Das Farças Das Obras Varias

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 409

This is a reproduction of a library book that was digitized

by Google as part of an ongoing effort to preserve the


information in books and make it universally accessible.

http://books.google.com

*-;
.^

&.

f*K

&

Bepi'ocSsiilo dos IA\vos tiacioiiaes,


eseirSpos at ao tm
do seciso XVIH.

LISBOA.
ESCRIPTORIO da BIBLIOTHECA PORTUGEZA

Rua Augusta N. 110.


1858.

-,

S.

DE

GIL VIGENTE.

TOMO III.

LISBOA.
ESCRIPTOBIO DA BlBLIOTHECA PoilTUGUEZA,

Rua Augusta N." 110.


1852.

1.'V-:.H^

fT\ U K A
Lelaud Siuuford, Jr.'

YPOGKAPUIA DF. F. I. PINHEIRO.

Jiwa da Anmmciada N. 14.

DE

GIL VIGENTE.
LIVRO IV.
DAS FABCAS.

FA.S&A
DE

OUEH TEM FARELOS.


FIGURAS.
AIRES ROSADO, Escudeiro.
APARIO, OBDC
sho, Criados. velha, Me de isaeel.
liste nome da Fara seguinte OUiem tetn
farelos poz-Wo o vulgo. He o seu argumen
to, que hum Ecudeiro mancebo per nome Aiw Rosado tangia viola, e a esta causa, ainda.'

OBRAS DE GIL VICENTE.

que sua moradia era muito fraca, continuamente era namorado. Tracta-sc aqui de huns
amores seus. Foi representada na mui nobre e
sempre leal cidade de Lisboa ao muito excellenie e nobre Rei D. Manuel primeiro deste
nome, nos Pacos da Ribeira, era do Senhor
de 1505.
(Vem Aparico e Ordonho, moos d?esporas,
a buscar farelos, e diz logo)

Apar. \^uem tem farelos?


Ord. Gluien tiene fareles ?
Apar. Ordonho, Ordonho, espera a mim.
0 fideputa ruim !
Sapatos tens amarellos,
Ja no falias a ninguem.
Ord. Como te va, companero?
Apar. S'eu moro c'hum escudeiro,
Como me pode a mi ir bem?
Ord.
Quien es tu amo? d, hermano !
Apar. He o demo que me tome :
Morremos ambos de fome
E de lazeira todo o anno.
Ord. Con quien vive?
Apar.
Que sei eu ?
Vive assi per hi pellado,
Como podengo escaldado.
De que sirve?
De sandeu.

FARA3.

Pentear e jejuar,
Todo o dia sem comer,
Cantar e sempre tanger,
Suspirar e bocejar :
Sempre anda fallando so,
Faz huas trovas to frias,
To sem graa, to vazias,
CWhe cousa pera haver d.
E presume d'embicado ,
Que com isto raivo eu.
Tres annos ha que sam seu,
E nunca lhe vi cruzado :
Mas segundo ns gastamos,
Hum tosto nos dura hum mez.
Ord. Cuerpo de San! que comeis?
Apah. Nem de po no nos fartamos.
Ord.
Yelcaballo?
Apar.
Est na pelle,
Que lhe fura ja a ossada :
No comemos quasi nada
Eu e o cavallo, nem elle.
E se o visses brazonar,
E fingir mais d'esforado ;
E todo o dia aturado
Se lhe vai em se gabar.
St'outro dia, alli n'hum beco,
Dero-lhe tantas pancadas,
Tantas, tantas, que a osadas!...
Ord. Y con qu?
Apar.
Chum arrocho scco.
Ord. Hi hi hi hi hl hi hi.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Apar. Folguei tanto !


Ord.
Y l callar?
Apar. E elle calar e levar,
Assi, assi, ma ora assi.
Vera alta noite de andar,
De dia sempre encerrado :
Porque anda mal roupado,
No ousa de se mostrar.
Vem to ledo sus cear !
Como se tivesse que ;
E eu no tenho que lhe dar,
Nem elle tem que lh'eu d.
Toma hum pedao de po,
E hum rbo engelhado,
E chanta nelle bocado,
Coma co.
No sei como se mantem,
Que no 'st debilitado.
Ord. Bstale ser namorado,
En dems se le va bien.
Apar.
Commendo 6 demo a mulher !
Nem casada nem solteira,
Nenhua negra tripeira
No no quer.
Ord. Ser escudero peco,
O desdichado?
Apar. Mas, a poder de pellado,
D em scco.
Todas querem que lhe dem,
E no curo de cantar :
Sabe ano quem tem que dar

^1

Lhe vai bem.


Querem mais hum bom presente,
Que tanger,
Nem trovar riem escrever
Discretamente .
Ord.
Y pues porque ests con l?
Apar. Diz que m ha de dar a el Rei,
E tanto farei farei
Ord. Djalo, reiega dl ;
Y tal amo has de tner?
Apar. Bofa, no sei qual me tome ;
Sou ja to farto de fome,
Coma outros de comer.
Ord.
Poca gente de esta es franca.
Pues el mio es repeor ;
Suase muy gran senor,
Y no tiene media blanca.
Jrote Dios que es un cesto,
Un badajo contrahecho,
Galan mucho mal dispuesto,
Sin descanzo y sin provecho.
Habla en roncas, picas, dalles,
En guerras y desbaratos ;
Y si pelean all dos gatos,
Ahuir montes y valles :
Nunca viste tal buharro.
Cuenta de los Anibales,
Cepiones, Rozasvalles,
Y no matar un jarro.
Apustote qne un judio
Con una beca lo mate.

10

Apar.
Ord.

Apar.
Ord.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Cuando allende fue el rebate,


Nunca l entr en navio.
Y cuando est en la posada,
Quiere destruir la tierra.
Siempre suspira por guerra,
Y todo su hecho es nada.
Y presume all en palacio
De andar con damas el triste.
Cuando se viste,
Toma das horas de espacio ;
Y cuanto el cuitado lleva,
Todo lo lleva alquilado,
Y como se fuese comprado,
Ans se enleva.
Y tambien apaa palos
Como cualquier pecador ;
Y sobre ser el peor,
Burla de buenos y malos.
Pardeos, ruins amos temos:
Tem o teu mula ou cavallo?
Mula seca como un palo ;
Alqulala, y de ah comemos.
Mas mi amo tiene un bien
Oue aunque le quieran hurtar,
No ha hi de que sisar,
Ni el triste no lo tien.
He musico?
Muy de gana.
Cuando hace alguna mueca,
Canta como pata chueca,
Otras veces como rana.

r a Re asApar.

11

Meu amo tange viola :


Hua voz to requebrada...
Ord. Quirome ir la posada.
Apar. E os farelos?
Ord.
Paja sola.
A par. Mas vem comigo e vers
Meu amo como he pellado,
To doce, to namorado,
To doudo, que pasmars.
Ord.
Como ha nombre tu senor?
Apar. Chama-se Aires Rosado;
Eu chamo-lhe asno pellado,
Quando me faz mais lavor.
Ord. Aires Rosado se llama ?
Apar. Neste seu livro o lers ;
Escuta tu e vers.
As trovas que fez Dama.
(Anda Ayres Rosado io passeando pola casa
lendo no seu cancioneiro desta maneira :)
Cantiga d1 Aires Rosado
A sua Dama,
E no diz como se chama,
De discreto namorado.
Senhora, pois me lembrais,
No sejais desconhecida,
E dae 6 demo esta vida
Que me dais.
Ou m'irei alli enforcar,
E vereis mao pezar de quem,
Por vos querer grande bem,
Se foi matar.

12

OBRAS DE GIL VICENTE.

Ento l no outro mundo


Veremos que conta dais
Da triste de minha vida
Que matais.
Outra sua.
Pois amor me quer matar
Com dor, tristura e cuidado,
Eu me conto por finado,
E quero-me soterrar.
Fui tomar nua pendena
Com hua cruel senhora,
E agora
Acho que foi pestelena.
Chore quem quiser chorar ,
Saibo ja que sam finado
Sem finar,
E quero ser soterrado.
Outra sua, estando mal com sua Dama.
Senhora mana Isabel,
Minha paixo e fadiga
Mando l esse papel
Que vo-la diga.
Polla.
Se quizer dizer verdade,
Dir-vos-ha tantas paixes,
Que em sete coraes,
No cabero ametade.
Estou co'a candeia na mo,
Senhora minha Isabel,
Mando l esse papel,
ue vos diga esta paixo.

FARAS.

13

(Falla Aires Mosado com o seu moco :)


Aires
Como tardaste, Apario !
Apar. E tanto tardei or'eu
Aires Apario, bem sei eu
Que te faz mal tanto vio.

(A parte.)
Apar.
Aires
Apar.
Ord.
Aires
Apar.
Aires

E desde hontem no comemos.


Villo farto, p dormente.
O Ordonho, como mente !
Otro mi amo tenemos.
Re mi fa sol la sol la.
(Carda.)
Ves alli o que t'eu digo.

Que diabo falias tu ?


(Canta.)
Fa la mi re ut
(Falla.)
No rosmeies tu comigo.
(Canta.)
Un dia, era mi dia.
Apar. Oh Jesu ! que agastamento !
Aires D-me ca esse instrumento. '
Apar. Oh que cousa to vazia !
Aires Agora qu'estou disposto,
Irei tanger minha dama.
Apar. Ja ella estar na cama.
Aires Pois entonces he o gosto.
( Tange e canta na rua porta de sua dama
Isabel, e em comeando o cantar Si dor
mis, doncella, ldro os ces.)
Ham ham ham ham.
Aires Apario, matasses ces,

li

OBRAS DE GIL VICENTK.

Ou vae d-lhe senhos pes.


Apar. Elle no tem meio po.
Aires Si dormis, doncella,
Do9pertad y abrid. ,'
Apar. O diabo que t'eu dou,
Que to ma cabea tens !
No tem mais de dous vintens,
Que lh'hoje o Cura emprestou.
(Prosegue o Escudeiro a cantiga.)
Aires
Que venida es la hora,
Si quereis partir.
Apar. Ma partida venha por ti !
E o cavallo suar,
Ohd. Y no tienes que le dar?
Apar. No tem hum maravedi.
(Prosegue o Escudeiro a cantiga.)
Aires
Si estais descalza,
Apar. Eu ma ora estou descalo.
Aires No cureis de vos calzar,
Apar. Nem- tu no tens que me dar,
Arrenego do teu pao.
Aires Que muchas aguas
Teneis de pasar
Apar. Nem jeu ; cant em teu poder.
Aires Ora andar.
Apar.
Antes de muito :
Pois no espero outro fruito,
Caminhar.
Aires
Aguas de Alquebir ; (Cantando.)
Que venida es la hora,
Si quereis partir. ,,

F ARAS.

13

(Aqui lhe falla a moa da janella to passo


que ninguem a ouve, e polas palavras que
elle responde se pde conjecturar o que lhe
ella diz.)
Aires
Senhora, no vos ouo bem.
Oh. que vos fao eu aqui?
Que he, senhora ? Elles a mi ?
No hei medo de ninguem.
Olhae, senhora Isabel,
Inda que trago charrua,
Eu so lhes terei a rua
ChQa espada de papel.
Que so? que so?... rebolarias?
E mais rides-vos de mi !
Eu porque m'hei d'ir daqui?
Fao-vos descortezias ?
,
Mana Isabel, ouvis ?
Eu que defamo de vs ?
Oh pesar nunca de Deos !
Vs tendes-me em dous ceitis.
No sabeis que me digais ?
Sabeis que? Bem vos entendo.
Inda me no arrependo,
Com quanto mal me queirais.
Ha hi mais que me perder?
Para que so taes porfias?
Bem dizeis ; porm meus dias
Nisto ho de fenecer.
Apar.
Dou-to 6 demo essa cabea ; (Passo.)
No tem siso por hum nabo.
Aires Senhora, isso de cabo

16

OBRAS DE GIL VICENTE.

Me dizei antes qu'esquea.


Mais resguardado est aqui
O meu grande amor fervente.
Que tendes?... hum p dormente?
Oh que gran bem pera mi !
Hi hi hi. De que me rio ?
Rio-me de mil eousinhas,
No ja vossas, seno minhas.
Apar. Olhae aquelle desvario !
Ces. Ham ham ham ham.
Aires No ouo co,a cainada :
Rapaz, d-lhe hua pedrada,
Ou fardos eram de. po.
Apar.
Co'as pedras os ajude Deos.
Ces. Ham ham ham ham.
Aires Pezar no de Deos c'os ces !
Rapazes, no lhe dais vs ?
Senhora, no ouo nada.
Dou-m' demo que me leve !
Apar. Toda esta pedra he to leve
Tomae l esta seixada.
Ces. Hi hi hi hi.
Apar. Perdoae-me vs, Senhor.
Aires Ora fizestes peor.
Ah pezar de minha mi !
No vos vades, Isabel
Est vossa merc hi?
Nunca tal mofina vi
De ces : que som cruel !
No ha cousa que mais m'agaste,
Q iic ces. E gatos tambem !

FARAS.

17

Gato. Meao meao.


Aires
Oh que bem !
Quant'agora m'aviaste !
Fallae, Senhora, a esses gatos,
E no sejais to soffrida,
Glue antes queria a vida
Toda comesta de ratos.
Ja tornais ao defamar?
Quem he o que falla nisso?
Senhora, sabei que he hum riso
Quanto podeis suspeitar.
GUie tenhao olhos a molhos.
Vos andais p'ra me ferir,
Eu ando p'ra vos servir,
Mana, meus olhos,
Vos andais p'ra me matar.
Mana Isabel, olhae :
Que o saiba vosso pae
E vossa mac bao de folgar;
Porqu'hum 'scudeiro privado,
Apar. Mas pellado.
Aires
Como eu sou,
E de parte meu av
Sou fidalgo afidalgado.
Ja privana com el Rei,
A quem outrem ve nem falla.
Apar. Deito-no fura da sala.
Aires Senhora, com vosso pae fallar,
La depois de acrescentado,
No quero que me dem nada.
Apar. Oh como sera aviada,

"

13

r" OBRAS DE ClL VICENTE.

E seu pae encaminhado !


Que tenhais, que no tenhais,
Tenho mais tapessaria,
Cavallos na estrebaria,
Gtue no ha na corte taes :
Vossa camilha dobrada :
No tendes em que vos occupar,
Seno somente enfiar
Aljfar, ja d'enfadada.
Ai'AR.
Oh Jesu ! que mao ladro !
Quer enganar a coitada.
Aires Ide ver se est acordada ;
Que estas velhas pragas so.
Gallo Cacarac cacarac.
Aires Meia noite deve ser.
Apar. Ja fora rezo comer,
Pois os gallos cnto ja.
Aires
Cantan los gallos,
(Canta.)
Yo no me duermo,
Ni tengo sueo. n
Como ! vossa me vem ca ?
Ca rua ? pera que ?
No me d, por minha f ;
Venha que aqui me achar.
Velha Rogo Virgem Maria,
Gtuem me faz erguer da cama,
Que ma cama e ma dama,
E ma lama negra e fria,
Ma mazella e ma courella,
Mao regato e mao ribeiro,
Mao silvado e mao outeiro
Aires

FARAS.

Ma carreira e ma portella,
Mao cortijo e mao sumio,
Maos lobos e maos lagartos,
Nunca de pao sejo fartos ;
Mao criado e mao servio,
Ma montanha, ma companha,
Ma jornada, ma pousada,
Ma achada, ma entrada,
Ma aranha, ma faanha,
Ma escrena, ma doena,
Ma doairo, ma fadairo,
Mao -vigairo, ma trintairo,
Ma demanda, ma sentena,
Mao amigo e mao abrigo,
Mao vinho e mao vizinho,
Mao meirinho e mao caminho,
Mao trigo e mao castigo ;
Ira de monte e de fonte,
Ira de serpe e de drago,
P'rigo de dia aziago
Em rio de monte a monte,
Ma morte, ma corte, ma sorte,
Ma dado, ma fado, ma prado,
Mao criado, mao mandado,
Mao conforto te conforte.
Rgo s dores de Deos
Glue ma cahida lhe caia,
E ma sahida lhe saia,
Trama lhe venha dos ceos.
Jesu ! que escuro que faz !
Oh martyr San Sadorninho !

i9

20

OBRAS DE 6IL VICENTE.

Que ma rua e ma caminho!


Cego seja quem m'isto faz.
Hui amara percudida !
Jesu, a que m'eu encandeio !
Esta praga donde veio?
Deos lhe apare negra vida.
Aires
Por Maio, era por Maio. n (Canta.)
VelhaHu, hui, que mao lavor !
Quem he este rouxinol,
Picano ou papagaio ?
Que ma ora comero
Os que ma sahida lhe saia !
I eram cantar praia.
' Ms fadas que vos fadro !
A maldio de Madorra,
D'Abito e d'Abiro,
E de minha maldio
Oh ! santa Maria nr acorra !
Aires
Apartar-me-ho de vs, (Canta.)
tjrarrido amor. j,
VELHAMa partida, ma apartada,
Mao caminho, ma estrada,
Ma lavor te faa Deos.
Aires
Eu amei hua senhora
(Canta.)
De todo o meu corao :
uiz Deos e minha ventura
Que no m'a querem dar no,
Garrido amor.
Velha Ma caina que te coma,
Mao quebranto te quebrante
E mao lobo que ^espante.

FARAS.

21

Toma duas figas, toma.


Nunca a tu has de levar
Para bargante rasco,
Que no te fartas de po,
E queres musiquiar.
Aires
No me vos querem dare,
Irme hei tierras agenas,
A chorar meu pesare,
- Garrido amor.
Velha Vae-t'0 Demo com sa me,
E dormir a visinhana.
O Demo dou eu de ti a criana,
E esse te ca aportou.
Apar. Dizei-lhe que va comer,
Qu'hoje no comeu bocado.
V ELHAVae comer, homem coitado,
E d 6 demo o tanger.
E demais, se no tens po,
Que ma ora comeaste,
Aprenderas a alfaiate
Ou sequer a tecelo.
Aires Ja vdes minha partida,
Os meus olhos ja se vo ;
Se se parte minha vida,
Ca me fica o corao.
(Vaise o Escudeiro, e fica a Velha dizendo
Filha:)
Velha Isabel, tu fazes isto ;
Tudo isto sahe de ti.
Isabel, guar'-te de mi,
Glue tu tens a culpa disto.

22

OBRAS DE GIL VICENTE.

IsarelPois si, eu o fui chamar.


VelhaA Maria, Maria Rabeja.
IsaBEi/Trama a quem o deseja,
Nem espera desejar.
Velha Que dir a vizinhana?
Dizo, ma mulher sem siso !
IsaBEL&ue tenho eu ca de ver co'isso.
VELHAComo tens to ma criana !
IsaBElAlgum demo valho eu,
E algum demo mereo,
E algum demo pareo,
Pois que cnto pelo meu.
Vs quereis que me despeje,
Vs quereis que tenha modos,
Que parea bem a todos
E ninguem no me deseje?
Vs quereis que mate a gente,
De fermosa e avisada ;
Quereis que no falle nada,
Nem ninguem em mim attente?
Quereis que cresa e que viva,
E no deseje marido ;
Quereis que reine Cupido,
E qu'eu seja sempre esquiva.
Quereis que seja discreta,
E que no saiba d'amores ;
Quereis que sinta primores,
Mui guardada e mui discreta.
Velha Tomade-a la! Hui, Isabel!
Quem te deu tamanho bico,
Rostinho de Cerolico?

FARAS.
Es tu moa ou bacharel?
No aprendeste tu assi
O verbo d'ai)ima Christe,
Que tantas vezes Ouviste.
Isarel Isso no he pera mi
Velha E pois que?
Isarel
Eu vo-lo direi.
Ir a miude ao espelho,
E poer de branco e vermelho,
E outras cousas que sei :
Pentear, curar de mi
E poer a ceja em direito ;
E morder por meu proveito
Estes beicinhos assi.
Ensinar-me a passear,
Pcra quando for casada ;
No digo que fui criada
Em cima d,algum tear :
Saber sentir hum recado,
Responder em improviso
E saber fingir hum riso
Falso e bem dissimulado.
Velha E o lavrar, Isabel?
IiABELFaz a moa mui mal feita,
Corcovada e contrafeita,
De feio de meio annel ;
E faz muito mao caro,
E mao costume de olhar.
VelhaHu ! pois jeita-te ao fiar
Estopa, linho ou algodo,
Ou tecer, se vem mo.

23

24

. OBRAS DE GIL VICENTE.

IsabelIsso he peor que lavrar.


VELHAEngeitas tu o fiar?
IsaBELue nao hei de fiar nao.
Eu sou filha de muleira?
Em roca me fallais vos ?
Ora assi me salve Deos,
Que tendes forte cenreira.
Velha Aprende logo a tecer.
IsaBELEnto bolir c'o fiado :
Achais outro mais honrado ,
Officio pera eu saber?
Tecedeira vio alguem,
Que no fosse boliosa,
Cantadeira, presumptuosa ?
E nao tem nunca vintem.
E quando lhe quebra o fio,
Renega como beleguim.
Mae, deixae-me vos a mim,
Vereis como m'atavio.
Isto vai sendo de dia,
Eu quero, me, almocar.
VelhaEu te farei amassar.
IsaBELEssa he outra fantesia !
E com isto se recolhem, e fenece esta pmcirafarca.

rARM
CHAMADA

AUTO DA INDIA.
FIGURAS.
AMA.

MOA.

CASTELHANO.

LEMOS.

MARIDO.

A Fara seguinte chamo Auto da ndia.


Foi fundada sobre que ha mulher, estando ja
embarcado pera a ndia seu marido, lhe viero dizer que estava desnviado, e que ja no
ia; e ella de pezar est chorando. Foi feita em
Almada, representada muito catholica Kainha D. heonor, era de 1519.

Moa. Jesu ! Jesu ! que he ora isso?


He porque se parte a armada ?
Ama. Olhade a mal estreada !
Eu heide chorar por isso?
Moa. Por minha alma, que cuidei
E que sempre imaginei
Que choraveis por noss,amo.
Ama. Por qual demo ou por qual gamo
Alli ma ora chorarei ?
Como me leixa saudosa !

26

OBBAS DE Gil. VICENTE.

Toda eu fico amargurada.


Moa. Pois porque estais anojada?
Dizei-m'o por vida vossa.
Ama. Leixa-me ora eram,
Que dizem que no vai ja.
Moa. Quem diz esse desconcrto?
Ama. Dissero-m'o por mui certo
Que he certo que fica ca.
O Concelos me faz isto.
Moa. S'elles ja esto em Rastello,
Como pode vir a pello ?
Melhor veja eu Jesu Christo.
Isso he quem porcos ha menos.
Ama. Certo he que hem pequenos
So meus desejos que fique.
Moa. A armada est muito a pique.
Ama. Arreceio al de menos.
Andei na ma hora e nella.
A amassar e biscoutar,
Pera o demo o levar
A sua negra canella,
E agora dizem que no.
Agasta-se-m'o corao,
Que quero sahir de mim.
Moa. Eu irei saber s'he assim.
Ama. Hajas a minha beno.
(Vai a Moca c ficn a Ama dizendo:)
Ama.
A Santo Antonio rogo eu
Que nunca m'o ca depare :
No sinto quem no s'enfare
D'hum diabo Zebedeu.

FAKAS.
Dormirei, dormirei,
Boas novas acharei,
San Joo no ermo estava,
E a passarinha cantava.
Deos me cumpra o qu'eu sonhei.
Cantando vem ella e leda.
Moa. Dae-me alviaras, Senhora,
Ja vai l de foz em fora.
Ama. Dou-te huma touca de seda.
Moa. Ou quando elle vier,
Dae-me do que vos trouxer.
Ama. Alli muitieram !
Agora ha de tornar ca?
Que chegada e que prazer !
Moa.
Virtuosa est minha ama !
Do triste delle hei d.
Ama. E que falias tu l so?
Moa. Fallo ca co'esta cama.
Ama. E essa cama, bem, que ha?
Mostra-m'essa roca ca :
Siquer fiarei hum fio.
Leixou-me aquelle fastio
Sem ceitil.
Moa.
Alli, eram!
Todas ficassem assi.
Leixou-lhe pera tres annos
Trigo, azeite, mel e pannos.
Ama. Mao pezar veja eu de ti !
Tu cuidas que no ^entendo?
Moa. &ue entendeis? ando dizendo
Que quem assi fica sem nada,

27

28

Ama.

Cast.
Ama.
Cast.
Ama.
Cast.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Coma vs, que he obrigada....


Ja me vs is entendendo.
Ha ha ha ha ha ha !
Est'era bem graciosa,
Quem se ve moa e fermosa
Esperar pola ira ma.
Hi se vai elle a pescar
Meia legoa polo mar,
Isto bem o sabes tu :,
Quanto mais a Calecu :
Quem ha tanto d'esperar?
Melhor, Senhor, s tu comigo
A hora de minha morte,
Qu'eu faa to peca sorte.
Guarde-me Deos de tal pMgo.
O certo he dar a prazer.
Pera que he envelhecer
Esperando polo vento?
Quant'eu por mui necia sento
A que o contrairo fizer.
Partem em Maio daqui,
Quando o sangue novo atia :
Parece-te que he justia ?
Melhor vivas tu amen,
E eu comtigo tambem.
Quem sobe per essa escada ?
Paz sea en esta posada.
Vs sois? cuidei qne era alguem.
Asegun eso soy yo nada.
Bem, que vinda foi ora esta?
Vengo aqui en busca mia,

FAR AS.

Ama.
Cast.

Ama.
Cast.

Ama.
Cast.

CUie me perd en aquel da


Clue os v hermosa y honesta,
Y nunca mas me top.
Invisible me torn,
Y de m crudo enemigo ;
El cielo, empero, es testigo
Que de m parte no s.
Y ando un cuerpo sin alma,
Un papel que lleva el viento,
Un pozo de pensamiento,
Una fortuna sin calma.
Pes al dia en que nac ;
Vos y Dios sois contra mi,
Y nunca topo el diablo.
Reis de lo que yo hablo ?
Bem sei eu de que me ri.
Resvos del mal que padezco,
Resvos de mi desconcierto,
Resvos que teneis por cierto
Glue miraros non merezco.
Andar embora.
O mi vida y mi seora,
Luz de todo Portugal,
Teneis gracia especial
Para llnda matadora.
Supe que vueso marido
Era ido.
Ant'hontem se foi.
Al diablo que lo doy
El desestrado perdido.
Clue mas India que vos,

29

30

OBRAS DE GIL VICENTE.

Glue mas piedras preciosas,


Que mas alindadas cosas,
Glue estardes j untos los dos ?
No fue l Juan de Zamora.
Glue arrastrado muera yo,
Si por cuanto Dios cri
Os dejra media hora.
Y aunque la mar se humillara
Y la tormenta cesara,
Y el viento me obedeciera
Y el cuarto cielo se abriera,
Un momento no os dejara.
Mas como evangelio es esto
Que la India hizo Dios,
Solo porque yo con vos
Pudiese pasar aquesto.
Y solo por dicha mia,
Por gozar esta alegra,
La hizo Dios descubrir ;
Y no ha mas que decir,
Por la sagrada Maria !
Ama.
Moa, vae quelle cao.
Que anda naquellas tigelasMoa. Mas os gatos ando nellas.
Cast. Cuerpo del cielo con vos !
Hablo en las tripas de Dios,
Y vos hablaismc en los gatos I
Ama. Se vos fallais desbaratos,
Em que fallaremos nos ?
Cast. , No me hagais derrenegar,
O hacer un desatino.

FARAS.

Ama.

Cast.
Ama.

Cast.

Vs pensais que soy divino ?


Soy hombre y siento el pesar.
Trayo de dentro un leon,
Metido en el corazon :
Tineme el alma danada
De ensangrentar esta espada
En hombres, que es perdicion.
Ya Dios es importunado
De las almas que le envio ;
Y no es en poder mio
Dejar uno acuchilado.
Dej vivo all en el puerto
Un hombrazo alto y tuerto,
Y. despues fui lo encontrar ;
Penso que lo iba matar,
Y de micdo cay muerto.
Vs quereis ficar ca?
Agora he cedo ainda ;
Tornareis vs outra vinda,
E tudo bem se fara.
A qu hora me mandais?
As nove horas c n mais.
E tirae hua pedrinha,

Pedra muito pequeninha,


A janella dos quintaes.
Entonces vos abrirei
De muito boa vontade :
Pois sois homem de verdade
Nunca vos fallecerei.
Sabeis que ganais en eso ?
El mundo todo por vueso !

31

32

OBBAS DE GIL VICENTE.

GUie aunque tal capa me veis,


Tengo mas que pensareis :
Y no lo tomeis en grueso.
Besoos las manos, seora,
Voyme con vuesa licencia
Mas ufano que Florencia.
Ama. Ide e vinde muitVmbora.
Moca. Jesu ! como he rebolao !
Dae, dae demo o ladro.
Ama. Muito bem me parece elle.
Moca. Nao vos fieis vos naquelle,
Porque aquillo he refo.
Ama.
Ja lh'eu tenho promettido,
Moa. Muito embora, seja assi.
Ama. Hum Lemos andava aqui
Meu namorado perdido.
Moca, Quem ? o rascao do sombreiro ?
Ama. Mas antes era escudeiro.
Moa. Sera, mas bem afado :
Nao suspirava o coitado
Seno por algum dinheiro.
Ama.
Nao he elle homem dess'arte.
Moca. Pois inda elle nao esquece?
Ha muito que nao parece.
Ama. Quant'eu nao sei delle parte.
Moca. Como elle souber f
Que noss'amo aqui nao he,
Lemos vos visitar.
Lemos Hou da casa !
Ama.
Quem he l ?

FARAS.

33

Lemos Subirei ?
Ama.
Suba quem he.
Lemos
Vosso captivo, senhora.
Ama. Jesu ! tamanha mesura !
Sou a rainha por ventura?
Lemos Mas sois minha imperadora.
Ama. Que foi do vosso passear,
Com luar e sem luar,
Toda a noite nesta rua?
Lemos Achei-vos sempre to crua,
Glue vos no pude aturar.
Mas agora como estais?
Ama. Foi-se lndia meu marido,
E depois homem nascido
No veio onde vs cuidais;
E por vida de Constana,
Que se no fosse a lembrana.-..
Moa. Dizei j a essa mentira.
(A parte.)
Ama. Que eu vos no consentira
Entrar em tanta privana.
Lemos
Pois agora estais singela,
Que lei me dais vs, senhora?
Ama. Digo que venhais embora.
Lemos Quem tira quella janella ?
Ama. Meninos que ando brincando,
E tiro de quando em quando.
Lemos Que dizeis, senhora minha ?
Ama. Mettei-vos nessa cozinha,
Que m'esto alli chamando.
Cast.
Abrame, vuesa merced,
Que estoy aqui la vergiienza :

34

OBRAS DE GIL VICENTE.

Esto sase en Siguenza :


Pues prometeis, mantened.
Ama. Calae-vos muitieram,
At que meu irmo se va :
Dissimulae por hi emtanto.
Ora vistes o quebranto ?
Andar muitieram !
Lemos Quem he aquelle que fallava ?
Ama. O Castelhano vinagreiro.
Lemos Que quer ?
Ama.
Vem polo dinheiro
Do vinagre que me dava.
Vs quereis ca cear?
Eu no tenho que vos dar.
Lemos V esta moa ribeira
E traga-a ca toda inteira,
Que toda s'ha de gastar.
Moa. Azevias trazerei?
Lemos D 6 demo as azevias :
No compres, ja m'enfastias.
Moa. O que quizerdes comprarei.
Lemos Traze hua quarta de cerejas
E hum ceitil de breguiges.
Moa. Cabrito ?
Lemos
Tem mil barejas.
Moa.
E ostras, trazerei delias?
Lemos Se valerem caras, no :
Antes trazei mais hum po
E o vinho das Estrellas.
Moa. Quanto trazerei de vinho?
Lemos Tres picheis deste caminho.

FARAS.
Moa. Dais-me hum cinquinho, no mais?
Lemos Toma ahi mais dous reaes.
Vae e vem muito improviso.
Quem vos anojou, meu bem,
Bem anojado me tem.
Ama . Vs cantais em vosso siso ?
Lemos Deixae-me cantar, senhora.
Ama. A vizinhana que dir,
Se meu marido aqui no'st,
E vos ouvirem cantar?
> Que rezo lhe posso' eu dar,
Que no seja muito ma ?
Cast.
Reniego de Marinilla :
Esto es burla, 6 es burleta ?
Quereis que me haga trombeta,
Que me oiga toda la villa ?
Ama. Entrae-vos alli, senhor,
Que ouo o corregedor ;
Temo tanto esta devassa :
Entrae vs ness'outra casa,
Que sinto grande rumor.
(Chega janella.)
Fallae vs passo, micer.
Cast. Pesar ora de San Pablo,
Esto es burla 6 es diablo ?
Ama. Eu posso vos mais fazer?
Cast. Y aun en eso est ahora
La vida de Juan de Zamora ?
Son noches de Navid,
- Quiere amanecer ya,
Que no tardar media hora.

35

35

OBRAS DE GIL VICENTE.

Ama.
Meu irmo cuidei que s'ia.
Cast. Ah seora, ireivos vos.
brame, cuerpo de Dios!
\ma. Tornareis ca outro dia.
Cast. Asosiega, corazon,
Adormintate, leon,
No eches- la casa en tierra,
Ni hagas tan cruda guerra,
Que mueras como Sanson.
Esta burla es de verdad,
Por los huesos de Medea,
Sino que arrastrado sea
Maana por la ciudad ;
Por la sangre soberana
De la batalla trojana,.
Y j uro la casa santa
Ama. Pera qu'he essa jura tanta ?
Cast. Y aun vos estais ufana?
Quiero destruir el mundo,
Quemar a casa, es la verdad,
Despues quemar la ciudad ;
Seora, en esto me fundo.
Despues si Dios me dijere,
Cuando alla con l me viere,
Que por sola una muger...
Bien sabr que responder,
Cuando eo veniere.
Ama.
Isso so rebolarias.
Cast. Same Dios testigo,
Que vos vereis lo que digo,
Antes que pasen tres dias.

37
Ama. Ma viagem faas tu
Caminho de Calecu,
Praza Virgem consagrada.
Lemos Que he isso?
No he nada.
Ama.
Lemos As viva Bercebu.
I-vos embora, senhor,
Ama.
Glue isto quer amanhecer.
Tudo est a vosso prazer,
Com muito dobrado amor.
Oh que mezuras tamanhas !
Moca- GUiantas artes, quantas manhas,
Glue sabe fazer minha ama !
Hum na rua, outro na cama !
Ama. Oue falias? que t'arreganhas ?
Ando dizendo entre mi,
Moca
Que agora vai em dous aunou
Glue eu fui lavar os pannos
Alem do cho d'Alcami.;
E logo partio a armada
Domingo de madrugada.
No pode muito tardar
Nova se ha de tornar
Noss'amo pera a pousada.
Ama. Asinha.
Tres anuos ha
Moa
Que partio Tristo da Cunha.
Ama. Cant'eu anno e meio punha.
Moa Mas tres e mais havera.
Ama. \'ae tu comprar de comer.
Tens muito pera fazer,
2

38

OBRAS DE GIL VICENTE.

/
No tardes.
Moa.

No senhora ;
Eu virei logo nessora,
Se m'eu l no detiver.
(Sahe.J
Ama.
Mas que graa, que seria,
Se este negro meu marido
Tornasse a Lisboa vivo
Pera minha companhia I
Mas isto no pode Ser ;
Qu'elle havia de morrer
Somente de ver o mar.
Gluero fiar e cantar,
Segura de o nunca ver.
Moa.
Ai senhora! venho morta:
Noss'amo he hoje aqui.
Ama. Ma nova venha por ti
Perra excommungada torta.
Moa. A Garoa, em que elle ia,
Vem com mui grande alegria ',
Per Rastello entra agra.
Por vida minha, senhora,
Que no fallo zombaria.
E vi pessoa que o vio
Gordo, que he para espantar.
Ama. Pois, casa, se t'eu caiar,
Mate-me quem me pario.
Quebra-me aquellas tigela
E tres ou quatro panellas,
Que no ache que comer.
Q.ue chegada e que prazer !
Fecha-me aquellas janellas j

FARAS.
Deita essa carne a esses, ,gatos.;
Desfaze toda essa cama.
Moa. De mercs est mjnhVina.;
Desfeitos esto os tratos.
Ama. Porque no matas o fogo ?
Moa. Raivar, que este he outro jogo.
Ama. Perra, ca delia, tinhosa,
Que rosmejas, aleivosa?
Moa. Digo que o- matarei logo.
Ama.
No sei pera que he. vivei;,
Mar. Oul..
Ama.
Alli ma ora, este. he,
Quem he?
Mas.
Homem de- p*
Ama. Gracioso se quer fazer,
Subi, subi pera cima.
Moa. He noss^mo : como rima,!
Ama. Teu amo! Jgsu. ', Jesu!
Alviaras pedirs- tu.Mar. Abraaeme, minha prima.
Ama.
Jesu ! to negro e tostado!
Nos vos quejo, no vos quero.
Mar. E eu a vs si, porque espero
Serdes mulher de-,recado.
Ama. Moa, tu que estas olhando,?
Vai muito asinha saltando,
Faze fogo e vae por vinho,
E amolado d'hum.cabritinho,
Emquanto estamos faltando.
Ora como vos foi l ?
Mar. Muita fortuna passei.

39

40

OBRAS DE GIL VICENTE.

Ama. E eu oh quanto chorei,


Quando a armada foi de ca !
E quando vi desferir,
Que comeaste de partir,
Jesu ! eu fiquei finada ;
Tres dias nao comi nada,
A alma se me queria sahir.
Mar.
E nos cem legoas daqui
Saltou tanto sudueste,
Sudueste e oes-sudueste,
Glue nunca tal tormenta vi.
Ama. Foi isso quarta feira,
Aquella logo primeira?
Mar. Si; e comeou n'alvorada.
Ama. E eu fui-me de madrugada
A nossa Senhora da Oliveira,
E co'a memoria da cruz
Fiz-lhe dizer huma missa,
E promet ti-vos em camisa
A sancta Maria da Luz :
E logo quinta feira
Fui-me ao Spirito Sancto
Com outra missa tambem ;
Chorei tanto que ninguem
Nunca cuidou ver tal pranto.
Correste aquella tormenta ? Andar.
Mar.
Durou-nos tres dias.
Ama. As minhas tres romarias
Com outras mais de quarenta.
Mar. Fomos na volta do mar

FARAS.

Ama.

Mar.
Ama.

Mar.
Ama.

Quasi quasi a quartelar:


A nossa Gara voava,
Que o mar s'espedaava.
Fomos ao rio de Meca,
Pelejamos e roubamos,
E muito risco passamos
A vela, e rvore scca.
E eu ea esmorecer,
Fazendo mil devaes,
Mil choros, mil oraes.
Ass havia de ser.
Juro-vos que de saudade
Tanto de po no comia
A triste de mi cada dia.
Doente, era hua piedade.
Ja carne nunca a comi :
Esta camisa que trago
Em vossa dita a vesti,
Porque vinha bom mandado.
Aonde no ha marido
Cuidae que tudo he tristura,
No ha prazer nem folgura ;
Sabei que he viver perdido.
Alembrava-vos eu l?
E como?
Agora, aram :
La ha indias mui fermosas ;
L fareis vs das vossas
E a triste de mi ca,
Encerrada nesta casa,
Sem consentir que vizinha

41

42'

OBRAS DE GIL VICENTE.

Entrasse por huma braza,


Por honestidade minha.
Mar. L vos digo que ha fadigas,
Tantas mortes, tantas brigas,
E p"rigos descompassados,
Que assi vimos destroados,
Pellados coma formigas.
Ama.
Porm vindes muito rico?
Mar. Se no fira o capito,
Eu trouxera a meu quinho
Hum milho vos certifico.
Callae-vos que vs vereis
Quo louan haveis de sahir.
Ama. Agora me quero eu rir
Disso que me vs dizeis.
Pois que vs vivo viestes,
Que quero eu de mais riqueza?
Louvada seja a grandeza
De vs, Senhor, que m'o trouxestes.
A nao vem bem carregada ?
Mar. Vem to doce embandeirada !
Ama. Vamo-la, rogo-vo-lo, ver.
Mar. Far-vos-hei nisso prazer?
Ama. Si, que estou muito enfadada.
Vo-se a ver a nao, e fenece esta farca.

CHAMADA

AU11) M FMA.
i

FIQVRAS.
K.1M1.

JOANNE.

- OASTELHANO.

FRANCEZ.
TE.

ITALIANO.

FORTALEZA.

A Fora seguinte foi representada muicatholica e Serenssima Rainha D. Leonor, e de


pois ao muiio alio e poderoso Rei D. Manuel
na cidade de Lisboa, em Santos o velho, na
era do Senhor de 1510.
ARGUMENTO.
O argumento desta fara he, que a Fama
he ha to gloriosa excellencia, que muito se
deve de desejar : a qual este reino de .Portugal
est de posse damuior de todolos oirfros reinos.
Segue-se que esta Fama Portuguesa ne deseja
da de todalas outras terras, no tamsomente
pola gloria interessai dos commercios, mas prin
cipalmente polo infinito damno que os Mouros,
imigos da nossa f, recebem dos Portugueses ria
Indica navegaco. 14 porque antigamente a fa
ma desta nossa provncia era em preo de per

44

OBRAS DE Gil VICENTE.

quena estima, significando isto, sera o primei


ra figura ha mocinha chamada Portugueza
Faina, guardando patas, a qual sera requeri
da por Frana, por Itlia, por Castclla, e de
todos se escusar, porque cada hum a querer
levar ; e provar por evidentes razes que este
reino a merece mais que outro nenhum-. Polo
qual sera posta no fim do auto em carro triuniphal per duas Virtudes, s. F e Fortaleza.
(Entra logo a Fama, com hum Parvo per no
me Joanne comsigo, careando suas patas,
e diz :)
Fama. JL ange as patas pera ca.
Como es aqueste, Jesu 1
Samicas ervilhaste tu.
Joan. Pate, pate, ieram,
Oh ma reira !
FamA . Leix'as ir pola carreira.
Oh, ma morte que te leve !
Joan. Oh, pezar de Mafamede !
S'ellas se vo figueira !
Ind'hoje m'eu tornarei.
Fama. Tangede-las.
Joan.
Pate, pate.
Ma raposa que as mate.
Sabeis como vos afogarei.
Fama. Olhade o geito !
Joan. Se no querem ir direito l
E hei de fugir hum dia,

pasas .

