão religiosa se constrói tendo por base o poder divino (numinoso) e
a fidelidade e lealdade (pistis). Neste sentido, ainda, diferem os conteúdos e
persistem as formas arquetípicas, motivo porque ao psicólogo não interessa o
credo religioso, mas o homo religiosus.

Cultura e equilíbrio psicológico

O Culto do Sol e da água, vincula -, - do latim vincular+ suf. tivo, que sig-
nifica ligar ou que serve para ligar - , a comunidade sente-se vinculada, presa,
apegada e, ao resultado desse vínculo - do latim vincunlum, significa aquilo que
liga ou serve para ligar, fixar, prender - , dessa corda ou atilho que liga a comu-
nidade às tradições damos o nome de vinculação social - do latim vincular +
suf. -ção, que significa acção ou resultado de vincular -. As tradições chamam
e prendem.
A questão da vinculação (Attachment Theory) foi teorizada e desenvol-

– 64 –
A religiosidade dos celtas e germanos

vida, no século passado, por Harlow, Mary Ainsworth e colaboradores (1978)


e Bowlby (1969, 1973, 1979, 1980, 1988) e foi objecto de estudos e aplicações
diversas - saúde (Ribeiro & Sousa, 2002), educação, relações afectivas (Cana-
varro, 1999), desenvolvimento sócio-cognitivo (Veríssimo et.al., 2003), estra-
tégias reprodutivas (Belsky, Steinberg & Draper, 1991), entre outras - e, se do
ponto de vista etimológico, remete para a acção de alguém que está vinculado,
também do ponto de vista do estado interno, semelhante ao teorizado por Bo-
wlby, o vínculo -vincunlum, uma ligação forte a alguém ou alguma coisa que é
duradoiro, persistente, dedicado, afeiçoado e apegado.
A vinculação no sentido de Bowlby e de Piaget (1983 b), funciona logo
nos primeiros dias de vida responde a uma necessidade25, a um estado de ca-
rência, corresponde ao desenvolvimento neuropsicológico e psicossocial e con-
tribui para a auto-regulação da sociedade (Goleman, 2006).
Os barquenses manifestam e comunicam as suas experiências subjecti-
vas uns aos outros. Significa então, que embora sendo um estado subjectivo/ in-
dividual (psicológico) através do acto comunicativo e das suas expressões cor-
porais, faciais ou outras, transformam-se num acto social e, em certo sentido,
constitui um a priori social, e existe hoje forte consenso de que as emoções são
fenómenos multidimensionais, compostas por factores: Cognitivo-subjectivos;
Fisiológicos; Funcionais e Expressivos (Reeve, 1994, p. 321).
Esta abordagem fixa-se, apenas, na dimensão expressiva das emoções,
isto é nas regras sociais que se criam por efeito do lado expressivo das emoções,
a sua componente comportamental e social. Esta manifesta-se pela repetição e
adesão popular -aproximação. Significa que categorizam e atribuem um certo
valor ao estímulo, fonte da sua emoção, causa da sua expressão (amor- alegria).
Significa também, se aceitarmos a tese de Shaver, Schwartz, Kirson e O´Connor
(1987), categoria das emoções básicas: Amor-alegria.
Os autores consideram que existem seis emoções básicas: amor, alegria,
surpresa, raiva, tristeza e medo. Estas emoções básicas decompõem-se em ou-
tras emoções subordinadas. Assim, tomemos a emoção amor, a esta estão su-

25 «Podemos, assim, compreender o que são os mecanismos funcionais comuns


a todos os estádios. Pode-se dizer, de maneira absolutamente geral que qualquer acção -
quer dizer, qualquer movimento, qualquer pensamento ou qualquer sentimento -, respon-
de a uma necessidade» Piaget (1983ªa,: p. 15)

– 65 –
A religiosidade dos celtas e germanos

bordinadas: a estima, a ternura, a compaixão, a adoração, o afecto, mas também


pode estar subordinada o desejo, a luxúria, a paixão. Se analisarmos a emoção
alegria, então, as emoções subordinadas são: o regozijo, felicidade, jovialida-
de, êxtase, bom humor, diversão, entusiasmo, estimulação, vitalidade, orgulho,
triunfo, esperança, optimismo, embelezamento, êxtase, alívio, etc. (Shaver,
Schwartz, Kirson & O´Connor, 1987; Reeve, 1994, p. 321).
Fica contudo por explicar: porque se perpetuam até hoje e porque co-
meçaram a existir? A Psicologia apresenta várias hipóteses explicativas: Ar-
nald (1960, 1970) considera que tudo começa com uma avaliação cognitiva
do estímulo. No caso das fontes, o estímulo é a água. Ora as águas revelaram
qualidades próprias das águas termais sulfurosas, esta propriedade foi avaliada
inicialmente como estímulo bom e tal avaliação cognitiva levou à experiência
emocional subsequente (amor e emoções subordinadas), significa que a emo-
ção é uma consequência da avaliação do estímulo/acontecimento, que faz com
que a pessoa se aproxime ou afaste do estímulo. Ainda segundo Arnald as emo-
ções envolvem 3 momentos distintos: (i) a percepção de que o objecto produz
uma avaliação boa ou má. Esta percepção é processada pelas vias neurológicas
do cérebro (sistema límbico: um ruído intenso é percepcionado como mau,
um bom perfume, como bom); (ii) a avaliação boa ou má produz a emoção.
Segundo Arnald uma vez que o estímulo é interpretado pelo sistema límbico
como bom ou mau, segue-se imediatamente a experiência de gostar ou não
gostar; (iii) a emoção expressa-se através de acções. Finalmente, fazendo uso
da memória e da imaginação o sujeito elege uma resposta/ conduta adequada
ao ambiente.
Lazarus (1966; 1968; 1982) embora próximo de Arnald, defende que o
ser humano possui 3 tipos de tendências de acção: aproximação, ataque e evi-
tamento. Ora, o ser humano aproxima-se, ataca ou evita, em função da avalia-
ção cognitiva que faz do estímulo, mas considera também que cada estímulo
indicia uma avaliação cognitiva. Lazarus apresentou 2 fotogramas - fotograma
1: ritos de passagem para o estado adulto de uma tribo australiana; fotograma
2: acidente de trabalho muito real em que um trabalhador perde um dedo -; os
2 fotogramas não apresentavam som o que permitia que os sujeitos construís-
sem as suas próprias narrativas auditivas de acompanhamento das imagens.A
experiência demonstrou que os sujeitos construíam narrativas diferentes sobre
os fotogramas, alguns construíram narrativas humorísticas, outros narrativas
de ameaça. Os que construíram narrativas e avaliações humorísticas, criaram
uma tendência de acção de aproximação; os que construíram uma avaliação
negativa, criaram a tendência de acção de evitamento e respectivas emoções.

– 66 –
A religiosidade dos celtas e germanos

A explicação de Bernard Weiner (1982; 1986), por sua vez, é de natu-


reza cognitivo-emocional. Autor da teoria psicológica da atribuição entende
que as pessoas procuram sempre razões para explicar o que lhes acontece, quer
seja favorável ou desfavorável e justifica pela seguinte sequência: estímulo (água
sulfurosa), resultado (saúde), atribuição (água é santa) e emoção (alegria). É
portanto a avaliação do resultado que condiciona a emoção. Processando-se
2 tipos de avaliações: avaliação primária e avaliação secundária dos resultados
(Quadro 1).
As emoções primárias ou secundárias dependem dos resultados; na pri-
meira situação, resultados positivos provocam emoções positivas (felicidade)
os resultados negativos provocam emoções negativas (desgosto, frustração); a
avaliação secundária dos resultados relaciona-se com a atribuição dos resulta-
dos a factores externos estáveis, emoção positiva/ gratidão, a factores estáveis,
emoção positiva/esperança; atribuição dos resultados a factores internos in-
controláveis, emoção negativa/vergonha; atribuição dos resultados a factores
externos controláveis, emoção negativa/raiva, atribuição dos resultados a fac-
tores externos incontroláveis, emoção negativa/compaixão e atribuição dos re-
sultados a factores internos estáveis, emoção negativa/Indefeso (Weiner, 1982;
1986). Se o resultado é positivo resulta uma emoção de gratidão e esperança, se
o resultado é negativo resulta vergonha, compaixão, raiva. As diversas emoções
relacionam-se, ainda, com os factores aos quais se atribui a causa dos resulta-
dos. Assim, se os resultados negativos resultam da atribuição de uma causa ao
próprio e à sua incapacidade para as controlar e a emoção que lhe corresponde
é de vergonha; se o insucesso de deve a causas externas controláveis a emoção
correspondente é a raiva; a factores externos que não controla, compaixão; a
factores estáveis e incontroláveis, indefeso. Tem pois razão Jung ao considerar
que o elemento essencial do Si-mesmo é o estado emocional e afectivo (1975,
p. 119).

– 67 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Quadro 1- Emoções e avaliação dos resultados

AVALIAÇÃO PRIMÁRIA
AVALIAÇÃO PRIMÁRIA DOS RESULTADOS
Avaliação das
emoções
Resultados positivos Emoção positiva:
felicidade

Resultados negativos Emoção negativa:


frustração

AVALIAÇÃO SECUNDÁRIA

Resultados positivos: atribuição dos resultados a


factores externos Gratidão
Resultados positivos: atribuição dos resultados a
factores estáveis Esperança
Resultados negativos: atribuição dos resultados a
factores externos controláveis Raiva
Resultados negativos: atribuição dos resultados a
factores externos incontroláveis Compaixão
Resultados negativos: atribuição dos resultados a
factores internos estáveis Indefeso

Fonte: Weiner, 1982; 1986 (Adaptado).

As emoções são sociais. As suas funções estão identificadas – protecção,


destruição, reprodução, reintegração, afiliação, rejeição, exploração e orienta-
ção (Plutchik, 1970, 1980) -. Significa que as emoções (ódio, raiva, amor…) do

– 68 –
A religiosidade dos celtas e germanos

ponto de vista funcional são (todas) positivas, todas elas são, de uma forma
ou de outra, suporte de sobrevivência (Ex. sem medo, não há protecção), e a
diversidade de emoções significa o apetrechamento para a diversidade de situ-
ações (Ex. a raiva permite a defesa). Contudo, perante uma situação de ameaça
(Estímulo), o sujeito corre (conduta emociomal), que por sua desempenha a
função de protecção (função da conduta emocional). E, neste sentido, é possí-
vel afirmar que todas as condutas emocionais (correr, morder, vomitar, parar,
examinar…) têm uma função social (protecção, destruição, reprodução, reinte-
gração, afiliação, rejeição, exploração, orientação ou outra). Supondo, então, as
duas situações estímulo - Água e Sol, provocam condutas - emocionais, beber,
banhar, purificar e dançar, brincar, foguear, passear, queimar -, com efeitos di-
rectos nas condutas sociais (Quadro 2).

Quadro 2- Estímulos naturais e experiências emocionais

Avaliação Experiência
Estímulos Outras emoções Acção
cognitiva emocional
Segurança, adoração,
afecto, atracção,
estima, ternura,
Água e Percepção boa do Amor, Atracção
desejo, luxúria,
Sol objecto/estímulo alegria
satisfação, orgulho,
êxtase, euforia,
deleite…

Perigo, irritação,
ódio, vingança,
antipatia,
ressentimento,
Percepção má do Medo, raiva,
amargura, cólera, Repulsão
objecto/ estímulo tristeza
pessimismo,
infelicidade, derrota,
abatimento, pânico,
terror…

– 69 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Fonte: Arnold, 1960, 1970; Shaver, et al., 1987 (adaptado).

Carnaval de Lindoso (Foto 1), por exemplo, é uma conduta emocional, ao


estímulo (sol) e possui, enquanto expressão condutal; significa também a pre-
sença de dois códigos linguísticos: linguagem subjectiva e linguagem funcional,
dito de outro modo, as condutas emocionais têm função social, enquanto for-
ma de comunicação e regulação dos relacionamentos.
As condutas emocionais são uma forma de comunicação aperfeiçoada do
ponto de vista filogenético e ontogenético; assim estudos empíricos demons-
tram (Huebner & Izard, 1988) que a criança com 2 meses expressa, tristeza
e dor; aos seis, pode expressar medo; as emoções são também uma forma de
regular os relacionamentos. Estudos empíricos (Huebner & Izard, 1988) têm
demonstrado que a expressão emocional de A provoca reacções condutais es-
pecíficas nas outras pessoas. As emoções são indicadores das condutas actuais
e futuras. Os mesmos estudos demonstraram que indivíduos que se apresentam
com frequência tristes, sem esperança e cansados, tendem a ser evitados pelos
outros, principalmente quando este estado emocional se prolonga no tempo.
As emoções são também facilitadoras de interacção social. Os etnólogos
verificaram nas suas investigações que os primatas quando querem evitar reac-
ções hostis do grupo sorriem e que tal expressão emocional aumenta os níveis e
o número de interacções (Hoof, 1962). O que levou o especialistas das emoções
sociais à realização de estudos empíricos e à constatação de que na actualidade
as pessoas sorriem para facilitar a interacção social, independentemente do seu
estado emocional (Kraut & Johnson, 1979).
Os afectos positivos facilitam também as condutas pró-sociais. Estudos em-
píricos realizados desde a década de 70 (Isen, 1970; Fried & Berkowitz, 1979)
concluíram que o acto de ouvir música agradável, pensar em coisas positivas,
receber presentes, ler ou assistir a peças de humor, aumenta o desejo de ini-
ciar uma conversa com os demais, aumenta a vontade de participar e oferecer
donativos a instituições de caridade, são mais benevolentes consigo mesmas,
manifestam desejo de falar com outras pessoas.
Assim, as emoções são, principalmente as emoções básicas - felicidade, tris-
teza, amor, ódio, desejo e admiração - transculturais, e visam sempre a adapta-
ção e sobrevivência. As emoções possuem funções específicas, principalmente

– 70 –
A religiosidade dos celtas e germanos

homeostáticas. No sentido em que permitem retomar o equilíbrio em situações


perante situações novas. Por exemplo, A é atacado, embora o padrão de con-
duta seja o medo, naquela situação específica adopta a emoção da ira. Sendo
esta que lhe permite manter o equilíbrio e sobreviver, porque só as emoções
mobilizam com rapidez os nossos estados internos, por outro lado se respon-
der com medo, esta emoção transforma-se num factor de risco. Uma situação
emocional negativa gera tristeza, a alegria, é a emoção que rompe o circuito
da tristeza, assim se justifica a necessidade da simetria emocional. As emoções
ajudam-nos a estabelecer prioridades, porque têm a capacidade de interromper
os comportamentos e as cognições em curso. Reorganizam e orientam para a
realidade concreta. Do ponto de vista social as emoções são factores de coesão,
desenvolvem o sentido de pertença e identidade do grupo, a coesão social e a
solidariedade, por efeito da partilha dos mesmos objectivos, metas e finalida-
des.
Em outro sentido, as emoções estão enquadradas e moldadas por razões
históricas e culturais. As normas culturais condicionam de forma significati-
va a experiência e a expressão das emoções. As emoções estão inseridas nos
processos de socialização contribuindo para a aprendizagem das normas e dos
valores; na cultura as emoções revelam-se nas formas que se fixaram ao logo
do tempo; são códigos de informação partilhados pelos indivíduos que fazem
parte do grupo e permitem o conhecimento individual e colectivos através das
suas manifestações externas.

O poder vinculativo da cultura

A cultura é o local de nascimento do indivíduo, do grupo, da comunidade,


da cividade, da citânia. E os locais de nascimento têm cheiro, ritmo, luz, cor,
periodicidade, movimento; possuem, como afirma o psiquiatra da Universida-
de de Heidelberg, Hubertus Tellenbach, endogeneidade e é endocosmogénica
(1976). Na acepção do mesmo autor, o endógeno «está determinado pelas suas
conexões com o cósmico e vice-cersa» (Tellenbach,1996, p. 73), mas a cultura
é essencialmente a repetição da criação que é dada através dos ritmos festivos e
neste sentido tem razão Carl Gustave Jung (1975) quando afirma: «o que se é,
mediante uma intuição interior e o que o homem parece ser sub specie aeter-
nitatis só pode ser expresso através de um mito. Este último é mais individual e

– 71 –
A religiosidade dos celtas e germanos

exprime a vida mais exactamente do que o faz a ciência, que trabalha com no-
ções médias, genéricas de mais para poder dar a ideia justa da riqueza múltipla
e subjectiva de uma vida individual» (Jung, 1975, p. 19).
A cultura tem poder vinculativo. A vinculação no sentido de Bowlby e de
Piaget responde a uma necessidade - «Podemos, assim, compreender o que
são os mecanismos funcionais comuns a todos os estádios. Pode-se dizer, de
maneira absolutamente geral que qualquer acção - quer dizer, qualquer movi-
mento, qualquer pensamento ou qualquer sentimento -, responde a uma ne-
cessidade» (Piaget, 1983 b, p. 15)- , a um estado de carência e de imprescin-
dibilidade, emergência do desenvolvimento psicológico e do desenvolvimento
psicossocial; as duas perspectivas exaltam a importância do desenvolvimento
psicológico individual e a identificação do período em que o indivíduo se vin-
cula, por efeito do desenvolvimento das estruturas cognitivas e, a perspectiva
psicossocial contextualiza a transmissão sócio-cultural e a vinculação afectiva
aos espaços.
O meio cultural e a genética são os dois factores determinantes do desen-
volvimento do indivíduo, o primeiro diz respeito aos factores colectivos espe-
cíficos da sociedade, do ambiente e, os segundos são próprios e internos ao
indivíduo (Piaget, 1983 b) e, cada um destes subdivide-se em complexas es-
truturas de coordenação, regulações, equilibração e auto-regulação; assim, se
as crianças de Genebra, Paris, Nova Iorque, Moscovo, Irão, África, Porto, Ilhas
do Pacífico, Ponte da Barca ou S. Luís do Maranhão, actuam da mesma forma
– vinculam-se, cooperam, discutem, brincam, conflituam -, são universais as
trocas interindividuais, o sentido dos conteúdos das transmissões culturais são
específicos (Piaget, 1983 b), no sentido em que Álvaro Miranda Santos os defi-
niu. A questão reside em saber se os factores específicos são suficientes para que
não se verifiquem, nos processos cognitivos, as mesmas leis.
As interacções sociais são universais, os conteúdos das transmissões são
particulares. Em todas as comunidades há, portanto, locais de memória, o que
significa que existem estruturas de coordenação geral e fixações. Assim sendo,
as fixações e a sua perpetuação até à actualidade decorrem daquilo que o gru-
po disponibiliza no acto comunicativo. Evidenciando dupla vinculação: -vin-
cunlum- da comunidade com os montes, as fontes, ….e poder vinculativo da
linguagem - vincular - . A comunidade vinculou-se e socializou a vinculação.
Há luz das neurociências a vinculação emocional conduz à auto-preserva-
ção. As tradições geram, na comunidade, ainda hoje, orgulho, alegria, encan-

– 72 –
A religiosidade dos celtas e germanos

tamento, regozijo e satisfação. E, seguindo de perto o pensamento de António


Damásio (2003, p. 159) é legítimo perguntar: para que serve, do ponto de vista
social, a vinculação emocional aos espaços e às tradições? Estamos na transição
entre a regulação automática, entenda-se dos mecanismos inatos26 e a decisão
e a liberdade. Os espaços significantes e respectiva simbólica são núcleos de
sustentabilidade da espécie e, fundamentalmente, de sustentabilidade social.
A cultura «liberta da tirania das emoções negativas» (Damásio, 2003) e é
fonte de virtude. As emoções positivas geram estados mentais positivos – senti-
mentos - e estes, são, ainda segundo António Damásio (2003) fundamentais no
«comportamento social e, por extensão, no comportamento ético» (Damásio,
2003, p. 201).
A cultura faz emergir, desenvolver e consolidar práticas de partilha comu-
nitária o que para além de garantir o alargamento do número de descendentes,
facilita a sobrevivência27; garantias inequívocas, das vantagens da cooperação
e a certeza, também, de que «a cultura e a civilização não podiam ter surgido a
partir de indivíduos isolados, não podendo por isso serem reduzidas a meca-
nismo biológicos e ainda menos a um subconjunto de especificações genéticas»
(Damásio, 1994, p. 140), por um lado e, por outro, ao longo do processo socio-
genético são acrescentadas estratégias educacionais e culturais que favorecem
a sobrevivência e são socialmente desejáveis (Damásio, 1994, p. 141). Assim,
a actual neurofisiologia reconhece, naturalmente, o papel dos impulsos e dos

26 «É uma afirmação de que na base de toda e qualquer regra do comportamen-


to que possamos pedir a um ser humano para seguir, há qualquer coisa de inalienável:
um organismo vivo, um organismo que se conhece a si mesmo porque a mente desse
organismo pôde construir um si, um organismo que tem uma tendência natural a preser-
var a sua própria vida. O estado de funcionamento óptimo desse mesmo organismo, que
se confunde com estado de alegria, resulta da aplicação eficaz do esforço de preservar e
prevalecer. Parafraseando a Proposição 18 em termos profundamente americanos, soaria
assim: considero estas verdades como auto-evidentes, que todos os seres humanos criados
de tal forma que tendem a preservar a sua vida e a procurar o bem-estar, que a sua felici-
dade provêm do esforço bem sucedido de se preservar, e que o funcionamento da virtude
se apoia nestes factos» (Damásio, 2003, p. 196)
27 «Parece-me razoável pensar que os seres humanos equipados com este repertó-
rio de emoções e cujos traços de personalidade incluiriam estratégias de cooperatividade
teriam sobrevivido mais facilmente e deixado, por isso, mais descendentes» (Damásio,
2003, p. 187)

– 73 –
A religiosidade dos celtas e germanos

instintos, dos mecanismos biológicos de base genética, mas reconhece, tam-


bém, as «estratégias supra-instintivas de sobrevivência que se desenvolveram
em sociedade, transmitidas por via cultural, e requerem, para a sua aplicação,
consciência, deliberação racional e força de vontade (...). O controlo das incli-
nações animais através do pensamento, da razão e da vontade é o que nos torna
humanos28» (Damásio, 1994, p. 139). A deliberação racional, a intencionali-
dade que resulta da capacidade de podermos reflectir sobre a nossa própria
história e sobre a história comum, permite criar ad initio sinais.
Quadro 3- Estímulos naturais e função social da conduta emocional

Situação/ Conduta Função Social da Conduta emocional


Estímulo emocional

Função reprodutiva e afiliativa


Facilitadora das interacções sociais
Dançar, cantar,
Sol e água Promotora das condutas pro-sociais
disfarçar… Facilitadora da comunicação dos estados
afectivos

Linguagens subjectivas e funcionais que condicionam estados


subjectivos

Fonte: Plutchik, 1980; Izard, 1989 (Adaptação)

28 «(...) segundo as Paixões da Alma de Descartes. Estou de acordo com a sua


formulação, só que, onde ele especificou um controlo alcançado por um agente não físico,
eu vejo uma operação biológica estruturada dentro do organismo humano que em nada é
menos complexa, admirável ou sublime. (...) A tarefa que se apresenta aos neurocientistas
de hoje é a de descobrir a neurobiologia que suporta as supra-regulações adaptativas, ou
seja, estudar e compreender as estruturas cerebrais necessárias para se Ter um conheci-
mento cabal dessas regulações. Não viso reduzir os fenómenos sociais a fenómenos bioló-
gicos, mas antes debater a ligação entre eles» (Damásio, 1994, pp. 139-140)

– 74 –
A religiosidade dos celtas e germanos

A comunidade revê-se e vincula-se à simbólica dos espaços. Constituem,


portanto, espaço de vinculação social. A comunidade direcciona para aque-
les espaços, para aqueles símbolos parte dos seus comportamentos e procura
deles se manter próxima retirando da proximidade um certo capital social de
segurança. A comunidade estabelece relações seguras com o seu património,
podendo existir diferentes figuras de vinculação social, desde que envolvam
interacção, durabilidade e capacidade de resposta. A vinculação social (Foto 3)
reproduz os princípios da vinculação individual: determina para quem nos vol-
tamos em busca de ajuda e proporciona a cola que mantém a comunidade uni-
da (Goleman, 2006). Avançamos, agora, com a hipótese dos vínculos afectivos
com os espaços, com as tradições, com os usos e costumes, com o património
material e imaterial, na adultez, constituir um factor determinante de seguran-
ça e estabilidade social e individual e de saúde (Quadro 3).
E, a ser assim, a vinculação social relacionar-se com a segurança, com a sa-
tisfação e com o bem-estar: emoções positivas. Como seria a vida em sociedade
se não existisse vinculação a sinais materiais (significantes) e se não lhes fossem
atribuídos conteúdos mentais (significados) partilhados com a comunidade ou
o grupo? Provavelmente não existiria coesão, identidade e memória social e, na
ausência de tais processos afectivo-cognitivos, o indivíduo e o grupo/comuni-
dade perderiam referências éticas, morais e sociais.
O sistema de vinculação social transforma-se, progressivamente, em siste-
ma afiliativo (desejo de fazer na companhia de outros e para os outros) que
permite a construção da sociabilidade e da moralidade. Os comportamentos
sociais de vinculação manifestam-se nas celebrações anuais (festas, romarias),
no cumprimento e repetição de práticas milenares, nas lendas e, qualquer uma
destas práticas sinaliza a institucionalização da vinculação que o imaginário
popular indexou ao património material, cujas personagens representam, qua-
se sempre, ideias de elevação29.

29 «O simples facto de ouvir falar de alguém que ajudou pode ter enorme impac-
te, induzindo uma agradável sensação de exaltação. (…). Elevação é o estado de espírito
frequentemente referido quando as pessoas contam como se sentiram ao assistir a um
acto de coragem, de tolerância ou de compaixão espontâneas. Muitas pessoas sentem-se
emocionadas, senão mesmo excitadas» (Golemam, 2006, p. 85)

– 75 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Assim, também na vinculação social existe a «figura de vinculação» (Gue-


deney & Guedeney, 2004, p. 34) e, tal como a criança pode dirigir o seu com-
portamento para «qualquer pessoa que se envolva numa interacção social viva
e durável (...) e que responda aos seus sinais e às suas aproximações» (Guede-
ney & Guedeney, 2004, p. 35), também na vinculação social o comportamen-
to é orientado para a «figura de vinculação», mas esta é essencialmente uma
construção simbólica e, neste sentido, a significação revela o poder de atribuir
um significado a um significante - dimensão privada da significação - num
contexto de interacção - dimensão pública da significação -; assim, apesar da
privacidade da significação esta é simultaneamente, por efeito da sua base so-
cial, em acto público e manifesta-se através da linguagem. É um acto cultural e
um acto de inteligência social.
Eis as palavras de Miguel Torga aquando de uma visita a S. Martinho de
Anta, a 8 de Setembro de 1992: «Mesmo a cair aos bocados, teimei em passar
por aqui. É que nenhuma hora da minha vida tem significações sem esta refe-
rência. S. Martinho é um marco de orientação e segurança que vejo em todas as
horas de perplexidade e angústia e de todos os quadrantes do mundo» (Torga,
1993, p. 136) e de Agostinho da Silva, - «Fiz o curso no Porto, andei por toda a
parte quanto é mundo, mas a minha terra continua a ser Barca de Alva» -. (Sil-
va, 2006). Como se justifica a transversalidade da vinculação social?
As representações do mundo oscilam entre a cólera, inveja, ciúme, alegria,
tristeza, empatia, vergonha, culpabilidade, medo, angústia e amor (Lelord &
André, 2001), e embora cada indivíduo possa, apenas, sentir as suas emoções
e não as dos seus parceiros - subjectividade -, elas fixaram-se geneticamen-
te tornando-se universais e responsáveis pela sobrevivência (Lelord & André,
2001), contudo, como afirma António Damásio «a cultura e a civilização (...)
não podem (...) ser reduzidas a mecanismos biológicos e ainda menos a um
subconjunto de especificações genéticas» (Damásio, 1994: 140), significa que
a questão colocada a propósito de Miguel Torga, de Agostinho da Silva e dos
Barquenses, mesmo na perspectiva neurofisiológica de António Damásio só
pode ser explicada pela intervenção da sociedade, da educação e da cultura que
acrescentam «aos mecanismos automáticos de sobrevivência (...) um conjunto
de estratégias de tomada de decisão socialmente permissíveis e desejáveis, os
quais, por sua vez, favorecem a sobrevivência - e servem de base à construção
de uma pessoa - (Damásio, 1994, p. 141).

– 76 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Mas se a Psicologia do senso comum ou da avozinha (Searl, 1984, p. 53)


e a neurofisiologia não explicam a vinculação social a S. Marinho de Anta, a
Barca de Alva e ao Penedo de S. martinho, e se Damásio se coloca, ainda, no
horizonte da sobrevivência embora admita a construção da pessoa, de algo «ex-
clusivamente humano: um ponto de vista moral que, quando necessário, pode
transcender os interesses do grupo ou até mesmo da própria espécie» (Damá-
sio, 1995, p. 141), significa que estamos no domínio das significações.
Significações conferidas pelo meio social ou pelo sujeito? A epistemologia
genética de Jean Piaget e Rolando Garcia (1987), concilia o «sistema social de
significações» com a «experiência directa dos objectos» (1987, p. 228), a ques-
tão deixa de ser neurofisiológica e passa para o domínio da psicossociologia, se
admitirmos que a complexidade da organização social das abelhas e das formi-
gas não é igual à complexidade da organização social humana.
A consciência do tempo nasceu no Homem de Neanderthal que a exterio-
rizou nas sepulturas, nas pinturas e nos mitos. O poder de significar e de in-
terpretar. O património existe, é real. Produz significados e imagens. É uma
imagem, mas o que é uma imagem? O que é uma imagem real? É uma cópia
? Vejamos o que afirma António Damásio «as imagens são reais. Contudo, as
imagens de que temos experiência são construções provocadas por um objec-
to e não imagens em espelho desse objecto. Não há, que eu saiba, qualquer
imagem do objecto transferida opticamente da retina para o córtex visual. A
óptica pára na retina. Da retina para diante ocorrem transformações físicas em
diversas estruturas nervosas a caminho dos córtices visuais, mas não se trata já
de transformações ópticas» (Damásio, 2003, p. 225).
Vamos partir da hipótese que aquele lugar, qualquer lugar, in illo tempore,
teve uso instrumental (fonte sagrada, local de culto, ou outro...), contudo, em-
bora aquele espaço tenha sido criado com o objectivo X (objectivação), - inten-
ção objectiva -, o objecto instrumental transformou-se, ao longo dos tempos
num sinal de união da comunidade. Outra hipótese é assumir que aquele lugar
nunca teve uso instrumental e foi concebido ab initio para servir como sinal
(Berger & Luckmann, 1999, p. 47); neste caso estaríamos perante a intenção
subjectiva de alguém, individual ou colectivamente, cuja intenção ao tornar-se
visível, manifesta e perceptível, alargou o seu espaço de partilha e ficou dispo-
nível para uso significativo.
Quer na primeira, quer na segunda hipótese, existe intenção subjectiva de
comunicar e, de comunicar para além do tempo, pelo que as hipóteses anterio-

– 77 –
A religiosidade dos celtas e germanos

res se agregam na hipótese: há intenção de comunicar. O sentido etimológico


da palavra comunicação30 indica o desejo de por em comum uma ideia, uma
história, um mito - intenção subjectiva - e a capacidade de a transformar em
mensagem, usando um código específico. A intenção transformou-se em acto
comunicativo e vínculo ao objecto transformado em texto comunicativo. O ob-
jecto transforma-se em texto e este em paradigma compreensivo. Partindo de
Wittgenstein «só os factos podem exprimir um sentido» (1987, p. 40), mas o
pensamento não está subordinado ao pensar e este não se reduz a determi-
nações dos objectos. O texto constitui-se suporte do sentido da experiência
originária e, de per si, suporte das memórias sociais e individuais. O espaço de
vinculação é, simultaneamente, signo verbal e não verbal; enquanto signo não
verbal possui um significado imposto pelo pensar verbalizado (Enes, 1983) e,
neste sentido, o significado é diferente para cada um de nós, mas o signo verbal,
é suporte de significação universal (signo e significação); o signo verbal cons-
titui o elo de união, por excelência, entre o privado e o público, as memórias
individuais e as memórias sociais.
A linguagem31consolida, solidifica e fortalece a memória. A linguagem
constrói, fundamenta e justifica os mitos, as lendas, as crenças, as emoções, as
vinculações sociais e, por esse meio, consolida, solidifica e fortalece o grupo, as
memórias individuais e as memórias sociais, pelo que a resposta à pergunta for-
mulada a propósito de Miguel Torga, Agostinho da Silva e dos Barquenses, terá
de contemplar as condição de identidade, de coesão social, de funcionamento
da vida psicossocial e, naturalmente, de subjectividade e de intencionalidade,
mas terá de contemplar, também, os sentidos e os sentimentos construídos na
comunidade (Sarason, 1974) - «sense of community»-, sem os quais aqueles,
por efeito da mudanças rápidas a que assistimos nas últimas década, passará
a sofrer da «sindroma geral de adaptação» (Selye, 1981). As comunidades, tal

30 «Do latim communicatio, acção de transmitir ou receber mensagens, usando


meios e códigos convencionais; acto ou efeito de comunicar». Dicionário da Língua Por-
tuguesa Contemporânea, Vol I.
31 «O suporte material da significação, que é o sinal, pode variar independente-
mente da significação (...) ao passo que o signo verbal, como suporte de significação, não
pode variar sem que esta varie também. Isto não quer dizer que a mesma significação não
possa aderir a diversos suportes materiais verbalizados, a diversos sons articulados como
suportes da significação, mas que a união entre eles constitui uma estrutura orgânica»
(Enes, 1983, p. 81)

– 78 –
A religiosidade dos celtas e germanos

como os indivíduos, ficam mais vulneráveis quando os seus recursos de actuali-


zação são sobrecarregados. É aqui que a «cultura dá sentido à conduta humana,
e daí a importância de fundamentar antropologicamente a psicologia através da
construção de uma Psicologia Cultural» (Aguirre, 2000).

Conclusão
A História contribui para o conhecimento da psique e, seja qual for a op-
ção metodológica relativamente à época história, os seus contributos são ines-
timáveis por através deles se aceder ao si-mesmo que se manifesta através da
historicidade.
Os estudos sobre os Celtas e a Celticidade desenvolveram-se entre nós a
partir, principalmente, de Martins Sarmento (Cardozo, 1961). Num estudo pu-
blicado em 1882 Martins Sarmento (Sarmento, 1882) defende que «os celtas
são um povo moderno na Europa, moderno relativamente às populações que
viviam em plena época da civilização do bronze, entre algumas das quais eles
vieram estabelecer-se» (Sarmento, 1982, p. 1). A historiografia aponta (Lopez-
Cuevillas, 1953; Silva, 1986; Alarcão, 1992; Alarcão, 1999) para um período
compreendido entre o século XII e o Século VI a.C. no qual se terá verificado
a invasão da Península Ibérica e iniciado a cultura castreja. Jorge de Alarcão
avança coma a hipótese da população, nos fins do 1º milénio a.C., estar dividi-
da, por razões políticas, em populi (Alarcão, 1991, p. 2) – populi Bracari, Leuni,
Seurbi, Grovii, Heleni, entre outros-, que faziam parte do reino de Breoghán.
As tradições anteriormente consideradas (Penedo de S. Martinho, Maios, Car-
naval de Lindoso e as Águas Santas) pertencem a um vasto território situado a
norte de Portugal caracterizado pela proximidade das tribos Bracari e Grovii.
Os Romanos criaram a representação de povos belicosos - «Sem dúvida, os
Brácaros eram um povo belicosíssimo. È fora de dúvidas que eles combatiam
com as mulheres armadas e morriam como bravos – sem que nenhum deles re-
cusasse nem voltasse as costas à luta nem proferisse um grito. Por seu turno, das
mulheres que são feitas prisioneiras, umas matam-se a si próprias; outras ainda,
estrangulam os filhos com as suas próprias mãos. Na verdade rejubilam mais
com a morte do que com a condição de prisioneiras» (Apiano, 1991, pp. 92-93).
A interpretação psicológica deste comportamento feminino, na perspecti-
va de Weiner (1982; 1986), relaciona-se com as consequências do resultado
negativo do acontecimento acerca do qual existia uma expectativa positiva e

– 79 –
A religiosidade dos celtas e germanos

das emoções e sentimentos induzidos pela ocorrência. Ser tornada prisioneira


elicita sentimentos negativos e falta de esforço, sentimento causador de vergo-
nha e de culpa – Teoria da Atribuição -. Na perspectiva de Jung, nas camadas
mais antigas da mente, nas camadas arquetípicas, a mulher deseja tornar-se ela
própria e o processo de desenvolvimento sólido da sua personalidade, realiza-
se quando sacrifica o papel de herói masculino (Henderson, 1964, p. 137) e se
identifica com a terras e a fecundidade. Vencido o herói masculino, a mulher
assume o arquétipo das camadas mais profundas da sua mente e, «apresenta-se
como uma variante, à escala humana, da fertilidade telúrica (…). A sacralidade
da mulher depende da sacralidade da terra. A fecundidade feminina tem um
modelo cósmico: o da Terra Mater, a Mãe Universal» (Eliade, 1990, p. 153), à
luz do qual se justifica também a tradição do Baptismo nas Águas do Rio Lima
e o mito da Fonte do Leite em S. Tomé do Vade e, na sua generalidade, o com-
portamento religioso.
A religiosidade manifesta-se do ponto de vista psicológico através da atitu-
de de respeito – atitude respeitosa -, assente na representação simbólica supor-
tada pela atribuição de qualidades transcendentes a eventos, ocorrências, dados
manifestos ou outros. Anterior às confissões, a religiosidade celta enquadra-se,
do ponto de vista histórico, nas religiosas pré-clássicas e através da sua análise
é possível reconhecer o conteúdo arquetípico da alma humana (Jung, 1978) e a
sua função catártica, purificadora e psicologicamente estabilizadora. Julgo ter
ficado claro que a psique possui uma estrutura inconsciente muito forte, cujos
conteúdos (arquétipos) estabelecem vínculos muito fortes com a natureza, se
fixaram na estrutura do cérebro, permitem resposta prontas emocionais e adap-
tativas, são estruturas instintivas muito fortes por se terem fixado desde tem-
pos e imemoriais. Deles fazem parte: o arquétipo da transcendência, Anumus e
Anima, o Si-mesmo, que no seu conjunto formam a cultura.
A cultura liberta da tirania das emoções negativas. A saúde é uma emoção
positiva, que procede da cultura (Damásio, 2003) para além das práticas de par-
tilha comunitária – vinculação social -, que promove a segurança, a satisfação,
o bem-estar e um sistema afiliativo que permite a construção da sociabilidade
e da moralidade.

– 80 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Referências:
- Alarcão, J. (1999). Populi, Castella e Gentilitates. In Revista de Guimarães,
Vol. Especial, Actas do Congresso de Proto-História Europeia, (pp. 133-150).
Guimarães.
Ainsworth, M. (1989). Attachments beyound infancy. American Psycholo-
gist, 44: 709-716.
Ainsworth, M., Blehard, M. Waters, E. & Wall, S. (1978). Patterns of atta-
chment: a Psychological study of the strange situation. Hillsdale, NJ: Lawrence
Erlbaum.
Allport, F. H. (1924). Social Psychology. Boston Houghton Mifflin.
Almagro-Gorbea & Ávila Jiménez. (2000). Un altar rupestre en el Prado de
Lacara (Mérida). Extremadura Arqueológica, VIII: 423-442.
Almagro-Gorbea, M.-Álvarez, Sanchis, R.S. (1993). La fragua de la Ulaca:
saunas castreñas y baños iniciáticos en el mundo celta. Cuadernos de Arqueo-
logia de la Universidad de Navarra, 1: 177-253.
Alonso Romero (2007). Creencias y tradiciones de la fiesta cética de Sa-
main, el dia de Todos los Santos, relacionadas con la muerte y la fertlidad. In
Actas do I Congresso Transfronteiriço de Cultura Celta de Ponte da Barca (pp.
124-152). Ponte da Barca.
Alonso Romero (2009). La Santa Companã o Procesión de los Muertos en
el atlântico céltico. In Actas do II Congresso Transfronteiriço de Cultura Celta
de Ponte da Barca (pp. 66-105). Ponte da Barca.
Apiano (1991). História das Guerras da Ibéria. Trad. António de Sousa
Araújo e José Cardoso. Braga: Livraria Cruz.
Arnold, M. B. (1970). Perennial problems in the field of emotion. In M.B.
Arnold (Ed.), Feelings and emotions (pp.169-185). New York: Academic Press.
Arnold, M.B. (1960). Emotion and personality (Vol. I, II). New York: Co-
lumbia University Press.
Bachelard, G. (1989). A Poética do Espaço. Martins Fontes.

