Saeculum 30
Saeculum 30
Saeculum 30
Jul./Dez. 2010
30
JAN./ JUN.
2014
sculum
REVISTA DE HISTRIA
N 30 - Jan./Jun. 2014
ISSN 0104-8929
e-ISSN 2317-6725
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
Chefe: Monique Guimares Cittadino
Sub-Chefe: Mozart Vergetti de Menezes
sculum
REVISTA DE HISTRIA
Departamento de Histria
Programa de Ps-Graduao em Histria
Universidade Federal da Paraba
CENTRO DE CINCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
Campus Universitrio - Conjunto Humanstico - Bloco V
Castelo Branco - Joo Pessoa - Paraba - CEP 58.051-970 - Brasil
Fone/ Fax: +55 (83) 3216-7915 - E-Mail: <[email protected]>
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CONSELHO EDITORIAL
Antnio Paulo Resende (UFPE)
Antonio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG)
Carlos Fico (UFRJ)
Durval Muniz de Albuquerque Jr. (UFRN)
Ernesta Zamboni (UNICAMP)
Gisafran Mota Juc (UECE)
Gustavo Acioli Lopes (UFRPE)
Joo Jos Reis (UFBA)
Joo Paulo Avels Nunes (Univ. de Coimbra)
Jorge Ferreira (UFF)
MISSO DA REVISTA
Sculum - Revista de Histria publicada pelo Departamento de Histria da UFPB desde 1995 e, a
partir de 2004, passou a ser tambm o peridico do Programa de Ps-Graduao em Histria da mesma
universidade. Sua frequncia semestral, e se trata de uma revista voltada divulgao e debate de
pesquisas no campo da Histria e da Cultura Histrica e suas diversas interfaces, abrindo espao para
pesquisadores do Brasil e do exterior.
BC/UFPB
CDU 93 (05)
ISSN 0104-8929
Joo Pessoa - PB, n. 30, jan./ jun. 2014
Sumrio
Editorial .......................................................................................................... 9
DOSSI HISTRIA E HISTRIA DAS RELIGIES
Organizadores: Carlos Andr Cavalcanti (UFPB)
e Carmen Lcia Palazzo (UniCEUB)
O Basileus e seu exrcito: algumas consideraes sobre o ritual de
aclamao e a natureza do poder monrquico helenstico ..................... 15
Henrique Mondanez de SantAnna (UnB)
La inmortalidad del alma en Lo Somni (1399) de Bernat Metge ............ 25
Ricardo da Costa (UFES)
Identidade judaica em trnsito: Miguel Francs, primeiro
renegado do Brasil ........................................................................................ 35
Ronaldo Vainfas (UFF)
O Padroado e a sustentao do clero no Brasil colonial ......................... 47
Lana Lage da Gama Lima (UFF)
A imagtica inquisitorial: religio, representaes e poder ....................... 63
Geraldo Pieroni (Univ. Tuuti PR)
Inquisio e desmitologizamento de valores no Cristianismo
teologizado: razo, imaginrio e H(h)istria ................................................. 75
Carlos Andr Cavalcanti (UFPB)
Diogo Antnio: a New Christian comendador between
nation and kin in Rome ................................................................................ 97
James W. Nelson Novoa (Universidade de Lisboa)
Estratgias missionrias dos Jesutas nos sculos XVI e XVII ............ 115
Maria Lcia Abaurre Gnerre (UFPB) e Dilane Soares Sampaio (UFPB)
Crtica ou heresia? A transformao jurdico-teolgica do ato
de criticar o reto ministrio do Santo Ofcio (1605-1681) .................. 125
Yllan de Mattos (UNESP Franca)
A Inquisio e o inquisidor no outono da Modernidade .......................... 141
Sonia Siqueira (UFPB)
Editorial
O dossi Histria e Histria das Religies deste nmero 30 da Sculum se
compe de dezoito artigos, duas entrevistas e duas resenhas, com foco em religies
e religiosidades. Ele resulta da articulao acadmica do Grupo de Pesquisa
Officium, dedicado aos Estudos Inquisitoriais e Histria das Religies e do
Sagrado e que atua junto aos Programas de Ps-Graduao em Histria e em
Cincias das Religies da UFPB. Os artigos, que resumidamente apresentamos a
seguir, so de autoria de pesquisadores com trabalhos acadmicos de relevncia
em suas reas de especializao.
Henrique Modanez de SantAnna abre o dossi, discutindo a natureza do
poder monrquico helenstico, destacando a importncia do fato de que um rei
possa emanar o poder de um heri militar, deixando clara a sua excelncia.
H, de acordo com o pesquisador, um compartilhamento de expectativa entre os
exrcitos helensticos e seus soberanos e a posio do governante se evidencia
como inventada, fundamentando-se no carisma.
Ricardo Costa ilumina, com sua pesquisa, o texto Le Somni, de Bernat Metge,
enfatizando as provas que Metge, funcionrio da Corte de Arago sob o reinado
de Joo I e de Martim I, apresenta para a imortalidade da alma. O uso de fontes
iconogrficas enriquece sobremaneira o artigo, permitindo que o leitor mergulhe
com grande profundidade no rico universo mental da Idade Mdia.
Ronaldo Vainfas estuda o percurso de Miguel Francs, de nome judaico David,
que se estabeleceu no Recife holands a partir de 1639. No Brasil, renegou o
judasmo e veio a se tornar, posteriormente, um dos principais delatores do Santo
Ofcio de Lisboa. Vainfas analisa as narrativas de Miguel, suas mudanas de religio
e suas ambivalncias.
Lana Lage da Gama Lima aborda, em seu artigo, os problemas decorrentes
dos repasses irregulares e parciais da arrecadao do dzimo de Ultramar pelo
Padroado portugus, o que privava o clero da Colnia de importantes recursos.
Tais limitaes ocasionavam, segundo a pesquisadora, conflitos decorrentes da
necessidade dos sacerdotes de cobrar taxas da populao na Amrica portuguesa,
para manter a viabilidade do seu trabalho.
Geraldo Pieroni examina fontes iconogrficas da Inquisio, com foco na
Pennsula Ibrica dos sculos XVI e XVII. Pieroni faz uma anlise aprofundada do
simblico e dos mltiplos significados que so encontrados no material iconogrfico,
sempre muito atento importncia da contextualizao das imagens dentro de sua
cultura especfica.
Carlos Andr Cavalcanti realiza uma leitura da Inquisio com o uso de um
instrumental terico que o leva a desenvolver a noo de desmitologizamento de
valores. Sua anlise abre novas possibilidades para o entendimento das diversas
formas de intolerncia na modernidade, conduzindo tambm a percepes mais
densas do fenmeno inquisitorial e de suas transformaes na longa durao.
James W. Nelson Novoa faz um estudo de caso tendo como foco o cristo-novo
Diogo Antnio, cuja atuao era a de representante dos cristos-novos portugueses
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
em Roma. Sua anlise enfatiza que este tipo de atividade garantia, a quem a exercia
e a seus familiares, a iseno de submeter-se ao Tribunal do Santo Ofcio.
Maria Lcia Abaurre Gnerre e Dilaine Soares Sampaio analisam a interao
dos missionrios jesutas com as populaes de Moambique e de Goa, locais de
cultura bastante distinta, mas ligados entre si em funo das rotas martimas do
Oceano ndico. As autoras estudam os olhares e estratgias dos inacianos, levando
em considerao as diferenas entre africanos e indianos e a construo de um
imprio jesuta naquela regio.
Yllan de Mattos investiga a utilizao, por parte dos adversrios da Inquisio,
daquilo que denomina de literatura anti-inquisitorial: escritos que no eram
exatamente contrrios ao Santo Ofcio, mas se opunham aos procedimentos e estilos
do Tribunal. Segundo Mattos, tais fontes so, mesmo assim, muito importantes,
pois permitiram a consolidao de crticas atividade inquisitorial.
Sonia Siqueira aborda o confronto entre Tradio e Iluminismo em Portugal no
ocaso da Inquisio. Analisa, com esta finalidade, as ideias de Azeredo Coutinho,
derradeiro Inquisidor Geral. Segundo a autora, o ambiente era novo, permeado
pelo Humanismo, e Coutinho caminhava j para o futuro, embora estivesse ainda
apegado a ideias ortodoxas e conservadoras.
Carmen Lcia Palazzo, por sua vez, apresenta uma sntese histrica da diversidade
que encontrada no Isl, diversidade esta que demonstra que, longe de ser
monoltico, ele possui mltiplas faces. A pesquisadora enfatiza no apenas a fratura
inicial entre sunismo e xiismo, ocorrida em virtude da disputa pela sucesso de
Maom, mas tambm a importncia do sufismo e a existncia de grupos sincrticos
que costumam ter pouca visibilidade na maioria dos estudos islmicos.
O artigo de Maral Maaneiro tambm se refere ao Isl, mas se constitui em
contribuio de profundidade para o debate inter-religioso, naquilo que diz respeito
Ecologia e gesto ambiental. O autor aborda o tema levando em conta a
Teologia Islmica da Criao e faz uma releitura do Hadith, ou Ditos de Maom,
de Al-Bukhari.
Srgio da Mata apresenta o pensamento do socilogo Thomas Luckmann, bem
como as crticas dirigidas sua perspectiva analtica. Luckmann, ao entender a
religio como expresso da condio humana , segundo o pesquisador, de grande
relevncia para os estudiosos das religies, abrindo-lhes novas possibilidades de
reflexo sobre o tema.
Paulo Valadares apresenta em seu artigo duas biografias, a do filsofo checo
judeu Vilm Flusser, que em 1940 chegou refugiado ao Brasil, denominada
Bodenlos: uma auto-biografia filosfica, e a do cabalista Romy Fink, personagem
de Bodenlos, que Flusser escolhe para discutir o Judasmo.
Joo Marcos Leito e Elza Cardoso Soffiatti estudam a participao da Igreja
Catlica entre os anos de 1977 e 1989, enquanto sujeito religioso e ator poltico,
na sociedade. Os autores analisam como a instituio entendeu a democracia
brasileira, atravs de quatro documentos da CNBB, no intuito de compreender o
seu posicionamento efetivo naquele momento histrico.
Raul Vtor Rodrigues Peixoto realiza um trabalho de Histria Comparada,
abordando as tradies apocalpticas iranianas (zoroastristas) e tambm as judaicas,
10
11
dossi
Histria e
Histria das Religies
Organizadores:
Carlos Andr Cavalcanti (UFPB) e Carmen Lcia Palazzo (UniCEUB)
3
4
Doutor em Histria pela Universidade de Braslia e Professor Adjunto de Histria Antiga na mesma
instituio. Fellow in Hellenic Studies do Harvard CHS, 2012-2013. Email: <[email protected]>.
GRUEN, E. The coronation of the Diadochoi. In: EADIE, J.W. & OBER, J. (orgs.). Essays in
honor of Ch. G. Starr. Lanham, EUA & Londres: University Press of America, 1985, p. 256.
WEBER, M. Economy and society. Berkeley: University of California Press, 1978, p. 214.
GEHRKE, H.-J. Der siegreiche Knig. berlegung enzurhellenistischen Monarchie. Archiv fr
Kulturgeschichte, n. 64, 1982, p. 268.
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15
CHANIOTIS, A. War in the Hellenistic World: a social and cultural history. Malden; Oxford; Carlton:
Blackwell, 2005, p. 64.
16
17
BAGNALL, R. S. & DEROW, P. S. Greek historical documents: the Hellenistic period. Chicago,
EUA: Scholars Press, 1981, p. 266.
18
19
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21
conquista de territrios como um novo Alexandre. Foi essa busca por legitimidade
estabelecer uma associao direta com Alexandre que motivou Ptolomeu I a
arrastar o corpo de Alexandre quando o mesmo estava sendo transportado da
Babilnia para a Macednia e a traz-lo para o Egito.
Reis helensticos precisavam emanar o poder de um heri militar, mesmo se o
seu domnio sobre um territrio repousasse essencialmente em princpios dinsticos
recentemente implantados. Aqui, uma coisa deve ser levada em considerao: tropas
precisam ser convencidas da capacidade de liderana de seu general durante uma
campanha ou em batalha. O poder de um rei repousava em sua excelncia e isto
significa ser to bom general quanto possvel ou esperado. Se a capacidade de um
general fosse questionada, a reao natural era a desobedincia aos seus comandos
ou mesmo a desero, o que para o nosso propsito significa oposio dominao.
bastante claro que o regente Perdicas, durante sua invaso do Egito, uma
clara tentativa de punir Ptolomeu e reconquistar o cadver de Alexandre, no foi
capaz de lidar com o motim de suas tropas no momento da travessia desastrosa
do Nilo15. Embora Diodoro e Arriano16 (as nossas fontes para o caso) nos tenham
deixado relatos diferentes sobre as razes da sedio, ambos estavam insistindo na
mesma ideia. De acordo com Arriano, Perdicas foi duas vezes derrotado, e em outros
assuntos tinha se comportado mais arrogantemente do que deveria. Por causa de
sua atitude, ele teria sido assassinado por sua prpria cavalaria durante uma batalha.
Como uma das principais audincias dos reis autoproclamados, os exrcitos
helensticos compartilharam muitas expectativas de curta e de longa durao com
seus soberanos. Essas expectativas mtuas, ainda que asseguradas por costume (o
patrocnio real) ou juramentos, podiam ser surpreendentemente volteis. Assim,
a reciprocidade tornou-se um aspecto muito importante da realeza helenstica.
Praticamente todo o tipo de interao entre o rei e outros grupos (incluindo suas
tropas) tinha relao com a guerra ou com a ameaa da guerra (um conflito em
potencial), e era esperado que o rei, para suprir a expectativa de outros, oferecesse
privilgios, ganhos materiais, proteo e paz queles que apoiassem o seu governo.
Esta no uma posio de um governante legal; em vez disso, uma posio
que poderia ser inventada, tendo por base o carisma (a excepcionalidade de
um indivduo e sua capacidade de exercer o poder monrquico por meio de sua
condio excepcional).
15
16
22
RESUMO
ABSTRACT
23
Trabajo presentado en las XII Jornadas Internacionales de Estudios Medievales, 03-05 de septiembre
de 2012 (Buenos Aires, Argentina), organizado por la Sociedad Argentina de Estudios Medievales
(SAEMED). Dedicado a Patricia Grau-Dieckmann, estimada maestra.
Doctor en Historia Social por la Universidade Federal Fluminense. Realiz estudios pos-doctorales
en Historia e Filosofa Medieval en la Universidad Internacional de Catalua, Espaa. Docente de
Historia Medieval en la Universidade Federal do Esprito Santo. Acadmico correspondiente de la
Reial Acadmia de Bones Lletres de Barcelona. Sitio electrnico: <http://www.ricardocosta.com>.
E-mail: <[email protected]>.
PLATO. Teeteto. Traduccin de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Lisboa: Fundao
Calouste Gulbenkian, 2010.
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26
LCIO ANEU SNECA. Cartas a Luclio. Traduo, prefcio e notas de J. A. Segurado e Campos.
Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2007.
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ngeles (la inmortalidad) y con las bestias (la mortalidad de la carne), hasta que la
resurreccin remedie la mortalidad.
Sin embargo, Bernat mantiene su posicin: todas las cosas mueren del mismo
modo! Su aparente percepcin de la realidad queda corroborada con pasajes de la
Biblia (Eclesiasts, 3, 19; 12,7 y 12, 13)13 en que Salomn parece afirmar lo mismo.
Por eso afirma al rey: Creo lo que veo y de lo dems no me preocupo. Don Juan
contraargumenta por medio de una exegesis hermenutica. Cita a Gregorio Magno
(c. 540-604) y a Toms de Aquino (c.1224-1274), santos que estudiaron aquel
pasaje bblico para demostrar que Bernat no lo comprendi bien. Entonces Juan
muestra que Bernat se contradice y presenta un argumento agustiniano14, envuelto
en citas de Cicern y Sneca: nosotros creemos en cosas que no vimos, como, por
ejemplo, nuestro padre no sabemos con certeza que la persona que dicen que es
nuestro padre ciertamente lo es. Solamente creemos.
Bernat acepta el argumento. Tembloroso, intenta besar las manos y los pies de su
seor. Llora. De su corazn salen grandes gemidos y suspiros. Parece empezar a
creer que hay vida despus de la muerte. Entonces pide al rey que explique lo que
es el espritu y su inmortalidad y, como Ramn Llull (1232-1316)15, afirma que
padece gran angustia por saber, dado que no puede entender.
El alma y la Filosofa
Don Juan dice a Bernat que intente comprender lo que l dice. Muchos doctores
de la Iglesia, filsofos, poetas, sabios e devotos ya hicieron todo lo posible por dar
a entender que el alma (o espritu) en el cuerpo humano son la misma cosa, pero,
de acuerdo con los oficios que ejerce, es llamada de muchas maneras:
Puesto que cuando vivifica el cuerpo se denomina alma;
cuando quiere, nimo; cuando sabe, pensamiento; cuando
recuerda, memoria; cuando juzga justamente, razn; y
cuando inspira, espritu. Sin embargo, su esencia es una
sola y simple.
Definiciones clsicas, por lo menos desde Isidoro de Sevilla (Etimologas XI, 1,
12-13)16, pero tambin encontradas en Papas de Hierpolis (c. 69-150), Casiodoro
(c. 485-550), Boccaccio (1313-1375), Juan de Gnova (1298) y Brunetto Latini
(c. 1220-1294). Sin embargo, Bernat dice que sigue sabiendo lo mismo que saba
antes. Don Juan reconoce que es un asunto muy dudoso, pero l mismo enumera
as las principales definiciones que los filsofos antiguos ofrecen sobre el alma.
28
Dos ngeles suben con las almas, en cuanto Dios, arriba, bendice su ascensin
de sus tumbas.
Nueve son los filsofos citados por el rey Juan I de Aragn. Para l, dos fueron
los que ms se aproximaron de la verdad: Platn y Aristteles. Platn supuso la
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triplicidad del alma (la razn en la cabeza, la ira en el pecho y la codicia en las
entraas), y Aristteles dijo que el alma era entelequia (), que el rey traduce
cmo movimiento continuo perdurable en la realidad, ese trmino (aristotlico)
significa realidad plena alcanzada por algo, realizacin de la potencia:
El alma es necesariamente entidad en cuanto forma
especfica de un cuerpo natural que en potencia tiene
vida. Ahora bien, la entidad es entelequia, luego el alma es
entelequia de tal cuerpo [] Queda expuesto, por tanto,
de manera general qu es el alma, a saber, la entidad
definitoria, esto es, la esencia de tal tipo de cuerpo.17
El alma es, por tanto, la entelequia de un cuerpo orgnico. El rey Juan prosigue:
el alma fue creada por Dios como substancia espiritual, propia, vivificadora del
cuerpo, racional, inmortal, convertible en bien y mal. A continuacin, basado
prcticamente slo en Casiodoro filsofo muy influyente en la Edad Media el
rey expone uno de los pasajes ms bellos del texto Lo somni:
Que el alma es sustancia espiritual, quin lo puede
negar? Todas las cosas corporales se encierran en tres
lneas (es decir, longitud, latitud y profundidad), las cuales
no se puede probar que afecten al alma; pues a pesar
de que mientras est acompaada por el cuerpo se halla
subyugada por su carga, sopesa las opiniones de las cosas
con curiosa solicitud, piensa profundamente en los asuntos
celestiales, escudria los naturales con sutil indagacin y
desea saber grandes cosas acerca de su Creador. Y se fuera
corporal, no vera con sus reflexiones las cosas espirituales.
Que es sustancia propia est claro, puesto que ningn
otro espritu que tenga carne se lamenta o se alegra con
sus pasiones, que son: amor, odio, deseo, abominacin,
deleite, tristeza, esperanza, desesperacin, temor, audacia,
ira y mansedumbre.
Es vivificadora de su cuerpo, puesto que, tan pronto como
le es concedida, ama su crcel con gran amor; la ama
porque no puede ser libre. Se atormenta fuertemente por
sus dolores; recela de la muerte, pero no puede morir y
as, es celosa de la suerte de su cuerpo a fin de ser por
l prolongadamente sostenida. Se deleita con los ojos del
cuerpo en ver cosas bellas, con las orejas en or melodas,
con la nariz en oler fragancias, con el gusto, buenos
sabores, y con el tacto, en tocar cosas blandas, duras,
speras y lisas.
[]
La vida del cuerpo, pues, se debe a la presencia del alma
17
30
18
TOMS DE AQUINO. Suma contra os gentos. , 2 vols. Traduo de D. Odilo Moura O.S.B. Porto
Alegre: Escola Superior de Teologia So Loureno de Brindes; Sulina; Caxias do Sul; Universidade
de Caxias do Sul, 1990.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
31
ARISTTELES. Metafsica, vol. II. Ensaio introdutrio, texto grego com traduo e comentrio de
Giovanni Reale. So Paulo: Loyola, 2005.
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RESUMEN
Bernat
Metge;
Palabras-Clave: Sueo;
Inmortalidad del Alma.
Bernat
Metge;
Texto extrado, com ligeiras modificaes, de Jerusalm Colonial: judeus portugueses no Brasil
holands. Sou grato FAPERJ e ao CNPq pelo financiamento da pesquisa. VAINFAS, Ronaldo. Rio
de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2010.
Doutor em Histria Social pela Universidade de So Paulo. Professor Titular de Histria Moderna
no Departamento e na Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense. E-Mail:
<[email protected]>.
IANTT, Inquisio de Lisboa, processo 7276.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
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carne de porco, jogar gua fora dos potes quando algum da casa morria Miguel
descreveu a sinagoga por dentro.
Enfim, Miguel Francs pertencia a uma extensa famlia de cristos-novos que
havia se espalhado pela Itlia, Hamburgo, Espanha, Holanda, Frana, ndia, Brasil,
a maioria deles como judeus pblicos. Uns com mxima convico, outros nem
tanto. Miguel pertencia famlia dos Bocarro Francs, exemplo tpico da mescla
entre parentela e rede comercial sefardita na poca Moderna4. O caso dele promete
surpresas.
Uma famlia de judeus novos
Miguel nasceu em Lisboa, em 1610, filho de Pedro Francs, mercador de panos,
e de Beatriz Soares, ambos cristos-novos de quatro costados, naturais de Abrantes,
na antiga provncia do Ribatejo, no centro de Portugal. Foi batizado na igreja de
So Julio, em Lisboa, vivendo como cristo at os 15 anos de idade, quando se
converteu ao judasmo. Talvez tenha sido crismado, do que disse no se lembrar ao
certo, quando se tratou do assunto com os inquisidores.
A famlia de Miguel Francs era como muitas outras famlias de cristos-novos,
cujos pais procuravam guardar a memria da origem judaica, embora separados
por mais de um sculo da converso forada (1497). Era famlia de criptojudeus.
Seu pai, Pedro Francs, e um tio tambm chamado Miguel Francs, tinham sido
processados pelo Santo Ofcio e condenados abjurao em forma, crcere e
hbito penitencial, a exemplo dos dez cativos do forte, por volta de 1625. Foi
nesta poca que a famlia de Miguel Francs resolveu fugir de Portugal para as
terras de liberdade, comeando pela escala costumeira de Saint-Jean-de-Luz, no
sudoeste da Frana. Toda a famlia se reconverteu ao judasmo: pai, me, Miguel,
seus quatro irmos e duas irms.
Outra banda da famlia fugiu de Portugal na mesma poca. Refiro-me, em
especial, ao ramo mais famoso dos Bocarro-Francs, bero de dois cristos-novos
ilustres: o cronista Antnio Bocarro (1594-1643), autor do Livro do Estado da ndia
Oriental, e Manuel Bocarro Francs (1588-1662), mdico, matemtico, astrnomo,
astrlogo e poeta renomadssimo no sculo XVII. No caso de abrir um atalho
na histria de nosso Miguel para tratar de um personagem j muito estudado por
especialistas na histria da cincia e do sebastianismo5 esperana de retorno do
jovem rei portugus morto em Alccer-Quibir. Isto sem falar nos estudiosos da
prpria famlia Bocarro Francs.
Algumas palavras so, porm, necessrias. Filho do mdico Ferno Bocarro,
natural de Estremoz, no Alentejo, e de Guimar Martins, natural de Abrantes, Manoel
Bocarro Francs foi um dos nove filhos do casal. Estudou na Universidade de Alcal
de Henares, uma das principais da Espanha, e na Universidade de Coimbra. No se
4
5
RVAH, Israel. Une famille de nouveaux-chrtiens: les Bocarro Francs. Rvue dtudes Juives,
1957, n. 116, p. 73-87.
Crena no retorno de D. Sebastio ou sua encarnao em outra figura real o rei encoberto esperana compartilhada de alto a baixo na sociedade portuguesa da poca tempo de Unio
Ibrica. Ver HERMANN, Jacqueline. No reino do desejado: a formao do sebastianismo em
Portugal, sculos XVI e XVII. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.
36
CARVALHO, Francisco Moreno de. O Brasil nas profecias de um judeu sebastianista: os aforismos
de Manoel Bocarro Francs/ Jacob Rosales. In: GRINBERG, Keila (org.). Os judeus no Brasil. Rio
de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005, p. 123-124.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
37
preso pela Inquisio de Goa, tinha denunciado vrios membros da famlia por
judasmo. Manuel Bocarro j era homem de 36 anos nessa altura. Miguel Francs
era um rapazola de 15 anos quando sua famlia fugiu para a Saint-Jean-de-Luz, na
mesma poca.
Por volta de 1630, talvez um pouco antes, Manuel Bocarro mudou-se para
Hamburgo, onde se converteu ao judasmo e se tornou adido comercial da Coroa
espanhola. Foi tambm nesses anos que a famlia de Miguel Francs deixou SaintJean-de-Luz, fixando-se no porto de Calais, nos Pases Baixos espanhis. bvio
que a famlia no trocou o sul da Frana pelo litoral belga em busca de maior
liberdade religiosa. A rigor, os judeus eram menos molestados no sul da Frana do
que em territrio dos Habsburgo. O criptojudasmo em Saint-Jean-de-Luz podia
correr mais solto, menos secreto. O mais provvel que o pai de Miguel, Pedro
Francs, tenha sido deslocado para atuar no porto belga, conforme os interesses
da rede Bocarro-Francs. Era tempo de ligao da famlia com o conde-duque de
Olivares.
Foi nesta fase da vida que Miguel passou, tambm ele, a se dedicar ao comrcio,
onde vivia como criptojudeu, pois em Anturpia, no era permitido declarar-se na
lei de Moiss. Era possvel profess-la em casa ou em esnogas secretas. Declar-la
no. Viveu ali com seu irmo, enquanto outro foi enviado para Amsterd. Cartas
embaralhadas: os Bocarro-Francs negociavam com a Espanha, mas apostavam
na Holanda.
Mas foi ainda em Calais que Miguel Francs e seus irmos at mesmo o pai,
a me e outros exilados receberam instruo judaica mais slida. Quem foi o
mestre? Manuel Bocarro Francs, que visitava periodicamente o grupo e chegou
a passar temporadas ali, dirigindo a esnoga da famlia. Parece ter ministrado um
curso intensivo de judasmo para os parentes Miguel Francs, que diante dos
inquisidores se gabava de ter voltado ao catolicismo, no escondia a admirao
pelo primo sbio. Doutor Manoel Bocarro eis como se referia a seu primo,
informando ter sido ele o predicante da famlia e mais judeus exilados,
doutrinando nas cerimnias da lei de Moiss, todas as vezes em que acabavam
de comer e mais ocasies em que o trabalho da jornada dava lugar. Manuel
Bocarro Francs j era, nessa altura, um judeu novo. Circuncisado e com novo
nome: Jacob Rosales Hebreu.
Miguel Francs prosseguiu na sua carreira de mercador da rede Bocarro e
professante da lei de Moiss. Frequentava diariamente a sinagoga, aprendeu as
oraes, tornou-se judeu. Viveu um tempo em Hamburgo, esteve tambm na Itlia,
sempre a negcios, mas s se submeteu circunciso em Amsterd, Jerusalm
do Norte. O mohel foi sefardita, Isaac Cohen de Azevedo, cujo nome cristo era
Henrique de Azevedo, natural de Lisboa, 40 anos, magro, barba castanha. Miguel
passou a se chamar Davi Francs, tornando-se um judeu entusiasmado, como a
maioria dos judeus novos, rejeitando o cristianismo in totum. Foi para o Brasil,
cerca de 1639, para ir a valer ms. Ganhar mais dinheiro, ascender na hierarquia
dos Bocarro-Francs.
Topou, no entanto, em plena Jerusalm colonial, com a esmagadora maioria de
catlicos residentes no Recife e Olinda, igrejas funcionando, procisses na rua. No
via coisa parecida desde os 15 anos de idade, apesar de ter morado em Anturpia
38
FEITLER, Bruno. Inquisition, juifs et nouveaux chrtiens au Brsil. Leuven: Leuven University
Press, 2003, p. 205.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
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Bocarro se mantinha fiel aos Felipes. Seria esta a nica razo ou haveria tambm
desavenas comerciais no interior da rede Bocarro-Francs? O fato que Gaspar
Bocarro Francs ou Uziel Rosales escreveu, em 1641, ao embaixador portugus na
Holanda, Tristo de Mendona Furtado, oferecendo-se para lutar ao lado de Sua
Majestade, el rei D. Joo IV. Acusou o irmo ilustre, a quem chamou de apstata
mpio, acusando-o de violentar-lhe a conscincia e reduzi-lo aos abusos de sua
religio (judaica) o que muito o aborreceu, acrescentou, por ser cristo batizado
com dez anos de estudos na Companhia de Jesus. Pedia proteo para voltar a
Portugal e algum socorra ad panem nostrum quotidianum maneira elegante de
pedir auxlio financeiro Coroa8.
O embaixador portugus hospedou-o por um tempo em Haia. Sua jovem esposa,
Sara de Souza, judia de nascimento, foi convertida ao catolicismo, apadrinhado
pelo prprio embaixador. Regressou a Lisboa na comitiva diplomtica, mas no
escapou da priso inquisitorial. Nem poderia, considerado o passado recente de
judeu pblico. Alm disso, a Inquisio Portuguesa filipina, como vimos
no perdia oportunidade de fustigar a monarquia portuguesa restaurada. Gaspar
Bocarro Francs saiu no auto-de-f de 6 de abril de 1642, mas recebeu pena muito
leve. Acusou membros da famlia e contou detalhes da vida judaica em Amsterd,
Hamburgo e outras partes da dispora sefardita. Prestou, assim, bom servio
Inquisio, alm de agradar ao rei por romper com o ramo Bocarro-Francs aliado
da Espanha. Afinal, a guerra entre Portugal e Espanha estava apenas no incio, e o
apoio dos capitais sefarditas era essencial para os dois lados.
perfeitamente possvel que Miguel Francs tenha sabido da atitude do primo
Gaspar, seu amigo de infncia, companheiro de exilio na mocidade, colega de estudos
judaicos e de converso em Amsterd. As notcias corriam mundo com mais rapidez do
que se imagina nessa poca, embora no chegassem antes de um ms ou dois, de Lisboa
ao Recife. Miguel Francs pode muito bem ter seguido o exemplo de Gaspar quando
decidiu retornar ao catolicismo da infncia e da mocidade. Miguel jamais disse isso aos
inquisidores realando, antes, a sua prpria vontade e o auxlio espiritual de frei Manoel
Calado. Mas, falta de outras razes concretas para uma reconverso to precoce no
Brasil, qualquer conjectura lcita.
Um judasmo barroco9
O processo de Miguel Francs muito rico em registros sobre as cerimnias
judaicas, s perdendo para o de Isaque de Castro, entre os judeus do Brasil.
Compreende-se. Foi um dos primeiros processos contra judeus novos, incluindo
casos da dispora holandesa, como o de Gaspar Bocarro, de modo que a Inquisio,
estava em fase de reunir o mximo possvel de informaes sobre crenas e ritos.
Miguel Francs percebeu com clareza a curiosidade mal disfarada dos
8
41
inquisidores e, perguntado sobre as cerimnias e oraes, pediu papel para trazlas escritas, alegando que desejava cuidar devagar acerca delas. Miguel fez um
rascunho no crcere para responder s perguntas da Mesa, que registrou muitas
oraes da maneira estropiada que vimos no captulo anterior. Na Shem, por
exemplo, o registro Sam Israel Adonay Eloeno, Adonay ag, quando o certo
seria terminar com echad (um ou nico, em hebraico). Este erro os inquisidores
corrigiriam em breve. Traduzida para o portugus, o enunciado da Shem seria:
Ouve Israel, o Senhor nosso Deus, o Senhor um. No registro do processo,
porm, a traduo j aparece com alguma distoro: Ouve Israel, est atento
que no h mais que um s Deus e seu nome um. Os inquisidores erravam em
muitas transcries, mas neste caso, pode ser que haja erros do prprio Miguel,
ainda que isto seja improvvel. Miguel Francs parecia ter conhecimento razovel
das oraes e cerimnias judaicas.
Desfilam no processo, diversos enunciados que, malgrado as imperfeies do
translado, confirmam que o ladino ou castelhano era a lngua que os judeus novos
usavam para rezar. Na ceia das sextas-feiras, vspera do Shabat, Miguel citou a
leitura de trecho do Gnesis que justificava a guarda do sbado acabaronse los
cielos y la terra e todos los forsados e acab el dios nel dia seis que, segundo
Miguel, signficava que em seis dias formou Deus o cu e a terra e no stimo ele
folgou e repousou. Citou, ainda, a beno do vinho bendito tu adonay nuestro
do e rey del mundo que crias fruto de la vid, esclarecendo que se a bebida da
ocasio no fosse o vinho, como devia ser, trocavam o trecho que crias fruto de
la vid (fruto da videira) por outro: que fez tudo por palavras. Citou tambm a
beno do po: bendito adonay nuestro do rey del mundo q sacais pan de la tierra.
Mencionou, enfim, as oraes proferidas pelo gazo na sinagoga, entre as quais,
uma em que concitava os hijos de Israel al Sabb a celebrarem el firmamento de
sempre entre my e entre hijos de Isac e sinal, ella, de que pera sempre hizo Adonay
el cielo y la tierra.
No vou multiplicar os exemplos compobatrios do uso do ladino ou castelhano
nas oraes dos judeus novos. Nas transcries acima, possvel notar a confuso
do portugus com o castelhano em palavras como terra, ao invs de tierra,
na orao de sexta-feira, porm no na orao da sinagoga. O mesmo vale para
sempre, ao invs de siempre, na ltima orao citada. Atribuo tais confuses
mais ao translado do notrio portugus do que informao de Miguel, que sabia
quase de cor as mais diversas oraes. O mesmo deve valer para o uso da palavra
dios, em algumas oraes, e do, em outras, pois sabemos que o deus da bblia
hebraica deus nico e verdadeiro no podia ser grafado, nem pronunciado,
com o s indicativo do plural. Com o tempo, os escrives do Santo Ofcio passaram
a transcrever corretamente o do dos judeus.
Mas no foi em razo dos desacertos ortogrficos do processo que chamei de
barroco o judasmo descrito por Miguel Francs para os inquisidores. Chamei-o,
assim, em razo do nimo que tomou conta de Miguel quando comeou a descrever
as cerimnias, pedindo sempre mais audincias com este propsito. Boa parte de
seus relatos combinam, no campo etnogrfico, descrio fidedigna e verossmil
com inveno de detalhes ausentes da tradio judaica. Miguel exagerou gestos
rituais em cerimnias austeras, incluiu beberagens excessivas nas cerimnias,
42
Cf. COSTA, Examination of the Pharisaic, p. 21. Sou grato a Bruno Feitler por esta valiosa
informao.
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44
RESUMO
ABSTRACT
Brasil
45
O PADROADO E A SUSTENTAO
DO CLERO NO BRASIL COLONIAL
Lana Lage da Gama Lima1
Qualquer estudo sobre o clero no Brasil colonial tem necessariamente que
levar em conta a existncia do padroado e suas implicaes para a organizao e
funcionamento da Igreja no ultramar portugus. Segundo Hoornaert, o padroado
constituiu a expresso prtica do colonialismo em termos de instituies religiosa2,
na medida em que conferia Coroa o direito de arrecadar e redistribuir os dzimos
devidos Igreja e indicar os ocupantes de todos os cargos eclesisticos, inclusive
infra episcopais. Desde 1455, a bula Inter Caetera, de Calixto III, confirmara a
administrao espiritual da Ordem de Cristo sobre todas as conquistas, recebendo
seu gro-prior a jurisdio ordinria episcopal, como prelado nulius diocesis,
sobre as terras descobertas e por descobrir. Ordem de Cristo cabia, portanto,
o padroado dos benefcios infra episcopais das terras ultramarinas, enquanto os
episcopais permaneciam, como no reino, pertencendo Coroa. A verdade que
o rei acabava responsvel pela indicao dos procos das novas terras, visto que,
como gro-mestre da Ordem, competia-lhe indicar o candidato que receberia do
gro-prior ou vigrio da Ordem que era o vigrio do Convento de Tomar
a investidura espiritual. Esse privilgio foi usado nas igrejas da frica e da sia,
mas no chegou a ser exercido no Brasil porque at 1514 no se criou nenhuma
parquia na Colnia. E, dessa data em diante, com a criao do Bispado de
Funchal, cessou a jurisdio da Ordem sobre todas as conquistas, incluindo as
terras brasileiras, que tambm passariam a fazer parte do novo bispado, deixando,
portanto, de ser nulius diocesis.
No se alterou, porm, na prtica, o direito do rei sobre os cargos infraepiscopais, o qual passou, no entanto, a ser exercido mediante uma nova frmula.