Praza a Deos e Virgem Maria.


Fama. Porque no tanges a eito ?
Joan.
Patelas, pate raivosas;
Apre filhas do enforcado,
Polo ceo de Deos sagrado.
Fama. Pate, meninas formosas;
Andar, patinhas ;
Ora ide-vos, filhinhas.
Joan. Coche, meninas d'amor.
Hou, ganso ! s'eu l for,
Farvos-hei eu cagar pinhas.
(Dcito-se Joanne a dormir, e entra o Francese diz :)
Fras.
Dio guarde, bella pastora,
Tan fermosa y tan arrea :
Que fet vus naquesta aldea?
Yo su morte par vus, senhora,
Par mon foy.
Nom partir daqui oy,
Tan que sea a mi posana
Vu vendrs comigo en Frana,
Si par Dio par xar de moy.
Par el cor sacro de Diu
Vs estis tan bella xosa,
Y xosa tan preciosa,
Glu,en Frana vendrs comi.
O rosa mia,
Vendrs en mi companhia
A la prspera Paris,
Que Frana porta es paradis,
Tanti que le mundi sia.

46

Fama.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Cuidais vs qu'he 'quillo pouco !


Assi Vos tome a vs o demo.
Fran. O mi amor, que yo ya temo
flue me tengais vs por loco.
O mia dama,
Como os xamas ?
Fama.
Eu a Fama.
E cuidais de me levar?
Antes me leve hua trama.
Fran.
Fama, por Nutra Dante,
Si vus aves confiana,
Y vendrs comi en Frana,
Vus portarez gran corona.
Fama. Avache cham !
No hei d'ir a Frana no,
Que esta ihoa he Portugueza.
Fran. Y porque no scrs vns Franceza?
Fama. Porque no tenho rezo.
E que havia eu ora la d'ir?
Vs faltais em vosso siso?
Riquezas tendes vs pra isso ?
Isso he cousa pera rir.
Fran. Gran pbsana,
He forte XOsa le bello Frana,
Que totele mundi fa tembls.
Par xa y de moy vu 'vendr&.
Fama. Si, Castella vos amansa.
E ulas cavallarias
Que tendes para me levar,
CLuintViu no ouo faltar
Ac as 'Vossas valentias.

FARaS.

Tenho sabido
Que hc mais o arruido :
E no digo mais agora.
Francez, i-vos muito embora,
Que isto he tempo perdido.
Fhan.
Por mon oy, gentil pastora,
Que yo veo dende Enves,
Y nopuedo parler mes.
Quedos con Diu aora.
Oh ! forte xosa!. .
Oh pastora tan preciosa !
Humble diable que me porte !
Oh le Franpis que es tan forte
Y la Fama no le possa J
Yo ma mora oy braman.
Fama. Mando-v.os eu ora bramar?
Fkan. Cor de Diu, no s que far :
Le gens tous que diran ?
Fama. Joanne!
Joan. O diabo que t'esgane.
Fama. Alevanta-te. ,
.
Joan.
No me quero erguer.
Fama. No es farto de jazer? ,,. ,
Oh ! zna morte que ('apanhe.
Joan.
Filha da cornuda aoutada !
Fama. Vae s patas.
Joaji.
Pate, pate.
Ma raposa que .as mate;. _,
Fama. Dar-t-'ljej. tamanha punhada !
Tens mioJo JJu is. Eu sonhava que era tolo,

47

48

OBRAS DE GIL VICENTE.

Polo ceo de Deos sonhava ;


Olhae, ento eu chorava.
Fama. Oh Jesu ! como es cebolo !
(Vem hum Italiano, e diz a)
Fama. Quem sois vs?
Ital.
Italiano.
Fama. Ide, ide vosso caminho.
Acorda tu, Joanninho.
Vistes como vem oufano !
Ide embora.
Joan. liou Franchinote, fora, fora,
No espanteis as patas, hou !
Fama. A que vindes onde estou?
Ital. Audime, mia senhora.
Dio nutro salvatore
Tu belleza salve y guarde.
Porque guarde aqueste ave,
Con tu aspecto resplendore
Y tan pobleta?
Una jovena perfecta
Con le pate en la campanha !
Vem comigo en la Romanha,
Puy que tu belleza especta.
Fama.
Bola, meu amigo patranhas?
E que terra he assi a vossa ?
Ital. La gran Italia pod'rosa.
Fama. Queria mais tres castanhas.
Ital. Ay ! il cor me dole,
Qui me mata tu parole ;
Aro en foco de tu amore ;
Si tu no me d favore,

F ARAS.

Clamar, que rumpe il sole.


O li core de la vita mia,
Si brachi mei te pilhasse,
Y occhi mei te mirasse,
Tote le ore, notte y dia,
Totti quanti
Liberati qui sun tanti,
Y le companha de dia ;
Aqueste paradisa mia
Me ser multi triumphanti.
Ve ay tu muy cierte cora,
Que videtis son conduto
A crudele amore tuto,
Sin pietate sola un'ora :
Y noche loco
Me consume el triste foco,
Y el core si lamenta,
Que a la fine ja mi a foco.
Fama.
Eu no sei que vs haveis.
Meninas, meninas, pati.
Ital. Oh le morte ao suy estati !
Fama, Dou-lh^ra que renegueis.
Ital. Audi cagione.
Yo suy en tu prisione,
Y la morte no me vale.
Fama, puy que es immortale.
Famula tuorum y racione ?
Insule eu es tuta terra.
Vamo, auvoemos en Pavia,
GUii le Romani sun con via
De le pace y de le guerra.

49

H0

OBRAS DE CIL VICENTZ.

Fama. Oh que bem !


QVesbrada gente tem !
Glue victorias ! Mao pezar,
Sois de quem vos conquistarVdes o demo em que remi
Ital.
Parla oy mi dulce parole,
Concede mi pedimiento.
Fama. Olhade aquelle aviamento !
Ital. Ob fermosa como el Sole l
Fama. No vos digo
Glue no falleis mais comigo l
Ital. O ihi' dulce paradiso,
Tu, me fai que me persigo.
O la candida vita mia senhora,
Diesa mia y mi dolore,
Que abalho por el tu amore :
Mi casar comtico aeora.
Fama. Eu no quero :
Isso h certo o qu'eu espero.
E que riquezas tendes Vs ?
Ora assi me salve Deos
Glu'Lss passa ja de fero.
Ital.
Yo te doner ducate,
Y le joya preciosa,
Y tu seray venturosa
Y de riqueza aljstate.
Fama. Perguntae ora Veneza
Como Mie vai de seu jogo:
Eu vos' ensinarei logo '
De qu se fez sua grandeza.

Cmeae de navegai.,

Ireis ao porto de Guin ;


Perguntae-lhe cujo he,
Que o no pode negar.
Com ilhas mil
Deixae a terra do Brazil ;
Tende-vos mo do sol,
E vereis homens de prol,
Gente esforada e varonil.
Aos commercios perguntareis
D'Arabia, Persia, a quem se dero,
Ou quando os homens tivero
Este mundo que vereis,
E no fique
Perguntar a Moambique
Quem he o Alferes da Fe,
E Rei do mar quem o he,
Ou s'ha outrem a que se applique.
Ormuz, Quiloa, Mombaa,
Sofala, Cochim, Melinde,
Como em espelhos d'alinde,
Ruluze quanta, he sua- graca.
E chegarei*
A Goa e perguntareis.
Se he ainda subjugada
Por peita, rogo, ou espada?
Veremos se pasmareis.
Perguntae populosa,
Prspera e {fofa Malaca*
Se lhe leixrfl npm, 'staca
Pouca gente mas furiosa.
E vereis de longe e de travs.

62

OBRAS DE GIL VICENTE.

Se treme todo o serto :


Vde se feito Romo
'Com elle m'igualareis.
Ital.
O Diu !
Fama.
Esperae vs,
Qu'inda eu agora comeo ;
Qu'este conto he de gran preo ;
Bento seja o Deos dos Ceos !
Perguntae
Ao Soldo como lhe vai
Com todos seus poderios ;
Que contr'elle so seus rios :
E esta nova lhe dae.
Ide-vos pela foz de Meca,
Vereis Adem destruda,
Cidade mui nobrecida,
E tornou-se-lhe marreca.
E achareis
Em calma suas gals,
E as velas feitas em isca,
E blhando mourisca
Dentro gente Portuguez.
Achareis Meca em tristeza.
Ainda mui sem folgana,
Renegando a vizinhana
De to forte natureza.
Porque faro
Na ilha do Camaro
E no estreito fortalezas,
E as mouriscas riquezas
Ao Tejo se viro.

F ARCAS.

Ital.

Diu, que gran fato !


Como la fiel fortuna,
Estelle, sol y la luna
Proseguio tanto andato.
Fit partito,
Si plaze al tu petito,
Pui plaze a mi tu a moro,
Que lassis queste labore,
Porque el cor tengo aflito.
Fama.
Por amores no se ha fama.
Olhae vs que cousa aquella !
Ide cantar a gamella ;
GUie a Fama he mais que Dama,
Ital. Si le Veneeiani
Aqui fizo tanti dani,
Que satisfar por aquello?
Fama. A ilha de Caramello.
Ital. Par Di, este he grave afani.
Cruda, crudele, con Dio,
A pietate me donai,
El agrave que me fai
Non resolve in mio desio ;
Y la empreza,
Que mio valle tan acesa,
Durar la vita mia.
Fama. Para que he essa porfia,
Que esta moa he Portugueza?
Ital.
Que paciencia basta a core
Del pastore disperato !
Congregar lo y grave fato
Si la mente vir o amore

53

>4

OBRAS SE GH VICENTE.

Al foco eterno
Delia flamme del inferno,
Far partito col mio :
Tu lo sa, Domine mio,
Que mi mal es sempiterno.
(Encontrasse o Italiano com o Fra/ncez.)
Fran.
Diu vu garde, bon ami.
Ital. No vale, parole, Micero,
Ni ou pur la vita quiero.
Fran. Y que xosa fue essa ansi?
Ital. Aro en foco,
Y plango in hoc loco,
Y el alma se me va.
Fran. Que diable fue esse all?
Ital. Modici acerba invoco.
Fran.
Vus topes la Fama acora,
La famosa Portuguesa?
No la pude far Franceza.
Ital. Oh Dio ! que linde pastora
Para Romani !
Yo con ella ho farto afani ;
Qu'a la fe l' astuta vera,
Ni por pace ni por guerra,
No estima le Italiani.
Fran. Por le cor de Diu sacro
Que ella si burla di Franca,
E fit tembler toto istato.
Ital. Oh. el naio amare,
Mi dulce ochi, colore
Candida come le sole,
Per le vivo rcsplandore.

* ARAS.

Le terra in que ell'ist


Sea in aeternum beata,
Puy que d'amore mi mata
Y toto el mundo far.
Y le pate
Que ella guarda, sun beate,
Y toli quanti sui sia :
Y lo que su gracia degia
Per le celi sea fati.
(Vem hum Castelhano e dia:)
Cast.
Cuya sois, linda pastora?
Fama. Ja temos outro enxoval?
Cast. Sois daqui de este casal?
Fama. Daqui fui sempre e agora.
f ' vst. Oh qu cosa !
Una joya tan preciosa,
Que matais todos de amores,
Y sola entre cuatro pastores
Ests ufana y briosa !
Yo no siento quien os vea,
Que no le robeis la vida,
O seora esclarecida ;
Que no hay quien no os desea
Muy de grado.
Dejeis las patas y el prado
Por la prspera Castilla;
Que estardes aqui, es bobilla,
Nun casal medio poblado.
De pasados y presentes
Vos dorais todas memorias,
Y sois vida de las glorias.,

55

56

OBRAS DE Gl. VICENTE.

Y corona de las gentes.


Y es sabido
Que sois un rosal florido,
Donde nobleza reposa;
Tan alta y preciosa cosa,
Como nel mundo ha nacido.
Pues Fama de hermosura,
Qu haceis nesta ribera,
Que vuesa gentil manera
Merece mejor frescura ?
Seora, digo
Que vos querais ir conmigo
A Castilla, pues merece
Lo que de vos resplandece ;
Y doy el mundo por testigo.
Bien sabeis, alta seora,
Las victorias de Castilla,
Que tiene puesta la silla
Con la silla emperadora.
Habeis oido
Que en nuestro tiempo ha vencido
Cuanto quizo sojuzgar :
Por tierra y por la mar
Es muy alto su partido.
Los campos Italianos,
Las cercas Napolitanas
Y las naciones cristianas
Cuentan sus hechos Romanos :
Y Granada
Con tantas fuerzas ganada,
Tales que es cosa de espanto.

FARAS.
Fama. Oh Jesu ! vs fallais tanto,
Que j estou enfastiada.
Olnae, Caslelho de bem,
Dizeis verdade, bem sabemos ;
Mas ha mister mais extremos
Pera me levar ninguem.
Cast. Oh sonora,
Qu extremos quereis ahora?
Fama. Leixae-me vs a mi dizer.
Cast. Plceme, yo quiero ver.
Fama. Ora ouvi-me na boa ora.
Cast.
Decid, que bien os oir,
Mi preciosa enamorada.
Fama.NSo quereis que diga nada?
Cast. Qu ! no os responder?
Por Veneza !
Hable vuestra gentileza,
Cuerpo de Dios consagrado,
Yo quiero estar callado ;
Mostradme vuestra grandeza.
Fama. I-vos por aqui Turquia,
E por Babilonia toda,
E vereis se anda cm voda,
Com pezar de Alexandria.
E vos dir
Damasco quantos lhe d
De combates Portugal,
Com victoria to real,
Que nunca se perder.
Chegareis a Jer'salem,
O qual vereis ameaado,

S7

58

OBRAS DE GIL VICENTB.

E o Mourjsmo irado,
Com pezar do nosso bem :
E os desertos
Achareis todos cubertqs
D'artelharia e camelos
Em soccorro dos castellos,
Que ja Portugal tem certos.
Sabei em Africa a maior
Flor dos Mouros em batalha,
Se se tornro de palha,
Quando foi na d'Azsmor.
E, sem combate,
A trinta leguas do resgate,
Comprando cada mez a vida ;
E a atrevida Almedina
E Ceita se tornou parte.
Tributarios e captivos
Elles com os seus logares,
Com camelos dez mil pares,
Porque os deitassem vivos.
Pois Mar.rocos,
Que sempre fez dez mil biocos
At destruir- ^espanha,
Sabei se se torpou aranha,
Quando vio o demo em. soccos.
Bem : e he razo que me ya
Donde ha cousas to honradas,
To devotas, to soadas?
O lavor vos contar.
I-vos embora.
Cast. Qued;' Dios, seoifl;

rarcas.

69

No quiero mas porfias.


(Encontra-se com o Francez e Italiano, ediz o)
Ital.
Oh Diu ! como est tan trista !
Fran. Vus topes la gran pastora?
Ille he forte coma hum torra !
Ital. Dleme el core y la tista.
Cast. Yo estoy cansado,
Que con ella he trabajado.
Fran. Y si no quier los Francezes !
Cast. Mucho mas valemos nos.
Ital. Le Romani pilha en grado.
Cast.
Qu os parece de la Fama
Portugucza ?
Ital.
Forti xosa
De riquesa y no checosa ;
Diu y el creve la inflama.
Yo he vido
Que al mare no ha ayedo
Mal rosto dale Mofo,
Per fora pilha el tesoro ;
Y questo he vero y lo credo.
Fran.
Par el cor de Christo santo,
Que la pastora irie flt suds \
Yo no le perler mes,
Pues su merc vale tanto.
Ital. Puy eie ;
Que le fa Diu gran mercede,
Y por honra mas crecirse,
Porque el' cor di forti yfa.ee
Per Christo que in celisede.
Glue la alta guerra o paci,

60

OBBAS DE GIL VICENTE.

Que he contra le Christiani,


Vencimento tali dani
Non est famoso mas fallaci.
Le cuerpo morto,
Si alma al inferno porto
Si la vana opinione
Quien de aquesto he occasione
No le veo por conforto.
Cast.
Por eso no .porfi
Con ella, ni es razon,
Porque sus victorias son
Muy lejos y por la fe.
Ital. Cor de Di !
Que la Terit he ansi !
Cast. El muy alto Dios sin par
La quiera siempre ayudar ;
Y nos vmosnos de aqui.
(Vem a F e Fortaleza a laurear esta Fama
com ha coroa de ouro.)
Ital.
Que es aquesto dito acora?
Fran . Oh le hellc polideza !
Cast. La F y la Fortaleza
Vienen honrar la pastora.
F. Os feitos Troianos, tambem os Romos,
Mui alta Princeza, que so to louvados,
E neste mundo esto collocados
Por faanhosos e por muito vos,
Em o regimento de seus cidados,
E alguas virtudes e moraes costumes,
Vs, PortuguezaFama, no tenhais ciumes,
Que
e eslais
estai! colloeada na flor dos ChristoB.

FARAS.

61

Vossas faanhas esto collocadas


Diante de Christo, Senhor das alturas :
Vossas conquistes, grandes aventuras,
So cavallarias vaii bem empregadas.
Fazeis as mesquitas serem desertadas,
Fazeis na Igreja o seu poderio :
Portanto o que pode vos d domino,
Que tanto reluzem vossas espadas.
Porque o triumpho do vosso vencer
E as vossas vietorias exalo a f,
De serdes laureada grande rezo he,
Princeza das famas, por vosso valer.
No achamos outra de mais merecer.
Pois tantos destroos fazeis a Ismael,
Em nome de Christo tomae o laurel,
Ao qual Senhor praza sempre em vos crescer.
Aqui coroo as Virtudes a Fama, e a pe
em seu carro triumphal com musica, c assi a
lero, c se acaba esta susodita fara.

O VELHO DA IORTA,
FIGURAS.
HUM VELHO.
HUMA. MOA.
HUM PARVO,
Criado do Velho. mulher do ia.no.
BRANCA GIL.
CAIDE.

HUMA MOCINHA.

HUM AL

BELEGUINS.

A seguinte fara, he o scu argumento, que


hum homem honrado e muito rico, ja velho,
tinha lia horta ; e andando ha manhan por
ella cspairecendo, sendo o scu kortelao f6ra,
veio ha moa -de muito boni parecer buscar
hortalia, e o velho em tanta maneira se namorou dclla, que por .via de hua alcoviteira
cjastou toda suafazenda. A alcoviteira foi r coutada, e a moca casou honradamente. Foi re
presentada ao mui serenissimo Rei .Vom Ma
nuel o primeiro deste oe, era do Senhor
de 1512.
(Entra o velho pela horta, rezando.)

Velho JLater noster creador,


Qui es in clis poderoso,
Sanctificetur, Senhor,
Nomen tuum vencedor,

FHAS.

Nos cec?s e teria piedoso.


Advenit a tila graa,
Regnm iuuiiiscm iilais guerra ;
Voluntas tua se faa
Sicut in calo et in terra.
Panem nostrum, que comemo9,
Quoidianm, teu he ;
Escus-lo no podemos ;
Indaque o no merecemos.
Tu da nobis hodie.
Simiite nobis, Senhor,
Debita nossos errores,
Sicut et nos, por teu amor,
Demittims qualquer error
A os v nossos devedores.
Et nc nos, Deos, te pedimos,
Inducas per nenhum modo
Iri tnlationem cahinos ;
Porque fracos nos sentimos,
Formados de triste lodo.
Sed libera nossa fraqueza,
Nos a rhlo nesta vida.
Arnen por tua graa,
E nos livre tua alteza
Da tristeza sem medida.
(Entra a Moa ha horta e diz o)
Velho Senhora, benza. vos Des.
'Moa. Deos vs mantenha, Senhor.
Velho Onde se criou tal flor?
Eu diria que nos ceos.
Moa. Mas no cltfio.

63

&i

OBRAS DE GIL VICENTE.

Velho Pois damas se acharo,


Que no so vosso sapato.
Moa. Ai! como isso he to vo,
E como as lisonjas so
De barato.
Velho Guie buscais vs ca, donzella,
Senhora, meu corao?
Moa. Vinha ao vosso hortelo
Por cheiros pera a panella.
Velho E a isso
Vindes vs, meu paraizo,
Minha senhora, e al no?
Moa. Vistes vs ! Segundo isso,
Nenhum velho no tem siso
Natural.
Velho Oh meus olhinhos garridos !
Minha rosa ! meu arminho !
Moa. Onde he o vo.sso ratinho?
No tem os cheiros colhidos?
Velho To depressa
Vindes vs, minha condessa,
Meu amor, meu corao ?
Moa. Jesu ! Jesu ! que cousa he essa?
E que prtica to avessa
Da rezo !
Fallae, fallae d'outra maneira :
Mandae-me dar a hortalia.
Velho Gran fogo d'amor m'atia,
Oh minha alma verdadeira !
Moa. E essa tosse?
Amores e sobre-posse

FAKAS.

Sero os da vossa idade :


O tempo vos tirou a posse.
Velho Mais amo, que se moo fosse
Com ametade.
Moa.
E qual sera a desestrada,
Glue attente em vosso amor?
Velho Oh minh'alma e minha dor,
Quem vos tivesse fuvtada
MoqA. Que prazer !
Quem vos isso ouvir dizer
Cuidara que estais vos vivo,
Ou que sois pera viver.
Velho Vivo no no quero ser,
Mas captivo.
Moa.
Vossa alma nao he lembrada
Que vos despede esta vida ?
Velho Vos sois minha despedida,
Minha morte antecipada.
Moa. Que galante !
Que rosa ! que diamante !
Que preciosa perla fina !
Velho Oh fortuna triumphante !
Quem metteo hum velho amante
Com menina !
O maior risco da vida,
E mais perigoso, he amar ;
Que morrer he acabar,
E amor no tem sahida.
E pois penedo,
Aindaque seja amado,
Vive qualquer amador ;

63

OBRAS DE GIL VICENTE.

Glue fara o desamado,


E sendo desesperado
De favor?
Moca .
Ora d-lhe la favores !
Velhice, como le enganas!
Velho Essas palavras ufanas
Aeendem mais os amores.
Moa. O home ! estais s escuras :,
Nao vos vdes como estais?
Velho Vos me cegais com tristuras,
Mas vejo .as desaventuras
due me dais.
Moa.
Nao vdes que. sois ja morto,
E andais contra natura ?
Velho O flor da mor fermosura,
Quem vos trouxe a este mcu horto?
Ai de. mi !
Porque assi como vos vi,
Cegou minha alma e a vida ;
E est to fora de si,
Q.u'em partindo vds daqui,
He partida.
Moca.
Ja perto sois de morrer :
Donde nasce esta sandice,
Que, quanto mais na velhice,
Amais os velhos viver ?
E mais .querida,
Guando estais mais de partida,
He a vida que leixais ?
Velho Tanto sois mais homecida,
Que, quaudo amo mais a vida,

FARAS.

M'a tirais..
Porque minh'hora d'agora
Val vinte aimos dos passados ;
Que os moos namorados
A mocidade os escora.
Mas hum velho,
Em idade de conselho,
De menina namorado
Oh mimValma e meu espelho !
Moa. Oh miolo de coelho
Mal assado.
Velho Quanto for mais avisado
Quem d'mor vive penando,
Tera menos siso amando,
Porque he mais namorado.
Em concruso,
One amor no quer rezo,
Nem contracto, nem cautela,
Nem preito, nem condio,
Mas penar de corao
Sem querel] a.
Moa.
Hulos esses namorados?
Desinada he a terra delles :
Olho mao se metteo nelles:
Namorados de cruzados,
Isso si.
Velho Senhora, eis-me eu aqui,
Oue no sei seno amar.
Oh meu rosto d'alfeni !
&u'cra forte ponto vos vi
Neste pomar.!

67

68

OBRAS DE GIL VICENTE.

Moa.
Que velho to sem socgo l
Velho Que garridice me viste ?
Moa. Mas dizei, que me sentiste,
Remelado, necio, cego ?
V elho Mas de todo
Por mui namorado modo
Me tendes minha senhora
Ia cego de todo em todo.
Moa. Bem est quando tal lodo
Se namora.
Velho Quanto mais eslais avessa,
Mais certo vos quero bem.
Moa. O vosso hortelo no vem?
Quero-me ir, que estou de pressa.
Velho Oh fermosa,
Toda .minha horta he vossa.
Moa. No quero tanta franqueza.
Velho No per me serdes piedosa ;
Porque quanto mais graciosa,
Soes crueza.
Cortae tudo sem partido;
Senhora, se sois servida,
Seja a horta destruida,
Pois seu dono he destrudo.
Moa. Mana minha,
Achastes vs a daninha,
Porque no posso esperar.
Colherei algua cousinha,
Somente por ir asinha
E no tardar.
CoDiei, rosa, dessas rosai,

FARAS.

09

Minhas flores, colhei flores.


Quizera eu que esses amores
Foro perlas preciosas,
E de rubis
O caminho per onde is,
E a horta d'ouro tal,
Com lavores mui sutis,
Poisque Deos fazer-vos quiz
Angelical.
Ditoso he o jardim
Que est em vosso poder:
Podeis, senhora, fazer
Delle o que fazeis de mim.
Moa. Que folgura !
Glue pomar e que verdura !
Que fonte to esmerada !
Velho N'agua olhae vossa figura,
Vereis minha sepultura
Ser chegada.
Moa.
Cual es la nina
(Canta.)
Que coge las flores,
Sino tiene amores.
" Cogia la nia
La rosa florida,
El hortelanico
Prendas le pedia,
Sino tiene amores.
(Assi cantando colheo a Moa da horta o que
vinha buscar, c acabado, diz :)
Moa.
Eis-aqui o que colhi ;
Vde o que vos hei de dar.

70

OBRAS DE GIL VICENTE.

Velho Que m'haveis vs de pagar,


Pois que me levais a mi ?
Oh coitado !
Que amor me tem entregado .
E em vosso pqder me fino,
Porque sam de vs tratado
Como passaro em mo dado
D'hum menino.
Moa.
Senhor, com vossa merc.
Velho Por eu no ficar sem a vossa,
Queria de vs hua rosa.
Moa. Hua rosa? para que?
Velho Porque so
Colhidas de vossa mo,
Leixar-m'heis algua vidai
No isenta de paixo,
Mas sera consolao
Na partida.
Moa .
Isso he por me deter :
Ora tom ao acabar.
(Tomou.lhe o Velho a mo.)
.Tesa '. o quereis brincar ?
Que galante e que prazer !V fiLHO Ja me leixais ?
Jjembre-vos que me lembrais
E que no fico comico.
Oh marteiros internaes !
No sei porque me matais,
Nem o que digo.
( Vem hum Parvo, criado do Velho, e di% :)
Parvo
Dono, dizia minha dona

FARAS.
Que fazeis vs ca t noute ?
Velho Vae-te dahi, no t'aeoute.
Oh ! dou demo a chaona
Sem saber.
Parvo Diz que fosseis vs comer,
E que no moreis aqui.
Velho No quero comer nem beber.
Parvo Pois que haveis ca de fazer?
Velho Vae-te d'hi.
Parvo
Dono, veio l meu tio,
Estava minha dona ento ella
Foi-se-lhe o lume pela panella,
Seno acert-lo acaro.
Velho Oh Senhora,
Como sei que estais agora
Sem saber minha saudade !
Oh senhora matadora,
Meu corao vos adora
De vontade.
Parvo
Raivou tanto rosmear
Oh pezar ora da vida !
Est a panella cozida,
Minha dona quer jentar :
No quereis ?
Velho No hei de comer, que me pis,
Nem quero comer bocado.
Parvo E se vs, dono, morreis?
Ento depois no foliareis,
Seno fmado.
Ento na terra nego jazer,
Ento finar dono estendido*

71

72

OBRAS DE GIL VICENTE.

Velho Oh quem no fora nascido,


Ou acabasse de viver !
Parvo Assi, pardeos.
Ento tanta pulga em vs,
Tanta bichoca nos olhos,
Alli c'os fmados sos ;
E comer-vos-ho a vs
Os piolhos.
Comer-vos-ho as cigarras,
E os sapos morrer, morrer.
Velho Deos me faz ja merc
De me soltar as amarras.
Vae saltando,
Aqui fico esperando :
Traze a viola e veremos.
Parvo Ah corpo de San Fernando !
Esto os outros jentando,
E cantaremos ?
Velho Quem fosse do teu teor,
Por no sentir tanta praga
De fogo que no s'apaga
Nem abranda tanta dor !
Hei de morrer.
Parvo Minha dona quer comer ;
Vinde eram, dono, que brada.
Olhae, eu fui-lhe dizer
Dessa rosa e do tanger,
E est raivada.
Velho Vac-te tu, filho Joanne,
E dize que logo vou,
Que no ha tanto que ca 'stou.

FARAS.

Parvo Ireis vs pera Sanhoanne


Polo ceo sagrado,
Que meu dono est danado.
Vio elle o demo no ramo.
Se elle fosse namorado,
Logo eu vou buscar outr^amo.
(Vem a Mulher do Velho, e diz :)
Mulh. Hui ! amara do meu fado ;
Fernandianes, que he isto?
Velho Oh pesar do Antichrsto
Co'a velha destempVada !
Vistes ora ?
Mulh. Esta dama onde mora ?
Hui ! amara dos meus dias !
Vinde jentar na ma ora :
(iue vos mettedes agora
Em musiquias?
Velho Polo corpo de San Roque
Commendo demo a gulosa.
Mulh. Quem vos poz hi essa rosa ?
Ma forca que vos enforque !
Velho No curar :
Fareis bem de vos tornar,
Porque estou mui mal sentido ;
No cureis de me fallar,
Glue no se pode escusar
Ser perdido.
Mulh.
Agora co'as hervas novas
Vos tornastes vs granho.
Velho No sei que he, nem que no,
Que hei de vir a fazer trovas.
3

73

74

OBRAS DE GIL VICEHTE.

Mu lh. GUie peonha !


Havei roa ora vergonha
A cabo de sessenta annos,
Que sondes ja carantonha.
Velho Amores de quem me sonha
Tantos danos.
Mulh. Ja vs estais em idade
De mudardes os costumes.
Velho Pois que me pedis ciumes,
Eu vo-lo farei verdade.
Mulh. Olhade a peca !
Velho Nunca o demo em al m'empea.
Seno morrer de namorado.
MuLH.Quer ja cair da trepea,
E tem rosa na cabea
E imbicado.
Velho Leixae-me ser namorado,
Porque o sou muito em extremo.
Mulh. Mas que vos tome inda o demo,
Se vos ja no tem tomado.
Velho Dona torta.
Acertar por essa porta,
Velha mal aventurada,
Sair ma ora da horta.
MuLH.Hui, amara! aqui sou morta.
Ou espancada.
Velho Estas velhas so peccados,
Sancta Maria Val com a praga l
Quanto as homem mais alaga,
Tanto so mais endiabradas.

FAIMJAS .

(Canta.)
Volvido nos han volvido,
Volvido nos han
Por una vecina mala
Meu amor tolheu-me a falia,
Volvido nos han.
(Vem Branca Gil, alcoviteira, e diz:)
Bran.
Mantenha Deos vossa mere.
VEiHoBof, vs venhais embora.
Ah sancta Maria senhora,
Como logo Deos prov !
Bran. Si aosadas.
Eu venho por mesturadas,
E muito depressa ainda.
Velho Mesturadas mesandadas,
Que as fara bem guisadas
Vo9sa vinda.
O caso he : Sobre meus dias,
Em tempo contra rezo,
Veio Amor sobre teno,
E fez de mi outro Maneias,
To penado,
Que de muito namorado
Creio que me culpareis
Porque tomei tal cuidado ;
E do velho destampado
Zombareis.
Bran.
Mas antes, senhor, agora
Na velhice anda o amor ;
O de idade d'amador
De ventura se namora ;

73

76

OBRAS DE GIL VICENTE.

E na corte
Nenhum mancebo de sorte
No ama como sohia.
Tudo vai em zombaria ;
Nunca morrem desta morte
Nenhum dia.
E folgo ora de ver
\'ossa merc namorado;
Que o homem bem criado
At morte o ha de ser
Por direito ;
No per modo contrafeito,
Mas firme, sem ir atraz,
Que a todo o homem perfeito
Mandou Deos no seu preceito :
Amars.
Velho Isso he o demo que eu brado,
Branca Gil, e no me val,
Que no daria bum real
Por homem desnamorado.
Porm, amiga,
Se nesta minha fadiga
Vs no sois medianeira,
No sei que maneira siga,
Nem que faa nem que diga,
Nem que queira.
BrAN.
Ando agora to ditosa,
Louvores Virgem Maria,
Que acabo mais do que qu'ria,
Pola minha vida e vossa.
D'antemo

FARAS .

77

Fao hua esconjurao


Chum dente de negra morta
At que entre pola porta,
Que exhorta
Qualquer duro corao.
Dizede-me, quem he ella?
Velho Vive junto co'a S.
Bran. Ja, ja, ja ; bem sei quem he.
He bonita como estrella,
Hua rosinha d'Abril;
Hua frescura de Maio,
To manhosa, to subtil !
Velho Acudi-me, Branca Gil,
Que desmaio.
(Esmorece o Velho, e a alcoviteira comea a
, ladainha seguinte :)
Brat.
O precioso Santo Arelhano,
- Martyr bem-aventurado,
Tu que foste marteirado
Neste mundo cento e hum anno ;
O San Garcia
Moniz, tu que hoje em dia
Fazes milagres dobrados,
D-lhe esforo e alegria,
Pois que es da companhia
Dos penados.
O apostolo San Joo Fogaa,
Tu que sabes a verdade,
Pola tua piedade
Que tanto mal no se faa.
O Senhor

73

OBRAS DE 11 VICENTE.

Tristo da Cunha Confeseor,


O martyr Simo de Sousa,
Polo vosso santo amor
Livrae o velho peccador
Dental cousa.
O Santo Martim Affonso
De Mello, to namorado,
D remedio a este coitado,
E eu te direi hum responso
Com devao.
Eu promelto hua orao,
Cada dia quatro mezes,
Porque lhe deis corao,
Meu Senhor San Dom Joo
De . Menezes.
O martyr Santo Amador
Gonalo da Silva, vs,
Vs que sois hum so dos sos
Porfioso em amador
Apressurado,
Chamae o martirizado
Dom Joo d'Ea a conselho,
Dous casados n'hum cuidado,
Soccorrei a este coitado
Deste velho.
Archanjo San Commendador
Mor d' Avis, mui inilammado,
Que antes que fosseis nado
Fostes sancto no amor.
E no fique
O precioso Dom Anrique

r arcas.
Outro Mor de Santiago ;
Soccorrei-lhc muito a pique,
Antes que o demo repique
Com tal pago.
Glorioso San Dom Martinho,
Apostolo e Evangelista,
Tomae este feito revista,
Porque leva mao caminho,
E dae-lhe esprito.
O sancto Baro d' Alvito,
Seraphim do Deos Cupido,
Consolae o velho affKto ;
Porque inda que contrito,
Vai perdido.
Todos sanctos marteirados,
Soccorrei ao marteirado,
Que morre de namorado,
Pois morreis de namorados.
Polo livrar
As Virgens quero chamar,
Que lhe queiro soceorrer,
Ajudar e consolar,
Que est ja pera acabar
De, morrer.
O sancta Dona Maria
Anriques, to preciosa,
Queirais-lhe ser piedosa
Por vossa sancta alegria.
E vossa vista,
Glue todo o mundo conquista,
Esforce seu corao,

79

80

OBRAS DE GIL VICENTE.

Porque sua dor resista,


Por vossa graa e bemquista
Condio.
O sancta Dona Joana
De Mendona, to formosa,
Preciosa e mui lustrosa,
Mui querida e mui oufana,
Dae-lhe vida,
Como outra sancta escolhida,
Que tenho em voluntas mea,
Seja de vs soccorrida,
Como de Deos foi ouvida
A Cananea.
O sancta Dona Joana
Manoel, pois que podeis,
E sabeis e mereceis
Ser angelica e humana,
Soccorr.
E vs, Senhora, por merc
O sancta Dona Maria
De Calatad, porque
Vossa perfeio lhe d
Alegria.
Sancta Dona Catherina
De Figueiredo a Real,
Por vossa graa especial,
Que os mais altos inclina ;
E ajudar
Sancta Dona Beatriz de Sa :
le-lhe, SeoKconforto,

FA11AS.

Quasi morto.
Sancta Dona Beatriz
Da Silva, que sois aquella
Mais estrella que donzella,
Como todo o mundo diz ;
E vs sentida
Sancta Dona Margarida
De Sousa, lhe soccorr,
Se lhe puderdes dar vida ;
Porque est ja de partida,
Sem porque.
Sancta Dona Violante
De Lima, de grande estima,
Mui subida, muito acima
D'estimar nenhum galante ;
Peo-vos eu,
E a Dona Isabel d' Abreu,
Que hajais delle piedade
Co siso que Deos vos deu,
Que no moura de sandeu
Em tal idade.
O sancta Dona Maria
D'Ataide, fresca rosa,
Nascida em hora ditosa,
(Auando Jupiter se ria ;
E se ajudar
Sancta Dona Anna, sem par,
D'Ea, bem-aventurada,
Podei-lo resuscitar,
Que sua vida vejo estar
Desesperada.

81

BS

OBRAS DE IL VICENTE.

Sanctas virgens conservadas


Em mui sancto e limpo estado,
Soccorrei ao namorado,
Glue vos sejais namoradas.
Velho Oh coitado !
Ai triste desatinado,
Ainda torno a viver ;
Cuidei que ja era livrado.
Bran. Qu'esfro de namorado
E que prazer !
Havede ma ora aquella.
Velho Que remedio me dais vos ?
Bran. Vivereis, prazendo a Deos,
E casar-vos-heis com ella.
Velho He vento isso.
Bran. Assi veja o paraso,
Glue no he ora tanto extremo.
Nao curedes vos de riso,
Que se faz tao improviso
Como o demo :
E tambem d'outra maneira,
Se m'eu quizer trabalhar.
Velho Ide-lhe, rogo-vo-lo, fallar,
E fazei com que me queira,
Que pereo ;
E dizei-lhe que lhe peo
Se lembre que tal fiquei
Estimado em pouco proco :
E se tanto mal merejo
Nao no sei.
E se tenho esta yOntade,

PASAS.

83

Q.ue no se devo enojar,


Mas antes muito folgar
Matar os de qualquer idade.
E se reclama
GUie sendo to linda dama
Por ser velbo m'aborrece,
Dizei-lhe que mal desama,
Forque minh'alma, que a ama,
No envelhece.
Bran.
Sus, nome de Jesu Christo,
Olhae-me pola cestinha.
Velho Tornae logo muito asinha,
Que eu pagarei bem isto.
(VairSe a alcoviieira e fica o Velho tangendo,
e cantando a cantiga seguinte :)
Pues tengo razon, senora,
iiRazon es que me la oiga.
(Vem a alcoviteira e diz o)
Velho Venhais embora, minha amiga.
!5ja>. Fella fica de bom geito;
Mas pera isto andar direito,
lie razo que vo-lo diga.
Eu ja, senhor meu, no posso
Vencer hua moa tal
Sem gastardes bem do vosso.
Velbo En lhe peitarei em grosso.
Bran. Hi esta o feito nosso,
E no em ai.
Perca-se toda a fazenda
Por salvardes vossa vida.
Velho Seja ella disso servida,

84

OBRAS DE Gil VICENTE.

(luWusada he mais contenda,


Bran. Deos vos ajude
E vos d muita saude,
Que isso haveis de fazer :
Que viola nem alaude
. Nem quantos amores pude
No quer ver.
Remoou-m'ella hum brial
De seda e huns toucados.
Velho Eisaqui trinta cruzados ;
Que lh'o faco mui real.
(Emquanto a alcoviteira vai, o Velho torna o
proscguir seu cantar e tanger, e acabado
torna etta.)
Bran.
Est to saudosa de vos,
Gue se perde a coitadinha :
Ha mister hua vasquinha
E tres onas de retroz.
Velho Tomae.
Bran. A beno de vosso pae.
(Bo namorado he o tal)
Pois que gastais, descanae.:
Namorados de ai ai
No so papa nem so sal.
Hui! tal fora se me fora.
Sabeis vs que m 'esquecia?
Hua adela me vendia
Hum firmal d'hua senhora
Chum rubi,
Pera o colto, de marfi,
Lavrado de mil lavores.

*-ARCAS.

Sa

Por cem cruzados.


Velho
Ei-los hi.
Bran. Isto ma ora, isto si,
So amores.
( Vai-se, e o Velho torna a proseguir sua mu
sica, e acabado torna a alcoviteira :)
Bran.
Dei ma ora hua topada;
Trago as sapatas rompidas,
Destas vindas, destas idas,
E emfim no ganho nada.
Velho Eisaqui
Dez cruzados pera ti.
Bran. ('Comeo com boa estrea.)
(Vem hum Alcaide com quatro beleguins,
e diz :)
Alc.
Dona levantae-vos d'hi.
Bran. E que me quereis vs assi ?
Alc. A cadeia.
Velho Senhores homens de bem,
Escutem vossas senhorias.
Alc. Deixae essas cortezias.
Bran. No hei medo de ninguem :
Vistes ora ?
Alc. Levantae-vos d'hi, senhora;
Dae demo esse rezar ;
Quem vos fez to rezadora?
Bran. Leixae-m'ora na ma ora
Aqui acabar.
Alc.
Vinde da parte d'ElRei.
Bran. Muita vida seja a sua.
No me leveis pola rua ;

86

OBRAS SE GIL VICENTB.