– 81 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Belsky, J. Steinberg, L. & Draper, P. (1991). Childhood experience, interper-


sonal development and reproductive strategy: an evolutionary theory of socia-
lization. Child Development, 62: 647-670.
Berger, P. L. & Luckmann, Thomas. (1999). A construção social da realida-
de. Dinalivro.
Bowlby, J. (1969). Attachment and loss (Vol. I). Attachment. London: Ho-
garth Press.
Bowlby, J. (1973). Attachment and loss. Separation, anxiety and anger (Vol.
2). London: Hogarth Press.
Bowlby, J. (1979). The making and breaking of affectional bonds. London:
Routledge.
Bowlby, J. (1980). Attachment and loss. Loss, sadness and depression (Vol.
3). London: Hogarth Press.
Bowlby, J. (1988). A secure base: Clinical applications of attachment theory.
New York: Basic Books.
Canavarro, M. C. S. (1999). Relações Afectivas e saúde mental. Quarteto.
Cardozo, M. (1961). Francisco Martins Sarmento. Esboço da sua vida e obra
científica. Sociedade Martins Sarmento, 1ª ed.
Cheers, G. (2003). Mitologia. Mitos e Lendas de todo o Mundo. Lisboa:
Lisma.
Chevalier, J. & Gheerbrant, A. (1993). Dictionnaire des Symboles. Ed. Ro-
bert Laffont S.A.
Cole, M. (1996). Cultural Psychology. Cambridge: Harvard.
Damásio, A. (1994). O erro de Descartes. Emoção, razão e cérebro humano.
Publicações Europa América.
Damásio, A. (2003). Ao encontro de Espinosa. As emoções sociais e a neu-
rologia do sentir. Publicações Europa América.
Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Academia das Ciências
de Lisboa: Ed. Verbo.

– 82 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Eliade, M. (1990). Mitos, Sonhos e Mistérios. Círculo de Leitores.


Enes, José. (1983). Linguagem e ser. Estudos Gerais. Série Universitária.
Franz, M.-L. Von. (1964). O Processo de individuação. In Carl Gustav Jung
(Org.). O homem e os seus símbolos (pp. 160-229). Ed. Nova Fronteira.
Fried, R. & Berkowitz, L. (1979). Music hath charms…and can influence
helpfulness. Journal of Applied Social Psychology, 9, 199-208.
Goleman, D. (2006). Inteligência Social. A Nova ciência do relacionamento
humano. Ed. Temas e Debates.
Gyuedene, N. & Guedeney. (2004). Vinculação. Conceitos e aplicações. Ma-
nuais Universitários. Climepsi Ed.
Henderson, J. L. (1964). Os mitos antigos e o homem moderno. In. Jung,
Carl G. (Org.). O homem e os seus símbolos (pp. 104-157). Ed. Nova Fronteira.
Homero. (2003). Odisseia. Livros Cotovia.
Hooff, J. A.R.A.M. van (1962). Facial expressions in higher primate. Sympo-
sium of the Zoological Society of London, 8, 97-125.
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/poemasemana/05/01.html).
Huebner, R. R. & Izard, C. E. (1988). Mothers´ responses to infants´ facial
expressions of sadness, anger, and physical distress. Motivation and Emotion,
12, 185-196.
Isen. A.M. (1970). Success, failure, attention and reaction to others: The
warm glow of success. Journal of Personality and Social Psychology, 15, 294-
301.
Izard, C. E. (1989). The structure and functions of emotions: implications
for cognition, motivation and personality. In I.S. Cohen (Ed.), The G. Stanley
Hall lecture series (Vol. 9, pp. 37-73). Washington, DC: American Psychologi-
cal Association.
Jahoda, G. (1982). Psychology and Antropology. London: Academic Press.

– 83 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Jiménez Guijarro, J. (2004). Los epígrafes régios del Canto Castrejón (El
Escorial de Madrid). Y la legenda Laurentina de la silla de Filipe II. Estúdios de
Prehistória Y Arqueologia Madrileñas, 13: 87-103.
Jung, C. G. (1978). Psicologia e Religião. Trad. Mateus Ramalho Rocha, Ed.
Vozes Petrópolis.
Jung, C. G. (2000). Civilização em transição. Trad. Lúcia Mathilde Endlich
Orth, 2ª ed. Ed. Vozes: Petrópolis.
Jung, C.G. (1975). O Homem à descoberta da sua alma. Liv. Tavares Mar-
tins.
Kelley, H.H. & Tribaut, J. W. (1954). Experimental studies of group problem
solving and process. G. Lindzey (Ed.). Handbook of Social Psychology (Vol.2,
pp. 735-785). Cambridge. Addisin-Wesley.
Kraut, R. E. & Johnston, R. E. (1979). Social and emotional messages of
smiling: an ethological approach. Journal of Personality and Social Psychology,
37, 1539-1553.
Lazarus, R.S. (1966). Psychology stress and the coping process. New York:
MacGraw-Hill.
Lazarus, R.S. (1968). Emotions and adaptation: conceptual and empirical
relations. In W.J. Arnold (Ed.), Nebraska symposium on motivation (Vol., 16,
pp. 175-266). Lincoln: University of Nebraska.
Lazarus, R.S. (1982). Thoughts on the relations between emotion and cog-
nition. American Psychologist, 37, 1019-1024.
Lelord, François & André Christophe. (2001). La Force des Émotions. Édi-
tions Odile Jacob.
Lobo, F. (2005). Terras da Nóbrega e Memória Social I. Ponte da Barca.
Lopez-Cuevillas (1953). La civilización céltica en Galicia.Madrid: Ed. Itsmo
M.C.S. (1999). Relações afectivas e saúde mental. Coimbra: Quarteto.

– 84 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Martinho (1803). De castigatione Rusticorum. Vida e Opúsculos de S. Mar-


tinho Bracarense. ED. de Frei Caetano Brandão. Typografia da Academia Real
das Sciencias. Lisboa.
Miranda Santos, A. (1961). Aculturação: aspectos gerais da interpretação da
cultura. Lisboa: Liam.
Miranda Santos, A. (1999). Enigma indecifrável? Psychologica, 22: 103-121.
Miranda Santos, A. (2002). Apostar na Ciênciapsicologia. Psychologica, 30:
487-510.
Miranda Santos, A. (2004). Da indiscipline à educabilidade. Psychologica:
559-584.
Miranda Santos, A. (2005). Em busca do Humano. Biblos: 11-36.
Miranda Santos, A. (2006). A Psicologia na Actualidade. Psicologia, 3: 43-
71.
Moscovici, S. & Doise, W. (1991). Dissensões e consenso. Uma teoria geral
das decisões colectivas. Lisboa. Liv. Horizonte.
Moscovici, S., Mugny, G., Pérez, J.A. (1991). La influencia social inconscien-
te. Estudos de psicologia social experimental. Anthropos.
Piaget, J. & Garcia, R. (1987). Psicogénese e História das Ciências. Pub.
Dom Quixote.
Piaget, J. (1983a). Seis estudos de Psicologia. 9ª ed. Pub. Dom Quixote,.
Piaget, J. (1983b). Problemas da Psicologia Genética. 5ª ed. Pub. Dom Qui-
xote.
Picouer, P. (sd.). Initiative. Du texte à l´action. Seuil.
Plutchik, R. (1970). Emotions, evolution and adaptive processes. In M.B.
Arnold (Ed.), Feeling and emotions (pp.3-24). New York: Academic Press.
Plutchik, R. (1980). Emotion: a psychoevolutionary analysis. New York:
Harper & Row.

– 85 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Reeve, J. (1994). Motivación y emoción.Trad. Ana Maria Lastra Raven. Ma-


drid: McGraw-Hill.
Ribeiro, J.L.P. & Sousa, M. (2002). Vinculação e comportamentos de saúde:
estudo exploratório de uma escala de avaliação da vinculação em adolescentes.
Análise Psicológica, 1 (XX): 67-75.
Ricoeur, P. (1987). Teoria da interpretação. Ed. 70.
Ricoeur, P. (sd.ª). Le modèle du texte: l´action considerée comme un texte.
Du texte à l´action. Seuil.
Sainero, R. (1998). La huella celta en España e Irlanda. Bib. de Bolsillo Ma-
drid: Ed. Akal.
Sainero, R. (2009). Los orígenes de Brigantia y Braga en España y Portugal.
In Actas do II Congresso Transfronteiriço de Cultura Celta de Ponte da Barca
(pp. 105-113). Ponte da Barca.
Sarason, S.B (1974). The Psychological sense of Community. Proaspects for
a Community Psychology. San Francisco, CA. Jossey Bass.
Sarmento, F.M. (1882). Etnologia –Os celtas na Lusitânia. Revista Scientífi-
ca, Ano I, Porto.
Searl, J. (1984). Mente, cérebro e ciência. Bib. de Filosofia Contemporânea.
Ed. 70.
Selye, H. (1981). Stress. New York, Wiley.
Serrano, X. (1995). La emergencia de la psicología cultural en el panorama
de la psicologia actual. Mass.: Harvard Univ. Press.
Shaver, Schwartz, Kirson & O´Connor (1987). Emotion Knowledge: Fur-
ther Exploration of a Prototype Approach. American Psychological Associa-
tions, Vol. 52, Nº 6, 1061-1086.
Silva, M. F. M. (1986). Subsídios para o estudo da Arte Catreja. Arte deco-
rative Arquitectónica. Revista de Ciências Históricas (Vol. I, pp. 31-68). Porto:
Universidade Portucalense.

– 86 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Tellenbach, H. (1996). La melancolia. Visión histórica del problema: Endo-


geneidade, tipología, patogenia y clínica. Ed. Morata.
Torga, M. (1993). Diário, XVI. Gráfica de Coimbra.
Vasconcelos, L. (1988). Religiões da Lusitânia (Vol. I). Lisboa: Imprensa Na-
cional- Casa da Moeda.
Vasconcelos, L. (1989). Religiões da Lusitânia (Vol. II). Lisboa: Imprensa
Nacional- Casa da Moeda.
Veríssimo, M., Monteiro, L., Vaughn, B.E. & Santos, A.J. (2003). Qualidade
da vinculação e desenvolvimento. Análise Psicológica, 4 (XXI): 419-430.
Vigotski, L.S. (2003). A formação social da mente. Ed. Martins Fontes.
Von Wright, G. H. (1979). Explicación y comprension. Alianza Ed.
Waddell, J. (2005). Foundation Myths. The beginnings of Irish archaeology.
Wordwell: Bray.
Weiner, B. (1982). The emotional consequences of causal attributions. In
M.S.Clark & S.T. Fiske (eds). Affect and cognition. Hillsdale, NJ: Lawrence Erl-
baum.
Weiner, B. (1986). An attributional theory of motivation and emotion. New
York: Springer-Verlag.
Wittgenstein, I. (1987). Tratado Lógico-Filosófico e Investigações Filosófi-
cas. Fundação Calouste Gulbenkian.

– 87 –
A religiosidade dos celtas e germanos

A VISÃO DO DIABO N’ A DEMANDA DO SANTO GRAAL


Profa. Dra. Adriana Zierer (UEMA/Brathair)

De acordo com Schmitt, o imaginário está relacionado com as relações dos


homens entre si, com Deus e com o invisível. O imaginário consiste ainda em
“uma realidade coletiva que consiste em narrativas míticas, ficções, imagens,
compartilhadas pelos atores sociais. Toda sociedade, todo grupo produz um
imaginário, sonhos coletivos garantidores de sua coesão e de sua identidade”
(SCHMITT, 2007, p. 351). Le Goff também afirma que as fontes literárias e
artísticas são privilegiadas no estudo do imaginário medieval (LE GOFF, 1994,
p. 13).
O Diabo segundo o pensamento cristão é o conjunto de forças maléficas que
visam desviar o cristão de seus propósitos e levar a humanidade à danação. A
partir dos séculos XI e XII é descrito por monges como Raul Glaber e Guibert
de Nogent com aparência humana, mas deformado, corcunda e muitas vezes
negro como um etíope. Inicialmente é pouco representado nas imagens visu-
ais, mas desde o ano mil adquire traços animalescos; chifres, orelhas pontudas,
asas de morcego, e a partir do século XIII desenvolve cauda, corpo peludo e
garras de ave (BASCHÊT, 2002, p. 322). Nas imagens parece-se bastante com
Pã, cornudo, cascudo, com pelos grossos e falo e nariz gigantescos (RUSSEL,
2003, p. 65).
Sua figura está associada a Lúcifer (o que traz a luz), o anjo da luz que se-
gundo Santo Gregório Magno teve inveja e orgulho de Deus e foi expulso do
Céu (RUSSEL, 2003, p. 91). Numa outra versão, o Livro de Enoch, um evange-
lho apócrifo, composto no século II a.c, Lúcifer e outros anjos foram seduzidos
pela beleza das mulheres e por este motivo foram expulsos da companhia de
Deus, passando a habitar o interior da terra, na sua parte mais baixa (BAS-
CHÊT, 2006, p. 381).
A falta é considerada muito mais grave do que se cometida por humanos
porque devido à sua natureza angélica, Lúcifer e os outros demônios tinham
uma inteligência superior a dos homens. Com a sua queda, ele passou a ser
conhecido como o Príncipe das Trevas, sendo por isso, representado na icono-
grafia do século XV como possuindo uma coroa em sua cabeça, como na re-
presentação dos irmãos Limbourg do Inferno. Lúcifer e seus companheiros não

– 88 –
A religiosidade dos celtas e germanos

têm mais possibilidade de salvação; por isso querem também levar à danação
de outras almas. Eles agem, segundo o pensamento cristão com a permissão de
Deus, castigando aqueles que escolheram em vida os prazeres da carne e não
se arrependeram.
A apresentação do Diabo como um espírito maligno que desviava as pes-
soas do caminho de luz e ensinamentos de Deus veio a reforçar o Cristianismo
como a religião da Salvação. Nesse embate entre o Bem (o reino de Cristo) e o
mal, a Igreja afirmava a eficácia do seu poder perante a luta contra os demônios.
A Demanda do Santo Graal é uma novela de cavalaria do século XIII no
momento de prosificação e cristianização do ciclo arturiano. O manuscrito que
chegou à Península Ibérica faz parte do ciclo da Post –Vulgata da Matéria da
Bretanha, tendo circulado em Portugal por volta de meados do século XIII. O
centro da obra é a busca do cálice sagrado pelos cavaleiros de Artur. Percebe-se
a todo momento na narrativa uma intensa luta travada entre as forças de Deus
e as do Diabo.
A trama da Demanda é a seguinte: com os cavaleiros reunidos em volta da
távola redonda aparece o Santo Vaso, recipiente com o sangue de Cristo na cruz
que alimenta a todos de forma material e espiritual. Porém após esta aparição,
retira-se da corte devido aos pecados do rei e da maior parte dos seus cavalei-
ros, só podendo ser encontrado pelo cavaleiro perfeito, Galaaz. Após a chegada
de Galaaz na corte, a Demanda é iniciada. O cavaleiro que prega a todos para
irem a Demanda é Galvam (Galvão), no entanto, logo no princípio ficamos
sabendo que ele trará mortes e desgraças na busca. Assim, a luta entre Deus e as
forças maléficas, pode ser expressa nas ações dos dois cavaleiros, um Galaaz, o
“cavaleiro eleito” a encontrar o Santo Graal e outro Galvam, nomeado no texto
como o “cavaleiro do diabo”.
Na narrativa fica muito clara a divisão entre os cavaleiros eleitos e os peca-
dores que não conseguirão ver outra vez o Santo Graal. Desde o princípio da
novela é afirmado categoricamente que os cavaleiros não poderiam levar consi-
go damas na viagem ou não conseguiriam encontrar o Santo Vaso. Porém dos
150 cavaleiros da távola redonda apenas os três eleitos principais e mais nove,
num total de doze, poderão ver de novo o Graal. O número doze está associado
aos doze apóstolos de Cristo na Última Ceia.

– 89 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Antes de nos dedicarmos aos cavaleiros pecadores com mais atenção, ana-
lisemos primeiramente uma representante de Satã na narrativa, a Besta Ladra-
dora.

O Diabo associado ao Feminino: a Besta ladradora

A Besta Ladradora é um animal demoníaco que vai causar a morte de


muitos cavaleiros durante a Demanda. Não é explicada muito bem a caracte-
rização física deste animal no manuscrito. Os monstros no período medieval
eram vistos como pertencentes a Deus, criados por ele. O Apocalipse de S. João
menciona uma besta, citada mais de vinte vezes como personificação do Diabo
(WOENSEL, 2001, p. 39). Ele possui sete cabeças e dez chifres (Ap 17, 3), e é
comparada com o dragão, também ligado à serpente. Além disso, seus pés se
parecem com o urso, dentes de leão, cauda de escorpiões, todos esses traços
animalescos foram associados ao Diabo no período medieval.
A Besta é uma fêmea e a Demanda apresenta muitas vezes uma visão
misógina sobre o feminino, pois as mulheres são vistas como aquelas que afas-
tam os cavaleiros de encontrar o Santo Vaso, sendo o principal pecado criticado
na Demanda é a luxúria, associada diversas vezes às artes “diabólicas” femini-
nas. Outro aspecto citado é o fato de um importante pecado dos cavaleiros e até
do rei Artur são os relacionamentos incestuosos.
O nascimento da Besta Ladradora está também relacionado ao desejo do
incesto da irmã pelo irmão. Ao ser rejeitada por ele e estando próxima de uma
fonte, representando nesta narrativa o misterioso, o mágico, a tentação, deseja
cometer o suicídio, quando lhe aparece o Demônio prometendo dar a ela o que
desejasse.
Realiza-se então o pacto demoníaco, aspecto bastante presente na literatura
medieval e muitas vezes caracterizado pela assinatura de um documento no
qual a pessoa nega a Deus e se compromete a adorar o Diabo em troca do que
deseja. No caso da irmã, não houve documento, mas o pacto se efetivou atra-
vés da cópula carnal, aqui juntando dois elementos, o apetite sexual exagerado
do Demônio e a tendência feminina para pecar, numa aproximação entre mu-
lher/Eva, relacionada às tentações, aos instintos e à fraqueza, motivo pelo qual
segundo vários teólogos medievais a mulher deveria ser controlada e vigiada

– 90 –
A religiosidade dos celtas e germanos

pelos homens. A jovem, embora filha de Hipômenes, um rei, já tinha o traço


negativo, segundo a narrativa, de ser versada nas artes da necromância.
Um pacto demoníaco famoso na Idade Média foi a lenda de Teófilo, no
qual um religioso fez um acordo com o Diabo para se tornar bispo. Escrita em
grego no século VI e traduzida em latim no século seguinte, a lenda dizia que
Teófilo consultou um mágico judeu que o levou para ver o Maligno. Teófilo a
seguir, jura fidelidade a Lúcifer, renuncia a Deus e promete uma vida de luxúria,
desprezo e orgulho. No Saltério da Rainha Ingebourg (1200, Museu de Condé,
Chantilly) há uma cena de Teófilo entregando um manuscrito ao Diabo, onde
está escrito “sou seu vassalo” (RUSSEL, 2003, p. 76-77). Mais tarde, antes de sua
alma ser levada ao Inferno, o bispo se arrepende e apela para a Virgem Maria,
que anula o Pacto, mostrando a força superior da Virgem, de Jesus e dos santos
contra as forças do mal, caso fossem invocados pelos fiéis.
Na Demanda, após a consagração do Pacto pelo ato sexual entre a jovem e
o Demônio, a mesma teve grande prazer, esquecendo-se do amor pelo irmão
e trama com Satã a morte daquele, acusando o irmão de a ter violentado no
passado, em virtude de já estar grávida. Ao ser julgado pela corte do pai, é de-
clarado culpado e a irmã pede que ele morra atacado por cães em jejum por sete
dias. O irmão clama sua inocência e lhe lança uma maldição, a que daria luz a
mais dessemelhada besta e que esta teria o ladrido de cães.
Quando a criança nasce, se faz viva a profecia do irmão:
El-rei fez guardar sa filha atá que foi sazom de haver seu fiho. E as donas
que estavam com ela a seu parto, u cuidarom a achar filho, acharom a mais
dessemelhada besta e a mais mal aventurada, como já ouvistes, e houverom
pavor tam grande que todas foram mortas fora ela e outra dona. E a besta se foi
assi que nom houve homem no paaço nem no castelo que a podesse tornar e ia
poendo os maiores ladridos do mundo. [...] E, porque é filha do demo, aveeram
tantas maas aventuras por ela em esta terra e foram mortos tantos homens bõõs
e tantos bõõs cavaleiros como já ouvistes.(DSG, 1995, p. 449)
O pai manda matar a filha e a Besta passa a perseguir e matar vários cava-
leiros. O Diabo no imaginário cristão está associado a determinados animais,
sendo os mais frequentes a serpente (dragão), a cabra e o cachorro. Existem
várias narrativas folclóricas que falam na caça selvagem do diabo com seus cães
endiabrados, daí o fato de a Besta Ladradora estar ligada a este animal. Os la-

– 91 –
A religiosidade dos celtas e germanos

dridos parecem indicar que ela está continuamente grávida de cães que ladram
em seu ventre.
O cão em várias culturas tem uma simbologia ligada ao Além, sendo um
psicopompo, condutor das almas ao Outro Mundo (CHEVALIER; GHEER-
BRANT, 1995, p. 176). Podemos exemplificar com a figura de Anúbis, com a
cabeça de chacal no Egito Antigo ou Cérbero, o cão de várias cabeças que guar-
dava os portões do Hades na Grécia Antiga. Entre os celtas, o cão também pos-
sui caráter sagrado. O maior dos heróis celtas, Cuchulainn, cujo nome significa
Cão de Culann, está associado a este animal, e tal associação era uma vista
como uma grande honra. O jovem, conhecido inicialmente como Setanta pas-
sa a ser chamado de Cuchulainn ao matar o feroz animal do ferreiro Culann e
prometer em troca ser o guardião do ferreiro durante um período. O guerrei-
ro é filho do Deus Lug e o vencedor de todos os combates. Utiliza uma arma
mágica, a lança Gae Bolga. Segundo Sainero, é comparável ao herói Aquiles da
Ilíada, o mais importante dos guerreiros gregos na guerra de Tróia (SAINERO,
1999, p. 171).
Segundo Mcshane em inglês médio o termo questen, referente a Questing
Beast, significa morder e caçar. Um ermitão conta que cinco dos seus filhos
haviam sido mortos pela besta e que quando esta foi ferida havia aparecido a
figura de um diabo, um homem negro, saindo do lago, seguindo versões que o
Diabo tinha aparência humana e/ou poderia transfigurar-se em humano, além
de possuir a cor escura, associada às trevas do local onde habitava.
Outro que vivia perseguindo a Besta era o cavaleiro muçulmano Palamades.
Ela havia matado os seus onze irmãos e durante a Demanda ele a persegue e
procura impedir os cavaleiros da távola redonda de lutarem contra o animal,
o que considera um privilégio seu. Somente após converter-se ao cristianismo
pelas mãos de Galaaz, após perder um combate contra aquele, é que Palamades
consegue realizar o seu intento. A Besta então é ferida e passa a queimar num
lago por toda a eternidade:

A besta quando se sentiu ferida, meteu-se sô a água e começou logo a fazer


ũa tam gram tempestade polo lago que semelhava que todolos diaboos do in-
ferno i eram no lago. E começou a arder e a ditar chamas tam grande de todas
partes que nom há homem que o visse que o nom tevesse por ũa das maiores
marvilhas do mundo. Mas aquela chama nom durou muito, pero aveo ende ũa

– 92 –
A religiosidade dos celtas e germanos

maravilha que ainda ora dura i: aquele lago começou a acaecer e a ferver de
guisa que nunca quedou de ferver, ante ferve e ferverá já, em mentre o mundo
for, assi como os homens cuidam. Aquele lago de tal maravilha como vos conto
prês aquela caentura e agora há nome “o Lago da Besta”. (DSG, 1995, p. 431)
(grifo nosso)
Assim, temos o exemplo do ser do mal derrotado por um cavaleiro valoro-
so, Palamades, que só conseguiu concluir o seu intento depois de ter se tornado
cristão. Voltemo-nos agora a outras manifestações do Diabo, associado agora à
questão dos pecados dos cavaleiros.

O Diabo e os Cavaleiros Pecadores na Demanda

Antes de falarmos dos cavaleiros pecadores, é importante explicar as ações


e o comportamento dos eleitos: Galaaz, Persival e Boorz. O nome deste últi-
mo significa homem ‘escolhido’, o ‘puro dos puros’, o próprio Messias. Simbo-
liza um mundo novo, ou um Cristo sempre vivo em peregrinação mística pelo
mundo (MOISÉS, 1975, p. 31). Ele é um cavaleiro virgem e puro, que usa uma
estamenha (túnica de lã com farpas) para reforçar a sua condição de penitente
e a quem os ermitãos consideram como uma “cousa santa” (DSG, I, 1955, p. 7).
Galaaz realiza várias ações dos cavaleiros eleitos: em primeiro lugar é o úni-
co que consegue sentar no “assento perigoso” da távola redonda, dedicado ao
eleito; outros que tentassem sentar ali encontrariam a morte. Logo depois vai
recebendo outros elementos que caracterizam o herói por excelência, elemen-
tos estes que confirmam a sua eleição divina. Logo no princípio da narrativa há
uma aventura de retirar uma espada da pedra, aqui representando soberania
espiritual e pureza. Outros episódios ainda confirmam o caráter especial do
eleito: o fato de ele conseguir expulsar o demônio (DSG, 1995, p. 301), curar
uma leprosa que veste a sua estamenha (DSG, 1995, p. 307) e também fazer um
paralítico andar (DSG, II, 1970, p. 490-491), ações em analogia com os feitos
de Jesus.
Dois outros eleitos acompanham Galaaz na jornada; Persival, também vir-
gem, mas uma vez tentado por uma bela donzela que na verdade era o Diabo
disfarçado e Boorz, cavaleiro que através de encantamento teve relação sexual
uma única vez, pela qual se penitenciava pelo resto da vida, e da qual teve um

– 93 –
A religiosidade dos celtas e germanos

filho bastardo, Elaim, o Branco. Portanto, fica muito claro que na narrativa o
elemento mais importante é a pureza relacionada com abstenção de sexuali-
dade. Galaaz é o mais puro por não demonstrar desejo sexual e suas ações o
aproximam de Cristo.
Fica claro o respeito dos eleitos pela Igreja. Boorz se compromete a passar
toda a Demanda à base de pão e água e os três eleitos adotam posturas peniten-
tes: rezam, jejuam e se confessam com os eremitas que encontram ao longo do
caminho. Persival e Galaaz também realizam ações curativas. Observemos no
Quadro 1 as ações dos bons cavaleiros em consonância com a ideologia cava-
leiresca pregada pelo cristianismo na Idade Média Central:
Quadro 1. CAVALEIROS VIRTUOSOS NA DEMANDA
DO SANTO GRAAL

BONS CAVALEIROS DEMANDA DO SANTO GRAAL

VIRTUOSOS 12 Eleitos a encontrar o Santo Graal

VIRTUDES:

TEOLOGAIS Cavaleiros Principais:

 fé, esperança, caridade GALAAZ

CARDEAIS PERSIVAL

 justiça, prudência, BOORZ


fortaleza e temperança

BONS CRISTÃOS Obediência aos preceitos da Igreja

DEFENSORES DA FÉ
Galaaz converte o muçulmano Palamades
CRISTÃ

– 94 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Com relação aos cavaleiros não-eleitos a dar cabo das aventuras do Santo
Vaso, o motivo principal são os pecados e em especial o pecado da luxúria Po-
rém mesmo entre os pecadores há diferenciações. Um primeiro grupo pode ser
representado por Lancelot e Tristão que, embora sejam excelentes cavaleiros,
são pecadores por sua fidelidade ao amor cortês. Ambos desrespeitam o seu
senhor (rei Artur-rei Mars) em virtude do amor que sentem por Guinevere-
Isolda, e por este motivo são luxuriosos.
Lancelot, que tem um sonho no qual vê a si próprio queimando no Inferno
com Genevra (Guinevere) por não conseguir se apartar do seu amor por ela.
Vários autores salientam, como Todorov (1976), que o amor cortês é conde-
nado na narrativa. Lancelot tenta se regenerar, mas por fim mantém-se fiel ao
amor cortês e por este motivo não encontrará o Santo Vaso e nem a salvação
no além-túmulo.
Outro casal adúltero na Demanda e que também queimará no Inferno se-
gundo o manuscrito é Tristão e Iseu (Isolda) que habitam o reino arturiano. Por
este motivo o rei Mars (Marcos) é o maior inimigo de Artur na narrativa e ao fi-
nal da mesma destrói a távola redonda, símbolo do poderio arturiano.
Além dos pecadores em virtude do adultério como Lancelot e Tristão ou
de existem pecadores na Demanda que representam a antítese do bom cavalei-
ro. Não respeitam o código da cavalaria: mentem, atacam donzelas, matam à
traição. Esses cavaleiros incidem nos pecados da ira, inveja, orgulho e luxúria.
No manual de cavalaria do filósofo Ramon Llull O Livro da Ordem de Ca-
valaria, que procurava ensinar o comportamento adequado à nobreza, o au-
tor que também defende o modelo do cavaleiro cristão, tal como a Demanda,
afirma que os cavaleiros deveriam seguir as sete virtudes, as três teologais (fé,
esperança e caridade) e as quatro cardeais (justiça, prudência, fortaleza e tem-
perança), conforme já observamos no Quadro 1. Ao mesmo tempo deveriam
proteger o cristianismo e os fracos, lutar contra os infiéis, garantir a manuten-
ção da ordem social e evitar os sete pecados capitais: ira, avareza, preguiça,
inveja, luxúria, gula e orgulho. Observemos a seguir o Quadro 2 sobre os peca-
dores, que estão associados aos vícios na Demanda:

– 95 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Quadro 2. PRINCIPAIS VÍCIOS DOS CAVALEIROS NA DEMANDA


DO SANTO GRAAL

CAVALEIROS VÍCIOS
LANCELOT
LUXÚRIA
TRISTÃO
LUXÚRIA
GALVÃO
INVEJA
MORDERET
SOBERBA
AGRAVAIM
MENTIRA
LEONEL IRA
Este grupo de maus cavaleiros, no qual se inserem Galvão e Morderete rea-
lizam a luxúria com maldade, atacando donzelas e matando seus pais e irmãos.
São eles os representantes dos cavaleiros criticados por Llull e que deveriam ser
perseguidos, segundo o filósofo, pelos bons cavaleiros. É importante destacar
que esses cavaleiros muitas vezes eram nobres secundogênitos sem terras e ata-
cavam as propriedades de outros senhores, sendo vistos como uma verdadeira
ameaça à ordem feudal. Daí a elaboração de obras que visavam “suavizar” o
comportamento desses nobres, no qual se integram A Demanda do Santo Graal
e o Livro da Ordem de Cavalaria, que defendem um cavaleiro fiel à Igreja nas
suas ações contra os muçulmanos e seguidor das corretas normas cristãs.
Galvam é o cavaleiro pecador por excelência na Demanda. Michel Pastore-
au salienta que nos romances do século XII Galvão (Gauvain) é apresentado de
forma positiva como um exemplo de bom cavaleiro, fiel e galante (PASTORE-
AU, 1989, p. 48). É um representante do modelo de cavaleiro cortês.
Já nas narrativas posteriores, escritas no século XIII com forte influência
cristã, Galvão é um exemplo de mau cavaleiro, contrário aos modelos do ca-
valeiro cortês e cristão. Ele não segue as normas da cavalaria e torna-se um
verdadeiro antagonista. Embora Galvão seja o primeiro cavaleiro a convidar os
demais para a demanda, vários presságios confirmam que ele traria desgraças.
Num primeiro momento, uma donzela feia com uma espada prevê que
aquele cavaleiro que ao segurar a espada a tornasse rubra de sangue, seria o que
mataria mais cavaleiros na Demanda. A profecia se cumpre, pois Galvão ma-

– 96 –
A religiosidade dos celtas e germanos

tará dezoito companheiros da távola redonda participantes da busca do Graal.


Mongelli salienta que ele é o “bode expiatório”, aquele representante de todos
os pecados dos cavaleiros (MONGELLI, 1995, p. 130-140) e a narrativa chama
Galvão de o “cavaleiro do diáboo” (DSG, I, 1955, p. 195).
Ele é mentiroso e nega os valores do cavaleiro cortês. Mata mesmo ao saber
que determinados cavaleiros são seus companheiros da távola redonda, mata
cavaleiros desarmados e feridos, ataca mulheres. Erec afirma antes de morrer
que ele desrespeitava o código da cavalaria:
- Ai dom Galvão, que é isto que dizeis? Lembrai-vos do juramento e da
homenagem da mesa redonda [...] certamente se me matares sereis perjuro e
desleal e jamais tereis por isso honra [...] porque estou ferido em tantos lugares
que tanta força tenho como um cavaleiro morto.” (DSG, 1988, p. 267)
Mesmo assim Galvão não desiste de seu intuito e mata um cavaleiro que
não estava em condições de lutar. Além disso, mente a Persival afirmando que
não havia matado parentes dele, quando na verdade havia matado seu pai e ir-
mãos, indicando a sua covardia. Agravaim juntamente com Galvão matam Pa-
lamades à traição quando este se encontrava ferido (DSG, 1995, p. 441). Quan-
to a Morderete é o causador da morte do próprio pai, o rei Artur. São exemplos
de cavaleiros cobiçosos e que colocam em risco a ordem feudal.
Na Demanda, Galvão reconhece que não era digno de ver o Santo Graal ao
se referir a um outro cavaleiro, Elaim, o filho bastardo de Boorz:
- Ai Deus! Disse Galvam; como fremosas maravilhas aqui há! Verdadei-
ramente sam demostradas de Nosso Senhor e sam altas maravilhas do Santo
Graal e sam as grandes pruridades da Santa Egreja. Certas, disse Galvam a Es-
tor, per esto que Deus mostrou a Elaim devemos nós a entender que jazemos
em pecado mortal e que nom nos ama Deus como a ele e que mais deve seer
cavaleiro do Santo Graal que nós (DSG, 1995, p. 118). (grifo nosso)
Outro defeito dos cavaleiros é a ira. Neste caso, podemos citar o irmão de
Boorz, Leonel. Boorz passa por uma situação em que precisaria salvar dois ne-
cessitados de sua ajuda: uma donzela prestes a ser violentada por um cavaleiro;
e seu irmão, também em risco de morte, ameaçado por cavaleiros em maior
número. Boorz reza por seu irmão e salva a donzela. Deus salva Leonel devido
à oração do irmão. Ainda que ermitãos e outros religiosos expliquem isso a Le-

– 97 –
A religiosidade dos celtas e germanos

onel este fica com ódio de Boorz e deseja matá-lo. Tentarão proteger Boorz um
eremita e o cavaleiro Calogrenante e ambos são mortos por Leonel.
Portanto, vários cavaleiros da Demanda se mostram indignos de encontrar
o Santo Graal por pecados como a luxúria, a inveja, o orgulho e a ira. Como
não conseguia mais impedir a luta e após as duas mortes, Boorz decide lutar
contra o irmão, mas Deus impede que a luta continue para evitar que um dos
três cavaleiros eleitos para encontrar o Santo Graal cometesse pecado mortal.
Por isso aparece uma voz do céu e também o fogo para separar os dois irmãos.
Através da conduta dos homens em relação ao sexo feminino, é possível ob-
servar se eles eram bons ou maus cavaleiros. No caso de Mordred, é também o
exemplo do mau cavaleiro, pois, além do fato de agir à traição contra seus com-
panheiros da távola redonda, violenta mulheres e depois as mata (DSG, 1995, p.
213-214). Assim, devido aos pecados na Demanda, dos quais não escapam nem
mesmo o rei Artur, que também possuía um filho bastardo, feito numa donzela
tomada à força, os doze eleitos encontram o Graal. Mais tarde, ao ter as mais
altas revelações do Santo Vaso, este objeto sagrado e o eleito, Galaaz, ascendem
ao Céu junto com os anjos.

CONCLUSÃO
Através da novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal podemos perce-
ber algumas representações sobre o Diabo no período medieval, tanto através
da Besta Ladradora, animal monstruoso ligado ao Diabo e ao feminino, quanto
através do cavaleiro Galvão, o exemplo de cavaleiro pecador e que sintetiza as
faltas dos demais cavaleiros da távola redonda.
A Besta está ligada ao Pacto Demoníaco, associado na narrativa à luxúria e
à misoginia, uma vez que ela é fruto de um desejo incestuoso feminino. Apesar
disso, podemos ver que também os cavaleiros são pecadores e ligados a faltas
como a luxúria, a inveja, o orgulho e a ira.
O modelo de cavaleiro que aparece n’ A Demanda do Santo Graal é o do
cavaleiro cristão, representado por Galaaz. Ele possui todas as virtudes teolo-
gais, cardeais e ainda outras como a simplicidade e humildade. É um exímio
defensor do cristianismo e sua cavalaria é voltada exclusivamente para este fim.
Seu comportamento o aproxima quase que de um santo. O eleito expulsa o
demônio, realiza curas e por fim ascende aos céus com o Santo Graal e os anjos.

– 98 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Quanto à maioria dos cavaleiros da távola redonda e os cavaleiros da so-


ciedade medieval, estavam próximos dos pecados, sua fidelidade à Igreja era
incerta e necessitavam de narrativas moralizantes para terem as suas atitudes
mais suavizadas e civilizadas em nome do bom ordenamento da sociedade.
Com relação às mulheres, segundo a concepção da narrativa, muitas vezes es-
tavam voltadas aos pecados e poderiam levar aos homens nesta direção já que
estariam próximas do Diabo, pela atração à luxúria.
Através do exemplo da Besta Ladradora e dos maus cavaleiros, exemplifica-
dos na figura de Galvam, o “cavaleiro do Diabo”, a Demanda pretendia estimu-
lar comportamentos adequados para evitar as tentações e os pecados capitais
na terra e levar os homens e mulheres à salvação na outra vida.

FONTES
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1995.
A Demanda do Santo Graal. Ed. Crítica e fac-similar de Augusto Magne.
Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, v. I (1955) e v. II (1970).
A Demanda do Santo Graal. Ed. de Irene Freire Nunes. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1995.
A Demanda do Santo Graal. Texto sobre os cuidados de Heitor Megale. São
Paulo: T.A. Queiroz, 1988.
RAMON LLULL. O Livro da Ordem de Cavalaria (1279-1283). Tradução
de Ricardo da Costa. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Rai-
mundo Lúlio” (Ramon Llull), 2000.

ESTUDOS
BASCHET, Jérôme. “Diabo”. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Clau-
de (coord). Dicionário Temático do Ocidente Medieval,São Paulo: EDUSC/Im-
prensa Oficial do Estado,vol I, 2002, p. 319-331.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio
de Janeiro: José Olympio Editora, 1995.