Em 7 de junho de 1514, a bula Dum Fidel constantiam concedia ao rei, enquanto
gro-mestre da Ordem de Cristo, a faculdade de indic-los, ficando a colocao
espiritual, para a qual obviamente no tinha poderes, a cargo do bispo de Funchal.
D. Manoel receberia, portanto, um duplo padroado nas terras de alm-mar. Um
de carter secular pertencente ao rei enquanto rei sobre o benefcio episcopal
da diocese de Funchal; e outro, de carter eclesistico, embora sem jurisdio
espiritual, sobre os benefcios menores, enquanto gro-mestre da Ordem de Cristo.
Paralelamente, tambm a monarquia espanhola receberia do papado, atravs de
outra srie de bulas e breves, entre as quais se destaca a Universalis Ecclesiae de
1508, o direito de patronato sobre as suas conquistas. Preocupados com as questes
europeias, os papas do sculo XVI, mesmo aps o Conclio de Trento, abandonaram
aos reis ibricos a misso religiosa no ultramar, concedendo-lhes enormes privilgios
que, no sculo seguinte, o papado tentaria em vo recuperar. Em 1551, a bula
Praeclara Charissimi consolidava o poder real portugus sobre a Igreja ultramarina,
1
47
OLIVEIRA, O. de. Os dzimos eclesisticos do Brasil nos perodos da Colnia e do Imprio. Belo
Horizonte: UFMG, 1964, p. 80-83.
48
Arquivo Nacional - AN. Ordens rgias ao provedor - mor da Fazenda Real, concedendo dotaes
para obras de construo e reparo de vrias igrejas (sculo XVIII). Cdices: 538 v.2 I-32, 538 v.2
1-37, 538 v.2 I-38, 538 v.2 I-39, 538 v.2 I-40, 538 v.2 I-42, 538 v.2 I-43, 538 v.2 I-44, 538 v.2 I-46,
538 v.2 I-47, 538 v.4 fl. 57v.
ALENCAR, C. A. P. de. Roteiro dos bispos do Brasil e dos seus respectivos bispados, desde os
primeiros tempos at o presente. Cear: s.r., 1864, p. 156-158.
Arquivo Nacional - AN. Concesso e aumento de cngruas. Cdices 538 v.1-c.178; 538 v.2-I-16,
60 v.1 fl. 37 v., 60 v.22 fl.25; 60 v.23 fl. 92 v., 61 v.9 fl.18 v. (sculos XVII e XVIII), 538 c.58 (sculo
XVIII), 60 v.7 fl.16 v., 61 v.9 fl.156 v. (sculo XVI).
Por exemplo, D. Jos de Barros Alarco, segundo bispo do Rio de Janeiro (1680-1700), recebeu
ajuda de custo para visitar o bispado nos valores de 20$000 e 40$000, destinados aos gastos com
viagens por terra e mar, D. Fr. Francisco de Lima, quarto bispo de Pernambuco, recebeu, alm de
um conto de ris para se estabelecer, 9.000$000 para auxiliar as trinta misses que fundou. D. Jos
Fialho, sexto bispo de Pernambuco (1725-1738) e depois arcebispo da Bahia, foi agraciado com
800$000 destinados ao arranjo da casa e mais um conto de ris em ouro como ajuda de custo.
Cf. ALENCAR, C. A. P. de. , op. cit., p. 101-104, 153-154 e 160-162).
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sacramentos. Entendendo, porm, que algumas daquelas capelas deviam constituirse em parquias, pelo isolamento da regio e pobreza de seus moradores, que no
tinham como sustentar capelo, o bispo informa estar remetendo ao rei um pedido
nesse sentido, atravs da Mesa de Conscincia e Ordens, solicitando a ajuda de
Corte Real, por saber que ele costumava proteger semelhantes requerimentos.
Apelava, portanto, o bispo do Par ao trfico de influncias para tentar romper os
estreitos limites impostos estrutura paroquial na colnia22.
O nmero de parquias coladas permaneceu bem inferior ao das no coladas.
O terceiro bispo do Rio de Janeiro, D. Francisco de So Jernimo (1702-1721)
s conseguiu a colao de 19 das 40 parquias que criou em Minas Gerais23. Na
poca de D. Fr. Antonio de Guadalupe (1725-1739), o Bispado do Rio de Janeiro
s contava com 45 parquias coladas24. O relatrio decenal de D. Fr. Manoel da
Cruz, de primeiro de julho de 1747, informa que o bispado possua 43 igrejas
paroquiais coladas, 3 amovveis e 289 filiais25. Em 1778, das 102 parquias do Rio
de Janeiro, apenas 52 eram coladas. Em So Paulo havia 13 coladas num total de
5926. Nessa poca, Gois possua 65 freguesias das quais 21 coladas27.
O padroado sobre os benefcios infra episcopais conferia Coroa o direito de
indicar os ocupantes das parquias coladas. A escolha era feita, mediante concurso,
pela Mesa de Conscincia e Ordens ou pelo prprio rei, realizando-se, portanto,
em Lisboa. O escolhido era apresentado ao bispo, que o investia no cargo. Em
1702, a Coroa desiste desse sistema, delegando seus poderes aos bispos locais.
O rei recebia ento o nome do indicado e emitia uma carta de apresentao para
que fosse empossado. Em 1766, com a poltica regalista de D. Jos, o concurso
volta Mesa28. Com a Viradeira, torna-se a instituir o concurso local. O alvar de
14 de abril de 1781, de D. Maria I, concedia aos bispos faculdade para, enquanto
residissem no bispado, propor rainha nomes para as dignidades, conezias,
vigararias, benefcios curados ou sem cura dalmas e mais cargos eclesisticos que
vagassem depois do primeiro dia de sua residncia no Brasil, excetuando-se o
arcediago, que ela reservava para si em todo o ultramar29.
Mas, a maior parte do clero colonial do sculo XVIII permanecia margem
desse sistema, fosse o concurso realizado no reino ou no seu prprio bispado.
Alijados das benesses dos dzimos redistribudos sob a forma de cngruas, esses
sacerdotes dependiam dos emolumentos cobrados por seus servios para sustentarInstituto Histrico e Geogrfico Brasileiro IHGB. Arquivo 1.13 fl. 99-101. Em 1718, o vice-rei
recebia carta rgia ordenando que desse ao arcebispo da Bahia toda a ajuda e favor para erigir
mais vinte parquias no arcebispado, alm de aumentar as cngruas do cabido. Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro BNRJ. Seo de Manuscritos II, 34, 5, 60.
23
ALENCAR, Roteiro dos bispos..., p. 105-111.
24
TRINDADE, R. Arquidiocese de Mariana: subsdios para a sua histria - vol. 1. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial, 1955, p. 67.
25
Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana AEAM. Relatrios Decenais do Bispado de
Mariana.
26
HOORNAERT, A evangelizao do Brasil..., p. 285.
27
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro BNRJ. Seo de Manuscritos 13, 4, 20.
28
ALMEIDA, Direito do padroado..., p. 70-71.
29
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro IHGB. Repertrio de Legislao Eclesistica, p. 570571.
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para se salvar, estando todos justificados. Nem ndios com veleidades protestantes,
nem m vontade de uma populao catlica, o que havia na verdade era falta de
dinheiro para pagar a salvao.
O Regimento de 1749 deu margem a novos conflitos, pois estipulava os preos
dos emolumentos em oitavas de ouro, cujo valor em ris oscilava. Em 1752, o
Regimento do bispo D. Fr. Manoel da Cruz publicado tambm em ateno s
queixas sobre os emolumentos. Os preos do Regimento anterior so mantidos,
mas so apresentados diretamente em ris, calculando-se em 1$500 o valor da
oitava35. Em 1754, uma ordem rgia, atendendo a reclamaes da populao,
ordena que a oitava seja calculada em 1$200, valor pelo qual andava a correr o
ouro nas Minas naquela ocasio. Em 14 de maro de 1755, D. Fr. Manoel da Cruz
determina que os emolumentos da Justia Eclesistica e os direitos paroquiais se
contassem exclusivamente por ris, para evitar que as oitavas fossem calculadas
acima do valor corrente, isto , 1$200. A autoridade do rei e do bispo, no entanto,
no foi suficiente para conter a avidez dos procos. Essa ordem no foi obedecida, e
os preos publicados em 1752, a partir da cotao da oitava a 1$500, continuaram
a ser cobrados. Novos protestos levaram D. Jos a ratificar, em 1765, a ordem
de 1754, encarregando o cabido de execut-la, j que o bispado estava com a
S vacante. Por essas atitudes que no era l muito bom o conceito que o rei
tinha do clero mineiro em matria de dinheiro, como pode ser constatado pela
determinao de que, em cada parquia, fosse instalado um cofre que se abrisse
apenas com o uso simultneo de trs chaves, guardadas, respectivamente, com o
proco, o fabriqueiro e o escrivo. Explica Sua Majestade que essa medida devia ser
tomada para que no se arrisque o dinheiro das fbricas das igrejas deste bispado
s no arbtrio dos procos. Em 1794, a compilao das Regras Diocesanas de
Mariana sobre os emolumentos e direitos paroquiais confirmam o Regimento de D.
Fr. Manoel da Cruz e o preo da oitava a 1$20036.
Nesse mesmo ano de 1749, Pizarro pintava um quadro deplorvel da situao
da Freguesia da Santssima Trindade, no Rio de Janeiro, onde conviviam quatro
irmandades: Nossa Senhora do Rosrio, Nossa Senhora da Boa Morte, So Miguel
das Almas e Santssima Trindade. Os irmos, a princpio zelosos, viviam agora
segundo o visitador esquecidos das obrigaes de seus cargos, e deveres e as
irmandades encontravam-se na mais completa decadncia. Os paroquianos no
frequentavam a igreja nem pagavam os emolumentos, respondendo diz Pizarro
com um agora no posso, depois satisfarei s cobranas do proco, que era
obrigado a satisfazer seus ofcios de graa. Sobretudo as missas pelos escravos
falecidos estavam em franco desuso, apesar das pastorais de D. Fr. Joo da Cruz
(1742) e de D. Fr. Antonio do Desterro (1765) condenando essa cruel economia
dos senhores.
A submisso financeira da Igreja ultramarina Coroa decorrente do direito de
Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana AEAM. Regimento do Bispado de Mariana de
13 de abril de 1752. 3a pasta preta, cpia do cod. 643, fl. 111/3v. da Biblioteca Nacional de Lisboa.
36
Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana AEAM. Cpia de ordem rgia de 31 de
dezembro de 1754. Pasta 7, gaveta 1, arquivo 1; Pastoral de D. Fr. Manoel da Cruz de 14 de maro
de 1755.AEAM pasta 7, gaveta 1, arquivo 1; Regras Diocesanas sobre os emolumentos e beneses
da fbrica deste bispado de Mariana, Pasta 7, gaveta 1, arquivo 1.
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ouro por comunho e meia por confisso, ou seja, respectivamente 1$600 e $800,
observando ser o costume da regio41. preciso lembrar que, nessa poca, o clero
mineiro no ainda recebia cngruas, e as igrejas s costumavam ser guarnecidas de
vigrios encomendados caso as conhecenas lhes garantissem quantia no mnimo
igual que fariam jus se fossem colados, comprometendo-se a Cmara a contribuir
com o necessrio para complet-la42. Assim, em 1716, quando D. Fr. Francisco de
So Jernimo pede ao rei que conceda cngruas ao clero das Minas, a populao
j se mostrava insatisfeita com as conhecenas, recorrendo tambm Coroa no
sentido de baixar o seu valor, que considerava exorbitante. Atendendo aos sditos
mineiros, em 16 de fevereiro de 1718, D. Joo V escreve carta ao bispo, ordenando
que diminusse o valor das conhecenas, cujo pagamento, segundo as queixas, se
tornara to pesado para o povo quanto os quintos. Obedecendo ao rei, o bispo, em
pastoral datada de 18 de fevereiro de 1719, estabelece o valor de 6 vintns de ouro
por confisso ou comunho, ou seja $30043, esclarecendo que, para compensar a
queda nos seus rendimentos, o rei concederia a cada um dos vigrios mineiros
cngrua no valor de 200$000 anuais, por reconhecer que os dzimos arrecadados
na regio eram suficientes para tanto44.
Na capitania de So Paulo, os moradores tambm se mostraram insatisfeitos
com as conhecenas. Em 20 de junho de 1729, a Cmara da Vila de Itu manda
petio ao rei esclarecendo que, naquela capitania, nunca foi costume pagar
essas taxas, pois seus moradores j pagavam os dzimos, e os procos recebiam
cngruas da Fazenda Real e outros emolumentos. No entanto, como explicam,
os procos resolveram que os moradores, suas famlias, escravos, e carijs da
sua administrao lhes pagassem conhecenas na razo de 4 vintns, ou $80,
por pais de famlia; 2 vintns por seus filhos e escravos e um vintm pelos que s
confessassem. Em 28 de abril do ano seguinte, D. Joo V responde, determinando
ao Bispo do Rio de Janeiro, ao qual estava sujeita a capitania de So Paulo, que
proba o clero paulista de cobrar conhecenas45. Em Minas, a taxa de $300, que
se mantinha desde 1719, levantou nova onda de protestos e peties, sendo,
porm, confirmada pela junta reunida em 1735, em Vila Rica, para reavaliar os
OLIVEIRA, Os dzimos eclesisticos..., p. 169; TRINDADE, R., op. cit., p. 41. A oitava correspondia
a 1/8 da ona, medida de peso equivalente a 30 gramas. Em 1694, 1 oitava de ouro valia 1$650;
entre 1695 e 1698, 1$700. Entre 1706 e 1743 conservou o valor de 1$600. Cf. GONALVES, C.
B. Casa da Moeda do Brasil: 290 anos de histria. Rio de Janeiro: Casa da Moeda, 1984, p. 63, p.
77, p. 90.
42
ALMEIDA, Direito do padroado..., p. 64.
43
Enquanto 1 vintm de cobre valia $20, 1 vintm de ouro tinha valor de $37,5. Portanto, 6 vintns de
ouro so $225. Cf. GONALVES, Casa da Moeda..., p. 135). Porm, ao que tudo indica, esse valor
era arredondado. Trindade observa que h nessa matria alguma ambiguidade, pois 6 vintns no
chegam a 3 tostes, esclarecendo que na mesma pastoral o bispo fala em 1/5 da oitava, que valeria
nesse tempo 1$500 (em vez de 1$600), da o valor de $300, que aparece citado em despacho de
D. Fr. Antonio de Guadalupe, datado de 1727, no qual o bispo faz referncia pastoral de 1718.
Cf. TRINDADE, Arquidiocese de Mariana..., p. 43.
44
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro IHGB. Ordens sobre as Conhecenas, Emolumentos,
Cngruas, e Beneses aos Procos das Capitanias de So Paulo, Minas Gerais e Rio de
Janeiro-1730-1757. Lata 110, doc. 5.
45
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro IHGB. Pastoral do Bispo D. Fr. Francisco de So
Jernimo sobre as Conhecenas do Vigrios. 18 de fevereiro de 1719. Lata 69, doc. 10.
41
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emolumentos eclesisticos.
A disputa entre o clero e a populao sobre as conhecenas acarretava tambm
expedientes escusos. Uma das razes que levou D. Fr. Francisco de So Jernimo
a igualar, em 1719, o valor das taxas pagas pelos que s confessavam e pelos que
confessavam e comungavam, foi o fato dos senhores deixarem de instruir seus
escravos na doutrina para que, na confisso, os sacerdotes os julgassem incapazes
de comungar, diminuindo, assim, sua despesa46. Por outro lado, os confessores
procuravam aumentar sua renda impondo, como penitncia, a encomenda de
missas que seriam ditas por eles prprios, o que levou o bispo D. Fr. Joo da Cruz
a estipular pena de suspenso e priso para aqueles que assim se aproveitassem do
sacramento47. O fato de se proibir aos procos colados a cobrana de conhecenas,
por sua vez, levava os fregueses das parquias regidas por vigrios encomendados
a se matricularem para a desobriga da quaresma em parquias coladas, mesmo
que fossem distantes do lugar de sua residncia, visando livrar-se do pagamento
da taxa. Ao dar seu parecer sobre a diviso dos Bispados do Rio de Janeiro e So
Paulo, Pe. ngelo de Sequeira diz que, nos onze anos em que andou em misses
naquelas regies, percebeu que aquele era um problema grave e, para san-lo,
recomenda a colao de todas as parquias48.
No recm-criado bispado de Mariana, o bispo D. Fr. Manoel da Cruz presencia
novos conflitos entre o clero e a populao por causa das conhecenas. Dessa vez
so paroquianos que, por viverem afastados de sua matriz, so assistidos em capelas
que eles mesmos construram, por capeles a quem pagam cngruas. Queixam-se
esses fregueses, moradores de Santo Antonio, Santana, Arraial da Passagem e So
Jos, que, alm disso, so obrigados a pagar ao proco titular da matriz, qual
as capelas esto filiadas, as conhecenas da quaresma e outros emolumentos, do
que decorre viverem onerados por obrigaes duplicadas. Reclamam ainda da
atitude dos procos, que recorriam Justia Real para cobrar-lhes juridicamente
essas taxas, que julgam abusivas e cuja soma considervel tornava o clero rico e
poderoso s custas do dinheiro que tirava indevidamente da populao49. Em vista
dessas reclamaes, em 1755, D. Jos ordena o bispo a exigir dos procos que,
ou satisfizessem, eles prprios, as cngruas de seus capeles, ou abrissem mo
das conhecenas em seu favor, isentando o povo do pagamento das cngruas da
capelania. Revoltado com as decises rgias, o clero mineiro defende-se, explicando
que muitas das capelas eram, na verdade, desnecessrias, por no habitarem os
que delas se serviam to longe da matriz que no pudessem frequent-la. Sua
construo devia-se, assim, mais ao comodismo dos senhores em cujas terras elas
se localizavam que a uma real necessidade do povo. Argumentam ainda os procos
que as conhecenas e mais direitos paroquiais constituam a maior e principal
parte de seus rendimentos e que sua situao financeira era precria devido
constante flutuao do nmero de seus paroquianos, que se deslocavam sempre
TRINDADE, Arquidiocese de Mariana..., p. 1043.
Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana AEAM. Pastoral de D. Fr. Joo da Cruz de 17
de fevereiro de 1754. Pasta 4, gaveta 1, arquivo 1.
48
CAMARGO, Pe. ngelo de Sequeira..., p. 99.
49
CARRATO, J. F. A. Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais. So Paulo: Companhia Editora
Nacional/ EDUSP, 1986, p. 60.
46
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O Cdigo Filipino (Livro I, tt. 62 72) determina: Que naqueles casos em que os Prelados
pretenderem obrigar os leigos a fabricar as igrejas ou a sustentar os ministros delas por no serem
os dzimos bastantes conforme o decreto do Conclio Tridentino, nossas Justias no se intrometam
nisso; porque o seu conhecimento pertence ao Juzo Eclesistico.
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RESUMO
ABSTRACT
Keywords: Patronage;
Church; Ecclesial Fees.
62
Colonial
Brazilian
A IMAGTICA INQUISITORIAL:
RELIGIO, REPRESENTAES E PODER
Geraldo Pieroni1
possvel captar na imagtica da Inquisio os mltiplos significados de
poder existentes em uma instituio? Como os estudos iconolgicos podem
contribuir para apreenso histrico-cultural de uma determinada poca? Quais os
posicionamentos hierrquicos contidos em uma representao icnica religiosa?
Estas so algumas das questes que trataremos neste artigo. Dirigimos nosso olhar
para a Pennsula Ibrica durante o Antigo Regime, mais precisamente nos sculos
XVI e XVII: tempos nos quais o Trono e o Altar formavam um s poder, unidos
para combater o mundo da heterodoxia.
Os julgamentos e as penas contidas nas Ordenaes do Reino e nos Regimentos
da Inquisio esto impregnados de legalismo divino. Na mentalidade da poca, o
rei era por definio, justo, e os inquisidores, tambm eles, eram emissrios lcitos
da justia. A coerncia entre as decises reais e as deliberaes inquisitoriais estava
aparentemente em perfeita harmonia, embora se tratasse de tribunais com funes
bem distintas: o Santo Ofcio se ocupava somente dos crimes relacionados heresia
e aos pecados contra a moralidade.
O rei era representante da justia. Os tribunais da Inquisio funcionavam como
prolongamento do poder real. A interveno normativa que almejava disciplinar os
criminosos era um meio de fortalecer a ideia do poder do rei enquanto representante
de Deus sobre o territrio onde ele reinava. A Igreja e o Estado, defensores da
pedagogia do medo, agiam unssonos no combate contra qualquer pensamento ou
atitude que pudesse de alguma maneira, ameaar os pilares da ortodoxia religiosa.
Para o rei, juiz supremo, e para os legisladores, o mal existe e, portanto, era
necessrio construir um aparato judicirio capaz de proteger os sditos. A noo
de pecado/reparao e crime/castigo manifestada nas Ordenaes do Reino2.
A reparao atravs de uma penitncia e o castigo por meio de uma penalidade
permite restaurar a ordem do mundo que o pecado e o crime desequilibraram. As
autoridades reais e eclesisticas tinham a misso de fazer justia quando o pecado e o
crime ferissem a Deus e seus representantes na terra. Nesta ordem legal, os tribunais
seculares, inquisitoriais e eclesisticos conseguiram trabalhar de comum acordo.
Para a Inquisio, o castigo tinha uma dupla funo: de um lado funcionava
como mecanismo de defesa da ordem religiosa e social e de outro lado, se inseria
em um processo de purificao dos pecados cometidos. No se pode, portanto,
estudar o sistema punitivo inquisitorial em Portugal sem levar em conta a dimenso
1
Doutor em Histria pelo Institut de Recherches sur les Civilisations de lOccident Moderne,
Universit Paris-Sorbonne (Paris IV) e especialista na histria do degredo inquisitorial. Docente
da Ps-Graduao em Comunicao e Linguagem da Universidade Tuiuti do Paran. E-Mail:
<[email protected]>.
Referimos neste artigo, sobretudo a: ALMEIDA, Cndido Mendes de (org.). Ordenaes Filipinas
de 1603. Nota de apresentao de Mrio de Almeida Costa. Edio fac-smile da publicada no Rio
de Janeiro em 1870. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, s.d.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
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Para Eliade a imagem da Cruz como rvore do Bem e do Mal, e rvore Csmica,
tem origem nas tradies bblicas. , porm, pela Cruz (= o Centro) que se opera
a comunicao com o cu e que, ao mesmo tempo, salvo o universo em sua
totalidade. Ora, a noo de salvao nada mais faz do que retomar e completar
as noes de renovao perptua e de regenerao csmica, de fecundidade
universal e de sacralidade, de realidade absoluta e, finalmente, de imortalidade,
todas as noes coexistentes no simbolismo da rvore do Mundo6.
Mircea Eliade acrescenta que o cristianismo utilizou o simbolismo da rvore
do Mundo interpretando-a e alargando esta alegoria: A Cruz, feita da madeira da
rvore do Bem e do Mal, substitui a rvore Csmica; o prprio Cristo descrito
como uma rvore. A cruz evocada como uma rvore que sobe da terra aos
cus. Planta imortal, ela ergue-se no centro do Cu e da Terra: firme sustentculo do
universo, o elo de todas as coisas, suporte de toda a terra habitada, entrelaamento
csmico, contendo em si toda a variedade da natureza humana... O rito bizantino
canta ainda hoje, no dia da exaltao da Santa Cruz, a rvore da vida plantada
no Calvrio, a rvore sobre a qual o Rei dos sculos operou a nossa salvao,
a rvore que, saindo das profundezas da Terra, se elevou no centro da Terra e
santifica at aos confins do universo. A Imagem da rvore Csmica conserva-se
pura: muito provavelmente o prottipo dever-se-ia procurar na Sabedoria que,
segundo os Provrbios, III, 18, uma rvore de vida para os que a apreendem.
Esta Sabedoria, comenta o Padre de Lubac: para os Judeus ser a Lei; para os
cristos ser o Filho de Deus7.
No estandarte inquisitorial, o lema permanece, no entanto a cruz substituda
por So Domingos, o fundador da Inquisio, no sculo XIII. O estandarte da
Inquisio de Goa retratava o santo no centro segurando o ramo de oliveira e
a espada. Representar So Domingos significava associ-lo aos seus atributos
invocando as intenes da Ordem dominicana: a salvao dos pecadores (tal como
a cruz = Axis Mundi). No estandarte se percebe a figura de um co tendo boca
uma tocha acesa.
ELIADE, Mircea. Histria das crenas e das idias religiosas Tomo II vol. 2. Traduo de Roberto
Cortes de Lacerda. Rio de Janeiro: Zahar, s.d., p. 170-171.
ELIADE, Mircea. Imagens e smbolos. Traduo de Maria Adozinda Oliveira Soares. Lisboa: Arte e
Letras; Arcdia, 1952, p.156-167.
66
67
TUGWELL, Simon. Saint Dominic. Estrasburgo: Editions Du Signe, 1996. Trechos em traduo
portuguesa disponveis em: <http://biografiadossantos.wordpress.com/>. Acesso em: 16 fev. 2014.
Arquivo Secreto do Vaticano, Nunz. Port., cd.158, f 107v. In: RUBERT, Arlindo. A Igreja no Brasil:
expanso missionria e hierrquica (sculo XVIII) vol. II. Santa Maria: Ed. Palotti, s.d., p. 163.
68
Fig. 4 Pedro Berruguete, Auto de F presidido por Santo Domingo de Guzmn, c. 1500;
leo sobre madeira; 154 X 92 cm. Museo del Prado, Madri, Espanha.
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RESUMO
ABSTRACT
Palavras Chave:
Relaes de Poder.
Iconografia;
Inquisio;
INQUISIO E DESMITOLOGIZAMENTO DE
VALORES NO CRISTIANISMO TEOLOGIZADO:
RAZO, IMAGINRIO E H(h)ISTRIA
Carlos Andr Cavalcanti1
O progresso cientfico um fragmento, o mais importante
indubitavelmente, do processo de intelectualizao a que
estamos submetidos desde milnios e relativamente ao
qual algumas pessoas adotam, em nossos dias, posio
estranhamente negativa.2
Mais grave que a morte de Deus que pelo menos
deixava o assassino provar sua inocncia a ignorncia
dos deuses.3
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distanciadas dos seus prprios mitos fundadores, quais sejam a vida comunitria,
a fraternidade radical entre os pares e a inexistncia de hierarquias longas em
degraus distanciadores do leigo para o clrigo. Tentativas de (re)mitologizao
resultaram em movimentos internos que buscavam compensar a influncia de uma
divindade secularizada, onde um aspecto mstico aparece escamoteado pelos
smbolos imanentes do exerccio do poder temporal.
A Igreja que foi assumindo e pondo a seu servio a
filosofia grega, a ascese e a moral esticas, alguns ritos e
festas pags agarrou-se depois ao brao secular, fora
da espada e dos decretos imperiais.12
Teologicamente, a conseqncia mais sentida que,
a partir do dogma de Nicia, declarando a igualdade
substancial de Cristo com Deus, colocando-o no mundo
divino-celeste, ele se distanciou dos fiis. Passou a ser
tratado sempre como Deus, como segunda pessoa da
Trindade. Logo aps o Conclio de Nicia, apareceram as
primeiras imagens de Jesus Cristo vencedor, revestido da
prpura imperial. Mais tarde, as figuras de Pantocrator, o
Cristo todo-poderoso, dominador dos reinos, nos traos
e feies do imperador bizantino. Um clima de terror se
espalhou entre as massas, especialmente no Oriente. O
sacrifcio da missa, a baslica, a mesa do altar e outros
objetos sacros receberam os adjetivos frktos (temveis)
e fberos (terrveis). A missa bizantina passou a ter uma
entrada solene em que o coro saudava o Cristo glorioso,
triunfante, na pessoa do sacerdote, como rei da criao.
Os fiis se prostravam passagem do celebrante e uma
nuvem imensa de insenso invadia a nave da baslica. Por
outro lado, o vazio deixado pela humanidade de Jesus,
pela afirmao exclusiva de sua divindade, comeou a ser
preenchido pelo florescimento do santoral, da mariologia e
das relquias. Surgiram os novos mediadores, entre o povo
e Cristo-Deus.13
As primeiras aes disciplinadoras que podemos chamar de inquisio na
igreja crist impulsionaram o desmitologizamento ao tentar banir os hereges, que
floresceram com certo vigor aps a aproximao entre a Igreja e o Estado. De
certa forma, a imperiosa necessidade de uma Inquisio institucionalizada a se
somar aos tribunais diocesanos e que foi se consolidando at tornar-se realidade
no sculo XIII, pode ter sido resultado do cansao da prpria frmula que uniu
os reis e os sacerdotes cristos, no s por necessitar combater as heresias que se
fortaleciam em virtude da fora do cristianismo romano o Cisma dos ortodoxos
j ocorrera! como religio de Estado, mas tambm para impor aos fiis novos
12
13
Grifo nosso.
FRANGIOTTI, Histria das heresias...i, p. 162-163.
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81
tanto a Inquisio quanto o pensamento cientfico vive o seu lento declnio. Numa
era como a nossa, de ruptura dos valores tradicionais no saber, na tica e na moral,
torna-se importante abordar o tema paradigmas com preciso, pois no se trata
aqui apenas do nosso marco terico, mas, em parte, do contexto de mentalidade
que circundava o prprio Santo Ofcio. Nesta confluncia paradigmtica est o
encontro temtico das mentalidades desmitologizantes tanto na cincia quanto na
inquisio. So desmitologizamentos siameses, mas de costas um para o outro, o
que d a falsa ideia de que os inquisidores teriam lutado contra a racionalizao
do mundo, quando, na verdade, eles foram parte fecunda e importante deste
processo. Com isso, nos vemos na contingncia de analisar duplamente este aspecto
da racionalizao modernizadora do Ocidente, o que reafirma a necessidade de
um quadro terico bem consolidado que permita conceituar a Inquisio Moderna
levando em conta este aspecto definidor do seu etos. Evitamos assim o que seria
uma difusa Histria sem teoria, que consideramos ser quase um gnero literrio
baseado em fontes histricas capaz, porm, de produzir textos importantes para
serem resgatados para o trabalho cientfico. A Histria aterica (?) incongruente
com o trabalho acadmico. Procuramos, ento, conceituar e at reconceituar a
Inquisio do modo que nos pareceu mais acertado.
Para uma primeira aproximao do tema, vemos que preciso nos advertir a ns
mesmos quanto a uma armadilha que denominamos de Histria das obviedades,
onde reside aquela viso mecanicista do papel que a Inquisio representou para a
evoluo do processo histrico. Precisamos desautorizar, a priori, alguns conceitos
usuais sobre o Tribunal do Santo Ofcio e a conjuntura histrica que o cercou,
quais sejam: a) o Tribunal teria sido apenas o instrumento de resistncia de uma
Igreja Catlica atrasada que havia perdido o bonde da Histria por causa do
advento do Mundo Moderno; b) o ato inquisitorial seria exclusivamente uma forma
de encobrir interesses outros, como o confisco de bens e as presses da nobreza
contra a burguesia em ascenso; c) a Idade Moderna fora apenas um perodo de
grande esplendor cultural e artstico, com o advento do Renascimento e com os ares
renovadores da Reforma Protestante. Ao contrrio do que s vezes ocorre quando
se analisa o Tribunal, tais ideias no sero aceitas aqui como inquestionveis.
Estes trs pontos j foram verdadeiros cones intocveis da Histria. Documentos
e estudos dados luz nas ltimas dcadas impedem a continuidade de tais crenas.
Lembramos, por exemplo, o excelente trabalho de Derek Wilson e Felipe FernndezArmesto15 sobre a Reforma Protestante. Indicamos as pesquisas de Sonia Siqueira16,
e de Francisco Bethencourt17, sobre a Inquisio, seu sentido, seu momento. Vemos
includo neste quadro o trabalho do brasileiro Joo Bernardino Gonzaga (1993)
sobre o Tribunal do Santo Ofcio, ainda que possua vis confessional em vrios
trechos. Na origem desta reformulao do olhar histrico, apontamos o clssico
FERNNDEZ-ARMESTO, F. & DEREK, W. Reforma: o cristianismo e o mundo 1500-2000. Rio
de Janeiro: Record, 1996.
16
SIQUEIRA, S. A inquisio portuguesa na sociedade colonial. So Paulo: tica, 1978. __________.
O momento da inquisio. Joo Pessoa: Editora da UFPB, 2013.
17
BETHENCOURT, F. O imaginrio da magia: feiticeiras, saludadores e nigromantes no sc. XVI.
Lisboa: Centro de Estudos de Histria e Cultura Portuguesa, 1987. __________. Histria das
inquisies: Portugal, Espanha e Itlia. Lisboa: Crculo de Leitores, 1994.
15
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84
Grifo nosso. KANT, I. Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita. So Paulo:
Brasiliense, 1986.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
85
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87
88
89
DURAND, G. Cincia do homem e tradio: o novo esprito antropolgico. So Paulo: Trion, 2011.
90
91
tida como retrgrada e antagnica prpria justia pelos mais diversos crticos
do sculo XVIII. A Purificao do Mundo, por sua vez, deixou de ser crvel a
homens da f que j no tinham a certeza de estarem protegendo uma crena
agora to desmitologizada. E, principalmente, os inquisidores foram lentamente
desacreditando em bruxas, realizando uma desmitologizamento das culpas, que
passaram de algo que inspira medo (sculo XVI) para algo que inspira desprezo,
sinnimo de ignorncia ou falta da luz do sculo (sculo XVIII).
Das razes ao esgotamento, a ao inquisitorial viveu a lenta supresso de uma
mstica em seu fundamento fundante original at a ascenso sobre ela do poder
secular, traduzido em Portugal pela transformao do Tribunal da Inquisio em
mais um tribunal rgio, durante o perodo pombalino. Em boa parte da Europa,
desta bacia semntica de rupturas mticas semelhantes, surgiu a bruxomania,
pois o enfraquecimento mtico leva grupos humanos a uma ansiosa s vezes
desordenada vivncia do mito que est enfraquecendo, declinando ou
sendo hegemonizado por outrem. Esta vivncia intensifica os valores mticos, mas,
dialtica e contraditorialmente, antecede sua derrocada. A milenar crena em
bruxas foi seriamente abalada quando passou a onda da bruxomania. O medo
de bruxa iria tornar-se a reminiscncia festiva dos nossos dias.
Se no se pude falar em caa s bruxas no Imprio Portugus, pelo menos
um movimento de mentalidades inegvel: o medo das bruxas cedeu lugar
ao desprezo por elas, num requintado exerccio mental. Este movimento de
mentalidade envolveu o prprio Tribunal, que funcionava de forma muito distinta
dos nossos tribunais atuais. Ou seja, no se tratava de uma terceira instncia,
equilibradamente distante dos lados em conflito. No caso da Inquisio, os juzes
so parte do conflito, representam a instncia julgadora e, ao mesmo tempo,
portam-se como promotores. Esta simbiose foi outro dos fatores que levaram o
Tribunal do Santo Ofcio a entrar em derrocada junto com a crise de suas duas
principais fontes processuais: a acusao de criptojudasmo e a crena em prticas
mgicas. Levando este raciocnio adiante, concluiremos que o fim do Tribunal
esteve diretamente ligado ao seu desmitologizamento.
Note-se que a percepo deste movimento de mentalidade recoloca o prprio
status cientfico dos documentos processuais inquisitoriais, que passam, ento,
a ser fonte para o estudo possivelmente exclusivo da prpria mentalidade
inquisitorial e no (apenas?) da Histria social. A prpria Inquisio imputou
aos mgicos e feiticeiros os princpios maniquestas que ela criou. A intolerncia,
tida como civilizadora no sentido de associada busca de predomnio, tantas
vezes violento, da civilizao crist diante da heresia na Idade Mdia, tornou-se
infamante na segunda metade da Idade Moderna. No ambiente de medo obsidional
de que nos fala Delumeau30, perseguir a bruxa um ato de defesa e de resguardo
civilizatrio, mas, com a mentalidade de desprezo que ascendeu no sculo XVII, a
perseguio tornou-se infmia consciente ou, pelo menos, sabida.
Naquele momento em plena Idade Moderna , a Santa Inquisio j vinha
perdendo a sua original conexo com a funo social da f, tpica de sua origem
medieval. Ao opor-se aos hereges, a instituio realizava um preceito essencial que
30
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93
GEBARA, I. Trindade, palavra sobre coisas velhas e novas: uma perspectiva ecofeminista. So
Paulo: Paulinas, 1994, p. 31-32.
94
95
RESUMO
ABSTRACT
O
aggiornamento
diz
muito
da
contemporaneidade,
assim
como
o
Desencantamento do Mundo em Weber nos diz
da Civilizao do Renascimento e da Ilustrao
Iluminista como consolidadores sistmicos
da reduo da imagem a louca da casa,
sedimento de alienao e irracionalismos.
Buscamos um conceito ou noo que aponte a
longevidade histrica desta violncia mtica um
tanto heroica, uraniana e diairtia que exilou
os mitos da tradio em benefcio dos mitos do
aggiornamento, filhos da soberba do racionalismo
com o cientificismo... A noo metanoica que
propomos a de Desmitologizamento de Valores
[Na lngua portuguesa, a terminao mento
representa um ato realizado, terminado, o que
traduz bem a intencionalidade cultural dos atores
histricos que buscam mitigar o mito e paralisar
a imagem em nome da soberba racionalista.]