Leixae-me vs qu'cu nvirei.


Alc. Sus, andar.
Bran. Onde me quereis levar?
Ou quem me manda prender?
Nunca havcdes d'acabar
De me prender c soltar *
No ha poder.
Alc.
No se pode h al fajer.
Bran. Est ja a carocha aviada.
Tres vezes fui ja aoutada,
E emfim hei de viver.
(hevo-na presa ejica o Velha dizendo :J
Velho Oh forte hora 1
Ah sanefa Maria Senhora !
Ja no posso livrar bem ;
Cada passo se empeora.
Oh ! triste quem se namora
De ninguem !
(Vem ha Mocinha horta e diz i)
Moa.
Vdes aqui o dinheiro :
Manda-me ca minha tia,
Q.ue assi como n'outro dia,
Lhe mandeis a couve e o cheiro.
Est pasmado !
Velho Mas estou desatinado.
Moa. Estais doente, ou que haveis?
Velho Ai 1 no sei, desconsolado,
Que nasci desventurado.
Moa . No choreis ;
Mais mal fadada vai aquclla.

FARAS.
Velho Quem ?
Moa.
Branca Gil.
Velho
Como ?
Moa. Com cent,aoutes no lombo,
E hua carocha por capella.
E ter mo ;
Leva to bom corao,
Como se fosse em folia.
Oh que grandes que lh'os do !
Velho E o triste do prego
Porque dizia?
Moa.
Por mui grande alcoviteira,
E pera sempre degradada.
Vai to desavergonhada,
Como ia a feiticeira.
E quando estava
Hua moa que casava
Na rua pera ir casar,
E a coitada que chegava,
A folia comeava
De cantar :
Hua moa io fcrmosa,
Que vivia alli S...
Velho Oh coitado ! a minha he.
Moa. Agora ma ora he voisa,
Vossa he a treva.
Mas ella o noivo a leva :
Vai to leda e to contente,
Huns cabellos como Eva.
Osadas que no se lhe atreve
Toda a gente.

ST

SS

OBBAS DE GIL VICENTE.

O noivo, moo to polido,


No tirava os olhos delia,
E ella delle. Oh que estrella !
He elle hum par bem 'scolhido.
Oh roubado,
Da vaidade enganado,
Da vida e da fazenda !
Oh velho, siso enleado,
Quem te metteo, desastrado,
Em tal contenda?
Se os jovenes amores,
Os mais tem fins desastradas,
Que faro as cans lanadas
No conto dos amadores !
Que sentias,
Triste velho, em fim dos dias,
Se a ti mesmo contemplras,
Souberas que no sabias,
E viras como no vias
E acertras.
Velho Quero-m'ir buscar a morte,
Pois que tanto mal busquei.
Quatro filhas que criei,
Eu as puz em pobre sorte.
Vou morrer,
Elias ho de padecer,
Porque no lhes deixo nada
De quanta riqueza e haver
Fui sem rezo dispender
gastada.

FlRi
CHAMADA

AUTO DAS FADAS.


FIGURAS.
FEITICEIRA.

DIABO.

DOUS

FRADES.

TRS FADAS.

Na fara seguinte se contm, que


ceira, temendo-se que a prendessem
de seu officio, se vai queixar a FlRei,
do-lke per razes que pera isso lhe
necessrios so seus feitios.

ha feiti
por usar
mostrand, quo

(Entrando a Feiticeira no paco, embaracada


de se ver nelle, comea dizendo :)

Feit. Jesu, quem me trouxe ora ca?


Esta cabea de vento,
Siso de cacarac.
Eu no sei como l va ;
Tamanha vergonha sento.
E pois sam to vergonhosa,
Encolhida e temerosa,
Que venho fazer 6 Pao?
Porque eu mesma m'embarao

90

' OBRAS DE GIL VICENTE.

De mimosa.
Ai que farei d'empachada !
Oh vergonhosa de mi,
Como vou abrasiada,
Amara, corrida e torvada !
Mas pressa me traz aqui,
Onde nao vejo logar,
Emque homem queira mijar,
Nem ouso espirrar somente,
Por alguem nao se soltar
Antre gente.
( Chega a ElRei e Rainha, e diz :)
Senhores, embora estedes :
Com saude, com prazer
Muitos annos vos logredes.
Os ramos que florecedes,
Deos os queira engrandecer,
Assi como vos queredes.
(Ao Principe e Infantes.)
Oh que joias esmaltadas.
Oh que boninas dos ceos,
Oh que rosas perfumadas !
(As Damas.)
Jesu ! que sanctas douradas !
Bom prazer veja eu de vos
E boas fadas.
Eu eam Genefara Pereira,
Une moro alli Pedreira,
Vezinha de Joo de Tara,
Solteira, ja velha amara,
Sem marido e sem nobreea ;

FABA.9.

Fui criada em gentileza


Dentro nas tripas do Pao,
E por feitios qi^eu fao,
Dizem que sam feiticeira.
Porm Genebra Pereira
Nunca fez mal a ninguem ,
Mas antes por querer bem
Ando nas encruzilhadas
s horas que as bem fadadas
Dormem somno repousado ;
E eu estou com hum enforcado
Papeando-lhe orelha :
Isto provar esta velha
Muito melhor do que o diz.
Ora agora Estevo Dis
Diz que defendedes isto :
Hur! dou-vos a Jesu Christo ;
Pera que era ora tirado
Quanto tenho exprimentado
E usado quarenta annos,
Estorvando muitos damnos
Per esconjuros provados,
Fazendo vir dez finados
Por saber hua verdade ?
E havendo piedade
De mulheres mal casadas.
Pera as ver bem maridadas,
Ando pelos adros nua,
Sem companhia nenhua.
Seno hum sino samo,
Mettido n^hum corao

OBRAS SI GIL VICENTE.

De gato preto e no al.


Isto, Senhor, no he mal,
Pois he pera fazer bem.
Outro si, quando a mi vem
Namorado sem conforto,
Desejando antes ser morto,
Que ter aquella paixo ;
Cavalgo no meu cabro
E vou-me a Val de Cavallinhos,
E ando quebraudo os focinhos
Por aquellas oliveiras,
Chamando frades e freiras
Que morrro por amores.
Oh, se vsseis os temores
Que passo nesta canceira,
No temeria a Pereira
Tanto os corregedores.
Sempre ando neste marteiro:
Vem-se a mi homem solteiro,
Que quer casar com Costana,
Sem nenhua esperana,
Triste, morto de paixo.
Eu c'o sangue do Leo,
Mexido c'o rabo da Huja
E alli o fel da coruja,
Ei-lo mancebo aviado.
Vem hum frade excommungado,
Que o benza do quebranto ;
Vou e fao-lhe outro tanto,
Assi, Senhor, veja eu prazer.
Vem, a modo de dizer,

irarcas.
Gonalo da Silva a mi,
E diz-me.que he fora de si
Pola Francisca da Guerra;
Queres que seja eu to perra
Que o no encommende 6 demo,
Que o livre do extremo
Em que he posto seu esprito?
E se vier Gaspar de Brito
Por Catherina Limo,
No irei no meu cabro
Enfeitiar a limeira ?
E assi desta maneira
Se vier o Marichal
Por Guimar do Ataude
Buscar a minha saude,
He por fora por-me a risco.
E se me rogar Dom Francisco
Que lhe enfeitice a Benim,
S'eu no for muito ruim,
Mal lhe posso negar cousa.
E l o Martim de Sousa,
ttue morre pola Primentel,
No lh' hei de ser infiel.
Assi que as taes feitiarias
So, Senhor, obras mui pias,
E no ha mais na verdade.
Saiba Vossa Magestade
Quem he Genebra Pereira,
Que sempre quiz ser solteira,
Por mais estado de graa.
Agora no sei que faa

93

94

OBRAS DE GIL VICENTE.

Com este negro meirinho,


Rosto de San Sadorninho.
Hui amara ! e que me quer ?
Se Vossa Alteza quizer
Ver os feitios qu'eu fao,
Aqui logo neste pao
Os veredes muito asinha.
E vs, Senhora Rainha,
Infantes e cortezos,
Levantae ao ceo as mos ;
Esforae ; e no pasmedes
Das ms cousas que veredes.
Esperade-me hum poucachinho ,
Estade assi, manas, quedas.
Vou polo alguidarinho,
A candeia e o saquinho,
E veredes labaredas.
Se vos tremerem as pelles
'espantos e de temores,
Hi esto vossos servidores,
Encostade-vos a elles
E cobride-vos d'amores.
(Tran a Feiticeira hum alguidar e hum saeo
preto, em que /roa os feitios, os quaes tomea afaner, dizendo :)
Alguidar, alguidar,
Que feito foste ao luar
Debaixo das sette estreitas,
Com cuspinhes de donzellas
Te mandei eu amassar :
O cuspinhos preciosos

FAIAs.

De beios to preciosos
Dae ora prazer
A quem vos bem quer,
E dae boas fadas
Nas encruzilhadas.
Este caminho vai pera l,
Essoutro atravessa ca;
Vs no meio, alguidar,
Que aqui cruz no ha de estar.
Embora esteis, encruzilhada.
Perequi entrou, pereli sbio.
Bem venhades, dona honrada.
Vai a estrada pola estrada.
Benta he a gata que pario
Gato negro, negro he o gato.
Bode negro anda no mato,
Negro he o corvo e negro he o pez,
Negro he o rei do enxadrez,
Negra he a vira do sapato,
Negro he o saco qu'eu desato.
Isto he fersura de sapo,
Que est neste guardanapo.
Eis aqui mama de porca,
Barbas de bode furtado,
Fel de morto excommungado,
Seixinhos do p da forca :
Bolo de trigo alqueivado
Com dous ratos no meu lar,
Per minha mo sameado,
Colhido, modo, amassado,
Nas costas do alguidar.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Achegade-vos a mim :
Que papades, meu ch'rubim?
Escumas de demoninhado.
Quem vo-las deu ?
Dei-vo-las eu.
Fel de morto, meu conforto,
Bolo cornudo, vs sabedes tudo,
Bico de pgo, aza de morcego,
Bafo de drago, tudo vos trago.
Eu no juro nem esconjuro,
Mas gallo negro suro
Cantou no meu monturo.
E ditas as santas palavras,
Ei-lo Demo vai, ei-lo Demo vem
Co'as bragas dependuradas.
(Vem hum Diabo chamado da Feiticeira, o
qual lhe falla em lngua picareta, desta ma
neira :) ,
Diaro
O dame, jordene
Vu seae la bien trovee.
Tu es fause te humeyne,
Sou ye vous esposee.
Fsit. Que linguagem he essa tal?
Hui, e elle falia aravia !
Olhade o nabo de Turquia !
Fallade aram Portugal.
Diaro
Tu has fet bian de mal
Avec un frayre jacopim.
Feit. Ma pezar vej'eu de ti :
Dize, ma trama te naa,
Que dizes que no ^entendo*i\

FARAS.

Fazes escarneo de mim ?


Ora juro a Deos que he graa.
O demo que t'eu encommendo
Camanho tu hi ests.
Diaro
Macarde de Limosim,
Tripiere de sancte Ovim.
Feit. D 6 demo esse latim,
Que no entendo o que he.
Diaro Tu nas oy tene vergonhe ?
Feit. Que fiz eu?
Diaro De tois leses en aute sois.
Feit. Vs me diredes depois
O que isso quer dizer.
Diaro Tu aspete de bem la mer.
Feit. Hui ! pete que pode ser ?
Esta que linguagem he ?
Diaro
Tan santy xi noble entraprisu.
Feit. Viste-lo demo em que vem?
Diaro E la ribalde norrem
E puis je sa venu.
Feit. Pois pera que vieste tu,
Seno pera servios meus?
Diaro Dime tos xem que tu veus,
Fame d'um vilhom cocu.
Feit. GUiem vio diabo Allemo?
Dize, rogo-te, bargante,
Mao quebranto te quebrante,
No falias d'outra feio ?
Por vida de Genebra Pereira,
Velha, ladra, alcoviteira,
Que chame o nome de Jesu.

97

D8

OBBAS DE GIL VICENTE.

Diaro Eu, eu ! que dile tu ?


Feit.
Esconjuro-te, malino,
Membro da ira de Deos,
Pola terra e polos ceos
E por teu malvado sino,
Tu has-me de responder.
Diaro Oh que maldita mulher !
Que me queres, infernal ?
Feit. Quero-vos, mano, entender.
Minha rosa, vinde ca,
Meu quebranto, dae-me a f
Que me no falleis por l,
E adoro o rabo de boi.
Diaro T toi, t toi.
Tumerum la caboxes.
Feit.
Falia aram Portuguez :
Atqui estou zombando ;
Tu has d'ir onde t'eu mando.
Diaro Irei indaque me pez.
Feit. Vae logo s ilhas perdidas,
No mar das penas ouvinhas,
Traze tres fadas marinhas,
Oue sejo mui escolhidas.
Parte logo, ora sus.
Diaro Tu as desata, que la pendus.
(Vai-se o Diabo e a Feiticeira torna
aos feitios, dizendo :)
Feit.
Que fazeis, relquias minhas,
Nesta agua clara mettidag.?
Ha vedes mister mexidas
("o lixo das andorinhas.

FARAS.

99

(Vem o messagciro, e em logar dai fadas que


lhe a Feiticeira mandou trazer, traz-lhe dous
Frades infernaes, hum dclles tangendo ha
gaita, e o outro foipregador ; mas emquanto
vivia foi muito namorado ; o qual logo diz :)
1.Fr. GUl gran tormento me diste
En traerme aqui mal punto !
Ma vere.
Diaro
Glue ouviste?
1. Fr. Aqui nos hacen mas triste,
Que el infierno todo junto.
Diaro Per quam regula diremos ?
i . Fr. Porque muy cierto sabemos,
Quia dedit Deus potestatem
A las damas que nos maten
Y nos que las adoremos.
Mas me lastima el dolor
Glue tengo de estos seores,
Porque supe que es amor,
Que no el infernal ardor,
De los tormentos mayores.
Como basta sufrimiento
Al namorado tormento,
Si el amor es apurado,.
Que no lo mata el cuidado
Y ahoga el pensamiento?
Esto es lo que yo s
Y us cuando vivia.
De esto tal os dar fe.
Esto es lo que estudi,
Esta era mi librara.

100

OBRAS DE GIL VICENTE.

Aquestas contemplaciones
Eran siempre mis liciones ;
Y en esto gast mis aos,
Predicando con sermones
La grandeza de mis daos.
Con lgrimas dolorosas,
Dentro de mi oratorio
Contemplando en las fermosas,
Al cabo de ciertas prosas
Decia este vitatorio :
Al santo templo de Amor,
Donde las almas perdemos,
Venid todos y adoremos.
Venid de gana muy leda
A la triste devocion,
Donde mata la pasion
Y siempre la vida queda
Para mas luenga prision :
Y pues tal perdicion
Por ganancia la tenemos,
Venid todos y adoremos.
Adoramos y exalzamos
A aquellas que nos mataron :
Opera manuum suarum
Son los suspiros que damos
ln hac vita lachrymarum :
A las que mal nos trataron,
Pues por diosas las tenemos,
Venid todos y adoremos.
Prima, tercia, sexta y nona
Retaba de aquesta suerte;

FARA5.

Porque siempre mi persona,


Desque ech de corona,
Fue de amores la muerte.
Cantaba Te Deum laudamus
Con los ojos en Cupido,
Diciendo : ti adoramos
Los que sin ventura estamos
Con tanto tiempo servido.
(Chego onde est a Feiticeira, e ella
vendo-os diz :)
Feit.
Mao sumio e mao marteiro
Venha por tuas queixadas.
Eu mandei-te polas fadas,
E tu trazes-me um gaiteiro ?
E estes frades a que vem?
Diaro Vus m'aves dixem.
Feit. Assi vivas tu amen.
Diaro E peme foi xi.
Feit. Venhas muitieram
Com tuas balcarriadas :
No te dixe eu a ti fadas?
Diaro Fradas?
Feit.
Fadas.
Diaro
Frades.
Feit. Ainda vs aporfiades?
l.FR.Dadnos algo que hacer,
O nos enviad al infierno.Feit. Que has de fazer? dout'0 demo!
Eu no ^havia mister.
E l que officio te do
A ti e 6 teu tangedor ?

101

102

OBBAS BK Sil VICENTE.

1. Fr. Ac fui gran predicador,


All me hicieron tecelan.
Fmt. Ora fazede hum sermo
Muito breve a estas senhoras :
Alto, logo nessas horas,
Tomae o thema, dom ladro.
l.FlAM.
Thema.
Amor vincit omnia.
Loco et capitulo : Jam per eleqalis.
Discretas, ilustres seoras hermosas,
En cuyo servicio es justo el morir,
La verba del tema quiere decir,
El amor vence todas las cosas.
Oh qu palabras tan maravillosas !
Oh qu palabras de tanto saber !
Escrivilas el gran poeta Virgilio ;
Guardaldas, seoras, que es muy grande alivio
A quien del amor se siente vencer.
Porque son palabras de tanto misterio,
Que ciega 6 alumbra la humana razon.
Despida la vida cualquier corazon,
Pues que vos teneis sobre amor imperio.
En muchos lugares lo escrive 'Valerio
Que vuestro podero no es humanal,
Mas una gran fuerza sobrenatural,
Oue fuerza las fuerzas de nuestro hemisferio.
(AssOa-se cofre o seu guardanapo.)
Haced ora all esos nios callar.
Amor vincit omnia, humanas prudentes,
El cual amor viene por tres accidentes,

FAHA.S.

103

Sin vuestras mercedes seren de culpar.


Del uno es causa vuestro mirar,
Y la hermosura que mira con vos ;'
El otro, la gracia, cuitados de nos !
due todas las cosas vencs matar.
El otro accidente que mas atormenta,
Rosas del mundo, y mas de sentir,
Son los engaos del dulce decir,
Con ciertos desvos en cabo de cuenta.
Oh causadoras de tanta tormenta,
Nubes muy claras lloviendo suspiros
Sobre los tristes que para serviros
No dudan la muerte ni temen afrenta !
Anda el discreto y noble persona
Gonalo da Silva por la Anriques tal,
Gonalo da Silva mordiendo la tierra,
Porque ans lo ciega contino la guerra,
Como si l fuese rocin de atahona.
Por eso est cara esta vuestra ltisljona,
Porque, seoras, pocais mortalmente :
Convertcre ad Dominium, que matais la gente
Con dulces meneos, y el hecho en Pamplona.
Anda el cuitado tan puesto en el hilo
El Calataud por la Anriquez tal,
Glue dicen por l: Oh cirio pascual,
Glue ya fuiste cera y ahora es pavilo ;
Oh graciosas riberas del Nilo,
Pietate veitra super omnes gentes ;
Dejad los crueles inconvenientes,
Oue aunque grosero, delgado lo hilo.
No quiero olvidar Don Luis de Meneaee,

104

OH HAS DE GIL VICENTE.

A que Doa Leonor de Castro tien muerto,


Que parece barco que vino del Puerto
Sin mantenimiento tres 6 cuatro meses.
Dejad esas maas de vuesos reveses,
Seoras, ne perdas animam vivam,
Pues de sus ganas por vos se cautivan,
Ut non desolciur, que son Portugueses.
Oh Christovo Freire, leal caballero,
Glue Dona Ginebra tom por su Dios,
Que parece galgo de Puerto de Mos
Chupado de estras por eso terrero.
Y otras seoras que nombrar no quiero,
Quia non dcbemus de plaza decir,
Que sufren las llagas del triste encubrir,
Las cuales padecen tormento mas fiero.
Pues, porqu, seoras, no os confesais,
Que haceis los vivos morir por serviros ?
Haceis los muertos all dar suspiros,
Porque no estan ac donde estais.
Amor vincit omma, y vos lo causais,
Orbis terrarum et semitas maris.
O Diosas hermosas juzgadas por Paris,
Adonde se escriven las vidas que dais?
Plega al Seor Juan de Saldada,
Que tiene las llaves de vuestro paraiso,
Glue Dios le d gracia, que salgan de siso
Las llaves, 6 vos, 6 l, 6 su caa.
No es tiempo ahora de mas predicar :
El que quisiere oir mi sermon
Vaya al Infierno con gran devocion,
Y de esta manera se puede salvar.

FARAS.

105

Las cosas que os suelen ser encomendadas,


Os encomiendo, conviene saber :
Todo el mal que pudierdes hacer,
Haceldo, Senoras, que hayais buenas hadas.
Feiticeira.
Ora sus, ma criatura,
I-me logo polas fadas
Marinhas, bem assombradas,
E tornae essa amargura.
Donde vindes? D^lmolina.
Que trazedes? Farinha.
Tornae l, que no he minha.
Olhade a gente honrada
Que me trazia o ladro !
Hum que foi amancebado,
Alcoviteiro provado,
E hum frade rafio.
Sabeis quo mal me parecem
Pessoas de mao viver?
Mais c moscas nvaborrecem,
No nas posso ouvir nem ver.
(Tira humas contas.)
Praza conjuno carnal
De Frei Gabriel com Marta,
Sua filha espritual,
Que me venha este enxoval,
Que ja dVsperar sam farta,
E traga as fadas asinha.
O Senhora Ladainha,
Ajudade-m'ora vs.
Cabra preta vai por vinha,

OBRAS DI CIL VICENTE.

Vai por vinha mana minha,


Te rogamus audi nos.
Quando fordes igreja,
Nao vos esquea a soberba.
Tomad'ora meu consclUg.
O aoutes do concelho,
Que estrero meus avs,
Te rogamus audi nos.
Ladainha da Pereira,
Escripia em pelle de rata,
Tinta de pingo de pata,
Assada per mo de mgueira.
O picota da Ribeira,
Glue estrerao meus avs,
Te rogamus audi nos.
(Vem as Fadas marinhas cantando a cantiga
seguinte :)
Fadas
dual de nos vem mais cansada
Nesta cansada jornada ?
Qual de nos vem mais cansada ?
Feit.
Pitas, pitas, pitas, pitas,
Patelas, patelas, patelas.
Bem venhais, minims donzellas,
Ienguadas frescas fritas.
Diabo O fauxe buxiere malvada,
Vaxites a buxions.
Feit. Ja tu tornas esses tons,
Tartaranha excommungada ?
Diabo
Mi gene mimie mi.
Feit. Cal'-te, eram pera ti,
E leixa-m'a mim fallar.

F AR CAS.

(Diz s Fadas.)
Como vos vai nesse mar
To profundo e espaoso?
(Respondem as Sereas cantando.)
Nosso mar be fortunoso,
Nosso viver lacrimoso,
Eo chegar rigoroso
Ao cabo desta jornada :
Qual de ns vem mais cansada
Nesta cansada jornada ?
Feit.
No podedes vs fallar,
Que respondedes cantando ?
Fadas Ns partimos caminhando
Com lagrimas suspirando,
Sem saber como nem quando
u Far fim nossa jornada.
(Anal de ns vem mais cansada
Nesta cansada jornada ? n
Diaro Melior cante le quien
Y le hoyssos de vill.
Feit. CalHe, corvo de No,
'
'Que no sabes que cousa he
. Cantar mal nem cantar bem.
Minhas flores da ribeira,
Descano desta alma minha,
Rainhas da vida marinha,
Honrade ora esta romeira,
Fadae de linda maneira
Este estrado de bos fados,
Glue Deos lh'os dara dobrado.
Praza a elle que assim vir.

107

108

OBRAS DE GIL VICENTE.

(Fado as Fadas a elRei e Rainha,


cada hua por sua vez.)
t.aFADA.
Os fados que dero ser s estrellas,
Quando a terra estava vazia,
Fao caminhos a vossa alegria,
Por onde vos venha to cara conTellas.
E aquelles fados
Que pera dar dita so determinados,
Vos trago as vossas das mais escolhidas,
E os instrumentos que alongo as vidas
Vos veja dobrados.
Os fados que dero orvalhos s rosas
Visitem as flores do vosso estrado,
E todo o cuidar de triste cuidado
No hajo logar nas Altezas vossas.
E aquellas fadas
Que tem as ribeiras de verde pintadas,
Vos pintem as vidas d"alegre pintura,
E as altas sortes que parte Ventura
Vos sejo guardadas.
2.a Fada.
As cousas que fazem a terra parir
Lirios alvos e veas divinas,
Cerquem os quadros de vossas cortinas,
E sempre victoria vos faa dormir.
E a fada primeira
Que fez a Fortuna geral dispenseira,
E fez nossos mares e ceos por medida,
Vos faa gosar o goso da vida
De nova maneira.

FARAS,

109

3.a Fada.
As novas que temos nas ondas do mar
So que na terra ha pouca verdade ;
E pois de verdades ha ma novidade,
Por novidades as haveis de tomar.
Ora he pera ver :
Tome Vossa Alteza qualquer que quizer,
Que todo he verdade as sortes que so,
Tomae desses sete planetas que hi vo
A que vos vier.
(Aqui dero as sortes primeiramente a clllei.)
Jupiter.
Este planeta escolhido
Escolheo, porque he profundo,
O mais alto bem do mundo.
Sol. (A Rainha.)
Muitos bens deu Deos na terra,
Porm se este no viera,
Nunca nos amanhecra.
Cupido. (Ao Prncipe.)
Este Deos he muito amado
E adorado,
Porque tem dominao
Sobre toda a creao.
Lua. (A Iffanle D, Isabel.)
Esta Senhora Diana
Tem do Ceo sua feitura
E do sol a fermosura.
Venus. (A Iffanle D. Beairiz.)
A este planeta so

1 10

OBRAS DE GIL VICENTE.

Olho todas as estrellas,


Porque he mais clara que ellas.
(Daqui adiante se seguem as sortes ventureiras
dos galantes per animaes.)
Camelo.
Este alegres novas traz
E leva tristes de si
Cada vez que vai daqui.
Marta.
Aqueste animal he forro,
Mostra-se de fora liso,
Mas de dentro no he isso.
Sagitrio.
Este tem dous coraes
Lastimados d'hum pezar
Que nunca sTia d7acabar.
Arminho.
Este animal he prezado
De todo o mundo em geral,
E aqui fazem-lhe mal.
Cabra.
Este animal se apacenta
Na mais aspem verdura,
Por exprimentar ventura.
Furo.
Este ha mister aamado,
Porque he to orgulhoso,
Q,ue passa de querenoso.
Podengo.
Este animal alevanta
A caa, porque a cata;

FARAS.

Porm sempre outrem a mata.


Maio.
Este bonito animal
No sei que faz o coitado,
Que sempre anda homesiado.
Cgado.
Quem tiver este animal
No he muito que o leixe,
Pois no he carne nem peixe.
Camaleo.
Tem este fraco animal
To estranho alimento,
Que no se farta de vento.
Lobo.
Este morre com razo,
Porque tal contrairo tem,
Q.ue emprega a morte bem.
Ourio cacheiro.
Este animal enganado
Cuida que anda escondido
E elle he mais conhecido
Rebuado.
Porco moniez.
Este animal se recolhe
As matas mais escondidas,
E l lhe vo dar feridas.
Veado.
Este mui bravo animal
Em guardar-se tinha o tento,
Mas amor furtou-lhe o vento,

Hl

li 1

OBRAS DE GIL VICENTE.

Coro.
Os saltos deste galante
No o podero salvar
D'hum mal que tem de passar.
Carneiro.
Este se hum amor o cobre,
D'hi a pouco se trosquia,
E logo outro novo cria.
Porco. espim.
Destes ha poucos na terra ;
Deve ser mui estimado
Da fortuna, e namorado
Sem ter guerra.
Usso.
Este animal tem ventura
E dita, porque he soffrido ;
Ca soffrer he gran partido
Se atura.
Lontra.
Este nunca se contenta,
Nem contente se vei,
Porque quer o que hi no ha.
Gato.
Este animal he caseiro,
E no quer bem a Cupido :
Tem amor a ser marido
Com dinheiro.
Lieo.
Este mui forte animal
Nunca sabe que he temor,
Mas teme-se do amor

FARCAS.

E no (Tal.
Olicornio.
Esta rez he mui esquiva ;
Caa-se c'hua donzella,
E no per outra cautela
Se cativa.
- Dromedrio.
Este traz grandes carretos
E requere seu proveito,
Porm no pede direito,
Cavallo.
Este animal furioso
Se namora sem concrto,
Pois no ama em logar certo.
Galgo.
Este animal delicado
No sei porque cansa a vida
Tras quem tem certa guarida.
Lebrel.
Este tem em pouco a vida,
E he bem que a d barata,
Pois quer ferir a quem mata.
Bugio.
Este animal comprehende
Quanto se pode cuidar;
Porm o seu no fallar
Encobre e soffre o qu'entende.
Touro.
Este, no sendo culpado.
He ferido,
E quanto mais, mais ardido.

113

114

OBRAS DE Gil VICENTE.

Coelho.
Este cativo animal
He to vivo namorado,
Que ha de morrer a cajado.
Raposo.
Deste se devem guardar,
Que se finge manco e torto,
E s vezes se faz morto,
Por caar.

Alifante.
Aqueste so animal
Tem veias no corao,
Onde lagrimas esto.
Ona.
Este ligeiro animal,
Se de tres saltos no caa,
Improviso leixa a caa,
Azemula.
A vida deste animal
He de noite em meijoada
E pela manhan palhada.
Sendeiro gallego.
Este he bom servidor ;
Parece mui bem sellado,
Mas melhor he albardado.
Jiafeiro.
Este he falso e fagueiro,
Sorrateiro ;
Q.uando virdes este co,
Levae sempre hum pao na mo.

115
Doninha.
Este no he bem furo
Nem gineta nem esquio :
He hum bichinho vadio.
(Sories dvs Damas per aves.)
FalcSo.
Esta ave tem crueldade
Sem piedade ;
E quem na quizer tomar
Tem muito- que suspirar.
Gara .
- Esta 'ave he temerosa
E fermosa,
E no se toma por manha
Nem cahe seno por faanha.
Melroa.
Esta ave he namorada
Declarada
E faz seu ninho de praa,
E tudo com muita graa.
JRousinol.
Esta ave tem seus amores
Co'as flores
Dous mezes, n inais, no anno;
Porm ama sem engano.
guia.
Esta vence o sol co'a vista,
E cega toda rel
Ctue com ella tem mais f.
Gavio.
Esta ave he mui ligeira

116

OBRAS DS GIL VICENTE.

E lisongeira;
Desama logo por nada :
He fermosa e alterada
Em gran maneira,
Estorninho.
Esta ave he de condio,
Que se pe em grande altura,
E confia na ventura
Com razo,
Pomba.
Esta ave parece sancta,
Porque he dissimulada,
Mas no certo he refalsada.

Rola.
Esta deseja casar,
Mas quer bem to escolhido,
Que temo que ha de ficar
Sem marido.
Pavo.
Esta ave ha to namorada
Da fermosura que tem,
Que sei certo que a ninguem
Tem em nada.
Fenix.
Esta parceira no tem,
Se faz vida em forte mata,
E no na mata ninguem,
Ella se mata.
Cirne.
Esta ave segue hum extremo,
Que canta contra a razo,

FARAS.

Quando mata o corao.

Pga.
Esta ave nunca socega,
He galante e muito oufana ;
Mas a hora que no engana
No he pega.
Adem.
Esta se tem por real;
He to brava e to esquiva,
Que no quer ver cousa viva.
Alvela.
Esta avesinha fermosa
Faz que aguarda,
Mas, pardeos, mui bem se guarda.
Francelho.
Esta ave sempre peneira
E nunca deita farinha :
Tal sois vs, senhora minha.
Andorinha.
Esta ave bem assombrada
He confiada :
Seus amores vo e vem,
Nenha certeza tem.
Calhandra.
Esta nunca tem tristeza ;
Sobe-se no ar cada hora,
E canta porque outrem chora.
Oja.
Esta ave segue hum temor ;
Traz a rel assombrada,
Porque cada hora he mudada.

117

118

OBRAS DE GIL VICENTE.

Gaivoid.
Esta so ave s'enfuna
Na fortuna ;
No teme mar nem tormenta,
Nasceo frra e vive isenta.
Perdiz,
Esta ave muito prezada
He avisada ;
E se a enganar alguem,
Juro a Deos que caa bem.
Grou.
Esta ave sempre vigia,
Nunca dorme assocegada,
Porque sonha noite e dia
Em ser casada.
Minhoto.
Esta ave diz-nos que vio,
Mas no pode ver mais bem
Que a dama que ora o tem.
H acabadas de dar assi estas sortes, seforo todos com sua musica, e se acabou a dita
fara.

FABC.4 DE Iffi PEREIRA.


FIGURAS.
SKEZ PEREIRA.
IEONOR

VAZ.

ME DE INE7. PEREIRA.
PRO MARGUES. LATO,

vidai., Judeos casamenteiros. escudeiro.


MOO
XANDO.

DO

ESCUDEIRO.

LUZIA.

EER-

ERMITO,

A seguinte farra de folgar foi representada


ao muilo alto e mui poderoso Sei D. Joo o
terceiro do nome em PoHugal, no seu Con
vento de Thomar, era do Senhor 1523. O seu
argumente he que, porquanto duvidavo certos
homens de bom saber, se o Autor fazia de si
mesmo estas obras, ou se as furtava de mdros
autores, lhe dero este thema sobre quefizesse:
s. hum exemplo commum que dizem: Mais
<luero asno que mo leve, que cavallo que me
derrube. E sobre este motivo se fez ertafara.
(Finge-sc que Inez Pereira, filha de ha miiIher de baixa sorte, muo fantasiosa, est
lavrando em casa, e sua me he a ouvir
missa, e ella diz :)

Isez.

JAenego deste lavrar


E do primeiro que o usou ;

120

OBRAS Dl GIL VICENTE.

O diabo qu'eu o dou,


Cine to mao he de aturar.
Oh Jesu ! que enfadamento,
E que raiva e que tormento,
Que cegueira e que canceira !
Eu hei de buscar maneira
D'algum outro aviamento.
Coitada, assi hei de estar
Encerrada nesta casa
Como panela sem aza,
Que sempre est 11'um lugar?
E assi ho de ser logrados
Dous dias amargurados
Clue eu posso durar viva ?
E assi hei d'estar captiva
Em poder de desfiados ?
Commendo-me eu logo 6 Demo
S"eu mais lavro nem pontada ;
Ja tenho a vida cansada
De jazer sempre d'hum cabo.
Todas folgo, e eu no,
Todas vem e todas vo
Onde querem, seno eu.
Hui ! e que peccado he o meu,
Ou que dor de corao?
Esta vida he mais que merta.
Sam eu coruja ou corujo,
Ou sam algum caramujo,
Que no sae seno porta ?
E quando me do algum dia
Licena, como a bugia,

rxnAs.

Me.

si;:....
Me.
Ixez.
Me.

Inez.
Me.
Inez.
Me.

121

Q.ue possa estar jauella,


He ja mais que a Madanella,
Quando achou a alleluia.
(Vem a Me, e diz:)
Logo eu adivinhei
L na missa onde eu estava,
Como a minha Inez lavrava
A tarefa que lh'eu dei.
Acaba esse travesseiro.
E naceo-te algum unheiro ;
Ou cuidas que he dia sancto?
1'raza a Dcos que algum quebranto
Me tire do captiveiro.
Toda tu ests aquella !
Chro-te os filhos por po ?
Prouvesse a Deos ; que ja he razo
De eu no estar to singela ..
Olhade alli o mao pezar !
Como queres tu casar
Com fama de preguiosa?
Mas eu, me, sam aguosa,
E vos dae-vos de vagar.
Ora espera assi, vejamos.
Quem ja visse esse prazer.
Cal'-te que poder ser,
Qu 'ante a pascoa vem os Ramos.
No t'apresses tu, Inez,
Maior he o anno que o mez.
Quando te no precatares
Viro maridos a pares,
E filhos de tres em tres.

\1%

OU kA 5 DE GIL VICEHTZ.

Inez.

&uero-m,ora alevantar;
Folgo mais de fallar nisso,
Assi me d Deos o paraso,
Mil vezes que no lavrar i
Isto no sei que me faz.
Aqui vem Lianor Vaz.
E ella vem-se beBzendo.
(Entra Leonor Vaz.)
Jesu a que m'eu encommendoy
Gluaiita cousa que se faz !
Lianor Vaz, que foi isso?
Venho eu, mana, amarella ?
Mais ruiva que hua panella.
No sei como tenho siso.
Jesu Jesu ! que farei ?
No sei se me va a ElRei,
Se me va ao Cardial.
Como ! e tamanho he o mal?
Tamanho ? eu t'0 direi.
Vinha agora pereli
O redor da minha vinha,
E hum elerigo, mana minha,.
Pardeos, lanou mo de mi ^
No me podia valer,
Diz que havia de saber
Se era femea, se macho.
Hui ! seria algum muchachoy
Que brincava por prazer.
Si, mochao sobejava.
Era hum zote tamanhouo '
Eu andava no retouo,

Me.
Inez.
Leon.
Me.
Leon.
Me.
Leon.

ME.
Leon.

Me.
1*eo*.

FAuas.
To rouca que no fallaya,
Quando o vi pegar comigo,
&ue m'achei naquelle p'rigq,
,-_-_^ Assolverei, no assolvers
Jesus! homem, qu'has comtigo?
Irman, eu te assolverei
Co breviairo de Braga.
Que breviairo, ou que praga ?
Que no quero : aqui d'elRei !
Quando vio revolta a voda,
Foi e esfarrapou-me toda
O cabeo da camisa.
MSe. Assi me fez dessa guisa
Outro, no tempo da poda.
Eu cuidei que era jogo,
E elle... dae-o vs ao fogo!
Tomou-me tamanho riso,
Riso em torjo meu siso,
E elle leixou-me logo.
Leon. Si, agora, eram,
Tambem eu me ria ca
Das cousas que me dizia :
ChamaY4-me luz do dja :
Nunca teu olho ver,.
Se estivera de- maneira
Sem ser rouca, brad^r'eu ;
Mas logo m'o demo. djeu
Catarro e peftoguejpa,
Cocegas e cor de rjr,
E cojca p^ra. fugjj,
E fraea per,a v$n#!r :

124

Me.
Leon.
Me.
Leon.

Me.
Leon.

Cobras se eiL Vicente.


Porm pude-me valer
Sem n e ninguem acudir.
O <?emo (e no pode al ser)
Se eh; ntou no corpo delle.
Mana, conhecia-te elle?
Mas qi eria-me conhecer.
Vistes vs tamanho mal !
Eu mirei ao Cardial,
E far-.h'hei assi mesura,
E conl ar-lhe-hei a aventura
Que p.chei no meu olival.
No ests tu arranhada
De te carpir nas queixadas?
Eu tenho as unhas cortadas,
E mais estou trosquiada :
E mais pera que era isso?
E rr ais pera que he o siso ?
E mais no meio da requesta
Veio hum homem de hua bsta,
Que em v-lo vi o p'raiso.
E soltou.me, porque vinha
Bem contra sua vontade.
Porem, a fallar a verdade,
Ja eu andava cansadinha,
No me valia rogar,
Nem me valia chamar
Aque de Vasco de Foes,
Acudi-me como soes !
E elle seno pegar.
Mais mansa, Lianor Vaz,
Assi Deos te faa sancta.

FARAS.

Me.
Eeon.

Me.
Lzon.

Inez.
Lieon.
Inez.

Leon.

Trama te d na garganta !
Como ! isto assi se faz ?
Isto no releva nada.
Tu no ves que se u casada ?
Deras-lhe ma ora boa
E mordra-lo na c'roa.
Assi fora excommurigada.
No lhe dera hum empuxo,
Porque sou to maviosa,
Que he cousa maravilhosa;
E esta he a concruso.
Leixemos isto. Eu venho
Com grande amor que vos tenho,
Porque diz o exemplo antigo
Que a amiga e o amigo
Mais aquenta que bom lenho.
Inez Pereira he concertade
Pera casar com alguem ?
Atgora com ninguem
No he ella embaraada.
Eu vos trago um casamento,
Em nome do Anjo bento :
Filha, no sei se vos praz.
E quando, Lianor Vaz?
Eu vos trago aviamento.
Porm no hei de casar
Seno com home'avisado :
Ainda que pobre pellado,
Seja discreto em faliar.
Eu vos trago hum bom marido,
Rico, honrado, conhecido :

125

126

Inez.
Leon.

Inez.
Leon .
Me.

Inez.

Leon.

OBRAS Dl 61L VICENTE.

Diz que em camiza vos quer.


Primeiro eu hei de saber
Se he parvo, se sabido
Nesta carta que aqui vem
Pera vs, filha, d'amores,
Veredes, minhas flores,
A descrio que elle tem.
Mostrae-m'a ca, quero ver.
Tomae : e sabedes vs ler ?
Hui ! e ella sabe latim,
E gramateca e alfaqui,
E tudo quanto ella quer.
(L a Carla.)
Senhora amiga Inez freira,
Per o Marques vosso amigo,
Que ora estou na nossa aldea,
Mesmo na vossa mercea
Menconvmendo, e mais digo,
Digo que benza-vos Ocos,
Que vos fez de to bom geito :
Bom prazer e bom proveito
Veja vossa me de v6s.
Ainda que eu vos vi
EsV outro dia de folgar,
E no quizestes bailar,
Acm cantar diante mi...
Na voda de seu avo,
Ou onde me vio ora elle ?
Lianor Vaz, este he elle ?
Lede a carta sem d,
(Inunda eu sam contente delle ?

rarcas.