– 99 –
A religiosidade dos celtas e germanos

MCSHANE, Kara L. “Questing Beast: texts, images, basic information”. In:


The Camelot Project at the University of Rochester, disponível em:
http://www.lib.rochester.edu/camelot/qbmenu.htm, acesso em 20/08/2010.
MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro: Cultrix, 1975.
MONGELLI, Lênia Márcia. Por quem Peregrinam os Cavaleiros de Artur.
São Paulo: Íbis, 1995.
PASTOREAU, Michel. No Tempo dos Cavaleiros da Távola Redonda. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e
ibero-americano (séculos XVI-XVIII). SP: Companhia das Letras, 2000.
RUSSEL, Jeffrey Burton. Lúcifer: o Diabo na Idade Média. São Paulo: Ma-
dras, 2003.
SAINERO, Ramon. Diccionario Akal de Mitología Celta. Madrid: Akal,
1999.
SCHMITT, Jean-Claude. O Corpo das Imagens. São Paulo: EDUSC, 2007.
TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo: Perspectiva,
1976.
ZIERER, Adriana. “Artur como Modelo Régio nas Fontes Ibéricas Medie-
vais (Parte I): A Demanda do Santo Graal”. In: ZIERER, Adriana e CAMPOS,
Luciana de (Coord). Revista Brathair. Revista Eletrônica de Estudos Celtas e
Germânicos, Edição temática Matéria da Bretanha. Rio de Janeiro, v. 3 n. 2,
2003, p. 31-44. www.brathair.com, acesso em 30/06/2010
ZIERER, Adriana M.S. “O Cavaleiro Cristão n’A Demanda do Santo Graal e
n’O Livro da Ordem de Cavalaria”. In: OLIVEIRA, Terezinha (Org). Educação,
História e Filosofia no Ocidente: Antiguidade e Medievo. Itajaí, SC: Univali Ed.,
2008, p. 299-313.

– 100 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Saberes romanos: a religiosidade germânica em César e Tácito


Profa. Dra. Arlete José Mota (UFRJ/Brathair)
A escolha de uma abordagem a respeito da forma como os romanos
observavam a cultura e em especial a religiosidade dos povos com os quais
tiveram contato deve contemplar questões conceituais a respeito do que os ro-
manos entendiam como relato histórico e o que para eles representavam as pra-
ticas religiosas e as relações político-sociais relacionadas aos rituais públicos.
Como afirma Pedro Paulo Funari (FUNARI, 1993:15):
Os romanos eram muito religiosos, mas num sentido muito especial da pa-
lavra: consideravam o respeito aos rituais como fundamental para a manuten-
ção da vida em sociedade. Esse tipo de religiosidade significava a crença na
origem fabulosa de ritos cuja observância era de importância vital.
Convém recordarmos que o dominus exercia por vezes uma espécie
de função sacerdotal em sentido mais amplo. Preservar o mos maiorum era
preservar a sobrevivência de um povo, suas instituições e seus valores morais.
Augusto Magne (MAGNE, 1946: 170)
salienta:
Em sentido mais lato, [sacerdotes] são-nos todos os cidadãos: os pais de
família oferecem sacrifícios; oferecem-nos o rei, os cônsules, pretores, ditado-
res e, mais tarde, os magistrados, em nome do Estado; consultam os auspícios,
observando o céu, o vôo dos pássaros ou o apetite dos frangos sagrados.
Quanto a questões relacionadas aos textos históricos, ressaltamos a impor-
tância para o conhecimento da história romana dos Comentários (Commenta-
rii), dos Anais (Anales), dos Livros, Arquivos ou Atas (Acta ), redigidos desde
épocas denominadas como primitivas na historiografia romana.
Se nos voltamos para as origens da prosa literária e para os relatos históricos
produzidos a partir de César notamos que há notas importantes a serem feitas
sobre o olhar do romano a respeito dos povos considerados exóticos. Atitudes
cada vez mais agressivas e aparatos bélicos excepcionais garantiram conquistas
territoriais e asseguraram a superioridade do valor guerreiro do romano. Re-
corremos ao poeta Horácio para mostrarmos sucintamente um aspecto desse
valor guerreiro citado: dulce et decorum est pro patria mori , “é doce e honroso

– 101 –
A religiosidade dos celtas e germanos

morrer pela pátria”, ( Odes. III, 2, 13). Cabe destacarmos igualmente um fator
predominante para o sucesso das batalhas: a disciplina rigorosa.
Inseridos em contextos diferentes, narrando fatos e realçando personagens
com objetivos diferentes, César e Tácito servem de exemplo ao que denomina-
mos de olhar do conquistador. Ambos detém-se nos hábitos, costumes e for-
mas de organização político-administrativa dos povos considerados estranhos.
E os estranhos germanos, subjugados, analisados por eles, ganham destaque
por representarem grupos de guerreiros preparados fisicamente (e diríamos
moralmente) para o combate. Compreendemos que quanto maior o valor do
adversário maior será a glória da conquista. Quaisquer que sejam os propósitos
dos dois autores, diversas e interessantes são as possibilidades de estudo dos
aspectos formais e conteudísticos dos Commentarii de bello Gallico, de César
e da Germania, de Tácito. César vai além das proposições que poderiam exem-
plificar um discurso militar, quando se refere não só a detalhadas descrições
topográficas, mas também a aspectos históricos - e diríamos psicológicos - dos
sujeitos enfocados. Tácito igualmente trata de temas relacionados à cultura da-
queles povos.
Sem nos atermos, por questões relacionadas ao propósito deste trabalho,
a uma visão mais ampla a respeito dos historiadores latinos, veremos de forma
sucinta elementos relacionados à biografia e às características estruturais das
obras selecionadas de César e de Tácito. Daremos relevo a certos elementos de
valor literário na obra de César, fato que nos surpreende, uma vez que o texto é
marcadamente um relato de campanha bélica.
Caio Julio César (100-44 a.C.) é citado entre os principais historiadores
latinos, ao lado de Salústio e Cornélio Nepos. Legou-nos os Commentarii
de Bello Gallico e os Commentarii de Bello civili. O vocábulo commentarius
designa aqui uma espécie de diário de operações militares, apontamentos, me-
mória. Para Diana Bowder (BOWDER, 1990: 64), César
...foi a personificação do gênio militar e administrativo dos romanos. Suas
realizações mais notáveis foram a conquista da Gália e a desarticulação perma-
nente da constituição republicana de Roma.
Os Comentários sobre a guerra gaulesa, escritos provavelmente entre os
anos 52-51 a. C., não só relatam as operações militares da conquista da Gália,
campanha que durou dez anos, mas dão preciosas informações sobre a vida, os
costumes e as instituições dos antigos gauleses. Seu estilo é conciso; o texto é

– 102 –
A religiosidade dos celtas e germanos

narrado em terceira pessoa. Como afirma Jacques Gaillard (GAILLARD, 1994:


74): “César [é] testemunha de si mesmo”. Muito se tem discutido sobre o valor
histórico e literário do De bello Gallico, devemos lembrar, entretanto, que Cé-
sar tinha em mente rumos da política interna e externa e propósitos determi-
nados. Há precisão nas descrições geográficas e certos fatos foram constatados.
Uma trajetória política é delineada nos comentários. António Freire (FREIRE,
1986: 288) destaca
Júlio César não é um historiador propriamente dito. As duas obras que nos
legou, os 7 livros de Commentarii de bello Gallico e os três livros do De bello ci-
vili, mais do que uma finalidade histórica, visam um objetivo auto-apologético.
César, como todo o cidadão romano de valor, aspirava às honras e ao poder (...).
Seguindo critérios de uma análise comparativista e reconhecendo a aproxi-
mação com o texto literário, vemos que há uma série de elementos estruturado-
res do De bello Gallico que representam um traço diferenciador em relação ao
texto de Tácito. São elementos inclusos nos gêneros literários narrativos, como,
por exemplo: narrador, personagem, localização espacio-temporal, caracterís-
ticas forjadoras mais tarde do romance. Além disso, há uma aproximação com
o gênero épico.
No âmbito literário, quanto aos elementos estruturadores do De bello Galli-
co teríamos, a guisa de exemplo:
O narrador: o texto em 3ª pessoa sugere um distanciamento do narrador
César do personagem César – que, como “personagem”, pode ser visto e admi-
rado por suas habilidades bélicas e desprendimento de sentimentos rancorosos
em relação ao inimigo germânico; vemos até uma certa generosidade. Segundo
Vítor Manuel de Aguiar e Silva (SILVA, 1990: 220),
O narrador (...) não se identifica necessariamente com o autor textual e
muito menos com o autor empírico –identificação esta típica de um biografis-
mo ingênuo ou preconcebido -, pois ele representa enquanto instância automi-
zada que produz intra textualmente o discurso narrativo, uma construção, uma
criatura fictícia do autor textual, constituindo este último, por sua vez, uma
construção do autor empírico.
Podemos notar no texto de Tácito, no ultimo parágrafo (XXVII), a refe-
rência que denota afastamento (e credibilidade) dos fatos narrados, através da
segunda pessoa do plural: Haec in commune de omnium Germanorum origine

– 103 –
A religiosidade dos celtas e germanos

ac moribus accepimus (“Estas são as coisas que percebemos em comum entre


todos os germanos”).
Os personagens: além de César, personagem, marcado pelas características
anteriormente comentadas, há os adversários do grande herói que são marca-
dos por qualidades físicas e morais elevadas. Afinal para um grande herói, um
grande adversário. Como afirma Bowra (BOWRA, 1950: 17) : “... [o] principal
fim [do herói] é alcançar honras e renome por meio dos seus feitos e por eles
ser lembrado depois de morrer”.
A localização espacio-temporal: se aocorrem poucas marcas temporais
noDe bello Gallico se o desenrolar da ação se mantém num tempo narrativo
interno, o mesmo não ocorre com a localização espacial. Fronteiras, distâncias,
acidentes geográficos podem revelar vastidão territorial - portanto, um feito
militar que excede, que é grandioso. É conhecido até por aqueles que se iniciam
nos estudos de língua latina o primeiro parágrafo dos Commnetarii: Gallia
est omnis diuisa in partes tres, quarum unam incolunt Belgae, aliam Aquitani,
tertiam qui ipsorum lingua Celtae, nostra Galli appellantur... ( “A Gália está
toda dividida em três partes, das quais uma é habitada pelos belgas, a outra
pelos aquitânios, a terceira pelos que em sua língua se chamam celtas, na nossa
gauleses...”).
Passemos a seguir aos dados biográficos a respeito de Tácito. Da biografia
de Tácito ressaltamos que desempenhou diferentes cargos públicos: pretor sob
Domiciano e cônsul sob Nerva. Sobreviveram as seguintes obras: Diálogo dos
oradores (sobre a evolução da eloqüência); Germânia (De moribus Germano-
rum), em 98 ; Agricola (biografia do sogro de Tácito); Histórias (sobre acon-
tecimentos da época em que viveu); e Anais (sobre acontecimentos anterio-
res aos descritos nas Histórias). Segundo Maria Corrêa Ciribelli (CIRIBELLI,
1978: 299),
Tácito louva a verdade como uma das qualidades dos escritores da república
e, como seu contemporâneo, Plínio o Jovem, considera a História obra de exa-
tidão e sinceridade (...).
Tanto para Tácito como para Plínio o Jovem, bastava que o indivíduo co-
nhecesse política e fosse bom orador para fazer História. Não havia necessidade
de preparação especial (...).

– 104 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Na Germania, em 46 parágrafos, estão sintetizadas informações sobre a re-


gião e os povos da Germânia. Tácito segue uma tradição etnográfica que em
Roma é desenvolvida por César, Tito Lívio, Plínio. Além disso, há várias pas-
sagens que podem ser identificadas com trechos do De bello Gallico. A Ger-
mania é considerada como um verdadeiro tratado de geografia humana, onde
se vislumbra a oposição entre o luxo da sociedade romana e a austeridade dos
germanos.
Quanto às informações a respeito dos germanos extraídas dos autores
selecionados, poderíamos destacar a princípio que a primeira referência aos
germani localiza-se no texto de César já no primeiro livro, primeiro parágrafo.
César preocupa-se também em descrever características que distinguem os
vários povos que se reúnem sob o nome comum de germanos (no livro IV,
por exemplo). Mas é no livro VI que César vai se deter nos hábitos e costumes
destes povos, quando compara os gauleses aos germanos nos parágrafos 10 ao
29, dedicando aos germanos os parágrafos 21 a 29. Salientamos que os povos
germânicos , de certa forma admirados por seu ardor guerreiro, não deixaram
de despertar no imaginário romano fantasias a respeito de seus costumes, lem-
brando que territórios pouco conhecidos poderiam abrigar seres estranhos e
ferozes.
Tácito destaca , no primeiro parágrafo da Germania, a origem dos povos
germânicos:
Ipsos Germanos indigenas crediderim minimeque aliarum gentium aduen-
tibus et hospitiis mixtos, quia nec terra olim sed classibus aduehebantur qui
mutare sedes querebant...
( Acredito que os germanos são naturais de sua própria terra e que também
não criaram relações de hospitalidade com outros povos, contatos que resultas-
sem em misturas ...).
Para o historiador, Hércules teria estado entre os germanos. No terceiro pa-
rágrafo da Germania:
Fuisse apud eos et Herculem memorant, primumque omnium uirorum
fortium ituri in proelia canunt.
( Contam que Hércules esteve entre eles e, antes dos combates o rememo-
ravam como o primeiro dentre os heróis ...).

– 105 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Ainda no mesmo parágrafo, Tácito comenta que também Ulisses teria che-
gado à Germânia:

Ceterum et Vlixen quidam opinantur longo illo et fabuloso errore in hunc


Oceanum delatum adiisse Germaniae terras, Asciburgiumque, quod in ripa
Rheni situm hodieque incolitur, ab illo constituum nominatumque(...); aram
quin etiam Vlixi consecratam, adiecto Laertae patris nomine, eodem loco olim
repertam, monumentaque et tumulos quosdam Graecis litteris inscriptos in
confinio Germaniae Raetiaeque adhuc extare.
( Dizem alguns que Ulisses, em seu longo e fabuloso caminho, chegou às
terras da Germânia, fundando Arciburgio, situada às margens do Reno, ainda
hoje habitada. Dizem que, nesta cidade, foi encontrado um altar consagrado
a Ulisses, com o nome de Laertes, seu pai. Dizem também que existem alguns
monumentos e tumbas com inscrições gregas, na Germânia e na Récia, onde
seu nome está citado ...).
Tanto César quanto Tácito se detêm a relacionar características físicas, mo-
rais e comportamentais dos germanos. Se há pontos de convergência nos dois
relatos, há traços diferenciadores que chamam a nossa atenção, em especial no
que tangencia os costumes religiosos dos germanos . Há divergências quanto
a questão sacrificial. E Tácito, como veremos adiante, faz alusão direta ao De
bello Gallico, referindo-se, contudo, a um povo diferente daquele citado por
César.
Vejamos separadamente o que relatam os dois autores:
César, comenta, no parágrafo 21,
Germani multum ab hac consuetudine differunt. Nam neque druides ha-
bent qui rebus diuinis praesin, neque sacrificiis student. Deorum numero eos
solos ducunt quos cernunt (...)Solem et Vulcanum e Lunam...
(Os germanos diferem muito em costumes. Assim não tem druidas, que
presidam às coisas divinas nem sacrifícios. Contam unicamente no número dos
deuses, os que vêem (...) Sol, Lua, Vulcano).
Nos parágrafos seguintes César revela sucintamente aspectos relacionados
à convivência social e ao pouco esmero com a agricultura, uma vez que as ati-

– 106 –
A religiosidade dos celtas e germanos

vidades bélicas são bem mais incentivadas. Ocupa-se, então, o autor em par-
ticularidades dos povos no que diz respeito ao embate que irá ocorrer. Tácito
apresenta maiores detalhes a respeito de hábitos relacionados a crenças e atitu-
des perante os deuses.
Tácito, ao falar das práticas religiosas dos germanos, de forma mais ampla
em relação ao texto de Césarexplicita crenças e hábitos, segundo a visão roma-
na, utilizando também nomes do universo mítico greco-romano, mas afirma
que há sacrifícios, como no parágrafo 9:
Deorum maxime Mercurium colunt, cui certis diebus humanis quoque
hostiis litare fas habent. Herculem ac Martem concessis animalibus placant
(Cultuam dentre os deuses especialmente Mercúrio e, para que sejam fa-
voráveis, acreditam que devem sacrificar vítimas humanas. Já Hércules e Marte
são aplacados com animais...).
Observamos passagem citada acima que Tácito usa a mesma frase utilizada
por César para falar do culto a Mercúrio. César afirma: Deum maxime Mercu-
rium colunt (VI, 17); Tacito: Deorum maxime Mercurium colunt. Um detalhe
que merece destaque: César fala dos gauleses.
No mesmo parágrafo 9, Tácito comenta que os germanos não aceitam ide-
alizações antropomórficas para seus deuses:
Ceterum nec cohibere parietibus deos neque in ullam humani oris speciem
adsimulare ex magnitude caelestium arbitrantur.
(Julgam que não se adequa à magnitude dos seres celestes os manter entre
paredes ou mostrá-los com alguma feição humana).
São respeitadíssimas, segundo Tácito, as práticas de adivinhação (no pa-
rágrafo 10): Auspicia sortesque ut qui maxime obseruant...(“os auspícios e as
sortes são amplamente observados...”). Os germanos, além de tirar a sorte uti-
lizando um ramo de árvore frutífera, marcado com sinais e dividido em peda-
ços, consultavam o voo e o canto das aves. E causa admiração ao historiador a
observação atenta do relinchar dos cavalos, também no parágrafo 10:
Proprium gentis equorum quoque praesagia ac monitus experiri: publice
aluntur isdem nemoribus ac lucis, candidi et nullo mortali opere contacti; quos

– 107 –
A religiosidade dos celtas e germanos

pressos sacro curu sacerdos ac rex uel princeps ciuitatis comitantur hinnitus-
que ac fremitus obserua.
(É próprio do povo observar os presságios através do relinchar dos ca-
valos. Eles são alimentados para o interesse público em suas próprias selvas e
bosques sagrados. Têm o pelo branco e nenhum mortal pode ter contato com
eles. São atrelados a um coche sagrado e um sacerdote, um rei ou o principal da
cidade, os acompanham, observando sua respiração e seu relincho).
Para concluir podemos dizer que, mesmo se restam dúvidas quanto à ve-
racidade das informações extraídas dos dois autores, e, se consideramos exa-
gerados os elogios à moral e à fortaleza de caráter dos povos descritos (que
poderiam contrastar com os vícios de seus contemporâneos ), reconhecemos o
valor de suas obras, em especial no que concerne ao olhar romano em direção
aos povos subjugados. Impuseram vocábulos latinos para expressar conceitos,
práticas administrativas e cultos religiosos, sem se preocupar qual era o valor
dos mesmos para os povos enfocados. César e Tácito, entretanto, reconhecem
nos germanos o vigor moral e a força da tradição.

BIBLIOGRAFIA
ACCIOLI, Roberto. César e a revolução romana. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1987.
BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa. Petrópolis: Vozes,
1972.
BOISSIER, Gaston. Tácito. São Paulo: Difusão, s.d.
BOWDER, Diana. Quem foi quem na Roma antiga. Trad. Maristela Ribeiro
de Almeida Marcondes. São Paulo: Art Editora, 1990.
BOWRA, C.M. Virgílio, Tasso, Camões e Milton (Ensaio sobre a epopéia).
Trad. António Álvaro Dória. Porto: Livraria Civilização, 1950.
CANFORA, Luciano. Júlio César: o ditador democrático. Trad. Antonio da
Silveira Mendonça. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, história. São Paulo: Papi-
rus, 1997.

– 108 –
A religiosidade dos celtas e germanos

CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. São Paulo: Martins Fon-


tes, 2003.
CARR, Edward Hallet. O que é história? Trad. Lúcia Maurício de Alverga.
São Paulo: Paz e Terra, 1996.
CÉSAR. Guerre des Gaules. Texte ét. par L. A. Constans. Paris: Les Belles
Lettres, 1926
CIRIBELLI, Marilda Corrêa. Tito Lívio e a crítica histórica moderna. São
Paulo: USP / Secção Gráfica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
manas, 1978

FREIRE, António. Humanismo clássico. Braga: Publicações da Faculdade


de Filosofia, 1986
FUNARI, Pedro Paulo. Antiguidade clássica: a história e a cultura a partir
dos documentos. Campinas: UNICAMP, 2002.
________ Roma. Vida pública e privada. São Paulo: Atual, 1993.
GAILLARD, Jacques. Introdução à literatura latina. Trad. Cristina Pimen-
tel. Lisboa: Editorial Inquérito, 1994.
LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das
Letras: 2006.
MAGNE, Augusto. Geografia, história e instituições romanas. São Paulo:
Editora Anchieta, 1946.
RICOEUR, Paul. Temp et récit. Paris: Éditions du Seuil, 1983. 3v.
SILVA, Márcia Regina de Faria da. Augusto e as transformações no cenário
romano. Principia. Revista do Departamento de Letras Clássicas e Orientais da
UERJ, Rio de Janeiro, n. XI, p. 29-38, 2004.
SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria e metodologia literárias. Lisboa:
Universidade Aberta, 1990.
TACITE. La Germanie. Tex. ét. et trad. par Jacques Perret. Paris: Les Belles
Lettres, 1949

– 109 –
A religiosidade dos celtas e germanos

– 110 –
A religiosidade dos celtas e germanos

O CONCEITO DE UNIVERSAL EM JOHN DUNS SCOT


Prof. Dr. Moisés Romanazzi Tôrres (UFSJ)
Os séculos XIV e XV são caracterizados, em relação à época anterior, os
“Tempos Feudais” (séculos XI, XII, XIII), por continuidades e rupturas. As
primeiras correspondem aos processos históricos de longa duração que ca-
racterizam a Baixa Idade Média: as estruturas senhoriais e as feudo-vassálicas,
o desenvolvimento urbano, os conflitos entre Império e Papado, a expansão
do ensino universitário, entre outros pontos. As segundas dizem respeito aos
elementos da “Crise” que, segundo muitos autores, se abateram então sobre o
conjunto da sociedade medieval. Ainda que essa dita Crise seja de fato muito
relativa, uma vez que não acarretou a depressão socioeconômica (com rami-
ficações em outros setores) de todo o Ocidente, sendo singularmente sentida
apenas no norte do Reino da França, teve ela repercussões de grande monta no
meio universitário. Com efeito, juntamente com a expansão do ensino univer-
sitário através da Europa, ocorreu feudalização e senhoralização do meio que,
abandonando suas preocupações corporativas, tornou-se um centro de riqueza
e poder em aliança, via de regra, com os Estados Monárquicos emergentes. Tal
mudança causou uma sensível queda no ensino universitário.
Toda essa mutação social foi acompanhada alterações significativas na pró-
pria escolástica. É natural que, com a referida decadência e, principalmente,
sendo a Universidade de Paris tida com a universidade por excelência, princi-
pal centro do ensino teológico, seu método e seus princípios, tantos teológicos
como filosóficos, fossem então duramente criticados.
Tal perspectiva teve como uma de suas frentes principais a constituída
pela Universidade de Oxford e por seus mestres. Com efeito, o século XIV foi
marcado pela, usando palavras de Alain De Libera, “irresistível decolagem da
filosofia inglesa”. Quer dizer, para este autor, com exceção da Germânia (onde
a escolástica dominicana alemã, fundada por Santo Alberto Magno, mantém,
com Dietrich de Freiburg, Mestre Eckhart e Bertolo de Moosburg, uma orien-
tação neoplatônica original), a maior parte do que De Libera chamou os “países
‘universitários’”, particularmente, o reino da França e a Península Itálica, foram
então impregnados de idéias inglesas (DE LIBERA, 1998, p. 418).
John Duns Scot nasceu em Maxton, condado de Rosburgh, na atual Escó-
cia, por volta de 1270, e faleceu prematuramente em 1308. Em 1277, entra para
o convento franciscano de Dumfries e em 1281 ingressa na Ordem dos Frades

– 111 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Menores. Estudando em Oxford pouco antes de 1290, ordenou-se padre em


Northampton em 1291 e foi estudar mais tarde em Paris, onde teve como mes-
tre Gonzalo de Balboa (1293-1296), tendo voltado depois a estudar em Oxford,
com Guilherme de Ware. Foi lá que começou a ensinar teologia, em 1300. A
base deste ensino forma o conteúdo de seu primeiro Comentário sobre as Sen-
tenças de Pedro Lombardo denominado Opus Oxoniense. Em 1302, retornou
à Paris e, para obter o grau de Doutor, aí começou pela segunda vez o mesmo
texto. Devemos assim a este estudo a segunda redação do seu Comentário, dito
Reportata Parisiensia.
Em 1303, parece tomar o partido papal durante a famosa querela entre a
Santa Sé e o poder capetíngio, ao menos se recusou a assinar um documento
de apelações contra os decretos papais. O resultado foi que, como punição, foi
banido da França por Felipe, o Belo. Retorna, no entanto, a Paris em 1304,
torna-se aí Doutor em teologia em 1305. É em 1307 mandado para Colônia,
onde morre em 8 de novembro de 1308.
Além de seus dois Comentários sobre Pedro Lombardo, temos dele uma
série de escritos sobre lógica, importantes Questões sobre Metafísica, Quaes-
tiones Quodlibetates e um tratado De Primo Principio.
Com efeito, como bem salienta Etienne Gilson, ainda que não considere-
mos obras menos importantes ou de autenticidade duvidosa, ficamos confusos
diante da imensidão do esforço realizado por um mestre falecido aos quarenta
e dois anos (GILSON, 1995, p.737).
Seus princípios lógicos, metafísicos e teológicos naturalmente nascem en-
tão de concepções particulares, produtos do gênio intelectual de Scot, ligadas
a sua interpretação pessoal dos parâmetros lógicos, metafísicos e teológicos do
seu tempo. Mas estão também inseridas num outro processo, ligado a uma dis-
puta fundamental que marcou toda a Europa Ocidental desde o século XIII,
continuo-se pelos séculos XIV e XV, e teve profundas repercussões inclusive
para bem além da Idade Média, ou seja, o embate entre duas tradições filosófi-
cas, a da Universidade de Oxford e a da Universidade de Paris.
De fato, temos que ter sempre em mente que Scot foi um homem de par-
tido. Ou seja, em Oxford e mesmo em Paris, fundamentalmente em sua obra,
defendia sua escola teológico-filosófica, a franciscana e oxfordiana, de fundo
agostiniano, contra a tradição da escolástica parisiense, de fundo dominicano
e aristotélico. Apenas ele não foi um agostiniano radical, como veremos. Igual-

– 112 –
A religiosidade dos celtas e germanos

mente defendeu o papa contra as pretensões capetíngias. Sim, pois sua recusa
em assinar o documento anti-papal denota essa defesa. Dessa forma, sua pro-
dução teológica, lógica e metafísica traz a marca de seus interesses e opiniões de
grupo enquanto oxfordiano de escola e defensor do Papado. Apenas, enquanto
a primeira postura é evidente e, nisto, aceita consensualmente pelos estudiosos
da filosofia medieval, a segunda não parece ser óbvia.
Mas quanto à filiação intelectual de Duns Scot temos que traçar mais al-
gumas linhas. Béraud de Saint-Maurice salienta que sua obra tem um caráter
nitidamente agostiniano nas suas linhas mestras, sempre franciscano nos de-
talhes como no conjunto e muitíssimas vezes de acordo com Santo Tomás e
Aristóteles. Realiza assim uma síntese do agostianismo e do aristotelismo, gra-
ças a uma via media por ele sabiamente aberta entre os dois sistemas opostos
(SAINT-MAURICE, 1947, p.120).
Na verdade, Duns Scot em sua teologia e em sua filosofia, a um fundo agos-
tiniano acrescentava empréstimos da linha aristotélica. Isto, no entanto, não
o impedia de discordar radicalmente (inclusive em princípios fundamentais),
de Santo Tomás e, mesmo, de Aristóteles. Tal fundo agostiniano, por outra,
não implicava numa aceitação total da obra de Santo Agostinho. Por vezes ele
discordou deste, e, mesmo, de Platão. Seria então melhor dizer que Duns Scot,
em vez de uma grande síntese ou uma via média, apenas não foi (diferente da
maioria dos franciscanos), totalmente avesso ao aristotelismo e, mesmo, pro-
curou por vezes combinar elementos das duas linhas, mas dotando-os sempre
de um caráter original.
Mas se podemos de forma relativamente fácil compreender sua filiação in-
telectual, sua filiação política parece ser um tanto obscura. Para compreendê-la,
no entanto, devemos entender melhor o quadro sociopolítico da época e espe-
cialmente a querelas entre o Papado e o Reino da França por ocasião, respecti-
vamente, de Bonifácio VIII e Felipe, o Belo.
De fato, com relação aos processos sócio-políticos, os séculos XIV e XV
foram marcados por um quadro complexo de múltiplas formas de poder em
conflito. Num extremo encontravam-se poderes locais, de toda sorte, que ainda
marcavam profundamente o Ocidente. No outro, os poderes de pretensão uni-
versalista, ainda que decadentes – o Império e o Papado. Entre os dois, se de-
senvolviam as figuras do rei e do Estado Monárquico que, lutando contra todas
essas forças, foram progressivamente se impondo num processo multissecular
de avanços e recuos que, de fato, só chegou à conclusão na Idade Moderna. Foi

– 113 –
A religiosidade dos celtas e germanos

em virtude dessa nova evolução que a multissecular disputa entre os poderes


político e religioso tomou então uma nova versão: a querela entre o poder papal
e o de um rei.
Bonifácio VIII, em virtude da plenitudo potestatis papalis se julgava deten-
tor do direito de zelar sobre a política dos reis e imperadores e podia inclusive,
em caso de necessidade, sancioná-la. Uma tal doutrina que, de fato, prentendia
o governo in temporalibis, não podia ser ratificada pelo rei da França Felipe, o
Belo, por demais zeloso em manter seu poder sobre seu reino e, mesmo, sobre
a própria Igreja da França. Efetivamente o choque se deu quando, no fim do
século XIII, Bonifácio VIII, através da bula Clericis Laicos (1296), contestava
a validade das taxas cobradas dos eclesiásticos na França sem a permissão do
papa. O que se seguiu foi uma série de episódios com medidas drásticas toma-
das de ambos os lados. Por fim, poucos dias depois do papa emitir a bula Super
Petrio Solio (1303), desligando os súditos de Felipe da obediência ao seu rei,
Nogaret (conselheiro francês), à frente de uma pequena tropa, entrou na cida-
de de Anagni, onde estava o papa, e o aprisionou. Bonifácio foi logo posto em
liberdade (ficou só três dias aprisionado), mas morreu, em virtude do choque
possivelmente (há também suspeita de maus tratos), cerca de um mês depois.
Foi o episódio que ficou conhecido como o “Atentado de Anagni”, que selou
a vitória capetíngia, uma vez que após a morte do papa Bonifácio, o Papado
deslocou-se para Avignon, passando a ser, de certa forma, tutelado pelo poder
real francês.
Diante do recrudescimento da querela que se seguiu a Super Petrio Solio, a
Universidade de Paris logo assumiu o partido real, consoante com o seu com-
promisso com o poder capetíngio. Mas o studium franciscano incorporado à
universidade, rachou-se. Uma parte dele aderiu às apelações impostas pelo rei
da França dos decretos papais, a outra, composta por oitenta e sete frades in-
cluindo John Scot, se recusou a assinar o documento. Os não apelantes rece-
bem então ordem de deixar o reino no espaço de três dias após a recusa. Scot
partiu de Paris entre 25 e 26 de junho de 1303. Tal fato representou para nosso
pensador, ainda que momentaneamente como já comentamos,32 o abandono

32 Com efeito, depois da morte de Bonifácio VIII, que se seguiu ao “Atentado de


Anagni”, os exilados não apelantes tornam a entrar na França, a Universidade de Paris rea-
bre então os cursos destes em 14 de setembro de 1304 e Duns Scot retoma suas atividades.

– 114 –
A religiosidade dos celtas e germanos

de suas atividades na Universidade de Paris, juntamente como todos os prestí-


gios dele decorrentes.
Explicar tal atitude inicialmente parece tarefa simples. Podemos vê-la no
conjunto da reação franciscana contra a apelação real. Scot, tal qual os demais
que não assinaram o documento, como eclesiásticos fiéis aos seus votos de
obediência, não poderiam se voltar contra o papa. Igualmente deveriam jul-
gar certas atitudes do capetíngio como desmandos de poder. Mas qual seria
a impressão particular de Scot diante das perspectivas radicais da hierocracia
bonifaciana? Seria ele também um hierocrata? Inclusive um hierocrata radical
como Bonifácio VIII? Não veria ele, nas atitudes papais e nas linhas de suas
bulas, uma perspectiva nítida de subordinação do poder político pelo religioso
tal qual a filosofia pela teologia? Como que ele, defensor que era da autonomia
filosófica (esta era uma das propostas centrais da linha filosófica oxfordiana
contra a parisiense, por demais salientada por Scot ao longo de sua obra) se
posicionava a respeito do princípio de subordinação no campo do político? São
perguntas que não podemos deixar de procurar responder.
Mas, diferente de seu discípulo, de índole claramente antihierocrática, Gui-
lherme de Ockham, Duns Scot não escreveu sequer um opúsculo de filosofia
política e, em virtude disto, fica realmente difícil caracterizá-lo, numa primeira
vista, definitivamente a favor ou contra a plenitudo potestatis papalis de Boni-
fácio VIII.
Porém, por um lado, em nossa opinião a recusa em assinar o documento
capetíngio demonstra sim uma aceitação em alguma medida das perspectivas
políticas papais. Com efeito, vivia Scot então sob a óptica do conflito. Seria,
portanto, ao menos improvável que ele, como teólogo e filósofo de grande acui-
dade, não viesse a tomar uma posição, de caráter especificamente político, com
relação ao mesmo. Como não assina o documento é porque dele discorda. Pen-
sar que tal discordância deriva somente de aspectos gerais (como apontados
acima), seria ter uma visão simplista do caso e, mesmo, de certa forma duvidar
da referida acuidade.
Mas, também, apesar de não ter escrito obras de caráter político, não seria
possível evidenciar aspectos de cunho político em sua obra teológico-lógico-
metafísica e, mesmo, em seu princípio do “(também) particularismo das es-
sências”, base de sua concepção realista dos universais? Tal obra em conjunto
e tal princípio em particular não teriam relação, em alguma medida, com sua

– 115 –
A religiosidade dos celtas e germanos

distinção entre os saberes e sua atitude de (relativa) defesa do papa contra o


capetíngio?
Alain de Libera observa que a teoria da essência e, conseqüentemente, a
compreensão do universal em John Duns Scot baseia-se na noção de unidade
não numérica do sensível. Segundo Scot, ainda que o ato de percepção tenha
por objeto o indivíduo, a sensação alcança também o universal: os objetos sen-
síveis têm uma unidade real, distinta da unidade numérica do singular e da
universalidade do conceito e é essa unidade que funda a universalidade concei-
tual. Tal questão, porém, liga-se a outra, a da anterioridade da natureza. Com
efeito, segundo a unidade que lhe é própria na medida em que é uma natureza,
a natureza é indiferente à unidade individual singular. Mesmo que essa natu-
reza jamais esteja realmente separada dos indivíduos dos quais ela é natureza,
de per si ela não é um desses indivíduos e é naturalmente anterior a todos eles.
Considerada segundo essa anterioridade natural a natureza é algo essencial,
ela é o objeto do intelecto. E é em função da qüidade33 assim interpretada que
as proposições por si do primeiro modo são verdadeiras. Pois tudo aquilo que
é predicado da qüidade de uma coisa segundo o primeiro modo da predica-
ção por si está compreendido nela essencialmente, na própria medida que essa
qüidade é separada dos indivíduos que lhe são naturalmente posteriores. (DE
LIBERA, 1998, pp. 420 e 421).
Segundo Philoteus Boehner e Etienne Gilson, Duns Scot dá início a um
rompimento decisivo com a teoria aristotélica do conhecimento. A preferência
aristotélica pelo universal sobre o singular jamais pode satisfazer-lhe o senti-
mento cristão. Assim introduz a distinção, posteriormente adotada por quase
todas as escolas, entre o conhecimento abstrativo e o conhecimento intuitivo. O
primeiro prescinde ou abstrai da existência e presença do objeto, para apreen-
der-lhe unicamente a essência mediante uma imagem cognoscitiva (“species”).
Já o conhecimento intuitivo, ao contrário, visa o objeto enquanto existente e
presente, apreende-o de modo imediato, sem a intervenção de qualquer ima-
gem. De sorte que o conhecimento intuitivo nos permite a entrar em contato
imediato com a própria coisa.

33 Qüidade ou Qüididade é um termo introduzido pelas traduções latinas fei-


tas no século XII (do árabe) a partir das obras de Aristóteles. Corresponde à expressão
aristotélica quod quid erat esse. Esse termo significa essência necessária (substancial) ou
substância.