O termo desmitologizamento aponta seguro
para o movimento de mentalidade que
busca desconhecer o mito como fundamento
biopsicossocial, reduzindo suas narrativas a
meras classificaes psicides. O termo valores
weberiano. Refere-se aos conjuntos de valores
constelados pela cultura como basilares, em
geral asceses do tempo mundano, tantas vezes
afirmadores do poder das hierarquias terrenas
diante da magnitude deliberadamente ignorada
das hierarquias celestes. A Inquisio resume
em si aspectos determinantes deste processo
desmitologizador. Da nosso estudo sobre ela.
Keywords:
Inquisition;
Imaginary;
Dismythologizement; Disenchantment.
96
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had enjoyed on the basis of his status as an agent of the New Christians12. After
Pazs departure from Rome in February 1538 he is mentioned repeatedly in the
correspondence between the papal secretary Alessandro Farnese (1520-1589) and
the acting papal nuncios in Portugal, Girolamo Recanati Capodiferro (1502-1559)
and Luigi Lippomano (1500-1559) as il dottore, in which it makes clear that he was
active as an agent of theirs, something which earned him and his family the same
immunity as Paz had enjoyed, in a papal brief of January of that year13. Paz had left
the city under a cloud of suspicion, accused by the New Christians of Portugal he
was said to represent of extortion and corruption and in curial circles of the same
kinds of dubious practices. On leaving the city and heading on to Ferrara and later
to Venice he apparently published a pamphlet with libellous remarks against Diogo
Antnio, certainly seeing him as a rival, possibly a usurper, of his role as a New
Christian agent, something which earned Paz a condemnation to death in 1540 if
he set foot in the Papal States14.
Antnios known years in Rome during which he acted as a New Christian agent
(1538-1551) coincided with the first critical phase of the tribunal in Portugal. It
received several reversals in which representatives like him played a role though
ultimately, from 1547, it was to function, largely unhindered, from Rome. Though
the struggle against the tribunal itself had been lost it was still possible to intervene
in individual cases of people who were being menaced by inquisitorial justice as it
had been since the early years of the tribunal.
A New Christian lawyer in the Roman Curia and a suit from Rome
Like Paz before him, Antnio had made important inroads in curial circles,
pressing his case as a representative of the New Christians of Portugal under the
provisions for it which were sanctioned by Rome. Undoubtedly his legal and clerical
background contributed to giving him a legitimacy in the intricate curial world he
had to work in to attain his objectives of, in some way influencing papal policy
regarding the tribunal in Portugal and receiving concessions of freedom from
Inquisitorial prying for people back in Portugal. He could boast of a background
which Paz was not privy to and could put forward reasons behind his demands
which could be argued in the parlance of civil and canon law.
Proof of his influence in those curial circles, which reached the pope himself, is a
brief of 26 May 1540, in which Paul III, writing to Martinho de Portugal, the bishop
of Funchal (1532-1547), made it known that Diogo was demanding 3,200 ducats
for expenses incurred during years in Rome from three New Christian merchants
living in Lisbon: Jorge Lopes Bixorda, Nuno Henriques and Tomas Serrano15.
SILVA, Luiz Augusto Rebello da (ed.). Corpo Diplomtico Portuguez contendo os actos e relaes
polticas e diplomticas de Portugal con as diversas potencias do mundo desde o sculo XVI at os
nossos dias - vol. 3. Lisboa: Typographia da Acadmia Real das Sciencias, 1868, p. 220-222.
13
DE WITTE, La correspondence..., vol. 2, p. 271-451.
14
HERCULANO, Histria da origem e estabelecimento..., tomo 2, p. 236-237. NOVOA, The
Departure of Duarte de Paz..., p. 287-288.
15
The brief is published in: NOVOA, James William Nelson. The Vatican Secret Archive as a source
for the history of the activities of the agents of the Portuguese New Christians (1532-1549).
Miscelanea di Studi dellArchivio Segreto del Vaticano, Vatican City, n. 3, 2009, p. 192-193.
12
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Several months later, on October 15, 1540, another papal brief was drawn up, this
time directed to Joo III, informing him that the matter had been communicated to
the bishop of Funchal, asking him to see to it that justice was done and that the suit
be made public in the parishes of the three men16. The day a brief was made out to
the bishop of Lisbon, Fernando Meneses Coutinho e Vasconcelos (1480 ca-1564),
requesting him to intervene to obtain the settlement of Antonios just demands17.
On October 27, 1540 yet another brief was made out to the king of Portugal.
Apparently a representative of Antonios, Balthazar Gomes, had been entrusted
with presenting the suit in Portugal before bishop Martinho and had been arrested
by orders of Joo III. Paul III insisted on Gomes release from prison and that the
suit be carried through18.
The matter was resolved before Sebastiano Pighino (1500-1553), an auditor
of the Apostolic Chamber, in whose home a document was drawn up on 20 April
1541, which oversaw the terms by which Diogo Antnio made peace with the
three New Christian merchants. It was agreed that they, and others who were not
specified, should pay up to 10,000 ducats for all of Diogos Roman expenses.
Additional signatories were Alessandro Cesarini, a cardinal and the bishop of
Albano (d. 1542); a Portuguese New Christian layman named Diogo Fernandes
Netto, who is recognized in the document as an agent of the New Christians and
of the merchants concerned; a notary; and two witnesses19. Alexandre Herculano
mistakenly surmised that the Diogo Fernandes Netto replaced Diogo Antnio upon
the latters appearance on the scene in Rome20. Fernandes Netto, a merchant, who
had grown up in Madeira and left for Rome at some point between the end of
1540 and the beginning of 1541, to represent the three New Christian merchants
in their legal spate with Diogo Antnio. Two years later he was the subject of a
trial for defamation in the tribunal of the Governor of Rome on account of secret
correspondence between himself and a New Christian in Portugal in which he
implicated, among others, the papal nuncio Luigi Lippomano (1500-1559) who
had left for Portugal in the Spring of 1542, in accepting money in exchange for
concessions to New Christians during his diplomatic mission there. The trial won
him the enmity of the New Christians of Rome who (Diogo Antnio among them)
testified against Fernandes Netto and resulted in his imprisonment and banishment
from Rome in November 154321.
That players so highly placed in the curial world that Diogo Antnio was
manoeuvring in would take an active interest in the matter is an indication of his
importance in those circles, an indication of how he had successfully used his status
as a New Christian agent to his advantage. Consecrated as a procurator of the
nao in Rome, as their defender in the face of Inquisitorial justice, Antnio could
flaunt his role as a bona fide representative, someone with a mission, almost akin
The brief is published as document 1 in the appendix.
The brief is published as document 2 in the appendix.
18
The brief is published as document 3 in the appendix.
19
The brief is published as document 4 in the appendix.
20
HERCULANO, Histria do estabelecimento..., tomo 2, p. 280.
21
The trial is published in: NOVOA, James William Nelson. The Trial of Diogo Fernandes Neto by
the Tribunale del governatore di Roma. Hispania Judaica, Jerusalem, n. 7, 2010, p. 277-316.
16
17
100
to quasi diplomatic status, working in their collective and individual interests. The
successful outcome of the suit against the three New Christians provoked bitter
exchanges between Portugal and Rome, involving figures of the highest levels in
its resolution. It obviously solidified his claims to being one of the veritable New
Christian agents present in Rome, during those decisive years for the implantation
of the tribunal in Portugal.
Diogo Antnio as a defender of kin
Diogo Antnio was joined in Rome by a brother, Hector Antnio, who, in 1540,
managed to escape Portugal where he joined the cleric in his efforts against the
Inquisition in Portugal, bringing fresh news with him about the abuses which were
being perpetrated by the tribunal22. His brother was not the only family member
whose life was in some way affected by the tribunal. His father, Antnio Fernandes
was apparently harrassed, in some way, by the tribunal the following year, in
retaliation for his two sons work in Rome along with one Diogo Rodrigues, a fellow
inhabitant of Coimbra. A certain Antonio da Costa, the vicar of the church of
Pedrogo Grande, took to his defense, doing what he could to ensure that the matter
was referred to Rome, something which earned Costa a trial by the Inquisition of
Lisbon which began on 11 November 1541 and only ended on 7 July 154323.
As in the case of Diogo Antnio legal squabble with the three New Christian
merchants, a series of papal briefs were made out which addressed the matter.
Thus, on 18 February 1542 Paul III sent one to the vicar of the bishop of Viseu,
stating that it had been brought to his attention that Fernandes, Rodrigues and
da Costa had been unjustly disturbed by the Inquisition and that they were not to
be subject to Inquisitorial prying due to the two brothers status as agents of the
New Christians in Rome24. This was followed by another, on 22 April 1542, this
time addressed to the Agostinho Ribeiro, the bishop of Lamego (1540-1549) which
insisted on Diogo Antnios status as an agent of the New Christians in Rome which
was also shared by his kin and extended family25. Another, dated 27 April 1542 was
addressed to the bishop of Portugal, reiterating the terms of the two previous briefs,
insisting that their contents be enforced in Portugal26. A subsequent brief, made out
to the bishop of Methone, Luigi Lippomano who had been named nuncio in March
1542, left Rome in June of that year, but only reached the Portugal at the beginning
of 1543 as the scandal caused by the allegations in Diogo Fernandes Nettos letter
provoked the refusal of Joo III to allow him to enter the kingdom27.
The whole matter dragged on for years, with Diogo Antnio taking an active
interest in the outcome in his capacity as a New Christian representative in Rome.
He continued to demand that his father be freed as part of the exemption which
SILVA, Corpo Diplomtico Portuguez..., vol. 4, p. 271-273.
The trial began on 11 November 1541. Inquisio de Lisboa, processo 7814, Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, Lisboa.
24
The brief is published as document 5 in the documentary appendix.
25
The brief is published as document 6 in the documentary appendix.
26
The brief is published as document 7 in the documentary appendix.
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27
101
was his as such an agent. It situation also continued to occupy the correspondence
between the papal secretary and Lippomano who regularly pressed the Portuguese
court to have Romes demands on Antnios behalf be met. It was only resolved in
1544 when Joo III finally acquiesced, expelling Antnio Fernandes from Portugal
from which he went to Spain28. Antnio himself laboured on, continuing on in his
role of New Christian agent, one of several, by the decade of the 1540s, whose
presence was recognized by Rome29. He was later confirmed as an agent, with the
full privileges incumbent upon that role in a papal brief by pope Julius III (15491555) on March 25, 155130.
As in the suit launched against the three New Christian merchants Diogo
Antnios efforts in favour of his father evince the degree to which he had made
important inroads in the circles of the Roman Curia thanks to his status as a New
Christian agent. It was ostensibly his raison dtre in Rome, the role he presented
himself in, sanctioned by the terms of the papal document of 1535. It gave him an
official title and role, bestowing on him responsabilities which were paramount to
that of a quasi diplomat. He could flaunt the status at will, obtaining advantages
for himself in Rome where his presence was official and he was obviously known in
Portugal, much to the chagrin of the court.
Both instances evoked here and the related documents, also reveal the double
facet of his role there. On the one hand it entitled him to charge for his services, as
he was actively lobbying for advantages in his capacity as a representative of New
Christians back in Portugal. On the other hand as such an agent he was entitled to
a series of exemptions from the jurisdiction of the Inquisition which was beginning
to act in earnest in the kingdom, exemptions which extended to his family. As
their advocate in Rome he was able to demand that these privileges be respected
however complicated this might be as is evinced in the episode of his father. He
was at once then the public face of the nao, an individual who presented their
collective and individual demands in Rome against the designs of the Portuguese
court and a representative of his kin, on whose behalf he was advocating as well.
Both aspects were complimentary and overlapped. As is displayed in the case of
Diogo Antnio presented here, the New Christian agents present in Rome could
often be moved to act by reasons of economic interest, a sense of general loyalty
or responsibility towards their shared interests as members of the nao and in the
defense of their immediate and extended families.
Rome, as the seat of the Catholic church and a European court in its own right,
gave them a unique base of operations. It allowed these individuals to pursue a
myriad of possible professional side interests along with their official sanctioned
role as agents there. It also gave them an unparalleled projection, as sanctioned
representative of the New Christians of Portugal. Men like Diogo Antnio, some
DE WITTE, La correspondence...vol. 2, 451-452.
On other representatives see, for example: NOVOA, James William Nelson. I procuratori dei
cristiani nuovi a Roma e i retroscena dei privilegi di Cosimo de Medici di 1549. Cadernos de
Estudos Sefarditas, Lisboa, n. 10-11, 2011, p. 281-296.
30
LEAL, Jos da Silva Mendes (ed.). Corpo Diplomtico Portuguez contendo os actos e relaes
polticas e diplomticas de Portugal con as diversas potencias do mundo - vol. 7. Lisboa: Typographia
da Acadmia Real das Sciencias, 1884, p. 09-10.
28
29
102
of whose names are known to us, most of whose are not, gave the New Christians
of Portugal a place on the European stage which they did not have before. Their
presence there, where they figured as veritable agents of a what had been, before
them, a group whose confines were basically limited to Portugal made of them a
group which figured in European diplomacy at some of its highest levels, and not
only between Portugal and Rome. It was, at least in part, moved by economic and
collective interests in addition to the desire to safeguard ties of kinship that, in part,
the nao received a universal projection in the Early Modern period.
DOCUMENTARY APPENDIX
Document 1
Carissimo in Christo filio nostro Iohanni Portugallie et Algarbiorum regi illustri.
Paulus papa iii
Carissime in Christo fili noster, salutem, etc.
Dudum pro parte dilecti filii Didaci Antonii clerici Columbriensis, utriusque
iuris doctoris, nobis exposito quod, licet alias ipse in Romana curia diversa negotia
et causas noviter ad Christi fidem conversorum tui regni Portugallie fideliter et
laudabiliter pertractans non mediocrem pecuniarum summam ad tria millia et
ducentos auri ascendentem a diversis banchariis dicte curie recepisset et in eisdem
negotiis et causis exposuisset, nichilominus dicti sic noviter conversi ingratitudinis
et avaritie vicio obcecati non solum litteris cambiorum pro satisfactione dictarum
pecuniarum eis directis tempore solutionis adveniente non satisfecerant, verum
etiam super non solvendis dictis pecuniis quidam Georgius Lopez Vixerda, Nunius
Henriquez et Thomas Serrano ex dictis noviter conversis eidem Didaco ad
solutionem dictarum pecuniarum obligati litem contra dictum Didacum Antonium
per certos eorum procuratores seu sindicos movere non erubuerunt. Et propterea
prefatus Didacus Antonius coram dilecto filio curie causarum Camere apostolice
generali auditore et illius locumtenente contra dictos Georgium Lopez Vixerda,
Nunium Henriquez et Thomam Serrano in contumaciam procedendo, censuras et
mandatum executivum obtinuerat, prout in publicis documentis desuper confectis
dicebatur plenius contineri. Nos, ut dictus Didacus Antonius in dictam executionem eo
celerius consequeretur, quo desuper nostra auctoritas interveniret, supplicationibus
nobis tunc porrectis inclinati venerabili fratri Martino archiepiscopo Funchalensi
per alias nostras in forma brevis litteras commisimus et mandavimus quatenus ad
censurarum et mandati predictorum executionem iuxta dictorum documentorum
continentiam et tenorem auctoritate nostra procederet, faciens presertim in se esset
ut dicto Didaco Antonio de suo credito cum effectu satisfieri, prout in eisdem litteris
plenius continetur. Cum autem postmodum, sicut dictus Didacus Antonius nobis
nuper exponi fecit, prefatus auditor sive eius locumtenens super negocio principali
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
103
Antonius nobis humiliter supplicari fecit ut pro sua indepnitate super dicti interdicti
observatione ad hoc, ut alii, qui ex hoc in divinis patirentur, prefatos Georgium,
Nunium et Thomam ad parendum mandatis apostolicis inducant auctoritatem
nostram interponere de apostolica benignitate dignaremur. Nos igitur tam ut iustitie
locus sit quam ut huius sancte Sedis auctoritas secuetur, quantum in nobis est
providere volens tibi sub indignationis nostre pena per presentes committimus et
mandamus ut omnem operam et diligentiam adhibeas quod dictum interdictum in
ecclesiis, in quibus appositum est, omnino servetur ad hoc, quod dictus Didacus
Antonius suum consequetur et scandalus apud dictos christifideles cesset. Non
obstantibus quibuscumque, etc.
Dat. Rome, 16 octobris 1540.
(Arm. XLI, 19, epist. 917, fols. 134 r-135 r. Archivio Segreto Vaticano.)
Document 3
Charissimo in Christo filio nostro Iohanni Portugallie et Algarbiorum regi illustri.
Paulus papa iii
Charissime in Christo fili noster, salutem, etc.
Intelleximus quod, postquam nos per alias quasdam nostras in forma brevis litteras
serenitatem tuam rogandam duximus ut dilecto filio Didaco Antonio utriusque iuris
doctori ad hoc, ut contra dilectos etiam filios Georgium Lopez Vixerda, Nunium
Henriquez et Thomam Serrano mercatores Ulixbonenses executionem iuxta
tenorem brachii secularis contra eos super summam trium millium et ducentorum
ducatorum in negociis noviter ad christifidem tui regni conversorum de dictorum
Georgii, Nunii et Thome commissione in Romana curia per dictum Didacum
expositorum per dilectum filium curie camere apostolice generalem auditorem
decreti obtinere posset, tuum favorem impartiri velles rogaveramus. Dilectus etiam
filius Balthasar Gomez eiusdem Didaci procurator ex eo, quod contra prefatos
Georgium, Nunium et Thomam executionem dicti brachii secularis coram venerabili
fratre Martino archiepiscopo Funchalensi, cui etiam per alias nostras in forma brevis
litteras eandem executionem commiseramus, petierat, nonnullorum eiusdem
serenitatis tue ministrorum iussu captus et carceribus mancipatus extitit. Quod certe
non multum differat ab eo, quod maiores tui et ipsamet maiestas tua in huiusmodi
casibus facere censuevistis, nullo modo adduci possemus ut de mandato aut scientia
tua factum esse credamus. Nos itaque spe freti has ad eandem auctoritatem tuam
scribendas duximus ipsum enixe rogantes et in Domino requirens ut prefatum
Balthasarem Gomez in dicti Didaci et sue iusticie preiudicium ac in nostrum et
huius sancte Sedis contemptum non solum dimitti et liberari mandes et facias, sed
etiam eundem Balthasarem seu alios quoscumque dicti Didaci Antonii procuratores,
qui executionem predictam suo nomine petierint et procuraverint eandemque
executionem ita per tuos ministros teneri ac favoribus prosequi facias ut prefatus
Didacus Antonius quod sibi debetur recuperare valeat. Erit autem hoc tali principe
qualis maiestas tua dignum et nobis certe gratissimum.
Dat. Rome, 27 octobris 1540.
(Arm. XLI, 19, epist. 932. fol. 174. Archivio Secreto Vaticano.)
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
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Document 4
Die XXVIII Aprilis MDXLI
Constitutus coram reverendo patre domino Sebastiano Pighino iuris utriusque
doctore reverendi patris domini curie causarum Camere Apostolice generalis auditoris
locumtenente magnificus dominus Didacus Antonius doctor commendatarius Beate
Marie de Roncisvalle in Portugallia, ad cuius instantiam vigore specialis commissionis
Sancti Domini Nostri per acta mei notarii lis et causa contra dominos Georgium
Lopez Bisorda, Nunium Henriquez et Thomam Sarrano et forsan alios de populo
novorum christianorum dicti regni Portugallie ipsumque populum de et super
mercede, salario et premio ipsi commendatori, ut pretendit, pro negociis et rebus
pro dicto populo et dictis particularibus personis huiusque factis gestis et procuratis
debitis et ad scuta decem millia per eundem estimatis mota et coram eodem domino
auditore versa ac in qua ad nonnullos actus citra cause conclusionem processum
fuit. Volens dictum populum novorum christianorum et illius particulares personas
predictas favore privilegii, et imprimis charitate et amore Christi ac deinde intuitu
reverendissimi et illustrissimi domini Alexandri de Cesarinis episcopi Albanensis
Sancte Romane Ecclesie et illius mediante persona ac etiam quia de cetero in causis
et negociis ipsius populi et particularium personarum predictarum se intromittere,
impedire nec immiscere intendit aliisque dignis respectibus motus sponte etc. Liti
iuri et cause supradictis qualitercumque motis et instructis ac quas ratione dictorum
salarii, mercedis et premii contra dictum populum et illius particulares personas
predictas movere posset, cessit et dictum salarium, mercedem et premium ad dicta
scuta decem millia, ut premittitur, estimata et que omnino via iuris consequi volebat
eidem populo et particularibus personis gratiose ac ex sua liberalitate remisit de
eisdemque decem millibus scutis et toto salario, mercede et premio supradictis eidem
populo et particularibus personis supradictis absentibus domino Didaco Fernandez
Nepto ipsius populi et particularium personarum predictarum agente presente et
una mecum notario publico, uti publica et autentica persona, pro eisdem populo
et particularis personis stipulantibus, acceptantibus et recipientibus specialem et
generalem ac specialissimam et generalissimam fecit quietantiam quam ad cogitata
et incogitata dicta de causa extendi et ampliari voluit. Promittens ulterius in negociis,
causis et rebus dictorum populi et novorum christianorum deinceps nullo umquam
tempore se intromittere, impedire nec immiscere nec pro eis directe vel indirecte
quovis quesito colore aut ingenio procurare neque sollicitare quinimmo ab eorum
negociis et causis omnino se ipsum retrahere et abstinere faciendo quietantiam
generalem de omnibus et singulis per eum quomodolibet hactenus pretensis tam
ratione expensarum quam aliis quibuscumque cogitatis et incogitatis usque in
presentem diem, cum facultate dictam quietantiam amplissime extendendi totiens
quotiens per dictum Commendatorem aliquid pretenderetur intra predictam
diem cum clausulis oportunis et consuetis et etiam secundum consilium sapientis
dicti domini Didaci Fernandez extendendi. Hanc autem cessionem, quietantiam,
promissionem et omnia supradicta dictus commendator fecit ex causis supradictis ac
quia de octingentis ducatis in dictum reverendissimum cardinalem dicti commendator
et Didacus asseruerunt factum fuisse compromissum. Pro quibus omnibus et
singulis sic ut prefertur inviolabiliter tenendis et observandis dictus commendator
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111
litteras per tuos notarios et officiales exequi et executioni debite demandari facias. In
hoc enim et iusticie et tui officii debito satisfacies et nobis etiam, qui eodem iusticie
zelo monemur, rem admodum gratam et acceptam efficies. Non intendimus tamen
propter hoc iurisdictioni prefato episcopo Lamacensi a nobis per dictas litteras, ut
premittitur, attribute in aliquo preiudicare; nec etiam te onere iurisdictionis causarum
in singulis litteris predictis contentarum gravare. Dat. Rome, 27 aprilis 1542, anno
8.
Vidi de mandato sanctissimi domini nostri et potest expediri.
P. Pa., cardinalis Parisius.
Blos.
(Arm. XLI, n. 24, fol. 116. Archivio Secreto Vaticano.)
Document 8
Romae, apud S. M., 1542 iulii 22
Venerabili fratri Aloysio, episcopo Metonien., ad charissimum in Christo filium
nostrum Iohannem, Portugalie et Algarbiorum regem illustrem, nostro et Apostolice
Sedis nuntio in regnis Portugallie.
Paulus papa III
Venerabilis frater salutem etc. Superioribus mensibus plures nostras in forma
brevis litteras tuitionem et defensionem dilecti Didaci Antonii, militis militie beate
Marie de Roncesvalles, eiusque genitorum, consanguineorum et affinium et aliarum
tunc nominatarum personarum concernentes tam bo. me. Didaco, archiepiscopo
Bracharen., tunc in humanis agenti, quam dilecto filio officiali Disen., et postremo
venerabili fratri nostro episcopo Lamacen., direximus et deinde, postquam
dilectus filius curie causarum Camere Apostolice generalis auditor in vim specialis
commissionis nostre inquisitoribus heretice pravitatis in diocesi Colimbrien. et
Egitanien. deputatis, qui dilectum filium Antonium de Costa, perpetuum vicarium
parrochialis ecclesie do Pedrogam, Colimbrien. dioc., subexecutorem quarundam
litterarum apostolicarum in favorem predicti Didaci Antonii emanatarum ad ipsarum
litterarum executionem protendentem indebite molestabant, ne ipsum Antonium
molestarent per eius inhibitorias litteras inhibuerat, cupientes tam nostras quam
auditoris litteras huiusmodi earum effectum sortiri, venerabilem fratrem episcopum
Portugalen., de quo ob auctoritatem, qua in dicto regno pollet, confidebamus, prout
confidimus, per alias nostras etiam in forma brevis litteras hortati fuimus, ut Didaco
Antonio et Antonio predictis necnon aliis in predictis litteris nominatis huiusmodi
ipsarumque litterarum executoribus et sub executoribus assisteret et eos molestari
non permitteret et, si opus esset, singulas litteras predictas per eius notarios exequi
faceret, prout in singulis nostris litteris predictis plenius continetur. Cum autem te
postmodum ad clarissimum in Christo filium nostrum Iohannem, Portugallie et
Algarbiorum regem illustrem, nostrum et Apostolice Sedis nuntium destinaverimus,
nos etiam te, de cuius probitate et doctrina nobis notis plurimum in Domino
confidimus, Didaco Antonio et genitori ac Antonio et aliis nominatis predictis in
premissis adesse volentes tibi in virtute sancte obedientie precipiendo mandamus,
ut omnia illa, que pro litteris huiusmodi exequendis necessaria vel opportuna erint,
RESUMO
ABSTRACT
113
115
Cf.: GNERRE, Maria Lucia Abaurre. Viajantes, ndios e jesutas: encontros e desencontros no Gro
Par e Maranho do sculo XVIII. Joo Pessoa: Ed. Universitria/ UFPB, 2010.
Podemos citar importantes trabalhos a este respeito publicados no Brasil, em Portugal e na Espanha
desde meados do sculo XX como: LEITE, Serafim S. J. (org.). Novas cartas jesuticas (de Nbrega
a Vieira). So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940; IPARRAGUIRRE, Igncio & DALMASES,
Candido de (orgs.). Obras completas de San Ignacio de Loyola. Edicion Manual. Madrid: La
Editorial Catolica, 1952; NEVES, Lus Felipe Baeta. O combate dos Soldados de Cristo na Terra
dos Papagaios. Rio de Janeiro: Forense, 1978. Muitos outros trabalhos e pesquisas acadmicas
vieram depois, como: SABEH, Luiz Antonio. Colonizao salvfica: os jesutas e a Coroa portuguesa
na construo do Brasil (1549-1580). Dissertao (Mestrado em Histria). Universidade Federal do
Paran. Curitiba, 2009.
SABEH, Colonizao salvfica..., p. 33.
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118
era o centro da dominao colonial em 1510 e a rota martima era protegida por
fortes que comandavam o canal de Moambique, desde a baa Delagoa at a atual
Tanznia11. Embora Portugal detivesse superioridade blica e de frota e tivesse
conquistado os portos rabes e sualis, tais fatores se mostraram insuficientes para a
administrao da regio. Nesse contexto, Moambique deveria se tornar o quartel
geral na regio12.
No contexto pr-jesutico em Moambique, o domnio portugus se construiu a
partir de trs pilares ao longo do sculo XV: o soldado, e com ele o comerciante e,
entre estes dois, o missionrio, elemento conciliador e moderador da aspereza de
um contra a ganncia do outro. Todavia, os primeiros momentos da colonizao
portuguesa foram repletos de dificuldades, posto que os colonos eram pessoas
atiradas para frica sem a mnima noo do que iam fazer, sem a mnima ideia do
meio em que tinham de passar a viver, dos contratempos que tinham de vencer13.
Se no princpio Moambique funcionou praticamente como uma paragem
segura, como uma base de apoio quase obrigatria no caminho para o Oriente,
a posteriori, passa a adquirir importncia com incluso de guarnies, fortalezas,
para que a passagem fosse segura14. A presena dos chefes rabes na costa
moambicana tornava o espao bastante ameaador presena portuguesa,
contudo, a ocupao e consolidao dos portugueses em Moambique possua
objetivos claros: criar para os comerciantes das ndias um ancoradouro seguro e
favorecer as trocas com as povoaes do interior, as quais gravitam em torno do
prestigioso do Monomutapa, que, diz-se, possuir as fabulosas minas de Ofir do rei
Salomo15.
Em 3 de novembro de 1534 o papa Paulo III assina a Aequum Reputamus,
que origina a diocese de Goa abarcando imenso territrio, desde a diocese de
So Tome at China, inclusos todos territrios da frica Oriental. Entre agosto de
1541 e maro de 1542, Francisco Xavier no conseguiu desenvolver um trabalho
relevante, diferentemente dos dominicanos que chegaram em junho de 1548 e
obtiveram grande sucesso entre os indgenas. Entretanto, de modo distinto dos
franciscanos e dominicanos, os jesutas difundiram o evangelho entre os povos
distantes do centro da Igreja16.
A missionao jesutica em Moambique normalmente compreendida em trs
momentos: o primeiro entre 1560 e 1572, o segundo se deu no perodo de 1610
a 1759 e o terceiro entre 1881 e 191117. No iremos discutir esse ltimo momento
JACKSON-HAIGHT, 1967 & ELPHICK, 1977, apud DENONN, D. A frica austral. In: OGOT,
Bethwell Allan (org.). frica do sculo XVI ao XVII. Traduo MEC Centro de Estudos AfroBrasileiros da Universidade Federal de So Carlos. So Paulo: Cortez; Braslia: UNESCO, 2011
(Coleo histria geral da frica, vol.5), p. 821.
12
DENONN, A frica austral, p.821-823.
13
BOLETIM GERAL DAS COLNIAS, 1940, p. 10, apud PEDRO Eusbio Andr. A Missionao
Jesuta em Moambique: As Relaes Com a Sociedade e com o Poder Poltico em Tete, 19412011. Dissertao (Mestrado em Histria, Relaes Internacionais e Cooperao). Universidade do
Porto. Porto, 2013, p. 42.
14
PEDRO, A Missionao Jesuta..., p. 43.
15
ALMEIDA, 1962, p. 75-77, apud PEDRO, A Missionao Jesuta..., p. 43.
16
PEDRO, A Missionao Jesuta..., p. 43.
17
Cf. PEDRO, A Missionao Jesuta...
11
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120
121
122
converso dos jesutas. E justamente a isto, ele se dedicaria nos anos seguintes:
Com muita caridade e amor da gente desta terra sero
recebidos os que da nossa Companhia vierem. Ho-de
ser muito importunados para muitas confisses, Exerccios
Espirituais e pregaes. Pensai que encontraro muita
messe. H j mais de sessenta rapazes, naturais da terra,
dos quais est encarregado um Padre Reverendo. Estes,
neste Vero, iro habitar no colgio. Entre eles, h muitos,
e quase todos, que sabem ler e rezar o ofcio e, muitos
deles, escrever. Esto j capazes de estudar gramtica.
Esta informao vos dou, para que da provejais quem
aqui se ocupe s em ensinar gramtica, que ter muita
ocupao.28
Aqui vemos a estratgia missionria jesutica com suas feies prprias, em
pleno funcionamento no territrio Indiano. Xavier descreve a educao atravs
da gramtica, e o grupo de mais de sessenta rapazes naturais da terra (ou seja,
indianos) e que j praticavam os famosos exerccios espirituais. Sem dvida, tais
exerccios se configuravam como algo familiar dentro de sua prpria cultura e
religio de origem. Afinal, em territrio indiano, exerccios espirituais de diversos
tipos vinham sendo cultivados desde o perodo das upanisads, textos sagrados que
remetem ao primeiro milnio antes de Cristo.
Missionao Jesuta em Moambique e Goa:
um primeiro olhar comparativo acerca das estratgias missionrias
Embora se configurem como regies geograficamente distantes, e separadas
pelo mar da Arbia, Goa e Moambique passaram a compartilhar elementos
culturais e religiosos comuns desde o sculo XVI. E este compartilhamento passa,
sem dvida, pelas estratgias comuns de Jesutas e suas formas de missionao
e relacionamento com as populaes nativas. Assim, tanto a coroa portuguesa
colabora com o estabelecimento deste modelo missionrio, quanto os Jesutas
colaboram decisivamente para a consolidao deste imprio ultramarino portugus
no sculo XVI. Tal colaborao perdura at o sculo XVIII, quando a legislao
pombalina acaba definitivamente com qualquer colaborao jesutica com a coroa
portuguesa.
Porm, nesse interstcio de mais de duzentos anos, o que se nota um conjunto
de formas de converso e relacionamento com as populaes locais caracterstico
dos Jesutas, que acaba conectando as populaes da costa oriental da frica (em
Moambique), com aquelas da costa ocidental da ndia (em Goa). Forma-se a uma
rota jesutica de carter indo-afro-portugus, na qual so compartilhados modos de
converso, lnguas e culturas29.
28
29
123
RESUMO
ABSTRACT
Keywords: Jesuit
Mozambique; Goa.
Missionary
Missionrias
124
Strategies;
CRTICA OU HERESIA?
A TRANSFORMAO JURDICO-TEOLGICA
DO ATO DE CRITICAR O RETO MINISTRIO
DO SANTO OFCIO (1605-1681)
Yllan de Mattos1
[...] e porque no santo tribunal da Inquisio h maior
Con el rey y la inquisicin chitn! (ou seja, com o rei e a inquisio, calem!)
A advertncia foi ouvida pelo cnego e estudante da Faculdade de Cnones,
em Coimbra, Martim Monteiro e Paim, no ano de 1657. Ele havia retrucado, na
presena de um comissrio do Santo Ofcio, que fora um desaforo desavergonhado
(...) [a suspenso do] edital das confiscaes, havendo quatro dias que a rainha
ficava viva2. Paim falava abertamente em defesa do alvar de 06 de fevereiro
de 1649 promulgado por dom Joo IV sob a influncia de Vieira que isentava
os capitais da recm criada Companhia do Brasil do confisco do Santo Ofcio,
sobretudo queles capitais ligados aos cristos-novos3. Na poca, o debate azedou
ainda mais a relao entre o inquisidor-geral, e por consequncia o papa, com o
monarca que lutava para ter sua legitimidade reconhecida pela Santa S.
O assunto, defendido com clera pelos inquisidores, no havia esfriado com o
tempo. Talvez por isso, na ocasio, o comissrio tenha respondido que os senhores
inquisidores faziam bem feito, pois davam execuo as ordens de Sua Santidade
e que mais palavras deste tom o podiam levar mesa. Ouvindo essas e outras
repreenses, o cnego esbravejou que no tinha dever com os inquisidores, e
quem eram eles?... alm de uns nabos, ou abboras, afinal ele no era nem
judeu, muito menos inimigo.
Paim fora denunciado por no se calar ante a Inquisio. Lanou crtica ou
1
125
talvez tenha mesmo discutido com seus iguais a poltica portuguesa destes tempos.
O fato que este provrbio foi amplamente utilizado contra aqueles que diziam mal
dessas instituies. Charles Boxer conta-nos que foi muitssimo citado na pennsula
ibrica, sendo advertncia comum aos boquirrotos4. Todavia, esta mxima no
regrava o que no existia: algumas pessoas guinaram vozes e manifestos em
contrrio aos procedimentos do Santo Ofcio. Gritos e murmrios ganhavam
uniformidades e muitos afirmaram que o motor do Santo Ofcio era os cruzados
e bens que iam para o fisco inquisitorial. A salvao de suas almas, completavam,
era questo de menos importncia.
Ainda no perodo da Unio Ibrica (1580-1640), em 1602, um cavaleiro e
cristo-novo portugus, Gasto de Abrunhosa, levou ao conhecimento do papa
Clemente VIII, em Roma, crticas vorazes ao Santo Ofcio, em particular contra o
uso das testemunhas singulares5. Abrunhosa desafiava o Santo Ofcio no campo
do direito: exigia a justia, no misericrdia, reivindicando assim a distncia entre
si e os cristos-novos que invocavam o perdo-geral, como apontou Giuseppe
Marcocci6. O tom das crticas est averbado no Memorial que Abrunhosa havia
entregue ao papa e, doravante, fora traduzido para os cardeais da Congregao
do Santo Ofcio Romano, no qual propunha o remdio contra o estilo rigoroso
da Inquisio de Portugal7. Segundo seu juzo, em Portugal, os inquisidores
praticavam a discriminao dos cristos-novos que carregavam culpa por terem
uma longnqua ascendncia judaica. Afirma ele: com o tempo se descobre que
muitos cristos inocentes passaram alguns de priso e perda da honra e bens,
alm de, em alguns, se encontrou e provou que disseram ser hereges sem s-los8.
At aqui, sua letra se assemelha muito com os diversos memoriais escritos pelos
cristos-novos. Porm, as crticas de Abrunhosa tentavam manter mxima distncia
da problemtica judaica, ao ponto de declarar que dificilmente afastariam-se da
formosa e suave f de cristo para tomar cega a fabulosa e ridcula lei antiga,
a qual [] seguida [pel]a mais infame e vil gente que possa haver no mundo, pois
no existia infmia igual ao nome de judeu em Portugal e no existia memria
de quem o tal nome pudesse ensinar9.
Outro ponto interessante do Memorial residia na crtica ao uso das testemunhas
singulares, no qual Abrunhosa avocava seu conhecimento do direito como norte
para o combate. Este pargrafo logo ganhou a ateno do papa que no aprovava
seu uso e do duque de Sessa, embaixador espanhol em Roma, que dava conta a
4
5
6
7
8
9
BOXER, Charles. A igreja e a expanso Ibrica. Lisboa: Edies 70, 1978, p. 106.
O caso foi estudado de forma magistral em: MARCOCCI, Giuseppe. A Inquisio portuguesa sob
acusao: o protesto internacional de Gasto de Abrunhosa. Cadernos de Estudos Sefarditas, vol.