127

(Prosegue na leitura.)
Nem cantar presente mi,
Pois Deos sabe a rebentinha
Que me fizestes ento.
Ora, Inez, que hajais beno
De vosso pae e a minha,
Que venha isto a concruso.
Viste to paivo villo?
Eu nunca tal cousa vi
Nem tanto fora de mo.
IEon.
Quereis casar a prazer
No tempo cTagora, Inez?
Antes casa, emque te pz,
Que no he tempo tPescolher.
Sempre eu ouvi dizer,
Ou seja sapo ou sapinho,
Ou marido ou maridinho,
Tenha o que houver mister,
Este he o certo caminho.
M.v;.
Pardeos, amiga, essa he ella;
Mata o cavallo de sella,
E b he o asno que me leva.
IiEOM. Filha, no cho do Couse,
Quem no puder andar choute.
Mais quero eu quem m'adore,
Que quem faa com que chore.
Cham-lo-.hei, Inez?
Inez.
Si,
Venha e veja-me a mi,
Quero ver, quando me vir,
Se perder o presumir
Inez .

123

OBBAS DE GIL VICENTE.

Logo em checando aqui,


Pera me fartar de rir.
Me.
Touca-te, se ca vier,
Pois que pera casar anda.
Inez. Essa he boa demanda!
Ceremonias ha mister
Homem que tal carta manda ?
Eu o estou ca pintando :
Sabeis, me, que eu adivinho ?
Deve ser hum villosinho....
Ei-lo se vem penteando :
Sera com algum ancinho ?
( Vem Pero Marques e diz :)
Pero.
Homem que vai donde eu vou
No se deve de correr ;
Ria embora quem quizer,
Que eu em meu siso estou.
No sei onde mora aqui :
Olhae que m'esquece a mi !
Eu creio que nesta rua,
E esta parreira he sua :
Ja conheo que he aqui.
(Chega a casa de Inez Pereira.)
Digo que esteis muito embora.
Folguei ora de vir ca.
Eu vos escrevi de l
Hua cartinha, senhora :
E assi que de maneira...
MXe. Tomae aquella cadeira.
Pero . E que vale aqui hua destas ?
Inez. (Oh Jesu ! que Jam das bstas !

FARAS.

129

Olhae aquella canseira.)


(Assenlou-se com as coslas para cilas, e dix :)
Pero.
Eu cuido que no 'stou bem.
MSe. Como vos chamais, amigo ?
Pero. Eu Pero Marques me digo,
Como meu pae que Deos tem.
Falleceo (perdoe-lhe Deos,
Que fora bem escusado)
E ficamos dous hcroes,
Porm meu he o morgado.
Mb. De morgado he vosso estado?
Isso viria dos ceos.
Pero. BJMais gado tenho eu ja quanto,
E o maior de todo o gado,
Digo maior algum tanto.
E desejo ser casado,
Prouguesse ao Spirito Sancto,
Com Inez \ que eu me espanto
Quem me fez seu namorado.
Parece moa de bem,
E eu de bem er tambem.
Ora vs er ide vendo
Se lhe vem melhor alguem,
A segundo o qu'eu entendo.
Cuido que lhe trago aqui
Peras da minha pereira :
Ho de estar na derradeira.
Tende ora, Inez per hi.
Inez. E isso hei de ter na mo?
Pero. Deitae as peas no cho.
Inez. As perlas pera enfiar,

130

Pero.

Inez.
Pero.

Inez.

Pero.

Inez.

Pero.
Inez.
Pero.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Tres chocalhos e hum novelo, ,


E as peas no capello :
E as peras onde esto?
Nunca tal m'acconteceo :
Algum rapaz m'as comeo j
Que as metti no capello,
E ficou aqui o novelo,
E o pentem nao se perdeo :
Pois trazi'-as de boamente.
Fresco vinha ah o presente
Com folhinas horrifadas.
Nao qu'ellas vinhao chentadas
Ca em fundo no mais quente.
Vossa mae foi-se? Ora bem,
Sos nos leixou ella assi ?
Cant'eu quero-m'ir daqui,
Nao diga algum demo alguem....
Vos que m'havieis de fazer,
Nem ninguem que ha de dizer?
O gallante despejado !
Se eu fora ja casado,
D'outra arte havia de ser,
Como homem de bom peccado.
Quo desviado este est ! (Aparte.)
Todos ando por caar
Suas damas sem casar,
E este, tomade-o la. !
Vossa me he l no muro?
Minha mc e vos seguro
Que ella venha ca dormir.
Pois, senhora, eu quero-me ir

FARCAS,

131

Antes que venha o escuro. Inrz. E no cureis mais de vir.


Pero.
Vir ca Lianor Vaz,
Veremos que lhe dizeis.
Inez. Homem, no aporfieis,
Que no quero, nem me praz
Ide casar a Cascaes.
Pero. No vos anojarei mais,
Aindaque saiba estalar ;
E prometto no casar
At que vs no queirais.
Estas vos so ellas a vs ;
Anda home a gastar calado,
E quando cuida que he aviado,
Escarnefueho de vs.
Creio que l fica a pea :
Pardeos ! bo ia eu aldea.
Senhora, ca fica o fato.
Inez. Olhae se o levou o gato,
Prro. Inda no tendes candea?
Ponho per cajo que alguem
Vem como eu vim agora,
E vs a escuras a tal hora ;
Parece-vos que sera bem ?
Ficae-vos ora com Deos :
Cerrae a porta sobre vs
Com vossa candeiasinha ;
E siquaes sereis vs minha,
Entonces veremos ns.
(Vai-se.)
Inez.
Pessoa conheo eu
Que levra outro caminho.

132

MXe.
Inez.
MXe.
Inez.

Me.

Inez.

OBRAS DE ClL VICENTE.

Casae l c'hum villosinho,


Mais covarde que hum judeu!
Se fora outro homem agoa,
E me topra a tal hora,
Estando comigo s escuras,
Dissera-me mil docuras,
Ainda que mais no fra .
Pero Marques foi-se ja ?
E pera que era elle aqui?
E no t'agrada elle a ti?
Va-se muitieram ;
Que' sempre disse e direi,
Me, eu me no casarei
Seno com homem discreto,
E assi vo-lo prometto,
Ou antes o leixarei.
Quc seja homem mal feito,
Feio, pobre, sem feio,
Como tiver descrio,
No lhe quero mais proveito.
E saiba tanger viola,
E coma eu po e cebola.
Siquer hua cantiguinha,
Discreto, feito em farinha,
Porque isto me degola.
Sempre tu has de bailar,
E sempre elle ha de tanger?
Se no tiveres que comer,
O tanger te ha de fartar ?
Cada louco com sua teima.
Com hua borda de boleima,

FARAS.

133

E hua vez d'agua fria,


No quero mais cada dia.
Me. Como s vezes isso queima !
E qu'he d'esses escudeiros?
Inez. Eu fallei hontem alli,
Que passro por aqui
Os Judeos casamenteiros,
E ho de vir agora aqui.
(Vem os Judeos casamenteiros, Lato e Vidal,
e diz)
Lato Ou de ca.
Inez.
Quem 'sl l?
Vidal Nome del Deo aqui somos.
Lato No sabeis quo longe fomos.
Vidal Corremos a ieram.
Este e eu.
Lato
Eu e este,
Pela lama e pelo p,
Que era pera haver d,
Com chuiva, sol e noroeste.
Foi a coisa de maneira,
Tal friura e tal canceira,
Que trago as tripas maadas :
Assi me fadem boas fadas
Que me saltou caganeira
Fera vossa merc ver
O que nos encommendou.
Lato O que nos encommendou
Sera o que hoiver de ser.
Todo este mundo he fadiga.
Vs dixestes, filha amiga,

134

OBRAS DE GIL VICENTE.

Que vos buscassemos logo....


Vidal E logo pujemos fogo.
Lato Cal'-te.
Vidal
No queres que diga ?
No fui eu tambem comtigo ?
Tu e eu no somos eu,
Tu judeu e eu judeu ?
No somos massa dlium trigo?
Lato Leixae-me fallar.
Vidal
Ja calo.
Senhora, fomos.... Agora fallo,
Ou falias tu ?
Lato
Dize, que dizias?
Que foste, que fomos, que ias
Busc-lo, esgravat-lo.
Vidal Vs quereis, Amor, marido
Mui discreto, e de viola?
Lato Esta moa no he tola,
due quer casar por sentido.
Vidal Judeu, queres-me leixar?
Lato Leixo, no quero fallar.
Vidal Buscamo-lo. . . .
Lato
Demo foi logo,
Crede que o vosso rogo
Vencer o Tejo e o mar.
Eu cuido que fallo e calo :
Fallo eu agora ou no ?
Eu fallo se vem mo ;
No digas que no te fallo.
Inez.' No falar h um de vs?
Ja queria saber isso.

FARAS.

135

Me. Gtue siso, Inez, que siso


Tens debaixo desses veos !
Inez.
Diz o exemplo da velha,
O que no haveis de comer
Leixae-o a outrem mexer.
MIe. Mao conselho te aconselha.
Inez. Judeos, que novas trazeis?
Vidal O marido que quereis
De viola e dessa sorte
No no ha seno na corte,
Que ca no no adiareis.
Fallamos a Badajoz,
Musico, discreto, solteiro ;
Este fora o verdadeiro,
Mas soltou-se-nos da noz.
Fomos a Vilha Castim,
E fallou-nos em latim :
Vinde ca daqui a hum'hora,
E trazei-m'essa senhora.
Inez. Assi que he tudo nada em fim?
Vidal Esperae, aguardae ora.
Soubemos doirai escudeiro
De feio d"atafoneiro,
Q-e vir logo essora,
Glue falia, e como ora falia
Gtu'estrugir esta sala,
E tange, e como ora tange
E alcana quanto abrange,
E se preza bem de gala.
(Vem. o Escudeiro com seu Moo e diz :)
Esc ti). Se esta senhora he tal

136

OBBAS DE Gil VICENTE.

Como os Judeos nos gabro,


Certo os anjos a pintaro,
E no pode ser hi al.
Diz que os olhos com que via
Foro de Sancta Luzia,
E cabellos de Madanella.
Se fosse mea io bella,
Como donzella seria ?
Moa de villa sera ella
Com sinalzinho postio,
E sarnosa no toutio,
Como burra de Castella.
E assi como chegar,
Cumpre-me bem d'attentar
Se he garrida, se he honesta,
Porque o melhor da festa
He achar siso e calar.
Me.
Se este Escudeiro ha de vir,
E he homem de descrio,
Has-te de por em feio
De fallar pouco e no rir.
E mais, Inez, no muito olhar,
E muito cho o menear,
Porque te julguem por muda ;
Porque a moa sisuda
He hua perla para amar.
Esc.
Olha ca, Fernando, eu vou
Ver a com qu'hei de casar :
Avisa.te, que has de estar
Sem barrete onde eu estou.
Moo. Como a Rei ! Corpo de mi,

FARAS.

137

Mui bem vai isso assi.


Esc. E se cuspir pela ventura,
Pe-lhe o pe e faz mesura.
Moo.
Anda eu isso nao vi.
Esc. E se me vires mentir,
Gabaudo-me de privado,
Est tu dissimulado,
Ou sae-te pera fora a rir.
Isto t'aviso daqui,
Faze-o por amor de mi.
Moco. Porm, senhor, digo eu
Glue mao calado he o meu
Pera estas vistas assi.
Esc.
Que farei, que o sapateiro
Nao tem solas, nem tem .pelle ?
Moo. Sapatos me daria elle,
Se me vos desseis dinheiro.
Esc. o haverei agora,
E mais calas te promette
Moo. Homem que no tem nem preto,
Casa muito na ma ora.
(Chcga o Escudeiro onde est Inez Pereira,
e diz :)
Esc.
Antes que mais diga agora,
Deos vos salve, fresca rosa,
E vos d por minha esposa,'
Por mulher e por senhora;
Que bem vejo
Nesse ar, nesse despejo,
Mui graciosa donzella,
due vos sois, minha alma, aquella

J38

OBRAS T>% eiL VICEXTE.

Glue eu busco e que desejo.


Obrou bem a Natureza
Em vos dar tal condigtio,
tiue amis a descrio
Muito mais que a riqueza.
Bem parece
Q.ue a deserio merece
Gosar vossa fermosura,
Glue he tal que da ventura
Outra tal nao s'accontece.
Senhora, eu me contento
Receher-vos como estais ;
Se vos no vos conlentais,
O vosso contentamente
Pode fallecer no mais.
Lato Como falla !
Vidal E ella como so cala !
Este ha de ser seu marido.
Segundo a cousa s'abala.
Esc.
Eu no tenho mais de meu,
Somente ser comprador
Do Mariehal meu senhor,
E sam escudeiro seu.
Sei bem 1er,
E muito bem escrever,
E bom jugador de bola,
E quanto a tanger viola,
Logo me vereis tanger.
Moo, que ests l olhftdo ?
Moo. Glue manda Vossa Merc?

FARAS.
Esc. Q-ue venhais ca.
Moo .
Pera que ?
Esc. Porque faas o que eu mando.
Moo. Logo vou.
O diabo me tomou
Sair-me de Jam Montez
Por servir hum tavans,
Mor doudo que Deos criou.
Esc.
Fui despedir hum rapaz,
Por tomar este ladro,
Que valia Perpinho.
Moo ! .
Moo.
Que vos praz?
Esc. A viola.
Moo. Oh como ficar tola,
Se no fosse casar ante
Co mais safeo bargante .
Glue come po e cebola.
Ei-la aqui bem temperada ;
No tendes que temperar.
Esc. Faria bera de t'a quebrar
Na cabea bem migada.
Moo. E se ella he emprestada,
Quem na havia de pagar?
Meu amo, eu quero-me ir.
Esc. E quando queres partir?
Moo. Logo quero comear.
Determino de partir
Ante que venha o Inverno,
Porque vs no dais govrno
Pera vos ninguem servir.

139

140

OBRAS DE GIL VICENTE.

Esc. No dormes tu que te farte?


Moo. No cho. e o telhado por manta,
E sarra-se-me a garganta
De fome.
Esc.
Isso tem arte.
Moco.
Vs sempre zombais assi.
Esc. Oh que boas vozes tem
Esta viola aqui.
Leixa-me casar a mi,
Depois eu te farei bem.
Me. Agora vos digo eu
Que Inez est no paraiso.
Inez. Que tendes de ver com isso?
Todo o mal ha de ser meu.
Me.
Oh como he seca a velhice !
Inez. Leixae-me ouvir e folgar,
Que no m'hei d'eu contentar
De casar com parvoce.
Pode ser maior riqueza
Que hum homem avisado?
Me. Muitas vezes, mal peceado,
He melhor boa simpreza.
Lato Ora ouvi e ouvireis,
Dizei algua cantadella,
Namorae esta donzella,
E esta cantiga direis :
ii Canas do amor canas
Canas do amor.
Polo longo de hum rio
Canaval est florido,
Canas do amor. n

FARAS.

141

((Janta o Escudeiro o romance de Mal me


quiern en Casiilla : n)
Vidal Lato, ja o somno he comigo,
Como oio cantar guaiado,
Que no vai esfandangado.
IiATo E he o demo qu'eu digo.
Viste cantar Danaso
Pelo mar vai vela,
Vela vai pelo mar?
Vidal Filha Inez, assi vivais
Que tomeis esse senhor
Escudeiro cantador
E caador de pardaes,
Sabedor, revolvedor,
Fallador, gracejador,
Affeitado pola mo,
E sabe de gavio :
Tomae-o por meu amor.
Podeis topar hum rabugento,
Desmazelado, baboso,
Descancarado, brigoso,
Medroso, carapatento.
Este escudeiro, aosadas,
Onde se derem pancadas,
Elle as ha de levar
Boas, se no apanhar :
Nelle tendes boas fadas.
Me.
Quero rir com toda a mgoa
Destes teus casamenteiros.
Nunca vi Judeos ferreiros
Aturar tambem a fragoa.

142

OBRAS DE GIL VICENTE.

No te he melhor, mal por mal,


Inez, hum bom official,
Que te ganhe nesa praa,
Que he hum escravo de graa,
E mais casas com teu igual ?
Lato Senhora, perdei cuidado:
O que ha de ser, hade ser;
E ninguem pode tolher
O que est determinado.
Vidal Assi diz Rabizaro.
Me. Inez, guar'-te de rasco :
Escudeiro queres tu ?
Inez. Jesu nome de Jesu !
QuUO fora sois de feio !
Ja minha me adivinha.
Folgastes vs na verdade
Casar vossa vontade,
Eu quero casar minha.
Me. Casa, filha, muit'embora.
Esc. Dae-me ca essa mo, senhora.
Inez. Senhor, de mui boa mente.
Esc. Per palavras de presente
Vos recebo desde agora.
Nome de Deos assim seja,
Eu Braz da Mata, Escudeiro,
Recebo a vs Inez Pereira
Por esposa verdadeira,
Como manda a Sancta Igreja.
Inez. Eu aqui diante Deos,
Inez Pereira recebo a vs,
Sem mais preo uem demanda.

' FAR.AS.

143

Como a Sancta Igreja manda,


A Braz da Mata.
Lato.
Ahi somos ns.
Vidal Ala manim dona, dona, ha3
Arrea especul,
Bento o Deu de Jacob,
Bento o Deu que a Phara
Espantou e espantar :
Bento o Deu de Abraham,
Benta a terra de Canaam.
Pera bem sejais casados.
Dae-nos ca senhos ducados.
Me. Amanhan vo-los daro.
Pois assi he, bem ser
Que no passe isto assi :
Eu quero chegar alli
Chamar meu% amigos ca,
E bailaro de terreiro.
(Sahe.)
Esc. Oh ! quem me fra solteiro !
Inez* Ja vs vos arrependeis ?
Esc. O esposa, no falleis,
Que casar he captiveiro.
(Vem a Me com certas mocas e mancebos
pera fazerem fesla, e diz huma delias,
per nome Luzia :J
Luzia. Inez, por teu bem te seja :
Oh que esposo e que alegria !
Inez. Venhas embora, Luzia,
E cedo t'eu assi veja.
Me. Ora vac tu alli, Inez,
E bailareis tres por tres.

144

OBRAS DE GIL VICENTE.

Fern. Tu comnosco, Luzia, aqui;


E a desposada alli :
Ora vde qual direis.
(Cnto iodos de terreiro :)
Mal herida iba la garza
Enamorada
Sola va y gritos daba.
(E acabando de cantar e bailar diz :)
Fern.
Ora senhores honrados,
Ficae com vossa merc,
E nosso Senhor vos de
Com que vivais descansados.
LrziA. Ficae com Deos, desposados,
Com prazer e com saude,
E sempre elle vos ajude
Com que vivais descansados.
Esta festa foi agorj,
Mas melhor sera outrora.
M Xe.
Ficae com Deos, filha minha,
No virei ca to asinha :
A minha benco hajais.
Esta casa em que ficais
Vos dou e vou-me casinha.
Senhor filho e senhor meu.
Pois que ja Inez he vossa,
Vossa mulher e esposa,
Encommendo-vo-la eu.
E pois que desque naceo
A outrem no conheceo,
Seno a vs, senhor,
Que lhe tenhais muito amor,

FARAS.
Esc.

Inez.

Esc.
Inez.
Esc.

Inez.
Esc.

145

Que amado sejais no ceo.


(Vai.se.)
E vs cantais, Inez Pereira?
Em vodas mandaveis vs?
Juro ao corpo de Deos
GUie esta seja a derradeira.
Se vos eu vejo cantar,
Eu vos farei assobiar.
Bofe, senhor meu marido,
Se vs .disso sois servido,
Bem o posso eu escusar.
Mas he bem que o escuseis,
E outras cousas que no digo.
Porque bradais vs comigo ?
Sera bem que vos caleis,
E mais sereis avisada
Que no me respondereis nada,
Emque ponha fogo (* tudo;
Porque o homem sesudo
Traz a mulher sopeada.
Vs no haveis de fallar
Com homem, nem mulher que soja;
Somente ir Igreja
No vos quero eu leixar.
Ja vos preguei as janellas,
Porque no vos ponhais nellas ;
Estareis aqui encerrada
Nesta casa to fechada,
Como freira d^udivellas.
GUie peccado foi o meu ?
Porque me dais tal prizo?
Vs buscastes descrio,
5

1 li,

OBRAS DE GIL VICENTB.

Que culpa vos tenho eu?


Pode ser maior aviso,
Maior descrio e siso
Q.ue guardar o meu thesouro?
No sois vs, mulher, meu ouro ?
Glue mal fao em guardar isso?
Vs no haveis de mandar
Em casa somente hum pello :,
S'eu disser isto he novello,
Havei-lo de confirmar.
E mais, quando eu vier
De fora, haveis 'de tremer,
E cousa que vs digais
No vos ha de valer mais
Daquillo que eu quizer.
Moo, s partes d'alem
Vou-me fazer cavalleiro.
Moo. Se vs tivesseis dinheiro,
No seria seno bem.
Esc. Tu has de ficar aqui.
Olha, por amor de mi,
O que faz tua senhora :
Fecha-la-has sempre de fora.
Vs lavrae, ficae per hi.
Moo.
Co dinheiro que leixais
No comerei eu gallinhas.
Esc. Vae-te tu por essas vinhas;
Que diabo queres mais?
Moco. Olhae, olhae, como rima!
E depois de ida a vendima ?
Esc.
Apanha desse rabisco.

FARAS.

147

Moo. Pezar ora de Sanpisco


E convidarei minha prima.
E o rabisco acabado,
Ir-m'hei espojar s eiras?
Esc.
Vae-te per essas figueiras
E farta-te, desmazelado.
Moo. Assi !
Esc.
Pois que cuidavas?
E depois viro as favas
Conheces tuberas da terra?
Moo. I-vos vs embora guerra,
Qu'eu vos guardarei oitavas.
(Ido o Escudeiro, diz o Moo :)
Moo.
Senhora, o que elle mandou
No posso menos fazer.
Inez. Pois que te d de comer,
Faze o que t'encommendou.
Moo. Vs fartae-vos de lavrar,
Eu me vou desenfadar
Com essas moas l fora :
Vs perdoae-me, senhora,
Porque vos hei de fechar.
(Vai-se.)
( Ficafechada lnez Pereira, e lavrando canla .)
Inez.
Quem bem tem e mal escolhe,
Por mal que lhe venha no se anoje.
Renego da descrio,
Commendo 6 demo o aviso,
Que sempre cuidei que nisso
Stava a boa condio :
Cuidei que fossem cavalleiros
Fidalgos e escudeiros,

148

OBRAS SE GIL VICENTE.

No cheios de. desvarios,


E em suas casas macios,
E na guerra lastimeiros.
Vede que cavallarias,
Vede ja que Mouros mata
Quem sua mulher maltrata,
Sem lhe dar de paz hum dia.
Sempre eu ouvi dizer
Que o homem que isto fizer
Nunca mata drago em valle,
Nem Mouro que chamem Alie ;
E assi deve de ser.
Juro em todo meu sentido
Que se solteira me vejo,
Assi como eu desejo.
Que eu saiba escolher marido,
A boa f sem mao engano,
Pacfico todo o anno,
E que ande a meu mandar :
Havia-m'eu de vingar
Deste mal e .deste damno.
(Entra o Moo com huma carta.)
Moo.
Esta carta vem d'alem,
Creio que he de meu senhor.
Inez. Mostrae ca, meu guarda-mor,
E veremos o que hi vem.
f
(L o sobreicripto . )
A senhora mui presada
Inez Pereira da Gra,
A senhora minha irmua,
Em Thomar Uie seja dada.

FARAS.

149

De meu irmo ; venha embora.


Moo. Vosso irmo est em Arzila?
Eu apostarei que hi vem
Nova de meu senhor tambem.
Inez. Ja elle partio de Tavila ?
Moo. Ha tres mezes que he passado.
Inez. Aqui vir logo recado
Se lhe vai bem ou que faz.
Moo. Bem pequena he a carta assaz.
Lvez. Carta de homem avisado.
(L.)
Muito honrada irman,
JEsforae o corao
23 tomae por devoco
De querer o que JDeos quer;...
E isto que quer dizer ?
E no vos maravilheis
De cousa que o inundo faca,
Que sempre nos embaraa
Com cousas. Sabei que indo
Vosso marido fugindo
Da batalha para a villa,
Meia legua de Arzila
O matou hum Mouro pastor.
Moo. Oh"meu amo e meu senhor !
Inez.
Dae-me vs ca essa chave,
E i buscar vossa vida.
Moa. Oh que triste despedida !
Inez. Oh que nova to suave!
Desatado ho o n6.
S'eu.por elle ponho d,
O diabo m'arrebente :

150

OBRAS DE GIL VICENTE.

Para mim era valente,


E matou-o hum Mouro so.
Guardar de cavalleiro
Barbudo, repetenado,
Que em figura d'avisado
He maligno e sotraneo.
Agora quero tomar
Para boa vida gosar
Hum muito manso marido ;
No no quero ja sabido,
Pois to caro ha de custar.
(Vem Leonor Vaz visit-la, e ella finge-sc
muito anojada.)
Leon.
Como estais, Inez Pereira?
Inez. Muito triste, Lianor Vaz.
Leon. Glue fareis ao que Deos faz ?
Inez. Casei por minha canceira.
Leon. Se ficaste prenhe, basta.
Inez. Bem quizera eu delle casta,
Mas no quiz minha ventura.
Leon. Filha, no tomeis tristura,
ue a morte a todos gasta.
O que havedes de fazer,
Casade vs, filha minha.
Inez. Jcsu ! Jesu ! to asinha ?
Isso haveis de dizer?
uera perdeo hum tal marido,
To discreto e to sabido,
E to amigo de minha vida?
Leon. L>ae isso por esquecido,
E buses outra guarida.

F ARAS.

1S1

Pero Marques tem que herdou


Fazenda de mil cruzados;
Mas vs quereis avisados.
Inez. No; ja esse tempo passou :
Sobre quantos mestres so
Exp'riencia d lio.
Leon. Pois tendes esse 6aber,
QLuerei ora a quem vos quer,
Dae demo a opinio.
(Vav.se Leonor Vaz por Pero Marques.)
Inez.
Andar: Pero Marques seja;
Quero tomar por esposo
Quem se tenha por ditoso
De cada vez que me veja.
Por usar de siso mero,
Asno que me leve quero,
E no cavallo folo ;
Antes lebre que leo,
Antes lavrador que Nero.
(Vem, Leonor Vaz com Pero Marques.)
Leon.
N mais ceremonias agora;
Abraae Inez Pereira
Por mulher e por parceira.
, Pero. Ah, eu m'empacho ma ora
Quanto a dizer abraar ;
Depois que a eu usar
Entonces poder ser.
Inez. No lhe quero mais saber ;
Ja me quero contentar.
Leon.
Ora dae-me essas mos ca :
Sabeis as palavras ? si !

132

OBRAS SE OIL VICENTE.

Pero. Ensinrao-m'as a mi,


Porm esquecem-me ja.
Leos. Ora dizei como eu digo.
Pero. E tendes vos aqui trigo
Pera nos geitar por riba?
Leon. Inda he cedo, como rima !
Pero. Soma vos casais comigo,
E eu comvosco, pardelhas :
No cumpre aqui mais fallar.
E quando vos eu negar,
Glue me cortem as orelhas.
Leon. Vou-me ; ficae-vos embora. (Vai-sc.)
Inez. Marido, e sahirei eu agora,
Que ha muito que nao sahi ?
Pero. Sim, mulher, sahi vos hi,
O-u'eu me sahirei p'ra fra.
Inez. Marido, no digo disso.
Pero. Pois que dizeis vos, mulher?
Inez. Ir folgar onde eu quizer.
Pero. Ide onde quizerdes ir,
Vinde quando quizerdes vir,
Stae quando quizerdes 'star :
Com que podeis vos folgar
Q-u'eu no deva consentir?
(Vem hum Ermito pedir esmola e diz :)
Ersc.
Seores, por caridad
Dad limosna al dolorido
Ermitao de Cupido
Para siempre en soledad,
Pues su siervo soy nacido.
Por ejemplo,

TARAS.
Me meti en su santo templo
Ermitao en pobre ermita,
Abastada de infinita
Tristeza en que contemplo.
Adonde reso mis horas
Y mis dias y mis aos,
Mis servicios y mis daos,
Donde t, mi alma, lloras
Dolor de tantos engaos.
Y acabando
lias horas, todas llorando,
Tomo las cuentas una y una,
Con que tomo la fortuna
Cuenta del mal en que ando,
Sin esperar paga alguna.
Y ans sin esperanza
De cobrar lo merecido,
Sirvo all mi Dios Cupido
Con tanto amor sin mudanza,
Que soy su santo escogido.
O seores,
Los que bien os va de amores.
Dad limosna al sin holgura,
Que habita en sierra escura,
Uno de los amadores
Que tuvo menos ventura.
Y rogar al Dios de m,
En que mis sentidos traigo,
Que recibais mejor pago
De lo que yo recebi
En esta vida que hago.

153

l'

Inez.

Pero.
Inez.
K uii.

Inez.

OBRAS DE Gil VICENTE.

Y resar,
Con gran devocion y fe,
Que Dios os libre de engao,
Que eso me hizo ermitaflo,
Y para siempre ser,
Pues para siempre es mi dano.
Olhae ca, marido amigo,
Eu tenho por devao
Dar esmola a hum ermito,
E no vades vs comigo.
I-vos embora, mulher,
No tenho l que fazer.
Tomae a esmola, padre, l,
Pois que Deos vos trouxe aqui.
Sea por amor de mi
Vuesa buena carid.
Deo gracias, mi senora,
La limosna mata el pecado,
Y vos teneis buen cuidado
De ser de mi matadora.
Debeis saber,
Para merced me hacer,
6lue por vos soy ermitafib,
Y aun mas os desengano
Que esperanza de os ver
Me hizo vestir tal pano.
Jesus, Jesus, manas minhas!
Sois vs aquelle que hum dia
Em casa de minha tia
Me mandastes camarinhas ;
E quando aprendia a lavrar

FARJAS.

Erm.

Inez.

Erm.
Inez.

Erm.
Inez.
.
Pero.
Inez.
Pero.
Inez.
Pero.
Inez.
Pero.
Inez.

Mandaiveis-me tanta eousinha ?


Eu era ainda Inezinha,
No vos queria fullar.
Seora, tngoos servido,
Y vos mi despreciado :,
Haced que el tiempo pasado
No se cuente por perdido.
Padre, mui bem vos entendo.
O demo que vos eu eneommendo,
Quo bem sabeis vs pedir !
Eu determino l d'ir
A ermida, Deos querendo.
Y cuando?
I-vos, meu santo,
Q.ue eu irei hum dia destes
Muito cedo e muito prestes.
Seora, yo me voy eu tanto.
Em tudo he bo a concruso.
Marido, aquellc ermito
He hum anginho de Deos.
Corrego vs esses veos,
E ponde-vos em feio.
Sabeis vs o que eu queria?
Que quereis, minha mulher?
Que houvesseis por prazer
De irmos l em romaria.
Seja logo sem deter.
Ora este caminho he comprido,
Contae "mima historia, marido.
Bof que me praz, mulher.
Passemos primeiro o rio.

loii

156

Pero.
Inez.

Pero.
Inez.
Pero.
Inez.

Pero.
Inez.

Pero.
Tnez.

Pero.
Inez.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Descalsae-vos.
Assi ha de ser?
E "pois como?
E levar-me-heis no hombro,
No me corte a madre o frio.
(Pe-se s coslas do marido.)
Assi.
Ides vossa vontade?
Como estar no paraso.
Muito folgo eu com isso.
Esperade ora, esperade ;
Olhae que lousas aquellas,
Pera poer as talhas- nellas .
Guereis que as leve?
Sim : hua aqui, e outra aqui.
Oh como folgo com cilas !
Cantemos.
Se vs quereis.
E vs me respondereis
A tudo quanto eu cantar :
Pois assi se fazem as cousas.
(Crnla.)
Marido cuco me levades
' E mais duas lousas.
Pois assi se fazem as cousas.
Bem sabedes vs, marido,
Quanto vos quero ;
Sempre fostes percebido
" Pera cervo :
Agora vos tomou o dema
t.- Com duas lousas.

FARAS.
Furo. Pois assi sc fazem as cousas.
Inez. Bem sabedes vos, marido,
Quanto vos amo,
.>Sempre festes percebido
Pera gamo.
it Carregado ides, noss'amo,
Com duas kiusas.
Pero. Pois assi se fazem as cousas.
assi vo e acaba a dita Fara.

157

O JUIZ DA BEIRA.
FIGURAS.
PURO

MARaiES.

PORTEIRO.

VASCO AFFONSO.
RO.

AUJiA DIAS.

ESCUDEIRO.

PREGUIOSO.

MOO

FERREIRO.
SAPATEI

DO ESCUDEIRO.

BAIXADOR.

AMADOR.

BRIGOSO.

Esta fora que se adiante segue he o seu


argumento desta maneira : Dia o Autor que
este Pero Marques, como foi casado com lnez.
Pereira, se foro morar onde elle tinha sua
fazenda, que era l na Seira, onde ofizero
Juiz. E porque dava algumas sentencas des
formes por ser homem simprez, foi chamado
Carie, c mandro-lhe que fizesse ha audien
cia diante d,ElRei. Foi representada ao muita
nobre e Christianissimo Rei D. Joo, o ter
ceiro em Portugal deste nome, em Almeirimna era do Senhor de 1525.
(Entra Pero Marques dizendo')

Pero. v/ihae vs bem quTeste sam cu


Homem de boa ventura,
Empacho nunca m'atura,

IARAS.
E hei de dizer o meu
Coma qualquer criatura.
Pero Marques sam da Beira
E juiz mexericado ;
Dero-me l hum Julgado
Por cajo de Inez Pereira,
Com que embora sam casado.
Passou-se ca hum mandado,
Nega por me dar canceira,
Que logo cm toda maneira
Viesse, e vim emprazado
Bof com fraca esmoleira.
E porque me tem teno
Diogo Lopes de Carvalho,
Por me metter em trabalho,
Diz que no cumpro a Ordenao,
E que pera juiz no valho.
Qu'elle he muito d'apertar
Com juizes de siqueiro.
Ora eu por no ser peeiro,
Vim ca pera m'amostrar
Glue sou eu homem inteiro.
Ora assi que de maneira
Minha hspeda Inez Pereira
(Deos a benza !) sabe ler,
E quanto me faz mister
Pera eu ir pola carreira.
De que eu contente sam,
Soma avouda que assi
L-me ella o caderno alli
Onde s'he a ordenaam

159

160

OBRAS DE GlL VICENTE.

De cabo a rabo em par de mi


Do que pertence ao juiz :
E assi como ella diz
Assi xe.mo fao eu ;
E em terra de Vizeu
Ninguem no me contradiz.
(Vem hum Porteiro apregoando.)
Port.
Quem quizer vir arrendar
As charnecas de Coruche,
Antes que o lano mais puxe,
Que se querem arrematar.
So terras novas guardadas,
Que nunca foro lavradas.
Oh que matos pera po !
Gbue valles pera aafro
E canas assucaradas !
E mais quem quizer lanar
N 'alfandega da cortiada,
Ser-lh'ha logo arrematada,
Se espera bem de pagar.
Fero. Senhor Porteiro.
Port.
Andar.
Pro. Em logar de cor'gedor
Me mandou o Regedor
Glue faa neste logar
Odiana d,Ouvidor.
Vossa merc servir
Minha odiana assi
Como elle tambem arai;
Ento aqui se ver
Se vou eu limpo daqui.

FARAS.
Ora traga vossa merc
Hum banco e hua esteira,
E hua cortia inteira,
E vossa merc me d
Licena que o requeira.
Ide logo sem tardar.
Port. Quem no vir assi mandar
Cuidar que sabe o que diz :
Tal he elle p'ra juiz
Como eu sou pera pregar.
Pero. Olhae ca, senhor Porteiro.
Port. Senhor Juiz, que me manda?
Pero. Pregoae quem tem demanda,
Que venha aqui a terreiro
E diga em que termos anda.
E venha o banco todavia
Muito bom, muito direito.
Port. Quem quizer hoje este dia
Ver mao pezar de seu feito,
No tarde hua ave-maria.
Tal juiz em tal logar
Parece cousa de riso.
Porm que me d a mi disso
Bem julgar nem mao julgar?
Quem faz juiz hum vaqueiro !
Fero. Senhor Porteiro, l vem
Vasco Affonso e tambem
Joo Domingues, ferreiro.
(Indo o Porteiro buscar o banco, topa
o ferreiro e Vasco Affonso, e dia o)
Fsrr.
Glue andais buscando, Porteiro ?

161

162

OBBAS DE eiL VICENTE.

Port. Hum banco pera a audiana.


Ferr. Aqui bauco no s'alcana
Seno em casa do carpinteiro.
Port.
Digo a Deos e ventura,
No he melhor esta cadeira
Que tem pelle e tem madeira
E tem-se bem e he segura?
Ferr. Poucas destas vio o Juiz.
Vasco Boa he ella pera assentar,
Mas este atafal no diz.
Port. Isto he pera encostar.
Senhor Juiz, isto he cadeira ;
Cortia, nem ponta delia.
Pero. Dae 6 demo a cancella
E quem a trougue da feira :
Eu no saberei aqui ser.
Dou j fogo a guitarra !
Quem tinha esta zanguizarra?
Port. Quem a sabe conhecer.
Pero.
I-me a Diogo d'Arruda
Que me faa nua trepea.
Port. Que juiz e <lue eabea !
Dou eu ja demo a resmuda.
Pero. E que diz elle? que diz?
Vasco Que pareceis escudeiro.
Pero. Como he bom este Porteiro !
Port. Como he parvo este Juiz !
Corpo de mi c'o gaiteiro !
Pero.
Pardeos, logo eu jurarei
Que o Porteiro he homem so,
Por si, si, e por no, no,

VARAS.

Port.
Pero.

Port.

Pero.

Todo feito a boa lei,


E fora de ma teno.
Esta he rasa e mais honesta.
Ponte, ou que cousa he esta-?
No tragais jogo de ver,
Que bem haveis de saber
QUie isto he presepe de besta.
Va eram vossa merc
E traga logo a recado
Hum banquezinho assi usado,
Porqu'isso no sei que he.
Hum villo destemperado
He peor que pestelena.
Oh ! dou 6 demo a audiena !
Perdoe-me Deos se he peccado.
Ora assi hei eu d'andar
De Ans pera Caifaz?
Juro a cata-que-fars
Que bem me podem chamar
Tu que' vens e tu que vas.
Ei-lo banco ca est.
Esteis muitieram :
Tomae l, senhor Juiz,
Pera vs este vos diz.
Pera mi! ahi serei:
Pardeos, proprio he com'este
Hum banco que l deixei :
Agora estou coma ElRei,
E praza a Deos que me preste.
Ora sus, agasalhar,
Tirae d'hi essas cancellas:,

163

164

OBRAS SI aiL VICENTE.

Aquellas hi no ho d'estar :
Ou fora, rua com ellas.
Ferr.
Estae vs ahi, Juiz,
E ns em pe como bons filhos.
Fero. Senhor Porteiro, esses peguilhos
Deitae-os no chafariz.
Port. Levarei, ora estae quedo :
Perdida he a decoada
Na cabea d'asno pegada.
No sois vs pera camara, Pedro.
(Leva o Porteiro as cadeiras e topa com Arma
Dias, que vem audiencia.)
Port.
Venhais embora, Anna Dias,
Em demanda andais ca ?
Anua. Sempre o diabo me d,
Com que tenha negros dias.
Port. He feito crime ou que he?
Anna. No sei s'he crime ou se que:
Minha filha he violada,
E houvero-m'a forada :
Vou-me ao Juiz.
Port.
Esse he ;
Mas tanto val como nada.
Anna.
Querello-me, senhor Juiz,
Do filho de Pero Amado
GUie o achei emburilhado
Com a minha Beatriz.
Pero. E onde?
Anna.
No seu cerrado.
Pero. E que ia ella l catar?
'Anna. Foro ambos a mundar,

rarcas.

Pero.
Anna.
Pero.

Anna.
Pro.
Anna.

Pero.

Anna.

Pero.

Perr.

E o trigo era creudo


E foi-se a ella.
Coma sesudo,
Pois que tinha bd logar.
Olhae vs como elle gosta!
Juiz, fazci-me direito.
Digo que pois ja he feito.
Venha elle com sua reposta,
Ou lhe faa bom proveito,
E venha a moa citada.
E a cachopa he prenhada.
Assi se faz.
No ha hi mais?
Esse he o remedio que dais?
Ora estou bem aviada.
Me, me, eu no sei que diga.
Pae, pae, venha a rapariga,
E veremos que ella dii :
E como diz a cantiga,
Traga as testemunhas ca,
Sete ou oito abastaro.
Senhor, seno for per rezo,
Nunca s'isso provar :
Que era o po onde os achei
Mais alto do qu'he essa vara.
S'ella mesmo no folgra,
Chamra ella quedelrei;
Mas credo quo natura dal
Nemo negare pote.
Anna Diz, feito he ja,
No s'ha de fazer de' cote.

165

166

Anna.

OBRAS DE GlL VICENTE.

No sam eu Marta a piadosa


Que dou caldo aos enforcados,
Nem perdoa taes peccados
Quem a honra tem mimosa.
O que havedes de fazer,
Sentae-m'o nessa querella,
Que adiante hei d'ir com ella,
Inda que saiba morrer.
No no hei polo desprzo
Que elle quiz fazer de mi,
Nem outras cousas assi ;
Mas hei-o polo mao vezo
Qu'elle tomar dahi.
Pero. Se a moa he dessa pelle,
No he o moo de culpar.
Anna. Deixra-a elle mundar :
Que olho mao se metta nelle,
E muito do mao pezar.
Maos exemplos, maos ensinos;
Hum moo ja homem barbado,
(Benz'o Deos) e mancipado
Ir fazer taes desatinos !
Pero. So cousas de moos.
Anna.
Assi,
Boa concruso trazeis.
Pero. Que he o que vs quereis?
Anna. Que o mandeis vir aqui
Preso, e que o castigueis.
Pero.
Ja eu estive cuidando nisso,
Porque eu no sou abantesma.
Mas que sei eu s'ella mesma

FAHAS.