– 116 –
A religiosidade dos celtas e germanos

A questão central é que, tomada em absoluto, a coisa singular é cognoscível,


isto é em sua singularidade, pois a singularidade (“haecceitas”) é uma deter-
minação positiva que torna a coisa singular precisamente esta coisa singular
e, como determinação positiva, ela contribui para a realidade e, conseqüen-
temente, para a cognoscibilidade. Tal perspectiva leva-o a rejeitar também a
Platão, mas exatamente a degradação platônica da coisa particular. Com efeito,
em Scot a particularidade também representa uma perfeição e, assim sendo,
o conhecimento do ser singular é também algo de perfeito (BOEHNER; GIL-
SON, 1991, pp. 495 e 496).
Desenvolvendo esta argumentação, Etienne Gilson, em seu clássico “A Fi-
losofia na Idade Média”, salienta que o princípio scotista do universal parte de
outro princípio seu, o do realismo das formas que se exprime primeiramente
em sua famosa teoria da “distinção formal”. Scot vislumbra esta distinção como
intermediária entre a distinção de razão e a distinção real, ocorrendo sempre
que o intelecto pode conceber, no seio de um ser real, um de seus constituinte
formais à parte dos outros. As formalitates assim concebidas são, pois, ao mes-
mo tempo, realmente distintas no pensamento e realmente unas da própria
unidade do sujeito.
Tal doutrina, prossegue Gilson, relaciona-se, em Scot, com o próprio pro-
cesso de formação dos conceitos. Para o Doctor Subtilis a essência é igualmente
indiferente ao universal e ao individual. Ela, no entanto, contém virtualmente
os dois. Destarte, o universal é um produto do intelecto, mas que tem seu fun-
damento nas coisas. Em outras palavras, o universal resulta sim da abstração
efetuada sobre as coisas por nosso intelecto. Mas se ele fosse um puro produto
do intelecto, sem nenhum fundamento nas próprias coisas, não haveria mais
nenhuma diferença entra a Metafísica, que tem por objeto o ser, e a Lógica, que
tem por objeto os conceitos. Ademais, toda a ciência (saber) seria uma simples
Lógica (“omnis scientia esset logica”). Assim é preciso aceitar que o real não é,
em si, nem pura universalidade, nem pura singularidade. Que não seja pura
singularidade, resulta do próprio fato de que podemos abstrair dele as idéias
gerais. Se a espécie já não possuísse certa unidade, inferior aliás à unidade nu-
mérica do singular, nossos conceitos não corresponderiam a nada. Mas, in-
versamente, o universal da espécie que se encontra, fragmentado, nos diversos
singulares, sempre se apresenta neles com a marca própria da singularidade.
Para explicar o singular, conclui Gilson, Scot parte da natureza ou essência
comum, nem universal nem particular, que o metafísico considera. Resolver

– 117 –
A religiosidade dos celtas e germanos

este problema consiste, pois, para ele, inevitavelmente, em acrescentar à essên-


cia uma determinação “individuante”. Essa determinação não poderia ser uma
forma, porque toda forma é comum aos indivíduos de uma mesma espécie.
Portanto, ela deve se acrescentar à forma a partir do interior. De fato, segundo
Duns Scot, ela é sua atualidade última. É a famosa “hecceidade” scotista, o ato
último que determina em relação à forma da espécie a singularidade do indiví-
duo (GILSON, 1995, pp. 746 e 747).
Segundo Giovanni Reale e Dario Antiseri, Duns Scot reafirma o primado
do individual, negando existir, em si ou em Deus, a natureza ou a essência da
qual os indivíduos participariam. Com efeito, para ele, nem a matéria, essen-
cialmente indeterminada, nem a forma, indiferente à individualidade e à uni-
versalidade (sendo, por natureza, comum a todos os entes da mesma espécie)
e, consequentemente, sequer o composto podem ser causa das características
e das diferenças individuais. Essa entidade (a individualidade) não é nem ma-
téria, nem forma, nem composto, no sentido que cada um deles é natureza,
mas é a realidade última do ente que é matéria, que é forma, que é composto.
Scot sustenta então que é a realidade última que explica a individualidade, isto
é, a sua perfeição, graças à qual uma realidade “haec est”, é esta e não outra.
Daí exatamente o termo haecceitas, que indica a formalidade ou a perfeição
pela qual cada ente é o que é e se distingue de todo outro ente. Deste contex-
to, prosseguem Reale e Antiseri, deriva a exaltação scotista da pessoa humana.
Sugestivamente descrita como “ultima solitudo”, a pessoa é ab alio, pode ser
cum alio, mas non in alio. Em outras palavras, pode se comunicar, condicio-
nar e ser condicionada, mas não perder a sua identidade. O ente pessoal é um
universal concreto, porque, em sua unicidade, não é parte de um todo, mas
sim um todo no todo, imperium in imperio. No conceito bem determinado de
“pessoa”, coincidem o particular e o universal. O homem, cada homem, não é
determinação do universal. Enquanto realidade singular no tempo e irrepetível
na história, ele, na realidade, é supremo e original, porque, graças à mediação
de Cristo, destina-se ao diálogo com Deus uno e trino da escritura (REALE;
ANTISERI, 2005: 607 e 608).
Bem, analisando sua perspectiva com relação à questão dos universais, ob-
servando sua inovadora visão da essência e tentando estabelecer uma relação
com sua atitude de caráter político ficamos, no entanto, ainda mais na dúvida.
Um dos princípios centrais de sua obra teológica, lógica e metafísica, foi
defender a autonomia da filosofia diante da teologia, seguindo assim uma pers-

– 118 –
A religiosidade dos celtas e germanos

pectiva de autonomia das realidades terrestres normalmente contida na pena


dos antihierocratas. Tal perspectiva relaciona-se diretamente a valorização da
pessoa humana vista acima, que é, em última análise, o eixo mestre de seu re-
alismo e de sua idéia de essência. Haveria então uma nítida contradição entre
sua postura teológico-lógica-metafísica e sua atitude de recusa ao poder cape-
tíngio? Sim, afinal, como vimos antes, um dos grandes objetivos de Felipe era
o de se desvencilhar da tutela papal através da reivindicação de autonomia do
poder político, isto é, admitir um domínio próprio ao Estado independente da
Igreja e, especialmente, do Papado.
Claro que pode se objetar no sentido de que uma perspectiva de autonomia
das realidades terrestres aparece também em penas hierocráticas. O caso de
Santo Tomás de Aquino é aqui um exemplo característico.
Com efeito, em pleno século XIII com a recepção no Ocidente do pensa-
mento aristotélico, especialmente da Politica, não havia mais como negar ao
Estado um campo dotado de certa autonomia. Mas dois pontos devem ser ob-
servados.
Primeiramente, o princípio tomista dessa referida autonomia é bem mais
conservador que o scotista, não admitindo a independência da filosofia em
relação à teologia. O princípio tomista, na realidade, baseia-se na idéia geral
de Distinção dos Domínios que, na verdade, bem caracteriza o pensamento
hierocrata.
Etienne Gilson nos relata a este respeito. Como há nítida diferença entre o
temporal (o Estado) e o espiritual (a Igreja), temos de fato dois domínios, isto
é, dois campos de atuação, mas, nesta perspectiva, o Estado está sempre para a
Igreja da mesma forma como a filosofia está para a teologia e como a natureza
está para a graça, ou seja, a doutrina medieval hierocrática tende a absorver o
Estado na Igreja, a distingui-lo dela da mesma forma e com as mesmas nuan-
ças com que tende a absorver a filosofia na teologia e a natureza na graça, e a
distinguí-las. Assim o príncipe, que tem autoridade sobre o temporal e o con-
duz a seus fins temporais (fins antecedentes ou secundários), esta subordinado
ao papa, que conduz o príncipe e seu povo ao fim espiritual último, a fruição de
Deus (GILSON, 1995: 308-309).
Em segundo lugar, o princípio hierocrático tomista, desenvolvido prefe-
rencialmente em seu opúsculos políticos Questões sobre a Lei na Suma de Te-
ologia e Do Reino ou do Governo dos Príncipes ao Rei de Chipre , refere-se à

– 119 –
A religiosidade dos celtas e germanos

perspectiva de potestas indirecta ratione pecatti dos papas de então, não tendo
a radicalidade do de Bonifácio VIII que, em sua idéia de potestas indirecta,
pretendia, como comentado, de fato governar in temporalibus.
Por tudo, permanece a estranheza com relação ao fato que John Duns Scot,
assumindo a liberdade da filosofia perante a teologia, e valorizando mais que
qualquer outro filósofo escolástico até então a pessoa humana, não assumisse
também claramente a defesa do Estado perante a Igreja e, em particular, peran-
te o Papado.

V. Referências Bibliográficas:

V.a – Corpus Documental:


JOHN DUNS SCOT. Escritos Filosóficos. Trad. e notas de Carlos Ar-
thur Nascimento e Raimundo Vier. Coleção Os Pensadores. Vol.: Duns Scot/
Ockham. São Paulo: Nova Cultural, 1989.

V.b - Bibliografia:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
DE LIBERA, Alain. Penser au Moyen Âge. Paris: Éditions du Seuil, 1991.
----------------------- A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
GUENÉE, Bernard. O Ocidente nos Séculos XIV e XV. Os Estados. São
Paulo: EdUSP, 1987.
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes,
1995.
----------------------; BOEHNAR, Philoteus. História da Filosofia Cristã:
Desde as Origens até Nicolau de Cusa. Petrópolis: Vozes, 1982.
HEERS, Jacques. História Medieval. São Paulo: Bertrand Brasil, 1991.

– 120 –
A religiosidade dos celtas e germanos

HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. Verbete: Duns Escoto (ou


Scot) João, 1266-1308, Frade Menor. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
JUNIOR, Pedro Leite. O Problema dos Universais: A Perspectiva de Boécio,
Abelardo e Ockham. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2001.
KNOWLES, David; OBOLENSKY, Dimitri. Nova História da Igreja. Volu-
me II: A Idade Média. Petrópolis: Vozes, 1974.
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Lisboa: Estampa,
1983, 2 Vols.
----------------------- Os Intelectuais na Idade Média. São Paulo: Brasiliense,
1988.
MATTOS, Carlos Lopes de. Duns Scot/Ockham. Vida e Obra. Introdução
do Vol.:. Duns Scot/ Ockham, da Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cul-
tural, 1989, pp.: V a X.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Vol. 1. São Pau-
lo: Paulus, 2005.
SAINT-MAURICE, Béraud. João Duns Scot, Doutor dos Tempos Novos.
Petrópolis: Vozes, 147.
VERGER, Jacques. Homens e Saber na Idade Média. São Paulo: EdUSC,
1999.
------------------------“Les Moyens de la Connaissance.” In: FAVIER, Jean
(org.). La France Médiévale. Paris: Fayard, 1983, pp. 489 a 507.

– 121 –
A religiosidade dos celtas e germanos

DE IMPERADOR DOS ÚLTIMOS DIAS A ANTICRISTO: O PAPEL ES-


CATOLÓGICO E A DEMONIZAÇÃO POLÍTICA DOS IMPERADORES
GERMÂNICOS (1152-1250)
Prof. Ms. Vinicius Cesar Dreger de Araujo (Doutorando USP)

Frederico I: O Imperador dos Últimos Dias

“Que frutos produzem as mudanças e as destruições dos reinos, eis um pro-


blema que devemos deixar a Deus, de quem nada pode vir inutilmente. No
entanto, não faltam gentes para dizer que Deus quis humilhar o Reino a fim
de exaltar a Igreja. Ninguém põe em dúvida, na verdade, que a Igreja, exaltada
e enriquecida pela força do Reino e a benfeitoria dos reis ... pôde humilhar o
Reino a tal ponto ... que ele se acha destruído não só pela espada espiritual mas
também pela sua própria espada material.” (LOPEZ, 1965: 215)

As reflexões de Oto de Freising acima mencionadas servem para introduzir


o tema da disputa entre Regnum e Sacerdotium que muito nos interessa, já que
durante os séculos X e XI, especificamente entre 962 e 1075, o reino mais estável
e poderoso da Europa era o Império Romano, mais uma vez restaurado, sob os
otônidas e sucedidos pelos sálios. Seu prestígio era indisputado e seu poder tal
que governavam a Igreja como se fosse um de seus domínios, nomeando papas
de acordo com sua conveniência, além do fato de terem tornado o episcopado
na Germânia em sua burocracia estatal, o chamado Imperial Church System,
no qual os imperadores garantiam vastas doações ao clero, ao mesmo tempo
em que nomeavam quem melhor lhes aprouvesse para os cargos eclesiásticos
a que os benefícios estavam ligados, criando assim um sólido grupo de apoio
ligado por laços de vassalagem, aliado à vantagem de que os cargos e benefícios
não eram hereditários.
Esta ingerência laica manifestava-se em todos os estratos da Ecclesia, fato
este que levou à reação conhecida como Reforma Gregoriana, cujos objetivos
eram tanto a separação entre clerezia e laicado, quanto a moralização do clero.

– 122 –
A religiosidade dos celtas e germanos

As tensões geradas pelo atrito entre o papado reformista e o império atin-


giram seu ápice na década de 1070, quando Henrique IV e Gregório VII passa-
ram do estágio da confrontação ideológica (como o Dictatus Papae34) para as

34 1.That the Roman church was founded by God alone.


2. That the Roman pontiff alone can with right be called universal.
3. That he alone can depose or reinstate bishops.
4. That, in a council his legate, even if a lower grade, is above all bishops, and can pass
sentence of deposition against them.
5. That the pope may depose the absent.
6. That, among other things, we ought not to remain in the same house with those
excommunicated by him.
7. That for him alone is it lawful, according to the needs of the time, to make new
laws, to assemble together new congregations, to make an abbey of a canonry; and,
on the other hand, to divide a rich bishopric and unite the poor ones.
8. That he alone may use the imperial insignia.
9. That of the pope alone all princes shall kiss the feet.
10. That his name alone shall be spoken in the churches.
11. That this is the only name in the world.
12. That it may be permitted to him to depose emperors.
13. That he may be permitted to transfer bishops if need be.
14. That he has power to ordain a clerk of any church he may wish.
15. That he who is ordained by him may preside over another church, but may not
hold a subordinate position; and that such a one may not receive a higher grade
from any bishop.
16. That no synod shall be called a general one without his order.
17. That no chapter and no book shall be considered canonical without his authority.
18. That a sentence passed by him may be retracted by no one; and that he himself,
alone of all, may retract it.
19. That he himself may be judged by no one.
20. That no one shall dare to condemn one who appeals to the apostolic chair.
21. That to the latter should be referred the more important cases of every church.
22. That the Roman church has never erred; nor will it err to all eternity, the Scripture
bearing witness.
23. That the Roman pontiff, if he have been canonically ordained, is undoubtedly
made a saint by the merits of St. Peter; St. Ennodius, bishop of Pavia, bearing wit-
ness, and many holy fathers agreeing with him. As is contained in the decrees of St.
Symmachus the pope.
24. That, by his command and consent, it may be lawful for subordinates to bring ac-
cusations.
25. That he may depose and reinstate bishops without assembling a synod.

– 123 –
A religiosidade dos celtas e germanos

vias de fato. Pela 1a vez um papa excomunga o outro representante de Deus e


assim utilizando a máxima sanção religiosa para fins políticos.
Antes da Reforma tal duelo era impensável. Segundo Kantorowicz, o mode-
lo de realeza otoniano e sálio foi o centrado em Cristo, já que através da unção
régia o monarca era transformado em persona gemina com o sagrado. Esta
noção caiu por terra devido à agressiva argumentação político-teológica gerada
durante a Contenda das Investiduras. O Papado passou a aspirar a supremacia
sobre a Cristandade e por isso minou o fundamento ideológico imperial, re-
servando para si mesmo a prerrogativa de ser o representante único de Deus,
relegando o Imperador ao status de leigo, humanizando, por assim dizer, a sua
figura.
Para o século XII restou a necessidade urgente de readquirir legitimidade
sobrenatural aos imperadores.
Frederico Barbarossa, ao assumir o trono da Germânia em 1152, deparou-
se com uma situação problemática: entre Henrique IV e seu antecessor imedia-
to Conrado III, houve um real declínio do poder monárquico na Germânia e
o seu virtual desaparecimento na Itália. O patrimônio régio dos Sálios foi dila-
pidado, assim como sua autoridade; ambos abarcados pelos grandes senhores
territoriais, cujo esporte predileto sempre foi a promoção de guerras particu-
lares. A Igreja Germânica, antes o grande esteio dos monarcas, encontrava-se
dividida entre os partidários da Reforma Gregoriana e os que ainda apoiavam
os imperadores. Os fundamentos ideológicos da monarquia germânica, liga-
dos a uma teologia política do Rei-Cristo (lembrando que CHRISTOS significa
Ungido, assim como os monarcas eram sagrados e que “(...)todo rei é uma hi-
póstase do Rei dos Reis, do Ungido que unge outros, Jesus Cristo” (FRANCO
JR, 1992: 66) na qual depositavam sua credibilidade e por conseqüência, sua
legitimidade, foram solapados pela Reforma Gregoriana.
Frederico estabeleceu no início de seu reinado um programa de pacificação
(Landfreide) aliado à um esforço tanto legislativo quanto administrativo atra-
vés do qual pudesse recuperar o controle das regalia e da mouvance imperiais.
Uma das principais medidas administrativas, foi a de substituir (pelo menos
em parte) o papel da Igreja na administração imperial pelos Ministeriales e a

26. That he who is not at peace with the Roman church shall not be considered catholic.
27. That he may absolve subjects from their fealty to wicked men.

– 124 –
A religiosidade dos celtas e germanos

retomada do privilégio garantido pela Concordata de Worms (1122) que dava


ao imperador o direito de aprovar ou não as candidaturas episcopais. Deste
modo, Barbarossa e sua chancelaria conseguiram reorganizar o Império em
poucos anos. Outra medida carregada de conseqüências foi o redespertar do
Direito Romano, principalmente na Universidade de Bologna, que durante a
década de 1150 passou a receber apoio imperial e a fornecer mão de obra es-
pecializada para a administração do Império. De fato, a restauração do Direito
Romano, na qual a principal fonte do poder era o Imperador (estamos falando
do Direito em sua fase imperial, compilado a mando de Justiniano no século
VI) trouxe uma nova fonte de legitimação para a ideologicamente combalida
monarquia germânica em dois planos diferenciados: o intelectual e o imaginá-
rio. Intelectualmente, o domínio da esfera jurídica pelo Imperador, não causava
superposição direta às esferas de influência dos Papas como quando de sua
legitimação teológica e assim encontrava-se relativamente segura de um assalto
às suas posições por parte dos intelectuais da Igreja. Dentro do plano Imaginá-
rio, configurava-se de modo muito mais agressiva a posição dos Imperadores
frente aos Papas: tornava-se o concessor de Justiça por excelência, a fonte do
Direito, assim como Deus; de fato, como fomos recordados pela recente ação
no Afeganistão, a “Justiça Infinita”, é atributo divino. Isso era também compre-
endido na Idade Média, talvez de modo ainda mais gutural que nos dias de hoje
e a busca por uma justiça imparcial foi até caracterizada como uma “utopia”
medieval, a espera pelo Milênio.
E Frederico I de Hohenstaufen acabou por integrar-se às correntes mile-
naristas medievais: o mito do Milênio recebeu muitos complementos durante
a Idade Média e ganhou vários personagens que surgiriam antes da Parusia e
entre eles, destacaram-se o Imperador dos Últimos Tempos, o precursor da
Parusia e o grande Adversário, o Anticristo.
Os dias e acontecimentos que antecedem o Juízo Final encontravam-se des-
critos nos Oráculos Sibilinos, conjunto de textos escritos em grego entre os
séculos II a.C. e IV d.C., depois recompilados no século VI. Especialmente a
chamada Sibila Tiburtina, de fins do século IV com versão latina de meados
do século XI. Ali aparecia pela primeira vez a figura do Último Imperador do
Mundo, em cujo reinado todos os pagãos se batizarão e “haverá numerosas
riquezas, a terra produzirá frutos em abundância, ao ponto de uma medida de
trigo ser vendida por um denário, uma medida de vinho por um denário, uma
medida de azeite por um denário”. Respondendo a ansiedades profundas, o Úl-
timo Imperador do Mundo desde então estaria sempre presente no universo

– 125 –
A religiosidade dos celtas e germanos

imaginário medieval, muitas vezes confundido ao Messias, já que intimamente


ligado à figura de Cristo35.
Em todo caso,
“privilegiadamente, o Messias era um rei, que para as sociedades arcaicas é
a encarnação do povo. No Ocidente medieval, o caráter religioso do monarca,
negado de início pela própria cristianização dele, foi recuperado a partir do
século VII na Espanha visigoda e do século VIII nas demais regiões, com a
prática da unção que o tornava sagrado. Desde princípios do século IX com
Luís, o Pio, unção e coroação tornaram-se quase inseparáveis.”. (FRANCO JR,
1992:66)
Dentre os diversos reis medievais ligados a esta corrente messiânica, desta-
camos Carlos Magno, o primeiro restaurador do Império, foi ungido e recebeu
uma forte carga escatológica decorrente de suas conquistas militares que leva-
ram diversos povos pagãos a cristianizarem-se e de seu combate aos muçulma-
nos durante a invasão que criou a Marca Espanhola e fez nascer o episódio de
Roncesvalles que, reinterpretado, gerou a Canção de Rolando. Tradições pos-
teriores também fizeram dele um cruzado avant la lettre e tornou-se também
mais um monarca adormecido que há de retornar. E neste momento converter
todos os pagãos e os infiéis tornando-se assim um precursor do Imperador dos
Últimos Dias (já que este teria que governar o mundo já livre dos não-cristãos).
Somado a esta tradição, Frederico I foi cruzado duas vezes (1147 e 1189), sendo
que na segunda vez, partiu como Imperador do Ocidente (e no caminho qua-
se tornou-se do Oriente também) com um grande e bem organizado exército
que causou grandes preocupações a Saladino, ao ponto deste ordenar que as
colheitas fossem armazenadas e que fosse pedida ajuda a todos os potentados
islâmicos da Espanha a Bagdá e segundo seu secretário e biógrafo, Baha-ed-
Din, quando Frederico morreu afogado na Síria, Saladino suspirou de alívio e
livrou-se do medo de perder a Síria, a Palestina e talvez o próprio Egito. (GA-
BRIELI, 1984: 209-212 e RUNCIMAN, v.3, 1954: 10-17)

35 É válido acrescentar que esta atmosfera escatológica encontrava-se presente na


corte do Barbarossa onde muitas vezes encenou-se a peça de mistério conhecida como
Ludus de Antichristo, onde encontrava-se claras referências aos fatos narrados na Sibila
Tiburtina.

– 126 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Seus sucessores imperiais sempre aproveitaram-se da mística ligada a seu


nome e poder, mas nenhum foi tão longe quanto o Barbarossa, que almejou ser
um Carlos Magno redivivo, ordenando mesmo que seu antipapa canonizasse
seu antecessor (29/12/1165). Ora, se o Imperador Carlos Magno tornou-se São
Carlos Magno, por associação seu Sucessor e “herdeiro” tornou-se se não santo,
pelo menos uma figura muito especial. A idéia é que se associasse não mais a
divindade ao imperador, mas sim uma sacralidade sacerdotal, a figura do REX
et SACERDOS, na qual o Imperador torna-se supremo ao não mais prescindir
da figura papal.
Fica claro que esta jogada de mestre partiu da Chancelaria Imperial, pro-
vavelmente obra do ardiloso Chanceler Rainald de Dassel, arcebispo de Colô-
nia. Dassel arquitetou também outra operação para melhorar as chances de seu
patrono: o traslado das relíquias dos Reis Magos de Milão para Colônia: com
isso, Colônia tornar-se-ia uma sé mais “antiga” na tradição cristã do que Roma,
afinal de contas, os Magos adoraram Jesus muito antes do que os Apóstolos; de
fato, Colônia teria precedência sobre todas as sés ocidentais e seria a sede de
uma nova Igreja, submissa aos imperadores germânicos, de modo semelhante
ao que acontecia em Bizâncio.
Finalizando esta bem tramada construção, encontramos a chamada Carta
do Preste João das Índias36. Nela o mítico rei-sacerdote cristomimético orien-
tal, rei de muitos reis, como Frederico pretendia ser demonstra como poderia
ser um Império governado por um Melquisedec moderno, sem a prejudicial
divisão entre Reino e Sacerdócio.
“Se o partido imperial recorreu às tradições orais sobre o rei-sacerdote
oriental, é porque elas respondiam às necessidades psicológicas de então. In-
clusive dos elaboradores do projeto imperial. Os homens são produto de seu
tempo, e só se “inventa” ou se “acredita” no que é possível para a época inventar
ou acreditar.” (FRANCO JR, 1996: 95)
Quando ligamos os pronunciamentos imperiais, a canonização de Carlos
Magno, o traslado das relíquias dos Reis Magos (implicando numa subordi-
nação de Roma a Colônia, já que os Magos foram os primeiros a reconhecer a
divindade de Jesus, antes dos Apóstolos), os intentos cruzadísticos de Frederico

36 A quem Oto de Freising havia considerado descendente dos Reis Magos

– 127 –
A religiosidade dos celtas e germanos

(não nos esqueçamos que ele já havia acompanhado Conrado III em 1147, na
2a Cruzada) e a Carta do Preste João, fica clara a intenção dos autores da carta
que a identificação messiânica deste potentado fosse facilmente ligada a Fre-
derico Barbarossa, além de se configura um estruturado plano de ação para
criar uma nova legitimidade sobrenatural para o Império. Confirmada pelas
alegações de 1157: o Império era independente do Papado. Seu soberano re-
cebia a realeza diretamente de Deus, através da eleição entre os príncipes e é a
partir daí que a denominação do Império é alterada de Imperium romanorum
para Sacrum Imperium romanorum, sendo que os elementos escatológicos só
vinham a confirmar seu status de vice-regente da Divindade.
Quanto à reação da Igreja a esta ofensiva, só podemos descrevê-la como in-
suficiente. A Cúria parece ter sido apanhada de surpresa pelo preparo intelectu-
al da Chancelaria Imperial. Alexandre III contestou a validade da canonização
de Carlos Magno devido esta ter sido realizada por um antipapa reconhecido
apenas pelo Império e sua esfera de influência (Dinamarca e Polônia) e respon-
deu à Carta do Preste João só em 1177, após a derrota do Barbarossa frente à
Liga Lombarda em Legnano (1176) que encerrou suas tentativas de efetivar seu
domínio na Itália.

O LUDUS DE ANTICHRISTO
Por volta de 1160 foi composta, provavelmente na Abadia de Tegernsee (Ba-
vária), uma peça teatral conhecida como Ludus de Antichristo, muitas vezes
encenada para a corte imperial. Seu propósito era apoiar as demandas impe-
riais por legitimidade; já que colocava as demandas do imperador acima das do
Papa para ser visto como legítimo representante de Deus na terra.
No começo do Ludus, existe uma cena que representa a lenda do ùltimo
Imperador: que ele virá a Jerusalém e deporá sua coroa ou em uma árvore no
Monte das Oliveiras ou no Gólgota ao pé da cruz da Crucificação de Cristo ou
no Templo, em cena reminiscente da passagem do Apocalipse em que coroas
são atiradas aos pés de Cristo (Ap. 4:10). O Último Imperador deporá sua coroa
após ter comandado um período de paz que precederá o reinado do Anticristo.
Isso ocorrerá quando o Anticristo aparecer e constituirá uma entrega do poder
a Cristo que então destruirá o Anticristo que havia previamente usurpado o
poder do Imperador.

– 128 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Esta lenda também contribuiu para a crença que Jerusalém seria o local
do Juízo Final. De acordo com a lenda do ùltimo Imperador, Jerusalém e não
Roma é que será o foco dos eventos políticos e religiosos decisivos que culmi-
narão com a dissolução do Sacro Império Romano.
O pensamento contemporâneo mantinha que os eventos acerca do reinado
do legendário Último Imperador, o aparecimento do Anticristo, sua morte e o
subsequente Julgamento, tornariam Jerusalém o foco da atenção do mundo; e
isso seria mais um elemento a ser considerado em relação ao maciço envolvi-
mento dos monarcas germânicos da dinastia Hohenstaufen com as cruzadas:
Conrado III e Frederico I em 1147-8, Frederico I em 1188-90, Henrique VI em
1197 e Frederico II em 1228.
A dissolução do Império e o aparecimento do Anticristo sinalizam o fim
dos tempos; esta caracterização corresponde à crença medieval de que o Impé-
rio Romano era o que detinha as forças do Anticristo. Assim que o Imperador
abdica de seu trono em favor de Cristo, torna-se problema deste a luta contra o
Anticristo e sua influência maligna.
Esta cena da renúncia do Imperador é fundamental para a caracterização de
Frederico I em sua luta contra o papa Alexandre III: ao contrário do presunço-
so Anticristo, o Imperador Germânico renuncia ao poder de forma humilde,
devolvendo-o a seu dono de direito, já que o Imperador não passa de Vicarius
Dei, ocupante temporário do trono, pertencente ao Rei dos Reis. Neste aspec-
to a peça serve às necessidades das lutas com o Papado, já que enquanto as
palavras do imperador quando pede que Cristo aceite seu sacrifício da coroa
exsudam humildade, as do Anticristo são pura soberba e o Papa, de acordo com
o dito popular, entra mudo e sai calado, compactuando com aquele que estiver
detendo o poder naquele momento.
No Ludus de Antichristo, o Imperador encarna a justiça e a retidão enquan-
to que o Anticristo é a quintessência do Mal. Esta justaposição de opostos era
típica no período e ao glorificar o imperador, a peça também representava ati-
tudes contemporâneas em relação ao imperador germânico como, por exem-
plo, a Gesta Friderici de Otto de Freising & Rahewin, o Carmen de Gestis Fri-
derici I Imperatoris in Lombardia, a Chronica de Otto Morena e continuadores,
a Carta do Preste João das Índias e canções do Arquipoeta de Colônia como:
Salve mundi domine cesar noster, ave.

– 129 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Cuius bonis omnibus iugum est suave.


Princeps terre principum cesar Frederice ...

Saudações ao senhor do mundo, Salve nosso César


Cujo jugo é leve, para o bem de todos nós.
Príncipe dos príncipes da terra, o César Frederico
(ARQUIPOETA, Carmina VII)

O verdadeiro imperador, ao contrário de sua contraparte fictícia, não tinha


intenção alguma de ceder seu poder, fosse para Deus fosse para o Papa; em ou-
tras palavras, ele via seu poder como supremo na terra, simbolicamente divino.
O surgimento do Anticristo assinala o fim dos tempos e mesmo seu nome
em Alto Médio Alemão, ENDECRIST, traz consigo um jogo de palavras: o tem-
po do fim (ende) sendo parte de seu nome e assim o fim se torna sinônimo do
Anticristo. Isto resultou de uma etimologia popular que refletiu no papel esca-
tológico deste ao ser predecessor do retorno de Cristo.
Sua própria presença na Cidade Sagrada representa uma contaminação es-
piritual. O Ludus representa o imperador como líder de uma Cruzada contra
o Rei da Babilônia e a presença do Anticristo e seu exército em Jerusalém re-
presenta um desafio ao vicariato divino do imperador e uma ameaça à “ordem
divina” do império.
A peça tinha a clara intenção de retratar os imperadores Hohenstaufen em
uma luz heróica: os reis menores (reguli) da França, da “Grécia” e de Jerusalém
são enganados pelo Anticristo e submetem-se a ele. Apenas o monarca germâ-
nico resiste a ele, mas sua renúncia em favor de Cristo, embora ato de profunda
humildade, é vista como um erro, já que permite a ascensão do Anticristo ao
poder. Mais uma vez, o Império é visto como a barreira que se opõe às forças
diabólicas.
Considerava-se na Idade Média que o Anticristo iria ganhar poder através
de falsas doutrinas, falsos milagres, ameaças, perseguições e subornos. Na peça

– 130 –
A religiosidade dos celtas e germanos

ele se utiliza sucessivamente destes métodos, chegando mesmo a fingir uma


ressurreição!
No Ludus o Anticristo, ao contrário do que acontece em muitos textos pos-
teriores, não morre ao tentar tomar de assalto o Paraíso, mas sim ao alcançar o
máximo da soberba: ao declarar que sua glória era tamanha que havia instituí-
do a paz e a segurança universais. A ironia de que ele deva morrer após declarar
que paz e segurança a tudo envolviam é emprestada das Escrituras: “Quando
os homens disserem: Paz e segurança!, então repentinamente lhes sobrevirá a
destruição, como as dores à mulher grávida. E não escaparão.” (I Tessalonicens-
ses 5:3).
Assim, o ápice do Ludus é pleno de ironia, sendo que a maior é que ele
acredita realmente ter alcançado paz e segurança e assim acaba por enganar a si
mesmo e assim é destruído, literalmente como uma ação de deus ex machina.
Mas... se podemos estabelecer que o Imperador da peça é o sacro imperador
romano da casa dos Hohenstaufen, quem pode ser enquadrado como o Anti-
cristo da mesma?
Considerando que o Anticristo era um falso profeta que através de atos
demagógicos exige ser adorado além de ser um poderoso conquistador que
subjuga reis para o engrandecimento de sua própria sede de poder e rompe a
hierarquia universal como um antirei, parece-nos adequado que o personagem
aqui representado tem por base a figura do papa Alexandre III.
Enquanto o todo-poderoso Imperador mantém a hierarquia universal ao
submeter-se - e a seus súditos - ao Cristo, como um bom vice-regente deve
fazê-lo, o Anticristo rompe esta ordem moral ao demandar a fidelidade dos
reis. Tal submissão política, suplantando as alianças dos monarcas com Deus
como Rei dos Reis, anula o estado de reconhecimento coletivo da supremacia
divina sobre os assuntos temporais e espirituais.
Alexandre III era um gregoriano exaltado e antes mesmo de assumir o tro-
no papal esteve envolvido em uma polêmica com o imperador Frederico I, na
Assembléia imperial de Besançon em 1157. Como chanceler papal o ainda car-
deal Rolando Bandinelli foi enviado à Germânia com a atribuição de inspecio-
nar o clero germânico e submetê-lo à disciplina papal.
O cardeal Rolando apresentou à Assembléia uma carta do papa Adriano IV
que explicava sua missão que foi lida em público pelo chanceler imperial Rai-

– 131 –
A religiosidade dos celtas e germanos

nald de Dassel, arcebispo eleito de Colônia. Nela, Rainald traduziu o trecho em


que o papa afirmava ter concedido a Frederico o diadema imperial como be-
neficium, termo que tanto podia ser traduzido como “feudo” quanto por “bom
ato”, como feudo, implicando assim em uma submissão do império ao papado
(o que, diga-se de passagem, bem coadunava com a ideologia gregoriana), qua-
se causando a morte do cardeal por parte de alguns príncipes germânicos mais
exaltados.
Assim, Alexandre III/Cardeal Rolando, sempre foi visto como um inimigo
do império e da soberania dos reis, como fica claro com o resultado do confron-
to entre o rei Henrique II da Inglaterra e o arcebispo de Canterbury, Thomas
Becket: Henrique havia decretado a submissão do clero à justiça régia com as
chamadas Constituições de Clarendon (1164), para tanto havia pressionado
para que seu chanceler Thomas Becket fosse eleito arcebispo de Canterbury, ou
seja, o primaz da Inglaterra, para que suas demandas fossem endossadas pelo
clero inglês. O problema é que Thomas, com o apoio de Alexandre III (e do rei
francês Luís VII, apresentado como um dos que se dobram ao Anticristo no
Ludus), rebelou-se contra Henrique II. Este confronto foi solucionado quando
um grupo de cavaleiros, aparentemente sem endosso do rei, invadiu a igreja de
Canterbury e assassinou o arcebispo no altar principal.
Este ato bárbaro foi imputado ao rei e este teve que submeter-se a uma pu-
nição pública na forma de vergastadas e a juntar-se ao partido papal que na
Europa combatia ao Imperador Frederico I.
Pode-se claramente afirmar que o Ludus de Antichristo é uma peça de mo-
ralidade política travestida de peça religiosa.

– 132 –
A religiosidade dos celtas e germanos

FREDERICO II: O apogeu da legitimidade dual: o mito e o direito.


De Stupor Mundi et Immutator Mirabilis a Anticristo
“No início de Janeiro de 1251 um mensageiro chegou a Lyon, onde o Papa
Inocêncio IV se encontrava exilado de Roma. Viajou o mais rápido que o in-
verno lhe permitiu para trazer grandes notícias. Três semanas antes a 13 de
Dezembro de 1250, o Imperador Frederico II havia morrido de uma súbita
febre em Castel Fiorentino, na Itália meridional. Para o Papa em sua excitação
pareceu que todos os problemas da Igreja haviam terminado. O Anticristo es-
tava morto; a raça das víboras havia perdido seu líder. “Que os céus rejubilem”,
ele escreveu aos Fiéis na Sicília. “Que a terra se encha de alegria. Porque a que-
da do tirano transformou os trovões e tempestades que Deus Todo Poderoso
manteve sobre vossas cabeças em zéfiros gentis e garoas fecundas”. Sua alegria
era dividida por seus amigos e seguidores por toda a Europa. Lhes parecia que
a hora havia chegado, quando as forças inimigas estavam lamentando por seu
príncipe, para atacá-las e esmagá-las até a aniquilação”.
(RUNCIMAN, 1995: 16)
Nesta citação a respeito da repercussão da morte de Frederico II, podemos
encontrar a reação nada cristã do Papa. Devemos nos perguntar as razões para
tanto e ainda mais para o epíteto de Anticristo.
Frederico II de Hohenstaufen foi o mais formidável adversário que a Igreja
Medieval enfrentou. De sua mãe herdou o Reino da Sicília, com seus domínios
estendendo-se da ponta da península aos subúrbios de Roma. Seu avô, Frede-
rico Barbarossa, possuiu mais glamour e renome que qualquer outro impera-
dor desde Carlos Magno. Seu pai, Henrique VI, tinha sido ainda mais hábil e
impiedoso.
O Papado lutou contra ambos; suas concepções do poder imperial nunca
poderiam ser reconciliadas com a concepção papal de uma hierocracia mun-
dial dominada pelo herdeiro de São Pedro. Com o Barbarossa uma trégua foi
alcançada. Henrique VI, com o reino de sua esposa adicionado à sua força, pa-
receu próximo da vitória quando morreu prematuramente. Seu filho Frederico
era jovem demais para sentar-se ao trono imperial, sobre o qual postulantes
rivais digladiavam-se, levando o Império ao Caos. O Papado triunfou, sob a
magnífica figura de Inocêncio III. Mas Inocêncio, com todos os seus poderes,
temia deixar o Império desintegrar-se. A viúva de Henrique VI, Constança

– 133 –
A religiosidade dos celtas e germanos

da Sicília, morreu logo após seu marido; e quando, para garantir a segurança
de seu filho, ela deixou-o sob a guarda do Papa, Inocêncio cometeu um grave
erro. Confiando na gratidão do menino, ele apoiou suas pretensões à herança
imperial. Frederico II foi coroado Rei da Germânia em 1215, quando tinha 21
anos e Imperador três anos depois.
A velha disputa entre Reino e Sacerdócio reacendeu-se, só que sua natureza
não era tanto de força material, mas de prestígio e opinião pública. Frederico
II tinha a seu lado a mística que ainda estava ligada ao nome do Império Ro-
mano. Preocupado com os problemas que o incomodavam, olhava com inveja
o passado, os dias da antiga Roma, aquele império mundial cujos líderes tanto
admirava. Ele sonhava em ser o Imperador que restauraria essa glória perdida.
Carlos Magno havia quase conseguido e, mais recentemente, Frederico Bar-
barossa. Frederico II herdou com seu título o respeito e a esperança que os
homens ainda ligavam à idéia imperial. Ele estava bem consciente deste fato.
Era seu objetivo transformar seu título nominal em realidade, ser Cesar, tanto
o herdeiro de Constantino e Justiniano quanto o de Carlos Magno.
Criado na Sicília, onde seus ancestrais normandos haviam modelado sua
corte com o Império Bizantino em suas mentes, ele sonhou em ter o mesmo po-
der que os imperadores bizantinos detinham, como vice-reis de Deus na terra,
ainda que deferentes à Santa Igreja mas em última instância supremos sob os
Céus. A coroa imperial nunca pousou sobre cabeça mais brilhante. Intelectu-
almente Frederico estava entre os homens mais impressionantes de sua época.
Era um bem dotado lingüista, fluente em Francês, Alemão e Italiano, Latim,
Grego e Árabe. Era instruído em Direito, Medicina e História Natural, além de
ter um interesse pessoal em Filosofia.
Embora fisicamente comum, com um tipo baixo e atarracado, seu cabelo e
face vermelhos e olhos míopes, ele poderia, se quisesse, fascinar qualquer um
com seu charme e rapidez de raciocínio. Suas qualidades poderiam ajudar em
sua causa; mas ele foi vítima de seu próprio brilho. O Imperador que as pessoas
procuravam era a tradicional figura paternal, nos moldes de Carlos Magno e
do Barbarossa, não um homem impaciente para com as convenções do mundo
feudal. Frederico desprezava os tolos e desdenhava da piedade vazia. Ele adora-
va espantar os homens com a audácia de seu pensamento e desconsiderava as
sensibilidades alheias; a crença em sua grande missão levou-o a abandonar os
padrões de honra mantidos em seu tempo. Era auto-indulgente e tinha laivos
de crueldade. Seu harém em Palermo era notório; e ele mantinha ali muralha-

– 134 –
A religiosidade dos celtas e germanos

das, e negligenciadas, as desafortunadas jovens princesas com quem se casava.