7, 2007. Ver tambm do mesmo autor: Questioni di stile. Gastao de Abrunhosa contro lInquisizione
portoghese (1602-1607). Studi storici: rivista trimestrale dellIstituto Gramsci, vol. 48, n. 3, 2007,
p. 779-815.
MARCOCCI, A Inquisio portuguesa..., p. 49.
Archivio della Congregazione per la Dottrina della Fede (ACDF-Roma), Stanza Storica, TT 2-l, fl.
812. Seguindo as pistas de Marcocci, encontramos o Memorial de Abrunhosa que ocupa as folhas
812 a 826.
ACDF-Roma, Stanza Storica, TT 2-l, fl. 813.
ACDF-Roma, Stanza Storica, TT 2-l, fl. 822-822v.
126
Filipe III, informando-o que somente sobre este ponto se trataria na Congregao10.
Balizando seu argumento em diversos juristas do direito cannico e na comparao
com direito cvel, Abrunhosa apostou todas as fichas nas diferenas entre os estilos
das Inquisies romanas e espanholas, apontando as deformaes do mtodo
exclusivo do Tribunal portugus. Assim, embora reconhecesse que existiam hereges
convictos, sua pena chegava a seguinte concluso: quase todos os queimados
por hereges em Portugal dizem at a ltima hora que morrem inocentes e que
sempre foram e so cristos, todavia, no obstante terem negado sempre o que
lhe acusavam, se tivessem dito que foram hereges e tivessem culpado os de que
sabiam o nome, no teriam sido queimados11.
Por estes e outros escritos, Abrunhosa incomodou bastante os inquisidores
portugueses. Entretanto, questes polticas aliadas aos excessos de um homem que
queria fazer valer rpido suas premissas o lanaram em desgraa, sendo emitida,
pela Inquisio portuguesa, uma ordem para que fosse expulso de Roma em abril
de 160312. Na altura, o franciscano Antnio de Abrunhosa, irmo de Gasto que
o acompanhara em Roma, decidira tomar o rumo de Portugal. L, a Inquisio o
esperava com acusaes crticas ao Santo Ofcio13.
Estes processos sugerem que a Inquisio adotava uma postura extremamente
poltica, perseguindo seus crticos e parentes mais prximos. Porm, criticar o
reto ministrio do Santo Ofcio era crime que constava no regimento. Este delito,
contudo, no era privilgio daqueles que tinham recurso para ir a Roma ou Madri
expor suas palavras. Certo Andr Lopes, sujeito conhecido como o Harpa, era
cristo-velho de setenta anos e trabalhava como tropeiro e mascate de l em vora.
Sua alcunha devia-se ao costume de tocar harpa nas festas da igreja. Seu pai era
membro do conselho municipal em Tomar e, por isso, foi homem de privilgios.
Sua famlia, mulher e filhos, foram processados e sentenciados pela Inquisio por
criptojudasmo, sendo, talvez, este o motivo de suas criticas ao Tribunal e de elogio
aos cristos-novos. Deixamos ao leitor o julgamento. Lopes fora denunciado ao
Santo Ofcio, em 1623, pelos seus comentrios escandalosos em relao ao Tribunal
e por manter relaes amistosas demais com os cristos-novos. Certa vez, insistiu
a um amigo que algumas pessoas entram neste Santo Ofcio inocentes e saem
de l judeus; em seguida, ao ver sair um auto da f, disse que seus condenados
eram mrtires e santos, defendendo mesmo que temia os autos-de-f, pois poderia
cair algum raio dos cus sendo aquelas pessoas mrtires semelhana do que
ocorrera no tormento de Santa Brbara.
Apud: MARCOCCI, A Inquisio portuguesa..., p. 57.
ACDF-Roma, Stanza Storica, TT 2-l, fl. 814v-815. Deve-se a Giuseppe Marcocci a escolha deste
trecho. MARCOCCI, A Inquisio portuguesa..., p. 60.
12
A histria de Gasto Abrunhosa no parou por aqui. Alis, ele permaneceu com seus reclames
em Roma, como uma splica ao Papa (que ocupa os flios 830-839v) at quando fora preso em
outubro de 1604 pela Congregao romana para dar conta de seus escritos, sobretudo quanto
de sua acusao de que os inquisidores lusos constrangiam e coagiam as falsidades dos
depoimentos. Em dezembro, pouco mais de um ms diante dos cardeais inquisidores, recebeu
licena para ir Castela. No ms seguinte, j em 1605, seus parentes foram libertados pelo perdogeral. MARCOCCI, A Inquisio portuguesa..., p. 31-81.
13
DGA/TT-Lisboa, Inquisio de Lisboa, processo n. 17849. Culpas contra frei Antnio de Abrunhosa.
Na verdade, segundo Marcocci, o processo encontra-se sob a cota: DGA/TT-Lisboa, Inquisio de
vora, processo n. 2246.
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24
Lisboa: Imp. Nacional, 1821, p. 172. Disponvel em: <http://purl.pt/6474>. Acesso em:
12 ago. 2008.
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for, para os descendentes dos judeus convertidos pela fora os problemas eram
sempre maiores, pois grassava a suspeita (quando no certeza!) de que praticavam
a antiga religio em segredo. Quanto a isso, um tal Manuel Rodrigues de Oliveira
exclamou, em 1603, que era um equvoco a assertiva de que quantos tinham o
nome de cristo-novo eram judeus em Portugal37.
Nesse sentido, alguns juzos contra o Santo Ofcio apontavam para a suspeita
preconcebida de que todos os cristos-novos praticavam o judasmo clandestino.
Contudo, ao tomarem como certo que, por serem descendentes de judeus, os cristosnovos judaizavam em segredo, os inquisidores confirmavam um dos fundamentos
da sociedade de Antigo Regime: o privilgio de nascimento. Invertendo a lgica
sem, contudo, neg-la, no era, decerto, um privilgio, mas uma distino originria
do nascimento ou do sangue que preconizava a perseguio e julgamento destes
indivduos, segundo suas crticas mais eloquentes.
No que diz respeito s crticas desses indivduos, notria a peleja travada na
qual os inquisidores inquiriam com a inteno de desvelar quais outras heresias
estavam relacionadas ao ato de criticar o Tribunal. Existia, nesse sentido, uma
correlao que aprecia como clara: a crtica cheirava a apostasia judaica, no sem
razo muitas pessoas notaram nesta combinao certa dose de interesse monetrio
dos inquisidores. Em 1617, Pero Lopes Lucena falou a um grupo de pessoas que
[...] na Inquisio davam os tormentos conforme cada um
tinha o dinheiro e que fazem s vezes confessar o que no
tinham feito nem deviam. E que a um homem que tinha
noventa mil cruzados com tormentos lhe fizeram confessar
o que no devia e lhe evaporou o dinheiro.38
O padre Lus de Macedo Freire tambm engrossou o coro. Alegou aos
inquisidores, em 1648, que na Inquisio os fazia confessar [os cristos-novos]
o que no fizeram pelo muito que apertavam com eles a duros tratos e suas
intenes eram to somente apoderar-se de seus bens. Repreendido, disse somente
falar a verdade39.
Verdade ou no, tais crticas constituam corpo de delito passvel de processo no
Santo Ofcio. No caso das ofensas ao Tribunal, o Regimento de 1640 advertia que
[...] qualquer pessoa, que nas causas, e negcios
pertencentes F (...), perturbar, e impedir o ministrio do
S. Ofcio, injuriando, ou ofendendo seus ministros, e oficiais
em desprezo da Inquisio abjurar de leve suspeito na F,
no lugar que parecer aos Inquisidores, salvo se a qualidade
da pessoa, e circunstncias da culpa pedirem maior grau
de abjurao, e ser degredado a arbtrio dos Inquisidores
para as gals e aoitado publicamente, se na qualidade de
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RESUMO
ABSTRACT
140
A INQUISIO E O INQUISIDOR NO
OUTONO DA MODERNIDADE
Sonia Siqueira1
A partir dos pressupostos conceituais da Histria, o Tempo a Mudana e o
Homem o cerne desta exposio reside no inserir uma instituio portuguesa o
Santo Ofcio em um contexto cultural, o Iluminismo ou Ilustrao. A realidade
o sculo XVIII trazendo no seu bojo diferenas em relao aos sculos anteriores.
No o escopo realizar comparaes nem acentuar contrastes entre o Tradicional
e o que se construa como Novo. Busca-se apenas mostrar como uma instituio
longeva como o Tribunal da F no pode ser historicamente visto como um todo
homogneo nem como se teria tornado injustificvel e injustificado por terem mudado
os valores. Como eles o Santo Ofcio foi-se alterando gradativamente at ser negado
com a supresso de 1821 por no ser mais til sociedade que o criara. Cada poca
tem a instituio que merece na medida em que consente na sua existncia.
No sculo XVIII a Inquisio percorre um caminho de revises crticas
desaguando nas mudanas possveis. Incentivos houve, provindos de dimenses
maiores poltico-religiosas e econmico-sociais. Recriada foi a problemtica do
isolacionismo geogrfico e da especificidade da Reconquista. Como pano de fundo
uma atitude ibrica de desconforto com a perda da supremacia europeia de que
gozara Portugal durante a longa gesta dos Descobrimentos e de que desfrutara
a Espanha no seu Sculo de Ouro da cultura e civilizao. Problemas residuais
aflorando na persistncia da mstica do Sebastianismo na histria lusa e que
chegaram Espanha ao fim do sculo XIX com as inquietaes da Gerao do 98.
Acentuara-se a necessidade de caminhar em consonncia com outras reas
europeias, principalmente em se alinhar aos rumos abertos pela cultura francesa.
Apareciam mudanas. Na Inglaterra os wihgs tinham j sido anulados em favor
da gentry e aconteciam reformas polticas significativas como a de Cromwel. J
no incio do sculo XVIII o barroco nas cortes dos prncipes alemes cedera lugar
a uma imitao do gosto francs com o rococ. Leibniz surgira como doutrinrio
escrevendo alternativamente em latim e em francs. Na corte prussiana Frederico
II protegia filsofos franceses includo Voltaire entre eles.
O Novo sim, se imiscura na vida ibrica, coado atravs de traos identitrios
que lhe so prprios, levando a Pennsula a integrar-se na rotulada Ilustrao
Catlica, tambm vigente na ustria e na Itlia. Configurada sobre as bases
espirituais e religiosas ali existentes no h fuga dos pontos bsicos da racionalidade
antropocntrica, com seus corolrios de justia, liberdade, felicidade e a crena
obsessiva no sapere aude atravs da educao.
To pouco se foge dos novos contornos do poder exacerbados pelo regalismo
a desaguar nas restries ao poder da Santa S, mas essa Ilustrao moderada,
eivada de respeito pela Tradio, disposta a ajustar-se s solicitaes novas. Sua
tnica so as acomodaes, sua expresso as reformas, no a revoluo. Avaliar
1
141
142
CHAUNU, Pierre. La civilization de lEurope des Lumires. Paris: Arthaud, 1971, passim.
A partir da Crtica da Razo Pura define-se a impossibilidade da razo apreender tudo. Cincias,
Letras, Histria, passaram a constituir setores autnomos do conhecimento. KANT, Immanuel.
Crtica da Razo Pura. Traduo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujo.
Introduo e notas de Alexandre Fradique Morujo. 3. ed. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian,
1994.
Simplistas algumas posies explicativas do sculo XVIII que se atem exclusivamente permanncia
das estruturas dos modos de produo, da solidariedade aos gneros de vida do passado, como a de
Pierre Goubert em seus textos da Histria econmica e social da Frana publicada em trs volumes
por Ernest Labrousse e Fernand Braudel. Ou, no outro extremo, a de Lucien Goldmann, que em
seu Ilustracin y sociedad actual, numa perspectiva sociolgica, descobre as correspondncias
entre as categorias essenciais da Ilustrao e as estruturas caractersticas da economia de mercado.
LABROUSSE, Ernest & BRAUDEL, Fernand (dir.). Histoire conomique et sociale de la France.
3 tomes. Paris: PUF, 1970-1979. GOLDMAN, Lucien. La ilustracin y sociedad actual. Caracas:
Monte vila Editores, 1968.
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143
snteses contemporizadoras.
Na Pennsula Ibrica essa Ilustrao amaciada teve uma reviso crtica voltada
principalmente para a depurao da religiosidade e pela precria educao de
todos os segmentos sociais.
Ao se dar destaque Ilustrao portuguesa no h qualquer inteno de
diferencia-la da espanhola no ritmo de instalao ou nos caminhos propostos ou
trilhados pelos seus prceres. A base terico-doutrinria a mesma como a mesma
a adeso aos autores franceses. Em ambas avultou o desejo de integrao europeia
e a preocupao com o distanciamento cultural que o domnio mais acelerado das
novidades suscitava na mentalidade ibrica.
As diferenas no mergulhar nas novas posies mentais e materiais se fez sentir
com as nuances do gnio prprio de cada pas, com a essncia de sua identidade
refletida no ordenamento socioeconmico, nos desafios de seus imprios coloniais.
Em outras palavras, na sua histria pregressa, na conscincia cultural de seus
dirigentes, nas tramas entretecidas nas vidas de seus cidados daqum e dalm
mar.
Na Espanha, num primeiro momento, h de se dar destaque aos trabalhos
do beneditino Benedito Feijoo principalmente no seu Teatro Crtico voltado
para desmistificar a crena popular supersticiosa nas relquias e nas possesses
demonacas, bem como a obra do jesuta Jos Francisco de Isla, Fray Gerundio de
Campazas6, ridicularizando os pregadores barrocos e sua formao. Na segunda
metade do sculo XVIII as ideias e preceitos doutrinrios dos novadores esto na
raiz das reformas de Carlos III e Carlos IV.
Em Portugal a primeira fase do repensar o barroco corresponde aos
estrangeirados, homens que viveram em outros pases europeus servindo ao reino
em embaixadas e legaes, ou estrangeiros que a convite do rei deslocaram-se
para Portugal para contribuir com seus conhecimentos tcnicos ou mdicos. Com
eles traziam-se ideias diferentes j vulgarizadas em suas terras que, divulgadas,
incitavam a novas reflexes. Politicamente esta fase corresponde ao reinado de D.
Joo V e aos primeiros anos do de D. Jos. Ao primeiro atribui-se a preocupao
com o progresso da nao sendo significativa a incumbncia que deu a Verney de
iluminar o pas. Entre os estrangeirados avultam as figuras de D. Luis da Cunha,
Ribeiro Sanches, do Cavaleiro de Oliveira e sobretudo a de Luis Antonio Verney,
considerado por Luis Cabral de Moncada a conscincia cultural de seu tempo7.
Todos eles mostraram preocupao com sua terra natal encarreirando sugestes
para resolver seus principais problemas e recompor sua dignidade no contexto
europeu. Isto ficou patente em seus trabalhos principais como Cartas sobre a
TORRE Y ROJO, Jos Francisco de Isla de la. Historia del famoso predicador Gerundio de
Campazas, alias Zotes. Primera parte. Madri: Imprenta de Gabriel Ramrez, 1758. __________.
Historia del famoso predicador Gerundio de Campazas, alias Zotes. segunda parte. Madri: s.r.,
1768.
MONCADA, Lus Cabral de. Um iluminista portugus do sculo XVIII: Lus Antnio Verney.
Coimbra: s.r., 1941.
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Portugal com o sangue das vtimas humanas que ela imolou e provoca a vingana
celestial. Diz que os Inquisidores usavam a heresia como pretexto para satisfazer
seus prprios interesses causando indignao a todas as pessoas de bem.
Rotula o Tribunal de inquo e sanguinrio que excomungando os hereges
garantiam sua entrega aos demnios. Depois, farisaicamente a afirmao dele
entrega os rus justia secular recomendando tratamento benigno e piedoso.
Insiste na abolio da designao de cristo novo deixando-o que viva sua
religio como se pratica em todas as naes da Europa sem embarao de serem
to crists como a nossa. Suspender a transmisso da culpa famlia antes que
se diga que basta um pingo de sangue hebreu para corromper o corpo cristo.
Isso seria um fator para reter no reino os capitais que acabam se evadindo com os
cristos novos.
Digno de destaque fica outro estrangeirado D. Lus da Cunha20. Representante
de um Iluminismo no revolucionrio essencialmente progressista e humanista.
Sua ateno voltou-se para um problema prtico: os males de Portugal e os seus
remdios, as deficincias e atrasos do pas em comparao com outros levaramno a formular extensas e violentas crticas alm de sugestes construtivas e planos
de reformas das estruturas econmicas e sociais no domnio da religio e dos
costumes. Foi partidrio do absolutismo, mas no do puro despotismo: para ele o
rei no diferia de um pai de famlia.
Era antagnico Inquisio a quem culpava pelos mais importantes problemas
do reino:
A insensvel e crudelssima sangria que o Estado leva a
que lhe d a Inquisio, porque diariamente com medo dela
esto saindo de Portugal com seus cabedais os chamados
cristos novos. No fcil estancar em Portugal esse mau
sangue quando a mesma Inquisio os vai nutrindo pelo
mesmo meio que pretende querer veda-lo ou extingui-lo.21
Defende o fim dos Autos de F, mas preocupa-se com a utilidade da Inquisio:
[...] no convem que por esse modo ficasse a Inquisio
sem exerccio e o povo sem esse divertimento a que
chamam triunfo da f. Respondo que nunca faltaria aos
Inquisidores o que fazer mais em que se ocupar porque
ainda que se lhe tirasse esse ramo que o mais pingue
Nasceu em Lisboa aos 23 de janeiro de 1662 e morreu em Paris aos 9 de outubro de 1749. Filho de
D. Antnio lvaro da Cunha e de D. Maria Manuel de Vilhena. Bacharel em Cnones por Coimbra
em 1684 licenciado em 1685. Comeou na magistratura como Desembargador da Relao do Porto
(1685) e da Casa da Suplicao (1688). Em 1695 abraou a carreira diplomtica como enviado
extraordinrio para Londres onde exerceu a funo de 1697 a 1712. Em 1728 foi enviado por
D. Joo V como plenipotencirio aos Estados Gerais. Entre suas obras mais importantes constam
Memria da paz de Utrecht, Traduo e Parfrases dos Tratados de Paz e Comrcio celebrados em
Utrecht Badar e Anvers, Instrues para Marco Antonio de Azevedo Coutinho.
21
CUNHA, D. Lus da. Testamento poltico ou carta escrita ao Senhor D. Jos I antes do seu governo,
Lisboa, 1820. Republicado com introduo e notas de M. Mendes. Lisboa: Seara Nova, 1943.
20
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26
COUTINHO, Jos Joaquim da Cunha de Azeredo. Discurso sobre o estado actual das minas do
Brasil, dividido em quatro capitulos. Lisboa: Impresam Regia, 1804.
154
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156
Cf. DIAS, Maria Odila da Silva. Aspectos da Ilustrao no Brasil. Revista do Instituto Histrico e
Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 278, jan./mar. 1978, p. 105-170.
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157
SILVA, J. M. Pereira da. Histria do Imprio Brasileiro. Rio de Janeiro: s.r., 1890, p. III.
SILVA, Histria do Imprio Brasileiro, p. 256.
158
nal do Santo Ofcio. Um exemplo: negar ao escravo o direito de acusar seu dono.
Outro, os motivos eram econmicos e sociais no de ortodoxia religiosa que no
passado intentara igualar a todos. Se destrudas estavam as diferenas sociais pelos
critrios antigos a utilidade gerava outros. Permanecia a ideia do bem comum da
sociedade, mas o princpio que o justificava j no era a unidade das conscincias.
Seu grande apego ao absolutismo desptico fizera-o relegar a plano secundrio a
dependncia a Roma, levando-o aceitao da quebra de relaes com a Santa
S. Caminhava pois para o fim o enfeudamento do reino ao papa que viera de D.
Afonso Henriques na primeira dinastia de reis portugueses.
Azeredo Coutinho queria conservar mudando ou concedendo mudanas e por
isso selecionava no elenco das ideias modernas que pediam render, sem alterar a
ordem, sem afetar o trono, a Igreja, a sociedade. Aceitava ideias que no implicassem em reformas polticas ou leses ortodoxia. Os revolucionrios para ele eram
inimigos.
Homem da classe dominante repelia a ideia de igualdade, homem do trono
hostilizava a revoluo, homem da Igreja no podia aceitar doutrinas eivadas de
materialismo ou de determinismo ainda que aqui seja menos seguro com sua ideia
de necessidade. Homem do Santo Ofcio: mergulhado na invisibilidade.
Em Azeredo Coutinho podemos encontrar dois teros de tradicionalismo para
um tero de modernidade de esprito o que de certa forma se equaciona com o
clima da Ilustrao mediterrnea. No velho prelado que vinha de tantas polmicas
era um passo para o futuro e no em direo ao passado vencido. Numa Inquisio
anemizada desde meio sculo antes, o ltimo Inquisidor, j brasileiro e de fundas
razes genealgicas, por sua mentalidade acessvel osmose de novas ideias, no
ter sido uma fora humana de resistncia mudana que vinha do impacto das
novas ideias que venciam.
RESUMO
ABSTRACT
159
161
VERNET, Juan. As origens do Isl. Traduo de Maria Cristina Cupertino. Rio de Janeiro: Editora
Globo, 2004, p. 55.
ESPOSITO, John L. Islam: the straight path. Nova York; Oxford: New York University Press, p. 08-09.
162
da f.
A sucesso de Maom, aps a sua morte no ano de 632, teve incio com Abu
Bakr. Bakr era pai de Aisha, uma de suas mulheres, e tambm seu seguidor de
primeira hora. A escolha foi feita de acordo com a prtica tribal da regio: o
conselho de idosos o indicou porque era considerado um velho sbio, detentor
dos conhecimentos que lhe haviam sido transmitidos no convvio estreito com o
Profeta. Ali, primo e genro de Maom, casado com sua filha Ftima, postulava
tambm a sucesso, mas aceitou Abu Bakr e os dois califas seguintes, Umar e
Uthman, vindo a ser ele prprio o quarto califa, escolhido no ano de 656, aps a
morte de Uthman.
H verses distintas sobre a escolha dos quatro primeiros lderes, que afinal ficaram
conhecidos como os califas bem guiados, j que pertenciam ao prprio crculo bem
prximo de Maom. No entanto, apesar das provveis desavenas mencionadas por
alguns autores, a verdadeira ruptura vai se dar s aps a morte de Ali.
De um modo geral, o processo sucessrio no ocorreu sem discusses e, desde
cedo, Ali e seus seguidores defenderam a posio de que os califas deveriam
pertencer famlia de Maom e no se constituiriam apenas em lderes polticos
da comunidade, mas seriam tambm divinamente inspirados para guiar os fiis
enquanto intermedirios entre eles e Deus. No entanto, para o outro grupo que
no defendia a sucesso pelo sangue, mas pelas normas da tradio das lideranas
tribais, o califado era de ordem poltica e caberia a seu lder garantir a prtica da
religio sem exercer, porm, o papel de intermedirio com o divino.
Para Vali Nasr, acadmico iraniano que tem escrito sobre a histria do Isl
abordando seus diversos aspectos:
Os sunitas, cujo nome familiar uma abreviao de ahl
al-sunnah wal-jama ah (povo da tradio e do consenso),
acreditam que o sucessor do Profeta o sucedia apenas na
sua funo de lder da comunidade islmica e no por sua
relao especial com Deus ou pelo chamado proftico e
[ acreditam] que o consenso da comunidade muulmana
que escolheu Abu Bakr e os sucessivos califas corretamente
guiados refletia a verdade da mensagem islmica.6
Parece-nos de grande importncia destacar que o posicionamento do chamado
povo da tradio, ou sunitas, se coadunava perfeitamente com as prticas das
tribos da regio, que davam nfase chefia poltica da comunidade e por isto mesmo
tal posicionamento contava com o apoio da maioria das lideranas polticas. No
entanto, aps a morte de Ali, genro e primo do Profeta, ocorrida no incio de 661,
a disputa sucessria tornou-se mais acirrada. Os seus partidrios, que ficaram
6
NASR, Vali. The Shia revival. Nova York: W. W. Norton & Company, 2006, p. 38. Texto original:
Sunnis, whose familiar name is short for ahl al-sunnah wal-jama ah (people of tradition and
consensus), believe that the Prophets sucessor was succeeding only to his role as leader of the
Islamic community and not to his special relationship with God or prophetic calling, and that the
consensus of the Muslim community that selected Abu Bakr and the succeeding Rightly Guided
Caliphs reflected the truth of the of the Islamic message.
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sempre importante ter presente que Ali era primo de Maom mas tambm seu genro, j que era
marido de sua filha, Ftima. Os filhos de Ali e de Ftima se constituam, portanto, em herdeiros por
direito de sangue e, segundo os xiitas, podiam ser indicados como califas.
NASR, The Shia, p. 57. Texto original: The sufferings of the imams lie at the heart of the
Shia doctrine of martyrdom (shahadat). Just as early Christian saints accepted the crown of the
martyrdom steadfast in their faith and believing that their blood would be the seed of the church,
so do Shias revere martyrdom. The imams died, as witnesses to the faith as did many of their
followers. Husayn is popularly known as the Lord of the Martyrs (Sayyd al-Shuhada). Shias believe
that martyrdom is the highest testament of faith.
164
165
Sobre a conquista e os reinos muulmanos na Pennsula Ibrica, ver: PALAZZO, Carmen Lcia.
Muulmanos e cristos em Al Andalus: uma identidade que transcende o corte entre Oriente e
Ocidente. Universitas Humanas, vol. 8, n. 2, jul./ dez. 2011, p. 01-17. Normalmente se aceita
a data de 711 como o incio da conquista muulmana da Pennsula Ibrica, mas o emirado de
Crdoba data de 756 e s passa a ser califado a partir de 929. Abd-al-Rahmn I manteve-se como
emir e nunca buscou o ttulo de califa, provavelmente porque os eventos da derrota do Omadas
pelos Abssidas no Oriente Mdio ainda eram muito recentes. O primeiro governante de Crdoba
a se intitular califa foi Abd-al-Rahmn III (o termo Al-Andalus refere-se a toda a Pennsula Ibrica
muulmana e no apenas regio da Andaluzia).
166
167
seus seguidores.
Alm destes trs ramos mais importantes do xiismo os duodcimos, os zayditas e
os ismaelitas outras ramificaes foram se desenvolvendo, entre elas a dos alautas
e a dos drusos, to diferenciadas do corpo principal do Isl a ponto dos alautas
chegarem a participar de [...] muitos dias festivos dos cristos e persas, incluindo
Natal, Epifania (6 de janeiro), Pscoa [...] bem como o Ano Novo persa, Nayruz16.
Quanto aos drusos, originaram-se de um grupo ismaelita do califado fatmida,
no sculo XI, e elaboraram importantes reformas em sua comunidade, abolindo
a poligamia, a escravido e postulando que o governo do estado no deveria se
confundir com a religio. Para alguns analistas, suas divergncias do Isl so muito
grandes, o que os aproximaria de vises de mundo dos gnsticos e dos cristos17.
O grupo druso atualmente mais conhecido o que se concentra nas montanhas do
Lbano, mas muitos vivem tambm em Israel, na Sria, na Turquia e na Jordnia.
Neste contexto mltiplo no qual havia a possibilidade de dissidncias, ainda que
sob o risco de perseguies pelos poderes centralizados, o Isl foi se desenvolvendo
em muitas linhas. Entre as reflexes filosficas mais importantes do Isl medieval
esto as de Ibn Sina, tambm conhecido como Avicena. Ibn Sina viveu entre 980
e 1037 e era filho de um letrado xiita da corrente ismaelita. Deixou diversos textos
msticos, entre eles um que discorre sobre da viagem da alma de volta a seu lugar
de origem. Neste texto, o filsofo desenvolveu com riqueza de detalhes uma ideia
que trata da liberao da alma atravs da figura de um anjo-sbio, o qual tambm
um guia na viagem de retorno origem18.
Ibn Sina fez ainda diversas reflexes sobre poltica e nelas deixou claro que, em
sua opinio, os profetas e ims eram os governantes ideais, os lderes ou reis sbios,
o que remetia influncia de Plato. Em suas anlises, destacou tambm que as
palavras daqueles que tivessem recebido a iluminao seriam sempre as de maior
autoridade. Ibn Sina valorizava a revelao divina igualmente enquanto fonte da
tica para governar os fiis. S um iluminado teria condies de gui-los. De
certa forma, fez ento com que as revelaes e as profecias autenticassem a sharia
que, no mbito do Isl, sempre foi considerada necessria para a sobrevivncia da
sociedade19.
Em sua obra, central tambm o papel do imaginrio em seu sentido mais
amplo, pois atravs dele que as mensagens divinas podem ser entendidas pelos
homens. Para Ibn Sina, o profeta, enquanto transmissor das palavras de Deus
para a humanidade, lanava mo necessariamente de imagens das quais ele
era o detentor dos sentidos e que propiciavam a inteligibilidade das vises20. O
KHURI, Imans, p. 198. O texto original: [] many Christian and Persian holidays, including
Christmas, Epiphany (6 January), Easter [] as well as the Persian New Year, Nayruz.
17
The Druzes: One Thousand Years of Tradition and reform. International Studies and Overseas
programs Newsletter, vol. 21, n. 1, out. 1998.
18
AVICENA. Avicena: A origem e o retorno. Traduo de Jamil Ibrahim Iskandar. Porto Alegre:
Edipucrs, 1999.
19
AVICENNE. pitre sur les parties des Sciences intelectuelles dAbu Ali AL-Husayn Ibn Sina. In:
JOLIVET, Jean e RASHED, Roshdi (org.) tudes sur Avicenne. Paris: Les Belles Lettres, 1984, p.
145.
20
AVICENNE. Psychologie dIbn Sina daprs son oeuvre As-Sifa II. Praga: Ed. de lAcadmie
Tchcoslovaque des Sciences, 1956.
16
168
169
novo Estado foi instalado a partir de 1979. A viso de Khomeini, no entanto, sobre
poltica e religio, no alcanava o consenso mesmo entre os xiitas. Uma das mais
importantes caractersticas do xiismo era, at ento, a de conviver com poderes
polticos estabelecidos, algumas vezes influenciando-os ou simplesmente evitando
envolvimentos muito diretos nas questes especficas de Estado. Tratava-se de uma
religio nacional, mas no necessariamente de uma religio que tivesse interesse
direto em participar do poder poltico25.
A ascenso de Khomeini como lder no apenas religioso mas tambm poltico
representou uma transformao na maneira como os xiitas viviam o seu papel
na sociedade e, ainda que conseguindo inmeros adeptos tendo como principal
objetivo a derrubada do X, sua leitura do Isl estava longe de ser a que havia
prevalecido entre os letrados no decorrer de muitos sculos. Procurando a
legitimao como o Lder Supremo dos revolucionrios, que viria ocupar todos os
espaos do comando poltico, militar e religioso, Khomeini incluiu na Constituio
da Repblica do Ir de 1979, a ideia central de um livro que havia publicado
em 1970, acerca do governo islmico26. De acordo com a sua concepo, um
destacado jurista seria indicado como Lder Supremo do pas e governaria com
plenos poderes para proteger acima de tudo o Isl, e para tal faria uso da lei de
origem divina, sem necessitar de nenhuma outra alm da sharia. Um dos artigos
da referida constituio estabelece explicitamente que aps a morte do grande
lder da revoluo islmica universal e fundador da Repblica Islmica do Ir
(ele prprio)27, a escolha do novo Lder Supremo passar a ser atribuio de um
grupo de experts que obrigatoriamente apontaro uma pessoa com domnio da
jurisprudncia (fiqh).
Muitos clrigos e outros letrados iranianos discordaram de Khomeini sobre
o poder constitucional que estava sendo dado ao Lder Supremo, entre eles os
respeitados aiatols Abdul-Qassim Khoei e Mohammad Hussein Fadlallah. Este
ltimo, embora tenha sido um entusiasta da revoluo iraniana em muitos de seus
aspectos, fez duras crticas ao fato do pas correr o risco de ser dirigido por clrigos
com poderes absolutos o que, em sua opinio, no se coadunaria com a doutrina
xiita28.
importante destacar que, dado o peso da revoluo iraniana de 1979 e o
papel nela desempenhado por Khomeini, a palavra xiita, que deveria apenas
nomear uma ramificao do Isl oriunda do grupo dissidente que, no sculo VIII, se
tornou seguidor de Ali e dos ims descendentes da famlia de Maom, passa, ento,
MOMEN, Moojan. An introduction to Shii Islam. New Haven: Yale University Press, 1985, p. 193.
Para um estudo mais aprofundado sobre este tema fundamental a leitura dos escritos de Ruhollah
Khomeini, o que pode ser feito na traduo de Hamid Algar que foi revista e autorizada pelo prprio
Khomeini: Islam and Revolutions: Writings and Declarations of Imam Khomeini. Berkeley: Mizan
Press, 1981.
27
Constituio da Repblica Islmica do Ir, artigo 107. Texto original: [] great leader of the
universal Islamic revolution, and founder of the Islamic Republic of Iran []. Disponvel em:
<http://www.iranonline.com/>. Traduo em Lngua Inglesa autorizada pelo governo iraniano.
Acesso em: 30 mar. 2014.
28
Sobre este tema, ver a excelente anlise de Phillip Smyth: SMYTH, Phillip. The Battle for the Soul
of Shiism. Middle East Review of International Affairs, vol. 16, n. 3, Outono de 2012. Disponvel
em: <http://www.gloria-center.org/>. Acesso em: 30 mar. 2014.
25
26
170
Para mais detalhes sobre as estatsticas, ver: <http://www.pewforum.org/2009/10/07/mapping-theglobal-muslim-population/> Acesso em: 30 mar. 2014.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
171
172
como a dos dervixes rodopiantes33 que alcanaram fama por sua impressionante
dana em crculos. Para Rumi a msica e a dana eram meios para entrar em
contato com o divino, para atingir o xtase dos msticos.
Em Konya, na Anatlia, onde Rumi viveu parte de sua vida e veio a falecer,
o seu tmulo passou a ser e se mantm at hoje um local de importante
peregrinao para os muulmanos, tanto xiitas quanto sunitas, que so adeptos
do sufismo. Esta , tambm, uma das importantes caractersticas dos sufistas, a de
exaltar seus mestres, sendo que alguns deles alcanaram caractersticas de santos,
aproximando-se muito da piedade crist, mas tambm incorporando crenas e
prticas do paganismo. No Marrocos e no norte da frica tais caractersticas so
muito evidentes. O antroplogo Clifford Geertz que estudou o Isl em diversos
contextos histricos, entre eles a Indonsia e o Marrocos, observou a influncia de
religiosidades locais que foram incorporadas ao sufismo. Segundo ele:
A despeito das ideias sobre o alm e das atividades tantas
vezes associadas a ele, o sufismo como realidade histrica
consiste em uma srie de experimentos diferentes e at
mesmo contraditrios, a maioria ocorrendo entre os sculos
IX e XIX, no af de trazer o isl (ele prprio longe de ser uma
slida unidade) para uma relao efetiva com o mundo,
tornando-o acessvel a seus seguidores, e estes acessveis a
ele. No Oriente Mdio isto parece ter significado sobretudo
reconciliar o pantesmo rabe com o legalismo do Alcoro;
na Indonsia, recolocar o iluminacionismo hindusta em
expresses rabes; na frica Ocidental, definir sacrifcio,
possesso, exorcismo e cura, como rituais muulmanos.
No Marrocos, significou fundir as concepes genealgica
e miraculosa da santidade canonizando os hommes
ftiches34.
Tais consideraes, apesar de bastante coerentes com o que todas as pesquisas
evidenciam, muitas vezes no so aceitas por alguns autores muulmanos que
insistem em ver o Isl como puramente ligado s revelaes divinas recebidas por
Maom, e aos Hadith do Profeta, fazendo destes textos uma leitura que abre pouco
espao a interpretaes fora da ortodoxia35. Abdelwahab Meddeb, no entanto, um
escritor e acadmico rabe que enfatiza tambm as influncias externas do sufismo
e o considera uma espiritualidade poderosa pelo fato de trazer em si tradies
espirituais anteriores. Ao afirmar com muita clareza que o Isl soldou tradies
dspares, considera que:
Darvish/ dervish uma palavra persa para designar um religioso mendicante. Origina-se da palavra
dar, que significa porta em farsi e pode ser entendida, para definer os dervixes, como quem vai de
porta em porta. HUGHES Dictionnary of Islam. Londres: s.r., 1885, p. 69.
34
GEERTZ, Clifford Observando o Isl: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na Indonsia. Rio
de Janeiro: Zahar, p. 59-60. Sobre os hommes fetiches, santos guerreiros do Marrocos, ver: BEL,
Alfred. La Religion Musulmane en Berbrie. Paris: Librairie Orientaliste P. Geuthner, 1938, p. 389.
35
Ver, sobre a opinio mais ortodoxa: NASR, The heart, p. 213.
33
173
36
Sobre a cerimnia da dana dos dervixes Mevlev ver: SCHIMMEL, Annemarie. Mystical dimensions
of Islam. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1975, p. 325.
174
Concluso
Nos seus muitos sculos de existncia o Isl passou por diversas rupturas e
transformaes, especialmente importantes no perodo compreendido entre os
sculos VII e XIII. Uma grande variedade de prticas d testemunho tambm da
multiplicidade de formas de piedade individual, nem sempre bem aceitas pela
ortodoxia mas nem por isto pouco relevantes. Ascetismo, autoflagelao, culto aos
santos e, inclusive, estrutura clerical, no caso do xiismo, costumam sofrer crticas do
sunismo estrito mas, sem a menor dvida, se constituem em presenas fortes em
diversas correntes que so parte integrante do Isl.