167

Deu casio pera isso ?


E porem tudo assi visto,
Eu mando per meu mandado
Que at esse po ser segado,
Que se no falle mais nisso.
E quelle mesmo po
Eu e estes homens bos
Iremos l e veremos ns
Se a houve per fora ou no :
Que se ella no queria
Estar o po derramado,
E ha mister bem olhado
Ella se se defendia.
(Vem hum Sapateiro, Christo novo, do cal
ado velho, e diz :)
Sap.
Cuando ramos judios,
Dolor del tiempo pasado,
Ciento y veinte y un ducado
Tenia en ducados mios,
Sin le faltar un cornado.
Morador en Carrion,
Y mercader en Medina,
Casado con Dona Dina,
Nieta de Jacob Zarion,
Maestro mor de Adefina.
Agora que soy guayado
Y negro cristianejo,
Andome calzado viejo,
Desnudo, desfarrapado,
El mas triste del Concejo,
Y por mas postomeria

468

OBRAS OK GIL VICENTE.

Una hija que tenia


Tal como cera colada,
Hubomela alcohetada.
Voyme al Jucz todavia.
Honrado seor Jucz.
Pero. Eilo.
Sap.
Seais bien logrado.
Yo me soy Alonso Lopez,
(Que se vea negra pez
La que me tiene enlodado !)
Ana Dias que ah est
Usa de alcohetara ;
Enlod una hija mia,
Moza ya de buena edad,
Tal como la luz del dia.
Ania.
Olho mao se metta em ti,
Cascarrea de judeu !
E em tal mulher como eu
Falias tu? dize, alfaqui,
Alcoviteira sam eu ?
Sap. Seor Juez.
Pero.
Eilo.
Sap.
Buen placer.
Mandad esa muger
Que hable cortes conmigo.
Aniia. Farrapo, tu que has comtigo,
Ou que me viste fazer?
Sap.
Seor Juez.
Pero.
Eilo.
Sap.
Vivais.
Mandalda luego callar,

FARAS.

Anna.

Sap.
Anna.

Sap.
Pero.
Sap.

Pero.
Sap.
Anna.

Sap.
Anna.
Pero.

Porque yo quiero probar


Cosas de ella, que digais
Doy al diable el enjoval.
Mana minha ! quedelrei ?
Dize, gato de Tobias,
E mulher sam eu de lei
Pera alcovitar judias?
No hableis tanto de dedo.
Eu sou ama do Craveiro,
Visinha do Tisoureiro,
Sobrinha d'Alvarazedo.
Dum filho d'aranha morta !
E mais eu te provarei
Que hum cavallo d'ElRei
Estercou miuha porta.
Honrado seor Juez.
Eilo.
Buenas hadas,
Es bien que en vuestras quejadas
Me diga aquello Ana Diez ?
Sao mulheres.
Aosadas '.
Antes m'espanto de mi
Como no salto em ti
E te quebro essas queixadas.No te abasta alcohctar
mi hija, hembra mala?
Cala-te ma ora, cala,
Nao me faas atentar.
Olhae que m'esquece a mi
Glue cousa he alcovitar.

169

170

Sap.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Yo os lo quiero contar,
Que es una arte por s.
Teneis (Dios os guarde amigo)
Vuestra hija muger,
Buena, limpia como el trigo
Que se coge buen placer.
Mrala un cortesano,
Mrala, quirela, desala :
Pues que har
Pera la haber la mano?
Vase una tal como esta,
Y cuntale tal y tal,
Y ella est tan honesta,
Que gurdeos Dios de mal,
Vase la vieja al molino,
Entra muy disimulada,
Muy honesta cobijada,
Como quien sabe el camino.
Tanto escarva, tanto atiza
Por tal arte y por tal modo,
Hace un cielo ceniza
Hasta ponella de lodo.
Y esta es de la manada ;
Que siendo en misa yo,
Ad pocas veces v,
Entr la seora honrada
Y mi hija enga.
Pero. Se lhe ella fora rogar
Pera mondar hum linhar,
A moa embargra o caminho ;
Mas bom he de encaminhar

171
O gato pera o toucinho.
Sap.
Si no fuera esta malvada,
Marina no errara ans.
Asna. Agora me lembra a mi
Onde Marina morava :
Antre os odreiros alli
Me parece que vos vi
Cos odres dependurado.
Sap. Seuor Juez.
Pero.
Eilo.
Sap.
Buen mandado.
Yo tambien veisme aqui
Con los odres pendurado.
El negro Alonso Lopez
Mal viva si otra vez
Venga a pediros derecho.
No me fuera mas provecho
Dar al diablo el Juez?
Que esta merece, quemada.
Pero. Julgo que se esta dona honrada
Sabe isso to bem fazer,
Se o deixar esquecer,
Seja por isso aoutada.
Assi se cerra a cancella.
Calar, ieram, calar,
E no vir-vos exemplar.
No no sabia seno ella,
E elle vem-no apregoar.
Sap. Pscoa mala d Dios al Juez,
Y mala pscoa ai Portero,
Y negra pscoa ai herrero,

172

OBRAS DE GIL VICENTE.

Y al Juez otra vez,


Y mala pscoa Ana Diez,
Y mi negra vejez
Me d si Cristiano muero.
(Vai-se.)
(Vem hum Escudeiro cem hum seu moo,
e diz :)
Esc.
Toma l esse sombreiro ;
Eu sam ja acrecentado
Escudeiro encavalgado,
Depois serei cavalleiro,
Que o anuo for acabado.
Ando ja quasi privado
Como quem no melhor anda,
Agora ver-me em demanda,
Acho-me to salteado
Como o gato na varanda.
Viste-me tu nunca andar
Em demanda com ninguem,
Seno hua em Santarem ?
Moo. E outra no Lumiar,
E em Lisboa tambem.
Mas antes, a Dcos louvores,
Sempre vos vi ser citado.
Esc. Folgo porque es lembrado,
E louvas Deos com minhas dores. '
Sois vs o Senhor Juiz?
Pero. Assi se roge por ca.
Esc. Vossa Merc saber
Que m'enganou Anna Diz,
Que a p de juizo est.
Anna. Enganei ! Nunca Deos queira.

FARAS.
Escfc

Ouvi vs, emboladeira :


Eu andava namorado
De hua moa pretesinha,
Muito galante Mourinha,
Hum ferretinho delgado,
Oh quanta graa que tinha !
Ento amores de Moura,
Ja sabeis o fogo vivo,
Ella captiva eu captivo :
Ora que ma morte moura
Se ha hi mal to esquivo.
Eu morria, e alem disso
Eu no tinha ento mais siso
Do que aquella porta tem.
No falleis cm querer bem,
Que rapa todo o aviso.
Andando assi como digo
Escravo da servidora,
Soccorri-me a esta senhora.
Depois do fallar comigo,
Dix'eu : Senhora Anna Diz...
Estae.vs prompto, Juiz.
Pero. Eilo : bem vos ouvo eu.
Esc. Dixe-lhe : Ando sandeu,
Pesar dos Sanctos, qu'eu fiz ;
Esta Moura por que mouro,
Se m'a vs haveis mo,
Senhora, f de Christo
De vos dar hua pea dWro
Por sair desta paixo.
Asw.
Que vos dixe eu ento?

173

174.

Esc.

OBRAS DE 61L VICENTE.

Esperae, qu'cu o direi.


Dixestes-me : Trabalharei
Por hum cruzado p'ra po. 4
Senhora, eu vo-lo haverei.
Vou e vendo hua viola
E hum gibo de fusto
E botas de cordovo,
Q.ue tinlio inda boa sola
Que durario hum vero E vendi hua gualteira,
E fiz da pousada feira.
Soma emfim de rezes,
Ajuntei quatro tostes,
E metti-lh'os na mosinha,
Dizendo-lhe : Senhora minha,
Lembrem-vos minhas paixes.
^ Foi-se a boa d'adela,
E ao primeiro recado
Disse : Dae-me outro cruzado,
Que prazendo a Madanela
Logo sereis aviado,
Deos querendo, muito prestes,
Porque aquelle que me destes
Em cuz-cuz o comeo ella.
E se vs quereis venc-la,
Andem os dinheiros bastos,
E no receeis os gastos
Em tal moa como aquella.
Ansa.
No vos dizia eu mal nisso,
Porque no se tomo trutas
Assi a bragas enxutas

FARAS.
Nem se ganha o paraso
Seno com offertas muitas.
Esc.
Emfim, vou eu muito asinha
Empenho hua sella que tinha,
E albardo o meu cavalio,
E foi-me forado aluga-lo
Pera acarretar farinha,
E fiquei desbaratado.
Isto tudo faz fazer
O mao rapaz do Amor.
1'ero. Prosegui vosso lavor,
Fallae no que faz mister.
Esc. Como varreo vassoura,
Que vintem no me ficasse,
Veio-me dizer que a Moura
Pedia que a forrasse.
^ E d'outra nenhua maneira
Fosse cantar gamela,
Ou me fosse rir feira,
Que no tinha nada nella.
E ante d'haver o dinheiro :
Esta Moura ha de morrer,
Tamanho he o bem que vos quer :
Esforae, lindo Escudeiro,
Que nunca podeis perder
Mandava-lhe a pada de po,
As empadas de sardinhas,
Bacios de camarinhas,
A talhada do melo.
E hua manta ^'Alemtejo
Que na minha cama tinha,

175

176

OBRAS DE Gil VICENTE.

Manta ja usdazinha,
M'a levou com tal despejo
Como s'ella fora minha.
Assi como vo-lo eu rezo
Esta vos he Anna Diz.
Asna. Na forca veja eu o Juiz,
Que he o homem qu'eu mais prezo.
Se taes emboladas fiz :
Lembra-me que faliei eu
A hua filha do Cetem.
Esc. Essa me custa a mi bem
Do alheio e do meu.
Anna. Se vos pagais tanto delia,
Forrarei-la ora ma dia. ^
Esc. No forro minha moradia,
Poderei forrar a ella ?
Senhor Juiz, conhecida
He a bulra. De-me o meu.
Pero. Desde aqui sentenceo eu
A moeda por perdida
Como alma de judeu.
Esc. Assi ha isso de passar?
Juiz, mandae-me pagar.
Pero. S'ella quizer : quereis, Anna Diz?
Anna. Bof no, senhor Juiz.
Pero. No no ha de querer dar.
Anna.
Viva o Juiz minhas flores !
Pero. I-vos embora, Escudeiro,
E nunca peais dinheiro
Glue gastastes per amores.
Esc. Outro caso trago eu.

F ARC AS.

Pzro. Dizei.
Esc.
Digo mais, senhor Juiz,
Este moo, o peccador,
He necio, quer-se ir de mim
Agora que est na fim,
Glue lhe havia d'ir melhor.
Ora pois que se quer ir
Sem pancada, nem arruido,
Muito farto e conhecido,
Dei-lhe agora de vestir,
Torne-me ca o meu vestido.
E mais lanou-me a perder
Ha cama em que jazia
Elle mesmo at meio dia,
Boa e de receber.
Moo.
Cama chamo ea as arcas,
Ou he falla assi mudada ?
Quant'eu na sua pousada
Sempre sei noites de barcas :
E quero calar mais damnos.
Senhor Juiz, ha seis annos
Glue estou co'este Escudeiro,
Ja'gora fora barbeiro,
Se nao forao seus enganos.
Ao tempo que vim par'elle
Estava mais melhorado,
Mas agora, mal peccado,
Mao pezar he feito delle,
E da viola do cavallo,
E da cama e do vestido,
E do meu tempo servido

177

180

OBRAS DE GIL VICENTE.

Outro dia hum meu amigo


Em siso bradou comigo
Porque durmo traz do lar
Na cinza, que he o acertar ,
Porque diz o verbo antigo,
Em cinza te has de tornar.
Melhor he ser preguioso,
Que homem negociado ;
Porque quem for repousado
No sera malicioso,
Mas sera homem de bem :
No dir mal de ninguem
Todo o tempo que dormir,
Nem madrugar a acquerir
Por haver o que outrem tem.
Venho ca, senhor Juiz,
E dir-vos-hei a que venho,
Porque a preguia que tenho
Faz de mim hua boiz.
Eu tenho huns tres irmos :
Hum delles he polas mos
Mui valente esgrimidor ;
O outro no ha hum christo
To doudo homem d'amor.
E somos quatro comigo,
Preguia he o meu fado.
Meu pae, senhor, he finado,
Sem nos ficar nem hum figo,
Seno hum asno pellado.
Vem todos ca audiena,
Porque temos differena

FARAS .

1 81

<lual de nos o ha d'herdar.


O esgrimidor quer-nos matar,
O outro diz que he sua a herana,
E lhe pertence por bailar.
Eu no posso ja fallar
De preguia, meu senhor.
Eis ahi vem o bailador :
Eu quero-me aqui deitar.
Bail.
Pois tanto tarda o prazer,
E tanto dura o pezar,
Houvera Deos de fazer
Que o pezar pudera ser
Prazer pera se lograr.
E pois o nojo se vem
Sem o ir buscar ninguem,
Eu acho ea no meu roi
(lue bailar de sol a sol
Pao bem e mais c bem.
Senhor Juiz, huf ! eu por bailar
Merejo o asno de meu pae,
Huf ! e vos m'o julgae.
Pero. Ou vos haveis de fallar,
Ou vos haveis de bailar.
Bail. Bailar.
Pero.
Ora bailae.
Bail. Huf! amores pardeos !
Agora tornemos nos
Fallar na morte de meu pae.
Ficou hum asno da geneta,
E somos quatro irmos
Estao-me proindo as mos
6

182

OBIIAS DE Gil VICENTE,

Por dar huma apateta,


Como nos bailos villos.
Huf ! amores cortezos !
Eu bem poderei cansar,
Mas no que leixe chegar
Nojo nem ao meu nariz.
Abonda-vos a vs, Juiz,
Que o burro m'haveis de dar
Polo bem que a meu pae fiz :
Que meu irmo preguioso
Nunca sahia do lar.
Preg. Quero-m'ora levantar :
Diz o sengo sabichoso
Bom he s vezes fallar.
Vs o asno, .meu senhor
Juiz, no m'o tolhereis,
Porque certo sabereis
Que este mesmo bailador
Deitou meu pae a trevs.
E eu guardava as casas todas
Detraz do lar estirado,
Que sem mim fora roubado.
Bail. Eu lhe trazia das bodas
Sempre o capello atestado
De figos, de carne e po.
Bof o asno me daro,
Porque o tenho bem ganhado.
Pardeos, eu era alegria
De nossa casa vasia.
Esse dormia coma co,
Que mijava onde jazia.

FARAS.
No vedes meu afanar,
E (-'lle folgar, n mais?
Pero. Pardeos, bem vos amanhais.
E no he melhor folgar
Que trabalhar por demais ?
Preg. Dizeis muito bem, Juiz ;
Vs sois meu procurador.
Eis ca vem sempre Amador,
E veremos o que diz.
Amad. Quem enfermo for d'amor,
Como eu contino sam,
Faa autos de christo,
Confesse-se, tome o Senhor,
Pois tem a morte na mo.
E pera to prestes partir,
Ande to triste como ando,
Desejando
A pena que est por vir.
luem quizer vida serena
Nunca queira o que eu queria,
Porque das horas do dia
A que me d mais pena
Me traz maior alegria.
E o triste meu cuidado,
Quanto mais desventurado,
Mais ledo, porque se cura
Com tristura
O mal que he desesperado.
Creio que quando nasci
Estava o sol eclipsado,
E o ar todo carregado

183

184

I5.au..
Preg.
Ama.
Peho.
Ama.

Pero.

OBRAS DE GIL VICENTE.

De tristezas pera mi,


Pois tristeza sam tornado.
E o sino em que fui geradV
(Olhae que desaventura !)
Estava desconcertado,
E logo foi condemnado
Meu nacer pera tristura.
(Canta.)
lLeixar quero amor vosso,
Mas no posso.
Oh quem fora alli com Deos
Ao fazer do amor,
E lhe dissera : Ah Senhor,
Amor sejais vs de ns,
E no haja amor com dor.
Fazei-o doce, amoroso,
Suave, tirae-lhe a pena,
Dae-lhe condio serena,
No haja tanto queixoso.
Que voltasinha ! huf ! huf !
Gran descano he espreguiar.
Ora deixae-me fallar.
Bof, a vontade me d
Que no hei hoje de acabar.
Quanto mais favorecido
Me traz esta rapariga,
Tanto sinto mais fadiga,
E queimo mais o sentido.
Ora vdes vs quMie isto?
Fallae eram a bem do feito.
Requerei vosso direito,

FARAS.

185

Pois vos ja pozostes nisto,


E fareis vosso proveito.
Amad.O asno, senhor Juiz,
Qu'estes vem a demandar,
A mi o haveis de julgar,
E o direito assi o diz.
Porque eu sam namorado,
E este asno canta coma anjo,
E sera gran desarranjo
No me ser logo julgado ;
E mais entende mui bem
E responde por acenos.
Bail. Juiz, elle o merece menos :
Eu bailei em Santarem
Sendo os Iifantes pequenos.
E bailei no Sardoal,
E de contino me vem
Bailar sem haver alguem
Que me ganhe em Portugal.
Ora olhae esta maneira
Pera bailar com mulher ;
E sabeis como se quer?
Sempre a volta assi ligeira.
(Em quanto este baila o Preguicoso dorme e
ronca, e o Namorado canta e suspira,
diz o)
Ferr.
Ora eu quarenta annos hei;
E vi muitos homens ja,
E andei per ca e per l,
Mas eu nunca tal topei.
Ah corpo de Sancto Dario !

186

OBRAS DE GIL VICENTE.

Serem de hum pae gerecidos,


E de hua mesma me n acidos,
Cada hum com seu veairo !
Preneta, ou que demo sera ?
Bail. Hou Juiz, sahi vs ca,
Dareis ha volta comigo.
Pero. Pardeos, baila tu, amigo,
E salta ats qu'eu l va.
Tens bem de comer comtigo.
(Vem o outro irmo, a que chamo Fero
JBrigoso, com sua espada nua ecapa nobrao, como que sahio "algua briga, e diz:)
Brig.
Bem basta a hum homem so
Saltarem com elle cinco ;
Mas quatorze ! no he brinco :
Porm sacudi-lhe eu o po,
Como soio quando arrinco.
Seis delles no escaparo,
Que vo muito acutilados ;
Os cinco vinho armados,
Feitos malha de Milo,
Os tres trazio relquias,
E o corao de san Leo.
Dizia eu dando no cho :
Oh brao ! quo baixo ficas !
Eu trazer relquia ! nada.
E sabeis vs porque no?
Porque mato com rezo,
E quando levo da espada,
Treme a terra e abre o cho.
E se he sobre mulher,

FAJKJA3.

Glue merece ser servida,


Nem Heitor no me tem vida.
E quemeunque vul trouxer,
Nem por isso tem guarida.
E agora quatorze a mi,
Foi mui grande neicidade,
Porque saibo a verdade,
E o podem dizer assi
No ceo Sancta Trindade,
Que o certo em que me fundo
He despovoar-lhe o mundo :
E diga-lh'o quem quizer,
Inda que saiba ir ter
Ao inferno mais profundo.
Ainda l farei fataxas,
QVeu no hei d'ir sem espada.
Ento tanta cutilada,
Estocadas altas, baxas,
Nesses diabos pancadas,
Cutiladas polo ar,
Polas nuvens, por estrellas.
Trezentas e trinta querellas
Tenho inda por purgar,
E de mortes todas ellas.
Sois vs, senhor. Juiz?
Pero. E pois quem no ha de ser?
Brio. Ora pois eu quero ver
Se sois juiz, se buiz.
Que pouco m'hei de deter.
Este asno deve ser meu,
E vs assi m'o julgae,

187

188

OBRAS DE GIL VICENTE.

Que eu fui honra de meu pae,


E assi o provarei eu.
O asno, Juiz, me dae.
K seno...
Pero.
Como seno?
Brio. Seno, no sei que vos diga.
Pero. Cuidei que era isso briga.
No sejais sandivarro,
Qu'eu tambem no sou formiga
Tende vs em vs aviso,
Ou darei tantas em vs,
Que vos faa ter mais siso.
Brig. No folgaria eu com isso,
Mas pezar-m'hia, pardeos.
O que quizerdes julgar,
Isso seja, isso quero.
Pero. Vs vindes to bravo e fero
Como se fosseis o mar,
Ou em crueldade Nero.
No faamos mais detena.
AMAD.Ovue julgais, Juiz honrado?
Pero. Julgo por minha sentena
Que o asno seja citado
Pera a primeira audiena.
Em tanto podeis cantar
E bailar e espreguiar,
Qu eu vou buscar de comer.
E quem de mim mais quizer
Caminhe e va-me buscar.
(Sahiro-se todos cantando a seguinte cantiga.)

FARAS.
Vamos ver as Cintrans,
Senhores, nossa terra,
Que o melhor est na serra.
As serranas Coimbrans
as da Serra da Estrella,
Por mais que ninguem se vela,
Valem mais qne as cidadans :
So pastoras to louans,
Que a todos fazem guerra
Bem desde o cume da serra.

189

FARA WS CIGAMS.
FIGURAS.
MARTINA,

CASSANDRA,

LUCRECIA, GIRALDA,

Ciganas. lirerto, claudio, carmelio,


auricio, Ciganos.
A seguinte farca foi representada ao muito
alto e poderoso Rei D. Joo, o terceiro deste
nome, em a sua cidade d'Evora, era do Redemptor 1521.
(Entro quatro ciganas, Martina, Cassandra,
Lucrecia, Giralda, e diz)
Martina.
senurez hermuzuz.
!VLLantenga, fidalguz
Cassandra.
Dadnuz limuzna pur la amur de Diuz ;
Ciistianuz sumuz, veiz aqui la cruz.
Lucrecia.
La Vrgen Maria uz haga dichuzuz,
Dadnuz limuzna, seuruz pudruzuz,
Tantico de pan, har la mezura.
Martina.
O preciuza rozua seuura,
El cielo vuz cumpla deseuz vuestruz.

FARCAS.

191

Cassandra.

Dadme una camizu azucal colado


Nieve de eira, firmal preciuzo.
Lucrecia.

Dadme una saya, seur graciuzo,


Lirio de Grecia, mi cielo estrellado.
GlRALDA.

Seura, seuura, dadme un tocado,


Antucha del cielo, sin cera y pavilo.
O ruza naeida en ribera del Nilo,
La Vrgen traya buen sio y buen hado.
Lucrecia.

Andad ac, hermanaz, y vamuz


A estas seuraz de gran hermuzura;
Diremuz el sino, la buena ventura,
Daran sus mercedes para que comamuz.
Cassandra.
Llainemuz Claudio antes que nuz vamuz,
-Carmelio, Auricio y haremuz fiesta,
Como hecimuz ayer por la siesta :
V llamarluz y nuz esperamuz.
( Vem os quatro ciganos, Liberto, Cludio, Car
melio, Auricio.)
Claudio-

Cual de voz otroz, seimrez,


Trocar un rocin mio,
Rocin que hubo de un judio
Ahora en pscoa de florez,
Y tengo dos especialez
Caballoz buenoz que talei-

192

OBRAS DE GIL VICENTB.


AlJBICIO.

Seurez, yo trocar un potro.


Que tengo, por eualquier otro.,
Si me volveiz mil realez.
Carmelio.
Que dos burricos compre
Moriscoz prietos garridoz ;
Ya loz hubiera vendidoz,
Mas antes loz trocar.
ClAUDIO.

Oh seurez caballeroz,
Mi rocin tuerto os alabo,
Porque es calzado nel rabo,
Zambro de los piez trazeroz ;
Tieue el peeho muy hidalgo,
Y cocea al eabalgar.
AuRICIO.

Seurez, quereiz trocar


Mi burra viega un galgo
Martina.
No noz curemuz. desaz faranduraz.
Claudio.
Puez que quereiz, Martina, que hagamoz ?
Martina.
Cantemos ta fiesta antez que noz vamoz
A buscar luz sinuz esas seuraz.
Cantiga.
En la cocina estaba el asno.
Bailando,
Y dijronme, don asno,
ii Que vos traen casamienta

PARCAS.

193

Y os daban en axuar
Una manta y un paramiento
Hilando.
(Cantando e bailando ao som desta cantiga se
forao s Damas, e diz)
Martina.
^ Mantenga sefuraz y rozas y ricaz.
e Grecia sumuz hidalgas por Duz.
Nuestra ventura que fue cuntra nuz,
Vox tierras: estraaz nuz tienen perdidaz.
Dadnos esmula, esmeraldaz polidaz.
<iue Diu vuz defienda dl amor de engao,
due muztra una raueztra y vende otro pao,
Y pone en peligro laz ulmaz y vidaz.
Lucrecia..
Seuraz, queieiz aprender hechizo,
due sepais hacer para tnuchaz cozaz ?
Giralda.
Escuchad aquello, seuras hermozaz,
Por la vida mia qu'ez vuestro servizo.
LlUCRKCIA.

Si vus, ra mia, holgados con iaa,


Hechizos sabreiz para que sepaiz
los pensamiento de cuantos miraiz,
due dicen, que encubren, para vuestro avizo.
Martina.
Otro hechizo, que pozaiz mudar
a voluntad de hombre cualquiera,
Por firme que est con fe verdadera,
Y vuz lo mudeiz a vuestro mandar.

"

194

OBBAS DE GIL VICENTE.


GlRALDA.

Otro hechizo os puedo yo dar


Con que pudaiz, seuraz, saber
Cual es e marido que habeiz de tener,
Y el dia y la hora que habeia de cazar.
Cassasdra.
Mustra la mano, seura,
No hayas ningun recelo.
Bendgate Diu! del cielo,
T tienez bnena ventura,
Muy buena ventura tienez,
Mnchuz bienez, muchuz bieneat.
Un hombre te quiere mucho,
Otroz te hablan de amurez ;
T, senura, no te curez
De dar mnchuz escuto.
Maxtina.
Dadnuz algo, preciuza.
Cassakbra.
Dadnuz algo, preciuza,
Puez que te digo tu sino,
Alguns poquita cuza.
Lucrecia.
Muztra la mano, rucia,
Lirio de hermozura,
Dirte he la buena ventura.
Mustra ca, senura mia,
Ora mustra acina acina.
Glu mano, que sino, que flurer !
Qu dama, que ruza, que perla '.
Por mi vida que por veria

F ARAS.
Olvide loa mn ftnmiri4.

Veamoz que dice el sino,


El recado que te vino
No lo creas, alma mia,
Clue otra mas alegra
Te viene ya por camino.
Durmiendo t, fresca ruza,
Te viene el bien por la mar,
Luego tienez el mirar
De doncella muy dichuza.
Giralda.
Dioz te gHarde hermozura,
Mustra la mano, seura;
Porn ciento contra treinta
Clue de los piez la cinta
Tienez la buena ventura.|
T has de ser despozada
En Alcazar de Zal;
Con hombre bien principal
Te verns bien empleada.
Martina.
Pintura de Policena
Dame ac, dulce serena,
Esa mano cristalina.
Buena dicha, perla fina,
Tienez la ventura buena ;
T has de ser alcaideza
Cierto tiempo en Montemor ;
Tu marido y tu amor
Ser bien celoza pieza.

195

196

OBRAS DE GIL VICENTE.


CaSS ivnn ..

Nueva ruza, nueva estrella,


O brancaz manoz de Izeu,
T cazars em Viseu
Y terns hornoz de tella.
Alli haz de edificar
Un muy rico palomar,
Y doz pares de molinoz,
Porque todoz los caminoz
A la puente van dar.
Lucrecia.
Dioz te guarde, linda llor,
Bendito sea el seor
Que tal hermosura cria.
Mustra la mano, alma mia,
Por vida del servidor.
Fiosanda cazaraz
Aqueste ano que vem
Em Santiago de Cacem,
Mucho rica, mucho bem.
Buena ventura hallarz,
Buena dicha, buena estrena,
Buena suerte, mucho buena,
Muchas carretas, seura,
Y mucha buena ventura,
Placiendo la Madalena
Que guarde tu hermozura.
GlRALDA.

Muestra la mano, mi vida,


Aguela en tierras desiertai
Dos personaz tracz muertaz,

FAHA8.
Porque erez desgradecida.
T cazars en Alvito,
Seura, marido rico,
Muchos hijos, muchos bienes,
Mucho luenga vida tienez,
Buen sino. bueno bendito.
Martina.
Mis ojos de azor mudado,
Mustrame la mano, hermana :
O mi seura Sant'Anna,
Qu sino, que suerte, que hado !
Qu ventura tan dichuza,
T seura graciuza.
Ternaz tierras y ganados,
Cuatro hijos mucho honrados,
Mucho oro y mucha coza.
Cassandra.
O mi ave fnix linda,
Mi sibila, mi seura,
Dame ac la mano ahura.
Hermozura de Esmerinda
Tu tienez muchos cuidados,
Y algunos desviados
De tu provecho, alma mia.
Tienez alta fantasia,
Y los mundos son mudados.
Un travesero que tienez,
De dentro dl hallarz
Un espejo en que verz
Muy claro todos tus bienez.

197

198

obras se cil vicente.

Luchecia.
Dad ac, garza real,
Gridonia natural,
Dir la buena ventura.
Viva tu gran hermozura,
Que esta mano ez divinal.
Unaz personaz te ayudan
A una coza que quierez ;
Estas son dambas mugerez,
Y otraz doz te desayudan.
Date un poquito vagar,
Glue aun est por comenzar
Lo bueno de tu ventura.
Confia en tu hermuzura,
Que ella te ha de descanzar.
Giralda.
Dad ac, Mayo florido,
Eza mano melibea.
Por bien, seura, te sea
Buen marido, buen marido.
Na Landera cazarz,
Nunca te arrepentirz,
Y irz morar Pombal,
Y dentro en tu naranjal
Un gran tesoro hallarz.
El que ha de ser tu marido
Anda ahora trasquilado,
Mucho honrado, mucho honrado,
En muy bien sifio nacido.
Naciste en buena ventura.

FARCAS,

199

Martina.
Huerta de la hermozura,
Cirne de la mar salada,
Dioz te tenga bien guardada
Y muy segura.
Cassandra.
Sefuraz, con benedicion
Os quedad, puez no dais nada.
Lucrecia.
No vi gente tan honrada
Dar tan poco galardon.
Tornrao-se a ordenar cm ma dama, ecom
eUa se forSo.

FAMA DOS ALMOCREVES.


FIGURAS.
FIDALGO.

PAGEm.

CAPELLO.

OURIVES.

pero vaz, vasco apPonso, Almocreves.


outro Pidalgo.
Esta seguinte fara foifeila e representada
ao muito poderoso e excellente Rei D. Joo, o
terceiro em Portugal deste nome, na sua ci
dade de Coimbra na era do Senhor de 1526.
O fundamento desta fara he, que hum fi
dalgo de muito pouca renda usava muito es
tado, e tinha capeUo seu e ourives seu, e ou
tros officiaes, aos quaes nunca pagava : e vendo-se o seu Capello esfarrapado e sem nada
de seu, entra dizendo :

Cap.

1 ois que no posso rezar,


Por me ver to esquipado,
Por aqui por este arnado
Qkiero hum pouco passear
Por espaar meu cuidado.
E grosarei o romance
De Yo me estaba en Coimbra,
Pois Coimbra assim nos cimbra,
Que no ha quem preto alcance.

FAnAS.

201

Grosa.
Yo me estaba en Coimbra,
Oidivlc bem aaenntna

Pelos campos de Mondego


No vi palha nem cevada.
Q.uando aquillo vi mesquinho,
Entendi que era cilada
Contra os cavallos da corte
E minha mula pellada.
liogo tive a mao sinal
Tanta milhan apanhada,
E a peso de dinheiro
O mula desemparada.
Vi vir ao longo do rio
Hua batalha ordenada,
No de gente, mas de mus,
Com muita raiva pisada.
A carne est em Bretanha,
E as couves em Biscaia.
Sam capello d'hum fidalgo
Que no tem renda nem nada ;
Quer ter muitos apparatos,
E a casa anda esfaimada ;
Toma ratinhos por pagens,
Anda ja a cousa damnada.
Quero-lhe pedir licena,
Pague-me minha soldada.
(Chega o Capello a casa do Fidalgo, efollando
com elle, diz:)
Cap.
Senhor, ja sera rezo...
Fid. Avante, padre, fallae.

202

Cap.

OBRAS DE Gil VICENTE.

Digo que em tres annos vai


Que sam vosso capello.

FlTl.

TTp granel vodado : arallic*

Cap.

Eu fora ja do Iffante,
E pudera ser que d'lRei.
A bofe, padre, no sei.
Si, senhor, qu'eu sou d'estante,
Aindaque ca m'empreguei.
Ora pois veja, senhor,
Que he o que nt^ha de dar,
Porque alem do altar
Servia de comprador.
No vo-lo hei de negar :
Fazei-me hua petio
De tudo quanto requereis.
Senhor, no me prolongueis,
Glu'isso no traz concruso,
Nem vejo que a quereis.
Porque me fiz polo vosso
Clericus ti ncgociatores.
Assi vos dei eu favores,
E disso pouco qu'eu posso
Vos fiz mais que outros senhores :
Ora hum clerigo que mais quer
De renda nem d'outro bem,
Que dar-lhe homem de comer,
Que he cada dia hum vintem,
E mais muito a seu prazer?
Ora a honra que se monta
He capello de fuo !
E do vestir no fazeis conta?

Fid.
Cap.

Fid.

Cap.

Fid.

Cap.

FAKAS.

Fid.

Cap.

Fm.
Cap.

E esse comer com paixo,


E dormir com tanta affronta,
Que a coroa jaz no cho,
Sem cabeal, e hua hora
E missa sempre de caa?
E por \os cair em graa
Servia-vos tambem de fora,
T comprar sibas na praa.
E outros crregosinhos
Deshonestos pera mi.
Isto, senhor, he assi.
E azemel nesses caminhos,
Arre aqui e arre alli,
E ter crrego dos gatos, -'* "
E dos negros da cozinha,
E alimpar-vo-los sapatos,
E outras cousas qu'eu fazia.
Assi fiei eu de vs
Toda a minha esmolaria,
E daveis polo amor de Deos,
Sem vos tomar conta hum dia.
Dos tres annos qu'eu allego,
Da-la-hei logo sem pendenas:
Mandastes dar a hum cego
Hum real por endoenas.
Eu isso no vo-lo nego.
E logo dahi a hum anuo,
Pera ajuda de casar
Hua orfan, mandastes dar
Meio covado de panno
D'Alcobaa por tosar.

203

>

204

OBRAS DE GIL VICENTE.

E nos dous aimos primeiros


Repartistes tres pescadas
Por todos esses mosteiros,
Na Pederneira compradas
Daquestes mesmos dinheiros.
Ora eu recebi cem reaes
Em trss annos, contae bem,
Tenho aqui meio vintem.
Fid. Padre, boa conta dais.
Ponde tudo n'hum item,
E fallae ao meu Doutor,
Que elle me fallar nisso.
Cap. Deixe Vossa Merc isso
Pem ElRei nosso senhor,
E vs fallae-me de siso.
Que como, senhor, me ficastes
(Isto dentro em Santarem)
De me pagardes mui bem...
Fid. Em quantas missas m'achastes?
Das vossas digo eu porm.
Cap. Que culpa vos tem amora?
Por vs esto ellas nos ceos.
Fid. Mas tomae-as para vs,
E guardae-as muhVembora,
Ento pague-vo-las Deos :
Que eu no gasto meus dinheiros
Em missas atabalhoadas.
Cap. E vs fazeis foliadas
E no pagais gaiteiro ?
Isso so balcarriadas.
Se vossas mercs no ho

FARAS.

Fid.

Cap.

Fid.

Cap.
Fid.
Cap.
Fid.
Cap.

Cordel pera tantos ns,


Vivei vs quem de vs,
E no compreis gavio,
Pois que no tendes pios.
Trazeis seis moos de p
E acrecentai-los a capa,
Coma rei, e por merc,
No tendo as terras do Papa,
Nem os tratos de Guin,
Antes vossa renda encurta
Coma panno d' Alcobaa.
Todo o fidalgo de raa,
Emque a renda seja curta,
He por fra qu"isso faa.
Padre, mui bem vos entendo :
Foi sempre a vontade minha
Dar-vos a ElRei ou Rainha.
Isso me vai parecendo
Bom trigo, se der farinha.
Senhor, se m'isso fizer,
Grande merco me far.
Eu vos direi que ser :
Dizei agora hum profaceo, a ver
Que voz tendes pera l.
Folgarei eu de o dizer;
Mas quem me responder ?
Eu.
Per omnia secula secuhrum.
Amen.
Dominus vobisciim.

205

20G

Fid.
Cap.
Fid.

OBRAS SE GIL VICENTE.

Avante.

Sursum corda.
Tendes essa voz to gorda,
Que pareceis alifante
Depois de farto d'aorda.
Cap.
Peor voz tem Simo Vaz,
Thesoureiro e capello
E peor o Adaio,
Oue canta como alcatraz,
E outros que por hi esto.
Quereis que acabe a cantiga,
E vereis onde vou ter.
Fid. Padre, eu hei de ter fadiga,
Mas d'ElRei haveis de ser :
Escusada he mais briga.
Cap.
Sabeis em que est a contenda?
Direis : He meu capello :
E ElRei sabe a vossa renda,
E rir-se-ha se vem mo,
E remetter-m'ha Fazenda.
Fid. Se vs freis entoado.
Cap. Que bem posso eu cantar
Onde do sempre pescado,
E de dous annos salgado,
O peor que ha no mar?
( Vem hum Pagem do Fidalgo, e diz :)
Pag.
Senhor, o orives s'he alli.
Fid. Entre- Querer dinheiro.
Venhais embora cavalleiro :
Cobri a cabea, cobri.
Tendes grande amigo em mi,

FARAS.

207

E mais vosso pregoeiro.


Gabei-vos hontem a ElRei
Quanto se pode gabar,
E sei que vos ha de occupar,
E eu vos ajudarei
Cada vez que m'hi achar.
Porque s vezes estas ajudas
So melhores que cristeis,
Porque so a fama que haveis,
E outras cousas meudas
O que valem ja sabeis.
Our. Senhor, eu o servirei
E no quero outro senhor.
Fid. Sabeis que tendes melhor?
(Eu o dixe logo a ElRei,
E faz em vosso louvor:)
No vos d mais que vos paguem,
Glue vos deixem de pagar.
Nunca vi tal esperar,
Nunca vi tal avantagem,
Nem tal modo de agradar.
Ocr. Nossa conta he to pequena,
E ha tanto que he devida,
Que morre de promettida,
E peo-a ja com tanta pena,
Que depenno a minha vida.
Fid.
Ora olhae esse fallar
Como vai bem martelado !
Folgo no vos ter pagado,
Por vos ouvir martelar
Marteladas de avisado.

208

Our.
Fid.

Our.
Fid.
Our.
Fid.
Our.

Fid.

Our.
Fid.
Our.

Fid.
Our.

Fid.

OBRAS DE 61L VICENTE.

Senhor, bejo-vo-las mos,


Mas o meu queria eu na mo.
Tambem isso he cortezo :
i Senhor, beijo-vo-las mos,
O meu queria eu na mo.
Que basties to louos !
Quanto pesava o saleiro?
Dous marcos bem, ouro e fio.
Essa he a prata : e o feitio?
Assaz de pouco dinheiro.
Gtue val com feitio e prata?
Justos nove mil reaes.
E no posso esperar mais,
Que o vosso esperar me mata.
Rijamente m'apertais.
E fazeis-me mentiroso,
Qu'eu gabei-vos d'outro geito ;
E s'eu tornar ao defeito,
No sera proveito vosso.
Assi que o meu saleiro peito?
Elle he dos mais maos saleiros,
Glue em minha vida comprei.
Ainda o eu tomarei
A cabo de tres janeiros
Que ha que vo-lo eu fiei.
J'agora no he rezo ;
Eu no quero que vs percais.
Pois porque me no pagais?
Que eu mesmo comprei carvo
Com que me encarvoiais.
Moo, vae-me ver o que faz ElRei,

FARA9.
Se parecem Damas l :
Este dia no se va
Em pagars, no pagarei.
E vs tornae outro dia ca.
Se no achardes a mi,
Fallae c'o meu Camareiro,
Porque elle tem o dinheiro,
Que cada anno vem aqui
Da renda do meu celeiro ;
E delle recebereis
O mais certo pagamento.
Our. E pagais-me ahi c'o vento,
Ou com as outras mercs?
Fid. Tomae-lhe vs l o tento.
(Indo-se o CapeUo, vai dizendo :)
Cap.
Estes ho d'ir ao paraso?
No creio eu logo nelle.
Eu lhes mudarei a pelle :
Daqui avante siso, siso,
Juro a Deos que m'abroquele.
(Vem o Pagem com recado e diz :)
Pag.
Senhor, in-Rei s'he no Pao.
Fid. Em que casa?
Pag.
Isto abasta.
Fid. O recado qu'elle d !
Ratinho es de ma casta.
Pag. Abonda, bem sei eu o qu'eu fao.
Fid. Abonda ! olhae o villo.
Damas parecem per hi ?
Pag. Si, senhor, damas vi,
Andavo pelo balco.

209

210

Fid.
Pag.
Fid.
Pag.
Fid.

Pag.

Fid.

Pag.

Fid.
Pag.

Cap.

OBRAS DE GIL VICENTE.