Seus filhos legítimos, que eram de tipo mais convencional, descobriram-no
como um pai duro e ausente. Tinha ele leais admiradores mas poucos amigos.
O mundo em geral o considerava com suspeitas. Seus colegas monarcas, que
encontravam-se prontos a estender suas simpatias contra o Papado, eram re-
pelidos por suas blasfêmias e amoralidade. Para seus inimigos, aterrados pela
riqueza de seu intelecto e a temeridade de sua irreverência, ele era a encarnação
do Anticristo.(RUNCIMAN, 1995: 20)
Nenhum de seus adversários papais foi páreo para Frederico, mas o Papado
era menos dependente da personalidade de seu ocupante do que o Império, já
que este corporificava uma vaga e nostálgica idéia que só poderia se realizar
sob um sábio, respeitado e poderoso Imperador. Sua constituição e instituições
eram informes e indefinidas. O Papado havia sido afinado por gerações de ad-
vogados canônicos e pensadores, era cuidadosamente organizado para alcançar
toda a Cristandade. Seus clamos e direitos eram claramente expressos.
O Papa como herdeiro de São Pedro podia alegar que seu ofício havia sido
instituído por Cristo e que isto o havia elevado de simples mortal a algo acima
da esfera da falível humanidade. O ofício de Imperador, por maior que fosse
o seu glamour, não possuía tais origens sagradas. Sua coroação podia elevá-lo
entre os homens, mas continuava a ser um pecador; e só o Papa poderia realizar
sua coroação. Tanto na eficiência de organização quanto em prestígio místico
o Papado encontrava-se mais forte que o Império. A roda havia girado mais
uma vez.
Frederico II retomou e avançou a estratégia de legitimação adotada nos
tempos de seu avô: a dupla ofensiva Legislativa e Escatológica.
“A idéia de império universal revestiu-se de uma última forma, deslum-
brante, sob Frederico II, que coroou as suas pretensões jurídicas à supremacia
mundial com uma visão escatológica. Enquanto os seus adversários faziam dele
o Anticristo, ou o anunciador do Anticristo, apresentava-se como o Impera-
dor do Fim dos Tempos, como o salvador que havia de levar o mundo à idade
de ouro, o immutator mirabilis, novo Adão, novo Augusto e, dentro de pouco
tempo, quase outro Cristo. Em 1239, celebrou a sua cidade natal de Iesi, nas
Marcas, como a sua Belém.” (LEGOFF, v.2, 1983: 22)
A visão jurídica de Frederico II pode ser encontrada na compilação de
constituições sicilianas de forte inspiração romana por ele ordenada conhecida

– 135 –
A religiosidade dos celtas e germanos

como Liber augustalis. Nesta obra, encontramos o padrão definitivo de persona


mixta para o monarca: ela emerge não da unção régia e sim do Direito: “(...)
César deve ser, simultaneamente, o Pai e o Filho da Justiça, seu senhor e seu
ministro: Pai e senhor na criação da Justiça e na proteção do que foi criado;
e de modo similar, ele deve ser, em veneração a ela, o Filho da Justiça e, ao
administrá-la plenamente, seu ministro.” (KANTOROWICZ, 1998: 78)
Frederico elevou em sua corte o Direito ao status religioso e em sua Magna
Cúria,
“os juízes e advogados deviam administrar a Justiça como sacerdotes; onde
as sessões da Suprema Corte, encenadas com uma meticulosidade comparável
à do cerimonial eclesiástico, eram apelidadas de “sacrossanto ministério (mis-
tério) da Justiça”; onde juristas e cortesãos interpretavam o “culto da Justiça”
em termos de uma religio iuris ou de uma Ecclesia imperialis, representando
um complemento e, ao mesmo tempo, um antítipo da ordem eclesiástica; onde,
por assim dizer, a toga do funcionário legal era contraposta à toga do clérigo
ordenado; e onde o próprio imperador, “a quem a mão do Grande Artífice cria-
ra homem”, era dito Sol Iustitiae, o “Sol da Justiça”, o título profético de Cristo.
Nessa teologia política, ou hibridismo político-religioso, as palavras do Liber
augustalis – escritas pelo jurista e estilista Piero della Vigna, formado em Bo-
logna – encontram seu lugar definido.” (KANTOROWICZ, 1998: 79)
Embora neste momento nos pareça que a argumentação imperial seja de or-
dem cristológica, na realidade eram eles derivados ou determinados pelo Direi-
to Romano, substituindo assim a cristomimesis dos otônidas e sálios. Mas não
devemos acreditar que os valores transcendentais característicos deste período
tenham sido completamente abandonados neste período posterior, quando a
jurisprudência erudita tornou-se o modelo preferencial. “(...) os valores ante-
riores subsistiram (...) traduzidos em novas modalidades seculares e principal-
mente jurídicas de pensamento e, dessa forma, sobreviveram por transferência,
em um cenário secular.” (KANTOROWICZ, 1998: 85). Frederico II ainda po-
dia alegar que em todos os atos oficiais do Estado, legislação e jurisdição, era ele
diretamente inspirado por Deus, atitude inspirada de fato na postura imperial
dos códigos de Justiniano, mas também ligada à velha alegação de que os Impe-
radores são os Vice-reis de Deus.
Frederico II também retornou ao argumento do rex et sacerdos declarada
pela Chancelaria de seu avô, só que desta vez, era ele rei e sacerdote da Justiça
recuperando graças à analogia entre juristas e sacerdotes o caráter sacerdotal

– 136 –
A religiosidade dos celtas e germanos

do ofício imperial que havia sido demolido pela argumentação gregoriana.


Além disso, o imperador era aclamado e se via como Lex annimata, ou aproxi-
madamente, Lei viva. Ele não só é o pontífice da “religião da Justiça” como é a
encarnação da “divindade”.
“Suas preocupações com a Justiça fizeram com que fosse visto tentando re-
criar o homem simples e direto, com ele próprio, Frederico, correspondendo ao
Adão anterior à Queda. Noutros termos, sendo o Imperador um Novo Adão,
como Cristo também o é, simbolicamente estabelecia-se a identidade entre eles.
Por isso, imaginava-se que com esse imperador e sua Justiça se reencontraria
o Paraíso e começaria a Idade de Ouro. Após sua morte dizia-se que ele “vivit
et non vivit”, e muitos, como Dolcino de Novara, acreditavam na sua volta. Por
uma filiação mítica difícil de estabelecer, pensava-se que ele, como Artur, tinha
descido pela cratera do Etna, onde estava esperando o momento de retornar.”
(FRANCO JR, 1992: 75)
É evidente que o Papado não poderia deixar de contra-atacar as posições
imperiais: Inocêncio III e seus sucessores adotaram a idéia que o Império havia
sido delegado a Carlos Magno, mas que o Papa era o seu verdadeiro depositá-
rio. Na realidade, o Papa apenas emprestou o gládio temporal aos leigos e podia
reassumi-lo quando quisessem. Com isso, ficava claro o desígnio da “teocracia
papal” creditada a Inocêncio. Os gládios temporal e espiritual lhe pertenciam.
As teorias da época de Frederico I estavam eliminadas. De fato, “cerca de 1220-
1230, os canonistas confirmaram que o gládio temporal era entregue pelo Papa
e que esse último era o verdadeiro imperador.” (LEGOFF & SCHMITT, v.1,
2002: 616)
Gregório IX e Inocêncio IV, declararam este “vassalo rebelde” herege e em
1245, Gregório proclamou uma Cruzada contra o imperador que já havia sido
declarado como Anticristo. Ao mesmo tempo que encontramos o apogeu das
teorias sobre a Teocracia Papal, encontramos o total descrédito dos Papas frente
à opinião pública coetânea. A deturpação da idéia de Guerra Santa, voltando-a
contra um governante cristão cujo grande pecado havia sido a oposição políti-
ca, atraiu o desgosto da maior parte dos príncipes europeus incluindo Luís IX.
É evidente que não se trata apenas de simpatia ao colega monarca, mas sim de
precedente.

– 137 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Conclusões:
Henrique IV sobreviveu à Contenda das Investiduras, mas perdeu irreme-
diavelmente a legitimação tradicional dos monarcas germânicos. O Império
não estava preparado para enfrentar uma ofensiva intelectual, que viesse a sola-
par as bases ideológicas de seu poder. Então, a vitória neste round sem dúvida
pertenceu ao Papado. Já Henrique V aproveitou-se de um período de detente
com a Igreja. Os confrontos diminuíram em escala e intensidade e o primeiro
impacto da ofensiva gregoriana já havia sido absorvido. Henrique IV havia sido
um imperador convencional, moldado pelas experiências de seus antecessores
mas seu sucessor era mais flexível e digamos a verdade, tanto Império quan-
to Papado encontravam-se desgastados. O Império necessitava de uma trégua
para reagrupar suas forças e o Papado encontrava-se numa crise de expansão
agravada por problemas internos. O resultado foi a Concordata de Worms
(1122) na qual foi acertada uma paz de compromisso em que o Império ainda
obteve vantagens.
Porém, com a morte de Henrique V em 1125 a disputa pela sucessão impe-
rial dividiu a Germânia aproximadamente pelos 30 anos seguintes entre os Ho-
henstaufen e os Supplinburg-Welf. Nem Lotário III nem Conrado III tiveram
paz suficiente para causar maiores dissabores a Roma. Neste período a Igreja
continuou a lidar com problemas internos como Cismas e o levante comunal
de Roma sob Arnaldo de Bréscia. Podemos inferir que neste período inicial
(1075-1152) não houve uma demonização dos imperadores por parte do Pa-
pado, porque a sofisticação intelectual encontrava-se basicamente a seu lado e
não havia a necessidade de utilizar conceitos mais contundentes na disputa (e
também a Igreja ainda não havia se tornado “imperial” o suficiente para que se
eqüivalessem a desobediência ao Papado, a heresia e o crime de lesa-majestade.
Identificação esta que adveio da perseguição aos hereges durante o século XIII
e sem sombra de dúvida, do período de Inocêncio III).
Com a ascensão de Frederico I, o jogo muda. O Papado foi apanhado de
surpresa, já que durante o século XII o Império passa por uma relativa moder-
nização administrativa, empregando cada vez mais pessoal intelectualmente
qualificado e também houve o renascimento do Direito Romano, diretamente
patrocinado pelo Imperador gerando assim a mudança do paradigma de legi-
timidade político-teológico para o político-jurídico, possibilitou que o Impé-
rio estivesse preparado para uma contra-ofensiva ideológica, capitaneada pelo

– 138 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Chanceler Rainald de Dassel sobre o pano de fundo da Renascença do século


XII.
Além disso, embora Alexandre III fosse um obstinado defensor das prerro-
gativas da Igreja ele não era nenhum Gregório VII. Conseguiu manter a Igre-
ja independente perante o Império e pavimentou a estrada para o poderoso
Inocêncio III, porém não possuía força suficiente para derrubar o imperador
e nem este a força necessária para subordinar o Papado, resultando em uma
nova trégua com a Paz de Veneza de 1177. Mas pela 1a vez, a argumentação
imperial foi mais eficiente que a papal. A dupla ofensiva júridico-escatológica
foi de grande eficácia para o Império na guerra ideológica para conquistar a
opinião pública do período (embora o termo seja anacrônico, a necessidade de
angariar partidários através da manipulação das consciências, via propaganda,
não é. Basta verificar o uso de manifestos, cartas, panfletos e mesmo de can-
ções goliárdicas contra a Cúria papal durante o reinado do Barbarossa.) e assim
apanhou a Cúria papal com uma argumentação preparada para lidar com as
ameaças ideológicas do século anterior. Embora Frederico I fosse um impera-
dor de corte tradicional, sua genialidade foi a de ouvir e implementar políticas
sugeridas por seus conselheiros que afinal de contas, possuíam uma educação
formal mais refinada do que a sua.
Seu sucessor, Henrique VI era um político hábil e impiedoso com talentos
intelectuais e uma vasta ambição que não desabrocharam de sua potencialidade
devido a seu falecimento prematuro. Mas em seu reinado, o Papado começou a
recuperar-se do choque e descobriu um novo uso para uma velha ferramenta, a
Guerra Santa. Apenas a morte impediu que Henrique VI fosse o primeiro sobe-
rano cristão a ser alvo de uma Cruzada. Este dúbio privilégio coube ao regente
que ele havia nomeado em testamento, o Marechal do Império Markward de
Annweiler. A desorganização do Império devido ao desacordo pela sucessão
entre 1197 e 1218, permitiram uma retomada do poderio papal e quando Fre-
derico II foi entronizado, teve início uma luta de Titãs, na qual o Império foi
efetivamente descartado como adversário efetivo do Papado devido, principal-
mente, ao interregno (1250-1273), no qual o vazio de poder central elevou ao
máximo as tendências centrífugas do particularismo germânico.
Enquanto isso, o Papado alcançou seu auge, para logo em seguida ser tam-
bém eliminado como força importante no cenário europeu. Os poderes uni-
versais saíram de sua longa luta consumidos, enquanto os particularismos na

– 139 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Europa ocidental transformaram-se em reinos poderosos, principalmente a


França, que tanto haveria de humilhar o Papado no século seguinte.
Com relação ao uso do uso dos epítetos de Anticristo e do Imperador dos
Últimos Dias, podemos citar:
“O mais importante é que o Anticristo e o seu adversário, o Imperador do
Fim do Mundo, se prestam a todas as utilizações religiosas e políticas e exercem
tanta atração sobre as massas como sobre os clérigos. A idéia de um adversário
singular de Cristo – neste mundo em que o duelo, como veremos, é uma ima-
gem preponderante da vida espiritual – e a aplicação fácil às situações reais dos
episódios da história do Anticristo facilitaram a adoção desta crença pelo povo.
Finalmente, o grande gênero publicitário da Idade Média, o teatro religioso,
muito cedo – pelo menos a partir do século XII – se apoderou da personagem,
fazendo-a familiar a todos. O Ludus de Antichristo, o Jogo do Anticristo – do
qual temos hoje, quanto à Inglaterra e à Alemanha (num manuscrito da abadia
de Tegernsee, na Baviera, da segunda metade do século XII), versões particu-
larmente interessantes – foi jogado em toda a Cristandade. Mas o par essencial
é o par formado pelo Anticristo e o seu inimigo, o rex justus, o “rei justo”. Os
interesses, as paixões e a propaganda apoderam-se das personagens ilustres da
cena medieval e, para efeitos de tal ou tal causa, são identificados por seus par-
tidários com o rei justo ou com o Anticristo.”
“Propagandas nacionais que, na Alemanha, fazem de Frederico Barbarrui-
va e de Frederico II o bom Imperador do Fim do Mundo enquanto, firmando-
se numa passagem de Adso, os propagandistas dos reis de França lançam-se à
empreitada – e desta propaganda beneficia-se, em especial, Luís VII por oca-
sião da Segunda Cruzada. Ao invés, os Guelfos, partidários do papa, fizeram de
Frederico II o Anticristo; e Bonifácio VIII seria, para seus adversários laicos,
um Anticristo sentado no trono de São Pedro. Sabe-se da forma que teve este
instrumento publicitário do epíteto de Anticristo nos séculos XV e XVI.” (LE-
GOFF, v.1, 1983: 235-236)

– 140 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Referências Bibliográficas:

ABULAFIA, David. Frederick II: A Medieval Emperor, London: Pimlico,


1988.
AICHELE, Klaus. “The Glorification of Antichrist in the Concluding Sce-
nes of the Medieval Ludus de Antichristo”, MLN, vol. 91, número 3, 1976, pp.
424-436.
ARNOLD, Benjamin. “The Western Empire, 1125-1197” in: LUSCOMBE,
David & RILEY-SMITH, Jonathan. The New Cambridge Medieval History, Vol.
IV 1024-1198 parte II, Cambridge: CUP, 2004, pp. 384-421.
BLUMENTHAL, Ute-Renate. The Investiture Controversy, Philadelphia:
University of Pennsylvania Press, 1991.
CARDINI, Franco. Il Barbarossa: Vita, trionfi e illusioni di Federico I Impe-
ratore, Milano: Oscar Mondadori, 2000.
CHRICHTON, Andrew B. “Kyng Johan and the Ludus de Antichristo as
moralities of the State”, Sixteenth Century Journal, vol. 4, número 2, 1973, pp.
61-76.
COHN, Norman. Los Demonios Familiares de Europa, Madrid, 1985.
FRANCO JR, Hilário. A Eva Barbada, Ensaios de Mitologia Medieval, São
Paulo: EDUSP, 1996.
FRANCO JR, Hilário. As Utopias Medievais, São Paulo: Brasiliense, 1992
FRÖLICH, Roland. Curso Básico de História da Igreja. São Paulo: Paulus,
1987.
FUHRMANN, Horst. Germany in the High Middle Ages c. 1050-1200,
Cambridge: CUP, 1995
GABRIELI, Francesco. Arab Historians of the Crusades, Londres: Routled-
ge & Kegan Paul, 1984.
GIBBS, Marion E. & JOHNSON, Sidney M. Medieval German Literature: A
Companion, Londres: Routledge, 2000.

– 141 –
A religiosidade dos celtas e germanos

JEEP, John M. (ed.). Medieval Germany: An Encyclopedia, Londres: Rou-


tledge, 2004.
KANTOROWICZ, Ernst H. Os Dois Corpos do Rei, Um estudo sobre a
teologia política medieval, São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário Temático
do Ocidente Medieval, Bauru: EDUSC - Imprensa Oficial, 2002, 2 volumes.
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval, Lisboa: Estampa,
1983, 2 vol.
RUNCIMAN, Steven. A History of the Crusades, Nova York: Penguin,
1954, 3 vol.
RUNCIMAN, Steven. The Sicilian Vespers, Cambridge: CUP, 1995.
WEINGARTER, Larry. “Sper kriuz unde dorn”: Glorification and Mille-
narian Concepts in Medieval German Literature. Tese para obtenção de PhD,
Ontario: Universidade Waterloo, 1997.

– 142 –
A religiosidade dos celtas e germanos

A CRISTIANIZAÇÃO DA ESCANDINÁVIA
NAS SAGAS ISLANDESAS

Prof. Dr. Johnni Langer (UFMA)

A história da cristianização dos povos europeus é um dos momentos que


vem sendo mais estudados pelos pesquisadores das ciências da religião no Oci-
dente. Ela envolve uma série de articulações na esfera política, econômica, so-
cial, entre outras. Em especial, uma região européia vem se destacando como
uma área privilegiada para a pesquisa desta temática: a Escandinávia. Tanto
pela sua posição “marginal”, em termos geográficos, quanto pela sua inclusão
extremamente tardia no mundo cristão, plenamente a partir do século XI d.C.
Nosso intento maior neste trabalho é conceder ao leitor algumas destas novas
perspectivas de investigação, tanto da História das religiões quando da Escan-
dinavística, ao mesmo tempo procurando também incluir algumas reflexões
nos debates sobre as sagas islandesas, enquanto documento histórico e literá-
rio, privilegiando como fonte a Brennu-Njáls saga. Nosso principal referencial
metodológico é pensar os documentos literários enquanto fontes etnográficas
– registros ideológicos e culturais de um momento histórico, nos baseando es-
pecialmente na obra de Carlo Ginzburg, Thomas DuBois e Gisli Pálsson. Tendo
como interesse maior o estudo da dinâmica do processo que levou a passagem
do paganismo para o cristianismo na Escandinávia do final da Era Viking,37
nossa principal problemática inicial é: até que ponto as sagas islandesas podem
servir como fonte para o estudo das crenças pré-cristãs e do momento da cris-
tianização e conversão?38

37 Era Viking: o início e término do período conhecido como Era Viking é polê-
mico, mas adotamos os anos de 793 (ataque ao mosteiro de Lindisfarne) e 1066 d.C. (mor-
te de Harald Hardrada) como datas limites. A respeito da história e cultura dos vikings,
consultar: Langer 2009a: 169-192; Haywood 2000; Graham-Campbell 1997; Christiansen
2006; Boyer 2002.
38 Aqui diferenciamos conversão (que implica uma metanóia completa e absoluta,
com o abandono radical de todas as crenças anteriores) e cristianização (que é menos
enfático e pode ser apenas a sobreposição híbrida ou não de uma religião sobre outra).
Agradeço ao historiador prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho (UNESP/Assis) por esse

– 143 –
A religiosidade dos celtas e germanos

A Brennu-Njáls saga
A Brennu-Njáls saga (A saga de Njál o queimado) constitui uma das mais
famosas sagas islandesas,39 escrita entre os anos de 1275 a 1290 por um au-
tor desconhecido e narrando eventos ocorridos durante os anos 960 a 1020.
Não foi conservado o manuscrito original, sendo a cópia mais antiga datada do
ano 1300-1315, denominada de manuscrito Arna-Magnæan (AM 468 4to). A
primeira vez que foi publicado impresso foi em Copenhagen, no ano de 1772
(Ólasson 1993: 434).
Sua estrutura narrativa possui um denso realismo psicológico e uma
aparência muito moderna, caso seja comparada com as produções literárias da
Europa de então (Haywood 2000: 133). Como em grande parte das sagas dos
islandeses (Íslendigasögur),40 a maioria dos personagens da saga de Njal existiu
historicamente. Apesar da caracterização literária, que distancia a personagem
Njal da realidade, existem indícios arqueológicos que confirmam que ele real-
mente foi atacado e queimado em sua casa, por exemplo. A coerência histórica
da saga segue padrões internos típicos de sua época – a credibilidade dos fatos
não seguia exatamente a fidelidade de como eles aconteceram. O autor da obra
certamente conhecia a Bíblia, outras sagas e documentos literários, islandeses
e estrangeiros, como o Landnámabók, Íslendigabók, Kristni saga, Laxdœla saga,
Orkneyinga saga, Egils saga, Óláfs saga Tryggvasonar, Eyrbyggja saga, entre ou-
tros (Bernárdez 2003: 17; Lönnroth 1976: 33; Hamer 2008: 11).41 Não se sabe se

referencial.
39 As sagas são um tipo de narrativa literária onde se descreve a história de uma
família ou linhagem histórica da Islândia medieval, especialmente os feitos guerreiros que
tiveram lugar entre os anos 874 e 1030. O termo saga vem do verbo islandês segja (“dizer,
recontar”) e é uma exclusividade desta região e do período medieval. O momento de mais
intensa produção das sagas, de 1150 a 1350, foi influenciado em diversas ocasiões pela
literatura clássica e pela hagiografia medieval em latim. O estilo predominante nas sagas é
de uma narrativa factual, objetiva e rápida, regida em prosa, concentrando-se nos fatos de
um personagem “digno de memória” (Langer 2009c: 2).
40 As Íslendigasögur são um subgênero dentro das sagas islandesas, que podem ser
caracterizadas com uma natureza semi-histórica, uma narrativa objetiva, formal e descri-
tiva. No momento da sua composição, elas eram consideradas verossímeis e reais para a
audiência das comunidades nórdicas (Langer 2009c: 3).
41 O mais conceituado estudo sobre a saga de Njal continua sendo o livro de Lönn-
roth 1976.

– 144 –
A religiosidade dos celtas e germanos

o autor era clérigo ou leigo, e se parte de sua formação deu-se fora da Islândia.
Em todo caso, era uma pessoa de família rica e poderosa, talvez da dinastia
Suinfelling, residente a sudoeste da Islândia, e parte da obra possui influência
de monastérios agostinianos (Hamer 2008: 16).
O principal tema desta saga é a relação entre Njal, um rico e influente
fazendeiro, com seu amigo Gunnar. Esta amizade é testada pela esposa de Gun-
nar, a desonesta e vingativa Hallgerd, que entra em conflito com Bergthora, a
esposa de Njal. Apesar destas desavenças, os dois homens permanecem amigos
e em paz. Mas quando Gunnar é considerado fora da lei (por um envolvimento
em uma disputa de sangue), Njal acaba se envolvendo em assassinatos contra
seus inimigos e ambas as famílias participam de matanças. O clímax da saga é
atingido com a morte de Njal e seus familiares, todos queimados vivos em sua
fazenda. Os assassinos são caçados e mortos pelo filho de Njal, Kári. O fim da
saga ocorre com a reconciliação entre Kári e Flosi, o único sobrevivente dos
incendiários.
Nosso interesse principal na saga de Njal reside nos capítulos 100 a 105,
que trata da chegada do cristianismo na Islândia – um dos episódios das sagas
islandesas mais populares do século XIII (Lonnröth 1976:2). Na realidade, tra-
ta-se da cópia de um texto mais antigo, contido no Íslendigabók (c. 1122-1132)
e na Kristni saga (c. 1250-1254), com algumas modificações.42 Realizaremos
análises de cada passagem deste episódio, para em seguida conceder algumas
reflexões gerais.
A chegada do cristianismo na Islândia
O texto inicia-se com a descrição da troca de governantes na Norue-
ga, antes chefiada pelo conde Hakon Haraldsson43 e substituído por Olaf

42 Bernárdez 2003: 343. Não tivemos acesso ao texto da Kristni saga, para even-
tuais comparações morfológicas e estruturais. Esta fonte é datada entre 1250-1284 (Duke
2005: 345).
43 Também chamado Hakon, o bom (c. 920-960). Rei da Noruega de 936 a 960,
filho do rei Harald, cabelos belos. Apesar de ser um dos primeiros a incentivar a vinda
de missionários cristãos na Noruega, teve um enterro e um memorial tipicamente pagão
(Haywood 2000: 89).

– 145 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Tryggvason,44 o que ocasionou também a mudança de religiosidade45:

Það spurðist með tíðindum þessum Dizem também que na Noruega


að siðaskipti var orðið í Noregi. houve mudança de fé, haviam
Og höfðu þeir kastað hinum forna abandonado as antigas crenças e o
átrúnaði en Ólafur konungur hafði rei Olaf cristianizou Vestrlönd, as
kristnað Vesturlönd, Hjaltland og Hébridas, as Órcades e as Feróes.1
Orkneyjar og Færeyjar (Brennu-
Njal saga 100).

Hakon iniciou a tentativa de cristianizar a Noruega, mas encontrou for-


te oposição dos fazendeiros livres, desconfiados de qualquer tipo de inovação.
Foi somente com Olaf Tryggvason que a nova religião adentrou efetivamente
no país, a partir de 960, utilizando-a como suporte político e de coerção so-
cial, queimando templos e eliminando chefes pagãos (Graham-Campbell 1997:
119).46
Após a descrição da mudança de religiosidade, o texto alude ao posicio-
namento de Njal, declarando que seria “monstruoso” abandonar os antigos cos-
tumes (fornum sið), a não ser no caso da nova fé (þann sið) ser muito melhor,
e caso viessem os pregadores nesta região, ele apoiaria incondicionalmente os
mesmos. Em seguida, o texto narra a chegada de dois missionários na Islândia,
enviados por Olaf Tryggvason com o intuito de cristianizar a ilha: Thangbrand

44 Olaf I (c. 968-1000). Rei da Noruega de 995 a 1000, filho de Harald Fairhair. A
partir de 996 iniciou a cristianização da Noruega e da Islândia (Haywood 2000: 141).
45 Religião se refere em grande parte a atitudes sociais, públicas e visíveis, en-
quanto que religiosidade implica em algo mais íntimo, profundo e, em muitas ocasiões,
escamoteado da vida social. No caso da sociedade nórdica, religiosidade implica em uma
continuidade das práticas mágicas, das crenças folclóricas e da vivência cotidiana e privada
do pensamento religioso. Agradeço ao prof. Dr. Ruy de Oliveira Andrade Filho (UNESP/
Assis) por esses conceitos.
46 Sobre o tema da cristianização da Escandinávia, consultar: Nordeide 2010; Sa-
wyer & Sawyer 2006: 100-128; Langer 2005b: 185-190; Duke 2005: 343-366; Dubois 1999:
139-204; Boyer 1987: 7-152.

– 146 –
A religiosidade dos celtas e germanos

e Gudleif, ambos de origem nobre, e o segundo imputado de ser um grande


guerreiro. A recepção inicial dos habitantes da região a esses visitantes não é
amistosa. Logo, reunidos em assembléia, decidem proibir as pessoas de comer-
cializar com eles. Porém, um fazendeiro de nome Hall, visita Thangbrand e o
convida a comprar mantimentos em sua residência. O missionário monta uma
tenda, onde realiza uma missa e uma grande festa. Hall pergunta a este para
quem se destinava os festejos, recebendo a resposta que seriam para São Mi-
guel. Logo, Hall decide ter esse anjo como guardião e é batizado com toda a sua
família e dependentes, neste mesmo dia.
Em essência, a cena possui um contexto histórico, tanto a vinda de
Thangbrand, quanto o batismo de Hall, foram baseados no Íslendigabók 7 (Li-
vro dos islandeses).47 Mas a descrição inicial de Njal, favorável a nova religio-
sidade sem necessariamente conhecê-la, desperta interesse: seria possível a um
pagão questionar as tradições desse modo? Aqui, evidentemente, estamos num
patamar puramente literário – trata-se de um recurso narrativo, criado pelo
escritor da saga, antecipando o triunfo dos seguidores de Cristo, num futuro
já conhecido, mas inexistente no momento em que os fatos ocorrem. É a fa-
mosa imagem do nobre pagão, teorizada pelo escandinavista Lars Lönnroth
nos anos 196048 – no momento da composição da saga, a audiência necessitava
da criação de uma ligação com os tempos pagãos (a Era Viking) – afinal, eles
representavam um momento de liberdade política, social e cultural que não po-
diam ser descartadas simplesmente (a Islândia foi anexada à Noruega em 1262,
aproximadamente 15 anos antes da saga de Njal)49 - mas ao mesmo tempo, não
se poderia criar elementos totalmente positivos para uma religiosidade não-
cristã. Deste modo, alguns reis, líderes, guerreiros e fazendeiros importantes

47 Uma pequena história da Islândia, dos primeiros assentamentos até 1118, es-
crita por Ari Thorgilsson entre 1112-1132. Esta versão é a síntese de um manuscrito mais
longo e antigo, que foi perdido. Ari baseou sua crônica histórica na tradição oral, inclusive
de seu pai adotivo, Teit, que nasceu em 997 (Haywood 2000: 105)
48 O estudo foi publicado inicialmente na conceituada revista Scandinavian Stu-
dies 41, 1969 (The noble heathen: a theme in the sagas). Posteriormente, Lönnroth retoma
esta teoria no seu estudo sobre a saga de Njal (1976: 136-148).
49 A ilha atlântica da Islândia foi descoberta em 860 e iniciou-se a colonização
extensiva a partir de 930. Durante o século XIII, a ilha foi acometida de uma concentração
do poder de certas famílias, o que levou a sua anexação pela Noruega em 1262 (Haywood
2000: 101).

– 147 –
A religiosidade dos celtas e germanos

da Era Viking, se tornam na narrativa das sagas, pagãos que não se preocupam
com o paganismo, ou em outras, palavras, adeptos de um credo que está para
ser extinto com o tempo. O seu comportamento “desleixado” com relação à re-
ligiosidade pré-cristã é ao mesmo tempo, um clichê literário e um anacronismo
histórico. Um exemplo semelhante ao de Njal é o personagem Glúmr, que se-
ria supostamente um rei odinista, mas que em momento nenhum da narrativa
explicita qualquer devoção a esta deidade (Víga-Glúms saga 14) ou Ketil, que
afirma que nunca havia feito sacrifícios para Odin (Ketil saha hœngs 5).
O encontro com o feiticeiro Hedin
O recém convertido Hall e Thangbrand iniciam uma jornada missioná-
ria, convertendo e batizando várias pessoas na Islândia, e outras vezes, matando
para isso concretizar-se. Alguns moradores do local recebem o prima signatio
(batismo preliminar, em nórdico antigo: prímsigning), o que implica não em
uma conversão total, mas em um primeiro contato com as estruturas simbóli-
cas da nova religiosidade, sem abandonar totalmente suas crenças antigas.50 Em
uma localidade denominada Kerlingardal, os habitantes da região contratam
um feiticeiro para matar os missionários, denominado de Galdra-Héðinn (He-
dinn, o encantador). O galdr é um conjunto de práticas mágicas relacionadas
com cantos, runas, confecção de amuletos, curas, profecias e maldições. O seu
uso está relacionado diretamente com o deus Odin51 e era praticado durante a
Era Viking (Langer 2009d: 66-90). A saga não detalha o ritual de malefício que
Hedinn empregou para matar Thangebrand, apenas de que seria um grande
blót (sacrifício), realizado no alto da montanha Arnarstakksheid. Nos tempos
pagãos, o blót consistia em um cerimonial público, coletivo e de caráter es-
pecialmente sazonal, conduzido geralmente pelo líder da comunidade – que
servia como sacerdote circunstancial e não profissional. Era relacionado de
um lado, com os festivais de certos deuses e ou espíritos da terra, e de outro,
também a momentos de crise como ataques inimigos ou a morte de um rei

50 Sobre a religiosidade nórdica pré-cristã, verificar: Langer 2010a, 2010b: 177-


202, 2009a, 2009b: 131-144, 2009d: 66-90, 2005a: 55-82, 2007: 44-47; Boyer 2002, 1997,
1987, 1986; Davidson 2001, 2004, 1988, 1987; Dubois 1999; Liberman 2004: 97-101;
Mckinnell 2001: 394-417; Maccreesh 2006; Kaplan 2006; Barreiro 2008; Schjodt 2006.
51 Para maiores detalhes sobre os cultos e as crenças envolvendo Odin na Escan-
dinávia da Era Viking, consultar: Langer 2009: 79-108; Boyer 1997: 115-120, 1981: 66-87;
Davidson 1988: 40, 42, 66, 70, 100.

– 148 –
A religiosidade dos celtas e germanos

(Davidson 2001: 93). Não negando a idéia de que na realidade, os sacrifícios na


Era Viking continham elementos de crenças mágicas (pois nem sempre pode-
mos criar uma oposição entre religião e magia), a saga acabou por fundir em
uma mesma imagem, duas práticas distintas originadas nos tempos pagãos: o
sacrifício ritual, ligado aos festivais públicos e religiosos, de caráter divinatório
e propiciatório52; e as técnicas relacionadas à maldição e injúrias contra uma
pessoa, de caráter individualizado e mágico (o níðr).53
Apesar das referências ao passado continuarem vivas na memória co-
letiva (por meio da tradição oral), as antigas práticas pagãs foram mescladas,
fundidas ou mesmo reelaboradas pelo discurso cristão em uma única imagem
– a da feitiçaria. Quase tudo o que envolve a religiosidade nórdica antes da
chegada dos missionários, necessariamente está relacionado com o mal, o dia-
bólico, o bárbaro, o imoral. Também na Saga de Hrólfr Kraki o sacrifício públi-
co dos tempos pré-cristãos transforma-se em um simples feitiço par atrair um
javali (Barreiro 2008: 8). A feitiçaria, neste caso, dentro da tradição imaginária
eclesiástica (que influenciou os escritores das sagas), relaciona-se com a noção
de maleficia, atitudes, palavras ou poderes ocasionadores das discórdias e da
quebra da ordem natural das coisas (Schmitt 2002: 426).
O termo utilizado pelo escritor da saga para descrever os pagãos que
contrataram Thangbrand - heiðnir menn – é advindo do século X, significando
um camponês não convertido, habitante da zona rural (McKinnell 2001: 399).
Seguindo a narrativa, quando o missionário andava a cavalo na região de Ho-
fdabreka, a terra se abriu tragando o animal, mas este se salvou pulando para o
lado. A narrativa responsabiliza o feitiço de Hedin pelo desastre (após retornar
à corte do rei Olaf, Thangbrand informa que os islandeses eram muito hábeis
na magia <fjölkunnga>, abrindo a terra). A descrição do controle climático pro-
vocado por magia é muito comum nas sagas islandesas (tormentas, neblinas e
avalanches em especial), sendo interpretada como um motivo literário cria-
do para dar tensão à narrativa, destacando a trajetória de uma personagem

52 O blót envolvia quatro operações distintas: o sacrifício propriamente dito, com


a imolação de animais; a consulta aos augúrios; o banquete dos animais mortos; o jura-
mento. Para um maior detalhamento desta prática, consultar Boyer 1986: 176-192.
53 Para um estudo moral, jurídico e social do níð, consultar Ström 1974; sobre os
aspectos e técnicas mágicas relacionadas ao níð, verificar Boyer 1986: 168-176.

– 149 –
A religiosidade dos celtas e germanos

(Ogilvie & Pálsson 2006: 7) - no caso da saga em questão, uma etapa em que o
missionário enfrenta os perigos do mundo pagão. Mas acreditamos que não é
somente isso.
A literatura possui mecanismos específicos de criação, e o clichê é uma
necessidade que é adequada a um estilo. Ao mesmo tempo em que estes estere-
ótipos fazem parte da criação individual, eles podem também ser sintomáticos
da existência de tradições e crenças ainda vigentes na sociedade, como também
precisam ser evocados devido à audiência presente nesta época (o texto medie-
val era lido coletivamente, ao invés da leitura individualizada e silenciosa).54
Como os textos dos inquisidores tratando de feitiçaria, devemos separar as
crenças e mitos que foram preservadas pela ótica erudita, transformadas em
códigos diferentes e ambíguos (Ginzburg 2007: 287). A recorrência do tema
do controle climático, em nosso entendimento, é a evidência de uma sobre-
vivência da crença mágica, mesmo no período cristão. Os pagãos são capazes
de promover a interferência na ordem natural do mundo (maravilhoso), mas
é algo visto como maléfico (magia), enquanto que a contrapartida, o milagre,
ocorre somente no universo cristão. Mas é uma questão puramente discursi-
va. Do ponto de vista cultural, magia e milagre pertencem à categorias seme-
lhantes (são fantasias criadas para cumprir papéis de valores morais dentro de
uma sociedade, Egilsdóttir 2006: 1), ou seja, ambas são definidas e sustentadas
por crenças coletivas, existindo porque as pessoas crêem (a eficácia simbólica,
Monteiro 1986: 60).
Pagãos versus cristãos na Islândia
Seguindo a saga, Thangbrand persegue e mata o feiticeiro Hedin com
uma lança. Logo após, Njal se converte, com todos os membros de sua casa.
Mas alguns pagãos permanecem ainda convictos de suas crenças. Entre eles,
Thorvald e Ulf Uggason, que proclamam alguns versos difamatórios ao mis-
sionário, entre estes, que estaria ofendendo aos deuses e que ele seria um co-
varde. Juntamente com Gudleiff, o evangelizador golpeia e mata seus inimigos
em uma emboscada. Logo a seguir, um convertido de nome Hjalti Skeggjason

54 “A obra medieval, até o século XIV, só existe plenamente sustentada pela voz,
atualizada pelo canto, pela recitação ou pela leitura em voz alta. Em um certo sentido, o
sinal escrito é pouco mais que auxílio para a memória e apoio. (...) O romance é o primeiro
gênero destinado à leitura, mas é uma leitura em voz alta” Zink 2002: 80-81.

– 150 –
A religiosidade dos celtas e germanos

declama uma estrofe difamatória contra as velhas crenças:

Spari eg eigi goð geyja. Eu não deixarei de insultar os deuses.


Grey þykir mér Freyja. Freyja deve ser uma cadela.
Æ mun annað tveggja Ou será um dos dois:
��Óðinn grey eða Freyja Odin é um cão ou Freyja.
(Brennu-Njáls saga 102).

A utilização de insultos sexuais era uma prática comum na Escandiná-


via, que além das acusações de covardia, representavam as mais efetivas perdas
de valores na reputação pessoal e prestígio social. Esse sistema idealizado de
normas foi marcado por uma escala de valores essencialmente masculinos – e
qualquer desvio representava perversão e anormalidade (Ström 1974: 20). As-
sim, o insulto sexual era uma arma terrível e eficaz, com sérias implicações na
sociedade. O cachorro geralmente era considerado o companheiro e guia das
jornadas da alma para o outro mundo em rituais votivos (simbolizado pelo cão
mitológico Garm) e conectado com a ideologia guerreira (os cães de caça e de
guarda são associados como o lobo aos jovens guerreiros) (Langer 2010a; Da-
vidson 1988: 57). Existem indícios arqueológicos de sacrifícios deste animal, de
forma decapitada, no sítio de Borg (Noruega) dedicados a Frey e Freyja (Chris-
tiansen 2006: 81). Com isso, podemos perceber que o cachorro era um animal
extremamente importante nas concepções religiosas pré-cristãs dos nórdicos.
Comparar sexualmente uma deusa ou deus a este animal (o termo grey também
significa prostituta), deste modo, seria um ato que os desvincularia de maiores
poderes.
Comparado à crônica do Íslendigabók – que é muito mais antiga – esta
narrativa da saga de Njal possui algumas diferenças. O combate entre Thang-
brand contra Ulf e Thorvald não é mencionado, nem seus poemas difamató-
rios. No Íslendigabók é proferido que Hjalti ficou desterrado por três anos, após
ter ofendido os deuses, mas seu poema possui apenas a frase: Vilk eigi goð geyja.
Grey þykki mér Freyja, a mesma que foi inserida nas duas primeiras linhas do
poema da saga de Njal. Além do destaque muito maior para o missionário
Thangbrand, também percebemos que a figura de Odin foi acrescentada, tanto
no poema de Thorvald (Yggs), quanto na difamação de Hjalti (Óðinn grey).
Mais adiante comentaremos as implicações destas modificações.