Acreditamos que o sufismo pode ser considerado emblemtico da diversidade
j que entre seus seguidores h representantes do sunismo e do xiismo, bem
como praticantes imbudos de maior sincretismo, como os do norte da frica.
Pelo fato do Isl ser ainda hoje a religio oficial de diversos estados, visvel uma
tendncia, em grande parte de seus textos, de homogeneidade na descrio de
seus princpios, dificultando para a pesquisa a diferenciao entre o que aceito
por suas autoridades e o que efetivamente praticado. A ortodoxia, porm, no
consegue encobrir a riqueza do intercmbio de ideias desde que se lance, sobre o
Isl, um olhar atento.
O estudo da religiosidade muulmana de suas mltiplas faces, porm, no
deve, em nosso entender, incluir grupos como Al Qaeda e outros que esto
relacionados ao que se denomina Isl poltico e que instrumentalizam a religio
para suas finalidades especficas. Trata-se, nestes casos caso, de um outro tipo de
fenmeno, dentro do contexto das disputas polticas, das questes de formao de
nacionalidade e das lutas pelo poder. O enfoque, ento, no caso da pesquisa sobre
tais grupos que no deixa de ser importante deve ser voltado para a anlise das
diversas faces engajadas em lutas e bandeiras que se apropriam da religiosidade,
seja ela em sua vertente sunita ou xiita, para justificar suas agendas.
Nosso trabalho, apresentado neste artigo, procurou dar uma viso geral de uma
religiosidade que tem muitas faces e que permite, por isto mesmo, uma grande
riqueza de interpretaes. Pesquisas especficas sobre vrios temas aqui apontados
podero desvendar um leque ainda maior de facetas e de interaes com outras
formas de espiritualidade. O campo de investigao amplo e relativamente pouco
explorado sob a tica do historiador.
175
RESUMO
ABSTRACT
Palavras
Sufismo.
Chave:
Isl;
Sunismo;
Xiismo;
176
177
178
Bakr, Omar ibn al-Khatab, Uthman ibn Affan e Ali ibn Abu Talib7.
A partir do sculo XI, centros culturais muulmanos no Oriente e na Andaluzia
travaram fecundo dilogo entre religio e racionalidade filosfica, impulsionando
a Filosofia rabe (falsafa), a Teologia dialtica (kalam) e a Jurisprudncia (fiqh),
alcanando snteses filosfico-teolgicas de excelncia, como a de Al-Ghazali8.
Desde ento, desenvolveram-se novas abordagens histricas, filolgicas, teolgicas
e formais do hadith, reduzindo as coletneas normativas a duas, de Al-Bukhari e de
Muslim. parte as posies em voga hoje em dia cuja explanao supera essas
linhas9 nos concentramos num recorte temtico especfico: a Natureza e a gesto
de recursos ambientais na coletnea de Al-Bukhari. Nossa escolha motivada pela
autoridade consensual de Al-Bukhari no mundo islmico e pela relevncia das
questes ambientais para a humanidade em geral, e para o dilogo inter-religioso
em particular.
A coletnea Sahih de Al-Bukhari
Al-Bukhari viveu de 810 a 869 d. C., com o nome de Abdalla Muhammad
ibn Ismail ibn Bardizbah, nascido na cidade de Bukhara, no Ir, donde o epteto
al-bukhari (bukharense). Era respeitado pelo raciocnio lgico e pela piedade
religiosa, que lhe forjaram rigor conceitual e devotamento tarefa de recompilar
os ditos e feitos de Muhammad. Al-Bukhari seguiu estritamente os critrios de
anlise antes mencionados para distinguir hadith falso e verdadeiro. Sua coletnea
sahih (autntica) se apresenta assim: cada texto (matn) que contenha um dito ou
feito do Profeta do Isl transcrito cuidadosamente, precedido de sua referncia
direta a algum personagem pertencente gerao que viveu no perodo em que
se reportou o hadith; esta referncia vai compondo a cadeia de apoio (isnad) que
liga cada transmissor ao longo dos anos, chegando a um dos Companheiros do
Profeta (que so os quatro primeiros califas) e, enfim, ao prprio Muhammad10.
Sua coletnea Sahih est disponvel nas edies de L. Krehl (1908) e A. Mingana
(1936), com tradues parciais em ingls e francs11. Neste artigo, selecionamos
os ahadith diretamente referidos Natureza e gesto ambiental, reportados na
edio italiana preparada por Virgnia Vacca, Sergio Noja e Michele Vallaro12.
Esclarecemos que os xiitas aceitam apenas os ahadith que remontam a Ali, o nico califa tido por
eles como legtimo e imediato sucessor de Muhammad. Assim, os xiitas usam uma srie prpria de
coletneas, de trs compiladores: Al-Kulayni (m. 941), Ibn Babawayh (m. 991) e Al-Tussi (m. 1067).
8
Conforme apreciao de: KNG, Islo, p. 290-360.
9
Alm das diferenas entre sunitas, xiitas, sufitas e wahabitas, h movimentos de exegese cornica
(tafsir), jurisprudncia (fiqh) ereforma muulmana, que questionam a interpretao e atualizao
dos ahadith. Ainda que isto no abale a autoridadegeral da Suna, produz diversidade de posies e
aplicaes da lei (sharia) nas esferas da religio, governo, economia e direitos humanos. Cf. SAEED,
Introduo ao pensamento..., p. 63-79; KNG, Islo, p. 314-320.
10
Cf. KNG, Islo, p. 315-316.
11
M. Vallaro elencou os cdices, tradues e edies da coletnea Sahih de Al-Bukhari em nota
bibliogrfica. Apud AL-BUHARI. Detti e fatti del profeta dellIslam raccolti da al-Buhari. Torino:
UTET, 2009, p. 47-53.
12
Edio que seguimos preferencialmente neste artigo: AL-BUHARI, Detti e fatti del profeta..., 2009.
Quando citamos esta edio grafamos Al-Buhari, conforme impresso. Nos demais casos usamos
Al-Bukhari, porque a grafia kh corresponde melhor consoante fricativa da pronncia rabe.
7
179
180
181
e coletivamente realizado18.
Contedo jurdico: semeadura e irrigao
O hadith referente semeadura e irrigao, na verdade, parte da discusso
mais ampla sobre os tipos de contratos agrcolas efetuados entre os habitantes
da pennsula arbica, na poca de Muhammad. Pois havia diferentes contratos
(muhabara) entre o proprietrio e o usurio da terra. Geralmente o proprietrio
locava o terreno, ou parte dele, para um colono semear e cultivar, recebendo em
compenso uma parte da colheita. Os ganhos pactuados entre proprietrio e usurio
variavam, conforme a proporo: o colono poderia reter um quinto da produo
(hamasa), metade (munashif) ou um tero (mutalit). Muitas vezes a locao do
terreno inclua fontes, cisternas e canais de irrigao19. Contudo, a combinao
dos itens pactuados no garantia boa colheita por si s. Mesmo dispondo da terra,
das sementes e da irrigao, o rigor climtico e os limites tecnolgicos colocavam
o colono numa situao arriscada: enquanto o proprietrio mantinha certas
vantagens, o usurio poderia contrair uma dvida no caso de escassez de gua ou
m colheita, com prejuzo para todos o proprietrio, o usurio, suas respectivas
famlias e eventuais comerciantes. Da a importncia deste hadith para se discernir
entre o justo e o injusto, no tocante ao uso e usufruto da terra, da gua, das sementes
e das colheitas, conforme os diferentes contratos agrcolas.
a) Semeadura, cultivo e colheita: Com relao semeadura, cultivo e
colheita, o hadith estabelece o seguinte:
Quando um muulmano tiver plantado alguma muda ou semeado
alguma semente e acontecer que, do resultado do seu trabalho, coma
um pssaro, um homem ou um animal grande, isto lhe ser contado
como esmola.
Entre muulmanos, o proprietrio concede ao colono que cultive inclusive
junto aos canais de irrigao, retendo quotas da colheita previamente
definidas no contrato.
Entre muulmanos e judeus, lcito que os judeus possuam terras, nelas
semeando e delas colhendo; da produo final, metade ser dos judeus,
outra metade dos muulmanos que ali governam.
A posse das terras por muulmanos e no muulmanos lcita e deve
levar em conta o bem comum dos demais muulmanos, alm do interesse
particular dos proprietrios.
No caso de terras conquistadas pelo Isl, h duas possibilidades
administrativas: repartir as terras entre os participantes da conquista; ou
fazer das terras uma propriedade comum, como fundo previdencirio,
especialmente para as vivas e rfos dos combatentes.
18
19
183
O uso de uma poro de terra livre gera direitos sobre ela: quem usufruir
uma terra sem dono, ter mais direito sobre ela que qualquer outra
pessoa.
O investimento tcnico numa terra considerada at ento improdutiva,
gera direitos sobre ela: quem faz reviver uma terra morta a adquire para
si [muulmano ou no], desde que esta aquisio no prejudique outro
direito islmico. Por investimento tcnico se compreende: abrir poos ou
prover irrigao; escoar a gua de brejos e lodaais em vista do plantio;
retirar cascalho, arar, adubar, plantar e construir estruturas; extirpar
plantas selvagens em vista do cultivo20.
Destacam-se, neste longo hadith, o direito universal propriedade e usufruto
do trabalho agrcola; a afirmao deste direito para muulmanos, judeus e outros
no-muulmanos; a equivalncia entre a esmola legal (zakat) e os casos em que
uma pessoa faminta tenha comido dos frutos plantados e/ou colhidos; o sistema
de quotas em casos de arrendamento da terra; a ateno ao bem comum e a
possibilidade de se criar um fundo previdencirio a partir das propriedades; o
reconhecimento de posse a quem cultivar terra sem dono (ao modo de usucapio);
a valorizao do investimento tcnico na produo agrcola, que incentiva aes
empreendedoras.
b) Irrigao: A irrigao (musaqah), por sua vez, se inclui nos contratos de uso
da terra por se tratar de recurso necessrio ao plantio. Antes, porm, da legislao
administrativa, aparece o imperativo da caridade:
No dia da ressurreio, Deus no pousar seu olhar sobre quem tiver
negado gua a um viajante.
Quem saciar com gua um ser vivo, de qualquer espcie, atrai a
benevolncia divina sobre si21.
Em seguida, o hadith estabelece:
Homens e animais, sobretudo de carga ou montaria, tm direito de saciarse com gua de crregos e jardins.
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186
187
fender com as nuvens, e os anjos sero enviados para a terra em grande nmero; a
verdadeira soberania ser a do Clemente e ser um dia terrvel para os descrentes
(Sura 25, 25-26); o cu se derreter como metal fundido e as montanhas sero
desintegradas, parecendo flocos de l tingida (Sura 70, 8-9).
Essas Suras complementam a argumentao do hadith sobre O princpio
da Criao. A partir da, surgem diferentes teorias cosmolgicas no Isl. A
Teologia geralmente se apoia nos textos cornicos, afirmando a temporalidade da
Criao, seu destino escatolgico misterioso e a responsabilidade histrica do ser
humano como vice-regente (khalifa) dos bens criados por Deus. J a Filosofia
iluminada por categorias gregas admite a Criao ab aeterno (Al-Farabi, Avicena
e Suhrawardi), bem como a Criao processual simultnea revelao divina.
Outros, ainda, opinam que a Criao no tenha fim e que, alm disso, Deus possa
ter criado diferentes mundos, anteriores, paralelos ou posteriores ao universo que
ora conhecemos26.
Concluso
Tanto o Livro sagrado (Quran) quanto a tradio normativa (Suna) consideram
a existncia dos astros, da Terra, dos vegetais e animais, das guas e do ser humano,
uma obra de Allah. Ele cria todas as coisas livremente, pela potncia da Palavra:
Deus cria o que quer. Quando decreta alguma coisa diz apenas seja, e ela
(Sura 3, 47 e 36, 82). H tambm uma concepo dinmica da criao: Aquele
que criou os cus e a terra no os poderia criar novamente? Certamente que sim!
Pois ele o Criador e jamais cessa de criar (Sura 36, 81). Deus cria, aperfeioa e
encaminha as criaturas: Glorifica o teu Senhor, o Altssimo, que criou e aperfeioou
tudo; que tudo predestinou e encaminhou (Sura 87, 1-3). Mediante as criaturas
e os bens da Natureza, o Criador comunica aos humanos a sua onipotncia e
bondade: Nisto h sinais para os que raciocinam insiste a Sura 30, 22-25 entre
outras. Este apelo razoabilidade e interpretao dos sinais (ayat) motiva a
inteligncia humana a discernir as ddivas que Allah dispensou na Criao. Assim
o Isl valoriza a razoabilidade como qualidade do crente, que constata a existncia
e a ao de Deus no mundo criado. Em rabe, constatar tem a mesma raiz que
professar a f (sh-h-d); e o muulmano caracterizado como um constatador
de Deus no mundo (shahid). Com efeito, para a cultura rabe-semita a f mais
uma constatao evidente e comunitariamente vinculante da presena de Deus
na vida, do que uma especulao nocional sobre a ontologia divina embora a
ontologia tenha sido tratada pelo kalam (teologia dialtica). Em suma, tudo o que
se diz do ser de Deus parte do quanto ele revelou de Si, na sua relao com o
cosmos e a humanidade (cf. Sura 2, 255).
Assim, o reconhecimento das ddivas do Criador, o zelo pelos bens da
Natureza e os direitos de seu usufruto por parte dos humanos (muulmanos e
se fundiro em realidade nova, seja pela ao regeneradora da gua, seja pela energia gnea
incandescente.
26
Allah professado como Criador pelo Isl em geral; mas diferentes doutrinas da Criao convivem,
com distintas nuanas teolgicas e filosficas. Cf. AZMOUDEH, Khashayar. Cration. In: AMIRMOEZZI, Dictionnaire du Coran, p. 193-196.
188
189
RESUMO
ABSTRACT
Keywords:
Dialogue.
Ecology;
Islam;
190
Inter-Religious
3
4
Nesse ano de 2014, quando o leitor brasileiro finalmente tem acesso traduo de The invisible
religion, achei que seria justo evocar, ao fim desta minha modesta exposio da protosociologia
do religioso de Luckmann, as palavras de outro ilustre representante da gerao ctica, o filsofo
Odo Marquard: Ou a filosofia da religio teologia, ou destruio da religio, tertium non datur.
Eu acredito, porm, que tertium datur, enim tertium est Thomas Luckmann. MARQUARD, Odo.
Religion und Skepsis. In: KOSLOWSKI, Peter (Hrsg.). Die religise Dimension der Gesellschaft:
Religion und ihre Theorien. Tbingen: J. C. B. Mohr, 1985, p. 43.
Doutor em Histria Ibrica e Latino-Americana pela Universitt zu Kln. Professor Adjunto de
Teoria e Metodologia da Histria do Departamento de Histria da Universidade Federal de Ouro
Preto. E-Mail: <[email protected]>.
LUCKMANN, Thomas. A religio invisvel. So Paulo: Olho Dgua; Loyola, 2014.
SCHELSKY, Helmut. Die skeptische Generation. Dsseldorf: Eugen Diederichs, 1957, p. 488.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
191
pretendia por aqueles dias realizar uma grande investigao sobre a situao da
religio na Alemanha. Peter Berger faria parte da equipe, mas teve de abdicar por
causa do servio militar, de forma que Luckmann acabou assumindo seu lugar por
ser fluente em alemo. Desta pura contingncia nasceu sua tese de doutorado, A
comparative study of four Protestant parishes in Germany, defendida em 19565.
Sete anos mais tarde, em 1963, Luckmann publica na Alemanha seu estudo O
problema da religio na sociedade moderna, que, depois de vertido ao ingls
pelo prprio autor e rebatizado com um ttulo The invisible religion (sugerido pelo
editor norte-americano), produziria um efeito bombstico no campo dos estudos
religiosos. Com efeito, o impacto causado pelo aparecimento de seu livro de 1967
impressiona ainda mais quando se pensa que no ano anterior ele j publicara,
em parceria com Berger, uma obra que se tornaria um clssico da sociologia do
conhecimento6.
Luckmann est para o estudo da religio como Carl Schmitt para o do poltico.
Poucas vezes se explicou e inovou tanto escrevendo to pouco. Com a vantagem que
em seus escritos no h qualquer possibilidade de extrair, como em Schmitt, uma
justificativa terica para posicionamentos polticos incompatveis com o pluralismo
moderno. Diferentemente do jurista alemo, Luckmann pode ser caracterizado
como um virtuoso do pluralismo; e sem que isso represente qualquer afinidade seja
em relao ao relativismo filosfico, seja ao construtivismo radical. Como veremos
adiante, a fundamentao filosfica de suas obras suficientemente firme para
resistir s tentaes ou fraquezas da hora.
A composio sbria e elegante, a densidade e conciso de seus trabalhos faz
deles um tipo de joia intelectual rara. So textos que sempre se revisita e redescobre,
onde nunca se encontram solues fceis nem prolixidade; que tm a fora de
promover o entendimento sem concesses ao gosto pelo impressionismo e pelo
paradoxo que tantas vezes se compra e vende como sinnimo de profundidade;
escritos cuja clareza no deixa trair a ascendncia de seus mestres Lwith e Schtz.
Mas no se trata meramente de uma questo de estilo. Uma declarao feita ao
socilogo francs Jean Ferreux alguns anos atrs d a perceber como o trabalho
de Luckmann no se desvincula de uma tica da responsabilidade cientfica: O
importante que a partir do momento em que [algum] se decide a fazer algo, h
uma tica absoluta de preciso, eu quase diria uma tica descritiva. Se voc faz
pesquisa, voc tem de ser preciso, voc deve evitar enganar seja a si mesmo, seja
aos demais. Infelizmente, o conceito de fraude descreve setores importantes das
cincias sociais e da filosofia7.
Mais do que quaisquer outros, estes dois conceitos conciso e preciso
traduzem a essncia do pensamento de Thomas Luckmann. No que segue,
tentaremos oferecer ao leitor uma sntese de seu minimalismo funcionalista de
5
Cf. LUCKMANN, Thomas. Ich habe mich nie als Konstruktivist betrachtet. Gesprch mit Thomas
Luckmann. In: HERRSCHAFT, Felicia & LICHTBLAU, Klaus (Hrsg.). Soziologie in Frankfurt: Eine
Zwischenbilanz. Wiesbaden: VS Verlag, 2010, p. 345-368.
BERGER, Peter & LUCKMANN, Thomas. A construo social da realidade. 23. ed. Petrpolis:
Vozes, 1985.
FERREUX, Jean. Un entretien avec Thomas Luckmann. Socits, vol. 93, n. 3, 2006, p. 50.
192
193
194
por exemplo, veem na Revoluo Francesa o grande evento que teria tornado a
secularizao possvel. Para Koselleck, ela coincide com a gradativa substituio
da oposio transcendncia/ imanncia pela oposio passado/ futuro19. Para
Luhmann, secularizao consiste na progressiva diferenciao das sociedades
modernas em subsistemas autnomos, autorregulados e autolegitimados. Os
subsistemas poltica e mercado passam a prescindir do religioso como instncia
ltima de doao de sentido20.
Foi preciso que Hans Blumenberg invertesse a perspectiva at ento dominante
e demonstrasse em seu clssico livro de 1966 que secularizao uma categoria
produtora de ilegitimidade histrica21. A carreira de sucesso do conceito deve-se
basicamente a dois fatores: (a) ele tende a reforar/legitimar uma atitude negativa
ante a modernidade, a qual passa a ser percebida a partir da lgica da perda;
e (b) desde relativamente cedo se passou a investir o termo com uma forte carga
histrico-filosfica. Vale dizer, o conceito de secularizao no mais descreve, ele
prescreve. Est imbudo de uma ideia recorrente e poderosa: a de inevitabilidade
histrica. As religies, como a famlia tradicional, estariam condenadas ao declnio
num mundo sem corao22.
A secularizao passa a ser entendida, como normalmente o na linguagem
cotidiana e mesmo cientfica, como sinnimo de um inexorvel esvaecimento do
religioso. O advento de modalidades concorrentes de produo de conhecimento e
de sentido seriam corresponsveis por isso. Tanto Simmel quanto Weber duvidavam
que sejamos capazes, na modernidade, daquele sacrifcio do intelecto que est na
base de toda experincia religiosa autntica. Mesmo para Troeltsch a cincia teria
vencido sua batalha contra o dogma e a Igreja, transformando o mundo moderno
numa civilizao reflexiva23. Sabemos, porm, que a ideia de um antagonismo
insupervel entre cincia e religio no se confirmou. Como demonstrou Arnold
Gehlen numa srie de brilhantes escritos, a era da tcnica no per se desfavorvel s
representaes e prticas religiosas pelo simples fato de que a tcnica no contradiz,
mas antes prolonga a essncia da magia nos contextos modernos: A fascinao
do automatismo constitui o impulso pr racional e extraprtico da tcnica, que
primeiro se fez sentir na magia, tcnica do suprassensvel, durante milnios, at
skularisierte Staat. Sein Charakter, seine Rechtfertigung und seine Probleme im 21. Jahrhundert.
Mnchen: Carl Freidrich von Siemens, 2006.
19
KOSELLECK, Reinhart. Zeitschichten. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000, p. 183. A mudana de
perspectiva de Koselleck a respeito da secularizao apenas aparente, como se percebe, alis, nos
trabalhos de seu discpulo Christof Dipper. A respeito, ver a sutil crtica de Hbinger. HBINGER,
Gangolf. Skularisierung: Ein umstrittenes Paradigma der Kulturgeschichte. In: RAPHAEL, Lutz
& SCHNEIDER, Ute (Hrsg.) Dimensionen der Moderne: Festschrift fr Christof Dipper. Frankfurt
am Main: Peter Lang, 2008, p. 93-106. A crtica mais completa e sistemtica viso de Koselleck
sobre a secularizao foi feita por Joas. JOAS, Hans. Die Kontingenz der Skularisierung:
berlegungen zum Problem der Skularisierung im Werk Reinhart Kosellecks. In: JOAS, Hans &
VOGT, Peter (Hrsg.) Begriffene Geschichte: Beitrge zum Werk Reinhart Kosellecks. Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 2011, p. 319-338.
20
LUHMANN, Niklas. Die Religion der Gesellschaft. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2000, p. 284285, p. 315.
21
BLUMENBERG, Hans. La legitimacin de la edad moderna. Valencia: Pre-Textos, 2008.
22
LASCH, Christopher. Refgio num mundo sem corao. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
23
TROELTSCH, Das Wesen..., p. 313.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
195
encontrar nos tempos mais recentes a sua perfeita realizao nos relgios, motores
e mquinas rotativas de toda a ordem. Quem observar como psiclogo a atrao
que os automveis exercem sobre a nossa juventude no poder duvidar de que
nela esto em jogo interesses mais primitivos do que racionais e prticos24.
III
A religio pode mesmo refluir, acabar? Luckmann parece-nos ser aquele que
ofereceu a melhor resposta a essa questo. Em A construo social da realidade,
ele e Berger haviam demonstrado que o conhecimento sempre algo mais do que
conhecimento terico. De forma anloga, a religio pode e deve ser vista como
algo mais que Igreja. Tal como uma modalidade especfica de conhecimento no
esgota o problema do conhecimento em geral, a trajetria de uma modalidade
especfica de religio no pode falar em nome do destino da religio tout court.
Para Luckmann, se por secularizao se entende o esvaecimento do religioso,
a secularizao no passa de um mito. No podemos nos livrar da religio porque
a ela uma constante antropolgica. As consequncias dessa forma de pensar
o religioso no so pouca monta, pois significa admitir, em ltima anlise, que
a irreligiosidade no passa de iluso, e que, portanto, onde quer que haja seres
humanos haver alguma forma de religio. Como Luckmann fundamenta tal ponto
de vista sem cair na metafsica do homo religiosus de um Mircea Eliade? Para tanto,
ele pensa o fenmeno religioso em dilogo com a fenomenologia e a antropologia
filosfica. Luckmann define a religio como a forma historicamente dada por meio
da qual nos relacionamos com a(s) transcendncia(s). Veremos, daqui a pouco,
como sua noo de transcendncia no deve ser confundida com as ideias de
alm, outro mundo, ganz Andere.
Antes de mais nada preciso levar em conta que Luckmann dedica-se menos
sociologia do que quilo que ele prefere chamar de protosociologia, isto , uma
fenomenologia das estruturas invariantes da vida cotidiana, a qual, por sua vez,
deve servir de base a toda anlise histrico-social rigorosa25.
Para se chegar condio antropolgica da religio torna-se necessrio
reconstruir o processo de formao social do self. Processo social significa: o self
nunca fruto de uma iniciativa totalmente isolada ou independente do prprio
indivduo, mas se constitui na interao com os que esto sua volta. Somente
assim transcendemos nossa condio de mero organismo e nos tornarmos uma
pessoa. Se em parte este processo depende de ns mesmos, por outro ele j se
encontra previamente programado: ao nascermos, somos colocados diante de
universos de sentido produzidos pelos que viveram antes de ns. mais comum
que internalizemos estes universos de sentido que os produzamos por nossa prpria
conta e risco. Luckmann chama essas configuraes de sentido abrangentes de
vises de mundo. So elas que estabelecem o padro do que ou no uma
experincia significativa, determinando nossa orientao diante das coisas, das
24
25
GEHLEN, Arnold. A alma na era da tcnica. Lisboa: Livros do Brasil, s./d., p. 24.
LUCKMANN, Thomas. Phnomenologie und Soziologie. In: SPRONDEL, Walter M.; GRATHOFF,
Richard (Hrsg.). Alfred Schtz und die Idee des Alltags in den Sozialwissenschaften. Stuttgart:
Ferdinand Enke, 1979, p. 205. Cf. SCHNETTLER, Bernt. Thomas Luckmann. Konstanz: UVK,
2006, p. 73-75.
196
197
199
200
201
202
europeias institucionalizadas46.
Com efeito, h que perguntar: ter Luckmann apostado cedo demais na
desinstitucionalizao religiosa? Ter trado uma viso demasiado europeia, talvez
mesmo demasiado alem, do processo? No ter ignorado formas de religiosidade
crist pouco difundidas na Europa central, mas persistentes em outros continentes
e sempre com algum nvel de ancoragem junto s grandes empresas de f, como
o caso do catolicismo popular? Que dizer do leste europeu, do cristianismo
ortodoxo?
Um dos aspectos mais fascinantes a respeito da histria e sociologia da religio
o da recepo e, sobretudo, o do uso que os sujeitos religiosos podem fazer da
produo acadmica. Construes sociais da realidade tm por objetivo explicar
e compreender os processos de constituio dos fenmenos sociais; mas no
raro que os atores se apropriem dessas construes a produo acadmica
propriamente dita , seja para emprestar prtica religiosa e doutrina um grau
de coerncia antes inexistente (como em muitos casos aconteceu com as religies
afro-brasileiras), seja para readequar estratgias de ao a fim de maximizar
resultados. E assim, por uma dialtica sem dvida curiosa, o estudo do religioso
por vezes se torna um fator religioso.
O socilogo espanhol Joan Estruch revelou, h alguns anos, que o papa Joo
Paulo II leu A religio invisvel e, em consequncia dessa leitura, teria estabelecido
como uma das prioridades de seu papado a luta contra a privatizao da religio47.
A se confirmar o relato de Estruch, pode-se ento dizer que a desprivatizao foi, ao
menos em parte, uma consequncia da privatizao. Em outras palavras: Casanova
s pde acertar em seu diagnstico da dcada de 1980 porque Luckmann descrevera
corretamente as tendncias dominantes nas duas dcadas anteriores. Nesse meio
tempo deu-se uma sensvel mudana nas estratgias de ao da Igreja catlica (a
denominao dominante em trs dos quatro casos estudados por Casanova). Uma
das razes disso teria sido justamente o livrinho de Luckmann!
A descrio luckmanniana da situao da religio em contextos modernos
certamente no to completa e indubitvel como parecia poca de seu
aparecimento, mas no menos certo que, tambm aqui, nos encontramos diante
de um mercado no monopolizado de explicaes sociolgicas. Nenhuma delas
pode ter a pretenso de, sozinha, oferecer uma anlise suficientemente abrangente,
coerente e fidedigna do campo religioso contemporneo; nenhuma delas est em
condies de descrev-lo em suas infinitas nuances.
Tudo isso sem dvida importante, mas no chega a atingir aquelas que
acredito serem as duas grandes contribuies de Luckmann: sua teoria das bases
antropolgicas do religioso e sua descrio fenomenolgica das transcendncias.
Sua obra abriu para os estudiosos da religio uma perspectiva radicalmente
nova. Ela nos permite entender por que no vivemos numa era ps-secular,
uma vez que a secularizao (naquela acepo histrico-filosfica convencional,
teleolgica, habermasiana) jamais existiu48. Ela nos permite ver a religio para alm
LUCKMANN, Reflexiones sobre religin..., p. 24.
ESTRUCH, Joan. A conversation with Thomas Luckmann. Social Compass, vol. 55, n. 4, 2008,
p. 539.
48
Da que as pesquisas mais recentes tenham falado cada vez menos em secularizao e cada vez
46
47
203
RESUMO
ABSTRACT
1
2
3
205
6
7
Os versos citados pertencem ao poeta mineiro Dantas Motta, de motivaes diversas como fonte de
inspirao. Praga no imaginrio brasileiro foi o misterioso cenrio onde os estranhos personagens
de F. Kafka atuaram; e, locus do Cemitrio Judaico, ponto de encontro dos chefes das tribus de
Israel, mitema difundido pela literatura antissemita, desde o romance Biarritz (1868), de autoria
de H. O. F. Goedsche (1815-1878), dito sir John Retcliffe, aos Os Protocolos dos Sbios de Sio
(1903).
MOTTA, Dantas. Elegias do Pas das Gerais: poesia completa. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1988,
p. 136.
FLUSSER, Vilm. Bodenlos: uma autobiografia filosfica. So Paulo: Annablume, 2007.
KARPFEN (Carpeaux), Otto. Ficha consular de qualificao, 25 jul. 1939. Arquivo Nacional, Rio
de Janeiro.
MILGRAM, Avraham. Os judeus do Vaticano: a tentativa de salvao de catlicos no-arianos da
Alemanha ao Brasil atravs do Vaticano (1939-1942). Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 12.
HERIS civilizadores. Veja, So Paulo, Editora Abril, 09 dez. 1992, p. 118-119.
206
11
12
13
Quatrocento, membro da elite fundiria e poltica paulista, formada por descendentes dos
povoadores portugueses e espanhis, catlicos romanos, presentes na povoao desta regio,
desde o sculo XVI. O termo foi cunhado em 1954 no aniversrio da cidade de So Paulo. Os
genearcas destas linhagens foram registrados pelo genealogista Pedro Taques de Almeida Paes
Leme (1714-1777), atualizados por Lus Gonzaga da Silva Leme (1852-1919). O genealogista
Marcelo Meira Amaral Bogaciovas, oriundo do grupo pelo costado materno, tem uma dissertao
de mestrado sobre cristos-novos que so parte do grupo. Ver: BOGACIOVAS, Marcelo Meira
Amaral. Tribulaes do povo de Israel na So Paulo colonial. Dissertao (Mestrado em Histria
Social). Universidade de So Paulo. So Paulo, 2006. O quatrocento nomeado por Flusser, o
advogado Jos Bueno de Aguiar (1918-2001), de famlia proprietria em Itatiba, descende do
sevilhano Bartolomeu Bueno, que chegou a So Paulo em 1571.
FINK, Romy. Ficha consular de qualificao, 16 set. 1959. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
FLUSSER, Bodenlos..., p. 169.
Anncio publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 29 jun. 2004, p. A5.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
207
15
16
Agradeo a Alain Bigio, que frequentou o Terrao; a Elaine Eiger, a Guilherme Faiguenboim, ao
professor Nachman Falbel, e ao artista plstico Gregory Alan David Fink, filho do biografado, por
suas contribuies ao trabalho. Sobre os primeiros judeus em So Paulo e o Cemitrio Judaico,
ver: VALADARES, Paulo; FAIGUENBOIM, Guilherme & ANDREAS, Niels. Os primeiros judeus de
So Paulo: uma breve histria contada atravs do Cemitrio Israelita de Vila Mariana. So Paulo:
Fraiha, 2009.
Ttulo da parasha (poro de leitura) (Gnesis: 12:1), lida por um membro da congregao nos
servios religiosos na terceira semana depois do Ano Novo judaico. a narrao da sada do
genearca Avraham Avinu (Abrao Nosso Pai) de sua terra natal para alcanar o mundo, o mito
fundador da etnia: Vayomer Adonai el-Abram lech lecha meartsecha umimoladetecha umibeit
avicha el-haretz asher areka [Traduo: Deus disse a Abro: vai longe de sua terra, de sua terra
natal, e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei].
MENDES, Jos Sacchetta Ramos. Judeus nos municpios paulistas no sculo XX. Vrtices, So
Paulo, Centro de Estudos Judaicos/ USP, n. 3, 2003, p. 09-38.
208
17
209
Tudo isto no lhe fazia um Ser grave. Irradiava alegria18; impresso confirmada
na sua matseiva:
He brought eternal happiness to all knew him.
Voltaremos a sua lpide logo adiante.
sabido que o Judasmo tem 613 mitsvot (regras), divididas entre positivas (ass,
faas) e negativas (l taass, no fars); para serem cumpridas integralmente pelo
observante em todos os momentos da vida. Nada gratuito nestes mandamentos,
eles so um modo de educar para se interagir com o Transcendente, com o Outro e
com a Natureza, na obra do refinamento do mundo. Mas como descobrir a essncia
disto?
A cortesia de Romy Fink a sua cortesia foi vista inicialmente como exagerada
e insinceridade por V. F., e em alguns momentos at como humildade do gueto.
Somente com as observaes e conversas posteriores que ele percebeu que ali
estava algo maior, o cerne tico da religio:
[...] Explicou que para o Talmud h apenas um nico
pecado irredimvel: ofender o prximo. Tudo mais pode
ser compensado, e apenas a compensao redime. Mas
a ofensa irredimvel porque fere a essncia (a alma)
do outro, e esta irrecupervel. Porque a essncia do outro
Ele (louvado seja o Nome). na essncia do outro, e
apenas nele, posso vivenciar Ele concretamente [...].19
a mesma resposta que nassi (prncipe) Hilel (c. 110 EC 10) deu a algum
que lhe pedira para explicar a essncia do Judasmo, enquanto estivesse sustentado
numa s perna: no faas aos outros algo que no queiras para ti. O restante
comentrio. Foi a resposta de Hilel. a chamada Regra de Ouro, baseada
na parasha Vayicr (Levticos, 19:18) que atravessou os milnios e chegou a
Flusser e a Fink. medida que se vai estudando o brocado de Hilel, aumenta-se
a complexidade da formulao at chegar o respeito sagrado pelo Outro, base
da vida humana. O texto de V. F. sobre Romy Fink e o Judasmo denso e seria
leviano condens-lo nestas escassas linhas, mesmo porque o meu propsito
apenas trazer algumas achegas biogrficas do personagem focalizado pelo Autor.
O Palimpsesto Bandeirante
O rabino Reuven Bushbaum, barbudo e culto, nasceu em Bedzin na Polnia
em 1826 e morreu em Hamburgo, a 1900. Ele adotou mais tarde o sobrenome
Fink, tornando-se assim Reuven Fink, nome que passou aos seus descendentes.
O sobrenome Fink a palavra diche para nomear o pssaro tentilho, e pode ser
usado metaforicamente tambm para indicar uma centelha ou fasca. O seu filho
Haim, cujo kinnui20 era Joachim, nasceu em 1850 (data aproximada) e casou-se
18
19
20
210
com Elise Breslau. Este Joachim Fink teve trs filhos: Solomon (1882-1957), que
casou-se com Daisy Grossbaum; Debora, que casou-se com o sefaradi Samuel
Farro e Moses Aron (1883-1977)21, que casou-se com Cerlina Feldbrand (18891969)22, filha de Moses Abraham Feldbrand e Johanna Caro esta Johanna, por
seu pai, o rabino Hirsch Zvi Caro (1829-1894), acreditava descender do rabino
espanhol Yossef [ben Efraim] Caro (1488-1575), cabalista e codificador do
Judasmo domstico atravs do livro Shulchan Aruch (Mesa Posta). possvel que
esta inclinao para o estudo cabalstico tenha continuado dentro da parentela.
O comerciante (na rea da lapidao de diamantes) Moses Aron Fink, apelidado
Mush (Polenta) e a sua esposa Cerlina Feldbrand, durante as suas deambulaes
por Hamburgo, Blgica e Inglaterra, tiveram cinco filhos: Romy, Beatrice (19131997), casada com Salomon Mayer Stein; Helen (1916-1997), casada por duas
vezes, com Mario Becker e Jacob Unterman; Harry (1920-1976), casado com
Carrie Bendheim e Sidney (1925-1931), falecido na infncia.
O primognito Romy nasceu em Londres, a 15 de agosto de 1912. Nomeado
segundo o costume asquenase, que no usa o prenome de algum vivo com medo
que o Anjo da Morte (Malach Hamavet) leve o recm-nascido por engano (os
sefaradis agem justamente ao contrrio), ele recebeu o prenome do ancestral mais
prximo, j falecido, para homenage-lo, o do bisav rabino. Reuven [ben Moshe
Aron] e um kinnui de acordo com a letra inicial do seu shem hakadosh (literalmente
nome sagrado, o nome hebraico usado nas cerimnias judaicas). Em 13 de
novembro de 1914, o casal Fink e os trs primeiros filhos chegaram a Nova York,
no transatlntico RMS Baltic, onde se domiciliaram.