E quem ero?
Damas mesmas.
Como as chamo ?
No as chamava ninguem.
Ratinhos so abantesmas,
E quem por pagens os tem.
Eu hei de fazer por haver
Hum pagem de toa casta.
Ainda eu hei de crescer :
Castio sam eu que basta,
Se me Deos deixa viver.
Pois o mais o deprenderei,
Como outros como eu per hi.
Pois faze-o tu assi,
Porque has de ser d'ElRei,
Moo da Camara ainda.
Boa foi logo ca a vinda.
Assi que at os pastores
Ho de ser d^lRei samica !
Por isso esta terra he rica
De po, porque os lavradores
Fazem os filhos paes.
Cedo no ha de haver vHlos :
Todos d'ElRei, todos d'ElRei.
E tu zombas?
No, mas antes sei
Glue tambem alguns christos
Ho de deixar a costura.
(Torna o Capelluo)
Vossa Merc por ventura
Fallou ja a El Rei em mi ?

FARAS.
Fid.
Cap.

211

Ainda geito no vi.


No seja to longa a cura
Como o tempo que servi.
Fid. Anda ElRei to occupado
Co'este Turco, co'este Papa,
Co'esta Frana, co'esta trapa,
GUie no acho vao azado,
Porque tudo anda solapa.
Eu entro sempre ao vestir ;
Porm pera arrecadar
Ha mister grande vagar.
Podeis-me em tanto servir,
At qu'eu veja logar.
Cap. Senhor, queria concruso.
Fid. Concruso quereis? Bem, bem,
Concruso ha em alguem.
Cap. Concruso quer concruso,
E no ha concruso em nada.
Senhor, eu tenho gastada
Hua capa e hum manto:,
Pagae-me a minha soldada.
Fid. Se vos podesseis achar
A altura de Leste a Oeste,
Pois no tendes voz que preste,
Perequi era o medrar.
Cap. E vs pagais-me c'o ar ?
Mao caminho vejo eu este.
(^'ai-se.)
Pao.
Deve-o ElRei de tomar,
&ue lucta coma damnado.
Elle he do nosso logar ;
De moo guardava gado,

212

OBRAS DE GIL VICENTE.

Agora veio a bispar.


Mas no sinto capello
Que lhe chante hum par de quedas,
E chama-se o Labaredas.
Fid. E ca chama-se Coto,
Mais fidalgo que os Azedas.
Satisfao me pedia,
Que he peor de fazer
Que queimar toda Turquia ;
Porque do satisfazer
Nasceo a melancholia.
(Vem Pero Vaz, almocreve, que traz hum
pouco de fato do Fidalgo, evem tangendo
a chocalhada e cantando :)
Pero. A serra he alta, fria e nevosa,
Vi venir serrana gentil, graciosa .
Arre, mulo namorado,
Que custaste no mercado
Sete miUe novecentos
E hum traque pera o siseiro.
Apre, ruo, acrecentado
A moradia de quinhentos,
Paga per Nuno Ribeiro.
Dix, pera a paga e pera ti.
Arre, arre, arre embora,
Glue ja as tardes so d'amigo.
Apre, besta do ruim.
Uxtix ! o atafal vai por fora
E a cilha no embigo.
So diabos pera os ratos
Estes vinhos da Candosa.

FAKAS.

213

A serra he alta fria e ncvosa,


Vi venir serrana, gentil, graciosa.
Apre ca ieram,
GUie te vas todo torcendo,
Como jogador de bola.
Uxtix, uxte xulo ca,
Que t'eu dou irs gemendo
E resoprando sob a cola.
Ao corpo de mi Tareja,
Descobris-vos vs na cama.
Parece ? Dix, pera vossa ama :
No criars tu hi vareja.
Vi venir serrana, gentil, graciosa,
Cheguei-me perfila con gran cortezia.
Mando-vos eu suspirar
Pola padeira d' Aveiro,
Glue haveis de chegar venda,
E ento alli desalbardar,
E albardar o vendeiro,
Se no tiver que vos venda
Vinho a seis, cabra a tres,
Po de calo, filhos de manteiga,
Moa formosa, lenoes de veludo,
Casa juncada, noite longa,
Chuva com pedra, telhado novo,
A candeia morta, gaita porta.
Apre, zambro, empears.
Olha tu no te ponha eu
culos na rabadilha,
E vers per onde vs,

214

OBRAS DE GIL VICENTE.

Demo que t'eu dou por seu,


E andars l de cilha.
Cheguei-me a ella de gran cortezia,
Disse-lhe : Senhora, quereis companhia.
( Vem Vasco Affonso, outro almocreve, e topose ambos no caminho :)
Pero.
Hou, Vasco Affonso, onde vs?
Vasco Uxtix, por esse cho.
Pero. No traes chocalhos nem nada?
Vasco Furtro-m'os l detraz
Hum fideputa ladro
Na venda da repeidada.
Pero. Hi bebemos ns vinda.
Vasco Cujo he o fato, Pero Vaz?
Pero. D'hum fidalgo. Dou diabo
O fato e o seu dono co'elle.
Vasco Valente almofreixe traz.
Pero. Toma o mu de cabo a rabo.
Vasco Pardcos, crrega leva elle.
Pero.
Uxtix, agora no pacero elles,
E l por essas charnecas
Vem roendo as urzeiras.
Vasco Leix'os tu, Pero Vaz, qu'elles
Acho aqui as hervas seccas,
E no comem giesteiras.
E quanto te do por bsta?
Pero. No sei, assi Deos m'ajude.
Vasco No fizeste logo o preo?
Mal has tu de livrar desta.
Pero. Leixei-o em sua virtude,
No qu'elle vir qu'eu mereo.

FARAS.
Vasco

215

Em sua virtude o leixaste ?


E tra-la elle comsigo,
Ou ha d'ir busc-la ainda ?
Oh que aram te fretaste !
Queres apostar comigo
Que tu renegues da vinda ?
Pero. Elle poz desta maneira
A mo na barba e me jurou
De meus dinheiros pag-los.
Vasco Essa barba era inteira
A mesma em que te jurou,
Ou bigodezinhos ralos ?
Pero.
Ora Deos sabe o que faz,
E o Juiz de Samora :
De fidalgo he manter f.
Vasco Bem sabes tu, Pero Vaz,
Que fidalgo ha ja agora,
Que no sabe se o he.
Como vai a ta mulher
E todo teu gasalhado ?
1'ero. O gasalhado hi ficou.
Vasco E a mulher?
Pero.
Fugio.
Vasco
No pde ser !
Como estars magoado,
Ieram !
Pero.
Bof no estou.
Uxtix, sempre has d'andar
Debaixo dos sovereiros ?
(Para o mulo.)
E a mi que me d diso ?

2ift

OBRAS DE GIL VICENTE.

Vasco Por fora t'ha de pezar


Se rirem de ti os vendeiros.
Pero. Nao tenho de ver co'isso.
Vae, Vasco Affonso, ao teu mu,
Glue se quer deitar no chao.
Vasco Peza-te, mas desingulas.
Pero. Nao peza ; bem sabes tu
Que as mulheres nao sao
Todo o Vcro senao pulgas.
Isto he quanto saudade
Q-ue eu della posso ter ;
E quanto ao rir das gentes,
Ella faz sua vontade ;
Foi-se per hi a perder,
E eu no perdi os dentes.
Ainda aqui estou inteiro,
Vasco Affonso, como d'antes,
Filho de Affonso Vaz,
E neto de Jan Diz pedreiro,
E de Branca Annes d'Abrantes.
Nao me faz nem me dasfaz.
Do que me fica gran d,
Glue teve razo de s'ir,
E em parte nao he culpada :,
Porque ella dormia so,
E eu sempre ia dormir
Cos meus mus Meijoada.
Glucria-a eu ir poupando
Pera l pera a velhice,
Como colcha de Medina ;
E ella, mosca Fernando,

FARAS.

217

Quando vio minha pequice,


Foi descobrir outra mina.
Vasco E agora que fars?
Pero. Irei dormir Cornaga,
E manhan Cucanha;
E tu vae, embora vas,
(iu,eu vou servir esta praga,
E veremos que se ganha. .
(Vai cantando.)
Disse-lhe, senhora, quereis companhia ?
Disse-me, Escudeiro, segui vossa via.
Pag.
Senhor, o almocreve he aquelle,
Que os chocalhos ouo eu :
Este he o fato, senhor.
Fid. Ponde todos cobro nelle.
Pero. Uxtix, mulo do judeu !
O fato hu s^a de por ?
Pag. Venhais embora, Pero Vaz.
Pero. Mantenha Deos vossa merc.
Pag. Viestes polas Folgosas ?
Pero. Ahi estive eu hoje faz
Oito dias p por p,
Em casa d'huas tias vossas.
Pag.
Ora meu pae que fazia ?
Pero. Cavando andava bacelo,
Bem cansado e bem suado.
Pag. E minha me ?
Pero.
Levava o gado
L pera Val de Cobelo,
Mal roupada qu'ella ia.
Uxtix, que mao lambaz !
7

218

OBRAS DE GIL VICENTB.

E. vossa merc que faz?


Pag. Estou louo como que.
Pero. E bofe creceis assaz.
Saude que vos Deos d.
Pag.
Eu sam pagem de meu senhor,
Se Deos quizer pagem da lana.
Pero. E hum fidalgo tanto alcanca.'
Isso he d'Imperador.
Ora prenda ElRei de Frana.
Pag. Ainda eu hei de chegar
A cavalleiro fidalgo.
Pero. Pardeos, Joo Crespo Penalvo,
Que isso seria esperar
De mao rafeiro ser galgo.
Mais fermoso est ao villo
Mao burel, que mao frisado,
E romper matos maninhos;
E ao fidalgo de nao
Ter quatro homens de recado,
E leixar lavrar ratinhos.
Qu'em Frandes e Alemanha,
Em toda Frana e Veneza,
Que vivem por siso e manha,
Por no viver em tristeza,
No he como nesta terra ;
Porque o filho do lavrador
Casa l com lavradora,
E nunca sabem mais nada,
E o filho do broslador
Casa com a brosladora :
Isto per lei ordenada.

FARCAS.

E os fidalgos de casta
Servem os reis e altos senhores,
De tudo sem presumpo,
To chos, que pouco lhes basta.
E os 'filhos dos lavradores
Pera todos lavro po.
Pag.
Quero ir dizer de vs.
Pebo. Ora ide dizer de mi:;
Que se grave he Deos dos ceos,
Mais graves deoses ha aqui.
(Ao Fidalgo.)
Pag. Senhor, alli vem o fato,
E est porta o almocreve :
Vde quem lhe ha de pagar
Isso tal que se lhe deve.
Fip.
Isto he com que m,eu mato.
Quem te manda procurar?
Attenta tu polo meu,
E arrecada-o muito bem,
E no cures de ninguem.
Pag. Elle he d'apar de Viseu,
E homem que me pertem;
Pois a porta lhe abri eu.
(Entra dentro o almocreve e diz :)
Pero.
Senhor, trouxe a frasearia
Do vossa merc aqui.
Hi esto os mus albardados.
Fid. Essa he a mais nova arabia
D'almocreve que eu vi :
Dou-te vinte mil cruzados.
Pero. Mas pague-me vossa merc

219

OBBAS DE GIL VICENTE.

O meu aluguer, n mais,


Que me quero logo ir.
Fid. O aluguer quanto he ?
Pero. Mil e seis centos reaes, .
E isto por vos servir.
Fid.
Fallae c'0 meu azemel,
Porque he doutor das bstas
E astrologo dos mus,
Que assente em hum papel
Per avaliaes honestas
O que se monta : ora sus.
Porque esta he a ordenana
E estilo de minha casa ;
E se o azemel for fora,
Como cuido que he em Frana,
Dareis outra volta massa,
E ir-vos-heis por agora.
Vossa paga he nas mos.
Pero. Ja a eu quizera nos ps,
O pesar de minha me.
Fid.
E tens tu pae e irmos?
Pero. Pagae, senhor, no zombeis,
Que sou d'alem do serto,
E no posso ca tornar.
Fid. Se ca vieres corte,
Pousars aqui c^s meus.
Pero. Nunija mais hei de fiar
Em fidalgo desta sorte,
Emque o mande San Matheus,
Fid.
Faze por teres amigos,
E mais tal homem comou,

F ARAS.

221

Porque dinheiro he hum vento.


Pero. Dou eu ja 6 demo os amigos
Que me a mi levo o meu.
(Vai-se o almocreve, e vem outro Fidalgo, e
diz o)
F. 1. Oh que grande saber vir,
E que gran saber-me a vontade !
F. 2. Pois, senhor, que vos parece?
Desejo de vos servir,
E no quero que venha cidade
Hum quem no parece esquece.
F. l. Paguei soma de dinheiro
A hum ourives agora,
De prata que me lavrou,
E paguei, a hum recoveiro,
Qbuc he a dar dinheiros fora
A quem no sei como os ganhou.
F. 2. Ganho-nos to mal ganhados,
Que vos roubo as orelhas.
F. 1 . Pola hostia consagrada
E polo Deos consagrado,
Que os lobos nas ovelhas
No do to crua pancada.
Polos sanctos avangelhos,
E polo omnium sanctorum,
Que at o meu capello,
Por mezinhas de coelhos
E hua secula seculorum,
Lhe dou por missa hum tosto.
No ha ja homem em Portugal,
To sujeito em pagar,

222

OBRAS DE GIL VICENTE.

Nem to forro pera mulheres.


F. 2. Guardae vs esse bem tal,
Que a mi ho-me de matar
Bem me queres mal me queres.
F. l. Por quantas damas Deos tem
No daria nem migalha.
Olhae que descubro isto.
F. 2. Sam to fino em querer bem,
GUie de fino tomo a palha,
Pola f de Jesu Christo.
Gtuem quereis que veja olhinhos,
Que se no perca por elles,
L per huns geitinhos lindos,
Que vos mettem em caminhos,
E no ha caminhos nelles,
Seno espinhos infindos ?
F. l. Eu ja no hei de penar
Por amores de ninguem ;
Mas dama de bom morgado,
Aqui vai o remirar,
Aqui vai o querer bem,
E tudo bem empregado.
Que porque dance mui bem,
Nem bailar com muita graa.
Seja discreta, avisada,
Fermosa quanto Deos tem
Senhor, boa prol lhe faa,
Se seu pae no tiver nada."
No sejais vs to Maneias,
i
Que isso passa ja d'amor,
E cousas desesperadas.

FARAS.

223

F. 2. Porm l por vossas vias


Vou-vos esperar, senhor,
A rendeiro das jugadas.
Porque galante caseiro
He pera por em historia.
F. 1 . Mas zombae, senhor, zombae.
F. 2. Senhor, o homem inteiro
No lh'ha de vir memoria
Co,a dama o de seu pae ;
Nem ha mais de desejar
Nem querer outra alegria,
Glue so Los tus cabellos nina.
No ha hi mais que esperar
Onde he esta cantiguinha.
E, Todo o mal he de .quem no iem.
E, Se o disserem digo Alma minha"
Quem vos anojou, meu bem :
Hei os todos de grosar,
Ainda que sejo velhos.
F. l. Vs, senhor, vindes to bravo,
Que eu hei-vos medo ja.
Polos sanctos evangelhos
Que levais tudo ao cabo,
L onde cabo no ha.
F. 2. Zombais e dais a entender
Zombando, que m'entendeis.
Pois de vs mui alto estou,
Porque deveis de saber
Que se d'amor no sabeis,
No podeis ir onde eu vou.
Quando fordes namorado,

224

OBRAS DE GIL VICENTE.

Vireis a ser mais profundo,


Mais discreto e mais subtil,
Porque o mundo namorado
He l, senhor, outro mundo,
Que est alem do Brasil.
Oh meu mundo verdadeiro !
Oh minha justa batalha !
Mundo do meu doce engano !
F. 1 . Oh palha do meu palheiro,
Que tenho. hum mundo de palha,
Palha ainda d'ora a hum anno ;
E tenho hum mundo de trigo
Pera vender a essa gente.
Boa cabea tem Morale.
No quero d'amor, amigo,
Andar gemente e flente
In hac lacrymarum valle.
F. 2. Vou-me ; vs no sois sentido,
Sois mui duro do pescoo ;
No vale isso nem migalha :
Pesa-me de ver perdido
Hum homem fidalgo ensoo,
Pois tem a vida na palha.

O CLERIGO DA BEIRA.
FIGURAS.
HUM CLERIGO. FRANCISCO, Seu Filho. GON
ALO, trilio.
ALMEIDA, DUARTE, MoOS
do Pao.
HIIU NEGRO.
HUM A VELHA.
CEZILIA FEDREANES.
Segue-se outra fara de folgar, que trata
como hum Clcrigo da Seira, vespora do Na
tal, determinou d,ir aos coelhos ; e indo pera
a caa com hum filho seu] rzo as matinas.
Trata-se outro si de hum villo, que indo ven
der Cortc huma lebre e huns capes, c hum
cabaz com fruita, foi roubado, que at o cha
peiro lhe furtro : o qual furto foi descuberto por Cezilia demoninhada, em que dizio
que faltava hum Pedrcanes. Foi representada
ao muito poderoso e christianissimo Rei D.
Joo, o terceiro do nome em Portugal, em
Almeirim, era do Senhor de 1526.
(Entra o Clerigo com seu filho Francisco,
e diz o filho :)
Fran.

t os haveis de celebrar
Missa de festa em pessoa,
E no fazeis a coroa

226

Cjler.

Fran.
Cler.
Fran.
Cler.
Fran.
Cler.
Fran.
Cler.
Fran.

Cler.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Antes que vamos caar ?


Pois, pae, no haveis d'olhar
Que sois clerigo da Beira,
Porque a gente cabreira
Em tudo quer attentar.
Ta me m'a trosquiar,
No cures tu de conselhos ;
Cacemos ns dos coelhos,
Que isso noite se far.
Sabeis, pae, qu'esqueceo l
A furoa?
Vae por ella.
De hua legua hei d'ir traz-la?
Melhor viva eu que l va.
Pesar da ida e da vinda,
Vae, torna pola furoa.
Va l quem tiver coroa,
Glue eu no na tenho ainda.
Creio que a vara ha d'andar,
S,isso vai dessa maneira.
Eu no sou vossa oliveira
Glue a haveis de varejar.
Renego destas respostas :
Vae muito asinha.
Eu creio
Que cuidais que sou correio
Que vai e vem polas postas.
Cre tu se me a mim no fra
Glue ta me logo s'assanha,
Ja t'eu dera hua tamanha,
Que tu foras logo essora.

9ARCAS.

227

Requeiro-te que vas embora,


Ante que se assanhe o abbade.
Fran. Ainda eu no tenho vontade,
L he ella algures fora.
Cler. Vae, Francisco*
Fran.
Si, irs.
Ide vs : no tendes ps ?
Cler. Filho de clerigo es,
Nunca bo feito fars.
Fran.
Peores so os de Frei Mendo,
E os do Beneficiado,
Que vo tomar o bocado
Glue seu pae est comendo.
Cler. Vae, que ja est no cortio,
Seno tom-la e traz-la.
Fran. Ja ma ora vou por ella,
Mas hei de furtar chourio.
{Vai o mao pela furoa e fica o Clerigo ardre
si dizendo:)
Ci-er.
Medraria este rapaz
Na corte mais que ninguem,
Porque l no fazem bem
Seno a quem menos faz.
Outras manhas tem assaz,
Cada bua muito boa :
Nunca diz bem de pessoa,
Nem verdade nunca a traz.
Mexerica que por nada
Revolver 6an Francisco ;
<lue pera a Corte he hum visco,
ue caa toda a manada.

t-S

OBRAS DE GIL VICENTE.

(Vem o filho com afuroa, c diz:}


Fran. Ja minha me tem tascada
A regueifa do bautismo :
Andae vs ca, pae, ao bismo,
Que ella no lh'escapa nada.
Cler.
Rezemos matinas logo,
Antes que entremos caa;
Que como homem s'embaraa
Nella, no he seno fogo.
Fr AN. Matinas de ca da Beira,
Ou como quereis rezar?
Cler. Si, pera que he mudar
Cada dia hua maneira ?
Porque os capelles d'ElRei,
Q.ue ca na Beira tem renda,
Se rzo l d'outra lei,
Tem outra lei de fazenda.
Mas Deos d muita prebenda
A Antone Alvares, que he rezo
Que el!e e outros que l esto,
Nos leixro esta lenda.
Fran.
Nome de Deos comear.
Cler. Pater noster.
Fran.
Que siso!
Na caa pera que he isso,
Seno Domine labia? Andar.
Cler. Domine labia mca,
Tu priol a p irs.
Fran. Se cansares, assentar-te-has,
Pois que no tens facanea.
Cler. Veniie, exultemus,

PARCAS.
j

Q.ue ces c furo que tomos


Pera tempo de mister !
FrAN. Domine Dominus noster
Nos d com que os manter,
E coelhos que levemos.
Cler. Cedi enarrant gloriam Dei,
No cuide Papa nem Rei
GLue est no cume da serra.
Fran. Domini est terra,
,
Que he senhor de toda grei.
Cler . Ora te Deum- laudamus,
Pois que tal manhan levamos
Pera provarmos a perra.
Fran. Jubilate Deo, omnis terra:
Diz que rezemos e vamos.
Cler. Assi manda Deus, Deus meus,
E nos d dia par'elles.
Fran. Lauda Dominum de cedis,
Pois os coelhos so seus.
Cler. Cantatc: diz que cantemos
Cantar novo e no usado.
FrAn. Cante o Beneficiado,
Que ns pouco po colhemos.
Cler. Jjaudate Deum, omnes genies,
Laudate Nuno Ribeiro,
Que nunca paga dinheiro,
E sempre arreganha os dentes.
Fran. Lcvavi oculos meos,
Vi que os dinheiros alheios
Muitos os repartem crus.
Cler. Nisi guia Dominus

229

230

OBRAS DE Gil VICETTE.

Nos dar os melhores meios.


Fran. Qui confidunt in Domino
Tem esperana direita.
Cler. In convertendo boa peita
Deste tal no hajas d.
Fran. Seati omnes qiie tem,
CLue estes podem dizer bem
Lcetatw sum in iis.
Cler. Laudate, Hiiruialem,
A todo o homem que tem
Vintens, tostes e ceitis.
FrAH. Sospe expurgaverunt me:
Diz a lyra na sua grosa,
Que he cousa perigosa
Andares caa a p.
Cler. Se beato immaculato
M"emprestasse o seu mulato,
Mas no sei se querer.
Fran. Jam lucis orto si dar
Em que leves ti e o fato.
Cler. Dixii Dominus que tinha
Hua muito boa asuinha,
Non sede a dextris meis.
Fran. Dome ponam tem seis
E mais hua mulatinha ;
Vde se as havereis.
Cler. Iteaius vir que tem sendeir,
Glue lhe aparou Dews. dcorunc.
Fran. Habet emisiKum impiorum
No o emprestar sem dinheiro.
Cler. Deus m uomine iuo de graa.

F ARAS.
Fran.
Cler.
Fran.
Cler.
Fran.
Cler.

Fran.
Cler.
Fran.
Cler.
Fran.
Cler.
Fran.
Cler.

Fran.

Cler.

Salva-me na tua faca.


Com dous arrateis de vacca
Escusareis a caa.
Ir caa cada dia
Aleluia, aleluia.
Vamo-nos, a bom bispo,
Pedrada no teu toutio.
Orcmus.
Bem faremos.
Venho-me os ces,
As redes e o furo,
Mas o coelheiro no.
Que vives e reinas
Na villa do Pedrego.
Abem.
Requescani in pacem.
Maos pagadores te paguem.
Inducas in tentationem.
Responda-te Luiz Homem.
Exaudi orationes nostras.
Azambujo nessas costas.
Pater noster.
Torna a casa muito prestes
E leva esse breviairo.
Em dia de algum fadairo
Foi quando vs, pae, nacestes ;
Porm se eu l volver
Benzei-vos se ca vier.
Virs, Francisco ; ora vae,
Quc filho es de bom pae,
E ta me boa mulher.

, 231

232

OBRAS DE GIL VICENTE.

Dize-lhe que s'eu tardar,


Que ta 11j a a vespora e repique
Muito bem, porque no fique
A festa sem repicar.
E ha mister que correja
Muito bem essa igreja,
E as galhetas bem sabe ella
Que ho ja mister barrella ;
E olhe tudo e proveja.
Anda Tejo Fragueira.
E dirs a ta me mais,
Que me guarde os corporaes,
Que fico na cantareira.
E o calez achar
No almreo de ca
Atado c^re seus toucados,
E os amitos pendurados
Onde a minha espada est.
E a vestimenta achar
Dobrada sobre a albarda.
Que ponha tudo em guarda,
Como ella sabe ja.
E que alimpe bem a pia,
No asse sempre castanhas;
E tire as teas d'aranhas
mrtel Sancta Luzia.
E solte a cabra tambem,
Que est presa pela estola,
E logo no seja tola,
Que correja tudo bem.
Porque se Deos ca aportar

F ARAS.

233

Marcos Esteves da corte,


E achar tudo dessa sorte,
V-lo-heis vs espirar ai, ai.
A ribeira, que esse he elle,
Polos sanctos evangelhos ;
Ja lhe elle pruem os artelhos,
E se lhe escarrapia a pelle.
Co. Ham, ham.
Ci.er.
Guard'o cabro.
Co. Ham, ham.
Cler.
Ora, cadella.
Ca. Hao, hao.
Cler.
Ei-lo vai pola portella.
Sem cadella e sem co !
Oh renego da vida,
Perdoe-me Deos consagrado.
Algum grande excommungado
Me olhou minha partida.
(Vem hum filho cVhum lavrador, e iras hum
cesto cuberto e ha lebre c dous capes, e
chegando ao Clcrigo diz :)
Gon.
Ora Deos vos d prazer.
Cler. Que he isso que levas hi ?
Gon. Huns marmelos levo aqui,
Samicas pera vender,
E esta lebre pera haver
Dinheiro dos cortezes ; ,
E levo este par de capes,
E limes pera os comer,
Ovu'elles dinheiro tero.
Cler. Pois que vas vender corte,

'.34'

OBRAS SE GIL VICENTE.

Olha bem pelo virote,


No te fies de rasco.
Gon. E rasces que aves so?
Samicas so alguns bichos.
Cler. Mas so lobos pera michos,
E raposos de nao.
Gon.
Bem hei de saber vender.
Cler. E elles melhor comprar.
Se te puderem furtar
As orelhas, has de ver.
Gon. No me quero mais deter ,
Vou-me e Deos va comigo.
Cler. Olha bem por ti, amigo.
Gon. Bem sei o que hei de fazer.
(Entro dous moos do Pao muito louos,
hum chamado Duarte, outro Almeida, o
qual comea dizendo ao Duarte :)

Alm.
A tormenta da ma vida
Que eu levo neste Pao,
Sabes que conta lhe fao ?
GUie vou n'hua nao perdida,
Rota pelo espinhao.
Dear. Bom dizer he esse, porm
Dae a Deos tal apontar.
Alm. Isso no ser zombar?
Ja me disse no sei quem
Bem do vosso motejar.
Dcar.
Abasta : folguei de ver
Sair-vos Tullio do seio :
Muitos criar o centeio,
Mas poncos de tal saber.

FAUAS.
A lm. Logo vos foro duer
Qu'era eu ratinho, senhor.
Du ar. No sei, vs tomastes cor,
Eu no sei que isso quer ser.
E vejo-vos, mano, morto,
E tendes ar de mirrado.
Alm. Vs estais mais aguado
Que canivete do Porto.
Viva o Conde do Redondo,
GUie lhe furtais quanto tendes ;
Mas da sua graa mendes
Vos acho eu todo mondo.
Duar.
Logo fallais per mondar,
Como homem daquella terra :
Ja vs vereis na serra
Algum gadozinho andar,
No digo eu pera o guardar,
Seno ve-lo-heis pacer,
E pera vosso prazer
Sabereis assobiar.
Alm. ' Per muitas formas zombais,
Formas bem as conheceis ;
Olhae no vos demudeis
Primeiro que m'entendais.
Duar. Assi como bafejais,
Inda me cheirais a nabos.
Alm. Bem parece que a dous cabos
Cozeis tudo o que fallais.
Duar.
Eu vejo vir hum villo,
Hei-o certo de abraaT,
Porque se pde acertar

235

236

Gon.

Alm.

Diiar.

Gon.

Du ar.

Gon.

OBRAS D GlL VICENTE.

Que ser algum vosso irmo.


Guarda-porcos, d ca a mo.
Nunca os guardei per mi,
Mas ja eu a vosso pae vi
Morder hum bom cordavo.
Parece-me que per sua arte
Vos sacode elle a badana.
Dos michos desta somana
Te dou, villo, minha parte.
Olhae ca, Senhor Duarte.
Almeida, que me quereis?
Tantas cousas pareceis,
Que no sei de qual me farte.
Porque he certo que cu vos vi
Levar ja a merenda vinha,
E ca pregais a boquinha
Como Dom Priol' daqui.
E propriamente assi
Sabeis tudo, ah narizinhos !
E onde fordes vizinhos
Grande frio far alli.
Bofa vejo eu Portuguezes
Da corte muito alterados,
Mais propinquos dos arados
Que parentes dos Menezes.
Oh fideputa avisado !
E o villo he castio :
O rapaz rapa chourio,
Rapaz mouro emgrageijado.
Vs sombreiro acutilado,
Cuidareis que sois alguem ?

FABAS.

237

Pois vos eu conheo bem,


Fallae vos mais conchavado.
Dcar. Rapaz, es to namorado !
Ora falla sem sabor,
Rapaz, que mudas a cor.
Gon. Ora estais bem aviado.
Alm.
Vendes a lebre, villao?
Gon. Si, fidalgo.
Alm.
Mostra ea :
Quanto a ds ? que custar ?
Gon. Samicas meio tosto.
'
Alm. E no cesto, que tens l?
Gon. Trago aqui estes capes,
E bons marmelos valentes,
Se delles fordes contentes ;
E er tambem trago limoes
Pera agu ardes os dentes.
(Enquanto Goncalo se abaixa a descobrir o
cesto pera mostrar iudo oque traz,foge Al
meida e leva a lebre, e Goncalo achando-a
menos, diz:)
Gon.
E a lebre que foi della?
DiAit. Glue sei eu ?
Gon.
Hu-lo parceiro?
Dvar. No te deu elle o dinheiro ?
Gon. Pardeos de graa vai ella :
L a leva elle o escudeiro.
Dcar. Vae, vae correndo asinha,
Que inda agora vai per hi.
Gon. Olhae-me vos perequi,
Porque ella no .er minha,

238

OBRAS SE GIL VICENTE.

E he mal perd-la assi.


Diiar.
Oh que gostoso villuo,
E que boa festa temos !
Almeida e eu partiremos
Como irmo com irmo.
Gos. Hou mulher do amarello,
Viste ca, se vem mo,
Hum fidalgo terrasto
Com hua lebre no capello?
Hou vs do sacco de palha,
Viste-me ca minha lebre?
Oh ! dou-me a Deos que me leve,
No hei de achar nem migalha.
Dize, senhor sapateiro,
A minha lebre vai ca?
Pera que he busc-la ja !
Dou demo o escudeiro.
Leve-a por amor de Deos,
Pola alma de meus finados,
Porque lhe somos obrigados,
Eu e todos meus ereos.
(Duarte tanto que Goncalo se partio a buscar
a lebre, fui-se e levou o cesto e os capes, c
diz Gonalo quando no acha novas da le
bre:)
Peor he que me d ca
Na vontade que os capes
Foro c'os outros rasces
Caminho da ra ma.
Pardeos, tal vos he ella a vs :
Isto he o com que eu renego.

FAHAS,

239

Fizera mais hum Gallego


Na met de huns inatos sos ?
Hua escandola contesta
Enche de birra a pessoa ;
Nem tal chufa no he boa
Pera vespera de festa.
Como assi se usa ca?
Ai eram que he mal;
Que quem furta hum furto tal
Outro melhor furtar.
As almas dos cortezes
So coma nao sem govrno,
Porque cuido que o inferno
Que se come com limes.
O carmelita nos sermes
Bem lhes mostra o paraso,
Mas tanto vem elles isso
Como eu vejo os meus capes.
findo assim Gvnalo tomando pcra a sua al
dea, iorna a achar o Clcrigo, o qual
lhe diz :)
Cleii.
Ja tu, Gonalo, vendeste ?
Asinha tu despachaste.
Gon. Praza ao martyr Santiaste
Que nunca lh'a lebre preste.
Abaste, eu no fui sesudo.
Cleii. Conta, roge-t'o, Gonalo.
Gon. Mais porei eu em cont-lo,
Que elles em furtar-me tudo.
Cler.
Estava isso mao de ver.
Gon. Sois profteguo, padrinho :

2W

OBRAS DB GIL VICENTE.

Mas se eu torno outro caminho,


No ha ella assi de ser.
Porm quereis-me dizer
Hum responso ou ha aquesta,
Que m'apare Deos a cesta,
E dar-vos-hei do que tiver?
Cler.
Se queres miracula ver,
Torna l c'hum par de patos,
Que se os capes vo baratos,
Estes assi ho de ser.
Calamitas demones has de trazer ;
Porm o dinheiro ser de mao mez.
Cedunt mare vincula rcs
Que perdunt quanto vieres vender.
Quero ora ir catar
Cousa que me mate a brasa.
Gon. Eu no ouso d'ir a easa;
Meu pae ha me de coar.
Cler. Spera-me a par do logar,
E eu irei l comtigo,
E rogar-lh'hei como amigo
Que no te deixe de dar.
Se topares l em fundo
Hum negro, pe.te a recado,
Porque he hum perro malvado,
O maior ladro do mundo.
No olhes no que fallar,
Qu'he muito falso o cabro.
Olha per teu chapeiro,
Porque elle ha-te de atentar
Se tens tu olho ou no.

FARAS.

24i

(Indo Gonalo seu caminho, aparlando-se do


Clerigo, topa hum Negro grande ladro, c
enira cantando buscando hum mulato : e diz
Goncalo, depois de cantar o Negro :)
Gos.
Dize, negro, es da corte ?
Neg. Qu'esso ?
Gon.
S'es da corte ?
Neg. Ja a mi forro, nam sa cativo.
Boso conhece Maracote ?
Corregidor Tibo he.
Elle comprai mi primeiro;
Quando ja paga a rinheiro,
Daita a mi fero na p.
He masa tredora aquelle,
Aram que te ero Maracote.
Gon. Mais tredor era o rascote
Que rr^a mim furtou a lebre.
Neg. Glu'he quesso que te furtai?
Gos. Hua lebre de meu pae,(
De meu cunhado huns capes,
E marmelos e limes ;
Abouda tudo l vai.
Neg.
Jesu, Jesu, Deoso consabrado !
Aram tanta ladro !
Jesu ! Jesu ! hum caralaso :
Furunando s sapantado.
Jesu ! cralasam.
Pato nosso santo paceto ranho tu e figo va
lente tu e cinco sego salva tera po nosso quan
to do d noves caro he debrite noses ja libro
nosso gallo. Amen Jeju, Jeju, Jeju.

242

Goh.
Neo.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Sa pantaro Furunando.
Dize, rogo-te, fallai :
Conhece tu que furtai ?
Porque tu nam bruguntando?
Perguntarei por meu pae.
Cal-te : Deoso cima sai,
Que furtai ere oiai.
Deoso nunca vai dormi,
Sempre abre oio assi
Tamanha tu sapantai.
Guarda mar esso mal,
E senhora Prito santo.
Nunca rir homem branco
Furunando furta real.
No sabe mi essa careira :
Para que ? para eom ?
Muto come muto bebe,
Turo turo sa canseira.
Vira mundo turo canseira :
Senhor grande, canseira;
Home prove, canseira ;
Muiere fermoso, canseira ;
Muiere feio, canseira :,
Negro cativo, canseira;
Senhoro de negro, canseira.
Vai missa, canseira ;
Pregao longo, canseira ;
Crerigo nam tem muiere, canseira ;
Crerigo tem muiere, canseira,
Grande canseira :
Firalgo solto , canseira ;

^1

FARAS.

Chovere muto, canseira ;


No pode chovere, canseira :
Muito filho, canseira;
Nunca pariro, canseira ;
Papa na Roma, canseira \
Essa ratinho, canseira ;
No vamo paraso, grande canseira :
Vira resa mundo turo turo he
Canseira.
Mi nam falia zombaria.
Pos para que furtai ?
Que riabo sempreza !
Abre oio turo ria.
Mi busca mulato bai.
Ficar abora, ratinho.
Gon. Eu aguardo meu padrinho,
Que va comigo a meu pae.
Eu vou ao rio perem,
Porque hei sde e beberei,
E sicais que nadarei
Emquanto o clerigo vem.
Leixarei o chapeiro
Mettido nesta mouteira,
E o cinto e esmoleira,
Porque l logo o vero,
No me aquea outra tal feira.
(Espreita o negro como Gvnalo esconde o cha
peiro e o ai, e tanto que se vai entra di
zendo:)
Neg.
A mi abre oio e ve
Ratinho tira besiro :

244

OBRAS DE GIL VICENTE.

Ere dexa aqui condiro :


No sei onde elle mett.
Senhora Santo Francico,
Santa Antonia, San Furunando !
Pois mi ha d'andar buscando,
E levare elle na bico
O servo Santa Maria.
Sabe a regina Matho misercoroda nutra
d'hum cego savel at que vamos. A oxulo fi
lho d'egoa alto soso peamos ja mentes ja fren
tes vinagre qu'elle quebrro em balde ja er'*o
a quante nossa ha ilhos tue busca cordas ocu
los nosso convento e geju com muito fruta ven
tre tu ja tremes japias. Seuro santa Maria dinhero me l daro he ve esa carta da me mucho que furte cantara Farunando.
(Acabada assim esta salve regina, acha o Ne
gro o que Gonalo leixou escondido, e diz :)
Ei-lo aqui sa ! Deoso graa.
Graa Deoso esse he capote ;
Nunca dexa aqui palote :
Ratinho, quem te forcasse !
Aram que te ero villo !
Que palote saba sam,,
Barete tambem bo era.
Mi cansai e deradera
A mior fica sua mo.
Vejamos bolsa que tem :
Hum pente para que bo ?

TARAS.

243

Tres ceitil sa qui so :


Ratinho nunca bitem.
O riabo ladaro !
Corpo re reos consabrado !
Essa villo murgurado
Sa masa prove que cao.
Gluando bolsa mi achase
Ferno d'Alvaro, esse si ;
Nunca pente sa alli.
Ah reos ! quem te furtasse
Bolsa, Nuna Ribeiro !
Home bai busca rinheiro :
A toro ere rise :
Ja rinheiro feito he.
Aram que tu ero gaiteiro !
Ferno d' Alvaro m'acontenta ;
Elle nunca risse nam.
Logo chama ca crivam,
Crivaninhae esormenta ;
Toma rinheiro, vas embora.
Boso, home de bem, que buscae ?
Mi da cureiro agarba sae.
Boso que buscae corte agora?
Buscae a Rei jam Joo,
Paga minha casaramento.
D ca, moso, trae esormento;
Crivaninhae boso, crivo :
Home, tomae hum dos quatro sete :
Vas embora turo turo.
Sua rinheiro sa segura,
Mioro que elle promete.

246

OBRAS DE Gil VICENTB.

Marco Estevez moladeiro


Elle rise : Santa Maria !
Rinheiro boso queria?
Bai bai dormir paieiro.
Boso que pedir, muieiro?
Tanta filho mi tem qui...
Obucm manda boso pari,
Boso grande parideiro ?
Boso seria muito bo :
Vaca ne Francico paia ;
Tenha seis filho emiso
Nam temo comere ni miga ia.
Elle rise :
Que culpo tem a Rei jam Joo ?
Boso parir como porco,
Bai buscai sua pae torto,
Que dai a sua fio po.
Velha, que boso quer ?
Molla, que a mi pobre sai.
Elle rise :
Porque boso nam guardai
Rinheiro que boso bebe ?
Jesu ! Jesu ! moladeiro
Sa riabo aquella home ;
Quando a mi more da fomo
Nunca buscai sua rinheiro.
Porm graa a Reos, a mi
Nunca minga que furt ;
Pouco ca, pouco rel,
Pouco requi, pouco reli,
Gro e gro gallo fart.

FASCAS.

2 47

Gluem furta, home sesuro :


E louvar a Reos com turo
E senhoro Prito Santo.
A mi bai furta emtanto
Camisa que s na muro.
(Vem Goncalo tremendo oomfrio e diz:)
Gon.
Mui mao nadar faz vero
At meado o Janeiro ;
Mas agora he o ribeiro
Que corta homem como co,
Jesu ! e o meu chapeiro
E o cinto e a esmoleira?
Pois esta era a mouteira
E este he o mesmo cho.
Agora merecia eu
Hum par de trochadas boas,
Porque fiar nas pessoas
Nunca outro fructo deu.
Bem vi eu que o guineu
Me vio tudo aqui leixar ;
Mas o seu negro pregar
Me levou a mi o meu.
GUiem se faz mais verdadeiro,
Crede que he o mentiroso ;
E nunca vistes medroso
Que no finja de guerreiro,
E o ladro de piadoso.
Ja todo o mundo he raposo
Ja no ha hi que fiar,
A mi mesmo ho de furtar
Se m'eu daqui no acosso.

248

OBRAS DE GIL VICENTE.

(Roubado assi Goncalo vem ha velha c trs


comsigo Cezilia da Seira em que falia
Pedreanes.)
Velha Amara do meu fadairo !
Hui Fernando neto meu,
Qu'he do que teu pae te deu?
Que l contou o Vigairo
Quo pouco trazes de teu.
E teu pae he to cruel,
E tua me to sandia,
Que trouxe da estrebaria
Ha vara d'azemel
Pera te tirar a azia.
Quando vi tamanha aquella,
Trago esta demoninhada
A Cezilia nomeada
Falla Pedreanes ncHa,
E descubrir a cilada.
Pedreanes !
Cezil.
Aqui'stou.
Velha E aqui haveis d'estar,
E haveis-vos d'assentar ;
E pois sabeis quem roubou
Meu neto, fazei-lh'o achar.
Cezil. No ha muito de tardar;
Mas logo aqui viro ter
Quem isso lhe foi fazer;
E se quizerem pagar
Eu bem lh'o hei de dizer.
Gou. Que he o que me furtro?
'N ejamos se adivinhais.