– 151 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Prosseguindo em sua missão evangelizadora, Thangbrand segue por


mar nas regiões do Oeste da Islândia. Mas seu barco acaba naufragando. Stei-
nunn, a mãe do poeta Ref, vem ao encontro do náufrago, pregando a antiga
religião e quase o convence a abandonar o cristianismo. Após ouvir calado, o
missionário passa a negar todas as afirmações da poetisa. Esta declara que tinha
ouvido falar que Thor havia desafiado Cristo, mas que se negou a participar do
duelo. Thangbrand responde que Thor não seria mais do que cinzas e terra se
Deus quisesse. Ela responde que sabia quem havia causado o naufrágio, profe-
rindo os poemas:

1. Braut fyrir bjöllu gæti, O matador de gigantes,2 destruiu


bönd ráku val strandar, totalmente o auroque3 do guardião
mögfellandi mellu, dos sinos,4 que naufragou por obra dos
mástalls, Vísund allan. deuses.

Hlífðit Kristr, þá er neyfði Cristo não cuidou, ao que parece da


knörr, málmfeta varra. destruição do Knörr.5

Lítt ætla eg að guð gætti Eu creio que Deus não guardou6 a rena
Gylfa hreins að einu. que cavalga as ondas.7
2. Þór brá Þvinnils dýri 2. Thor agarrou o cavalo de Þvinnil8
Þangbrands úr stað löngu, de Thangbrand, bateu e moveu sua
hristi búss og beysti madeira e o lançou contra as rochas;
barðs og laust við jörðu.
Muna skíð um sjá síðan Não voltará a singrar o mar
sundfært Atals grundar, novamente, o esqui de Atal9
hregg því að hart tók leggja, Pois uma tormenta terrível o deixou
hánum kennt, í spánu. em pedaços.
(Brennu-Njal saga 102).
Todas as traduções ao texto da Brennu-Njal saga são de nossa autoria.
2 Kenning (metáfora poética) para o deus Thor.
3 Nome da embarcação que naufragou.
4 Kenning para sacerdote cristão.
5 Tipo de embarcação da Era Viking, para fins comerciais e de transporte.

– 152 –
A religiosidade dos celtas e germanos

6 Na tradução de Rodolphe Dareste, 1896: “Odin n’a pas épargné ses vaisseaux” (Odin
não poupou seus navios). Disponível em: http://www.sagadb.org/brennu-njals_saga.fr
Acreditamos que houve um erro interpretativo por parte deste tradutor. O termo no
original, guð, a princípio, pode designar qualquer deus. No caso, Dareste utilizou o con-
ceito que na palavra Gylfa, citada mais adiante, podia ser um modificação para Gylfi,
um dos vários nome do deus Odin. Mas o poema se refere especificamente a falha de
um deus em proteger seu navio, que no contexto do poema, só pode se referir ao deus
cristão e não a Odin. Régis Boyer traduziu a frase como: “Je ne vois pas que Dieu ait pris
grand soin du bateau”. Boyer 1987: 112-113). Segundo Cleasby & Vigfusson 1957: 283,
o termo Gylfa-hreins é uma das várias palavras utilizadas pela poética nórdica para de-
signar navios. Nesta última frase, optamos por nos aproximar da tradução de Bernárdez
2003: 208 e Jesch 2003: 166, aludindo a um kenning.
7 Kenning para navio.
8 Kenning para navio.
9 Kenning para navio.

Steinunn foi uma das raras poetisas da Era Viking cuja obra sobreviveu.
Estes poemas foram preservados em várias versões, o que indica que eram mui-
to populares durante o século XII e XIII (Jesch 2003: 166). Seus versos são cla-
ramente pagãos, contrastando a proteção de Cristo com o poder de Thor, este
último triunfando. A métrica utilizada, dróttkvaett,55 é perfeita. A estrutura dos
versos segue uma tradição escáldica56 em que o herói retratado obtém sucesso
com sua jornada sobre os maus elementos da natureza (tempestades, chuvas,
neblinas, etc). As várias indicações do uso de kennings (metáforas poéticas)
para embarcações, indicam um tipo de poesia de navegação – mas ela inverte a
convenção, descrevendo uma viagem fracassada, sendo a antítese de um poema
de louvor (Jesch 2003: 167).O uso de antigos nomes de reis dos mares (Atall,
Gylfi, Þvinnil) e o tema da navegação e vida náutica é tipicamente masculino
(Straubhaar 2002: 268).
O encontro de Thangbrand e Steinunn foi escrito como tendo sido um
exemplo de performance oral, utilizando trocas verbais como uma espécie de
combate intelectual e verbal. Steinunn inicia o encontro, predicando a fé pagã

55 O dróttkvætt é a mais distinta, prestigiada e esplêndida forma da métrica do


islandês antigo. Consiste num estilo apropriado para recitação na presença de guerreiros
e corte. Sobreviveram cerca de 21.000 linhas de versos neste estilo, de poetas que viveram
entre os anos 850 a 1400. É uma exclusividade da área islandesa, norueguesa e das ilhas
Orkney (Poole 2007: 269).
56 Termo advindo de skald (escaldo) poeta em islandês antigo.

– 153 –
A religiosidade dos celtas e germanos

ao missionário. Ele replica, mas ela insulta a Cristo. Falhando em aceitar o


desafio com Thor, Cristo foi considerado um níðingr, um covarde dentro dos
referenciais nórdicos. Steinunn recita duas estrofes de dróttkvætt (poesia de
corte), revelando que Thor despedaçou o navio de Thangbrand. Apesar desta
discrepância, o missionário não concede respostas para a poetisa. Ao contrário
do poeta Vetrlidi, que foi morto por Thangbrand por seus versos difamatórios,
as estrofes de Steinunn não contém difamações sexuais contra Cristo – expli-
cando talvez a sua conservação pelo escritor cristão na saga. Deste modo, o
missionário falha em proteger seu sistema de fé, falha na competição verbal e
por consequência, é envergonhado por uma mulher. Mas como isso pode ter
sido conservado em uma saga do século XIII? Na realidade, alguns pesquisa-
dores percebem essa cena dentro de um grande drama social – significaria o
encontro entre o Estado livre pagão da Islândia (representado por Steinnun) e a
monarquia norueguesa cristã (Thangbrand) para Victor Turner. Para outros, a
cena encarnaria dramas sociais baseados na coexistência de uma tradição oral
e outra escrita. Else Mundal perceberia o paradigma de uma mulher nórdica
poderosa na tradição oral (e pagã), mas submissa na tradição escrita (e cristã,
na literatura). Para estes dois referenciais, a passagem cultural teria sido um
desastre: enquanto no primeiro caso, ocorre a perda da liberdade política, no
segundo, a mulher perde a independência. Carol Clover postularia ainda uma
interpretação intermediária para as idéias de Turner e Clover - que a mulher
era simultaneamente as duas coisas: poderosa do privado e impotente no pú-
blico (Borovzky 1999: 10-11).
Estudando a performance feminina na Escandinávia medieval, Zoe Bo-
rovszky interpreta que as mulheres participavam da transmissão do conheci-
mento oral, eram limitadas mas não totalmente dominadas pelos homens e
valores masculinos. Durante o ritual religioso, elas poderiam encontrar um es-
paço não oficial dentro da esfera pública (Borovzky 1999: 32). Assim, o embate
de Steinunn com Thangbrand pode ser percebido como um momento de poder
e de grande visibilidade para a mulher nórdica, onde esta encontra espaço para
sua influência além do mundo privado.57

57 A respeito da mulher na Escandinávia Medieval, consultar: Straubhaar 2002:


261-272; Sawyer & Sawyer 2006: 188-213; Quin 2007: 518-536; Jochens 2005: 217-232;
Jesch 2003; Egger de Iolster 2004: 17-35; Borovsky 1999: 6-39.

– 154 –
A religiosidade dos celtas e germanos

O encontro com o berserker


Seguindo a narrativa, o missionário é recebido na casa de um profeta,
Gest Oddleifsson, que realiza uma grande festa. Neste mesmo local, havia qua-
se duzentos pagãos que esperavam a visita de um berserker58 chamado Otrygg.
Todos receavam este guerreiro: contavam que ele não temia ao fogo nem à es-
pada. Thangbrand indaga se alguém queria se converter, mas todos se opuse-
ram. Assim, este realiza um desafio – seriam acessas três fogueiras, uma con-
sagrada pelos pagãos, uma pelos cristãos e a terceira ficaria sem consagração.
Caso o berserker tivesse medo da fogueira que Thangbrand consagrou, todos
teriam que ser convertidos, o que é plenamente aceito pelos presentes. Quando
o berserker chegou, atravessou a fogueira dos pagãos e a sem consagração, mas
se deteve diante da fogueira do missionário, alegando que o queimava. Than-
gbran ataca o guerreiro com um crucifixo, e milagrosamente este faz com que
a espada do berserker caia, enquanto Gudleif corta seu braço. Várias pessoas
presentes acabam por matar o pagão. Logo após o ocorrido, todos os presentes
na casa de Gest são batizados.
Os berserker são um tema polêmico dentro da escandinavística. Tradi-
cionalmente, são relacionados ao culto do deus Odin,59 como na Ynglinga saga

58 Trata-se dos guerreiros de elite conhecidos pela designação de berserkir. Exis-


tem duas explicação atuais para este nome. A mais coerente diz que seria “camisa de urso”
(do nórdico bear), e a outra “sem camisa” (do nórdico bare). Seja como for, talvez as duas
possam ter coerência mútua. A ligação com o urso provém do simbolismo e da impor-
tância deste animal para as tribos de origem germânica, desde a antiguidade. E a segunda
explicação, sem camisa, refere-se ao fato dos berserkers não usarem nenhuma proteção
nas batalhas. A principal característica dos berserkers seria sua fúria incontrolável e assas-
sina. Muito antes dos Vikings, um cronista latino chamado Tácito já se referia a guerreiros
entre os germanos que possuíam estas características, que aliás, eram muito louvadas por
sociedades que dependiam totalmente da guerra para sobreviver (Langer 2007: 44-45).
Sobre este tema, consultar: Miranda 2010; Langer 2007: 44-47, Schjodt 2006; Liberman
2004: 9-101; Davidson 1988: 79-87; Boyer 1997: 27-28, 1981: 141, 151, 160-162.
59 Alguns pesquisadores negam o envolvimento de Odin com os berserkers, como
Liberman 2004: 97-101, que acredita que esta ligação ocorre somente em Snorri, devido
a uma má interpretação do folclore de sua época. Mas evidências iconográficas, como as
placas de Torslunda, Suécia, século VI, demonstram a associação direta entre o culto a
Odin e os guerreiros com máscara animais. Contrariamente a Liberman, o escandinavista
Jens Schjøodt (2004: 1-11) reconhece a existência tradicional de um grupo de guerreiros

– 155 –
A religiosidade dos celtas e germanos

6, que os descreve como guerreiros que lutam sem proteção e sem medo do
fogo ou do aço. A menção mais antiga a esta classe de lutadores vem do século
IX, do poema Haraldskvæði 8, 20, de Thorbjorn hornklofi, que os identifica a
um grupo próximo do rei Hárald, servindo como guarda de elite na batalha de
Hafrsfjord. Posteriormente, as sagas islandesas criam uma imagem negativa e
estereotipada dos berserkers, retratados como violentos, assassinos, arruaceiros
e fanáticos. Na saga de Njal, os próprios pagãos temem o personagem Otrygg.
Isso pode evidenciar uma possível sobrevivência folclórica, onde a memória
social conservou em parte as querelas entre os fazendeiros livres e o grupo dos
berserkers – que segundo algumas referências, eram acometidos de êxtase e
loucura mesmo fora do campo de batalha, como descrito na saga de Egil.
Outra possibilidade é que o escritor criou uma dicotomia entre o he-
rói cristão, Thangbrand, e o campeão do paganismo, Otrygg, justamente para
enaltecer o milagre do crucifixo e a conversão (esta passagem do episódio do
berserker não é mencionada no Íslendigabók). Essa segunda hipótese é confir-
mada pela existência de outra narrativa, muito semelhante e quase do mesmo
período, existente na Vatnsdæla saga 46 (c. 1270-1280), onde uma dupla de
berserkers de nome Hauk, que era temida pelos moradores da região, é con-
frontada pelo bispo Frederick. Este os desafia a atravessar três fogueiras, onde
são queimados e mortos. Após o fato, os habitantes do local são batizados.
Neste caso, o milagre não é apenas indicador da superioridade da nova
religião, mas um substituto para a tradição: no imaginário medieval, o miracu-
loso cristão sobrepunha o miraculoso pagão com o mesmo nível de realismo
e eficácia (Vauchez 2002: 201). O sobrenatural pré-cristão sobrevive mesmo
após as modificações culturais advindas com a nova fé. Várias sagas de bispos
(Byskuppa sögur) utilizam narrativas que eram conhecidas nos tempos antigos:
a imobilidade do corpo, tema presente em uma espécie de magia odínica que
acometia certos guerreiros no campo de batalha (herfjöttur), que ressurge na
imobilidade de um santo após sua morte (Jóns saga); a jornada para fora do
corpo, comum no paganismo (as metamorfoses animais da Kormáks saga e nas
Eddas, entre outras) e nas narrativas de santos (bispos visitam o céu na Guð-
mundar saga) (McCreesh 2006: 1-11).
E também citando outros tipos de fontes nórdicas (como os þættir, as

identificado com simbolismos de iniciação animal.

– 156 –
A religiosidade dos celtas e germanos

sagas curtas), percebemos que a imunidade do fogo, citada para o berserker na


saga de Njal, também ocorre em outras situações, como a de bispos que atra-
vessam fogueiras (Þorvalds þáttr ins viðförla). Em todos estes casos, a audiência
geralmente constituída de aristocratas educados, clérigos e políticos - buscava
elementos que integrassem ambas as tradições religiosas em uma nova socieda-
de (McCreesh 2006: 11; Grønlie 2006: 10). Ao atravessar a primeira e segunda
fogueira e não ser queimado, Otrygg demonstrou que possuía poderes mira-
culosos, mas não consegue superar o fogo consagrado, pois o poder de Cristo
possui semelhanças, mas é superior ao de Odin.
Conclusão: confronto ou hibridismo entre religiosidades?
O episódio da conversão islandesa na saga de Njál, pode ser interpretado
dentro de um referencial mais amplo do que fizemos até o momento. Elencan-
do os mesmos em uma estrutura comparativa (tabela 1), constatamos alguns
detalhes: primeiramente, o deus Odin é ofendido no poema de Hjalti. Se consi-
derarmos a tradição de que os guerreiros berserkers são discípulos fanáticos de
Odin, neste caso, a deidade também sofreu um ataque indireto na passagem da
vitória de Thangbrand sobre Otrygg. Mas ao mesmo tempo, o deus Thor, citado
como sendo a causa do naufrágio do navio Auroque, não é ofendido direta-
mente, nem sequer derrotado na narrativa.60 Comparando-se à um texto mais
antigo, o Íslendigabók, o escritor da saga de Njal deliberadamente acrescentou
a passagem do feiticeiro Hedin, o poema de Steinnum e o confronto com o
berserker. Odin nem mesmo foi citado no Íslendigabók, sendo apenas a deusa
Freyja motivo de ofensa no poema de Hjalti (tabela 1). A que se deve esse hiato
moralista sobre o deus Thor na saga de Njál?

60 Curiosamente, em uma fonte muito mais antiga, o poema éddico Hárbarðzljóð


37, Thor combate as noivas de berserkers (Brvþir berserkia), consideradas violentas e po-
derosas. Para Kaplan 2006: 2, o termo significaria gigantas.

– 157 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Tabela 1: Estrutura do episódio de conversão da Brennu-Njáls saga (cap.


100-105).

A terra se Poemas de Confronto


abre devido Poema de Steinunn
Episódio: com o
ao feiticeiro Hjalti Berserker
Hedin

Thor é O berserker
exaltado
Controle do Odin e Freyja é desafiado e
Detalhamento: como tendo
clima são difamados morto pelos
mais poder missionários
que Cristo

Odin não
Permanência Odin e Freyja tem poder
das crenças Thor ainda
Estrutura: não tem – Milagre a
mágicas – tem poder
poder serviço do
Malefício cristianismo

Apenas Freyja
Comparação A passagem é mencionada O poema não A passagem
com o não é citada no poema de é citado não é citada
Íslendigabók Hjalti
Acreditamos que a explicação reside na hipótese já alentada anterior-
mente, de um confronto entre uma tradição islandesa com a dominação norue-
guesa (Borovzky 1999: 10-11). Mas ao invés de percebermos essa idéia apenas
no silêncio do missionário Thangbrand após a declamação pública dos poemas
de Steinunn, também a verificamos numa leitura ainda mais ampla do episódio
de conversão. O escritor da saga, coadunado com a audiência de sua época,
identificou a figura de Odin diretamente com a monarquia norueguesa. Sendo
um deus da aristocracia, dos guerreiros, enfim, da elite escandinava pré-cristã,
ele teria condições de representar a opressão advinda da realeza da Noruega
após 1264 (Otrygg aterroriza os pagãos em nossa narrativa). Ao contrário, Thor
é uma deidade identificada aos fazendeiros livres, camponeses, que acolhe em

– 158 –
A religiosidade dos celtas e germanos

seu palácio os escravos mortos.61 Comparando-se os deuses pagãos no momen-


to da conversão, Thor é o que mais se aproxima de Cristo – vence as forças
malévolas da natureza, é identificado ao homem simples e carrega um martelo,
logo assimilado à cruz. Apesar de alguns símbolos relacionados a Odin sobrevi-
verem em imagens cristãs – triquetras em cruzes de cemitério (como Gosforth,
Inglaterra), são imagens advindas de muito tempo antes da Era Viking. Um
símbolo exclusivamente odínico, o valknut, somente foi encontrado em objetos
relacionados ao paganismo. Igrejas, cemitérios, portais, esculturas, pedras co-
memorativas e pingentes, após a cristianização, contém imagens de Thor, mas
nunca do valknut (Langer 2010). Alguns objetos, como o famoso pingente de
Fosse, demonstram uma assimilação do martelo de Thor – que já era utilizado
como pingente nos tempos pagãos, transformando-se numa cruz no período
de conversão.
Mas não podemos pensar que o processo de cristianização e conversão
foi o mesmo para toda a Escandinávia, nem que a assimilação e o sincretismo
foram idênticos. Em primeiro lugar, as crenças pagãs sequer eram unificadas.
A religião nórdica pré-cristã não era centralizada, não possuía hierarquias ou
sacerdócio profissional, sendo por isso mesmo, muito variável em termos de
cultos e crenças, conforme a região, a categoria social e o gênero do praticante
(Langer 2009: 131-144). Muitos escandinavistas, justamente por isso, preferem
evitar o termo paganismo, que, num primeiro momento, concede uma idéia
muito monolítica desta religiosidade. Em algumas regiões (como a Islândia), o
culto a Thor era preponderante, enquanto que na região sueca, especialmente
no báltico, o odinismo era superior. Diversas localidades adotavam o enterro
por inumação, enquanto outras optavam pela cremação. Preferências por cer-
tos deuses, existência de diferenciações de crenças e preponderância de certas
narrativas míticas, tudo isso foi preservado pela tradição oral e interferiu na
mudança de religiosidade. Assim, as fontes medievais permitem verificar vários
aspectos do processo de cristianização. Em outras sagas islandesas, ao contrário
do episódio de conversão da Njal saga, o herói cristão defronta-se com Thor.
Na Óláfs saga Tryggvasonar em mesta 213, o rei norueguês Olaf Tryggvason
encontra-se pessoalmente com esta deidade, caracterizada como forte e brava,

61 A respeito do culto ao deus Thor, verificar: Kaplan 2006: 1-11; Dubois 1999: 3,
36, 56-60; Davidson 2001: 79-83, 101-103, 2004: 61-74; Boyer 1997: 153-156, 1981: 117-
130.

– 159 –
A religiosidade dos celtas e germanos

mas reclamando que o rei estava matando seus amigos, antes de mergulhar no
mar. Neste caso Olaf não somente vence e supera seu inimigo, mas o substitui
(Kaplan 2006: 1-9). As antigas funções de Thor, como a de combater os inimi-
gos dos homens (no contexto do paganismo, os gigantes, para o novo imagi-
nário, os demônios), agora são efetuadas pelo rei cristão. A tradição não pode
ser abandonada.
Desta maneira, não podemos concordar com o pesquisador Craig Da-
vis, quando afirma que a Njals saga reconhece o novo status quo da Islândia,
reconciliando para a audiência a nova coligação entre autoridade eclesiástica
e o poder real norueguês (Davis 1998: 453). Existe, obviamente, o reconheci-
mento da superioridade da nova religião, mas o episódio da conversão aponta
para uma critica ao domínio político de então, por meio do descrédito com a
figura de Odin. Já para com o deus Thor, seu poder sobre as forças da natureza
permanece inalterado. Com isso, o islandês, seja o camponês ou o aristocrata,
conserva seu espírito de liberdade e de identificação com um passado consi-
derado melhor, mas agora regido por uma nova religião e um novo direciona-
mento político-social.
Agradecimentos: aos professores João Lupi (UFSC), Ruy de Oliveira Andra-
de Filho (UNESP/Assis) e Luciana de Campos (UFMA), pelos comentários ao
presente texto.

– 160 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Referenciais bibliográficos:
Fontes primárias:
ANÔNIMO. Brennu-Njals saga, c. 1275-1290. Texto original em islandês an-
tigo: http://www.sagadb.org/brennu-njals_saga Tradução ao inglês por Mag-
nus Magnusson e Hermann Pálsson. Njal´s saga. London: Penguin Books,
1960. Tradução ao espanhol por Enrique Bernárdez. Saga de Nial. Madrid:
Siruela, 2003. Tradução ao francês por Rodolphe Dareste: http://www.sagadb.
org/brennu-njals_saga.fr Tradução ao francês por Régis Boyer (poema de
Steinunn). Le Christ des barbares: le monde nordique (IX-XIII siècle). Paris:
Cerf, 1987, pp. 112-113.
THORGILSSON, Ari. Íslendigabók, c. 1122-1132. Original em islan-
dês antigo, edição de Guðni Jónsson: http://www.heimskringla.no/
wiki/Íslendingabók Tradução ao inglês: http://en.wikisource.org/
wiki/%C3%8Dslendingab%C3%B3k
ANÔNIMO. Vatnsdæla saga 46, c. 1270-1280. Texto em islandês antigo:
http://www.sagadb.org/vatnsdaela_saga Tradução ao inglês por Andrew
Wawn. The Saga of the People of Vatnsdal. In: The sagas of ícelanders. Lon-
don: Penguin Books, 2000, pp. 185-269.

Bibliografia:
BARREIRO, Santiago. La magia en la saga de Hrólf Kraki. Temas Medievales
16, 2008, pp. 1-12. Disponível em:
http://www.scielo.org.ar/pdf/tmedie/v16/v16a02.pdf
BERNÁRDEZ, Enrique. Introducción. Saga de Nial. Madrid: Siruela, 2003,
pp. 9-27.
BOROVSKY, Zoe. Never in public: women and performance in Old Norse
Literature. Journal of American Folklore 112 (443), 1999, pp. 6-39.
_____ En hor er blandin mjök: women and insults in Old Norse Literature.
In: ANDERSON, Sarah & SWENSON, Karen (ed.). Could Counsel: women in
Old Norse Literature and Mythology. London: Routledge, 2002, pp. 1-14.
BOYER, Régis. L´Islande Médiévale. Paris: Les Belles Lettres, 2002.
_____ Héros et dieux du Nord. Paris: Flammarion, 1997.
_____ Le Christ des barbares: le monde nordique (IX-XIII siècle). Paris: Cerf,
1987.
_____ Le monde du double: la magie chez les anciens Scandinaves. Paris:
Berq International, 1986.
_____ Yggdrasill: la religion des anciens scandinaves. Paris: Payot, 1981.
BYOCK, Jesse. Viking Age Iceland. London: Penguin Books, 2001.
CHRISTIANSEN, Eric. The norsemen in the Viking Age. London: Blackwell

– 161 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Publishing, 2006.
CLEASBY, Richard & VIGFUSSON, Gudbrand. An Icelandic-English Dictio-
nary. Oxford: Oxford University Press, 1957.
DAVIDSON, Hilda. Deuses e mitos do Norte da Europa. São Paulo: Madras,
2004.
_____ The lost beliefs of Northern Europe. London: Routledge, 2001.
_____ Myths and symbols in pagan Europe: early Scandinavian and celtic
religion. Syracuse: Syracuse University Press, 1988.
_____ Escandinávia. Lisboa: Editorial Verbo, 1987.
DAVIS, Craig R. Cultural assimilation in Njáls saga. Oral tradition 13(2),
2008, pp. 435-455. Disponível em:
http://journal.oraltradition.org/files/articles/13ii/9_davis.pdf
DUBOIS, Thomas. Nordic religions in the Viking Age. Philadelphia: University
of Pennsylvania Press, 1999.
DUKE, Siân. Kristni saga and its sources: some revaluations. Saga Book 34
(4), 2005, pp. 343-366. Disponível em:
http://www.heathengods.com/library/viking_society/2001_XXV_4.pdf
EGILSDÓTTIR, Ásdís. The fantastic reality: hagiography, miracles and fan-
tasy. 13Th International Saga Conference, Durham University, 2006. Disponí-
vel em: http://www.dur.ac.uk/medieval.www/sagaconf/asdis.htm
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo:
Cia das Letras, 2007.
GRAHAM-CAMPBELL, James. Os viquingues, vol. I. Madrid: Del Prado,
1997.
GRØNLIE, Siân. Miracles, Magic and missionaires: the supernatural in the
conversion þættir. 13Th International Saga Conference, Durham University,
2006. Disponível em: http://www.dur.ac.uk/medieval.www/sagaconf/gronlie.
htm
EGGER DE IOLSTER, Nelly. Mujeres en la saga de Njal. Temas Medievales
12, 2004, pp. 17-35.
HAMER, Andrew Joseph. Njáls saga and its Christian Background: a study of
narrative method. Tese de doutorado em Letras, Rijksuniversiteit Groningen,
Holanda, 2008. Disponível em:
http://dissertations.ub.rug.nl/FILES/faculties/arts/2008/a.j.hamer/thesis.
pdf
HAYWOOD, John. Encyclopaedia of the Viking Age. London: Thames and
Hudson, 2000.
JESCH, Judith. Women in the Viking Age. London: The Boydell Press, 2003.
JOCHENS, Jenny. La femme Viking en avance sur son temps. In: BOYER,

– 162 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Régis (ed.). Les Vikings, premiers européens. Paris: Éditions Autrement, 2005,
pp. 217-232.
KAPLAN, Merrill. Out-Thoring Thor in Ólafs saga Tryggvasonar en mesta.
13Th International Saga Conference, Durham University, 2006. Disponível em:
http://www.dur.ac.uk/medieval.www/sagaconf/kaplan.htm
LANGER, Johnni. Símbolos religiosos dos vikings: guia iconográfico. His-
tória, imagem e narrativas 11, 2010a. Disponível em: www.historiaimagem.
com.br
_____ Seiðr e magia na Escandinávia Medieval. Signum 11(1), 2010b, pp.
177-202. Disponível em: www.revistasignum.com
_____ Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião viking. Brasí-
lia: Editora da UNB, 2009a.
_____ Vikings. In: FUNARI, Pedro Paulo (org.). As religiões que o mundo
esqueceu. São Paulo: Editora Contexto, 2009b, pp. 131-144.
_____ História e sociedade nas sagas islandesas: perspectivas metodológi-
cas. Alethéia: revista eletrônica de estudos sobre Antiguidade e Medievo 2
(1), 2009c, pp. 1-18, Disponível em: http://www.revistaaletheia.com/20091/
Johnny.pdf
_____ Galdr e feitiçaria nas sagas islandesas. Brathair 9 (1), 2009d, pp. 66-
90. Disponível em: www.brathair.com
_____ Fúria e sangue: os berserkers. Desvendando a História 3 (16), 2007,
pp. 44-47.
_____ Religião e magia entre os vikings: uma sistematização historiográfica.
Brathair 5 (2), 2005a, pp. 55-82. Disponível em: www.brathair.com
_____ A cristianização dos Vikings e do Norte Europeu. História: Questões
& Debates 43, 2005b, pp. 185-190. Disponível em:
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/viewFile/7873/5551
LIBERMAN, Anatoly. Berserkir: a Double legend. Brathair 4(2), 2004, pp. 97-
101. Disponível em: www.brathair.com
LÖNNROTH, Lars. Njáls saga: a critical introduction. Los Angeles: Universi-
ty of California, 1976.
MACCREESH, Bernadine. Elements of the pagan supernatural in the
Bishop´s sagas. 13Th International Saga Conference, Durham University, 2006.
Disponível em: http://www.dur.ac.uk/medieval.www/sagaconf/mccreesh.htm
MAGNUSSON, Magnus. Introduction. Njal´s saga. London: Penguin Books,
1960.
MCKINNELL, John. On Heiðr. Saga-Book 25, 2001, pp. 394-417. Disponível
em: http://www.vsnrweb-publications.org.uk/Saga-Book%20XXV.pdf
MIRANDA, Pablo Gomes de. Seguindo o Urso e o Lobo: discussões sobre os

– 163 –
A religiosidade dos celtas e germanos

elementos religiosos dos Berserkir e do Ulfheðnar. História, imagem e narra-


tivas 11, 2010. Disponível em: www.historiaimagem.com.br
MONTEIRO, Paula. Magia e pensamento mágico. São Paulo: Ática, 1986.
NORDEIDE, Sæbjørg Walaker. A cristianização da Escandinávia: entrevista
concedida a Johnni Langer. Brathair 10(1), 2010, dossiê: paganismo e cristia-
nismo entre celtas e germanos. Disponível em: www.brathair.com
OGILVIE, Astrid & PÁLSSON, Gísli. Weather and witchcraft in the sagas
of Icelanders. 13Th International Saga Conference, Durham University, 2006.
Disponível em: http://www.dur.ac.uk/medieval.www/sagaconf/ogilvie.htm
ÓLASSON, Vésteinn. Njáls saga. In: PULSIANO, Philipp & WOLF, Kirsten.
Medieval Scandinavia: an encyclopedia. London: Routledge, 1993, p. 433-434.
POOLE, Russell. Metre and metrics. In: MCTURK, Rory (ed.). Old Norse
Icelandic Literature and Culture. London: Blackwell, 2007, pp. 265-287.
QUINN, Judy. Women in Old Norse Poetry and sagas. In: MACTURK,
Rory (ed.). Old Norse Icelandic literature and culture. London: Blackwell Pu-
blishing, 2007, pp. 518-536.
SAWYER, Birgit and SAWYER, Peter. Medieval Scandinavia: from conver-
sion to reformation. London: University of Minnesota Press, 2006.
SCHJØDT, Jens Peter. The notion of Berserkir and the relation between
Óðinn and animal warriors. 13Th International Saga Conference, Durham
University, 2006. Disponível em: http://www.dur.ac.uk/medieval.www/saga-
conf/schjodt.htm
SCHMITT, Jean-Claude. Feitiçaria. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT,
Jean-Claude (org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo:
Edusc, 2002, pp. 423-435.
STRAUBHAAR, Sandra Ballif. Ambiguousily gendered: the skalds Jórunn,
Auðr and Steinunn. In: ANDERSON, Sarah & SWENSON, Karen (ed.).
Could Counsel: women in Old Norse Literature and Mythology. London:
Routledge, 2002, pp. 261-272.
STRÖM, Folke. Níðr, ergi, and Old Norse moral atittudes. London: University
College London, 1974. Disponível em: http://vsnrweb-publications.org.uk/
Nid,%20ergi%20and%20Old%20Norse%20moral%20attitudes.pdf
VAUCHEZ, André. Milagre. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Clau-
de (org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002,
pp. 197-212.
ZINK, Michel. Literatura. In: LE GOFF, Jacques & SCHMITT, Jean-Claude
(org.). Dicionário temático do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2002, pp.
79-93.

– 164 –
A religiosidade dos celtas e germanos

DISCUSSÕES ETIMOLÓGICAS E RELIGIOSAS SOBRE OS BERSERKIR


E OS ULFHEÐNAR
Pablo Gomes de Miranda (Graduado em História, UFPB)
Introdução:
Os berserkir são figuras curiosas, à primeira vista nos parecem uma
elite guerreira presente junto aos líderes e reis, formando uma espécie de tro-
pa guarda-costas especial, guerreiros profissionais que atuam sob um estado
de intenso frenesi, bufando e mordendo seus escudos para não só intimidar
o inimigo, mas poder incorporar tal fúria a ponto de adquirir extrema força,
valentia e resistência a dor.
Dos ulfheðnar sabemos pouco: podemos por um lado aceitar que eles
fossem uma versão dos guerreiros berserkir, pois apresentam o mesmo com-
portamento e detém a mesma função marcial, porém eles aparecem na Haral-
dskvæði em linhas diferentes, no cap. 18 da Haralds saga híns hárfagra pode-
mos ler claramente “Hlaðnir vöru hölða/ok hvítra skaljda,/vigra vestrœnna/ok
valskra sverða;/grenjuðu berserkir,/guðr vas á sinnum,/emjuðu ulfheðnar/ok
ísörn dúðu” (Haraldskvæði, 9 - 16)62. Não só isso, esse personagem em compa-
ração com os berserkir não possui mais detalhes diretos em termos documen-
tais63.
Em nossa opinião, somente não podemos negar as relações de ambos
os personagens com a divindade chamada Óðinn, líder dos Æsir e uma das
mais importantes deidades das antigas religiosidades da Escandinávia pagã.
Óðinn, ao mesmo tempo em que favorece determinados protegidos em bata-
lha, lhes são atribuídos diversas esferas de influência, entre elas a mesma inspi-
ração que pode ser oferecida aos poetas é o furor dados as elites guerreiras das
quais estamos falando.
Para além de discutirmos se esses personagens existiram realmente ou

62 Grifos nossos. Os verbos “grenja” e “emja” podem ser traduzidos por rugir e
uivar (ou guinchar), respectivamente, logo temos: “rugiram os berserkir” e “uivaram os
ulfheðnar”.
63 Uma outra referência aos ulfheðnar pode ser vista na Grettis saga, 2.

– 165 –
A religiosidade dos celtas e germanos

não64, existem outras questões pertinentes a nossa proposta: a semelhança entre


os berserkir e os ulfheðnar, sua caracterização, participação social e, principal-
mente, sua ligação com o sobrenatural, principalmente com a figura de Óðinn,
necessária para o êxtase em batalha.
Caracterização e conceituação dos berserkir e dos ulfheðnar:
Antes de irmos além, é importante iniciarmos uma discussão sobre o
significado de ambas as palavras. Usualmente ligamos o berserkr65 a figura do
urso, e o ulfheðinn66 ao lobo, sendo, portanto, vistos como guerreiros que se
cobriam com peles67. Entretanto, há um problema em relação ao berserkr, sim-
plesmente porque o sufixo “berr-” não passa a designar mais a palavra “urso”
e sim nu (no sentido de ausência). Assim, passamos a trabalhar com duas hi-
póteses, a primeira na qual esse sufixo tenha uma origem muito mais antiga e
que possa ser remetida ao animal ou que ela simplesmente tenha outro signi-
ficado. Em outra direção, o ulfheðinn pode ser traduzido com segurança como
“os peles de lobos” (LIBERMAN, 2004, p. 2). A diferença etimológica está na
caracterização do primeiro como o guerreiro que luta sem proteção (ou outra
hipótese é a de lutar utilizando usando uma pele de urso) e o segundo se cobre
com pele de lobo.
Na Ynglingasaga encontramos uma passagem que mostra as caracte-
rísticas pertinentes a esses personagens (ainda que apenas os berserkir sejam
citados):

64 Não queremos retirar de forma alguma o mérito de pesquisas focadas objetiva-


mente nessa hipótese, de que esses personagens não passem de criação ficcional própria da
oralidade e literatura escandinava, entretanto acreditamos ser simplista demais, até mes-
mo ultrapassado, focar na suposta natureza fictícia do berserkr e ulfheðinn, concepção essa
que está cooptada com uma concepção das fontes islandesas medievais, conhecidas como
“sagas”, serem puramente fictícias, visão muito difundida no começo do séc. XX e que vem
sofrendo diversas críticas de diversos acadêmicos, como Carol J. Clover, Gísli Sigurðsson,
Tommy Danielsson, etc (ANDERSSON, 2006, p. 3 – 4).
65 Singular.
66 Singular.
67 Curiosamente, em SPRAGUE, 2007, a autora funde ambos os guerreiros em
uma classe só: “Because the berserkers wore Wolf-skins instead of chainmail, they were
known as ulfhedner” (SPRAGUE, 2007, p. 81).

– 166 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Óðinn kunni svá gera, at í orrostu urðu óvinir Hans


blindir eða daufir eða óttafullir, en vápn þeira bitu eigi heldr
en vendir, en Hans menn fóru brynjulausir ok váru galnir sem
hundar eða vargar, bitu í skjöldu sina, váru sterkir sem birnir
eða griðungar; þeir drápu mannfólkit, em hvártki eldr né járn
orti á þá; þat er kallaðr berserksgangr (Ynglingasaga, 6).
Óðinn era conhecido por, na batalha, tornar seus
inimigos cegos, surdos e medrosos. Suas armas não feriam
pouco mais que varetas, e seus homens iam sem armadura e
agiam como cachorros e lobos, mordendo os seus escudos,
eram fortes como ursos e touros. Eles matavam pessoas e ne-
nhum fogo ou aço os afetava; Isso é chamado berserksgangr.68
Além da clara ligação com Óðinn, observamos os guerreiros entrarem
em berserksgangr e adquirirem força e invulnerabilidade ao ferro e ao fogo, no
caso as feridas de batalha. Além disso, sua ligação animalesca é clara, os uivos
e o ato de morder o escudo são demonstrações aterrorizantes direcionadas aos
inimigos que saberão que os guerreiros estão se preparando, entrando em um
estado de fúria. Logo essa descrição está de acordo com as linhas que expomos
da Haraldskvæði.
Antes de nos apressarmos, devemos voltar ao berserkr da Haral-
dskvæði, afinal usava ele a pele de urso ou lutava sem proteção?
“The other possibility is to understand berserkr as ´bareshirt´,
that is, to reconstruct a substantivized adjective *berserks
´bareshirted´. A warrior called this would be a man who fou-
ght without armor, in his ´bare shirt.” If Þorbjörn69 knew the
word berfjall or some other words like it, he may have asso-
ciated berserkers with bears, while, as pointed out above, the
original meaning of ´bearskin´ can be admitted only if the
compound in question is extremely old” (LIBERMAN, 2004,
p. 2).