Romy Fink (Fig. 2) s veio ao Brasil muitos anos depois, aps a guerra, em
21 de janeiro de 1960, como advogado de uma empresa txtil de Liverpool, na
aeronave PP-CEN e ficou hospedado no City Hotel em Porto Alegre. Em Londres
ele residia na 62, Grove Hall Court. No voltou, pois o motivo imperativo de sua
sada tinha sido outro:
[...] tinha participado de experincias esotricas, e que
foram tais experincias que o levaram a abandonar a
Inglaterra [...].23
O esoterismo judaico manifesta-se atravs da Kabbalah, sem confundi-la com
21
22
23
o brit milah (circunciso), no caso masculino, mas, guarda alguma ligao, principalmente fontica,
com ele. No h regra escrita para esta substituio onomstica, porm os mais comuns so:
Alberto, por Avraham. Maurcio, por Moshe. Marcos, por Mordecai. Elisa, por La. Clara, por Haia.
Rita, por Sara (de Sarita). Suponho, pois no h esta informao na lpide, que Vilm Flusser se
chamasse religiosamente Zeev (ou Volf) A operao a seguinte: Vilm = Wilhelm (Guilherme)
= Volf (lobo) = Zeev. Isto remete ao animal totmico da tribu de Benjamin contida na beno
de Jac (Genesis: 49:27), dando-lhe a continuidade etnoreligiosa. Aonde estiver, o judeu vai ser
medido, comparado, relacionado com os personagens bblicos. Em cada passo do judeu pelos
caminhos da Galut (dispora) ele busca reproduzir, at inconsciente, os ancestrais. Reencenando o
passado no cotidiano continuadamente. A propsito, o prenome de Vilm foi uma homenagem ao
av paterno de sua me, um dos bisavs maternos (Vilm Basch).
FINK, Moses Aron. Ficha consular de qualificao, 13 abr. 1939. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
FINK, Cerlina. Ficha consular de qualificao, 06 mar. 1959. Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.
FLUSSER, Bodenlos..., p. 171.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
211
26
213
28
Cultura crist-nova como denominei o conjunto de crenas e prticas clandestinas, formada por
oraes, pragas, jejuns e regras alimentares, desenvolvidas dentro de grupos endgamos de origem
judaicos ibricos, em Portugal e no Brasil, convertidos foradamente do Judasmo no sculo XV. V.
VALADARES, Paulo. A presena oculta. Genealogia, identidade e cultura crist-nova brasileira nos
sculos XIX e XX. Fortaleza: Fundao Ana Lima, 2007.
Texto original: Kdo jest moudry aby to pochopil rozvazny aby to poznal (Osas 14:10).
214
RESUMO
A autobiografia do filsofo checo Vilm Flusser
(1920-1991), Bodenlos, traz a biografia de
personagens brasileiros. a sua estratgia para
discutir vrios temas. O cabalista Romy Fink
(1912-1972) foi o escolhido para discutir o
Judasmo. Trago as biografias de ambos neste
trabalho.
Palavras
Chave: Judasmo; Biografias;
Bodenlos.
ABSTRACT
The autobiography of the Czech philosopher
Vilm Flusser (1920-1991), Bodenlos, brings the
biography of eleven Brazilian characters. Is your
strategy to discuss various topics. The Kabbalist
Romy Fink (1912-1972) was chosen to discuss
Judaism. Bring the biographies of both this work.
Keywords: Judaism; Biographies; Bodenlos.
29
215
EPISCOPADO BRASILEIRO
E DEMOCRACIA DO BRASIL (1977-1989)
Joo Marcos Leito Santos1
Elza Silva Cardoso Soffiatti2
Consideraes preliminares
A partir do final dos anos sessenta, com o endurecimento do regime poltico
no Brasil, a Igreja catlica passou a vivenciar um grau crescente de desconforto,
vendo a incurso do autoritarismo do regime poltico-militar atingir seu clero e
mesmo seu episcopado com a violncia dos instrumentos repressivos, ao passo
que via acentuar-se o descompasso entre os valores prprios do cristianismo
como o amor, a fraternidade e a justia e o regime poltico vigente, que num pas
pretensamente cristo tais valores eram objeto da mais absoluta irrelevncia dentro
da prtica poltica do Governo.
A partir do final da dcada de setenta, com a distenso do regime, a Igreja teve
a iniciativa de fazer sair do foro privado as suas contradies com o poder poltico,
notadamente o governo. A partir da foi cada vez mais usual o pronunciamento
da Igreja sobre temas polticos e de conjuntura. bem verdade que a estas
intervenes se pretendeu minorar ao atribuir as mesmas um carter de mero
pronunciamento, que representava muito mais uma reflexo pastoral a partir
de documentos pontifcios e conciliares3 do que um instrumento de contestao
eventualmente propositivo em relao conjuntura poltica do pas.
Este trabalho pretendeu investigar as modulaes e o alcance do conceito de
democracia dentro da compreenso da Igreja no Brasil. necessrio, contudo,
clarificar os limites impostos investigao. Em primeiro lugar, o mencionado eixo
temtico: Igreja e democracia. Em segundo lugar a periodizao que se fixa entre
1977 que inicia o processo de abertura poltica com o governo de Ernesto Geisel at
a promulgao imediata da nova carta constitucional a partir em 1889. Em terceiro
lugar, o corpus restrito aos documentos: Exigncias Crists de uma Ordem Poltica,
Reflexo Crist sobre Conjuntura Poltica, Por uma Nova Ordem Constitucional e
Exigncias ticas da Ordem Democrtica.
Finalmente, o quarto limite merece um esclarecimento adicional. Importa afirmar
1
217
que aqui se trabalha com documentos produzidos pela hierarquia eclesistica, pelo
episcopado, e que apesar de amparada no direito cannico a palavra episcopal
como autoritativa e normativa, os pronunciamentos dos bispos possuem duas
especificidades. A primeira, que o setor usualmente chamado progressista, e
mais comprometido com o iderio do Segundo Conclio Vaticano, adotou uma
perspectiva de maior incorporao do laicato na vida da Igreja implementando
um modelo de eclesialidade menos clerical e institucional, conforme o princpio
conciliar de povo de Deus. Isto importa aqui porque ao falar da Igreja na ao
dos seus bispos, no sinnimo de ignorar toda a fermentao e militncia das
comunidades de uma Igreja popular nos processos de resistncia, nem reduzir a
Igreja sua hierarquia.
A segunda dimenso reala o fato que as Conferncias Nacionais de Bispos, no
vo alm do carter associativo e de fraternidade, sem efetiva institucionalidade
cannica, cuja fora autoritativa de suas aes e dos seus pronunciamentos se situa
dentro das relaes de poder na Igreja como um todo e nos seus pases respectivos.
Isto , a fora dos pronunciamentos da CNBB era simtrica a sua posio dentro
do tecido poltico brasileiro e da Igreja enquanto agente poltico.
Uma leitura para a Democracia
Historicamente, no desenvolvimento do Estado liberal a nfase no controverso
conceito de democracia recaiu sobre a liberdade individual em relao ao Estado,
atravs da manifestao concreta das liberdades civis e polticas, diferindo da
liberdade da antiguidade clssica, e ainda entendida como participao direta na
formao das leis atravs de um corpo poltico. Aos direitos de manifestao da
vontade, de opinio, e de associao, assomado o direito de escolha/ voto, como
atribuio de capacidade jurdica especfica.
A democracia liberal que se funda no reconhecimento dos direitos fundamentais,
na verdade manifestou um desenvolvimento mais quantitativo atravs da ampliao
do direito de voto e multiplicao dos rgos de representao, do que o qualitativo
que implicasse numa alternativa real de mudana da Ordem.
No fim do sculo XIX formulou-se uma crtica, que desejou oferecer uma
base de natureza cientfica e ftica. Representada, sobretudo, por Vilfredo Pareto,
Gaetano Mosca e Ludwig Gumplowicz, a crtica entendia a democracia, idealmente
concebida, em si mesma limitada, uma vez que inevitavelmente uma elite
representada na classe poltica que detm o poder e, portanto, no poderia existir
qualquer forma de poder real seno a oligarquia. Tal crtica no se constituiu uma
negao do modelo democrtico, mas prope uma reformulao do conceito de
democracia, como realizao do bem comum, no qual, naturalmente, situam-se
vrios grupos em concorrncia pela conquista do poder atravs de uma luta, que
tem por objetivo o sufrgio popular.
Na teoria contempornea a ideia de democracia ideal tende a esgotar-se no
modelo de normas de funcionamento da disputa poltica, principalmente, como
rgo mximo legislativo com membros eleitos e tambm para os cargos do
executivo, dos chefes de Estado, em funo do princpio do sufrgio universal,
da liberdade e das alternativas reais de escolha para o eleitorado, e ainda pelo
218
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, Socialismo. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1993, p. 159
das massas nas decises que lhes cabem, e que o prprio estatismo autoritrio
engendra. Na verdade, como no consegue o enquadramento das massas, acaba
por provocar o aumento da reivindicao generalizada de democracia direta.
Interveno episcopal na conjuntura dos anos 70 e 80
Desde o estabelecimento do processo de colonizao no sculo XVI, a Igreja foi
presena determinante na sociedade brasileira e marcou a sua presena poltica
atravs de uma ntima relao com o poder, amalgamada muitas vezes com o
Estado. O processo se manteve durante o Imprio, apesar das dissidncias do
clero liberal e depois de bispos romanizados. Com o advento da repblica veio a
laicizao do Estado e a sua separao da Igreja. Mas aps um perodo de retrao
a Igreja reorganiza a sua estratgia de interveno social e poltica implementada
a partir dos anos 20 por D. Sebastio Leme, Arcebispo do Rio de Janeiro com
vistas a influenciar o cenrio poltico.
Este processo se agudiza com as estreitas relaes entre D. Leme e o presidente
Getlio Vargas, o que garantiu uma presena sutil, porm efetiva, da Igreja durante
todo o Estado Novo (1930-1945) e no segundo governo Vargas (1951-1954).
Posto a termo aquele momento poltico a Igreja continuou a sua ao, conforme se
verifica na literatura especializada5, que acompanhando os processos da chamada
Revoluo Brasileira se incorporou no movimento que culminou com o golpe
militar de 1964, ao qual ela ofereceu inicialmente irrestrito apoio.
O endurecimento do regime no final dos anos sessenta revelou uma forma
crescente de dualidade entre o ideal e a prtica poltica do regime, de um lado, e
os valores religiosos e humanitrios defendidos pelo cristianismo, de outro. Assim,
a proliferao dos casos de violncia, tortura e morte e o fato que estas violaes
comearam a atingir membros da prpria Igreja, incluindo o clero, a hierarquia e
religiosos identificados com movimentos como o Movimento de educao de Base
e a Ao Catlica6, ampliou entre vrios segmentos o inconformismo com os efeitos
sobre a sociedade do modelo em vigor, e a tendncia para oferecer resistncia ao
Regime. A nova postura assumida pelo Episcopado no foi um mpeto de um
momento especfico, mas resultado de um processo gestatrio que durou dez anos,
e s foi efetivamente manifesto a partir dos anos setenta.
Em 1964 estava determinada a posio da Igreja em relao ordem poltica
como se reconhece em uma nota publicada pela CNBB em maio do mesmo ano:
Protestamos fidelidade norma que sempre orientou os bispos do Brasil, de
colaborar com o Estado7, perspectiva que se mantm ainda em 1969 em reposta
ao Ato Institucional n 5, ao afirmar: A Igreja Catlica [...] no pode fugir na
5
220
ora presente, de uma leal contribuio com o Governo em todos os setores [...]
apesar de deixar manifesta uma preocupao na medida em que a situao
institucionalizada no ms de dezembro ltimo possibilita arbitrariedades, entre as
quais as violaes dos direitos fundamentais8.
A situao aponta para uma mudana, oito anos mais tarde, quando D. Celso
Queiroz, Bispo-Auxiliar de So Paulo, parece sugerir uma reao crtica da Igreja,
que referisse a uma avaliao autocrtica, quando descreve que a Igreja foi desde
a colnia at o imprio um departamento do Estado, porm, se por um lado
h uma longa tradio, quer de dependncia, quer de colaborao o que supe
no mnimo, uma concordncia fundamental de certos objetivos entre a Igreja e o
Estado, por outro preciso que se caracterize melhor quais so os objetivos em
torno dos quais se elabora a concordncia fundamental9. Esta caracterstica de
autocrtica se manifestou mais precisamente no texto do documento Eu Ouvi os
Clamores do Meu Povo, de 1975, ao afirmar: Temos que reconhecer com esprito
de verdadeira humildade e penitncia, que a Igreja nem sempre tem sido fiel a sua
misso proftica, ao seu papel evanglico de estar sempre ao lado do povo.
Com isso a Igreja impe uma nova interveno como propositura, cujo
fundamento era os pressupostos ticos da Igreja, que agora se volta aos reclamos
por uma nova ordem social que se pretende mais justa, uma vez que entendem os
bispos toda ordem poltica se funda sobre pressupostos ticos, e essa compreenso
aparecer em todos os nveis como elemento justificador da Igreja na discusso
da conjuntura poltica, como se v, por exemplo, no primeiro documento aqui
estudado, quando afirma que a ordem poltica est sujeita a moral. Evidenciase ento que no uma relao fornea, mas uma relao de subordinao:
est sujeita. Ento, considerando a natureza religiosa, crist e catlica da moral
pretendida, se antepe a Igreja ao prprio sistema poltico, uma vez que sistema e
regimes polticos, no sistematizam cdigos ticos, mas a Igreja sim, e o faz a partir
de uma determinao da norma teolgica sobre a ordem filosfica.
A Igreja assume que a sua tarefa concernente s questes sociais uma
implicao da sua ao pastoral, e mais, uma exigncia da sua misso no mundo.
Afirma D. Pedro Casaldliga, bispo de So Flix do Araguaia, que evangelizar
promover o homem concreto [...] defesa dos direitos humanos e a promoo dos
povos10, e a esse discurso comeam a dar adeso outros eclesisticos em vrios
pontos do pas.
A conscincia da real condio da sociedade brasileira, submetida a um estado de
exceo, fez aparecer um nmero crescente de documentos, pronunciamentos cuja
tnica vai apresentando maior contundncia, implicando uma tomada de posio.
Assim, o reclamo por mudanas identifica como problemas a serem encarados, a
violao dos direitos humanos, a ordem institucional, a marginalizao do povo
em relao aos processos decisrios, a censura, a m distribuio de riqueza e
SEDOC, abr. 1969, c. 1311.
QUEIROZ, Antonio C. A Igreja no Brasil. Rio de Janeiro: CRB, 1977, p. 11.
10
Extra. Realidade Brasilia, n. 3, fev. 1977, p. 444-445. Apud AZZI, Riolando. Em prol de uma
nova ordem social: a posio do Episcopado Brasileiro na dcada de 1970-1980. Sntese, n. XXI,
mar. 1988.
8
9
221
222
negativos. Esta divergncia era at ento inconfessa, mas se tornava cada vez mais
evidente.
O documento fora precedido por um explicativo, em outubro do ano anterior,
sobre as violncias de que fora vtima a Igreja, e seu contedo mais simples produziu
boa repercusso junto s comunidades, soando como alternativa s tenses
internas do episcopado. A questo foi fixada como tema para a Assembleia Geral,
sendo preparado um documento em forma esboada, que facilitou a elaborao
do estudo.
Ele tem como primeiro elemento distintivo o carter defensivo que a Igreja
assume frente ao pblico destinatrio, observao vlida tanto para o Estado como
destinatrio privilegiado, de quem se esperava a mudana de conduta, isto , a
conformao ao modelo de moral crist proposto, quanto sociedade em geral,
que ainda no tem como experincia a interveno da Igreja na ordem poltica
na condio de antagonista. Assim, o primeiro esforo demonstrar que a Igreja
tem conscincia de no esta[rmos] exorbitando de nossa misso, e que a sua
interveno tem como razo referente, os critrios da f15.
Os objetivos do texto so claros: primeiro, estabelecer a fonte autoritativa daquilo
que se apresenta como exigncia, que no se situa no mbito de propostas de
teoria poltica ou coisa similar, mas de um dado axiolgico para alm de qualquer
discusso, que a inspirao produzida pelo prprio Deus e a demanda que ela
impe aos que tm f. Em segundo lugar, visa afirmar a validade da prerrogativa
a qual se prope a Igreja, de ser interlocutor em torno de temas polticos, uma vez
que no est exacerbando ao ocupar este foro.
A base do argumento se constri sobre dois pilares: os pressupostos antropolgicos
de inspirao crist e a uma anlise de conjuntura, passando pela discusso
pelo papel do Estado. O homem, ser social, possui necessidades econmicas,
sociais, culturais e religiosas, porm alm destas [possui] urgentes necessidades
de carter mais geral (paz, segurana, ordem e bem comum) e em vista dessas
necessidades que se associam em comunidades mais amplas e criam a sociedade
poltica, representada pelo Estado16. Este, por sua vez, uma novidade moderna,
posterior famlia, pessoas e instituies. O que o texto pretende indicar o valor
da tradio, pois, por ser uma experincia recente, o Estado deveria procurar
simetria com as instituies precedentes, a Igreja. Afirma:
O Estado no outorga direitos e tem sua razo de ser na
promoo do bem comum, que significa o conjunto de
condies concretas que permitam a todos atingir nveis
de vida compatveis com a dignidade humana. No nvel
dos fins, o Estado ordena-se s pessoas, todas as suas
aes devem fundar-se no Direito, que lhe cabe respeitar e
promover, e no Direito que se funda a fora e a autoridade
do Estado.17
Conferncia Nacional dos Bispos de Brasil - CNBB. Exigncias Crists de uma Ordem Poltica. So
Paulo: Paulinas, 1977, p. 13.
16
CNBB, Exigncias Crists..., p. 09.
17
CNBB, Exigncias Crists..., p. 11.
15
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230
aquela de que se v sob a imposio de uma ambincia que maior do que ele
mesmo, e v progressivamente o controle do seu destino lhe fugir das mos, e por
isso mesmo tambm v reduzida a sua capacidade de ingerncia no contexto, e a
alternativa esperada a reao, mesmo conservadas a impreciso do gesto e seus
efeitos reais. A Igreja viu a escalada autoritria do regime, primeiro, e depois a
inaugurao de um novo momento com a abertura. Nos dois tempos, o episcopado
foi precedido pela movimentao do laicato, que em relao sociedade dava
mostras de engajamento, e no mbito eclesistico abria vias de uma perigosa
independncia. Vendo um movimento maior do que ela, e perdendo a capacidade
de efetiva influncia, o Episcopado fala, porque manter-se em silncio no era
(mais) possvel.
A segunda ideia de algum que no rene, naquela conjuntura, a capacidade
de avaliao lcida e de interveno precisa. A Igreja no se habilita a uma
apreciao lcida, porque historicamente seus vnculos com o Estado a fizeram
parte dele, seno tantas vezes cmplice omissa de suas aes. A sua capacidade
de interveno manifesta-se nos limites da sua concepo de democracia, e na
ambiguidade dos destinatrios dos documentos, que nem o universo especfico
do catolicismo nacional, nem a sociedade, nem o governo, ao mesmo tempo em
que se dirige aos trs.
A terceira d conta do inevitvel reconhecimento que alguma coisa precisava
ser feita, algum precisava faz-lo, e se no h quem faa, ento, eu o farei, mesmo
ante as fragilidades dos efeitos da minha interveno. A catolicidade latente do
povo brasileiro favoreceu para que a Igreja dissesse aquilo acerca do que outros
guardavam silncio. A Igreja enfrentou o Regime quando nem todos tinham
abraado a sua distenso como bandeira. Possui os seus limites. Com as suas
proposies as coisas no se modificaram mais profundamente no que diz respeito
a todas as faces da conjuntura, como modelo econmico, reforma agrria, etc. e
nem nos foi oferecido viver sob a gide dos fundamentos ticos propostos.
A quarta marca de um desesperado a inteno de abranger a totalidade da
problemtica que lhe envolve. A Igreja imaginou ser possvel diluir toda a discusso
em torno da democracia, a partir da releitura de uma prtica poltica determinada,
cuja mudana ensejaria a instalao de cnones definitivos da ansiada Ordem
Democrtica. Como quem ainda se coloca a merc de uma graa, imaginou
que as mudanas de iniciativa por parte do Estado substitussem a conscincia e a
organizao das massas espoliada e alijadas do processo poltico, as mesmas que
Poulantzas indica fomentando a crise e construindo novos espaos de manifestao.
A cano de amor o esforo de resgatar a ideia das potencialidades da construo
deste discurso democrtico. Passa inevitavelmente pelo aprendizado, porm,
destina-se a uma realizao mais ampla do que aquela contida num horizonte mais
imediato. Falar de democracia resgatar de fato a ideia da dignidade humana, e
talvez esta seja a grande utopia, de acreditar que o homem realmente dotado de
dignidade, a dignidade de quem possui dignidade, de quem a reconhece, e como
quem ama, cr que possvel, e caminha...
231
RESUMO
ABSTRACT
232
Mestre em histria pela Universidade Federal de Gois, Doutorando em Histria pela Universidade
de Braslia. Pesquisador financiado pelo CNPq. E-Mail: <[email protected]>.
Ordlio ou julgamento por ordlio uma prtica decisria onde a inocncia ou culpa de um
sujeito determinada pela sujeio do mesmo a uma experincia dolorosa e muitas vezes de risco.
Geralmente o teste de vida ou morte e a sobrevivncia atesta a inocncia do ru. Em alguns
casos o ru considerado inocente se no sofre ferimentos ou se seus ferimentos se curam com
o tempo. Em todos os casos o ritual do ordlio visto pelos seus praticantes como uma forma de
acesso direto ao julgamento divino. PILARCZYK, Ian C. Between a Rock and a Hot Place: issues
of subjectivity and rationality in the Medieval Ordeal by Hot Iron. Anglo-American Law Review, n.
25, 1996, p. 87-112. Disponvel em: <http://iancpilarczyk.com/>. Acesso em: 21 nov. 2012.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
233
Monossilabizao do persa mdio para o avstico Ahura Mazd. Em certos textos a divindade
pode aparecer simplesmente como Mazd, ou at Mazd Ahura. Estes dois eptetos que formam
o nome da divindade referem-se, segundo Skjrv, suas funes, porm dado a antiguidade
das palavras o autor prefere no fazer uma traduo das mesmas. SKJRV, Prods Oktor. Introduction to Zoroastrianism. Cambridge, EUA: Harvard University, 2006, p. 16. Iranian Studies at
Harvard University. Stio eletrnico institucional. Harvard University, Cambridge, EUA. Disponvel
em: <http://www.fas.harvard.edu/~iranian/>. Acesso em: 26 jun. 2013. J Boyce apresenta uma
possvel traduo para os eptetos: Senhor da Sabedoria. BOYCE, Mary. Textual sources of the
study of Zoroastrianism. Chicago: University of Chicago Press, 1990, p. 09.
234
Vahman, (Bahman ou Wahman) persa mdio para Bom pensamento ou Bom propsito, palavra advinda do processo de monossilabizao do avstico Vohu Manah. A teologia zoroastrista admite a existncia de sete hipstases (sentimentos abstratos que se apresentam como seres
concretos) que fariam parte da essncia de Ohrmazd, conhecidos como os grandes Amespand,
monossilabizao do persa mdio para o avstico Amesha Spentas, Imortais Santos. Um destes
seres seria o Bom Propsito ou Bom Pensamento, responsvel pela criao e mantimento de
todas as formas de gado, i.e. o prprio Vohu Manah. BOYCE, Textual sources, p. 13. SKJRV,
Introduction to Zoroastrianism, p. 07.
10
11
235
SANDERS, E. P. Judaism: practice and belief (63 B.C.E.-66 C.E.). Londres: SCM; Philadelphia:
Trinity Press International, 1992, p. 47.
13
Nas citaes diretas contidas neste artigo o contedo que aparece entre colchetes foi por mim adicionado quando julguei facilitar alguma compreenso ao leitor. J o contedo das citaes diretas
que aparecem entre parnteses pertencem ao texto do prprio autor citado.
14
236
16
PIEPER, Josef. Tradition: concept and claim. Indiana: St. Augustines Press, 2010, p. 20.
17
237
COLLINS, John J. Daniel, with an introduction to Apocalyptic literature. Grand Rapids: William B.
Eerdmans, 1984, loc. 95 [Kindle Version].
19
20
21
238
22
23
24
239
25
26
gveda uma coleo de textos vdicos escritos em snscrito, considerada um dos mais antigos textos
religiosos conhecidos. Os escritos contm material mitolgico e potico acerca da origem do mundo, e
de louvor a divindades e oraes por sade e prosperidade. Sua linguagem considerada uma das mais
antigas amostras de uma PIE. COLLINS, Brian [comments]. Rig Veda. (ca. 1700-1200 BCE). Publicao eletrnica. Disponvel em: <http://www.milestonedocuments.com/documents/view/rig-veda>.
Acesso em: 19 ago. 2013.
SKJRV, Introduction to Zoroastrianism, p. 05.
27
I.e. as entidades malignas. O Vendidad uma coleo mista de textos em prosa escritos em avstico jovem, provavelmente copilado no perodo Parto. A maior parte do texto trata das leis de
pureza como sendo maneiras de se combater as foras do mal. Em certo estgio, provavelmente
durante o incio do perodo islmico, ele tornou-se parte de uma celebrao noturna da Yasna, na
qual era lido integralmente, em alto e bom som. BOYCE, Textual sources..., p. 02.
28
BOYCE, Textual sources..., p. 01-04. KELLENS, Jean. Avesta. In: Encyclopedia Iranica. New
York: Routledge and Kegan Paul, 1987, p. 35-44.
240
30
Vohu = bom; khshathr = poder (desejvel), domnio, o reino de Deus. BOYCE, Textual sources, p. 13.
COLLINS, Daniel, with an introduction, loc. 109.
31
ISAAC, Efraim. 1(Ethiopic Apocalypse of) ENOCH. In: The Old Testament Pseudepigrapha - Apocalyptic Literature & Testaments. New York: Doubleday, 1983, p. 07.
32
241
33
COHN, Norman. Cosmos, Chaos, and the World to Come. Yale: Yale University Press, 1999, p.
175.
34
35
242
Do persa mdio cobre fundido. MacKENZIE, David Neil. A concise Pahlavi dictionary. Oxford:
Oxford University Press, 1986, p. 173.
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243
244
metal incandescente que, para a sua tradio, ocorreria ao fim do tempo limitado
e preordenado pelo prprio Ohrmazd.
Quanto origem da imagem do ordlio universal a hiptese admitida por
Cohn, a de que Zaradut transformou um antigo ritual tribal e provveis contos
antigos sobre lava vulcnica que conhecera em algum momento na grande soluo
divina para distinguir os perversos dos justos e estabelecer novamente a ordem no
mundo. Este desgnio ltimo o ordlio final e cabal, descrito na Y.51:9:
9. Pelo corte que destes s pernas deles pelo teu fogo
ardente, Mazda, para estabelecer uma marca a ser
colocada com metal incandescente sobre os seus seres a
fim de marcar o possesso pela Mentira para destruio, Tu
continuars a prover fora de vida para o que sustenta a
Ordem.39
Por meio deste ordlio universal a ordem final estabelecida pela providncia
divina, o mundo expurgado de todo o mal, inclusive dos mpios mortos, e os que
sustentam a ordem continuam recebendo o dom da fora da vida. O propsito do
ordlio universal ao final do tempo limitado anlogo ao dos ordlios cotidianos: os perversos so destrudos por metal fundido. Lommel concorda que a noo
de uma inundao por rios de metal incandescente que prova os justos e injustos
provavelmente uma fuso de contos acerca de erupes vulcnicas e seus fluxos
de lava fervente com uma antiga pratica tribal40. Esta antiga prtica tribal, acredito,
foi mantida e repassada pela tradio zorostrica na forma do j supracitado ordlio pelo roy descrito no Fargard 4:151-158.
Todos estes temas de elementos ordlicos que figuram na tradio avstica
parecem se repetir na tradio judaica tardia do Segundo Templo, que ser
investigada nesta pesquisa principalmente, por meio de 1En. num trecho desse
amlgama de obras apocalpticas, o captulo 67, onde possvel perceber uma
curiosa semelhana com o evento predito na Y.51.
Em 1En.67 encontramos vrios elementos ordlicos, percebidos anteriormente
na tradio avstica, por sua vez aplicados tambm ao que se esperava para o fim
dos tempos. Nos versos de 4 a 10, nos deparamos com a descrio de um grande
julgamento, que a meu ver, possui caractersticas muito semelhantes as j vistas
anteriormente na tradio avstica:
4. E eles iro colocar esses anjos que praticaram injustia
no vale flamejante que meu av Enoch mostrou-me antes,
no oeste, nas montanhas de ouro e de prata e de ferro e de
metal costurado e de estanho.
5. E eu vi o vale, em que houve um grande tremor e
39
SKJRV, Oktor. Zoroastrian Texts: translation with notes. Cambridge, EUA: Harvard University,
2007, p. 49. Iranian Studies at Harvard University. Stio eletrnico institucional. Harvard University,
Cambridge, EUA. Disponvel em: <http://www.fas.harvard.edu/~iranian/>. Acesso em: 26 jun.
2013.
40
COHN, Cosmos, Chaos, and, p. 97; LOMMEL, Herman. Die Religion Zarathustras nach dem
Awesta dargestellt. 2. ed. Tbingn: Olms, 1971, p. 219.
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agitao de guas.
6. E quando tudo isso aconteceu, daquele ardente metal
incandescente e da agitao (de guas) naquele lugar,
o fedor de enxofre foi gerado, e misturado com aquelas
guas; e o vale daqueles anjos que haviam se desviado
queimado at a sua fundao.
7. E atravs dos vales daquela terra emergiram rios de
fogo, onde os anjos que haviam se desviado e os que
habitam sobre a terra sero julgados.
8. E nesses dias essas guas serviro os reis e os poderosos
e os exaltados que habitam a terra, para a cura de sua
carne e o julgamento de seus espritos. Seus espritos esto
cheios de luxria, ento a carne deles ser julgada, porque
eles negaram o Senhor dos Espritos. E eles viram seu
julgamento todos os dias e no acreditaram em seu nome.
9. E quanto mais sua carne queimada, mais a mudana
toma lugar em seus espritos, para todo o sempre, porque
perante o Senhor dos Espritos nenhuma palavra de
mentira ser dita.
10. Vir o julgamento sobre eles porque eles acreditaram
na luxria de sua carne, mas eles negaram o Esprito do
Senhor.41
Uma aparente diferena estaria na presena dos anjos cados durante este
julgamento, mas no consideramos este fator muito distintivo entre as duas tradies
j que a avstica tambm tem seus seres espirituais malignos sendo julgados e
punidos no final dos tempos. Feita esta ressalva, vemos as semelhanas entre as
tradies na questo das montanhas metlicas (4) que ao se derreterem tornam-se
rios de metal incandescente (6) que enchem o vale, como uma espcie de dilvio,
s que desta vez de metal incandescente, varrendo a terra dos transgressores
que nela se encontram, cr-se que ningum escapar. Assim como na tradio
avstica, seres espirituais, reis, grandes e poderosos, todos sero punidos pelos rios
de fogo, pois esto cheios de transgresso (8) e no queimar de seus corpos seus
espritos tambm sero destrudos e assim no podero mais se vangloriar perante
a divindade (9). interessante notar a questo dos corpos dos mpios tambm
sendo destrudos, que bem semelhante no zoroastrismo. uma concepo muito
prpria a essas duas religies que o homem seja visto de maneira integral mesmo
no ps vida. Por isso, h de haver a ressurreio de todos os mortos, mesmo que
estes ressuscitem para a perdio.
O tema do ordlio universal que separar os justos dos mpios aparece em
ambas as tradies, ligando judeus e zorostricos numa certeza comum: a de que o
bem e a ordem um dia sero restabelecidos pela divindade atravs de rios de fogo e
metal incandescente. Essa crena foi compartilhada por duas religies que tiveram
em comum a opresso sobre seus praticantes, e um extenso conjunto de normas e
41
246
RESUMO
ABSTRACT
247
3
4
249
250
CHARAUDEAU, Patrick. Para uma nova anlise do discurso. In: CARNEIRO, Agostinho et al. O
discurso da mdia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996, p. 10.
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251
252
253
com a tez e os traos da raa ariana, constituindo as imagens divinas que se tornam
mentores da religio e da f que, segundo as estatsticas, mantm o maior nmero
de seguidores e fieis no apenas no Brasil, mas no mundo.
O Imaginrio
O antroplogo G. Durand escolheu para a epgrafe de seu livro, A imaginao
simblica10, o pensamento de E. Cassirer, que diz: Um sinal uma parte do mundo
fsico do ser (being), um smbolo uma parte do mundo humano do significado
(meaning).. Sua inteno foi distinguir os dois sentidos do termo imagem e
deixar claro que, em um, a imagem se mostra diretamente como uma coisa, algo
concreto e facilmente reconhecvel; em outro, ela surge de modo indireto como
uma sensao, uma lembrana vaga ou uma presena imaterial. No primeiro caso,
a imagem pode ser considerada, em sua forma perceptvel, como um signo, sinal
ou cone; no segundo, como um smbolo, algo percebido intuitivamente. Entendese, pois, o smbolo como a representao que faz aparecer um sentido que pode
ser, simultaneamente, csmico, onrico ou potico e revelar-se, ao mesmo tempo,
como significante (forma) e significado (sentido), manifestando-se como linguagem
em suas vrias formas e significaes mticas. Percebe-se, ainda, que h diferena
entre a atividade de imaginao e a de imaginrio. Se a primeira a faculdade de o
homem usar, elaborar ou reproduzir imagens j que estas, por natureza, so efmeras,
ambguas e incompletas, a segunda corresponde s formas criativas e nicas de cada
indivduo manifestar-se sensivelmente e interagir em todo e qualquer grupo social.
Em sua obra fundamental, As estruturas antropolgicas do imaginrio11, considera
Durand como hiptese de trabalho, que existe uma estreita concomitncia entre
os gestos do corpo, os centros nervosos e as representaes simblicas12, os quais,
integrados a esquemas afetivos, determinam a convergncia das imagens para
centros organizadores da vida mental, denominados regimes. A mobilizao
das imagens nesses regimes tem, assegura Durand, um objetivo: neutralizar ou
vencer a conscincia da finitude humana, contrapondo-se s imagens do grande
Mal, ou seja, passagem do tempo e certeza das diferentes faces da morte,
seja biolgica, social, afetiva ou funcional. Ao se examinar mais atentamente essas
estruturas, percebe-se que tais contraposies ocorrem por meio de trs regimes: o
diurno congrega as imagens que se manifestam como modalidades heroicas, pois
privilegiam a ao dialtica e a inclinao para o enfrentamento (separar e afrontar);
o noturno concentra as modalidades msticas que se voltam para a assimilao e
a sensorialidade (ligar e harmonizar); finalmente, o crepuscular13 corresponde s
modalidades de alternncia consciente do regime diurno com o noturno, buscando
a sntese e a tese, prprias da busca pelo equilbrio do espao e do tempo cclico
DURAND, Gilbert. A imaginao simblica. Lisboa: Edies 70, 1993, p. 07.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropolgicas do imaginrio. So Paulo: Martins Fontes, 2002.
12
Cf. DURAND, As estruturas antropolgicas..., p. 51.
13
A distino deste terceiro regime foi prevista por Durand. Ver: DURAND, Gilbert. Mito, smbolo e
mitodologia, Lisboa: Editorial Presena, 1982, p. 79. A aprovao de sua descrio e nomenclatura
est formalmente confirmada por ele em: STRONGOLI, Maria Thereza. Encontros com Gilbert
Durand: cartas, depoimentos e reflexes sobre o imaginrio. In: ROCHA-PITTA, Danielle (org.).
Ritmos do imaginrio. Joo Pessoa: Ed. Universitria/ UFPB, 2005, p. 145-172.
10
11
255
(sistematizar e ordenar).
As imagens que simbolizam o Mal, por sua vez, agrupam-se segundo trs
configuraes diferenciadas como macroimagens: (1) teriomorfas, quando
assumem a forma de animal; (2) nictomorfas, porque suas imagens ligam-se noite
ou escurido; (3) catamorfas, quando se referem queda moral, social ou fsica.
Segundo Strngoli, aps a reorganizao dos regimes, tais imagens no pertencem
a nenhum dos trs regimes: so as formas de o imaginrio figurativizar o Mal que,
uma vez conhecido, mais facilmente vencido pelo emprego das estruturas de
imagens dos trs regimes. O reconhecimento das macroimagens a primeira ao
do imaginrio para vencer o Mal, visto que racionalizar ou operacionalizar os
gestos do homem segundo determinadas estruturas do inconsciente coletivo leva
descoberta do arqutipo que se manifesta, segundo Durand14, como o ponto de
juno entre o imaginrio e os processos racionais.
256
Tal pensamento nos faz compreender porque Durand, em toda a sua longa
e profunda obra sobre os regimes, no se detm em dizer razes ou expor
dados que comprovem a razo da f de uma ou de outra das vrias religies ou
mitos sobre as quais trabalha. Na verdade, ele somente cita as crenas de forma
aleatria em termos do valor expressivo de sua crena e descreve algumas de suas
estruturas, tendo como fim fazer com que se compreenda a generalidade semntica
do imaginrio religioso. Detm-se, assim, em mostrar o que simplesmente
comunicvel, ou, segundo Wittgenstein, indizvel linguisticamente, mas
compreensvel imaginariamente.