F ARCAS.

Cezil. Dous mancebos t'enganro,


\
E os limes que te levro
Vendro por seis reaes.
E hua moa corcovada
Est agora depennando
O capo de tua cunhada,
E o outro se est assando,
E a lebre pendurada.
Ainda por mais signal
Cubrro-na c'hum sombreiro
Em casa d'hum alfaiate.
Gon. .ue besteiro he este tal!
Este he o Dxemo inteiro
Em trajos de carafate.
Mas hei hoje de saber,
Pois m'eu acho aqui mo.
Assi Deos te d prazer
Que tu me queiras dizer
S'hei de casar cedo ou no ?
Cez il. Casars polo natal
Com mulher sem tua perda ;
Seu corpo como cristal,
E achar-lhe-has hum signal
No meio da coxa esquerda.
E tem na teta direita
Hum luar com tres cabellos ;
Pola cinta muito estreita,
De hua uadega contreita,
E zambra dos cotovelos.
Gon. No hei de casar dess'arte,
Nem Deos no ha de querer.

249

230

OBRAS DE GIL VICENTE.

Ceil. Esta mesma has tu d'haver,


Nem cases em outra parte,
Seno pouco has de viver.
Velha Bento e louvado sers
Deos e a Virgem da Franqueira,
Que me tirou de canseira
De casaras, no casars,
Sei freira, no sejas freira.
Cezil. Pois que vs isso dizeis,
E no me perguntais nada,
Antes de hum anuo e hum mez
Vs haveis de ser casada
Chum criado do Marquez.
Velha Agora me quero eu rir :
Sabedes vs isso certo ?
Cezil. Digo que estais to perto
Como eu de me partir
Pera o meu negro deserto.
Velha Pedreanes, no vos vades,
Rogo-vo-lo, que ainda he cedo.
Sabedes vos eu hei medo
Serem isso vaidades,
E essoutro estar-se quedo.
(Vem Duarte e Almeida.)
Di ar.
Mantenha-vos Deos, Brancanes,
Deos vos d sempre boa hora.
Velha No falleis em Deos agora,
Porque est aqui Pedreanes,
Que chegou agora est'hora.
Ov ah. A elle huscamos, senhora,
Que o havemos bem mester,

251
E dar-ll^hemos, d'alma em fora,
Tudo quanto elle quizer,
Que o leve muito embora.
Velha Pedreanes a hum grou
Achar o rasto no ar,
Pois que m'elle foi achar
Que velha assi como estou,
Hei ainda de casar.
Creio-o-ttVo polo que vejo,
Porque eu sou muito sadia,
E tenho a pelle macia
Como costas de cranguejo
Ou lagosta d'Atouguia.
E tenho minhas arnellas :
. Ponde m'ora aqui a mo,
Mancebo. E haja eu perdo,
Ainda cu como co'ellas
Hua posta de cao.
O bafo, a Deos louvores,
He coma algalia d' Arruda.
Ora eu farei 'outras cores,
Porque hei d'entrar em muda,
Como fazem os aores,
Ento venho meus amores.
Duar.
Pedreanes.
Cezil.
Aqui estou.
Duar. Estae por amor de mi,
E no vos vades daqui ;
Porque minha f vos dou
Que somos vossos emfim.
Cezil. Se quereis levar na mo

252

OBRAS DE GIL VICENTE.

Isso porque me buscastes,


Pagae a este villao
A lebre que lhe tomastes,
E tres vintens por capo,
E hum tosto dos marmelos,
E page-lhe seus limdes.
VELHAParece-me a mi, rasces,
Que vos tornais amarellos.
Duar. Paguemos-lhe tres tostos.
Alm. Duarte, tendes vos hi
Dinheiro na fraldiqueira ?
Duar. Eu vendi patos na feira ?
Alm. Nem eu tampouco os vendi,
Nem tenho eira nem beira.
Cezil.
Gonalo, sei tu lembrado
Que dixeste que por Deos
Lhe havias por perdoado
Pola alma de teus ereos,
E nao te devem cornado.
Vae pedir o chapeirao
Ao negro do Maracote.
Gon. Ora fiae de rasco,
Que farpa todo o pelote,
E nao se farta de pao.
Alm. Ja nos somos sabedores
Que he muito teu poder,
E queramos saber
Planetas d'alguns senhores,
E sinos de sou nacer.
E a que sao inclinados
Por sua costellacao,

FARAS.

E quaes so mais namorados.


E tambem as condies
De que planeta lhes vem,
Declarado por item.
Cezil. Dizei embora, rasces,
Qu'eu sei isso muito bem.
Porque por astrolomia
Conheo os seus nascimentos,
E pola filosomia
Sei todolos pensamentos
Que trazem na fantesia.
D i ah.
Qual he o mor namorado
De Portugal e Castella ?
Cezil. He o Conde de Penella ;
Mas anda dissimulado
Por amor da sua estrella.
Alm. O senhor Embaixador
Do Cesar Imperador
Creio que naceo no ceo ;
Mas se na terra naceo,
Qual planeta em seu favor
Foi a que lhe aconteceo ?
Cezil.
Naceo bua noite clara
Quando a lua apparecia,
E Venus tomava a vara
Com que as graas repartia,
Como em elle se declara.
E estando assi lustrosa,
O fez to sabio e humano,
De condio to graciosa,
Que no tem em nada grosa,
8

253

254

OBRAS DE GIL VICENTE,

Seno so ser Castelhano.


Duas.
O Conde de Marialva
Sabes quanto ha de viver?
Cezil. Mao he isso de saber,
uc elle no he flor de malva
Qne apodrece sem chover.
Com todas suas feridas,
E muito enferma canseira,
Contratou-se de maneira,
Q.ue Deos lhe deve tres vidas,
E esta he inda. a primeira.
.m.
Do Vedor he necessario
Saber a planeta sua.
Cezil. Sua planeta he a lua,
O sino he Sagitario,
Com hiia frecha d'atabua.
Tem flego como gato,
Digo vida perlongada ;
Porm no coma de pato
Seno so ha talhada,
Inda que custe barato.
Dfar.
Sabes quantos annos ha
Glue Vasco de Foes he nado I
Cezil. Quando foi a do Salado,
Era elle mancebo ja,
Mas no era to barbado.
A lm. O senhor Conde meu senhor
Do Redondo em qne estrellaT
Ou que Planeta he aquella
Une o fez to sabedor,
Pera que adoremos nella?

FARAS.
.Vszil.

Esse Conde e outros assi


Por agora ho .de ficar,
Doutrem podeis perguntar :
Mas eu tornarei aqui,
E vs me ouvireis fallar.
Ai.M. Affonso d' 41buquerque, irmo
Que foi ao Impera lur,
Que sino tom por senhor,
E porque a sua condio
No pudera ser melhor?
Cbzil.
Mercurio he a sua estrella,
E sera bem esquenado
Se jogar jogo assentado ;
Porm se jogar a pelle,
No lhe ficar cruzado.
Dvar. Eu tenho Jorge de Mello
Por hum Padre San Gio;
Traz sempre contas na mo,
Mas no sei l no capcllo
Como vai devao.
A lm.
Elle reza pola rua,
QUie traz contas todo o dia;
Ou he por galantaria?
Cezil. Mui boa vontade he a sua,
Mas o cuidado o desvia.
Reza mais que cinco donas,
E Deos se est sem paixo.
Duar. Que lhe pede na orao?
Cszil. Que lhe d sete atafonas
A porta de Sant'Anto.
que lhe d tanto gado

2S5

256

OBRAS BE GIL VICENTE.

Como Isaac trazia,


E hua capitania,
Com que fosse to honrado
Como elle merecia.
Alm. Gaspar Gonalves, Pedreanes,
Em que sino nasceria?
Faze-me esta obra pia ,
E olha que no m'enganes,
Porque vai sobre perfia.
Desejo sab-lo em cabo.
Cezil. Nasceo no Escorpio,
Afagua-vos Ta razo,
Mas despeja-vos c'o rabo
No cabo da concruso.
Dvar. E Brezeanes guardador
Das damas, que es perro viejo ?
Ce7.il. Esse Brezeanes, senhor,
O seu sino he de cranguejo,
Porque anda a travez do amor
E atravez do desejo.
E he tomado da lua,
Muito seco dos esp'ritos,
Porque ha hi sinos malditos
Q.ue no tem graa nenhua.
E o que quereis saber
Das damas e amadores,
O domingo que vier
'
Eu direi quanto souber
Delias e seus servidores.
Ensinar-vos-hei ento

FARAS.

Cantigas com que 'folgueis;


E agora no canteis,
Fique por concruso
Que este dia cantareis.

257

FARC4
CHAMADA

AUTO DA LUSITNIA.
FIGURAS.
Introduco.
LEDIA.
ZO.

ME E PAE DE LEDIA .
SAUUNHO.

CORTE-

JACOB.

Fara.
licenceado (no argumento). lisirea.
v LU9ITAHIA.
NUS.

PORTUGAL.

VERECINTA.

D1NATO.

BERZEBU.

MAIO.

FEBRUA.

VE

JUNO.

TODO O MUNDO.

NINGUEM.

A fora seguinte foi representada ao muito


alto e poderoso Rei D. Joo, o terceiro deste
nome em Portugal, ao nacimento do muito
desejado Prncipe D. Manuel seu filho, era do
Senhor de 1532.

M.

luito tenho por fazer


K no tenho feito nada :

FAKAS.

Cort.
LED.
Cort.
Led.

Cort.
Led.
Cort.
Lsd.
Cort.

I..KU.

Est a logea por varrer,


Os meninos por erguer
E enha me ensobradada.
Meu. pae vai-se a passear
Com outros judeos andando,
E a costura est folgando,
Dous annos por acabar
O capuz de Dom Fernando.
Meu pae no era de arte
Seno pera cavalleiro,
Ou fidalgo, ou rendeiro,
E o christo pera alfaiate
Sem agulha e sem dinheiro.
(Entra hum Corlezuo, e diz :)
Vosso pae he ca, senhora?
Quc lhe quereis vs dizer?
Pergnnto a vossa merc.
Per hi sahio elle fora
A arrecadar no sei que.
Quereis-lhe alga coisa?
Havei-lo mister, senhor ?
Tem elle muito lavor?
De ventura no rcpoisa
Nem socega o peccador.
Vossa me he tambem fora?
Mas em cima est cozendo
E eu ando isto fazendo.
No devia tul senhora
Como vs andar varrendo.
Seno enfiar aljofre.
Minha me tem no seu cofre

259

260

OBRAS DE Gil VICENTE.

I) uas voltas de coraes.


Cort. Senhora, sam cortezo,
E da linhagem d'Eneas,
E por vossa inclinao
Folgra de ser d'Abrahao
O sangue de minhas veias.
Mas vosso e nao de ningucm
He tudo o que est comigo,
E quero-vos grande bem.
Led. Bem vos queira Deos amen :
uereis outra coisa, amigo?
Cort.
Temo muito que me leixe
Vosso amor pobre coitado
De favor com que me queixe.
Led. Lanae na sisa do peixe,
E logo sois remediado.
Cort. Nao fallo, senhora, disso,
Porque eu me queimo e arco
Com dores de corao.
Led. Muitas vezes tenho eu isso:
Diz Mestre Aires que he do bao,
E reina mais no verao.
Cort.
Mas, senhora, por amar
Fiz minha sorte sugeita,
E perdi a mais andar.
Led. Crede, senhor, que o jogar
Poicas vezes aproveita.
Dom Donegal Saborido,
Glue tinha tanta fazenda,
Por jogar est perdido,
Sue no tem o dolorido

FARAS.
Nem que compre nem que venda.
O doce frol antre espinhas,
Crede o amor sem mudana
Que vos tenho e que vos digo.
Led. Assi huas primas minhas
E toda esta vizinhana
Todos tem amor comigo :
Dom Isagaha Barabanel
E Rabi Abram Zacuto,
O Donegal coronel.
E Dona Luna de Cosiel,
E todos me querem muito.
Cort.
Senhora, por piadade
Que entendais minha rezo ;
Entendei minha verdade,
Entendei minha vontade,
E mudareis a teno :
Entendei bem minha dor,
E mil maleitas quartans,
Que por vs me ho de matar.
Led. Assi he meu pae, senhor,
Que tem dores d'almorrans,
Que he coisa d'apiadar.
Foi o anno to chacoso
De doenas da ma ora,
Que creio bem o mal vosso;
Porque Dom Moss Lendroso
No morreo seno agora.
Me. No sei que chanto ha de ser
De hiia filha que criei ;
Que coisa que lhe mandei,
Cort.

261

262

Cort.
Lkd.

Ms.
Lied.
Me.

Cort.
Lrd.
Cort.
Lkd.
Me.
Lrd.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Nunca a fez nem quiz fazer,


Quando est como agora
Na logea e eu no sobrado,
Chamo e chamo, brado e brado,
E como as pedras de Samora
D ella por meu chamado.
Senhora, sois minha vida,
Fiae no que digo eu.
No tenho roca de meu,
Nem despois que sam nacida
Nunca minha me m'a deu.
Liedia, filha dourada,
No subirs hoje ca?
No podo que estou pejada.
Pejada ! melhor fadada
O Senhor te fadar.
Casars e lngrar-t^ias,
A sombra do teu amor ;
Entances te pejars,
Pejar-t'has e parirs
Hum pampaninho de flor.
E fosse de qu?m eu digo.
No sinto aquellas rezes.
&ue andais d/amores comigo.
As amoras e o trigo
Vem no tempo dos meles.
Sube ja este sobrado,
Que cedo te faa eu boda.
Acho ca todo enlodado :
Saulinho est luxado,
" luxou a manta toda.

F ARCAS,

Cort.

Me.
Lr.i.

Cort.
Lrd.

Me.
Led.

Me.
!ikd.

Cort.

363

No gostais vs destas dores,


Parecc-vos isto vida?
O flor de minhas flores
E meus primeiros amores,
Folgae ser de mi querida.
Samael, bem t/Wcaminhas :
Luxaste-te, filho meu?
Bem vo-lo dizia eu.
No lhe compreis camarinhas:
Agora elle fez o seu.
due vos queira ouvir no posso :
Q.ue me dizeis agora?
Se sois contente, senhora,
De eu ser namorado vosso?
Gtue sejais muito embora.
Porque Yua namorado
lie irmo de minha me,
13 Catelo namorado
He meu primo e meu cunhado,
E rendeiro na Serte.
Que! no vens, filha Ledia!
Nunca acabas de alimpar?
Como sois agastadia !
Cuidareis que de preguia
No fao seno folgar,
Ou samiea estou dormindo?
Ora faze, filha minha.
Eu estava-ine ja indo,
E Menoba est saindo,
No meio da camarinha.
Antre essas cousas louans

>4.

Ijed.

Cort.
Led.
Cort.

Led.
Me.

Led.
Me.

Led.

Me.
Led.

'URU DE GIL VICENTE.

Peo que me consoleis.


Piuhoado comereis,
Ou caoila de maans :
Vde vs o que quereis.
Peo esperana coitado
E favor favorecido.
Isso he coisa d'adubado.
Oh que mal ser namorado
Onde no he entendido!
Eu vou-me : vosso pae vem.
Me, vinde que vem meu pae.
Que figeste ? guai, guai, guai !
Ou fallaste com alguem,
Ou no sei como isto vai.
Com quem havia de fallar?
Olhae que coisas aquellas !
Se ainda dorme Menoba,
E deste tres varredellas,
No cuides de m'enlodar,
Porque alguem te fallou ca.
,
Se eu fallci com ninguem
Seno com esta vossoura,
Nunca de ma trama moura.
Guarde-te Deos, filha, ame,
E te faga duradoura.
Jle amiga, eu queria
Que cesseis de m'assacar,
O.ue sahirei de siso hum dia.
E poer-me hei nome Maria
Ou Felipa ou Guiomar.
Que eu no lallei com ninguem,

F ARCAS.

Nem ninguem foliou a mi,


Nem ninguem chegou aqui.
Me. Bem o sei, filha meu bem :
Prazeres veja eu de ti.
(Entra o Pae e diz :)
Pae. Levantro-se os meninos ?
O manto maudae guardar.
Q.ue temos pera jantar ?
Me. Berenjelas e pepinos,
E cabra curada 6 ar.
Pae.
E cenoiras porque no,
Com favas e alcorouvia
E cominho e aafro?
Me. Pois o Turco Gran Soldo
No come tanta iguaria.
Gluanta choca, quanta lama,
Quo traz o manto frisado,
(Aue estava to alimpado,
Q.ue parecia hua dama
Diante seu namorado !
Parque no fugis do lodo ?
Dizei, nunca mal vos venha,
Nem dia delle, amen, amen.
Pae. Venho] to contente todo,
Como de saude tenha
Aquelle que nos quer bem.
Encontrou-me o Regedor,
Fui eu assi encontr-lo
Onde mora Abram Baea :
Fallo-vos do seu favor,
Oue at s ps do cavallo

265

266

Me.

Pae.

Lso.
Me.

fjD.
Pae.

Iieo.

OBRAS DE Gil VICEXTE.

M'abaixou sua cabea.


Folgais Hecer Bcacar
Co"a honra do nosso bem,
Co bem do nosso prazer
Cousa he pera prezar ;
Que quem tal amigo tem
No se deve de temer.
Nunca logre esse manto^
Se o Conde Mordomo-mor
No s'emboreou at 6 cho
Co barrete no aro,
Como s,eu fora doitur
Da casa da RolaeSo.
Sois contente ?
Ja viestes, pae?
Lcdeeina,
Correge essas creuchas, filha,
E viste-te essVitra fraldilha,
Que essa vem-te pequenina ;
K soa-te quella rodilha.
Pae, trazeis-me algua cousa? ra.
lize, gata preguiosa,
Porque no pugeste aqui
A minha banca em que cosa,
due nao vas por ella iThi ?
Ja te esqueeeo a' punhada
.ue te dei quando ora foi ?
Quando te (io no te doe ?
Vde-la aqui alimpada,
Melhorinha do que s'e.
Assentae-vos a corer,

FARAS.
Que pareceis assi mal.
Assi o quero fazer.
Que me foste aqui trager?
No he este o meu didal ;
Este he o didal do menino,
Que me tu aqui trazias.
Erga-se.
Me.
He tamanino,
Ja quereis que faa pino
Hum anginho de oito dias ?
Ei-lo vem a criancinha ;
Ergueo-se e os negros medos.
Filho amor, queres do po?
(Entra Saulinho, e diz:)
Saul. D-me o pentem, Ledecina.
Pae. Desenguia-te c^ dedos,
--*
E pentea-te co'a mo.
Me. Lediea, vai janella,
Traze-me a roca e banca,
E o fuso que est co'ella.
Led. Pardeos, me, i vs por ella,
Glue no sois cega nem manca.
Pae. Assentae-vos a fiar,
Saulinho e eu a cozer,
Ledia, guizo o jantar
Como acabar de varrer
E a loia de lavar.
(Canto Pae e Filho cosendo.).
Ai Valena, guai Valena,
De fogo sejas queimada,
Primeiro foste de Moiros
Pae.

267

268

OBRAS DE GIL VICENTE.

.. Que de Christianos tomada.


Alfaleme na cabea,
.. En la mano una azagaya,
..Guai Valena, guai Valena,
Como ests bem assentada ;
Antes que sejo tres dias
De Moiros sers cercada.
Pae. E assi o foi.
Me.
Por vida de Dona Hecer,
Dom Juda, quereis que vos diga?
Cuidais que o sabeis todo ;
Pera cantar e coser
Haveis de dizer cantiga
Que vos tire o p do lodo :
A cantiga que eu queria,
Ora olhae como a digo.
Donde vindes, filba,
Branca e colorida ?
De l venho, madre,
De ribas de hum rio ;
Achei meus amores
N'hum rosal florido,
Florido, enha filha,
Branca e colorida.
De l venho, madre,
De ribas de hum alto,
Achei meus amores
N'hum rosal granado,
Granado, enha filha,
Branca e colorida.
Pae.
Se a cantiga no fallar

FAttAS.
Em guerra de cutiladas,
E de espadas desnudadas,
Lanadas e encontradas,
E coisas de peleijar,
No nas quero ver cantar,
Nem nas posso ouvir cantadas.
Mk.
Dom Juda, assi tenhais bem,
Que se vira guai espada
Tirada na mo d'alguem,
Desnudada pera dar,
Guaias de Hecer Beacar
E da saude que tem,
Porque logo so finada
Com a affronta que me vem.
Pae.
No ja eu, que de atrevido,
Se estiver n'hua janella,
E a porta toda trancada,
E na praa o arruido,
E eu co'a lana e rodela,
No tenho medo de nada.
E se o nosso Iffante passa,
E elle hoiver de passar
O Lio do oiro bello,
Duque das partes d' alem,
No hei de ficar em casa,
Nem nenhum homem de bem.
Levarei huma gualteira
E hua lana longa, longa,
Bem longa, muito comprida,
Q.ue haja seis lanas nella,
E buscar onde me esconda,

265

270

OBRAS DE GIL VICENTE.

Pera esconder a vida,


No topem Moiros com ella.
(Vem Jacob e outro Judeo, c diz :)
Jacor. Ando muito esfandegado.
Pae. Que he isso, irmo, que queres?
Jacor . Somos postos em prazeres
E trabalho misturado.
Me. Isso he coisa de proveito?
Jacor. Mas juntei os mercadores,
E acordamos os maiores,
Que os que temos algum geito
Nos faamos foliadores.
Me. Isso pera que? dizei.
Jacor. E busquei isto de mi :
Ja vedes que ElRei he aqui
E temos ja aqui ElRei,
Sancto mais que ElRei David.
E a sua bem assombrada
Natural Rainha Esther,
Rainha Sab doirada,
A rainha mais honrada
<lue dez reinos podem ter.
E tambem o Principe he.
Nunca metteo aqui p.
De ns seja festejado,
Como era desejado.
E como formoso he
O que seja bem logrado.
Vo-s . todos ao sobrado.
(Saliem-se cilas, e depois de idas diz)
Jacor. Falk mos tu e eu ss.

rABfjAs.

Pab.

271

Glu'inveno faremos ns
N'hum aito bem acorda Jo,
Que tenha ave e pis ?
Que folias ja so frias,
E as pellas, as mais delias,
E os toiros
Mataro hum mata-moiros ;
E a ussa ja no se usa,
E a festa no s'escusa,
Pois andamos nos peloiros.
Para que cumpridamente
Aito novo inventemos,
Vejamos hum excellente
Que presenta Gil Vicente,
E per hi nos regeremos.
Elle o faz em louvor
Do Principe nosso senhor.
Porque no pdde em Alvito,
Logo vir o relator,
Veremos com que primor
Arsrumenta bem seu dito.

(Unira o IAcenceado argumenlador da obra


que adiante se segue, e diz :)
Lie.
Oh que douda presunapo
Cuidar ninguem na pousada
Que traz discreta inveno
Aqui onde a descrio
Tem sua propria morada.
fclue a Corte

372

OBRAS SB GIL VICENTE.

He hum precioso norte


Que guia os mais sabedores ;
E onde ha rosas e flores
Pampillos no fazem sorte.
E pois o primor inteiro
Nasce aqui cm taes logares,
E todo o al he grosseiro,
No presuma o sovereiro
De dar tamaras doares.
Gil Vicente o autor
Me fez seu embaixador,
Mas eu tenho na memoria
1.i.ue para to alta historia
Naceo mui baixo doutor.
Creio que he da Pederneira
Neto d,hum tamborileiro Sua me era parteira,
E seu pae era albardeiro.
E per rezo
Elle foi ja tecello
Destas mantas d'Alemtejo ;
E sempre o vi e vejo
Sem ter arte nem feio.
E quer-se o demo metter,
O tecello das aranhas,
A trovar e escrever
As portuguezas faanhas,
(Aue so Deos sabe entender !
D'outro cabo,
Dizem que achou o diabo
Em figura de donzella,

FARAS.
E(elle namorou-se delia !
Porm ella
Era diabo encantado.
Levou-o a huns arvoredos;
Vai a dama assi a furto
E alevanta os cotovellos,
E levou-o polos cabellos,
E fez-lhe o pescoo curto.
E metteo-o logo essora,
Sem lhe valerem seus gritos,
Aonde a Sibyla mora,
Encantada encantadora,
Ante os malinos espritos.
E alli foi ensinado
Sete annos e mais hum dia,
E da Sibyla informado
Dos segredos que sabia
Do antigo tempo passado.
Em especial
O antigo Portugal,
Lusitania que cousa era,
E o seu original :
E por cousa mui severa
Vo-lo quer representar.
E pera claro cimento
E a obra no ser escura,
Direi em prosa o argumento ;
Porque a cousa que he segura,
Procede do fundamento.
E como sempre isto guardasse
Este mui leal autor,

273

2~ 'i

BHAS DS GIL VICENTK.

At que Deos enviasse


O Principe nosso senhor,
No quiz qi^outrem o gozasse.
Naquella cova Sibylaria, muito sabio e pru
dentssimo Senhor, o autor foi ensinado que hl
tres mil annos que hua generosa nympha cha
mada Lisibea, filha de hua Rainha de Berbe
ria e de hum principe marinho ; que a esta Li
sibea os fados dero por morada aquellas me
donhas barrocas, que esto da parte do Sol ao
p da Serra de Cintra, que naquelle tempo se
chamava a Serra Solercia . E como por vezes o
Sol passasse pelo opposito da lustrante Lisibe i,
o a visse nua sem nenhua cobertura, to per
feita em uas corporaes propores, como fermosa emtodolos logares de sua gentileza ; hou
ve delia hua filha to honrada de sua luz, que
lhe puzero nome Lusitania, que foi diesa e
senhora desta Provincia. Neste mesmo tem
po havia em Grecia hum famoso cavalleiro e
mui namorado em extremo, e grandssimo ca
cador, que se chamava Portugal; o qual estan
do em Hungria ouvio dizer das diversas e fa
mosas caas da serra Solercia, e veio-a buscar.
E como este Portugal, todo fundado em amo
res, visse i fermosura sobrenatural de Lusita
nia, filha do Sol, improviso se achou perdido
por cila. Lisibea sua madre, desatinada ciosa
morreo de ciumes deste Portugal. Foi enterra,
da nu montanha que naquelle tempo se chama

VARA8.

27J

va o Feliz Deserto ; onde depois foi edificada


esta cidade, que por causa da sepultura de Li
sibea lhepuzero nome Lisboa. Neste presente
auto entrar primeiramente Lisibea, e Lusita
nia, c Portugal em trajos de caador, e Maio
messageiro do Sol, e depois Mercurio com cer
tas diesas. E porque o auctor se apressa pera
vos representar o argumento que naquelle tem
po passro Lisibea graudissima ciosa com Lu
sitania sua filha, herczo que lhe dmos logar.

Lisiit.

Canseira de minha vida,


Pe esses olhos no cho,
Vcla-te de ser perdida,
E no olhes to garrida
Gluantos vem e quantos vo.
Lvsit.Oli que forte condio!
Como sois destemperada
E ciosa sem vazo !
Lis ih. Eu no teria paixo
Se te visse assocegada;
Mas tu olhas pera ca.
Pera aqui e pera alli,
E de ca pera acol.
Lcsit. Esse olhar que mal me est,
Se eu olho bem por mi ?
Lisir. Oh como he de pouco aviso
Dares sempre cabecinha !
E to prestes tens o riso,'
ttne quem te vir d:improviso,

276

OBRAS DE GIL VICENTE.

Logo dir qifes doudinha.


Lcsit.
Me, isso he cor de bradar,
E tudo no funde em nada :
Que sem rir, ver, nem fallar,
Todos me podem chamar
Formosa mal assombrada.
Mas no se pue negar
Que o ciume he mal infmdo ;
Porque o muito ciar
As vezes faz acordar
O amor que jaz dormindo.
Lisir.
Por mais que brava escumes,
De te amar vem esta dor,
Que te fao sabedor
Que dos mui muitos ciumes
Nace o mui muito amor.
Lusit. Esse muito he de mao tom.
O me, como estais errada ;
Porque o muito no he nada
Quando quer que no hc bom.
O querer ha de ser so,
Mui seguro e confiado,
Isento sem suspeio,
Doce na conversao
E alegre no cuidado.
Lisir.
Ja som bem certa e segura
Que o castigo he cousa cara.
Leixar-te quero ventura,
Que s vezes o tempo cura
O que a razo no sara.
Teus olhos so teu perigo,

FARAS.

277

Elles te castigaro.
LUSit.Me, a muita reprenso
Busca mui poucos amigos ;
E esta he a coucruso.
Eis ca vem hum caador ;
Generoso representa,
E traz ar de gran senhor.
LisiB. Perto tinhas tu o amor,
Que asinha te elle contenta.
No me tens em nemigalha;
Cambra venha que t'encambre ;
Canta se tu es alambre,
De longe tomas a palha.
Ijiisit.
Os ciumes que em vs se monto
Ja no ho de ser pequenos,
i
E quem porcos acha menos
Em cada mouta lhe ronco.
Sabeis, me, em que me fundo?
Eu sam a filha do Sol,
E se o mundo teve flor,
Eu sam as flores do mundo,
E da presunco maior.
Que som to fantesiosa
E to cheia de grandeza,
Que no prezo ser fermosa,
Nem prezo a quem me preza,
E prezo-me de generosa.
(Chega Portugal e diz :)
Primeiro que va Serra
Solercia, que vou buscar,
Senhora, hei de perguntar

278

OBRAS DE GIL VICENTE.

Se as que naeem nesta terra


Tem o ceo a seu mandar ;
Glue em Grecia nem ultra-mar
Tal fermosura no vi.
Senhora, venho a caar,
Mas a caa que matar
Sera o triste de mi.
Lisir.
Que ma ora comeastes,
E que ma ora viestes,
E que ma ora embarcastes,
E que ma ora chegastes,
E na negra vos erguestes.
Olhae aquella chegada,
Do que lhe d Deos mao mez !
Lusit. Nunca o fallar descortez
Aproveitou pera nada :
Vede como isso dizes.
Lisir.
Nesta brava serrania,
Brava o hei de deshonrar.
Lusit. Aqui o em todo logar
Muito damna o mao fallar,
E aproveita a eortezia.
Port. Pois das lindas sois rainha,
Das fermosas grao supremo,
De vos ciar em extremo
Tem rezo, senhora minha.
Lisir.
Senhora de vosso avo
E de vossa me cadella !
Tirae aram os olhos delia,
Tirade pera vs so,
No tenhais de ver co'ella.

FAHAS.

379

Lusit. Folgae ora, havei prazer,


Dae ao demo o armido.
Li si n. Oh que te vejo perder !
Porque o damno da mulher
Sempre lhe entra pelo ouvido.
Lusit. Me, dos homens he fallar,
E das mulheres ouvir,
E do bom siso calar,
E da prudencia sentir
O que no pde damnar :
Cuidais que me ha de comer?
Lisir.
Eu no te posso soffrir ;
Nesta dor hei de morrer.
Fica-te, qu'eu quero-me ir,
Pera mais no parecer.
Minha morte he cerca e certa,
E eu dou-te vida escura ;
Vou-me minha sepultura,
Que est na Serra deserta,
Feita por mo da Ventura. (Vai-se.)
Lvsit. Senhor meu, amigo caro,
Vs ide emtanto caar,
Porque a mi cumpre rezar,
E chorar meu desemparo,
E a vs de me leixar.
(Wai-te Portugal, e clix Lusitnia emorae.)
Lwsit.
O Minerva graciosa,
Avogada da fermosura,
Vem asinha,
E pois no eco es ditosa,
Parte da tua ventura

280

OBRAS DE GIL VICENTE.

CVa minha.
O preciosa Diesa honesta
Ramnusia, Deos da ventura
E da bonana.
Converte meu choro em festa,
E minha triste tristura
Em esperana.
E tu Diesa Magesta,
Das viuvas solitarias
Protectora,
A minha pressa te apressa,
Pois sempre te paguei pareas
Atgora.
Diesa Maya, Diesa Juno,
Diesa Palias, Diesa Vesta,
Oh Senhora,
E tu Senhor Deos Neptuno,
E Veuus, que a todos presta,
Valei-m'ora.
E acabae c'o Sol meu pae,
Que me mande hum messageiro,
Que me veja,
E saiba como me vai ;
E pois he pae verdadeiro,
Me proveja.
(Enira Maio, messageiro do Sol, cantando.)
Maio.
Este he Maio, o Maio he este,
Este he o Maio e florecc,
Este he Maio das rosas,
Este he Maio das formosas,
Este he Maio e florece,

FARAS.
Este he Maio das flores,
Este he Maio dos amores,
Este he Maio e florece.
Mui muito m'espanto eu
De mundo to albardeiro,
GUie por eu ser prazenteiro,
Me tem todos por sandeu,
E, por sisudo, Janeiro.
Pois hei de tomar prazer,
E no hei de ser com'este ',
Que o prazer crece o viver :
E quem isto no fizer
No ter vida que preste.
Este he Maio, o Maio he este,
Este he Maio e florece.
Hei de cantar e folgar,
E bailar c'os coraes ;
E por me desenfadar,
Farei os asnos zurrar,
E cantar os rousinoes.
E farei calar as rans
De noite, e cantar os grilos,
E as patas pelas manhans ;
E alimpar as maans,
E florecer os pampillos.
No me hajais por estrangeiro,
Lusitania, descanae,
Glu'eu sam Maio e messageiro
E principal cavalleiro
Da corte de vosso pae.
E manda-vos visitas.,

281

2SJ

OBRAS BE 6IL VICENTE.

E mais vos faz a saber


Que vos quer logo casar ;
E quer vosso parecer,
Pera se determinar.
Lisit.
Dize-lhe tu, Maio amigo.
Que casar he forte caso,
E no casar gran perigo ;
E que no sei nesie passo
Que lhe diga liem que digo.
Que elle o pode ordenar,
Porm o meu parecer
He que o ditoso casar
Est mais em acertar, .
Que em sab-lo escolher.
Maio.
Senhora, no he rezo
Encobrir esta alegria.
Saiba vossa senhoria
Que acabou sua orao
Quanto vossa alma queria;
E por vosso bem ditoso,
E merecer mui facundo,
Vem Mercurio precioso
Deos dos commercios do Mundo.
Eleito por vosso esposo.
Vem co'elle as soberanas
Diesas de Grecia e Egypto,
Venus vem com as Troyianas.
Verecinta coV.s Romanas,
Cantando com ledo esp rito.

ARAS.

283

(Vem estas Deosas em dana ao som desta


cantiga.)
Luz amores de la nina,
Glue tan linduz njuz ha,
Glue tan lindnz ujuz ha,
Ay Diuz quien luz habr,
Ay Diuz quien luz servir.
Venus
Dejemuz ora el cantar
Y antez de estaz rieaz bodaz
Que venimuz celebrar,
Pongmunuz hi luego todas
Cada una en su altar.
Verecinta, Fbrua y Vesta,
Romanaz maz singularez,
Antez de empezar la fiesta,
Ponos la mano diestra,
En vuestros santos altarez.
Nuz tevemuz utroz dotez,
Estaremuz de este lado,
Todas seis muy veneradaz.
Y estez nuestroz sacerdotez
Rezarn su ordenado
Y suz horaz ordenadaz.
(Dinato e Berzcbu, capelles destas Deosas,
comeo dizendo :)
Din.
No saber universal
Cr que o meu spirito voa.
Berz. Queres hua cousa boa?
Antes que entrerrios ao ai
Rezemos a sexta e noa,
E despois todalas horas

-2M

Din.

Berz.
Din.

Berz.

Din.

Berz.

Din.

OBRAS DE GIL VICENTE.

Das negligencias mundanas,


Em louvor das soberanas
Diesas nossas senhoras,
E milagrosas Troianas.
Ora rezemos, parceiro,
E porque seja melhor,
Toma, ves hi o psalteiro
De Nabucodonosor,
Que lhe furtou Frei Sueiro.
Oucm comear primeiro?
Tu que es amancebado,
E es padre verdadeiro,
Que tens filhos ao teu lado,
E eu sam inda solteiro.
Beato seja o varo
Que adora ces e gatos,
E as muelas dos patos,
E os miolos do co,
E o gallo de Pilatos.
Beato seja e acceito
O que doce lingua tem
E a maldade no peito,
E louva sempre o malfeito,
E diz mal de todo o bem.
Bento seja o verdadeiro
Avarento per natura,
Que poz a alma no dinheiro,
E o dinheiro em ventura,
E a ventura em palheiro.
Bentos sejo os primeiros
Quo tomas por devao

FARAS.
Aborrecer.lhe o sermo,
E ando traz feiticeiros
De todo seu corao.
Berz.
Bentos aquelles e aquellas
Que so tres ave-marias
Os enfado nas capellas,
E folgo de ouvir novellas
Que durem noites e dias.
Diit. Adiante va a mulher
Que no cr seno patranhas,
E reza sempre s aranhas,
E no cr o que ha de crer
E adora as tartaranhas.
Berz.
No se poder cuidar
Mal, que a gente no adore
Louvemos seu descuidar,
Que o mundo quer-se finar,
E no ha hi quem no chore.
Din. No somente quem o crea :
Nem sentem as creaturas
Que ha de morrer sem candea
E espirar s escuras,
Como triste em terra alhea.
Berz.
Os infernos so pasmados
Dos soffrimentos de Deos,
Que lhes creou sete ceos,
Todos sete a elles dotados.
Dm. E elles desacordados
De tanta bem feitoria,
Vo-lhe peccar cada dia
Em todos sete peccados.

285

286

OBRAS DE GIL VICENTE.

Alleluia, alleluia.
Vamo-nos aos bons bispos.
Berz. Acharemos porcos piscos.
Dix. Oremus.
Berz. Rogo-te, irmo, que acabemos.
Porque nunca acabaremos.
Dm. Acabemos.
Berz. Por darmos alguma conta
Ao Deos rei Lucifer,
Pe-te tu a escrever
Tudo quanto aqui se monta,
E quanto virmos fazer ;
Porque a fim do mundo he perto,
E pera o que nos ho de dar,
Cumpre-nos ter que allegar ;
Pois pera provar o certo,
Escreve quanto passar.
("ftmira Todo o Mundo, homem como rico mer
cador, e faz que anda buscando algua cousa
que se lhe perdeo : e logo apos elle hum ho
mem, vestido comopobre, este se chama Nin
guem, c diz :)
Ning.
Glue andas tu hi buscando?
Todo. Mil cousas ando a buscar:
Delias no posso achar,
Porm ando porfiando,
Por quo bom he porfiar.
Ning. Como has nome, eavalleiro?
Todo. Eu hei nome Todo o Mundo,
E meu tempo todo inteiro
Sempre he buscar dinheiro,

FARAS.
E sempre nisto me fundo.
Ning.
Eu hei nome Mnguem,
E busco a consciencia.
Berz . Esta he boa experiencia :
Dinato, escreve isto bem.
DiN. Que escreverei, companheiro?
Berz. Que Ninguem linsca consciencia,
E Todo o Mundo dinheiro.
Ning.
E agora que buscas l?
Todo. Busco honra muito grande.
Ning. E eu virtude, que Deos mande
Glue tope coVlla ja.
Berz. Outra addio nos acude:
Screve logo hi a fundo,
&ue busca honra Todo o Mundo,
E Ninguem busca virtude.
Ning.
Buscas outro mor bem qu'esse ?
Todo. Busco mais quem me louvasse
Tudo quanto eu.fuesse.
Nisg. E eu quem me reprendesse
Em cada cousa que errasse.
Berz. Escreve mais.
i"v.
Glue tens sabido?
Berz. Gue quer cm extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
E Ninguem ser reprendido.
Ning.
Buscas mais, amigo meu?
Todo. Busco a vida e quem m'a de.
Ning. A vida no sei que he,
A morte conheo eu.
Berz. Escreve la outra sorte.

J(87

288

OBRAS DE GIL VICENTE.

Din. Que sorte?


Berz .
Muito garrida :
Todo o Mundo busca a vida,
E Ninguem conhece a morte.
Todo.
E mais queria o paraiso,
Sem m'o ninguem estorvar.
Ning. E eu ponho-me a pagar
Quanto devo para isso.
Berz. Escreve com muito aviso.
Dm. Que escreverei?
Berz . ,
Escreve
Que Todo o Muudo quer paraiso,
E Ninguem paga o que deve.
Todo.
Folgo muito d'enganar,
E mentir nasceo comigo.
Ning. Eu sempre verdade digo,
Sem nunca me desviar.
Berz. Ora escreve l, compadre,
No sejas tu preguicoso.
Din. Que?
Berz. Que Todo o Mundo he mentiroso,
E Ninguem falia verdade.
Ning.
Que mais buscas?
Todo.
Lisonjar.
Ning. Eu som todo desengano.
Berz. Escreve, ande la mano.
Din. Que me mandas assentar?
Berz. Pe ahi mui declarado,
No te fique no tinteiro :
Todo o Mundo he lisonjeiro,
E Ninguem desenganado.

FARCAS .
Venus

289

Capellanes y nos todas,


Pues que teneis bien rezadas
Vuestras horas ordenadas,
Concluyamos nuestras bodas,
Bodas bien aventuradas.
(Torno sua cantiga, bailando iodos
ao som della.)
Luz amores de la nina
Que tau linduz ujuz ha,
Que tan linduz ujuz ha.
Ay Diuz quien luz habr,
Ay Diuz quien luz habr.
Tiene luz ujuz de azor,
Hermuzuz como la flor :
Quien luz serviere de amor
No s como vivir,
Que tan linduz ujuz ha.
Ay Diuz quien luz servir,
Ay Diuz quien luz habr.
Suz ujuz son naturalez
De las guilas realez,
Luz vivuz hacen mortalez,
Luz muertos suspiran all, .
Que tan linduz ujuz ha.
Ay Diuz quien luz servir,
Ay Diuz quien luz habr. i
Venus
O Lusitania seora,
T te puedes alabar
De desposada dichosa,
Y pmpano de la rosa,
Y sirena de la mar,
9

90

Ver.