68 Tradução nossa.
69 Autor a quem creditamos a composição do poema do qual estamos discutindo.

– 167 –
A religiosidade dos celtas e germanos

No entanto sabemos que os povos germânicos têm um longo costume


de se associar a certos animais às classes de soldados especiais, como pode ser
observado na coluna de Trajano, monumento romano da metade séc. II.
Os guerreiros-lobos podem ser encontrados, principalmente, entre os
alamanos e os bavieros, aonde encontramos nomes associados a esse animal,
tais como Wolfhroc, Wolfhetan, Isangrim, Scrutolf, durante o período pagão
e reminiscências cristãs com nomes como Lingulf, Asdrulf, Grasul, Biterolf,
Freki, etc., além de sua clara associação ao antigo deus germânico Woden
(SPEIDEL, 2004, p. 25).
Os guerreiros-ursos também aparecem em diversas ocasiões na an-
tiguidade, como na Historia Francorum, de Gregório de Tours, encontramos
o guerreiro Ursio que lutou contra os exércitos do rei Childeberto, perto de
Verdun (SPEIDEL, 2004, p. 34).
Animais diferentes adotados por povos germânicos, mas que são uti-
lizados de maneira a absorver suas características e aplicá-las de forma bélica.
Acreditamos assim que suas contrapartes escandinavas são duas classes dis-
tintas, que seguem a mesma lógica de conter uma fúria guerreira que pode ser
usada de forma positiva durante a batalha.
Ainda mais, entre os ulfheðnar estamos certos da possibilidade de se-
rem guerreiros usando peles de lobo sob suas roupas70 ou guerreiros que incor-
porem suas características, as linhas da Haraldskvæði, quando o poeta Þorbjörn
separa as ações dos guerreiros-lobos dos guerreiros-ursos, no entanto, corrobo-
ra nossa suspeita. No entanto, uma definição sobre os berserkir ainda carece de
exatidão, afinal são realmente guerreiros-ursos ou simplesmente o sufixo Berr-
refere-se à ausência, no sentido de serem guerreiros desprovidos de armadura?
Temos a priori dois tipos de berserkr a serem trabalhados, os já citados
“guerreiro-urso” e o “sem proteção” 71. Podemos estabelecer a procedência de

70 Em LIBERMAN, 2004, o autor afirma que o sufixo da palavra Berserkir pode


afirmar uma ausência de proteção no sentido que esses guerreiros não se valiam de arma-
duras, no caso a cota de malha, não necessariamente que lutavam nus, no caso achamos
válido aplicarmos essa conclusão, também, para os Ulfheðnar.
71 Na falta de um termo melhor, acabamos por utilizar esse que denota a ausência

– 168 –
A religiosidade dos celtas e germanos

cultos ou mesmo de lendas envolvendo figuras de ursos entre os lapões duran-


te o medievo, povo esse que manteve largo contato com os noruegueses, por
exemplo, durante a mesma época. É de fato um problema duplo!
Podemos dispensar os relatos de Tacitus (referentes às suas descrições
de guerreiros germânicos lutando nus)72, pois no primeiro caso nos baseamos
no ato de vestir peles de urso, no segundo a “nudez” é relativo à ausência de
armadura. O culto ao urso, mencionado no parágrafo acima, pode ser o maior
andaime que temos para sustentar a hipótese do “guerreiro-urso”, no entanto as
lendas lapônicas estão mais ligadas a própria transformação ou transferência
de consciência a um urso, literalmente. Na Hrólfs saga kraka, para lutar pelo
rei Hrólf, Böðvarr transforma-se em um urso e ataca seus inimigos, matando
muito mais que um guerreiro comum (TOOLEY, 2007, p. 5). Semelhante a isso,
encontramos Kveldúlf, avô de Egil Skallagrimson, que durante as batalhas dei-
xava o seu corpo em casa e lutava na forma de um grande urso. No caso dos ul-
fheðnar, temos um exemplo clássico dos Völsungos, aonde Sigmund e Sinfiotli
assumem formas de lobo. Por outro lado, se não aceitarmos o uso das peles, o
guerreiro poderia imbuir-se de outros elementos: “...berserkers wore only ani-
mal masks and decorated their bodies with fur and claws; they allegedly did
not impersonate bears but believed that they had become bears” (LIBERMAN,
2004, p. 3).
Há pelo menos um elemento comum a tudo isso que é a suposta força
adquirida por esses guerreiros através do furor, aonde eles agem como loucos,
roem seus escudos com os dentes, urrando e gritando como animais. Exem-
plificamos com uma passagem da Ynglingasaga que esses guerreiros estavam
ligados a Óðinn, essa ligação, no entanto pode ser melhor explorada.
Furor odínico e o culto ao urso:
Óðinn é uma divindade antiga entre vários povos germânicos, seu pu-
déssemos conceitualiza-la, poderia ser feita de tal forma:
Também chamado Wotan, Woden ou Uuota. Nome derivado
de ódr, equivalente ao latim furor (ver Adam de Bremen: “Wo-

da suposta proteção do Berserkr.


72 Uma passagem sobre isso pode ser encontrada na sua obra Annales, XIII, 57.

– 169 –
A religiosidade dos celtas e germanos

tan, id est furor”); ver também o alemão Wut, que se aplica ao


êxtase ou aos transes apropriando-se de um ser em circuns-
tâncias guerreiras, sexuais, poéticas (inspiração) ou mágicas
(BOYER, 2004, p. 3).
Essa divindade rege domínio sobre diversos campos, tais como a po-
esia, a vitória, magia e mesmo a morte. Ao passo em que lhe é creditado o êx-
tase e a inspiração dos poetas, podemos notar uma relação muito antiga com a
guerra (ainda que ele não seja propriamente um deus da guerra, mas um deus
da vitória, fazendo-se valer, para isso, da astúcia, falsidade e cautela, segundo
BOYER, 2004, p. 5).
Óðinn é uma divindade cultuada principalmente pelas elites sociais,
essas que compreendiam principalmente a nobreza, a realeza e os guerreiros.
Grande parte da população adorava outros deuses, ligados a fenômenos da na-
tureza ou a agricultura (os deuses Þór e Freyr, por exemplo). Na análise do
monumento pétreo gotlandês Hammar I, o historiador Johnni Langer locali-
za uma pequena cena, que quando analisada os seus elementos (o corvo e os
guerreiros com as espadas levantadas), chega-se a conclusão de que ali está
representado o Valhöll, o salão dos guerreiros de Óðinn, mortos em batalha, e
em conjunto com outro monumento gotlandês, Sanda I, diz:
...o Valhöll torna-se o destino final dos guerreiros
mortos em batalha, e por isso mesmo está representado no
topo das runestones73 – o ápice da jornada heróica, o ideal de
todo membro da elite escandinava que almejava tornar-se um
einherjar depois de morto, aguardando o dia do Ragnarök
(LANGER, 2009, p. 94).

A ligação entre o ato de enfurecer-se, o berserksgangr e Óðinn se torna


problemática, pois só encontramos referências a ambos juntos nessa passagem

73 “Monumento megalítico dos povos escandinavos, geralmente constituído por


um menir (bloco de rocha erigido verticalmente) podendo conter inscrições rúnicas do
alfabeto Futhark, petróglifos (gravuras esculpidas), desenhos e pinturas. As imagens geral-
mente são passagens da mitologia nórdica, símbolos religiosos e algumas vezes cenas do
cotidiano, eventos militares ou simples efeitos artísticos” (LANGER, 2003).

– 170 –
A religiosidade dos celtas e germanos

da Ynglingasaga, fontes mitológicas, como os poemas Eddas (ou mesmo a prosa


em Edda, que divide uma suposta autoria em comum, o lögsögumaðr islandês,
Snorri Sturluson, com a compilação conhecida como Heimskringla) carecem
de qualquer passagem que mostre uma relação mais próxima entre esses guer-
reiros e Óðinn. Ambos aparecem isolados nas Eddas (principalmente Óðinn,
que é tema central de várias passagens), mas o nosso argumento é que a única
passagem na qual ambos estão juntos é justamente na Ynglingasaga, sendo sua
ligação com Óðinn estabelecida pelos seus domínios na guerra e pela sua ca-
pacidade de fornecer certas vantagens em combate aos guerreiros escolhidos,
entre eles o furor necessário para entrar no estado de luta referente ao berserks-
gangr.74

Talvez uma possibilidade para essa ligação possa ser dada de maneira
xamânica, aonde através de rituais ou consumo de substâncias alucinógenas,
os guerreiros consigam estabelecer-se nesse estado guerreiro, tomando posse
desse furor. Tem-se falado do consumo de bebidas ou cogumelos alucinógenos:

...men who had become psychotic from drugs, that their


frenzied state was induced by consuming fly agaric, an hallu-
cinogenic mushroom, drinking too much alcohol or simply
tricking the mind into rage through self-induced or group
stimulus (SPRAGUE, 2007, p. 81).

Mais uma vez, não encontramos respaldo que indique o consumo de


certas substâncias que possam induzir o indivíduo a tal padrão de comporta-
mento. Talvez o estímulo individual ou em grupo, aliado a crença religiosa em
Óðinn, possa possibilitar os elementos necessários para o estabelecimento do
berserksgangr. Na placa de bronze de Torslunda, Öland (sul da Suécia) encon-
tramos uma imagem que nos sugere uma dança ritual ligada a Óðinn, o que
reforça a crença nessa divindade como parte ritualística do estado de berserks-
gangr:

Lembrando que por diversas vezes encontramos nas sagas islandesas

74 No entanto discordamos de LIBERMAN, 2004, o mesmo afirma que não havia


qualquer ligação entre o culto odínico e a figura dos berserkir. Não podemos simplesmente
ignorar que Óðinn tinha um domínio sobre o furor de batalha e que era a ele que se diri-
giam os guerreiros que necessitavam do furor de batalha.

– 171 –
A religiosidade dos celtas e germanos

os berserkir andando em grupo, o que tem feito alguns acadêmicos suspeitarem


de que esses guerreiros possam ter formados uniões de irmandades:

Berserkers traditionally appear in groups. This fact allowed


several scholars to develop the theme of Germanic secret
unions. Here the implied provisos seem to be that, inasmu-
ch as berserkers were warriors, Germanic warriors were ber-
serkers and that since male unions (from initiation groups to
Jómsvikingar) existed, everything we learn about them is re-
levant for the history of berserkhood, even though berserkers
never formed secret unions and were not initiated into any
groups (LIBERMAN, 2004, p. 4)75

Talvez seja perigoso, por outro lado, estabelecer um paralelo mais pró-
ximo entre o xamanismo e o berserksgangr:

The sources concerning berserker do not allow us to postulate


that their frenzy was technically ecstatic, and, whereas sha-
manic ritual is controlled, we do not find any ritual element
associated with berserksgangr, which indeed appears to have
been a wholly uncontrolled release of individual strength
(TOLLEY, 2007, p. 6).

Outro elemento sobrenatural se torna importante para o estudos do


berserkr são as lendas envolvendo o urso entre os lapões, que divide semelhan-
ças com sagas mais tardias, como a Hrólfs saga kraka. Falamos anteriormente
de Böðvarr, o guerreiro que aparece na forma de um urso durante as batalhas
que antecedem a morte do rei Hrólf, curiosamente a história dos seus pais tem
um paralelo em comum com outras histórias escandinavas, inclusive o próprio
Björn, seu pai, fora amaldiçoado por Hvít, uma feiticeira lapônica, povo a quem
frequentemente aparecem referências mágicas nas sagas islandesas. Na forma
de urso, Björn é caçado pelos irmãos de Bera, com quem ela tem Böðvarr, o

75 Por outro lado, concordamos quando o autor conclui que provavelmente não
havia algum culto a parte entre esses guerreiros ou mesmo uma irmandade entre eles, o
que não descarta o fato de que eles pudessem se organizar em pequenos bandos junto a
guerreiros comuns.

– 172 –
A religiosidade dos celtas e germanos

mesmo que consegue manter essa forma encantada durante suas lutas. Nas len-
das lapônicas, encontramos uma moça com seus três irmãos que vivem a lhe
maltratar. Quando ela foge desses irmãos, a mesma passa a ser protegida por
um urso, com quem tem um filho.

Além do urso, na Hrólfs saga kraka, Bera tem mais dois filhos, um com
aparência de Veado e outro com aspecto canino. Os três são animais impor-
tantes na cosmogonia lapônica/finlandesa, o que nos mostra um intercâmbio
cultural com a Escandinávia: o grande urso é uma constelação importante e que
aparece nos primeiros versos do Kalevala, aonde Väinämöinen pede para que
ele, junto ao sol e a lua lhe ajudem no início dos tempos.

Conclusão:

De fato, pouco podemos concluir de nosso trabalho, mas acreditamos


ter suscitado questões relevantes à pesquisa dos berserkir e dos ulfheðnar. Afi-
nal a fúria guerreira pode ser um atributo especial de uma classe de guerreiros
de elite ou é comum aos guerreiros nórdicos? O próprio Egil Skallagrimson,
um famoso berserkr da literatura islandesa, não aparece usando peles de urso
ou lobo, no entanto toda sua família tem uma tradição dentro dessa classe guer-
reira, inclusive em seu duelo com Atli, Egil lança mão dessa fúria e mata seu
oponente com as mãos nuas (Egils saga Skallagrimssonar, 66). O rei Haraldr,
durante a batalha da ponte de Stamford, avança à frente de seus homens, gol-
peando seus inimigos com as duas mãos, ou seja, sem a proteção de seu escu-
do (Haralds saga Sigurðarsonar, 92). Diversos personagens são enaltecidos nas
sagas islandesas como proeminentes guerreiros, no entanto Egil é um berserkr,
inclusive tornando-se devoto de Óðinn, enquanto Haraldr Harðraða é um rei
católico (seu irmão, Oláfr Haraldson, fora um dos reis que empregaram a mu-
dança religiosa na Escandinávia, estabelecendo o cristianismo na Noruega).

Apontamos o estudo etimológico da palavra berserkr e nos parecem


que as duas hipóteses são razoáveis. Mesmo que no fim os guerreiros protegi-
dos por peles de urso não sejam realidade (hipótese essa que não foi provada),
é inegável a probabilidade de sua conexão com esse animal e a interiorização
religiosa de seus elementos, como a força. Também achamos inegável a ligação
entre Óðinn e esses guerreiros, tendo em vista que o primeiro é a fonte de furor

– 173 –
A religiosidade dos celtas e germanos

necessária para a existência do segundo, ainda que a aparição dos dois seja pro-
blemática nas fontes escritas.

Em outras ocasiões, ambos berserkir e ulfheðnar, são retratados como


os animais a quem representam. Em certas sagas ambos são retratados como
um problema social, bandidos e encrenqueiros que tomam terras e mulheres
alheias. Talvez devido à centralização da religião cristão que possa os ter des-
vinculados dos seus antigos senhores.

Não esgotamos de maneira alguma nossas pesquisas às fontes, ainda te-


mos que examinar várias sagas islandesas e estudar a fundo as Eddas. No entanto
essa pesquisa ainda inicial pode nos trazer diversos frutos relevantes ao aspecto
cultural e religioso desses guerreiros.

Fontes primárias:

Anônimo. Haralds saga híns hárfagra. Transcrição do texto original por Finnur
Jónsson. In: Heimskringla. København: G.E.C. Gads Forlag, 1911, p. 42 – 69.

______. Haralds saga Sigurðarsonar. Transcrição do texto original por Finnur


Jónsson. In: Heimskringla. København: G.E.C. Gads Forlag, 1911, p. 447 – 513.

______. Egils saga Skallagrimssonar. Tradução do texto original por Bernard


Scudder. Londres: Penguin Books, 2002.

Bibliografia:
ANDERSSON, Theodore M. The Growth of the Medieval Icelandic Sagas (1180
– 1280). Nova York: Cornell University Press, 2006.
BOYER, Régis. Óðinn: guia iconográfico. Traduzido por Luciana de Campos.
Brathair, v.4, n.1, p. 5 – 12, 2004. Disponível em http://brathair.com/revista/
numeros/04.01.2004/Odinn_Guia_Iconografico.pdf. Acesso em 24 de agosto
de 2010.

– 174 –
A religiosidade dos celtas e germanos

DAVIDSON, H. R. Ellis. Deuses e Mitos do Norte da Europa: uma mitologia é


o comentário específico de uma era ou civilização sobre os mistérios da exis-
tência e da mente humanas. São Paulo: Madras, 2004.
LANCASTER, Lynne. Building Trajan´s Column. American Journal of Archaeo-
logy, v.103 n.3, p.419 – 439, 1999.
LANGER, Johnni. Deuses, monstros, heróis: ensaios de mitologia e religião
viking. Brasília: Editora da UNB, 2009.
_____ Morte, Sacrifício Humano e Renascimento: Uma Interpretação Icono-
gráfica da Runestone Viking de Hammar I. Mirabília: Revista Eletrônica de His-
tória Antiga e Medieval, v.3, dez. 2003. Disponível em: http://www.revistamira-
bilia.com/Numeros/Num3/artigos/art6.htm. Acesso em 17 de agosto de 2010.
LIBERMAN, Anatoly. Berserkir: A Double Legend. Brathair, v. 4, n. 2, p. 97 –
101, 2004. Disponível em http://brathair.com/revista/numeros/04.02.2004/
berserkir.pdf. Acesso em 24 de agosto de 2010.
GRAHAM-CAMPBELL, James. Os Viquingues: Origens da Cultura Escandi-
nava, Vol. I e II. Madrid: Del Prado, 1997.
SPEIDEL, Michael P. Ancient Germanic Warriors: warriors styles from
Trajan´s column to Icelandic sagas. Londres: Routledge, 2004.
SPRAGUE, Martina. Norse Warfare: unconventional battle strategies of the
ancient Vikings. Nova York: Hippocrene Books, 2007.
TOOLEY, Clive. Hrólfs Saga Kraka and Sámi Bear Rites. Saga-Book: v. 31, p.
5 – 21, 2007. Disponível em http://www.vsnrweb-publications.org.uk/Saga-
Book%20XXXI.pdf. Acesso em 24 de agosto de 2010.
STURLUSON, Snorri. Haralds saga híns hárfagra. Tradução ao inglês por Lee
M. Hollander. The Saga of Harald Fairhair, In: Heimskringla, History of The
Kings of Norway. Austin: University of Texas Press, 2007, p. 59 – 95.
TACITUS, Cornelius. Annales. Editado por Charles Dennis Fisher. Oxford:
Clarendon Press, 1906. Disponível em http://www.perseus.tufts.edu/hopper/te
xt?doc=Perseus:text:1999.02.0077. Acesso em 24 de agosto de 2010.

– 175 –
A religiosidade dos celtas e germanos

BREVE ANÁLISE DE DOIS POEMAS LÍRICOS ANGLO-SAXÔNICOS


SOB A PERSPECTIVA DA TRADIÇÃO ORAL PRÉ-CRISTÃ

Prof. Ms. João Bittencourt de Oliveira (UERJ)

1. INTRODUÇÃO: A INGLATERRA ANGLO-SAXÔNICA (449-1066)

A língua inglesa, um dos mais nobres idiomas já usados pelo homem,


é o resultado da fusão de vários dialetos. Em certo sentido, é uma combinação
de várias línguas. Do mesmo modo que o povo inglês atual é o resultado de
laços entre Romanos, Bretões, Anglo-Saxões, Daneses, Normandos e outros
povos, a língua também reflete esse amálgama no âmbito do léxico, da sintaxe
e do estilo das línguas faladas por aqueles povos. Como em qualquer fusão
bem sucedida de elementos algum elemento predomina, a língua inglesa, nas
suas variedades, contém em si mesma um princípio de unidade. Esse princípio
– que governa os processos de formação de palavras, a ordem das palavras, o
estilo – é responsável pelo seu próprio crescimento interno, pela assimilação
de novos elementos de outras línguas (principalmente no âmbito do léxico e
da semântica), e sobretudo pelo seu refinamento progressivo.
Conforme POOLEY (1968), a história da literatura inglesa é um longo
e fascinante quadro vivo e que se inicia aproximadamente há dezesseis séculos
quando as legiões romanas abandonaram a província da Grã-Bretanha76, dei-
xando os Celtas nativos como presa da conquista das tribos anglo-saxônicas

76 Habitada pelos antigos Celtas e por outros aborígenes pouco civilizados desde
eras bastante remotas, a Bretanha (Inglaterra) foi conquistada pelos Romanos no século
I d.C., mas a romanização limitou-se, de fato, às Midlands (região central) e à bacia de
Londres. Por volta do ano 410, os Romanos já haviam deixado a ilha, que ficou sujeita às
incursões dos Anglos e dos Saxões; estes rechaçaram as populações celtas até a extremi-
dade da ilha e fundaram, no sul, a heptarquia anglo-saxônica, que não tardou a tornar-se
uma monarquia única, de que Alfredo o Grande (871-899) solidamente estabeleceu suas
bases. Para detalhes sobre a Inglaterra Anglo-Saxônica, veja-se BAUGH & CABLE (1993:
41-71.

– 176 –
A religiosidade dos celtas e germanos

do norte da Europa. Povos primitivos, belicosos que lutavam entre si, contra as
tribos invasoras dos Daneses (atuais Dinamarqueses), e contra o severo clima
britânico, os Anglo-Saxões ficaram conhecidos por seus apetitosos banquetes,
suas habilidades manuais, suas longas e heróicas histórias, bem como por sua
mesclagem de crenças pagãs com os ensinamentos cristãos. Antes de serem
absorvidos pelos conquistadores normandos da França (a partir de 1066), os
Anglo-Saxões haviam produzido o implacável poema épico Beowulf, de autor
anônimo, e as líricas que pela primeira vez fazem ouvir na literatura inglesa a
fascinação dos ingleses pelo o mar.
Ainda de acordo com POOLEY (1968), quando os Anglo-Saxões in-
vadiram a Inglaterra eles eram um povo basicamente agrícola e seminômade.
Eram organizados em duas classes sociais: os earls da classe dirigente, que
podiam reivindicar títulos de realeza ao fundador da tribo; e os churls77, que
eram criados ou escravos cuja linhagem somente podia ser traçada até um
ex-cativo desventurado da tribo. Durante séculos, os Anglo-Saxões haviam
vivido entre vizinhos hostis, e consequentemente eles admiravam grandemen-
te o líder guerreiro individual e os ideais de coragem que se exigiam dele.
Ao mesmo tempo, mesmo na época da invasão, eles entendiam o conceito
de uma organização social como mais importante do que a individual, já que
possuíam, além de leis severas, também um certo grau de conscientização.
O guerreiro ocupava uma posição de destaque na sociedade anglo-saxônica.
O prestígio de um guerreiro bem-sucedido era imenso. Até mesmo o rei era
essencialmente um guerreiro. Embora reinasse em absoluto, ele estava atento
aos conselhos de sua assembleia de anciãos, Witan78 (“os sábios”). Esse gru-

77 A palavra churl vem praticamente inalterada no significado e na pronúncia (em-


bora não na grafia) do inglês saxônico ceorl ("homem livre da classe mais inferior"). Um
ceorl anglo-saxônico tinha uma posição social superior à de um escravo, porém inferior
à de um thegn ("thane", cavaleiro que possuía terras, geralmente como dádiva do rei por
serviços militares).
78 Witan: conselho nacional dos tempos anglo-saxônicos. Do inglês antigo witan,
plural de wita ”sábio, conselheiro”, da raiz wit “saber, conhecer”. Cf. o alto alemão antigo
wizzan, weiz, wissa, wista (donde o alemão moderno wissen, weiss, wusse, gewusst) e tam-

– 177 –
A religiosidade dos celtas e germanos

po de condes proeminentes ficou mais tarde conhecido como o Witenagemot


(“assembleia dos sábios”). Os churls eram responsáveis pelo trabalho árduo
que sustentava predominantemente a comunidade agrícola. Eles passavam os
dias lavrando o solo, caçando, pescando e apanhando aves selvagens, moldan-
do metal e tecendo. Eles eram obrigados a fazer as tarefas dos earls a menos
que conseguissem obter posses e favor especial que os transformassem em
homens livres, ou proprietários de terras independentes.
A posição da mulher na escala social era sem importância. Uma rai-
nha, a esposa de um conde poderoso, ou, mais tarde, uma participante da igre-
ja, ocupava uma posição de honra e poder. Porém, a maioria das mulheres era
considerada como tendo valor somente para tarefas domésticas.
Embora a vida entre os Anglo-Saxões fosse primitiva, uma valoriza-
ção do artesanato logo se desenvolveu. O guerreiro sempre valorizava um pri-
moroso espécime de trabalho em metal ou de pedrarias, uma espada heróica
ou mesmo uma tapeçaria habilmente tecida por mãos femininas.
Grandes e pomposos banquetes regados a hidromel79 também faziam
parte da vida dos Anglo-Saxões. Para celebrar os feitos de um herói não po-
deria faltar a participação do bardo profissional, conhecido como scop80, que
combinava em sua pessoa os papéis de animador e cantor da corte, poeta lau-
reado, contador de histórias, compositor, crítico, guerreiro e muitas outros. Ele
apresentava sua história em forma de canto ritmado, acompanhado ocasional-
mente de instrumentos de cordas como a harpa ou a lira. A forma de sua his-
tória era fixada pela tradição em versos elásticos aliterativos81. Era desse modo

bém o latim vidēre “ver” (ONIONS, 1966: 1009).


79 Hidromel: uma bebida alcoólica feita com água e mel fermentado, muito popu-
lar nos países escandinavos durante a Idade Média. Nos textos originais anglo-saxônicos
medu, meodu, donde o inglês moderno mead (cf. nórdico antigo mjoðr). (ONIONS, 1966:
564).
80 Um scop era um poeta ou menestrel anglo-saxônico (cf. o nórdico antigo skald
“poeta da Islândia medieval”; cf. também os termos cognatos no alto alemão antigo scoph,
scopf, scof, possivelmente relacionados ao verbo scapan “criar, dar forma”).
81 Em métrica, o verso aliterativo é uma forma de verso que usa aliteração (repeti-

– 178 –
A religiosidade dos celtas e germanos

que se perpetuava a história dos Anglo-Saxões. O scop tinha que ser mestre de
sua arte, ser capaz de recitar milhares de versos de memória e qualquer execu-
ção medíocre seria o bastante para colocá-lo em situação ridícula e acarretar
até mesmo a perda de sua proteção real. Isso, contudo, não quer dizer que o
scop recitava uma composição inteira de memória (lembrando que o poema
Beowulf contém 3182 versos), já que há evidências de que a improvisação re-
pentina de uma estrofe era também a marca de um habilidoso menestrel. Daí,
talvez, variantes encontradas em alguns manuscritos preservados.
Era costume, em grandes ajuntamentos de pessoas, um scop execu-
tar canções que narravam histórias que mesclavam temas religiosos com os
feitos de heróis como Beowulf82 ou outros heróis do passado, inclusive das
sagas islandesas. A plateia, composta por nobres da corte, ouvia atentamente
essas narrativas; a rainha e seu séquito hospitaleiramente passavam a taça ce-
rimonial de hidromel e em seguida discretamente se retiravam; os guerreiros
ouviam outras histórias enquanto degustava mais hidromel.

2. BREVE PANORAMA DA LITERATURA ANGLO-SAXÔNICA

A literatura anglo-saxônica compreende as obras produzidas em in-


glês-saxônico (Old English), durante o período histórico de 600 anos de do-
mínio dos Anglo-Saxões na Inglaterra, ou seja, de meados do século V até
a conquista Normanda de 1066. Foi nesse período que os povos germânicos
tradicionalmente denominados Anglos, Saxões, e Jutos invadiram e ocuparam

ção de fonemas num verso ou numa frase, especialmente as sílabas tônicas) como princi-
pal método de estruturação para unificar linhas de poesia, ao contrário de outros métodos
como a rima tradicional. A poesia skaldica (composta por notórios skalds, os poetas da
Islândia medieval) é escrita com um sistema métrico estrito, verso aliterativo e com muitas
figuras de linguagem, inclusive as kennings. Veja-se também nota 10.
82 Em Beowulf, por exemplo, há várias passagens onde se registra a participação
do scop, dentre elas destam-se: o banquete em Heorot (vv. 491-98), os feitos de Beowulf
após haver derrotado o monstro Grendel (vv. 866-884; 1062-69). Entre os Vikings, esses
contadores de histórias eram conhecidos como skalds (veja-se nota 4).

– 179 –
A religiosidade dos celtas e germanos

a Grã-Bretanha83. As obras dessa época incluem os mais diversos gêneros, en-


tre os quais a poesia épica, hagiografia (descrição da vida de santos da Igreja),
sermões, traduções da Bíblia, obras de Direito, crônicas, enigmas, e outros. Ao
todo existem cerca de 400 manuscritos preservados desse período, portanto
um corpus significativo para pesquisadores. Esses manuscritos têm sido al-
tamente apreciados por colecionadores desde o século XVI, tanto pelos seus
valores históricos quanto pela sua beleza estética de caracteres uniformemente
espacejados e elementos decorativos (iluminura).
Entre as obras mais importantes desse período está, indiscutivelmen-
te, o já mencionado poema épico Beowulf, com 3182 versos, de autoria anô-
nima, escrito provavelmente no século VIII, mas os fatos narrados se referem
à Dinamarca e à Suécia. É também considerado como uma das mais impor-
tantes obras da literatura anglo-saxônica. A Anglo-Saxon Chronicle (“Crônica
Anglo-Saxônica”) diferentemente revela-se de grande relevância para o estudo
da época, preservando uma cronologia da história do inglês primitivo, en-
quanto o poema Cædmon’s Hymn (“Hino de Cædmon”) do século VII sobrevi-
ve como a obra mais antiga existente da literatura em língua inglesa. Segundo
Beda, Cædmon não era versado na arte de compor, mas aprendeu a compor
uma noite durante um sonho e a partir de então afirmava ter recebido seu dom
poético diretamente de Deus. Mais tarde, na abadia de Whitby, se tornou um
monge ardoroso, além de consumado e inspirado poeta religioso.
Logo após a introdução do Cristianismo pelo monge beneditino San-
to Agostinho de Cantuária, em 597, fundaram-se os grandes mosteiros.84 Em

83 Os Anglo-Saxões eram povos pagãos, que adoravam os deuses do panteão mi-


tológico germânico, dentre os quais Þórr (Thor), deus do trovão; Óðinn (Woden ou Odin),
deus da guerra; e Njörðr (Niord), deus do mar e protetor dos pescadores e dos caçadores e
muitos outros. Não sabiam ler nem escrever, a não ser nas runas, tipo de inscrição usado
para mensagens curtas, encantamentos, e decorações. Note-se que o dia da semana cor-
respondente à quinta-feira nas línguas germânicas é derivado de Thor. Cf. inglês: Thursday
“dia de Thor”, Alemão: Donnerstag, sueco, dinamarquês e norueguês: torsdag. Cf. ainda o
latim: dies iovis “dia de Júpiter”.
84 Com a penetração do Cristianismo na Inglaterra, as velhas tradições pagãs, que
por séculos haviam proporcionado segurança e estrutura, passaram a ser ameaçadas por

– 180 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Lindisfarne e Wearmouth, Jarrow e Whitby, monges eruditos organizaram es-


colas para educar o clero e preservar as tradições clássicas do passado. Foram
tão bem sucedidos que antes do fim do século VIII os monges ingleses, junta-
mente com os confrades irlandeses, receberam o título de “mestres-escolas da
Europa”. Além de suas tarefas religiosas, muito contribuíram para a preserva-
ção da poesia nativa dos ancestrais pagãos dos atuais ingleses e eles próprios
compuseram muitos poemas e obras em prosa na língua vernácula.

2.1 Elementos pagãos e cristãos na poesia anglo-saxônica

Além dos poemas puramente religiosos, compostos por Cædmon e


outros poetas anônimos, os escritores anglo-saxônicos também se preocupa-
vam com seu próprio povo antes de sua conversão ao Cristianismo. Versa-
dos como eram nos modelos latinos e gregos, eles deram uma interpretação
artística e moral das histórias antigas, enquanto mantinham vivo o senso de
um passado turbulento. A lírica anglo-saxônica, como salientamos, do mesmo
modo que a epopeia, deve muito ao scop. O scop desempenhava muitos papéis
numa tribo anglo-saxônica: cantor da corte, contador de histórias, composi-
tor, crítico, guerreiro e muitas outras.
A era do inglês antigo, ou anglo-saxônico, da Inglaterra se estendeu
do ano 450 ao ano de 1066 d.C. As tribos germânicas que conquistaram a
Inglaterra no século V levaram consigo não somente a língua mas também
uma tradição poética bem enraizada. Essa tradição incluía, dentre outras ca-
racterísticas, o emprego de versos aliterativos85, cesura, sílabas acentuadas e

conceitos daTeologia Cristã até então desconhecidos, tais como o Pecado Original (Gen.
1: 15-17), a Encarnação de Cristo (Mq 5: 2; Jo 8:58; Lc 2; 40, 52) e a Trindade (Rom. 1:20;
Col2:9).
85 Na poesia aliterativa do inglês anglo-saxônico, a unidade é o verso. Os versos
são dispostos em pares aliterados (sequência de fonems consonantais idênticos ou congê-
neres, dentro da mesma unidade métrica, sobretudo em sílabas tônicas iniciais). O par de
versos é o mesmo da linha tipográfica. Cada verso é frequentemente denominado meia
linha. Exemplo:
wintra dæl in woruldrice.         Wita sceal geþyldig, [The Wanderer, v. 65]

– 181 –
A religiosidade dos celtas e germanos

não acentuadas, as kennings86, mais importante, entretanto, é que a poesia era


geralmente lamentosa, refletindo principalmente sobre sofrimento e perda.
Desse modo, a poesia lírica anglo-saxônica é caracterizada por diversos traços
singulares. Esses traços podem ser verificados nesses poemas no tom, forma,
temas e simbolismo. São, portanto, poemas melancólicos e miméticos para os
próprios Anglo-Saxões; eles refletem a vida e o tempo frequentemente sobre-
carregados e miseráveis dos povos que os criaram. Os poemas anglo-saxônicos
The Seafarer e The Wanderer são dois exemplos de quão mimética é essa lite-
ratura, pois eles captam as crenças heróicas em torno dos conceitos de fama e
destino daquela cultura, sua estrutura societária, e a luta religiosa do período
anglo-saxônico, ou seja, a transição do paganismo ao Cristianismo. Para TIM-
MER (1944: 180), The Wanderer e The Seafarer, os quais, na forma em que os
concebemos, mais adequado seria denominá-los poemas didático-religiosos,
provavelmente são bem antigos na sua forma elegíaca original, mas se torna-
ram completamente cristãos em espírito. É impossível separar as partes cristãs
das pagãs.

A cesura é o corte ou pausa que se observacomo element estrutural de certos versos, se-
parando-lhes os membros métricos ou hemistíquios. Para o detalhamento da métrica na
poesia anglo-saxônica, veje-se DIAMOND, 1970: 46-67.
86 Kennings (do norueguês antigo kenningar, singular kenning): recurso estilístico
que consiste em expressar uma coisa em termos de outra. As kennings estão particular-
mente associadas com a prática da poesia aliterativa, onde tendem a tornar-se fórmulas fi-
xas. As kennings são comuns na poesia germânica medieval e são também encontradas nas
inscrições rúnicas nórdicas, nos poemas anglo-saxônicos, e na Edda poética (conjunto de
textos em norueguês antigo, originalmente em versos, encontrados na Islândia). Os skalds
(bardos da era viking) faziam largo uso de kennings (SHIPLEY, 1970:171). Nos poemas,
em tela, há dezenas de kennings, como por exemplo: sumeres weard (The Seafarer, v. 53)
“sentinela do verão”, em referência ao cuco; hwæles eþel (id. v. 60) “habitação da baleia”, em
referência ao mar; gold-wine (The Wanderer, v. 35) “amigo de ouro”, para designar um rei
ou senhor bondoso.
Em Beowulf, por exemplo, há várias passagens onde se registra a participação do scop,
dentre elas destam-se: o banquete em Heorot (vv. 491-98), os feitos de Beowulf após haver
derrotado o monstro Grendel (vv. 866-884; 1062-69). Entre os Vikings, esses contadores
de histórias eram conhecidos como skalds (veja-se nota 3)

– 182 –
A religiosidade dos celtas e germanos

2.2 O Livro de Exeter

Antes de Willain Caxton introduzir a tipografia na Inglaterra


(usando caracteres móveis de madeira), em 1474, toda a literatura produ-
zida numa determinada região tinha que ser copiada numa espécie de bi-
blioteca de um só volume encadernado entre pranchas de vidoeiro (birch87,
em inglês). Os livros eram, evidentemente, artigos raros.
  O Livro de Exeter (The Exeter Book ou Codex Exoniensis) é um livro
ou códice copiado no século X que reúne uma coleção de poemas em inglês-
saxônico. Trata-se de um dos quatro mais importantes códices da literatura
anglo-saxônica (os demais são: Junius manuscript, Vercelli Book e Nowell Co-
dex). O livro foi doado à biblioteca da Catedral de Exeter, onde ainda se encon-
tra (Exeter Cathedral Library MS 3501), por Leofric, primeiro bispo de Exeter
de 1050 a 1071. Acredita-se que originalmente o códice contivesse 131 folhas,
das quais as oito primeiras tenham sido trocadas por outras; as oito primeiras
páginas genuínas se perderam.
A poesia que restou nas 131 folhas de pergaminho no Exeter Book
constitui a maior coleção da literatura anglo-saxônica que se conhece. Ele
representa também uma das maiores obras do renascimento beneditino inglês
do século X; tudo indica que teria sido copiado por um escriba, provavel-
mente nos fins do século X, entre 960 e 990, embora The Wanderer seja bem
mais antigo, talvez da época da conversão dos Anglo-Saxões ao Cristianis-
mo, que começou com a missão de Santo Agostinho, em 597, como vimos.
O livro contém 31 poemas de maior expressão, a maioria de natureza reli-
giosa, além de 96 enigmas.

87 Além do vidoeiro, utizavam-se outros tipos de madeira na confecção de livros.


Note-se que a própria palavra inglesa book “livro” vem do inglês antigo "bōc" e esta do
protogermânico *bokiz "beech", português “faia” (cf. alemão Buch e Buche); madeira da
árvore de que se faziam tabuletas para entalhar as runas. Originalmente, a palavra signi-
ficava qualquer documento escrito. De maneira semelhante, a palavra latina codex (plural
codices) significava originalmente “tabuinha de escrever”.

– 183 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Esse período testemunhou o crescimento da atividade e produtivida-


de monásticas sob a influência renovada dos princípios e padrões beneditinos.
No início desse período, estabeleceu-se a importância de Dustan (bispo de
Worcester e mais tarde arcebispo de Canterbury) para a Igreja e para o reino
da Inglaterra.
Cabe aqui ressaltar, mesmo por alto, que os Anglo-Saxões levaram
também consigo do continente o alfabeto rúnico, mas após sua conversão ao
Cristianismo eles adotaram a forma britânica do alfabeto latino, principal-
mente o que era utilizado na Irlanda, substituindo mais tarde os caracteres
rúnicos þ = th e ƿ = w por th e u ou uu. Um d cruzado (= ð), com os mesmos
valores de þ, era livremente usado, especialmente em posição medial e final. O
alfabeto anglo-saxônico era formado pelas as seguintes letras: a, æ, b, c (k), d,
e, f, g, h, i, k, l, m, n, o, p, r, s, t, þ ð, u, ƿ = w, x, y.
O comprimento da vogal raramente é indicado nos manuscritos.
Ocasionalmente emprega-se o sinal (˘) sobre as vogais breves, e mais frequen-
temente o sinal (‘) sobre as vogais longas. Vez por outra, dobra-se a vogal para
indicar que a mesma é longa, como good. Em livros-texto modernos as vogais
longas são geralmente assinaladas; alguns editores usam o acento agudo (á),
outros o macron (ā), e outros ainda o acento circunflexo (ã). A determinação
do comprimento das vogais tem sido alcançada pela cuidadosa investigação, e
particularmente pela comparação com os dialetos germânicos cognatos.88

3. OS POEMAS

Os dois poemas que passaremos a examinar nesse trabalho fazem par-


te do Exeter Book. Ambos são de autores anônimos e têm suas origens no perí-

88 Para a pronúncia, grafia e flexões do inglês anglo-saxônico, veja-se DIAMOND


(1970: 9-45).