Em suas explicaes sobre o dinamismo das imagens que mobilizam os regimes,
Durand refere-se, em longos pargrafos, a inmeros rituais e figuras mticas para
elucidar a construo antropolgica do imaginrio religioso. Dentre essas figuras
cita nominalmente, vinte e cinco vezes, a imagem Cristo, figura principal das
crenas que compreendem as vertentes religiosas do cristianismo. Para explicar
os sentidos de sua sacralidade, Durand recorre a outras imagens, cujo sentido
lhe afim, a saber: cristo (e suas variantes em gnero e nmero), os termos
cristianismo e catolicismo, e os nomes Virgem Me, Maria e Santa Maria.
Tais substantivos sero denominados smbolos referenciais, para se distinguirem
dos usados por Durand em sua anlise.
Transcrevem-se, na anlise, esses pargrafos, com o objetivo de motivar o leitor
a observar como Durand trata antropologicamente as vrias faces de Cristo e suas
situaes mticas sem insistir sobre distines de crena, ao contrrio, buscando
suas afinidades. Transcritos por ordem de sua sequncia nos textos explicativos das
imagens simblicas dos trs regimes, referendados pelo nmero de sua pgina18, os
textos so precedidos por duas informaes: a) o nome do regime e as estruturas
simblicas que orientam o imaginrio em sua forma de ser; b) o smbolo que
traduz melhor seu modo de fazer. Com o objetivo de facilitar tal compreenso,
destacam-se em negrito no somente o termo Cristo, como os que lhe so afins.
ASCENSO regime diurno: altura e superioridade
smbolo ascensional: gigantificao e poder.
p. 135f: A finalidade do arqueiro, tal como a inteno do
vo, sempre a ascenso. o que explica que o valor
primordial e benfico por excelncia seja concebido pela
maior parte das mitologias. O alto, escreve Eliade
uma categoria inacessvel ao homem, como tal pertence
por direito aos seres sobrehumanos. Isso explica o
processo religioso de gigantizao da divindade. Esse
gigantismo atinge no s o nosso deus nacional Gargan,
como tambm os nossos grandes homens polticos
cujas imagens so gigantificadas como era a de Cristo na
Religiologiques, Dossi Construire lobjet religieux, Montreal, Universit du Quebec, nmero
coordenado por Guy Mnard, 2o trimestre/ 1994, p. 17.
18
Para facilitar o reconhecimento do texto na pgina na obra As estruturas antropolgicas do
imaginrio, seu nmero est acompanhado de letras que indicam a parte da folha de onde foi
retirado, a saber: i (inicial), c (centro), f (fim).
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Ritual mgico para prevenir ou afastar o mal. Cf. HOUAISS, Dicionrio Eletrnico...
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Termo formado pelo antepositivo, do lat. heres, dis cujo sentido herdeiro ou herana. Cf.
HOUAISS, Dicionrio Eletrnico...
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265
266
RESUMO
ABSTRACT
SCHWARZ, Fernand; DURAND, Gilbert & MORIN, Edgard. Eliade: o reencontro com o sagrado.
Lisboa: Edies Nova Acrpole, 2005, p. 120.
30
SCHWARZ, DURAND & MORIN, Eliade, p. 130.
29
267
269
ainda uma atitude equivocada, tal qual atribu-los, em sua totalidade, um sentimento
cristo imaculado.
Anita Novinsky desenvolveu diversos estudos sobre o conceito de marranismo,
permitindo avanos interpretativos. Com isso, ressalta a busca de um instrumental
conceitual que respeite a complexidade da vida judaica no mundo ibrico. No
caso do tema deste captulo, estabeleceremos correlaes entre o marranismo e
a Idade Mdia Visigoda, como uma sociedade produtora de conversos. Esses
fundamentos foram, sem dvidas, resgatados pelo Estado espanhol no sculo XV.
Logo, ainda que no encontremos no medievo uma instituio do porte do
Tribunal do Santo Ofcio, a questo judaica pode ser inteiramente apreendida no
seio das polticas de converso e de segregao religiosas desenvolvidas, diversas
vezes, por autoridades formais.
importante compreendermos que, ao forjar o homem hispnico sob
critrios territoriais, polticos e religiosos, os poderes visigticos, ainda no sculo
VII d.C., findam por reiterar e por tornar ainda mais complexo o mosaico de
heterogeneidades sociais que marcou a pennsula Ibrica desde tempos romanos.
Tal complexidade legitimada pela construo da questo judaica, notadamente
associada s chamadas converses seriais.
O processo de converso, nessa regio, ao catolicismo, consumado em fins do VI
sculo, pelo monarca Recaredo (586 d.C.), inaugura um novo momento na relao
entre os judeus e os cristos no mundo ibrico medieval. A adoo do catolicismo
pelo Reino Visigodo, legitimado nas Atas do III Conclio de Toledo (589 d.C.)4,
ocorre paralelamente elaborao de um projeto poltico de unidade religiosa. Na
conjuno entre os poderes monrquicos e os eclesisticos, aliados por meio da
tarefa de regenerao social e de purificao espiritual das populaes hispanovisigodas, o perigo potencial representado pela presena judaica no territrio tende
a ser dissipado.
Reproduzindo prticas, instauradas anteriormente, por dioceses ibricas nas
Ilhas Baleares (como, por exemplo: na de Menorca no sculo V), no ano de 616,
por ordem do monarca visigodo Sisebuto, amplia-se o horizonte de intolerncia
religiosa e social. Pelas ordenaes de Sisebuto e com o aval dos poderes
eclesisticos, os judeus visigodos foram forados converso ao catolicismo.
Desde ento, o Judasmo Ibrico passa a ser inserido no que a historiadora Anita
Novinsky, outrora, denominou de cultura do segredo.
Aps 616, os episdios de batismos forados continuariam a fazer parte do
cotidiano social ibrico. Os conversos com rarssimas excees dificilmente
seriam aceitos e recebidos integralmente como membros de um corpo social
cristo. O filsofo francs, de origem aristocrata, Montesquieu (1689-1755), foi um
dos primeiros pensadores europeus a refletir sobre as implicncias histricas dos
cdigos visigticos para a sociedade ocidental. Na sua obra O Esprito das Leis,
referindo-se ao papel da ordem dominicana no processo inquisitorial ibrico tece
o seguinte comentrio:
4
VIVES, Vicens J. (ed.). Conclios visigticos e hispano-romanos. Vol. 1, (III e IV Conclios de Toledo).
Barcelona: Instituto Enrique Florez; Madri: Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1963, p.
107-145 (III Concilio) e p. 186-225 (IV Concilio).
270
MONTESQUIEU. De lEsprit des Lois Quatrime partie, Livre XVIII: des Lois, dans les rapports
quelles ont avec le nombre des habitants. Genve: Barrillot et Fils, 1750, c. 1. Traduo livre.
POLIAKOV, Leon. De Maom aos marranos: histria do anti-semitismo II. 2. ed. So Paulo:
Perspectiva, 1996, p. 14.
III Conclio de Toledo, cnone XIV. In: VIVES, Conclios visigticos..., vol. 1, p. 129.
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271
eles durante todo o sculo VII. Nos cdices, os conversos eram vistos como pessoas
permanentemente acometidas por uma infidelidade potencial. Infidelidade que se
traduziria na judaizao, ou seja, no retorno s suas antigas prticas religiosas.
Esse comportamento poltico perante os conversos agravava ainda mais
o universo das relaes sociais com as comunidades crists de origem. Na
realidade, percebemos que o governo visigodo jamais demonstrou inclinao ou
desejo de integrar ou de aproxim-los sociedade. Ao contrrio, a rejeio e a
intolerncia para com esses indivduos eram imediatas. Alm disso, aumentavam
proporcionalmente ao crescimento do nmero de batismos coletivos, realizados
pelas dezenas de dioceses do territrio ibrico.
Entre os segmentos populares visigodos, havia, igualmente, a rejeio social: a
presena de judeus convertidos, infiltrados em seus cotidianos, era um desafio e
uma ofensa aos modos de vida originariamente cristos7. A partir de ento, recairia
sobre os novos conversos ao catolicismo todo o peso da antiga intolerncia visigoda
cultura judaica.
Um cnone do IV Conclio de Toledo, por exemplo, estabelece a obrigatoriedade
de que as crianas judias, ao atingirem a faixa etria de sete anos8, fossem afastadas
de suas famlias, encaminhando-nas educao prioritariamente, crist9. Milhares
de crianas, de origem judaica, foram separadas de seus pais e passaram a viver
em mosteiros, abadias ou residncias sabidamente crists.
Para termos uma ideia da relevncia da poltica visigoda sobre os conversos do
sculo VII, necessrio lembrarmos que o mesmo decreto, responsvel por separar
pais e filhos na Idade Mdia, voltou a atingir descendentes de cristos-novos em
Portugal no sculo XVII. Conforme j demonstrou Meyer Kayserling10, a chamada
Lei do Extermnio, promulgada por D. Pedro de Portugal, em 1683, exigia que
os indivduos, legalmente acusados de exercer o Judasmo, abandonassem o
pas e deixassem seus filhos menores de sete anos sob cuidados de instituies
religiosas, ou entregues orfandade.
Alm da diluio dos ncleos familiares das aljamas, a poltica visigoda sobre as
comunidades judaicas alcanara outras dimenses de igual gravidade. Em um
documento, denominado Confessio vel Professio Iudaeorum Civitatis Toletanae,
o Rabino-chefe da congregao de Toledo deveria, no somente, acatar a sua
prpria converso, bem como a de toda sua comunidade.
Entre os dias 1 de dezembro de 637 e 9 de janeiro de 638, convocados a
comparecer Baslica de Santa Leocdia, nos arredores de Toledo, os judeus
batizados apresentam-se ao rei Chintila e ao corpo episcopal ibrico, presentes ao
VI Conclio11.
ORLANDIS, Jose. Hacia una mejor comprensin de la cuestin juda en la Espaa del siglo VII.
In: __________. Hispania y Zaragoza en la Antiguedad tardia. Zaragoza: IBERCAJA, 1984, p. 123142.
8
A faixa etria de sete anos determinada, a posteriori, pelo XVII Conclio de Toledo, em 694, no
cnone VIII. Cf. VIVES, Concilios visigoticos, vol. 2, p. 584-586.
9
IV Conclio de Toledo, cnone LX. In: VIVES, Vicens J. (ed.). Concilios visigoticos, vol. 1, p. 212.
10
KAYSERLING, Meyer. Histria dos judeus em Portugal. So Paulo: Pioneira, 1971.
11
Cf. BILBAO, Fernando Surez. El fuero judiego en la Espaa cristiana: las fuentes jurdicas (siglos
V-XV). Madri: Dykinson, 2000, p. 50.
7
272
Cf. LACAVE, J. L. La legislacin antijuda de los visigodos. In: Simposio Toledo Judaico. Toledo:
s.r., 1973, p. 31, apud BILBAO, El fuero judiego
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281
Cf. MACHZOR de Yom Kippur. Comentrio e notas de Henrique Iusim. So Paulo: Biblos, 1982,
p. 94a-95a. Henrique Iusim defendeu a hiptese de que a [...] prece Kol Nidrei tem mais de mil
anos, mas adquiriu um significado particularmente intenso, durante o perodo de perseguies
na Espanha, onde centenas de milhares de judeus foram forados a abandonar [sic] sua f e [sic]
adotar uma nova religio. Muitos marranos frequentavam a sinagoga secretamente, arriscando suas
vidas e usando o texto de Kol Nidrei como uma frmula de renunciar aos votos []. MACHZOR...,
p. 94a-95a.
282
III Conclio de Sevilha, cnone X. In: RODRGUEZ, F. (ed.). La coleccin cannica Hispana V:
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283
284
285
RESUMO
ABSTRACT
286
artigos
287
Mestre em Histria Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Assistente do
Departamento de Histria da Universidade Regional do Cariri. E-Mail: <janesemeao@globo.
com>.
COGGIOLA, Osvaldo (org.). Segunda Guerra Mundial: um balano histrico. So Paulo: Xam;
EDUSP, 1995.
Em Fortaleza as bases areas receberam os militares ianques em fins de 1942 e princpios de 1943.
Esta particularidade, tambm comum a outras cidades do Nordeste e Norte como Recife, Natal e
Belm, resultou de uma das inmeras concesses que o Governo brasileiro fez ao EUA em troca
de benefcios polticos, econmicos e militares. O desejo dos militares de Washington em estender
o seu poderio militar costa litornea do Norte/ Nordeste brasileiro baseava-se no argumento da
proximidade dessa faixa de terra ao Norte da frica e de sua posio privilegiada para a observao
do Oceano Atlntico. MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetrao cultural americana.
8. ed. So Paulo: Brasiliense, 1993. PINHEIRO, Letcia. A entrada do Brasil na Segunda Guerra
Mundial. Revista USP, Dossi 50 anos da Segunda Guerra, So Paulo, n. 26, jun./ ago. 1995, p.
108-119. AZEVEDO, Stnio & NOBRE, Geraldo. O Cear na Segunda Grande Guerra. Fortaleza:
ABC, 1998.
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289
CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano 1: Artes de fazer. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes,
1994.
MALUF, Marina & MOTT, Maria Lcia. Recnditos do mundo feminino. In: NOVAIS, Fernando
A. (coord.) & SEVCENKO, Nicolau (org.). Histria da vida privada no Brasil Vol. 3 Repblica:
da Belle poque Era do Rdio . So Paulo: Companhia da Letras, 1998, p. 374.
SEMEO, Jane. Fortaleza nos anos 1940: imprensa escrita e relaes de gnero. Embornal,
Fortaleza, ANPUH-CE, vol.1, n. 2, 2010. Publicao eletrnica. Disponvel em: <http://www.
ce.anpuh.org/>.
AZEVEDO & NOBRE, O Cear na Segunda..., p. 31. Grifos nossos. A partir de depoimentos de excombatentes, pessoas envolvidas em alguns acontecimentos ocorridos na cidade durante os anos
de guerra, fotografias, jornais, documentos militares e da prpria memria, os autores realizam um
290
291
292
ficava desesperada pela passagem do trem porque como ela no tinha assinatura
de nenhum peridico, pois o marido no se interessava muito por esse tipo de
coisa, ela dependia da locomotiva para adquirir o jornal Unitario. Ao se mudar
com o esposo para Fortaleza, a Segunda Guerra passou a ser acompanhada
tambm pelo rdio. As chamadas do Reprter Esso, segundo ela, sempre a faziam
correr para o aparelho deixando, muitas vezes, os afazeres domsticos para mais
tarde.
D. Helosa Fac, por sua vez, falou-nos que em sua casa todos procuravam
estar sempre bem informados dos acontecimentos relativos a contenda por um
motivo particular, possuam parentes na Europa. Apesar de adolescente poca,
ela lembra que quando a guerra foi declarada seu av chegou em casa chorando
e lamentando por sua famlia que estava na Frana. Fato que o fez ir para o Rio
disposto a mandar buscar o pessoal dele, eram trs irms, o irmo com a mulher
e o filho... umas oito pessoas porque as famlias na Frana so pequenas, oito ou
dez pessoas16. Aps relatar a morte de alguns desses parentes e as dificuldades
que passaram, alm do choro do av quando os alemes ocuparam Paris, diz
ento que a guerra para ns foi muito acompanhada por causa disso. O vov
e o genro dele foram os fundadores da Aliana Francesa. As festas da Aliana
Francesa todo mundo ia, havia uma vibrao muito grande porque todo mundo
aqui era francfilo, era pelos aliados. A guerra para mim foi muito vivida, a gente
acompanhava17.
As lembranas dessas testemunhas so expressivas da ateno que muitas
mulheres dedicaram ao desenrolar do conflito, no tendo sido D. Heloisa e D. Hilma
as nicas a estarem sintonizadas e preocupadas com os acontecimentos relativos
Segunda Guerra. A declarao de guerra feita pelo governo brasileiro em 1942
aos pases do Eixo e sua repercusso em Fortaleza, certamente contriburam para
recrudescer entre o gnero feminino o interesse pela Segunda Guerra Mundial.
Na capital cearense, alm do racionamento de gasolina e de alimento, da
carncia de artigos importados e do aumento no preo de produtos, houve
grande mobilizao por parte das autoridades civis e militares em orientar como
a populao e os servios pblicos deveriam agir em caso de uma agresso dos
pases eixistas. Como a costa litornea do Nordeste o ponto mais estratgico
do continente por sua proximidade com o Norte da frica, a possibilidade de um
ataque alemo a essa regio do territrio brasileiro era considerada plausvel. O
ambiente de guerra que ento se instaurou em Fortaleza com os exerccios de
defesa passiva, as notcias que do front chegavam, o recrutamento de pracinhas
cearenses, instalao de bases areas americanas e as privaes impostas pela
venda controlada de gasolina e alimento gerou preocupaes e incertezas.
Movidos pelos sentimentos de nacionalismo e patriotismo alimentados pela
suposta ameaa externa a soberania do Brasil, e convictos da importncia em
colaborar para a defesa nacional, homens e mulheres passaram ento a contribuir
no que fosse possvel para o esforo de guerra: Campanha dos Metais,
Campanha da Borracha, Semana Anti-Nazista, venda de Bnus de Guerra,
16
17
293
por exemplo.
Em discurso proferido na escola Normal Justiniano de Serpa por uma
normalista durante a visita de membros da Comisso de Defesa Nacional, existe
no s um tom de conclamao para que as meninas daquele estabelecimento
de ensino participassem ativamente do combate aos piratas nazistas como o
reconhecimento de que elas, como mulheres, no poderiam ser deixadas de fora
da mobilizao patrocinada pelos poderes pblicos em prol da derrota alem:
A Semana anti-nazista que h pouco se iniciou no podia
passar sem que [...] a voz da juventude normalista de
Fortaleza se fizesse ouvir, vibrante, calorosa, entusistica,
para, unida a outras vozes [...] dizer ao Brasil que o Cear
continua a postos para a defesa da Patria Brasileira [...].
Sim, minhas caras colegas. Nossa voz tinha que ser ouvida
tambem, neste instante supremo em que toda mocidade
do Brasil reafirma a sua vontade de defender o territorio
patrio da cobia dos invasores de naes; nossa voz tinha
que ser ouvida tambem, neste momento angustioso, em
que a juventude patricia, deixando o conforto dos lares,
acode pressurosa ao chamado da patria, para entregar-se
resolutamente aos preparativos da guerra.18
As palavras e a atitude da estudante mereceram do cronista do jornal Unitario,
dois dias aps serem pronunciadas, destaque em sua coluna:
H umas ideias, a respeito da mulher, com as quais jamais
pude conciliar-me. Talvez sejam retrogradas [...]. Uma
delas a da mulher poltica, de partido, que se mete no
meio da agitao social, desfraldando uma bandeira [...].
Para mim, a paixo politica vem matar justamente as
virtudes do corao feminino que mais perfumam a
existencia terrena [...]. No incluo entre esse preconceito o
odio espontaneo que existe contra o nazismo no corao
das mulheres do mundo inteiro.
Artamilce Guedis deu-nos [um] exemplo de imensa beleza
[...]. A Artamilce que combate o nazismo, um anjo com
espada de fogo, uma espcie de Gabriel. Pela mesma boca
por onde sairam tantos poemas maravilhosos saem notas
da mais ardente revolta. Ao invs das rimas de Olegario
Mariano, palavras assim: Devemos cultivar a idia antinazista, no por uma semana apenas, mas por todo o
sempre!.
Lembro-me das horas de emoes que me deram as
declaraes de Artamilce Guedis e acredito, agora, que
18
Devemos cultivar a idia anti-nazista no por uma semana mas por todo o sempre. Discurso da
normalista Artamilce Guedis. Unitario, Fortaleza, 06 ago. 1942, p. 02.
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296
297
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299
QUEIROZ, Dinah de Silveira. Em nome da mulher. Unitario, Fortaleza, 19 dez. 1943, p. 09. A
autora transcreve a frase em que o escritor caracterizou o esprito feminino: Porque as ideias nelas
teem a mesma importncia que a moda. Usam-nas como um chapeu ou um penteado, passada a
moda trocam de ideia ou penteado. Apesar da defesa que faz das mulheres, e para evitar qualquer
ligao com o momento feminista, ela ressalva que: Disse, acima, que chegou a nossa hora.
bom acrescentar, no entanto, que no disse isso pensando nas mulheres em passo militar, nem nos
tremendos clubes de reivindicaes femininas. Em nome dessas criaturas eu no falo, porque no
sei bem se so, realmente, nossas companheiras.
300
BOB. Que especie de choro esse?. Correio do Cear, Fortaleza, 03 abr. 1943, p. 03, Seo
Cronica Social.
36
O Ps-guerra reintegrar a mulher na vida do lar. O Povo, Fortaleza, 04 set. 1944, p. 04. No
mesmo jornal, encontramos outro artigo reivindicando o retorno das mulheres ao lar no ps-guerra:
Nesta guerra em que as foras totais de vrias naes esto orientadas no sentido da vitria, vemos
a mulher dar o melhor de seu esforo e inteligncia pela causa comum [...] destruindo assim o
mito da superioridade masculina. Volta-se ento ao velho problema: deve a mulher trabalhar nos
escritrios ou dedicar-se ao lar? Se elas j provaram ser to aproveitveis nas artes como os homens
porque continuarem presas s panelas? Porm a mulher realmente inteligente sabe que apesar das
grandes conquistas femininas em diversos setores, o verdadeiro lugar onde ela est aclimatada e
naturalmente indicada o lar. A mulher na guerra. O Povo, Fortaleza, 01 jul. 1944, p. 02.
35
301
302
RESUMO
ABSTRACT
Fortaleza;
WWII;
Female
303
2
3
305
306
307
BOURDIEU, As regras da arte..., p. 185. Sobre a relao entre texto e seus possveis contextos, ver
LaCAPRA, Histria e romance, p. 118: Penso que um movimento em uma direo desejvel
se d quando os textos so compreendidos enquanto usos variveis da linguagem que chegam a
um acordo com ou registram contextos de vrias maneiras maneiras que comprometem
o interprete como historiador e crtico em uma troca com o passado atravs de uma leitura dos
textos. No pargrafo seguinte: Os contextos de interpretao so ao menos trs: os da escrita, da
recepo e da leitura crtica.
12
BOURDIEU, As regras da arte..., p. 67.
11
308
que dispe13.
Por maior que seja a ambio do escritor de se separar do mundo, de estar acima
dele, para contempl-lo e jogar com ele, no pode deixar de ser um integrante da
realidade social e cultural na qual se passa a durao de sua vivncia. Assim, se a
literatura fala velando, porque o trabalho de escrita opera uma traduo sensvel
que dissimula a estrutura14. Atravs destas consideraes, Bourdieu aponta para
um caminho que possibilita a conciliao entre texto e contexto, indicando que o
prprio texto traz em si a estrutura de seu contexto:
A forma na qual se enuncia a objetivao literria sem
dvida o que permite a emergncia do real mais profundo,
mais oculto [...], porque ela o vu que permite ao autor
e ao leitor dissimul-lo e dissimul-lo para eles prprios.15
A anlise das frmulas geradoras da obra assim um mtodo essencial: possibilita
compreender o trabalho de escrita objetiva da obra, que constri e distribui os
personagens e os espaos sociais internos ao romance. Mas principalmente porque
deflagra as formas pelas quais o romance constri uma imagem da realidade e
interpreta o processo histrico, visto que busca de alguma maneira reconstruir o
passado que representa. Segundo LaCapra:
Se o romance lido em sua totalidade em histria porque
ele pode ser empregado tipicamente como fonte que nos
conta algo factual sobre o passado. Seu valor est na sua
funo referencial na maneira em que ele funciona como
uma vitrine da vida ou das transformaes no passado. O
enfoque do historiador se concentra, deste modo, sobre o
contedo do romance sua representao da vida social,
seus personagens, seus temas e assim por diante.16
Portanto, escavar e encontrar as bases de uma obra literria significa trazer
tona a illusio, aquilo que Bourdieu diz ser o fundamento do efeito de real que a
obra literria funda, e que sustenta tambm o acordo entre escritor e leitor:
A expresso literria, como a expresso cientfica, baseia-se
em cdigos convencionais, em pressupostos socialmente
fundados, em esquemas classificatrios historicamente
constitudos, como a oposio entre a arte e o dinheiro, que
Embora seja necessrio destacar que a criao literria permite ao escritor abolir: as determinaes,
as sujeies e os limites que so constitutivos da existncia social. BOURDIEU, As regras da arte...,
p. 42.
14
BOURDIEU, As regras da arte..., p. 48. Segundo L. Kramer, White e LaCapra compartilham a
crena de que as estruturas narrativas e os pressupostos ontolgicos no examinados prefiguram
todas as obras histricas, bem como nossa compreenso da realidade, fora do mbito dos livros.
KRAMER, Literatura, crtica..., p. 146.
15
BOURDIEU, As regras da arte..., p. 49. LaCapra chama ateno para o cuidado que o historiador
deve ter com a sobre-contextualizao. Segundo ele, comum atualmente o uso do contexto para
explicar o texto. LaCAPRA, Histria e Romance, p. 122.
16
LaCAPRA, Histria e Romance, p. 116.
13
309
310
311
com o espao social mais amplo (a figura do intelectual surgida no Caso Dreyfus
e no Caso Zola uma destas figuras) que se encontra outra rica possibilidade de
anlise. Assim, ao contrrio da hermenutica ou aquela histria das ideias acusada
por Foucault pela sua linearidade naturalizada e sua figura do criador incriado, a
cincia das obras proposta por Bourdieu se empenha em compreender o prprio
processo histrico que deu emergncia ao autor-intelectual.
A figura do gnio livre criador e intermedirio transcendental metafsico deve
ser ento no mnimo suspensa, e a noo de habitus aparece como ferramenta
para compreender como o artista se criou e foi criado:
Pareceu-me que o conceito de habitus, h muito tempo
tornado herana vacante, a despeito de inmeros
empregos ocasionais, era o mais adequado para significar
essa vontade de sair da filosofia da conscincia sem
anular o agente em sua verdade de operador prtico de
construes do real.24
Talvez seja interessante reter esta noo do escritor enquanto operador prtico
de construes do real, para entender como a literatura pode esclarecer aspectos
da histria. Para Bourdieu, como j visto, o artista surge no seio de regras j dadas,
as quais ele precisa incorporar e reelaborar, para fazer parte do jogo literrio.
Se ele pode ser agente criador do real, ele o faz a partir daquilo que possui, ou
seja, de realidade j dada de sua experincia individual, que possui nela mesma
uma gama de possibilidades. Assim como o criador no incriado, a obra de
arte romanesca tambm no surgiu exclusivamente da imaculada conscincia do
gnio, como num ato de criao divina. Se o romance tem realidade, se ele uma
parte destas construes do real operadas pelo escritor, porque ele foi construdo
com a realidade disposio do escritor, a prpria realidade social que tambm
condio da literatura e do autor.
Se a regra principal do jogo artstico a illusio, essa espcie de acordo tcito
entre produtor e receptor imprescindvel para a significao do romance, no
menos verdade que h uma illusio que tambm funda o que podemos denominar
de jogo social:
Para compreender esse efeito da crena, distinguindo-o do
que produzido tambm pelo texto cientfico, preciso [...]
observar que se baseia no acordo entre os pressupostos
ou, mais precisamente, os esquemas de construo que
o narrador e o leitor [...] empregam na produo e na
recepo da obra e que, porque possudos em comum,
servem para construir o mundo do senso comum (sendo
o acordo mais ou menos universal sobre essas estruturas,
espaciais e temporais especialmente, o fundamento da
illusio fundamental, da crena na realidade do mundo).25
24
25
312
313
independentes29.
H assim uma lgica prpria de legitimao do campo literrio tal como este
se institucionalizou na Frana em meados do sculo XIX, que no se baseia numa
ordem objetivamente institucionalizada de cargos e diplomas. Exatamente por isso
que o campo reconverte esta desinstitucionalizao institucionalizada em forma de
capital cultural: a competncia aqui, para a vanguarda que quer ser reconhecida
enquanto tal entre os seus, justamente fazer a arte pela arte, no produzir como
jornalista, publicitrio ou acadmico. Pois a autonomizao do campo literrio exigi
um engajamento para a busca daquilo que prprio da literatura, e no permite
determinaes externas tais como polticas e econmicas.
Foi, portanto, este lugar da literatura na cultura e sociedade francesas do
sculo XIX que criou crescentemente a busca pela carreira artstica como um ideal
almejado por muitos. interessante notar tambm que no sculo XIX, surgiu um
novo espao aberto aos artistas pelo advento de um mercado que se imps, em
paralelo ao declnio do patronato e mecenato de dependncia direta, do Antigo
Regime. Segundo Seigel, disto derivou a expanso da produo de bens culturais
no final do sculo XIX e a crescente confiana de artistas na possibilidade de
ascenso social atravs da arte30.
A negao vanguardista de uma academia que ditasse as regras, os postos,
os cargos e os diplomas se inscreve como o prprio modo de dominao que
um campo como o literrio pode pretender31. Eis a deflagrada a lgica do
desinteresse que Bourdieu chama tanto a ateno, e que foi elemento estratgico
no processo de autonomizao da literatura enquanto campo, como mecanismo
de afirmao de uma arte pela arte que se opunha: de um lado arte bomia e
comercial, e de outro arte burguesa, acadmica e conformista32. Lgica que,
por ter desempenhado um papel central na consolidao do poder do campo
literrio, justamente a base reconhecvel do que Bourdieu denomina de ciclos
de consagrao, pois esta negao do interesse tm por funo: transmutar
simbolicamente a troca interesseira ou a simples relao de fora em uma relao
efetuada por pura formalidade, e conforme as regras estabelecidas, isto , por
BOURDIEU, As regras da arte..., p.162. Para Watt, a no institucionalizao de enredos, tradies
ou convenes no romance se d pela fidelidade deste gnero para com a experincia individual,
antes de qualquer outra regra. A pobreza de suas convenes formais seria o preo de seu
realismo. WATT, Ian. A ascenso do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. So
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 15.
30
Jerrold Seigel destaca o prestgio que a arte e a carreira artstica tinham na segunda metade do
sculo XIX em Paris como busca de reconhecimento e prestgio social. SEIGEL, Jerrold. Paris
bomia: cultura, poltica e os limites da vida burguesa 1830-1930. Porto Alegre: L&PM, 1992.
31
BOURDIEU, As regras da arte..., p. 181: No suficiente dizer que a histria do campo a histria
da luta pelo monoplio da imposio das categorias de percepo e de apreciao legtimas; a
prpria luta que faz a histria do campo; pela luta que ele se temporaliza. [...] Marcar poca ,
inseparavelmente, fazer existir uma nova posio para alm das posies estabelecidas, na dianteira
dessas posies, na vanguarda, e, introduzindo a diferena, produzir o tempo.
32
S para exemplo, notar a citao que Bourdieu faz de Flaubert (agente de destaque dentro do
processo histrico de autonomizao do campo literrio na Frana): Artistas. Todos farsantes.
Gabar seu desinteresse. Em seguida, em outro trecho: preciso amar a Arte pela prpria Arte; de
outro modo, a menor profisso prefervel. FLAUBERT apud BOURDIEU, As regras da arte..., p.
61.
29
314
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316
dentro dele: da que o indivduo isolado, o escrito e sua obra, no explicam nada
por si ss, mas apenas quando inscritos em histrias coletivas.
Disto segue que o momento histrico do romance tomado como fonte para
os estudos histricos indispensvel para pensar, por exemplo, como o projeto
criador de determinado artista se tornou, de possibilidade, em caso possvel. Isto
no quer dizer substancializar, naturalizar o autor e sua obra, reinscrevendo-os em
determinada escola, colocando-os como precursores de tal ou qual grande gnio;
quer dizer analisar as maneiras pelas quais determinadas escolhas literrias se
consolidaram como projetores criadores de sucesso, em oposio e distintamente
de outros escritores e projetos.
Um projeto criador no se funda pela liberdade do gnio criador quase
metafsico, mas sim pela ao de um indivduo, e se ele marca uma fissura, uma
distino no seio da histria da literatura, porque existe justamente como:
propriedade relacional que s existe em relao a outras propriedades39. A
relao no apenas interna, e negativa; se funda tambm pela homologia entre
sistemas sociais e culturais distintos, muitas vezes totalmente autnomos entre si. O
que deriva pensar que o campo literrio, que foi institudo historicamente atravs
de um processo histrico coletivo, um local de acmulo e distribuio de capital
cultural e social, atravs de suas distintas posies internas.
Estas propostas de Pierre Bourdieu, como fundamentos metodolgicos
do que ele pretende uma cincia das obras culturais, apontam em certa
medida a uma anlise mais qualitativa que quantitativa. Entendido dentro do
movimento do campo historiogrfico, isto parece equivaler a atual abordagem
da micro histria. Segundo Jacques Revel: a abordagem da micro-histria
deve permitir o enriquecimento da anlise social, torn-la mais complexa, pois
leva em conta aspectos diferentes, inesperados, multiplicados da experincia
coletiva40.
Utilizando assim a proposta da Sociologia de Weber, de uma cincia que
pretende compreender interpretativamente a ao social41, Bourdieu parece
reinserir a noo de sujeito justamente atravs desta noo de ao social. Aqui
se abre a possibilidade do entendimento do escritor enquanto agente operador de
construes do real, mas que s constri atravs das estruturas herdadas. Do que
se conclui que, antes de negar e solapar as consideraes estruturalistas, Bourdieu
se apropria delas para super-las, num posicionamento terico e metodolgico
anlogo ao proposto pela micro-histria, frente histria social.
Vemos, porm, que como a histria cultural defendida por Roger Chartier, o
romance pode ser abordado atravs de algumas destas consideraes de Bourdieu
como um artefato cultural extremamente til e frtil aos estudos histricos. Os
aspectos da experincia social destacam-se como objetos do romance, logo como
cabveis de serem analisados em uma perspectiva histrica. Conforme destacou
BOURDIEU, As regras da arte..., p. 18.
REVEL, Jacques. A histria ao rs-do-cho. In: LEVI, Giovani. A herana imaterial: trajetria de
um exorcista no Piemonte do sculo XVII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p. 18.
41
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Braslia: Editora
da UnB, 1991, p. 03.
39
40
317
42
DBLIN, Alfred. O romance histrico e ns. Histria: questes e debates, Curitiba, ano 23, n.
44, 2006, p. 27. Sobre Chartier e as novas perspectivas da histria cultural desde as dcadas de
1960-80, ver: CHARTIER, A histria cultural...
318
RESUMO
ABSTRACT
319
DA CONSCINCIA HISTRICA
(PR) (PS?) MODERNA:
REFLEXES A PARTIR DO PENSAMENTO
DE REINHART KOSELLECK1
Ronaldo Cardoso Alves2
A Histria a testemunha dos tempos, a luz da verdade,
a vida da memria, a mensageira da velhice,
por cuja voz nada recomendado seno a imortalidade do orador.3
3
4
O artigo fruto de pesquisa com financiamento pela Capes, que resultou na tese intitulada Aprender
Histria com sentido para a vida: conscincia histrica em estudantes brasileiros e portugueses,
defendida junto Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, sob orientao da Profa
Dra. Katia Maria Abud.
Doutor em Educao pela Universidade de So Paulo. Professor Assistente Doutor do Departamento
de Educao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho, Campus de Assis. E-Mail:
<[email protected]>.
De Oratore, II, c.9, 36 e 12, 51.
RSEN, Jrn. Razo histrica Teoria da histria I: fundamentos da cincia histrica. Traduo de
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
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utopias (u-topos).
Conscincia histrica ps-moderna?
O processo de modernizao, acentuado no perodo posterior Segunda
Guerra Mundial, atingiu de uma ou outra forma, todas as reas da vida humana.
No aspecto poltico, o regime democrtico foi o eixo propagador dos ideais de uma
sociedade com princpios de equanimidade a todos seus cidados, entretanto, a
utopia anunciada da liberdade, igualdade e fraternidade no se consolidou em
todo mundo, sequer na sociedade da qual se originou: a ocidental. Nas ltimas
dcadas do sculo XX, as principais sociedades democrticas se renderam ao
poder das grandes corporaes econmicas e distanciaram-se de polticas pblicas
que consideram a incluso e a alteridade, fato que tem gerado aes xenfobas,
violao aos direitos humanos e a sensao, sempre presente, da ameaa terrorista.
Do ponto de vista econmico, o projeto moderno, ancorado na industrializao,
prometeu o trmino das desigualdades sociais, pois entendia que o progresso
tecnolgico traria melhor qualidade de vida a todos os cidados. Entretanto, esse
objetivo no se configurou em realidade, pois o domnio da tecnologia por parte de
poucos gerou maior concentrao de renda. O avano tecnolgico inicialmente
destinado industrializao de produtos para o consumo e acelerado pela demanda
armamentista gerada por guerras locais e mundiais possibilitou o aumento em
progresso geomtrica da produo e dos lucros, mas tal progressividade se fez de
forma apenas aritmtica no que concerne ao aumento do salrio dos trabalhadores.
Nas ltimas dcadas do sculo passado essa configurao mundial ainda
passaria por um aperfeioamento, pois a crise do petrleo que afetou o mundo
na dcada de 1970 originou nova dinamizao da economia internacional
na dcada posterior. Esta foi articulada pelo presidente norte-americano
Ronald Reagan e pela primeira-ministra britnica Margareth Thatcher. Com
uma poltica desregulamentadora, diminuram drasticamente as restries
cambiais gerando maior fluxo de capital no mundo e, consequentemente, a
oportunidade das grandes corporaes expandirem seus negcios a regies
que lhes oferecessem melhores condies de instalao. Dessa forma, a
economia sofreu um processo de desregramento que gerou o descontrole dos
fluxos financeiros e a possibilidade de expanso de empreendimentos sem a
fiscalizao do Estado. Ao mesmo tempo, permitiu aos agentes financeiros
especularem com o dinheiro alheio num exerccio de presso sobre os Estados
com vistas obteno de novos mercados, os quais se originariam dos pases
que ofereceram campo aberto para o deleite de seus lucros baseados em juros
bancrios exorbitantes cobrados da populao consumidora. Surgiram assim,
de mos dadas, a globalizao e o neoliberalismo18. Unio que resultou, entre
outras coisas, no deslocamento da riqueza da produo para a especulao
financeira (o que concentra ainda mais a riqueza e aumenta a desigualdade
social) e a assuno de uma sana consumista que faz o mundo caminhar, nesse
incio do sculo XXI, a passos largos para um colapso ambiental.
18
SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o sculo XXI: no loop da montanha russa. So Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
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do progresso, pois esta fracassou na busca dos objetivos modernos. Para eles, a
esperana no futuro sucumbiu diante das tragdias do caminhar do sculo XX
como as guerras mundiais e civis; a tecnologizao da indstria que gerou crise
nas relaes trabalhistas, pois diminuiu a proporo de empregos e aumentou o
lucro dos empregadores; e o desencantamento das pessoas medida que haviam
construdo sua identidade em bases educativas que desde sempre apresentaram
a concepo de um futuro melhor fundamentado no progresso. Creem que esse
processo gerou uma crise na conscincia histrica das pessoas uma vez que a
estrutura basilar de sua orientao cultural no tempo sofreu profundo desgaste.
Esse desencantamento pode tambm ser chamado de uma crise de sentido:
As experincias dos paradoxos do iluminismo e suas
ideias de progresso e emancipao exauriram muito de
suas energias utpicas. O crescente interesse manifestado
na religio, na histria, na tradio e no conceito de
identidade so fenmenos paralelos, relacionados crtica
ao modernismo ilustrado e renovada necessidade de
orientao cultural e histrica. [...] o interesse no sentido
tambm expressa um descontentamento com diferentes
tipos de objetividade, tais como identidades sexuais
e tnicas, verdade histrica e conceitos de progresso
e racionalidade humana. Com o auxlio do sentido,
objetividades foram relativizadas, contextualizadas e
historicizadas como construes sociais e culturais.21
Nessa perspectiva, as cincias humanas e, principalmente a Histria, como
filhas da Modernidade passaram um momento de reavaliao de suas concepes
terico-metodolgicas. Suas metanarrativas quedaram-se em crise, fato que
redundou em novas propostas, geralmente denominadas como ps (ps-histria,
ps-modernismo; ps-liberal; ps-marxista, etc.). Ao questionar as premissas
de racionalidade, o ps-modernismo criou um espcie de descentramento da
concepo moderna de cincia, como afirma Ankersmit:
Esta a maneira de se colocar os fatos no ps-modernismo.
A cincia desestabilizada, colocada fora de seu prprio
centro, a reversibilidade de padres de pensamento e de
categorias de pensamento enfatizada, sem a sugesto de
uma alternativa definida. uma forma de crtica desleal
da cincia, um golpe abaixo da linha da cintura que talvez
no seja justo, mas que por esta mesma razo realmente
atinge a cincia onde ela mais sensvel. A racionalidade
cientfica [...] o reconhecimento que todo ponto de vista
tem, alm de seu interior cientificamente aprovado, um
21
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335
otimizante31.
A prtica historiogrfica de Koselleck nunca se esgotou na anlise das fontes
como comprovadora de sua interpretao do processo histrico. Antes, pensou-a
meta-historicamente. Nessa perspectiva, apresentou duas possibilidades de reflexo
de sua prpria teoria a respeito do advento da Modernidade. A primeira, ligada aos
elementos fornecidos por suas fontes: a crtica feita pelos iluministas experincia
anterior de uma sociedade em crise devido poltica do Antigo Regime. Crise
que se apresentou como sntese das categorias espao de experincia e horizonte
de expectativa. No havia espao para se pensar ou viver uma nova experincia,
pois a expectativa j estava posta pelas instituies que controlavam o poder.
Da a crtica, a rejeio ao modelo e a necessidade de se criar um novo espao
de experincia que remetesse a um novo horizonte de expectativa para aquela
sociedade. Nesse contexto, as categorias de progresso e acelerao, relacionadas,
ditam o sentido da temporalidade histrica e seu ritmo. A Histria, assim, vista
como um processo histrico cujas mudanas e permanncias so dirigidas pelo
progresso otimizante que conduz as experincias humanas s utopias subjacentes
ao horizonte de expectativas. A conscincia histrica moderna, proposta por
Koselleck, parte da crtica, da negao, da rejeio s tradies ou modelos
exemplares prescritos pela elite detentora do poder grande maioria relegada a
reproduzi-las acriticamente. Por outro lado, pode ser feita outra leitura da teoria
de Koselleck. Para ele, o progresso no poderia ser visto somente em seu aspecto
otimizante, embora a compreenso oriunda do senso comum moderno apontasse
para isso. Acreditava que a acelerao das novas experincias conduziria ao
desgaste das expectativas delas derivadas quando de seu planejamento. Dessa
forma, a construo e aplicao de experincias poltico-econmicas modernas no
conseguiriam satisfazer as expectativas e, por isso, conduziriam a uma espcie de
desencantamento da sociedade que via o progresso apenas em sua verve otimista.
Nessa linha existiria, ento, uma crise de sentido, pois a vivncia da experincia
no concretizaria a expectativa utpica planejada. Dentro dessa perspectiva no
de se estranhar o surgimento de posies relativistas.
No por acaso que situaes limtrofes e catastrficas ocorridas no sculo XX
levaram a prticas historiogrficas relativistas. Exemplo disso a Historikerstreit,
pendenga historiogrfica em que grupos de historiadores alemes se opuseram
na discusso a respeito da responsabilidade do povo germnico na participao
do Holocausto. Ambos reivindicaram para si o estatuto da verdade, da realidade
ocorrida, apoiando-se em fontes histricas diversas para elaborar narrativas
completamente divergentes a respeito desse assunto, criando uma espcie de
realismo interno, algo que, obviamente representava um posicionamento
ideolgico. Esse tipo de prtica d ao historiador proeminncia em relao s
fontes. Sua subjetividade quem reivindica a verdade e esta impermevel ao
julgamento dos filsofos da Histria32. A denominada crise de sentido permitiria,
KOSELLECK, Futuro Passado..., p. 327. Tal perspectiva de desencantamento com a proposta
da modernidade pode ser observada tambm nas ideias do historiador Francis Fukuyama. Ver:
FUKUYAMA, Francis. Fim da Histria e o ltimo homem. Traduo de Aulyde S. Rodrigues. Rio de
Janeiro: Rocco, 1992.
32
luz da construo do conhecimento histrico, Chris Lorenz, define o realismo interno da seguinte
31
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RESUMO
ABSTRACT
Histrica;
339
resenhas
Mestre em Histria pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Bacharel e Licenciado
em Histria pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. E-Mail: <bccruz.alfredo@
gmail.com>.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
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com forte presena na sia, na frica e na Europa e isso foi vlido para o tempo
dos Carolngios tanto quanto para as vsperas da expanso ibrica. [...] Feitas
as contas, escreveu Jenkins, na poca da Magna Carta ou das Cruzadas, se
quisermos imaginar um cristo tpico, ainda deveremos pensar no num arteso
francs, mas num campons srio ou num morador urbano da Mesopotmia2.
O cristianismo tornou-se predominantemente europeu nos quinhentos e poucos
anos mais recentes de nossa histria, no por causa de alguma afinidade bvia
entre este continente e a f, mas pelo fato de que as igrejas europeias conseguiram
escapar da presso do Isl militante de uma forma que no foi possvel s antigas
igrejas apostlicas asiticas e africanas, outrora culturalmente dinmicas e muito
numerosas. Foi pouco depois de o cristianismo africano e asitico passar a
enfrentar novos e mortferos desafios polticos, dos quais no viria a se recuperar,
e de o movimento cristo entrar em colapso na China (dcadas de 1360-1370)
e na Nbia (dcada de 1450), que, por volta de 1500, podemos ter o primeiro
vislumbre doo padro de expanso crist que ficou conhecido nos esteretipos
populares, ou seja, uma religio transportada por navios de guerra e mosquetes
europeus para os nativos vulnerveis da frica ou da Amrica do Sul3.
Fundamentando tanto a vulnerabilidade de to vastas comunidades crists
ao avano de um poder poltico religiosamente diverso, quanto o afastamento e
o esquecimento destas pelos ocidentais, encontra-se uma querela teolgica que
eclodiu com especial violncia em meados do sculo V. Neste perodo, o mundo
cristo se partiu em trs blocos que definiam de diferentes formas a natureza de
Jesus Cristo, selando com a divergncia religiosa as poderosas foras centrfugas
da disputa poltica e da diferena cultural. Os cristianismos asitico, africano e
europeu enveredaram por trajetrias histricas gradativamente mais distintas e
distantes umas das outras, enquanto aquilo que era o centro poltico do ecmeno
cristo o Imprio Romano do Oriente, sediado em Constantinopla oscilava
entre uma e outra posio teolgica. O que acabou por fim consagrado como a
ortodoxia crist, cunhada por oposio aos monofisitas africanos e aos nestorianos
asiticos classificaes que no so apenas nomes, mas rtulos prenhes de juzos
de valor negativo, cunhados por seus inimigos no complicado combate publicitrio
que marcou o tabuleiro poltico-teolgico do Mediterrneo oriental do primeiro
milnio de nossa era foi o resultado de um processo gradativo, lento e, no raro,
sangrento.
Na origem destas categorias e atuando como seu lastro, encontram-se lutas,
golpes e guerras abertas ao longo dos sculos, confrontos cujo resultado, de
forma alguma j estava dado a priori. Isto bem considerado se pode imaginar
um desenvolvimento histrico alternativo, no qual os agora chamados ortodoxos
tivessem sido desdenhados como herticos; um universo contrafatual em que o
cisma entre Roma e o Oriente ocorreu no sculo V, e no no sculo XI, nunca
se recuperando o papado da sujeio a sucessivas ondas de ocupantes brbaros,
e em que um Imprio Romano Monofisita, fundado num mbito oriental unido
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SIQUEIRA, Sonia. O momento da Inquisio. Joo Pessoa: Editora da UFPB, 2013, p. 18.
SIQUEIRA, O momento da Inquisio, p. 683.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
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Doutorando em Histria Social pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Histria pela
mesma instituio, Graduado em Histria pela Universidade Federal da Paraba. Professor
Assistente de Histria do Brasil na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Par. Integra o Ncleo
de Estudos e Pesquisa em Histria Cultural da UFF (NUPEHC/UFF). Bolsista de Doutorado do
CNPq. E-Mail: <[email protected]>.
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
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tese do renomado historiador ingls John Elliott, Raminelli acrescenta que, sob
algum aspecto, a administrao hispnica da Amrica era mais moderna que
o prprio governo da Espanha e das monarquias da Europa quinhentista14.
Isto ocorria porque a Amrica estava menos sujeita s chantagens dos poderes
locais e aos impasses da manuteno de uma ampla rede de aliados, problemas
diuturnamente enfrentados pela Monarquia de Carlos V, espremida entre a cruz
e a espada, entre a satisfao da expanso imperial sobre territrios poltico e
culturalmente variados e o atendimento dos anseios da nobreza castelhana,
ressentida com seu rei absentesta e desinteressado15.
A era das conquistas divide-se em cinco captulos, nos quais o autor testa, com
habilidade, seu argumento de que diferentes frentes de conquista subsidiaram a
produo dos territrios coloniais da Monarquia catlica, da Espanha Amrica.
O artfice central (embora no exclusivo) das empresas de conquista foi a prpria
Coroa dos Habsburgo que, sob duras penas, afirmou seu poder em um processo
de construo de centralidades com marchas e contramarchas na Europa e nas
possesses ultramarinas. No primeiro captulo, Raminelli narra as dificuldades da
Monarquia em controlar a insatisfao dos nobres castelhanos, levantados em armas
na Revolta dos Comuneros (1520-1522). Conservadores, os nobres saudavam a
antiga Castela, anterior a unio dos reinos de Isabel e Fernando de Arago (1469);
defendiam seus antigos privilgios, esquecidos desde ento; e questionavam o peso
tributrio lanado pela Coroa e a sagrao de Carlos V como imperador do Sacro
Imprio. Um rei ausente e mais preocupado com as suas batalhas travadas no norte
da Europa, contra a Inglaterra e o avano protestante, desprestigiara a nobreza
castelhana, embora precisasse mais que nunca de seus prstimos para manter sua
poltica imperial belicosa. Todavia, para os nobres castelhanos, mais importava a
Espanha que o Imprio.
Como a histria nos conta, a revolta da fidalguia de Castela foi debelada por
Carlos V ao levar-se ao limite a sua poltica de alianas, feito um gigante inerte,
dependente do apoio financeiro e militar das nobrezas castelhana e estrangeira de
seu vasto Imprio, e igualmente frgil diante da concesso de seu poder interventor
sobre as localidades um preo alto a ser pago na tentativa de conter os focos
de resistncia aristocrtica. Este interessante captulo segue com o debate acerca
do Estado moderno, seu limites, conflitos de jurisdio bem como as principais
interpretaes historiogrficas acerca de sua emergncia. O pano de fundo
continua sendo a Monarquia catlica e seu complexo acerto imperial. A misso
de governar na poca moderna era partilhada e o rei dividia, ao menos, com a
Igreja, a nobreza e as municipalidades as atribuies do governo dos povos um
governo indireto e polissinodal, caracterizado pela difuso dos centros de deciso
poltica. Todavia, nestes primeiros tempos da modernidade, ainda que a instituio
Estado, tal como nos acessvel hoje em dia, fosse desconhecida dos coevos, o
autor relata que as monarquias reuniram as condies de sua posterior emergncia
a partir da ampliao da esfera jurisdicional, do crescimento do oficialato rgio e
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resgata a tese do historiador Enrique Soria, para quem a ascenso social era o
importante motor do poder rgio, ou seja, que em busca de honra e enriquecimento
os vassalos prestavam servios e demonstravam lealdade ao soberano. Portanto, aos
poucos, as ordens (nobreza, clero, povo) tiveram suas fronteiras enfraquecidas21.
Por conseguinte, mais do que preocupar-se em encontrar as razes de um suposto
Estado absoluto e onipresente, o problema historiogrfico atual tem se voltado
para a compreenso dos corpos polticos perifricos e de seu primordial papel na
afirmao da centralidade rgia ao longo da poca moderna uma verdadeira
inverso analtica, das macroestruturas aos micro-poderes , tendo em considerao
que o poder local nem sempre se situava no plano da lei e do direito oficial, mas
margem dessa lei e desse direito22.
Os captulos que encerram esta contribuio historiogrfica de Ronald Raminelli
dirigem a anlise a um outro palco desta era de conquista no plural pois, se, em sua
primeira parte, o autor concentrou-se em discorrer sobre as tentativas e efetividade
do controle rgio sobre as foras colonizadoras conquistadores e oficiais da Coroa
, integrando a colonizao da Amrica ao contexto de afirmao da Monarquia
catlica; neste ltimo momento, seu interesse se voltar para os colonizados. A
questo central dos captulos 4 e 5 , pois, a superao, nos estudos coloniais,
de uma interpretao que considerou a conquista do Novo Mundo enquanto
aculturao. Segundo o autor, o conceito aculturao ganhou relevo nos anos 1980
e seu uso visou investigar as transformaes culturais provocadas pela conquista,
pelo confronto entre a tradio ibrica e as vrias etnias encontradas na Amrica,
porm, compreendendo-as como perdas das tradies indgenas originrias23.
Resgatando clssicos estudos que utilizaram o conceito, o autor cita, por
exemplo, as tipologias propostas por Wachtel. Algumas delas foram as categorias
de processo de integrao e processo de assimilao para dar conta das
modificaes nos padres culturais e socioeconmicos das sociedades indgenas
em situao colonial. De acordo com Raminelli, por processo de integrao
Wachtel definia a incorporao de valores e costumes estranhos, mas que
adquiriam novo sentido entre os autctones; j processo de assimilao era
caracterizado pela transformao cultural imposta pelos colonizadores24. Outro
renomado autor, Todorov, tambm recebeu a ateno de Raminelli, justamente por,
tal como Wachtel, dedicar-se anlise dos mecanismos de dominao espanhola
tendo como premissa o conceito de aculturao. Na perspectiva de Todorov, a
grande artimanha de colonizadores como Corts foi justamente aprender a
manipular os valores e smbolos amerndios, revertendo em seu favor s estruturas
de poder e dominao de uma poca pr-hispnica. Alm disso, para Todorov,
uma superioridade tcnica (armas e mobilidade) teriam completado a equao que
garantiu uma vitria inexorvel aos espanhis.
Atualmente, perspectivas interpretativas como as Wecthel e Todorov encontramse em desuso e uma leva de estudos tem proposto uma nova abordagem da
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entrevistas
RICCARDO BURIGANA:
UN VIAGGIO NELLA STORIA DELLE RELIGIONI
Entrevistadores: Carlos Andr Cavalcanti e Luiz Carlos Marques
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anche perch lintuizione di mons. Savio si rivelata profetica visto che a partire
dal 2000, la presenza dellecomunit cristiane non-cattoliche in Italia diventata
sempre pi numerosa e variegata a causa dei processi migratori. In quegli anni
ho cominciato a collaborare con la Conferenza Episcopale Italiana, anche dopo la
scomparsa di mons. Savio che ci ha lasciato nel 2004, quando non aveva ancora
60 anni. Sonorimasto a Livorno fino al 2008, quando mi sono trasferito a Venezia,
dove gi insegnavo dal 2004, Storia ecumenica delle Chiese, presso lIstituto di
Studi Ecumenici San Bernardino, che incorporato alla Facolt di Teologia della
Pontificia Universit di Roma, un pezzo di Roma in laguna, retto dai francescani. Nel
2008 stato deciso di creare un Centro Studi per lEcumenismo in Italia che doveva
promuovere linformazione ecumenica, recuperare e studiare la memoria storica
del movimento ecumenico in Italia e preparare degli strumenti sullecumenismo in
Italia; sono stato chiamato a dirigere questo nuovo Centro Studi,rafforzando cos
i rapporti con la Conferenza Episcopale Italiana. Dal 2010 sono collaboratore de
LOsservatore Romano, il quotidiana della Santa Sede, per il quale, regolarmente,
pi o meno una volta alla settimana, scrivo un articolo su eventi e incontri ecumenici
internazionali. Dal 2011 faccio parte della Fondazione Giovanni Paolo II, presieduta
da mons. Luciano Giovannetti, vescovo emerito di Fiesole, impegnata nella
promozione della cooperazione, dello sviluppo e del dialogo nel Medio Oriente;
per la Fondazione mi occupo della rivista, Colloquia Mediterranea, con la quale
contribuire al dialogo tra le Chiese, tra le religioni, tra le culture, tra le economie
del Mediterraneo. La rivista, della quale io sono il direttore scientifico, pubblica
due numeri allanno. In questi anni ho sempre pi approfondito la conoscenza
della dimensione storico-teologica del dialogo ecumenico, proseguendo i miei studi
sulla storia del Concilio Vaticano II. Per questi miei interessi di ricerca nata la
collaborazione con lUniversit Cattolica del Pernambuco.
Sculum: La corrente italiana della Storia delle Religioni sta sempre pi entrando
in Brasile dopo la pubblicazione del libro di Adone Agnolin, che propone una
sistematica presentazione di alcuni autori classici come Pettazzoni, De Martino,
Lanternari e Sabbatucci. Lei professore alla Ps Graduao dellaUnicap. Come
vede possibile applicare la storiografia italiana in Brasile?
Riccardo Burigana: La Storia delle religioni ha una lunga e prestigiosa storia in
Italia, con una forte e radicata presenza nel mondo accademico pi nelle universit
statali che in quelle pontificie, dove pure non mancano insegnamenti e progetti,
soprattutto legati al rapporto tra lazione missionaria della Chiesa e la dimensione
del dialogo interreligioso, anche per la sensibilit che venuta crescendo dopo
la celebrazione del Concilio Vaticano II e il pontificato di Giovanni Paolo II
riguardo allimportanza del dialogo interreligioso. In questi ultimi anni, anche in
considerazione del crescente numero di comunit religiose, molte delle quali sono
il risultato dei flussi migratori che hanno investito anche lItalia, si molto discusso
di come affrontare, da un punto di vista didattico, queste nuove presenze; sono
sorte molte iniziative, soprattutto in campo ecclesiale per definire dei percorsi con i
quali navigare in questo pluralismo religioso, del quale non solo si sa poco ma per il
quale si hanno anche pochi strumenti per comprendere le radici e le dinamicit. Di
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Italia sono enormi e su questo aspetto ancora di pi. A me sembra che in Italia
non ci sia un problema di controllo da parte dellautorit ecclesiastica, cio da
parte della Chiesa Cattolica o di qualunque altra Chiesa, sulla produzione
scientifica, nonostante la vivacit e la molteplicit di iniziative culturali e editoriali
che caratterizzano gli studi su questo tema nella Chiesa Cattolica, senza contare le
altre istituzioni religiose che sono sempre pi attive nel panorama culturale italiano.
Solo per fare un esempio, fino a qualche anno fa, se uno avesse voluto conoscere
il contributo storico-religioso delle realt cristiane non-cattoliche era sufficiente
bussare alla porta della Chiesa Valdese, mentre ora, soprattutto negli ultimi anni,
si sono affacciate nuove realt cristiane, come la Facolt Pentecostale di Scienze
Religiose e lIstituto Avventista di Cultura Biblica. oltre a quelle di comunit religiose
non cristiane, come quelle islamiche che cercano di essere non solo presenti ma
di avere un ruolo nella riflessione e nel dibattitto su questi temi. Non vanno poi
dimenticate le universit statali che, pur con tutte le difficolt del tempo presente,
costituiscono ancora uno dei motori della riflessione in atto. Su un aspetto io
credo che sia importante soffermarsi per comprendere lo stato della riflessione e le
peculiarit di questa riflessione: in Italia la Chiesa Cattolica capillarmente presente
sul territorio con oltre 200 diocesi e un numero significativo di Istituti Superiori di
Scienze Religiose che sono deputati alla formazione del laicato, con una particolare
attenzione ai futuri professori di religione cattolica nelle scuole; questi Istituti sono
collegati alle Facolt di Teologia della Chiesa Cattolica, sia quelle pontificie sia quelle
regionali. Questa presenza capillare pu essere letta come un elemento di debolezza
per la frammentazione, ma questa lettura non tiene conto delle peculiarit di queste
realt, radicate sul territorio, che coltivano, spesso con il gusto dellerudizione, una
tradizione locale. Per fare un esempio, negli ultimi anni, quando si sono moltiplicate
le celebrazioni per il40 e poi per il 50 anniversario dellapertura del Concilio
Vaticano II, in tante realt locali, sono stati pubblicati studi e raccolte di testi che
hanno contribuito a arricchire la memoria storica dellesperienza del Vaticano II,
favorendo il recupero delle istanze discusse in Concilio, tra le quali la natura e
il valore del dialogo interreligioso e la dimensione del dialogo tra la Chiesa e il
mondo contemporaneo.
Sculum: Lei ha pubblicato recentemente un libro sui viaggi dei papi in Terra
Santa, con la prefazione del Patriarca Ecumenico di Costantinopoli Bartolomeo I.
Per lei quali ci sono delle reali speranze per ulteriori passi nel dialogo ecumenico? E
per la rimozione delle scomuniche?
Riccardo Burigana: Qualche mese fa uscito un mio libro, I papi in Terra Santa.
I viaggi di Paolo VI, di Giovanni Paolo II e di Benedetto XVI in Terra Santa, che
stato edito dalla Fondazione Giovanni Paolo II, nella collana Quaderni di Colloquia
Mediterranea; un libro scritto a quattro mani: infatti lho scritto con mio fratello
maggiore Renato Burigana, coordinatore del Comitato Scientifico della Fondazione
Giovanni Paolo II edirettore responsabile della rivista Colloquia Mediterranea.
Lidea di un libro sui viaggi dei papi in Terra Santa nata nei primi mesi del 2013,
quando Benedetto XVI era ancora papa e niente lasciava immaginare una sua
rinuncia, anche se a Roma circolavano tante voci sulla stanchezza di papa Ratzinger.
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II: anchio ho cercato di contribuire pubblicando una sintesi delle vicende storiche
del Vaticano II per introdurre a questo evento coloro che non lo conoscono per
motivi anagrafici o per pigrizia intellettuale (Storia del Concilio Vaticano II, Torino,
Lindau, 2012). Nonostante questi studi, che arricchiscono una bibliografia gi
di per s sterminata, ancora molto rimane da conoscere sulla storia del Concilio
Vaticano II e non solo sulla recezione, come silegge in molti interventi di questi
ultimi anni. La recezione, la comprensione di cosa e di come stato recepito del
Vaticano II, deve essere un campo privilegiato nel futuro immediatodella ricerca
storico-teologica, ma, una volta messe da parte le polemiche sullermeneutica del
Vaticano II, promuovere nuove ricerche sul Concilio in quanto tale potrebbe aiutare
a comprendere meglio, ma sarei tentato di dire, a cominciare a comprendere cosa
la recezione di un Concilio tanto complesso quale stato il Vaticano II, con molti
documenti promulgati e con ancora pi temi discussi e, solo in parte, recepiti nella
redazione dei documenti. A quando un Concilio Vaticano III? Durante il pontificato
di Giovanni Paolo II non sono mancate le voci una per tutti quella del cardinale
Carlo Maria Martini, arcivescovo di Milano che indicavano nella celebrazione di
un Concilio ecumenico una strada per rilanciare un cammino di aggiornamento
della Chiesa. Io non ho la palla di vetro, purtroppo, ma come studioso di Storia
della Chiesa mi piace sottolineare come il Concilio Vaticano II sia cos presente
nelle parole di papa Francesco, anche quando lui non lo cita esplicitamente. Al
papa sta particolarmente a cuorela dimensione della collegialit e della sinodalit
della Chiesa, cio due dei temi centrali del Vaticano II e della sua recezione. Se,
seguendo il modello di papa Francesco, si cominciasse a ri-leggere il Vaticano II
e a viverlo nella quotidianit, credo che veramente si potrebbe dire che stiamo
celebrando il Vaticano III, cio stiamo vivendo una stagione di aggiornamento
nelle forme di trasmissione del patrimonio delle tradizioni plurisecolari della Chiesa,
con un ritorno al modello delle origini del cristianesimo, tanto auspicato dai padri
conciliari del Vaticano II.
Sculum: In Brasile ci sono due settori accademici che si occupano della Storia
delle Religioni: la Storia delle Religioni e le Scienze della Religioni. Per lei c una
differenza tra le due? Quale questa differenza?
Riccardo Burigana: Cerco di seguire il dibattito che si sta svolgendo in Brasile,
anche se molto lontano dagli orizzonti italiani, dove ci confrontiamo su altre
questioni, prima fra tutte il ruolo della teologia e il contenuto del suo insegnamento.
Mi sembra che il dibattito in Brasile, come in altri paesi, soffra ancora delleredit di
una certa ideologia del XX secolo che non ha aiutato a comprendere le ricchezze di
una ricerca sulla religione e le articolazioni che questa comporta; in questo tempo
presente, dove si parla molto di religione, e spesso capita di sentire e di leggere
cose cos poco scientifiche, forse meriterebbe aprire una riflessione a pi voci su
cosa vuole dire affrontare il tema della religione nella complessit del XXI secolo,
con una serie di strumenti che dovrebbero favorire il confronto tra posizioni che,
pur nella loro diversit testimonianosensibilit diverse. Da questo punto di vista
mi piace condivire unesperienza che va avanti da qualche anno presso lIstituto
di Studi Ecumenici dove io insegno; si tratta dellesperienza del Master in Dialogo
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interreligioso, del quale io sono il direttore fin dalla prima edizione, nel 2009. In
Italia per Master si intende dei corsi che sono aperti a tutti coloro che hanno una
laurea, almeno triennale, su temi specifici in modo da offrire una formazione che
possa aiutare a specializzarsi in un campo particolare. Nel caso del Master in dialogo
interreligioso, che pu essere seguito anche in modalit e-learning, abbiamo pensato
di promuovere dei corsi che offrano un quadro il pi ampio possibile a partire da
un tema; il prossimo anno il Master affronter il tema del rapporto tra Religioni e
spiritualit, con una particolare attenzione alla didattica delle religioni. Nel corpo dei
docenti del Master sono presenti dei docenti di Universit Statali e di altre Facolt
di Teologia in modo che un tema come il dialogo interreligioso possaessere trattato
con approcci diversi, da quello teologico, a quello storico, a quello sociologico, a
quello letterario, sempre in modo scientifico, per cercare di rendere la complessit e
la ricchezza del dialogo tra le religioni.
Sculum: In Italia la storia del dialogo ecumenico relativamente recente cos
come la presenza di comunit religiose non-cristiane. Qual il rapporto tra il
movimento ecumenico e la diversit religiosa?
Riccardo Burigana: La storia del dialogo ecumenico in Italia in gran parte
ancora da scrivere: lo dico io che ho pubblicato, la scorsa primavera, grazie al
sostegno della Conferenza Episcopale Italiana, un volume proprio sulla storia
dellecumenismo in Italia (Una straordinaria avventura. Storia del movimento
ecumenico in Italia, Bologna, EDB, 2013). Dalle non-molte ricerche e pubblicazioni
emerge un quadro molto articolato, con posizioni ufficiali che per decenni, anche
nel XX secolo, hanno frenato i rapporti tra le Chiese in Italia, mentre esistevano
tante realt che invece cercavano delle strade per conoscere laltro, per capire laltro,
per condividere qualcosa con laltro a partire dalla Croce di Cristo. La celebrazione
del Concilio Vaticano II ha profondamente modificato latteggiamento della Chiesa
Cattolica anche in Italia riguardo alla sua partecipazione al movimento ecumenico,
ma non stato facile avviare un dialogo, dopo che per decenni silenzio e polemiche
avevano segnato i rapporti tra cristiani. Il 1861 segna la nascita dellunit dItalia
con la proclamazione del Regno di Italia, che solo nel 1870 arriver a comprendere
anche Roma: si pu dire, come ho scritto in molte occasioni, che mentre lItalia
si univa i cristiani in Italia si dividevano sempre di pi, irrigidendosi nelle loro
posizioni, anche se, come dicevo prima, non sono mancate figure che hanno
provato a uscire da questa contrapposizioni. Sono state isolate che spesso hanno
pagato questa loro posizione; hanno per arato il terreno sul quale, a partire dalla
celebrazione del Vaticano II, si potuto seminare: i frutti sono arrivati quando
lecumenismo diventato una dimensione quotidiana della vita delle comunit
cristiane, a partire dal 2000, quando cresciuto in modo esponenziale la presenza
dei cristiani non-cattolici in Italia a causa dei flussi migratori che hanno coinvolto
lItalia. Solo per fare un esempio della nuova stagione del cristianesimo in Italia,
oggi ci sono oltre 300 luoghi di culto ortodossi in Italia, quando cerano solo qualche
decina allinizio del XXI secolo. Queste presenze hanno portato alla nascita di tante
nuove esperienze ecumeniche e al rinnovamento di molte altrecreando anche le
premesse per una nuova riflessione riguardo alla dimensione plurireligiosa che si
sculum - REVISTA DE HISTRIA [30] Joo Pessoa, jan./jun. 2014.
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que raramente surge na histria mas que vive um cotidiano onde tambm cabem
revoltas, necessidades e sentimentos. E que se fez ouvir pela msica. No caso da
cano o foco se desloca para duas instncias: a linguagem potica e a linguagem
musical que embora interligadas podem ter estudos separados, sem prejuzo da
validade do testemunho final. Campo de trabalho apenas iniciado contendo
muitos possibilismos para enriquecer o conhecimento da vida individual e coletiva.
Nossos estudos tem-se voltado para a anlise da cano popular de Buenos Aires
o tango que oferece inmeras faces para elaborao da Histria. Apenas para
exemplificar, a ligao da msica com a cidade. Em uma abordagem transdisciplinar
abrigando conceitos originariamente geogrficos (territrio, territorialidade,
desterritorializao) introduz na histria urbana nova fonte de conhecimentos
atravs da msica. Nesta perspectiva duas plataformas essenciais se delineiam
na busca da compreenso de Buenos Aires dos fins do sculo XIX s primeiras
dcadas o XX a paisagem humanizada de uma urbe que cresce e se transforma
com suas ruas, seus becos, seus bairros, seu solo, suas umidades, seus espaos
tomados e vazios, seus cafs, seus bares, suas casas de encontro, enfim tudo o que
compe o seu panorama. Em segundo lugar sua conformao moral, seu conjunto
de relaes sociais, seus costumes, suas tradies, seus emprstimos culturais,
suas recusas, suas destruies. A cidade enquanto geografia e enquanto cultura,
sabendo-se porem que a relao fsica e a realidade humana se compenetram
indissoluvelmente e mutuamente condicionam. Das mltiplas faces da vida da
cidade o Tango d o testemunho bem como da definio de um estilo de vida.
o nico cancioneiro popular do mundo capaz de contar e difundir o drama da
existncia humana, capaz de chegar onde ningum chega para depois contar o ali
vivido e ver o de sempre a partir de algum ngulo que a ningum tenha ocorrido. Os
espaos dos arrabaldes os subrbios o convvio, lenta metamorfose do homem
para-rural ao urbanita esto contidos na linguagem do tango, produto sociocultural
da cidade que fala da rebeldia, do sentimento de solido. O tango atravessou os
anos e ficou como um prego evocativo diante da imutabilidade do Passado e o
fatalismo do Tempo inserindo-se definitivamente na alma do povo. Um modo de
sentir a vida, de expressar os sonhos, de contar fracassos, de interpretar o drama
existencial. Ontem e hoje. A redeno ao Tempo, para alm da sua cidade-bero
explicada por Borges pela msica conter imagens da alma recortadas como
silhuetas no acontecer do Tempo. Nas suas letras est o conflito existencial do
homem, os desvios da alma, a solido, a pena, a tristeza, isto , a Vida.
Sculum: A senhora vivenciou a influncia francesa na USP muito proximamente.
Gostaria de comentar o papel da historiografia francesa e da USP para a
historiografia brasileira como um todo?
Sonia Siqueira: A Faculdade de Filosofia da Universidade de So Paulo teve
moldada sua posio no campo da Histria pela misso de professores franceses
que marcaram sua gnese. Misso pedaggica, pois a maioria era de professores,
veio transmitir o conhecimento enquadrando-o na misso da docncia e da
pesquisa, escopo fundamental da criao da Faculdade.
As geraes subsequentes assimilaram atravs dos herdeiros da cultura histrica
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francesa para aqui trazida a mesma linha de trabalho intelectual sempre revisitada
sob o estmulo das revises do pensamento histrico das sucessivas geraes dos
Annales. Atualmente apesar da aceitao dos contributos da historiografia inglesa,
italiana e ibrica o peso da cole de Chartres e da Sorbonne se faz sentir pelos
caminhos alargados da pesquisa aps a queda das barreiras interdisciplinares.
A aproximao de campos como o da Geografia Cultural, da Literatura, da
Antropologia Cultural, da Histria das Religies, da Histria dos Sentimentos
e dos Ressentimentos continua a ser feita observados os modelos franceses. O
mesmo se pode dizer da orientao proposta aos pesquisadores interessados no
contemporneo quando se pem as questes da Histria do Presente e da Histria
do Imediato.
Sculum: Pode parecer um chavo, mas precisamos perguntar-lhe: o que a
senhora aconselharia a um jovem estudante que est comeando a carreira de
historiador agora?
Sonia Siqueira: Fazer Histria compreender a Vida e o Homem temporal
e atemporalmente. acreditar na continuidade, na superao da finitude, no
alargamento da conscincia, na recusa s radicalizaes. Nesse sentido o melhor
nos parece ser a reproduo das palavras de Lucien Febvre dirigidas a jovens
pesquisadores da histria: Para fazer Histria virai decididamente as costas ao
Passado e vivei primeiro. Misturai-vos vida. A vida intelectual, sem dvida, em
toda a sua variedade. Historiadores, sede gegrafos. Sede juristas tambm, e
socilogos e psiclogos; no fecheis os olhos ao grande movimento que, perante vs
transforma num ritmo vertiginoso as cincias do universo fsico. Mas vivei tambm
uma vida prtica. No vos contenteis em contemplar da orla, preguiosamente,
o que se passa no mar em fria. No barco ameaado no sejais como Panurgo
se sujando de puro medo, nem mesmo como o bom Pantagruel contentando-se,
amarrado ao grande mastro, em implorar, levantando os olhos ao cu. Arregaai
as mangas. E ajudai os marinheiros na faina. E isto tudo? No. No mesmo
nada se deveis continuar separando a vossa ao do vosso pensamento, a vossa
vida de historiador da vossa vida de homem. Entre ao e o pensamento no
h separao. No h barreira estanque. preciso que a Histria deixe de vos
aparecer como uma necrpole adormecida, onde perpassam apenas sombras
despojadas de substncia. preciso que, ardentes de luta, ainda cobertos de poeira
do combate, do sangue coagulado do monstro vencido, penetreis no velho palcio
silencioso onde ela dormita, e que, abrindo as janelas de par em par, reacendendo
as luzes e reanimando o barulho, acordeis com vossa prpria vida, com a vida
quente e jovem, a vida enregelada da princesa adormecida.
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