– 184 –
A religiosidade dos celtas e germanos

odo da literatura anglo-saxônica, 450-1066, uma época em que poucas pessoas


sabiam ler ou escrever, ou teriam sido escritos por volta do ano 597, quando
os Anglo-Saxões estavam no processo de conversão ao Cristianismo. Ambos
são considerados pela maoria dos estudiosos por quem nos orientamos como
“poemas elegíacos” de tom terno e triste, ou como de maneira sucinta define
HARVEY (1967: 266) “uma elegia é uma canção de lamentação pelos mortos”.
Por extensão, a elegia como um gênero poético geralmente retrata sofrimento
e saudade de uma época de melhores dias.
A maioria das elegias anglo-saxônicas são monólogos proferidos por
um personagem não identificado cuja situação não é clara, mas que parece
estar isolado do convívio humano, do conforto do lar e do ciclo de amizade.
Porém, mesmo compartilhando da linguagem poética do exílio e da saudade,
cada poema possui sua própria configuração e propósito, e cada um faz sua
própria declaração sobre os problemas e possibilidades da vida terrena. Para
conjurar o tema da saudade, The Seafarer imediatamente impele o leitor para
dentro de um mundo de degredo, penúria, e solidão. The Wanderer lamenta a
passagem de uma vida inteira, o mundo heróico do saguão de guerreiro. The
Wanderer é considerado por muitos estudiosos como uma elegia ou lamento
pelas coisas ou pessoas levadas pela morte. The Seafarer é de maneira explícita
e até um tanto agressiva homilético e cristão.
Apresentamos, a seguir, os textos anglo-saxônicos89 seguidos de bre-
ves comentários.

89 Os poemas que se seguem foram extraídos de FULD and POPE (2001: 87-110).

– 185 –
A religiosidade dos celtas e germanos

3.1 The Wanderer (“O Errante”)

Oft him anhaga are gebideð,


metudes miltse, þeah þe he modcearig
geond lagulade longe sceolde
hreran mid hondum hrimcealde sæ,
5 wadan wræclastas. Wyrd bið ful aræd!
Swa cwæð eardstapa, earfeþa gemyndig,
wraþra wælsleahta, winemæga hryre:
“Oft ic sceolde ana uhtna gehwylce
mine ceare cwiþan. Nis nu cwicra nan
10 þe ic him modsefan minne durre
sweotule asecgan. Ic to soþe wat
þæt biþ in eorle indryhten þeaw,
þæt he his ferðlocan fæste binde,
healde his hordcofan, hycge swa he wille.
15 Ne mæg werig mod wyrde wiðstondan,
ne se hreo hyge helpe gefremman.
Forðon domgeorne dreorigne oft
in hyra breostcofan bindað fæste;
swa ic modsefan minne sceolde,
20 oft earmcearig, eðle bidæled,
freomægum feor feterum sælan,
siþþan geara iu goldwine minne
hrusan heolstre biwrah, ond ic hean þonan
wod wintercearig ofer waþema gebind,
25 sohte sele dreorig sinces bryttan,

– 186 –
A religiosidade dos celtas e germanos

hwær ic feor oþþe neah findan meahte


þone þe in meoduhealle min mine wisse,
oþþe mec freondleasne frefran wolde,
weman mid wynnum. Wat se þe cunnað,
30 hu sliþen bið sorg to geferan,
þam þe him lyt hafað leofra geholena.
Warað hine wræclast, nales wunden gold,
ferðloca freorig, nalæs foldan blæd.
Gemon he selesecgas ond sincþege,
35 hu hine on geoguðe his goldwine
wenede to wiste. Wyn eal gedreas!
Forþon wat se þe sceal his winedryhtnes
leofes larcwidum longe forþolian,
ðonne sorg ond slæp somod ætgædre
40 earmne anhogan oft gebindað.
þinceð him on mode þæt he his mondryhten
clyppe ond cysse, ond on cneo lecge
honda ond heafod, swa he hwilum ær
in geardagum giefstolas breac.
45 ðonne onwæcneð eft wineleas guma,
gesihð him biforan fealwe wegas,
baþian brimfuglas, brædan feþra,
hreosan hrim ond snaw, hagle gemenged.
þonne beoð þy hefigran heortan benne,
50 sare æfter swæsne. Sorg bið geniwad,
þonne maga gemynd mod geondhweorfeð;
greteð gliwstafum, georne geondsceawað
secga geseldan. Swimmað eft on weg!

– 187 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Fleotendra ferð no þær fela bringeð


55 cuðra cwidegiedda. Cearo bið geniwad
þam þe sendan sceal swiþe geneahhe
ofer waþema gebind werigne sefan.
Forþon ic geþencan ne mæg geond þas woruld
for hwan modsefa min ne gesweorce,
60 þonne ic eorla lif eal geondþence,
hu hi færlice flet ofgeafon,
modge maguþegnas. Swa þes middangeard
ealra dogra gehwam dreoseð ond fealleþ,
forþon ne mæg weorþan wis wer, ær he age
65 wintra dæl in woruldrice. Wita sceal geþyldig,
ne sceal no to hatheort ne to hrædwyrde,
ne to wac wiga ne to wanhydig,
ne to forht ne to fægen, ne to feohgifre
ne næfre gielpes to georn, ær he geare cunne.
70 Beorn sceal gebidan, þonne he beot spriceð,
oþþæt collenferð cunne gearwe
hwider hreþra gehygd hweorfan wille.
Ongietan sceal gleaw hæle hu gæstlic bið,
þonne ealre þisse worulde wela weste stondeð,
75 swa nu missenlice geond þisne middangeard
winde biwaune weallas stondaþ,
hrime bihrorene, hryðge þa ederas.
Woriað þa winsalo, waldend licgað
dreame bidrorene, duguþ eal gecrong,
80 wlonc bi wealle. Sume wig fornom,
ferede in forðwege, sumne fugel oþbær

– 188 –
A religiosidade dos celtas e germanos

ofer heanne holm, sumne se hara wulf


deaðe gedælde, sumne dreorighleor
in eorðscræfe eorl gehydde.
85 Yþde swa þisne eardgeard ælda scyppend
oþþæt burgwara breahtma lease
eald enta geweorc idlu stodon.
Se þonne þisne wealsteal wise geþohte
ond þis deorce lif deope geondþenceð,
90 frod in ferðe, feor oft gemon
wælsleahta worn, ond þas word acwið:
“Hwær cwom mearg? Hwær cwom mago? Hwær cwom
maþþumgyfa?
Hwær cwom symbla gesetu? Hwær sindon seledreamas?
Eala beorht bune! Eala byrnwiga!
95 Eala þeodnes þrym! Hu seo þrag gewat,
genap under nihthelm, swa heo no wære.
Stondeð nu on laste leofre duguþe
weal wundrum heah, wyrmlicum fah.
Eorlas fornoman asca þryþe,
100 wæpen wælgifru, wyrd seo mære,
ond þas stanhleoþu stormas cnyssað,
hrið hreosende hrusan bindeð,
wintres woma, þonne won cymeð,
nipeð nihtscua, norþan onsendeð
105 hreo hæglfare hæleþum on andan.
Eall is earfoðlic eorþan rice,
onwendeð wyrda gesceaft weoruld under heofonum.
Her bið feoh læne, her bið freond læne,

– 189 –
A religiosidade dos celtas e germanos

her bið mon læne, her bið mæg læne,


110 eal þis eorþan gesteal idel weorþeð!”
Swa cwæð snottor on mode, gesæt him sundor æt rune.
Til biþ se þe his treowe gehealdeþ, ne sceal næfre his torn to
rycene
beorn of his breostum acyþan, nemþe he ær þa bote cunne,
eorl mid elne gefremman. Wel bið þam þe him are seceð,
115 frofre to fæder on heofonum,         þær us eal seo fæst-
nung stondeð

The Wanderer é uma canção épica, de elevado tom elegíco que fala de
um homem que esteve exilado de seu clã, e agora se vê forçado a perambular
sozinho pela terra. A separação de seus entes queridos e de seu senhor parece
ser o pior destino imaginável. O poema transmite as meditações de um exilado
solitário sobre suas glórias do passado como um guerreiro a serviço de seu su-
serano, seus sofrimentos do presente e os valores da paciência e a fé em Deus.
O guerreiro é identificado como um eard-stapa (v. 6), que se pode traduzir
por “errante” ou “nômade”, que vagueia através dos mares gelados e percorre
o “caminho do exílio” (wræc-lasta, v. 32). Ele relembra os dias em que servia
seu senhor no comitatus90, banqueteavam juntos e recebia presentes precio-
sos. Contudo, o destino (wyrd91) se virou contra ele quando ele perdeu seu

90 Comitatus (“seguidores do reis germânicos”): é uma relação da sociedade feudal


entre o senhor feudal e o vassalo. Para além de trabalhar nas suas terras, o vassalo servia
nas terras do seu senhor e fornecia-lhe serviço militar em troca de terras, segurança, com-
pesação e/ou privilégios. A expressão comitatus foi descrita no tratado De Origine et situ
Germanorum ("Da origem e situação dos germanos"), também conhecido pelo título sim-
plificado de Germania, do historiador romano Públio Cornélio Tácito, no ano 98, como a
relação entre um guerreiro germânico e o seu senhor, garantindo que um não abandonaria
o campo de batalha sem o outro.
91 Wyrd: é um conceito da cultura anglo-saxônica que corresponde aproximada-

– 190 –
A religiosidade dos celtas e germanos

senhor, seus parentes e companheiros numa batalha e, como consequência,


foi atirado ao exílio. 
Conforme KLINK (1992: 32), poucos estudiosos atualmente con-
siderariam os elementos “pagãos” e cristãos no poema The Wanderer como
separáveis, ou mesmo tentariam distinguir passagens supostamente originais
das que foram acrescentadas posteriormente. É verdade que uma fé religio-
sa positiva emerge de maneira clara somente na introdução e na conclusão,
mas no corpo do poema há sinais de uma perspectiva mais abrangente que
certamente transcenderá a tragédia que aguarda os heróis neste mundo. Re-
ferências a um “senhor terrenal” (goldwine, vv. 22 e 35; synces bryttan, v. 25;
modryhten, v. 41; maþþumgyfa, v. 92; þeodnes, v. 95) de maneira implícita su-
gerem por contraste sua contraparte celestial. O Errante não consegue imagi-
nar por que sua alma não deveria ficar tenebrosa quando ele contempla a vida
transitória dos homens (v. 58). Já quase no final do poema, estabelece-se um
contraste entre os sustentáculos terrenos que logo se dissipam e a estabilidade
celestial que perdura.
Desse modo, é fácil perceber o marinheiro tal como ele é, dividido
entre recordar uma vida mais feliz, agora esvanecida para sempre, e lamentar
seu estado presente: solitário, sem amigos, sem teto, conduzido sem esperança
de um lugar para outro em busca de algum remanescente de seu povo. A “mu-
tabilidade” – a inevitabilidade da perda e da mudança – é, aliás, uma temática
recorrente na Inglaterra Renascentista, lá manifestada com tanto vigor que até
se poderia imaginar que coube ao século XVI descobri-la. Contudo, jamais

mente a fate (“destino ou fado”). Cf. o ingles moderno weird, que ainda retém o significado
original principalmente na Escócia. O termo cognato em norueguês antigo é urðr, com
sentido semelhante, mas também personalizado como um dos Norns (“espíritos coletivos
femininos”). Os poetas nórdicos, especialmente nos poemas édicos, falam repetidamente
do julgamento (dómr) ou veredito (kviðr) dos norms, o que quer dizer “morte” ou “uma
vida no exílio”, de modo que amorte é iminente. Para o estudo aprofundado da mitologia
nórdica, veja-se (LINDOW, 2001)

– 191 –
A religiosidade dos celtas e germanos

um poema explorou tal tema com tanta eficiência como The Wanderer. Outro
tema tradicional também aparece aqui, o Ubi sunt (“onde estão?”), motivo das
líricas latinas medievais, as duas palavras latinas começando qualquer varia-
ção sobre a pergunta:
Hwær cwom mearg? Hwær cwom mago?
Hwær cwom maþþumgyfa?
Hwær cwom symbla gesetu?
Hwær sindon seledreamas? (vv. 92-95)
[Aonde foi o cavalo? Aonde o cavaleiro?/ Aonde o doador do
tesouro? / Onde estão os assentos do banquete? / Onde estão os
divertimentos no saguão?]
A expressão eloquente dada a esse tema em The Wanderer apresenta
o poeta como um escritor elegante e instruído, altamente qualificado em seu
ofício (CARLSEN; CARLSEN, 1985: 20-21).

3.2 The Seafarer (“O Marinheiro”)

Mæg ic be me sylfum soðgied wrecan,


siþas secgan, hu ic geswincdagum
earfoðhwile oft þrowade,
bitre breostceare gebiden hæbbe,
5 gecunnad in ceole cearselda fela,
atol yþa gewealc, þær mec oft bigeat
nearo nihtwaco æt nacan stefnan,
þonne he be clifum cnossað. Calde geþrungen
wæron mine fet, forste gebunden,

– 192 –
A religiosidade dos celtas e germanos

10 caldum clommum, þær þa ceare seofedun


hat ymb heortan; hungor innan slat
merewerges mod. þæt se mon ne wat
þe him on foldan fægrost limpeð,
hu ic earmcearig iscealdne sæ
15 winter wunade wræccan lastum,
winemægum bidroren,
bihongen hrimgicelum; hægl scurum fleag.
þær ic ne gehyrde butan hlimman sæ,
iscaldne wæg. Hwilum ylfete song
20 dyde ic me to gomene, ganetes hleoþor
ond huilpan sweg fore hleahtor wera,
mæw singende fore medodrince.
Stormas þær stanclifu beotan, þær him stearn oncwæð
isigfeþera; ful oft þæt earn bigeal,
25 urigfeþra; ne ænig hleomæga
feasceaftig ferð frefran meahte.
Forþon him gelyfeð lyt, se þe ah lifes wyn
gebiden in burgum, bealosiþa hwon,
wlonc ond wingal, hu ic werig oft
30 in brimlade bidan sceolde.
Nap nihtscua, norþan sniwde,
hrim hrusan bond, hægl feol on eorþan,
corna caldast. Forþon cnyssað nu
heortan geþohtas, þæt ic hean streamas,
35 sealtyþa gelac sylf cunnige;
monað modes lust mæla gehwylce
ferð to feran, þæt ic feor heonan

– 193 –
A religiosidade dos celtas e germanos

elþeodigra eard gesece.


Forþon nis þæs modwlonc mon ofer eorþan,
40 ne his gifena þæs god, ne in geoguþe to þæs hwæt,
ne in his dædum to þæs deor, ne him his dryhten to þæs
hold,
þæt he a his sæfore sorge næbbe,
to hwon hine dryhten gedon wille.
Ne biþ him to hearpan hyge ne to hringþege,
45 ne to wife wyn ne to worulde hyht,
ne ymbe owiht elles, nefne ymb yða gewealc,
ac a hafað longunge se þe on lagu fundað.
Bearwas blostmum nimað, byrig fægriað,
wongas wlitigað, woruld onetteð;
50 ealle þa gemoniað modes fusne
sefan to siþe, þam þe swa þenceð
on flodwegas feor gewitan.
Swylce geac monað geomran reorde,
singeð sumeres weard, sorge beodeð
55 bitter in breosthord. þæt se beorn ne wat,
esteadig secg, hwæt þa sume dreogað
þe þa wræclastas widost lecgað.
Forþon nu min hyge hweorfeð ofer hreþerlocan,
min modsefa mid mereflode
60 ofer hwæles eþel hweorfeð wide,
eorþan sceatas, cymeð eft to me
gifre ond grædig, gielleð anfloga,
hweteð on hwælweg hreþer unwearnum
ofer holma gelagu. Forþon me hatran sind

– 194 –
A religiosidade dos celtas e germanos

65 dryhtnes dreamas þonne þis deade lif,


læne on londe. Ic gelyfe no
þæt him eorðwelan ece stondað.
Simle þreora sum þinga gehwylce,
ær his tid aga, to tweon weorþeð;
70 adl oþþe yldo oþþe ecghete
fægum fromweardum feorh oðþringeð.
Forþon þæt bið eorla gehwam æftercweþendra
lof lifgendra lastworda betst,
þæt he gewyrce, ær he on weg scyle,
75 fremum on foldan wið feonda niþ,
deorum dædum deofle togeanes,
þæt hine ælda bearn æfter hergen,
ond his lof siþþan lifge mid englum
awa to ealdre, ecan lifes blæd,
80 dream mid dugeþum. Dagas sind gewitene,
ealle onmedlan eorþan rices;
næron nu cyningas ne caseras
ne goldgiefan swylce iu wæron,
þonne hi mæst mid him mærþa gefremedon
85 ond on dryhtlicestum dome lifdon.
Gedroren is þeos duguð eal, dreamas sind gewitene,
wuniað þa wacran ond þas woruld healdaþ,
brucað þurh bisgo. Blæd is gehnæged,
eorþan indryhto ealdað ond searað,
90 swa nu monna gehwylc geond middangeard.
Yldo him on fareð, onsyn blacað,
gomelfeax gnornað, wat his iuwine,

– 195 –
A religiosidade dos celtas e germanos

æþelinga bearn, eorþan forgiefene.


Ne mæg him þonne se flæschoma, þonne him þæt feorg
losað,
95 ne swete forswelgan ne sar gefelan,
ne hond onhreran ne mid hyge þencan.
þeah þe græf wille golde stregan
broþor his geborenum, byrgan be deadum,
maþmum mislicum þæt hine mid wille,
100 ne mæg þære sawle þe biþ synna ful
gold to geoce for godes egsan,
þonne he hit ær hydeð þenden he her leofað.
Micel biþ se meotudes egsa, forþon hi seo molde oncyrreð;
se gestaþelade stiþe grundas,
105 eorþan sceatas ond uprodor.
Dol biþ se þe him his dryhten ne ondrædeþ; cymeð him se
deað unþinged.
Eadig bið se þe eaþmod leofaþ; cymeð him seo ar of heofo-
num,
meotod him þæt mod gestaþelað, forþon he in his meahte
gelyfeð.
Stieran mon sceal strongum mode, ond þæt on staþelum
healdan,
110 ond gewis werum, wisum clæne,
scyle monna gehwylc mid gemete healdan
wiþ leofne ond wið laþne bealo,
þeah þe he hine wille fyres fulne
oþþe on bæle forbærnedne
115 his geworhtne wine. Wyrd biþ swiþre,

– 196 –
A religiosidade dos celtas e germanos

meotud meahtigra þonne ænges monnes gehygd.


Uton we hycgan hwær we ham agen,
ond þonne geþencan hu we þider cumen,
ond we þonne eac tilien, þæt we to moten
120 in þa ecan eadignesse,
þær is lif gelong in lufan dryhtnes,
hyht in heofonum. þæs sy þam halgan þonc,
þæt he usic geweorþade, wuldres ealdor,
ece dryhten, in ealle tid.
Amen.

Por razões geográficas, históricas e lendárias, o mar sempre exerceu


grande influência sobre a vida do povo inglês, desde os tempos dos Anglo-
Saxões até os dias atuais. The Seafarer, escrito no século V ou VI, por um autor
desconhecido, é um clássico da literatura anglo-saxônica. O poema contém
124 versos e é uma expressão lírica do que parece ser a vida no mar. É narrado
a partir do ponto de vista de um velho marinheiro, que reflete sobre sua vida e
o modo como ele próprio a tem vivido.
Estruturalmente, o poema pode ser dividido em duas partes, com
atitudes definitivamente opostas: na primeira (vv. 1-64), o poeta exterioriza
as emoções de um jovem que considera o mar como uma estrada repleta de
atrações, mistérios e aventuras; na segunda (daí até o final), num deslocamen-
to repentino, ele, agora um velho marinheiro, exprime em lamentos poéticos
os sofrimentos e agruras da vida que levou no exílio, especula sobre a natureza
fugaz da fama, do destino e da própria vida, terminando com uma visão expli-
citamente cristã de Deus como um ser colérico e poderoso. A primeira parte
é elegíaca; já a segunda, embora ainda contendo alusões pagãs, é didática. O
poema pode ser lido como um monólogo dramático, exteriorizando os pensa-
mentos de um indivíduo, ou como um diálogo entre dois indivíduos.
O tom elegíaco e pessoal se estabelece logo nos primeiros versos. O

– 197 –
A religiosidade dos celtas e germanos

poeta se propõe a relatar para sua audiência sobre sua honestidade e sua auto-
revelação. Fala de seu sofrimento ilimitado, tristeza, e dor de sua longa e so-
litária viagem pelo mar. As condições adversas afetam tanto seu corpo físico
quanto seu senso espiritual. Entretanto, em nenhuma parte do poema ele nos
esclarece as razões de seu exílio.
Mæg ic be me sylfum         soðgied wrecan,
siþas secgan,         hu ic geswincdagum
earfoðhwile         oft þrowade,
bitre breostceare         gebiden hæbbe,
gecunnad in ceole         cearselda fela,
atol yþa gewealc,         þær mec oft bigeat
nearo nihtwaco         æt nacan stefnan,
þonne he be clifum cnossað.         Calde geþrungen
wæron mine fet,         forste gebunden, (vv. 1-9)
[Posso recitar uma verdadeira canção sobre mim,
falar das minhas viagens, como eu muitas vezes suportei
dias de faina, horas difíceis, [como eu] tenho sofrido
implacável tristeza no coração, ter conhecido no navio muitos
pesarosos domicílios, o terrível arremesso das ondas, onde a in-
quietante ronda noturna frequentemente me apanhava na proa
do navio, quando ela se agita de encontro aos rochedos. Meus
pés estavam encolhidos de frio, atados pela geada com grilhões
congelados]92
Percebe-se que o narrador estava faminto, solitário, exausto, e acima
de tudo com frio; a palavra cald ou ceald “frio” é empregada cinco vezes na
sua forma simples ou composta somente nos primeiros versos (8, 9, 14, 19 e

92 A trudução dos fragmentos dos poemas comentados nesse trabalho é de nossa


autoria.

– 198 –
A religiosidade dos celtas e germanos

33), sem contar repetidas referências a termos e expressões da mesma área se-
mântica, como geada, gelo, granizo, neve e sincelos. Eis algumas ocorrências:
forste, v. 9; hrím, vv. 17 e 32; iscealdne sæ, v. 14 “mar gelado”; iscaldne wæg, v. 9
“onda gelada”; isigfeþera, v. 24 “de pluma gelada” (referência a stearn “andori-
nha-do-mar”); sniwde, v. 31 “nevou”; hrimgicelum, v. 17 “sincelos congelados”.
Além da expressão de sentimento pessoal, o poema também contém
alguma descrição incidental do modo de vida dos Anglo-Saxões. O relaciona-
mento íntimo entre o senhor e seus subordinados é revelado em passagens do
tipo:
Forþon nis þæs modwlonc         mon ofer eorþan,
ne his gifena þæs god,         ne in geoguþe to þæs hwæt,
ne in his dædum to þæs deor,         ne him his dryhten to þæs hold,
(vv. 39-41)
[Deveras não há no mundo homem de alma tão livre; nem tão
gracioso em dar, nem tão audaz na juventude; nem tão valente
nas proezas, nem tão querido de seu senhor]
O costume do saguão de hidromel, onde o senhor e seus dependen-
tes se reuniam para beber, banquetear e cantar é sugerido nos seguintes ver-
sos:
Ne biþ him to hearpan hyge         ne to hringþege,
ne to wife wyn         ne to worulde hyht,
ne ymbe owiht elles,         nefne ymb yða gewealc,
ac a hafað longunge         se þe on lagu fundað. (vv. 44-47)
[Nem os acordes da harpa, nem o recebimento de anéis93; nem

93 Fazia parte dos costumes dos reis anglo-saxônicos recompensarem seus súditos
com anéis ou outros objetos valiosos para afirmar uma mútua obrigação moral de lealdade
e proteção. O grande poema épico Beowulf também retrata essa cerimônia, quando, no pa-
lácio de Hrothgar, o herói recebe valiosos presentes em reconhecimento pela sua bravura

– 199 –
A religiosidade dos celtas e germanos

o prazer com mulheres, nem a glória temporal; nada mais o


deleita a não ser o arremesso das ondas; mas aquele que é sedu-
zido pelos encantos do mar sempre sentirá saudade.]
Hwilum ylfete song
dyde ic me to gomene,         ganetes hleoþor
ond huilpan sweg         fore hleahtor wera,
mæw singende         fore medodrince. (vv. 19-22)
[Às vezes, eu fazia do canto do cisne o meu próprio passatem-
po, do trinado do mergulhão e do maçarico a gargalhada dos
homens, do gorjeio da gaivota a alegria do saguão de hidro-
mel.]
O poema se volta tanto para as ideias pagãs quanto cristãs sobre a
superação do sofrimento e da solidão. Por exemplo, o poeta-narrador discute
entre ser sepultado com tesouros e conquistar a glória (paganismo) e temer o
julgamento de Deus (Cristianismo). Além do mais, o poema pode ser conside-
rado uma alegoria que discute a vida como uma jornada e a condição humana
como uma expatriação de Deus pelo oceano da vida.
Por todo o poema percebemos o amor dos Anglo-Saxões por relatos
instrutivos e sua tendência em meditar sobre o destino.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A maior parte da literatura inglesa do período anglo-saxônico era


marcada por fortes traços da oralidade e sua difusão era tarefa dos scops, ou
bardos, e trovadores. Acompanhados de suas harpas, viajando de corte em

e inquestionável fidelidade (vv. 1019-1048).

– 200 –
A religiosidade dos celtas e germanos

corte, esses animadores exaltavam os feitos dos deuses e heróis, com cantos
de amor e aventura. Além de ser um animador que compunha e executava
suas próprias obras, o scop atuava como uma espécie de historiador e preser-
vador da tradição oral dos povos germânicos. Contudo, já que essa literatura
destinava-se a ser cantada, somente uma pequena parte dela foi registrada na
escrita. Grande parte dessa literatura pode ter se perdido, restando apenas
cerca de 30.000 linhas de versos e um pouco mais de prosa, principalmente as
de cunho religioso.
Não se sabe quando esses dois poemas líricos foram escritos nem
quem foram seus autores. Ambos constam do Exeter Book, uma coleção que
contém grande parte da poesia do período anglo-saxônico. A maioria dos pes-
quisadores sugere o início do século VIII como a época provável de sua com-
posição. Ambos os poemas são monólogos dramáticos proferidos por perso-
nagens específicos – em ambos, um marinheiro que pode ou não representar
o próprio autor.
Em The Seafarer, a árdua vida no mar é glorificada em contraste com
a vida tranquila em terra firme. O poeta discute as misérias e atrações da vida
no mar, passando, em seguida, a comparação entre os valores terrenos e as
recompensas celestiais. Há duas leituras possíveis do poema: uma é a de que
ele representa um diálogo entre um marinheiro ancião e um jovem que deseja
seguir a vida no mar; a outra é a que procura relacioná-lo à prática da peregri-
nação penitencial, ou (como The Wanderer) à tradição cristã do homem como
degredado do Paraíso, perambulando como um peregrino na terra.
Já em The Wanderer, a vida de um velho marinheiro é também apre-
sentada como sofrida – porém, por uma razão diferente, que confere ao poe-
ma sua força emocional inigualável. O marinheiro aqui vive um dilema entre a
fascinação do mar e o ressentimento dos contratempos e riscos que essa opção
de vida pode acarretar. Ele se vê contemplando o mar desolado, sem rumo,
peregrinando de um ponto a outro, em exílio perpétuo. Embora nem sempre
fora marinheiro, os revezes das impiedosas atividades marinhas podem ter

– 201 –
A religiosidade dos celtas e germanos

contribuído para torná-lo judicioso. Ele sonha com sua felicidade do passado
e reflete sobre as vicissitudes da vida humana.
Essa situação é intensamente indicativa de uma Grã-Bretanha duran-
te o período de suas maiores sublevações: primeiramente a conquista dos Cel-
tas, depois a dos Anglo-Saxões, em seguida os ataques-surpresa dos Vikings e
a ocupação dinamarquesa. O mosteiro de Beda saqueado. Iona devastada. Ne-
nhum monge ou freira que soubesse ler e escrever restou em Northumbria. A
abadia de Whitby despojada de seus objetos de valor. E muitas vezes os Getas,
Anglos ou Frísios que foram para a Grã-Bretanha haviam deixado (ou foram
compelidos a deixar) seu torrão natal por causa de castelos incendiados, tribos
dispersas, parentes assassinados etc.
Os dois poemas em questão são considerados como elegíacos, um
dos principais gêneros da poesia anglo-saxônica. São poemas cujo tom é quase
sempre terno e triste, refletindo sobre grandes perdas e reminiscência de tem-
pos melhores e mais felizes que o poeta tenha vivenciado. Consequentemente,
os temas desenvolvidos, ou seja, o exílio e separação dos senhores, são, de fato,
experiências ou observações pessoais dos narradores. Embora o conteúdo dos
poemas seja primeiramente a expressão de sentimento pessoal, eles contêm
alguma descrição incidental do modo de vida dos Anglo-Saxões.
Quanto à religiosidade, julgamos oportuno lembrar que a literatura
da época fala da luta das pessoas para compreender qual a fé seria válida, de-
pois de descobrirem que os valores cristãos incluíam, dentre outros dogmas,
a crença numa vida após a morte no Céu94 ou no Inferno95, dependendo do

94 As condições para alcançar o Céu encontram-se em: Mt 7:21; 18:2; 19:17; Mc


16:16; Jo 8:51; Rom 2:13.
95 No Novo Testamento, a palavra “inferno” (do latim infernum, que significa "as
profundezas" ou o "mundo inferior") .indica o lugar de tormentos, desginado com vários
nomes: geena (do hebraico Geh Hinnóm "Vale de Hinom"), forno ou laço de fogo, abismo,
tártaro, segunda morte (Mt:10:28; 13:42; Lc 8:31; II Pe 2:4; Apoc 19:20).

– 202 –
A religiosidade dos celtas e germanos

pecado cometido durante a vida terrena. Riqueza, glória e fama na terra, por
exemplo, de nada valem no Céu. Aceitar o Cristianismo significava que seus
heróis na literatura não mais poderiam seguir a tradição rechaçando o destino
para ganhar a fama. Os Anglo-Saxões ficaram, pois, divididos entre os valo-
res religiosos que uma vez conheceram e as perspectivas potencialmente mais
esperançosas trazidas pelo Cristianismo. Por causa do tom marcadamente ele-
gíaco desses poemas, os estudiosos usualmente admitem que a melancolia era
um traço nato dos Anglo-Saxões; porém, quando considerando a nova religião
à qual eles logo se esforçaram por adaptar, os mesmos estudiosos então perce-
beram que a transição do pensamento anglo-saxônico do desafio pagão para
a resignação cristã, da glória da fama imperecível para o nada desse mundo,
possivelmente poderia causar a melancolia na poesia anglo-saxônica, que in-
funde tal caráter alienígena no coro da canção heróica (PHILLPOTTS, 1991:
11-13).
O tom de cada poema inicia com elementos pagãos e termina por
interpolações de elementos do Cristianismo. Em “The Seafarer”, percebemos
a predominância de elementos pagãos, como por exemplo o ato de “cremação
na pira funerária” (oþþe on bæle forbærnedne, v. 114), e a exaltação e glorifi-
cação dos valores pagãos após a morte, no início do poema. Diversos elemen-
tos cristãos, entretanto, contrabalançam esse tom predominantemente pagão.
Uma interpelação cristã evidente ocorre quando o poeta diz: Stieran mon sceal
strongum mode, ond þæt on staþelum healdan [“O homem deve controlar suas
paixões, e manter todas as coisas em equilíbrio”, v. 109], declaração que con-
trasta frontalmente com os preceitos e crenças anglo-saxônicas. Além disso, os
versos
his geworhtne wine. Wyrd biþ swiþre,
meotud meahtigra þonne ænges monnes gehygd. (vv. 115-116)
[A fé é mais forte e Deus mais poderoso do que o pensamento
de qualquer homem.]e

– 203 –
A religiosidade dos celtas e germanos

hyht in heofonum. þæs sy þam halgan þonc,


þæt he usic geweorþade, wuldres ealdor, (vv. 122-123)
[Dai graças ao Senhor Deus por tudo isso, pois Ele, o Senhor da
Glória, Deus eterno, nos enalteceu para sempre.]
parecem não se encaixar bem com o restante do poema que, pelo que se per-
cebe, exalta mais a glória do homem e suas proezas.

Do mesmo modo, em The Wanderer, os versos

Gemon he selesecgas ond sincþege,


hu hine on geoguðe his goldwine
wenede to wiste. Wyn eal gedreas! (vv. 34-36)
[Ele recorda os guerreiros no saguão e o recebimento de tesou-
ro, como na juventude seu generoso senhor o obsequiava nos
banquetes. Todo esse regozijo se foi para sempre!].
deixam claro ao leitor que o personagem principal demonstra mais dever de
obediência a seu amo do que ao próprio Deus. No geral, os conceitos e valores
pagãos se sobrepõem aos dogmas essencialmente cristãos. Contudo, nos últi-
mos versos do poema, algum conceito cristão é introduzido, o que, de certa
maneira, abranda o tom pagão.
Eall is earfoðlic eorþan rice,
onwendeð wyrda gesceaft weoruld under heofonum.
Her bið feoh læne, her bið freond læne,
her bið mon læne, her bið mæg læne,
[Todo o reino terrestre está repleto de aflições, o desígnio
do destino faz mudar o mundo sob os céus. Aqui a riqueza é
transitória, aqui um amigo é transitório, aqui um home é tran-
sitório, aqui um parente é transitório e todos os alicerces desse

– 204 –
A religiosidade dos celtas e germanos

mundo estão se definhando.]


Conceitualmente, há também diferenças significativas entre The
Wanderer e The Seafarer. Este apresenta um ascetismo deliberadamente pro-
curado para alcançar a sabedoria e a graça, ao passo que aquele descreve uma
solidão imposta pele destino e não pela escolha (a morte do senhor e de ami-
gos, vv. 9-10 e 22-23); somente após a meditação associada à resignação e à
contemplação da perda é que o homem se torna sábio (vv. 64-65 e 88-91) e
então percebe a necessidade de buscar a graça. Somente no final do poema é
que a perseguição da graça é mencionada (vv. 114-115); no início, o Errante
solitário a recebeu muitas vezes (v. 1), mas ainda não aprendeu a procurar por
ela. (KLINK, 1992: 33).
Muito há ainda por discorrer sobre esse período literário em geral e
sobre esses dois poemas em particular. Por absoluta falta de espaço, deixamos,
por hora, de abordar, dentre muitos outros elementos plausíveis, a questão,
ainda polêmica, sobre a possibilidade de as poucas referências cristãs encon-
tradas nos poemas terem sido inseridas quando os mesmos foram compila-
dos para satisfazer as expectativas de uma pequena elite letrada, não fazendo
parte, portanto, da obra original, além das diferenças linguísticas e vestígios
de termos nórdicos (como The Wanderer). Como vimos, os poemas originais
do período anglo-saxônico eram inicialmente preservados dentro da tradição
oral pré-cristã pelos scops, tendo, pois, sido fixados na forma escrita que hoje
conhecemos somente alguns séculos mais tarde.

– 205 –
A religiosidade dos celtas e germanos

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
Fontes primárias
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém: antigo e novo testamento. Coorde-
nadores Gilberto da Silva Gorgulho, Ivo Storniolo e Ana Flora Anderson. São
Paulo: Paulinas, 1981.
BRADLEY, S. A. J. (trans. & ed.). The Seafarer. Anglo-Saxon poetry. Bradley.
London: Everyman, 1982, p. 329-335.
FULK, Roberet D.; POPE, John C. (eds). Eight Old English poems. Third edi-
tion. New York- London: W. W. Norton & Company, 2001.
KLINK, Anne Lingard. The Old English elegies: a critical edition and genre
study. Québec: McGill-Queen`s University Press, 1992.
MUIR, Bernard J. (ed.). The Exeter anthology of Old English poetry: an edition
of Exeter Dean and Chapter MS 3501, 2nd edn. Exeter: University of
Exeter Press, 2000.
The Exeter Book Part Two. Original Series. London: Oxford University Press,
1933.

Fontes secundárias
BAUGH, Albert; CABLE, Thomas. A History of the English language. 4th ed.
London: Routledge, 1993.
BJORK, Robert E. Sundor æt Rune: the voluntary exile of the Wanderer.
In: LIUZZA, R. M. (editor). Old English literature: critical essays. New Ha-
ven, Connecticut: Yale University, 2002, p. 315-327.
BOOKRAGS STAFF. “An Explication of the Seafarer”. 2000. Disponível em:
<http://www.bookrags.com/essay-2005/2/23/104623/468>. Acesso em: 27
julho 2010.
CAMERON, Angus. “Anglo-Saxon literature.” Dictionary of the Middle Ages.

– 206 –
A religiosidade dos celtas e germanos

Edited by Joseph R. Strayer. Vol. 1 New York: Scribner, 1982, p. 274-


288.
CARLSEN, G. Robert; CARLSEN, Ruth Christoffer (eds). English literature: a
chronological approach. New York: Webster-MacGraw-Hill, 1985.
CLARK-HALL, J. R. A Concise Anglo-Saxon dictionary (MART: The Medie-
val Academy Reprints for Teaching) Reprinted of the fourth edition.
Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
CONNOLLY, Francis X. et al. Adventures in English literature. Cardinal
Newman Revised Edition. New York: Harcourt Brace & World,
Inc., 1961.
DIAMOND, Robert E. Old English: grammar and reader. Detroit: Wayne
State University Press, 1970.
GALPHIN, Canon Francis W. Old English instruments of music, 4th edition.
New York: Barnes and Noble Inc., 1965.
HARVEY, Sir Paul. The Oxford companion to English Literature. Fourth edi-
tion. Oxford: Oxford University Press, 1967.
KLEES, Colleen L. An examination of Anglo-Saxon lyric poetry. Disponível
em: http://www.stjohns-chs.org/english/Anglo-Saxon/colleenanglosa-
xon.html. Acesso em: 9/04/2010.
LINDOW, John. Norse mythology: a guide to gods, heroes, rituals, and beliefs.
Oxford: Oxford University Press, 2001.
MILLER, Sean. The Seafarer. Anglo Saxons. 1997. 20 Nov 2007. Disponível
em:
http://www.anglo-saxons.net/hwaet/?do=get&type=text&id=Sfr.
Acesso em: 27 março 2010.
NORHT, Richard; ALLARD, Joe (eds). Beowulf & other stories: a new intro-
duction to Old English, Old Icelandic and Anglo-Norman literatures. Har-

– 207 –
A religiosidade dos celtas e germanos

low: Pearson Education, 2007.


ONIONS, C. T. The Oxford dictionary of English etymology. Oxford: Oxford
University Press, 1966.
ORTON, Peter. The form and structure of The Seafarer. In: LIUZZA, R. M.
(editor). Old English literature: critical essays. New Haven, Connecticut:
Yale University, 2002, p. 355-380.
PHIILLPOTTS, Bertha S. Wyrd and providence in Anglo-Saxon thought
(1928). In: FULK, Robert D. (ed.). Interpretations of Beowulf: a critical
anthology. Bloomington: Indiana University Press, 1991, p. 1-13.
PILES, Thomas. The origins and development of the English language. Second
edition. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1971.
POOLEY, Robert C. (General Editor). England in literature. Glenview, Illi-
nois: Scott, Foresman and Company, 1968.
PULSIANO, Phillip and TREHARNE, Elaine (eds.). A companion to Anglo-
Saxon literature. Oxford: Oxford University Press, 2001.
ROMANO, Tim (ed. and trans.). The Wanderer. Disponível em: http://
www.aimsdata.com/tim/anhaga/edition.htm. Acesso em: 29/03/2010.
SHIPLEY, Joseph T. (ed.). Dictionary of world literary terms. New, enlarged
and completely revised edition. Boston: The Writer, 1970.
TÁCITO, Públio Cornélio. Germania. Edited by J. G. C. Anderson. Oxford:
Clarendon Press, 1938.
TIMMER, B. J. Heathen and Christian elements in Old English poetry. In:
Neophilologus. Volume 29, Number 1 / December, 1944. Springer Netherlan-
ds, 1944, pp. 180-185.

TREHARNE, Elaine (ed.). Old and Middle English c. 890-c. 1450: an anthology.
Third edition. Oxford: Willey-Bla

– 208 –

Você também pode gostar