Ferr.

Juno.

Merc.

OBBAS DE GIL VICENTE.

Frescura de las verduras,


Roco de la alvorada,
Perla bien aventurada,
Estrella de las alturas,
Garza blanca namorada.
Dulzura de la mi vida,
Bendita quien te pario,
Mi mita esclarecida.
Oh como eres parecida
Al padre que te engendr ;
Pues que hija del Sol eres,
Que da luz toda cosa,
Y t todas las mugeres.
O Mercurio, que mas quieres
Que tal perla por esposa?
Consuelo de mis entraas,
Alma de la vida mia,
Pues que te sobra alegra,
Reparte con las montaas
Desiertas sin compaa ;
Que este galan desposado
De los mas lindos que yo vi.
Es planeta venerado,
Y te estubo bien guardado
En el cielo para ti.
Norabuena t lo viste,
Norabuena lo cobraste,
Y norabuena naciste,
Que tal esposo cobraste,
Para nunca seres triste.
Sus, faa-se o que se requere,.

FARAS.

Pois pera tainha naceo ;


Mas o que daqui s 'infere,
Marid-la no espere,
Porque no se usa no ceo.
Ver.
Guayas de ella y de su vida,
De su cuerpo y su lindeza,
Y de su gracia vellida !
A que manos es venida
La flor de la gentileza !
Venus Y nunca ha de ser preada,
Ni maridada la triste ?
Merc. Que quer ella de mais nada,
Seno ser de mi amada
O mais que tu nunca viste ?
Pall.
Todo eso tu sueno suea :
Arre ac burra de Logroiio.
Para jaula es la ciguena.
Ans que no hars duea,
Ni sers tanpoco dueo.
Venus Ay de ti lirio florido,
Ay de ti sarza florida,
Cuando tu fresco sentido
Se hallare con marido
Y le hallare marida.
Merc.
Oh renego de Turquia !
Eu lhe dou meu corao
Com tanta gloria e alegria,
Que as aves lhe cantaro
Continuada melodia.
Vesus Las aves la desposada
Sabes qne se monta ahi?

291

292

OBRAS DE GIL VICENTE.

Cantarle han por alvorada


La bella mal maridada
Mal gozo viste de ti.
Juno.
Mi esmeralda oriental,
Casar sin ayuntamiento,
Y el marido inmortal,
Esta casadica tal
Guayas de su pensamiento.
Lusit. O qu ha de ser ha de ser,
No hei de engeitar ventura,
E quanto a vossos dizeres,
Se no for pera mulher,
Ao menos serei segura
De se perder por mulheres.
Vesta Diz que vigela sin cuerda,
Y caballero sin lanza,
Y casada sin maridanza,
No se escusa que concuerda.
Lusit. Quando eu imaginar
Na honra que tanto importa,
Que ha hi mais que desejar ?
Porque se a coma for torta,
Isto a pode endireitar.
Venus
Seor, mustraste templano
Marido muy sin provecho :
Ests ahi fantasma hecho
Sin tomalla de la mano,
Y la otra puesta en su pecho.
Quien ve la cosa hermosa
Que no desea tocarla?
Vmonos por vida vuestra ;

FARAS.

Y pues ya que ha de llevarla,


No hagamos otra cosa.
(Torna Portugal da caa, e diz:)
Port.
Segundo se me afigura,
E este caso se moveo
E minha alma no segura,
Eu perdi a mor ventura
(iuo homem nunca perdeo.
Quem tem tempo e espera tempo,
Tem mar e espera mar,
Tem vento e espera vento,
No teve conhecimento
Da fortuna que cousa he.
Que rro pera doer
Grande pena em demasia,
Quando homem ve perder
O bem que pudera haver
E o leixou de dia em dia !
No sei como me enlheou
Esta safira da Persia,
Que me disse, emquanto eu vou
Chorar a me qne me criou,
I-vos Serra Solercia.
Eu errei em a leixar,
E mereo este castigo ;
Porque o verdadeiro amigo,
Se ve o amigo chorar,
Sempre o ha d"achar comsigo
E sentir as suas dores
Na sua angustia maior.
O Lusitania, os teus primores

293

29*

OBRAS SS GIL VICENTE.

Me causrao taes amores,


GUie me esqueceo este amor.
O Senhora, onde vos is?
Amor, onde me leixais?
Pera que terra partis?
Porque nao vos despeds
Deste triste que engeitais?
Dizei-lhe antes da partida
Sequer ja por despedida :
Fica-te, homem d'amargura,
Em tal dia e hora escura,
Que com a dita mais perdida
Ande o teu corpo sem vida,
E sem alma e sem ventura.
Lusit. Meu pae mnda-me levar,
E lei obedecer.
Estou pera me casar,
E vou-me longe morar,
E perto de o fazer.
Port. Senhora no vos atalho
O caminho comeado,
Porque o desventurado
Seu descanso he o trabalho,
E sua gloria o cuidado.
Nao me fiea que perder,
Pois que a fortuna malina
Vos buscou este prazer,
Como quem queria ver
O cabo mi tiha mofina.
Si t amores tenias
Con galan tan esmerado,

.
,

295
Porque quieres bodas frias,
Y vivir todos tus dias
Con hombre desnamorado ?
Que este nobre Portugal
Es fundado sobre amor,
Y es marido natural.
Estotro es un bestial,
Una siba sin sabor,
Un caldo de briguigones ;
Y Portugal, si creer me quieres,
Es baron de los barones,
Servidor de las mugeres
Mas que todas las naciones.
Juno.
Lusitania, vuelta, vuelta,
Bien te dice Verecinta ;
Hazlo ans como lo pinta,
Pues Dios quizo que ests suelta ;
Nesotro no gastes tinta ;
Porque ser cosa escura
Lo que se sigue de aqui,
Darte la buena ventura
Tanta gracia e hermosura
Sin quedar casta de ti.
Merc. Isso vde vs e ellas,
Tudo seja a seu servio,
Porque se eu fora castio,
Ja hi houvera mais estrellas.
Se Portugal desejais,
Sendo vs, eu o tomaria.
Lusit. Pois tinha eu em fantesia
Que vos doesse isso mais,

296

OBRAS DS GIL VICENTE.

Sequer por galantaria.


Portugal, senhoras, quero,
A quem Deos sempre resguarde
E seu Principe lhe guarde
Como esperais e espero,
E reine prspero e tarde.
Venus Portugal, dad os las manos,
Y luego fiesta la mano ,
El cantar que le digamos
Ser el que en Grecia usamos,
Tornado en buen castellano.
Cantiga.
Vanse mis amores, madre,
Luengas tierras van morar,
Y no los puedo olvidar.
Quien me los har tornar,
Quien me los har tornar,
Yo soara, madre, un sueo,
Que me di nel corazon.
Que se iban los mis amores
" A las islas de la mar,
Y no los puedo olvidar.
Quien me los har tornar,
Quien me los har tornar.
Yo soara, madre, un sueo,
Que me dio nel corazon,
Que se iban los mis amores
A las tierras de Aragon :
All se van morar,
Y no los puedo olvidar.
Quien me los har tornar.
Quien me los har tornar.

FAMA DOS FISICOS.


FIGURAS.
CLERIGO. MOO DO CLERIGO. BKASIA DIAS.
MESTRE FELIPE.
MESTRE FERNANDO.
MESTRE ANRiaCE.
TORRES, FSICO.
PA
DRE CONFESSOR.
CANTORES.

Segue-se a fara chamada Auto dos Fsicos,


na qual se tracto huns graciosos amores de hum
clcrigo.
(Enira o Clcrigo e diz a hum seu Moo :)

Cler. 4. erico, v t ahora


A verme Blanca Denisa,
Saldamela de guisa
Que sepa que es mi seora,
Y en despues diremos misa.
Si estuviere bien segura,
Sola, sin la madre y tia,
Dale t esta carta mia,
Y hars tan gran mesura,
Como yo se la haria.
Y estando acompaada,
Como yo estoy descuidado,
Ans muy disimulado

296

OBRAS DE GIL VICENTE.

Pergunta si est acabada


La obra de mi enfiado.
Moo. Disse-me ella tera feira :
Se tu mais me dizes nada,
Dar-t'hei tanta bofetada,
Que no saibas a primeira.
Olbae como est aviada.
Cler.
No veis vos?
Moo.
Bem o vejo
Que no vos quer sis olhar.
Cler. Caza mata el porfiar,
Como dice el refran viejo.
Moo. Diz que m'ha d'esbofetar.
Cler. Aunque ella eso diga....
Moo. Peor o ha de fazer.
Quando ella bem vos quizer,
Que me pinguem-na barriga.
Cler. V, hceme este placer.
Moo.
Diz vs missa primeiro.
Cler. Cuerpo de Dios con la misa,
Y con el mozo y con la prisa !
Moo. Creio que vosso salteiro
He esta Branca Denisa.
Cler. Ora juro Dios que bien !
Yo no soy senor de ti?
Moo. Quem no he senhor de si
Porque o sera de ninguem?
Sde vs senhor de vs
Em fazer o que deveis,
Ento he bem que mandeis.
Cler. T quieres que sea Dios?

FAKAS.

Moo. Mas clerigo ; e no vos damneis,


Se aquella moa no quer.
E dou-lhe ora que quizesse ;
(Aue proveito e que interesse
Ganhareis em vencer
A quem por vs se perdesse ?
Cler.
Por bien que puedes hablar,
No puedo acabar comigo ;
Por eso acaba contigo
De no me aconsejar,
Mas ayuda como amigo.
Bien entiendo mi dolor,
Y conozco el tu decir ;
Para mozo es buen sentir,

Mas no sientes que el amor


No se puede resistir.
Que cuanto mas sabedor
El hombre y mas esforzado,
Mas prudente y confiado ;
Mas captivo es del amor,
Y mas firme namorado.
Moo. O mestre, cousa he sabida,
Se vos lembra o entender,
Que amar quem vos no quer
He setta d'amor perdida
Pera quem se quer perder.
Cler.
No juzgaste buena trecha;
O mozo, que te condenas,
(Aue la saeta sin penas
No va .recia ni derecha :
Siempra las penas son buenas.

299

300

OBRAS DE GIL VICSNTS.

Moo. Que presta a setta empennar


Sem ter da caa esperana?
Cler. Siempre la gloria se lanza
Por las puertas del penar
Daquel que huye mudanza.
No la tengo de olvidar .y
Ans puedo yo morir.
Moo. Ora sus, quero l ir.
Cler. Viene presto sin tardar.
Moo. Ijogo essora hei de vir.
(Pai-sc.)
Cler.
Cupido mi seor,
In ie speravi e espero,
Pues testigo eres que quiero
' A ti por mi valedor
Neste mal de que me muero.
Suave eres llamado,
Amor blando y apacible,
Pues neste transe terrible
Aynda este cercado
De,tormenta y tan horrible.
A mi parecer, ya ahora,
Si el muchacho se dio prisa,
Habl con Blanca Denisa :
Plega a Dios que venga en h*ra
Que aproveche la misa.
Pues que tarda este rapaz,
Bien puede ser que arrecada :
Si estaba sola apartada,
No le ha de saber agraz
La carta ni la embajada.
(Vem o Moo.)

F ARAS.
Cler.

Aqui do viene veremos.


Estaba sola ?
Moo.
So estava.
Cler. &u hacia ?
Moo.
Ensavoava.
Cler. Y de lo al que tonemos?
Moo. Quando me vio espirrava.
Cler. Porque ?
Moo.
Porque he boa mulher.
Cler. Dime toda la verdad,
No te quede nada all.
Moo. Tudo vos hei de dizer,
No m'ha de ficar nada ca.
Disse, como eu fui entrado :
Inda esse doido perfia?
Olhae aquella fantesia
De clerigo excommuugado !
Cler. No creo que eso diria.
Moo. Esperae vs qu'inda he cedo :
Diz : Triste ma hora nasci !
E que vio ora elle em mi
O Padre lambe-Wo dedo,
Que s'alvoraou assi ?
O triste demoninhado !
Isso havia eu de fazer?
No m'haj,elle por mulher,
A maldio de Joo Calado
Haja se eu no hei de ver.
E vs dom alcoviteirinho,
Rapaz, cujo filho es ?
Pardeos eu apanho os ps,

301

302

OUSAS DE GIL VICENTE.

Se no varrer o caminho.
No torno eu l este mez.
Dou eu ja 6 emo a cigarra
Q.ue assim he espinhada.
Cler. Y la carta desdichada ?
Moo. Rompeo-a de barra a barra :
Ei-la aqui esmigalhada.
Cler. Cbreseme el corazon,
Y la sangre se me hela ;
Y pues no hay quien se duela
De mi triste perdicion,
Moo venga la candela.
Moo. Pera a missa?
Cler.
No: cuitado !
Nel infierno dire misa.
Moco.
Pezar de Branca Denisa !
3
Cler. Ay, ay, ay desamparado !
Trae la candela prisa.
(Entra Brasia Dias e diz :)
Uras. Que he isto, compadre amigo?
Cler. Es la muerte por mas cierto.
Bras. Dormireis descuberto,
E arrefeceo o embigo.
'Moo. Olhae aquelle concrto !
Bras.
No he seno frialdade ;
Fonde-lhe bua telha quente.
Cler. Ay ! que es mortal accidente.
Bras. Hui, compadre, esforade :
Nunca outrem foi doente?
Tomae ora hum suadouro
De bosta de porco velho,

FARCAS.

303

E com unto de coelho


Esfregae o pousadeiro,
E crede-me de conselho.
E se de quebranto for,
Tomade o incenso bello,
E o umo do marmelo,
E as favas de Guin,
E untae o cotovelo.
Si : e se for priorisa,
Tomade da guiabelha,
Pisada co'o fel d'ovelha.
Moo. Mas ponde-lhe Branca Denisa.
Bras. Zombais de quem no aconselha?
E se for de cadarro,
Comei caramujos quentes,
Como sahirem ferventes,
E mexilhes vos cosero,
Porque so aqui parentes.
E se for caleca passa,
Que nasce das bandarrinhas,
Tomae do umo das vinhas
E acol a sopa na braza,
Ento ferver as mezinhas.
No posso mais aqui estar,
Que ando destemperada.
Como eu for estancada,
Virei ca mais devagar.
Moo. Boa mestra he aquella honrada.
Cler. Ay, ay, ay triste de mi !
Porque la muerte no viene?
Sultela quien la detiene ;

304

OBRAS DE GIL VICENTE.

Venga y llveme de aqui,


Que el vivir no me conviene.
O muerte, pues que es hermosa,
Porqu te pintan terrible?
Y pues eres convenible,
Porqu te llaman furiosa?
Mas ante muy apacible.
Oh ! bendito Dios amen,
Porque me hizo mortal;
Que si nacera inmortal,
En pago de querer bien,
Fuera para siempre el mal.
Bras.
Compadre, faz por comer,
E curae de vossa vida ;
Que dpois da vida ida,
No ha ca mais que perder
Como a tiverdes perdida.
Cler. Es muy claro y descubierto
A los tristes de mi suerte,
Que el morir es su consorte ;
Porque la vida del muerto
No est sino en la muerte.
Bras.
Ora escutade l :
Seredes Joo de Thomar,
Que depois de morto ja
Diz que punha-se a mijar?
Tal sois vs agora ca.
Curade-vos, que doce he a cura :
Mestre Felipe vem aqui.
Cler. Venga y cure de m,
Pues mi mal no tiene cura.

FARAS.'

305

(Entra Mestre Felipe, e diz :)


Deos vos salve '. Quem'st aqui ?
Ora andar, so paixes.
Bras. Sentae-vos nessa cadeira.
M. F. Sardinha ha na ribeira.
Ora em fim de rezes
Todo este mundo he canseira.
Quanto ha que vos sentis?
Cler. Anteayer me comenz,
Y nunca mas me dej.
M. F. Ha muito que no sahistes?
Cler. Ay cuitado que me v !
M. F.
Ora sera bom que tomeis
Cristel d'agua de cevada
Com farelos mesturada.
E sabeis que comereis?
Hua alface esparregada.
(lue lhe tendes vs guisado?
Bras. Cabeas d'alcupetor,
Que no come o peccador
Desd'o sabado passado,
E dieta sera peor.
Cler.
Ay que no s donde estoy !
Bras. E se isso no quizer,
Cuidava de lhe fazer
Apisto de p de boi,
Pera no enfraquecer;
E hum pouco de manjar branco
De posperna de veado,
E pescoo de bode assado.
Assi curei eu Joo Franco,
M. F.

306

OBRAS DE Gib VICENTE.

E anda sao, Deos louvado.


M. |F.
Fazei o que vos eu digo,
Qu'essa febre he velhaca,
Procede de cordiaca :
Attentais no que vos digo?
At vermos se se apraca.
Faa elle embora as ourinas,
E pola manhan eu virei...
Entendeis ? e vos direi. . .
Entendeis? se sao sanguinhas.
Entendeis? Ento virei.
Bras.
E dar-lh'hei eu puro o vinho?
M. F. Guarde-nos Deos de mal !
No, seno agua tal...
Entendeis? cosida com rosmaninho.
Entendeis? Nao faais al.
Ora ficae-vos embora.
Entendeis? Eu terei cuidado,
E ponde-vos a bom recado.
Cler. Oh Denisa ! oh mi seora !
Como me tienes lastimado !
Mogo.
Sera bem que torne l,
Mas ha-me d'arrepelar.
Quereis-me vos trosquiar,
E nao m'arrepelar ?
Cler. V, que no te ha de matar,
Y dile que ponga en calma
La tormenta que me da ;
Que Satans no podr
Dar tanta pena mi alma,
Como mi vida ella da.

FARAS.
Y dile que no le pido
Sino que oya mis males,
Y mis quejas criminales
Quiera inclinar su oido,
Por que se vuelvan veniales.
Moo. Mande Deos s'eu l entrar
Que no me corte as orelhas.
E se hi estiverem as velhas?
Cler. No deben ahora ah estar.
Moo. Con gran temor vou, pardelhas.
Bras.
Aqui vem Mestre Fernando.
(Entra Mestre Fernando, e diz:)
M. F. Oul, que he isto? que he isto?
Bras. Venhades com Jesu Christo,
Mestre Fernando amigo :
Quem vos chamou pera isto?
M. F. Porque ! sou de palha eu ?
Bras. Vs sodes surlugio.
M. F. No est ferido ?
Bras.
No.
M. F. Pois que foi ?
Bras.
Mal que lhe deu.
M. F. Eu tambem Fisico sam :
Tanto sei ca como l.
Oul, que he isto? dormis?
Cler. Ay !
M. F.
De que vos sentis?
Mostrae esse brao ca.
Isto procede dos rins,
Ou pulso cordiz sera.
Mijastes no ourinol,

307

308

OBRAS DE Gil VICENTE.

Que vos faa boa prol ?


Bras. No.
M. F.
Pois sem isso quem saber
Se he da chuva, se do sol?
Dizem os nossos doutores
Ouvi-lo? ouvis que vos digo?
Non es bona purgatio, amigo,
lla qui incipit cum dolores,
Porque traz flema comsigo,
E lla qui incipit trarantran,
Quia tranlarum est.
Ouvi-lo? De fsico sam eu mestre,
Mais que de surlugio,
Emque me chamo sudeste.
Chamo-me vento assomado
Alguns assi... ouvi-lo?
Porque alo o gorgomilo,
E ando assi espetado :
Mas eu rio-me daquillo.
Que tendes pera comer?
Bras. Pastel de lebre.
M. F.
Pera a febre
Julgamos a que tem lebre?
Ora vos fao a saber
Que ha de comer cousa leve*
Nem a lebre, nem coelho,
Nem porco, nem cao,
Congro, lamprea, tubaro
No coma de meu conselho,
Inda que estivesse so.
Bras. Ora pois que comer?

FARAS.
M. F. Huns poucos de gros torrados.
No sejo muito salgados.
E manhan eu virei ca,
Ainda que ps os dados.
(Vem o Moo:)
Moo.
Diz que boa prol vos faa
Aquessa vossa doena,
E se fra pestilena,
Tivera muito mais graa.
E vdes aqui a sentena.
E depois que sahi fora,
Escutei, e ella dizia
Entre si : Oh que porfia !
Moura, moura na ma ora,
Leixar-m'ha sequer hum dia.
Elle 6 domenus obisco
Sempre c'os olhos em mi,
A offerta, e elle alli !
Parece melro mourisco :
O Demo o elle trouxe aqui.
Daqui podeis vs tomar
O melhor que vos vier.
Cler. De donde el mal tien poder.
(Aue bien se puede ganar
Sino ser cierto el perder?
V, llmame mis amigos,
Con que solia cantar,
Glue cantem quando espirar,
Y tambien sean testigos
Cuan fuerte cosa es amar.
Veran como el alma se va,

30f

310

Buas.
M. A.

Cler.
M. A.

OBRAS DE GIL VJCEXTE.

Y queda el cuerpo sin vida.


Y la vida oferecida
A quien la muerte me da :
Y sea muy bien venida.
Verme han triste acabar,
Verme han el mundo dejar
Tan contento de partir,
Como ellos de quedar.
Mestre Anrique vem aqui.
(Entra Mestre Anrique c diz :)
Hao ! quien est ac ? Sois vos ?
Pues con la ayuda de Dios
Presto os erguereis de ah.
Alto, que Dios es con nos.
Cuanto ha que os sents mal ?
Cuatro dias. /
A qu hora

Os tom?
Cler.
Por la maana.
M. A. Mi amor me recordara,
Desde entonces hasta ahora
No hubiera quien me llamara.
Mustrame el pulso ac,
Y veremos que tien lebre.
Aguda teneis la fiebre,
Muy recia y intrinsa est ;
Pero yo le har que quiebre.
Sals bien?
Cler.
Salgo de seso.
M. A. Esta fiebre es sincopal,
Y la enfermedad tal.

FARAS.

Curase con mucho peso...


Habeis mirado? que es mortal.
Que cuando la clera adusta...
Habeis mirado? se enfria,
Vulvese melancona,...
Habeis mirado ? y disgusta
lia salud de la sangria.
Habeis mirado? Y ans
Que habemos exprieneia
Que no hay ninguna dolencia
Que yo quisiese para mi
En cargo de mi conciencia.
Que tiene para comer?
Bras. Tem alli quatro coelhos,
Dous caapos e dous velhos ;
E hum chourio : pera beber
Muito bos vinhos vermelhos.)
M. A. Par dios ! vos... habeis mirado?
Estais danosa, mi parienta.
Es flebre contnua y quenta..
Habeis mirado, y bien mirado?
Errada estais en la cuenta.
Habeis mirado? No coma...
Habeis mirado, senora ?
Sino pasas por ahora ;
Y buscalde una redoma
Grande de agua de alcanfora.
Aquesto le procedi
De comer demasiado,
Y es menester purgado.
Habeis mirado? Y digo yo

311

312

OBRAS DE GIL VICENTE.

Que este hombre est opilado


El tiene fiebre podrida. . .
Habeis mirado ? efmera ;
Habeis mirado ? de manera
Glue para dalle la vida,
Es menester que no muera.
Ois, duea? Tomar
la noche un violado,
Y de maana... habeis mirado?
Un cristel, y salir,
Para el ser aliviado.
Tiene el sol en la cabeza
Del verano que pas.
Habeis mirado? Pero yo
Antes que su mal maj crieza,.
Dar el remedio 6 no.
Sois vos el que me dicen ?
Habeis mirado? esforzad,
Glue esas fiebres en verdad,
GUie por mas que ellas aticen,
Yo las sacar de all.
Mantenga Dios el casamiento
Del Ruybarbo con aquella
Muy preciosa doncella
Caa fistola, que yo siento
Glue sereis sano con ella.
Y cocelde unas borrajas,
Y su hierba de caldo caliente,
Habeis mirado ? que el doliente
No se cura con las pajas.
Habeis mirado, pariente?

FARAS.

Moo.

Cler.
Moo.
Cler.

Br as.
Torr.

Cler.
Torr.
Cler.

313

Hareis las aguas manaria,


Y vern vervos priado,
Dios queriendo : habeis mirado ?
Y hacelde una tizaa,
Y yo teme dl cuidado.
(Vai-se.)
Cant'eu no posso entender
Estes fsicos, senhor :
Vs sois doeute d'amor,
E elles querem-vos metter
Per caminho d'outra dor.
En todo dicen verdad.
Eu lhes vejo acertar.
Quien tiene amor y pesar,
Tienc toda enfermedad,
Que natura puede dar.
Aqui vem o Fisico Torres.
(Entra Torres, e diz :)
Ora bem Deos vos ajude,
E vos d muita saude.
Isto no sero amores?
Hontem quiz vir e no pude.
Topei alli com Mestre Gil
E com Luiz Mendes, assi
Que praticamos alli
O Leste e o Oeste e o Brasil
E l lhe dei razo de mi.
Este mal he ja de dias?
Hoy hay diez que as esto.
A que horas vos tomou ;
Alli las avemaras,
Y de maana comenz.

314

OBRAS DE 6U VICENTE.

Torr. Dez dias de manhan cedo


Estava Saturno en Aries...
Doem-vos as pontas dos ps?
Cler. Ay mezquino, que no puedo
Decir mi mal de que es !
Torr.
Bisexto he o anno agora,
Em Piseis estava Jupiter,
Saturno ha de desfazer
Quanto natura melhora :
Bem ha aqui que guarecer,
Tambem em Piseis a lua.
Isso foi em quartafeira;
Mercurio hora primeira :
No vejo causa nenhua
Pera febre verdadeira.
E tambem deste ajuntamento
Dos planetas desta era....
No sei... no sei... mas per mera
Estrologia. . . no sei, eu sento....
No sei que he, nem que era ;
Mas hade saber quem curar
Os passos que d hua estrella
E ha de sangrar por ella,
E ha de saber julgar
As aguas n'hua panella.
E ha de saber propores
No pulso se he ternario,
Se altera, se he binario,
E saber quantas lies
Deu Ptolomeo a lRei Drio.'
quem isto no souber

PARCAS.

loco.
!*orr.
loco.

Forr.
ras.

orr.

3i

Va- se beber disso mesmo :


E Mestre Nicolau quer
E outros curar a esmo !
Ora agora quero ver.
Mostrae ca ora, e veremos
Este pulso que nos diz.
Oys ! qu 'altera ; ora chis,
Glue antes que nos casemos
Havera outro juiz.
Isto procede do bao ;
Bem o mostrao essas cores.
Tendes vos nas costas dores?
Pardeos, em grande embarao
Vejo eu estes doutores !
Glue dizeis l, moo? hao !
Fallas e nao sab.es do ninho ?
Glue levais mui bom caminho :
Est a doena em Bilbao,
Vos is pera Entre Douro e Minho.
Que comedes, que, doente?
Que nao come nada nao.
Hum focinho de caao
Lhe tenho all bem valente,
Com seu caldinho, que he sao.
Hontem lhe tinha guisadas
Hilas trincheiras de vacca,
Que esforo a pessoa fraca,
E duas morcellas assadas,
E elle fallou-me em Malaca,
Nao coma senao lentilhas,...
Si, ou abobora cosida...

316

OBRAS DE GIL VICENTE.

Si ; e assim Deos dar vida.


Si, e dem-lhe caldo d'ervilhas...
Si que esta febre he parida.
Agua cosida lhe dareis
Com avenca... si, ento
Amenhan lhe tiraro
Algum sangue... si, entendeis?
Si... ento... si... logo he so.
Porm a fallar verdade,
Segundo seu pulso est,
E segundo os dias que ha,
E segundo a viscosidade,
E segundo eu sinto ca,
E segundo est o zodaco,
E segundo est retrogrdo
Jupiter, confessado
Ha mister, que est mui fraco,
Si... si... si, bem trabalhado.
(Vai-se.)
(Vem. o Frade a o confessar, e diz o)
Cler.
A llamar os envie;
Padre, padre, confesion ;
Porque me voy de pasion,
De aqui poco morir
De dolor del corazon.
Porque el humor radical
De humor volvise amor.
De amor grave dolor,
De dolor, estoy mortal,
De mortal, vivo amador.
Padre, digo Dios mi culpa,

FARAS.
Que amo una doncella
Tan graciosa y tan bella,
Que su gracia me desculpa,
Aunque me muero por ella,
Y, padre, confieso mas,
Que otra cosa no adoro.
Ay de m, que me muero,
Y t, seora quedars
Satisfecha con mi lloro.
Digo mas mi culpa vos,
Glue me pesa ser nacido,
Y con todo mi sentido
Estoy tan fuera de Dios,
Como en este amor metido.
Digo mi culpa, seor,
Que aunque me veo partir,
No me puedo arrepentir,
Porque es tan dulce el dolor,
Que no me amarga el morir.
Padre, no soy quien solia,
Ya os confieso mi pena;
No tengo contricion buena,
Ni tengo el nima mia,
Glue este mal la hizo agena.
Qu har?
Pad.
Qu habeis de hacer ?
La parte hzoos engao?
Cler. No, padre, mas desengao,
Que no quier oir ni ver
La desculpa de mi dao.
Pad.
Ha mucho que os enamor?

317

818

OBRAS DE GIL VICENTE.

Cler. Dos aos.

Pad.

Santa Mara!
Eso es penar un da.
Oh ! triste mesquino yo,
Cuan luenga pena es la mia !
Decid vuestra culpa Dios,
Que muy ana os matais.
Ante omnia os congojais :
Decd que no estais en vos,
Pues tan sin tiempo os quejais.
Dos aos, y aun diez y medio,
Dos dias son en amores,
Para merecer favores.
Y l que pide remedio
Es muy flaco en sus dolores.
No leistes de Jaco
Cuanto servio por Raquel ?
Aquel fue amante fiel,
Que juro Dios que afuera yo
Ninguno lleg aquel.
Ah cuerpo de Dios ahora 1
Ans se hizo Roma luego ?
Ha quince aos que ardo en fuego
Sin ella decir un hora
Ni, viste all fray Diego.
Vos pensareis que amores
Son como bolifolos entiendo,
Sino ferviendo y comiendo ?
Pues no se cogen las flores
Sino espina sufriendo.
No mereces penitencia

FARAS.

Por ser namorado, no,


Porque Dios lo orden ;
Mas antes mala conciencia
Es de aquel que nunca am.
Dijo Dios por la hermosa,
La cual Eva habia nombrado :
Por esta dejar el hombre
Padre y madre y toda cosa :
Luego amada es su renombre.
Y aunque diga algun letrado
Por la muger que es dada;
Eva no era aun casada,
Cuando por Dios fue mandado
Que la muger fuese amada.
Y cuando dijo, por ella
Deje el hombre toda cosa,
Entindese por la hermosa,
Porque tal estaba ella,
Y no por cualquier tinosa.
Quede as esto misterio
Suspenso hasta el verano.
Sobre vos pongo la mano,
Como diz el evangelio,
Y haced cuenta que sois sano.
Voyme la huerta de amores
Y traer una ensalada
Por Gil Vicente guisada,
Y diz que otra de mas flores
Para Pscoa tien sembrada.

319

320

OBRAS DI GIL VICENTE.

(Viero quatro cantores, os quaes cantro


a vozes esta ensalada.)
En el mes era de Maio,
Vspora de Navidad,
Cuando canta la cigarra,
Quem ora soubesse
.1 Onde amor nacesse,
.iQue o semeasse.
ii Media noche con lunar
Al tiempo que el sol sala.
Record, que no dormia
Con cuidado de cantar.
Ervas do amor, ervas,
Ervas do amor,
A las puertas de la villa,
En medio de la ciudad,
Dijo el abad Teresa :
Tan buen molinero sondes,
Martin Gomes,
Tan buen molinero sondes.
Era la Pascoa florida
En el mes de San Juan
Cuando la mona parida
Pergunto al sancristan
Teresica del Robledo,
Que te guarde Dios de mal :
Respondi Pero Pinan
Estae quedo co'a mo,
Frei Joo, Frei Joo,
Estae quedo co'a mo.
Padre, pois sois meu amigo,

FARAS.

321

Quando falardes comigo,


Frei Joo,
Estareis vsquedo, mas estai vs quedo,
Mas estai vs quedo co'a mo ;
Frei Joo, estai quedo co'a mo.
Perguntaban cual Pirico,
Glual Pino ou qual Frei Joo,
No diria quien era la moa,
k No diria quem, nem quem no.
Yo yendo mas adelante,
Dijo Francia en su latin :
ii Se volen la guerra, se volen la guerra,
.iJBone xi si volen la guerra,
Vera xi si vole la guerra.
Dijo la vieja en Portuguez :
Palombas, se amigos amades
No riiades
Paz in celis, paz in terra
d E paz no mar :
Tan garredica la vi cantar
Ficade amor, ficade,
Ficade amor.

FIM DO LIVRO IV.

DE

GIL VIGENTE.
LIVRO V.
DAS BUAS VARIAS.
Paraphrase do Psalmo Ii.
Misercrc mei, Deus, secundwm magnam Sfc.

^lue farei angustiado,


Onde caminho perdido,
Onde tou descaminhado
Peccador desatinado,
Homem embalde nascido !
Ceos e terra contra mi,
E toda outra creatura,
Todos me lano de si,
Porque o meu Deos offendi
Por minha desaventura.

324

OBRAS DE 6IL VICENTE.

O mar pera mi sanhoso,


A terra treme comigo ;
O sol tao manso e fermoso
Contra mi se volve iroso,
Como meu mortal imigo.
Acho a noite escandalosa,
E maldizem-me as estrellas ;
A manhan clara e graciosa
Contra mi se rompe irosa
E me mostra mil querellas.
O dia se despedaa
Com graves sanhas supernas ;
O ar me acusa da praa,
E o fogo m'ameaa
Com vivas chamas eternas.
Horas, pontos e momentos,
Os cursos da natureza
Me desejo dar tormentos ;
Os mais ledos elementos
Me presento mais tristeza.
No paco celestial
Todos teni guerra comigo :
Onde irei vaso infernal ?
Que farei a tanto mal,
Que lhe no acho abrigo ?
Eu se desesperarei,
Onde estou o peccador ?
A quem me soccorrerei?
A ti, meu Deos e meu Rei,
Meu immenso Redemptor.
E direi a sua Alteza :

OBRAS VARIAS.

Amercea-te de mi,
Deos, segundo a grandeza
Da misericordia e largueza
Que tu es e ella he ti.
E segundo a multitude
De teus amerceamentos,
Destrue minta maldade
Secuta gran piedade
Em meus desfalecimentos.
Miserere mei, Senhor
Deus, cui proprium est ;
Miserere, Redemptor,
O justo amerceador
Desta alma que tu me deste;
Miserere, que tu es,
Todo o al por ti tem ser ;
Miserere, pois que ves
Que sam lanado a travs,
E no me posso valer.
Daqui avante lava a mi
Ab iniquitate mos,
E do mal que consenti
De peccados contra mi,
Lava o que tanto me afea.
Porque certo eu conheo
A minha grave .maldade;,
Bem conheo que pereo,
Ave d, Senhor, te peo
De to grande enfermidade.
Meu peccado he contra mim
Sempre que nunca me leixa.
10

32S

326

OBRAS DE Gil. VICEUTI.

Lava-me, fonte sem fm,


Olba que a ti so me vim,
E minha alnrn a ti se queixa.
A ti so, Seuhor, pequei,
Ante ti 7. a maldade,
Justifica-me, gran Rei,
Que podes mudar a lei
De justia em piedade.
E sers justificado
as palavras qne dissesto.
Ves-me aqui atribulado,
De todos desemparado,
Cumpre o que e prometteste ;
Clue nunca te acordars
Dos males do penitente,
uando julgado sers
Clue te vingas cruelmente.
Glue venas digo, Senhorr
Contra taes murmuradores ;
Esquea-te o mcu eiTOr,
due me sinto peccador
O maior dos peccadores.
Em maldades concebido,
E em peccados me gerou
Minha me enfraquceido,
De torpe terra vestido,
Em miseria me formou.
No, Senhor, porque isto abaste
Escusar-me de peccado ;
Porque a Verdade amaste,
As cousas me revelaste

ORRAS VARIAS.

Incertas a meu cuidado.


As occultas conheci
De tua sabedoria j
Manifestaste-as a mi,
E eu ingrato consenti
Sujar-te minha alegria.
Com hyssope espargers,
E serei limpo mui breve ;
Tu, Senhor, me lavars,
E minha alma leixars
Muito mais alva que a neve.
Porque a obra que fizeste
De baixa massa terrena,
Que de terra compozeste,
E esta alma que tu me deste
Mandes que saia de pena.
Meus ouvidos folgaro
Com prazer alegre, e assi
Os ossos revivero,
Quo humilhados esto
Tremendo diante ti.f
De meus disformes peccados
Alerte faciem iuam ;
Crimes e mal confessados.
Senhor, no sejo lembrados,
Minhas maldades se estruam.
Corao limpo em mi cria,
Deos, que de nada criaste
A mais alta hierarchia,
E ao corpo onde eu jazia
Minha alma de l mandaste.

327

328

OBRAS DE GIL VICENTE.

\ es-me aqui tornado nada,


Renova em mi esprito direito ;
Per minha mo foi damnada;
Faze tua obra acabada,
No olhes que he defeito.
E obrado este lavor,
Meu Deos, que te peo tanto.
No tires de mi, Senhor,
Tua face e resplandor
E o teu esprito saneio.
Porque obrando mais, mais mal.
Torna-me aquella alegria
De tua saude eternal,
E de spirito principal
Me confirma cada dia.
Que no tenho foras no
Sem ti pera defender-me ;
Tu es Deos pera perdo,
Eu homem pera afflio,
E tu pera soccorrer-me.
Aos mais ensinarei
O caminho da verdade,
E converter-se-ho a ti
Quando se doer de mi
Tua eternal piedade.
Lbera me dos sangues, Deos,
Deos de minha saude,
Que so os proximos meus,
E sendo criados teus
Oftendi mui a miude.
E querello diante ti

OBRAS VARIAS.

Por minha condemnao ;


D tu sentena por mi :
Pois que ja me arrependi
Passe por satisfao.
E minha lingua louvar
Tua justia clemente,
Todo o Ceo se alegrar,
Todo o peccador vir
A ti mui devotamente.
Os meus beios abrirs,
E minha boca apregoar
O teu louvor onde ests :
Outras cousas no quereras,
Nem dadiva te alegrar.
Porque, Senhor, se tu quizesses
Sacrifieio, da-lo-hia.,
Se presentes recebesses,
Se por peitas te vencesses,
Tudo te offereceria.
Mas no te deleitars
Nas offertas temporaes,
Tu as tiras, tu as ds,
Senhor, no te alegrars
Com estes servios taes.
O sacrifieio a Deos aceito
He o spirito atribulado
Polos males que tem feito,
Porque no andou direito,
Porque se ve condemnado.
E vendo-o tu, Senhor, afflicto,
Com gloria o recebers ;

329

330

OBRAS DE GIL VICENTE.

Porque o choroso esprito


E o corao contrito
Tu o no desprezars.
Ave merc de Sio,
Madre Igreja que fundaste,
Por quem padeceo paixo,
Morte cruel sem rezo
Hum so filho que geraste.
E sero edificados
Os muros de Jerusalem,
Os que foro derribados
Aquelles anjos damnados
Que perdro tanto bem.
Os quaes muros refars
Sem trabalho nem preguia
Gluando formos onde ests,
Entonces receberas
Sacrifcio de justia.
Senhor meu Deos, tu recebe
Em oflerta esta orao,
E a minha alma percebe
Que caminhe como deve
Pera minha salvao.

obras varias.

331

Sermo
Feito christiansima Rainha D. Leonor, e
pregado em Abrantes ao muito nobre liei D.
Manuel, primeiro donome, na noite do nacimenio do IUustrissimo Tffante D. Z/uis. Era
do Senhor de 1506. JE porque alguns foro
em contrrio parecer que se no pregasse ser
mo dJ homem leigo , comecou primeiro dizen
do, antes de entrar no sermo :
Antes de aqueste muy breve sermon,
Placiendo la sacra sciencia divina,
Muy receloso de gente malina,
A mis detractores demando perdon.
Los quales diran con justa razon :
Psose el perro en bragas de acero :
Daran mil razones, diciendo que es yerro
Pasar los limites de mi jurdicion'.
A aquestos respondo, que me den licencia
Aquesta vez sola ser loco por hoy,
Y toda sil vida licencia les doy
tlue pueden ser necios con reverencia.
Y mas le suplico hayan paciencia,
Que esta locura lio pasa de aqui ;
Y yo ge la doy que aqui y all
Lo sean por siempre, que es mas preminencia.
Yo que lo sea esta noche y no mas,
Y quiero qne ellos las noches y dias.
Escuchad, seores, las palabras mias
Si este partido est es compas.
Per signum crucis, oh calla, no mas,

332

OBRAS DE Gib VICBKTB.

Per signum crucis, oh callad por Dios,


De inimicis nostris libera nos,
Dem noster. Retro Satanas.
Tema.
Non volo, volo, et deficior.
Habentur vei-ba ista originatr
in partete istius aulae, gtw-'
scripsit aliquis shtltus.
Como aquel triste que va caminando
Con grave congoja, ambriento, eansado,
Por esteril tierra y gran despoblado,
Los cortos atajos siempre anda buscando,
Ans yo indino que voy predicando
Por este desierto de mi pensamiento,
Esteril de sciencia, de gracia ambriento,
No cumple ni quiero andar rodeando.
Pediendo la gracia por comparaciones
Aquella preciosa ab eterno criada,
Subida en el cielo p'or nuestra avogada,
Y procuradora de nuestros perdones ;
Aquella Seora que alcanza los dones
Y gracias que habemos del Spiritu Santo,
Nos encomendemos cantando aquel canto
due os encomiendan en otros sermones.
Ave Maria ab initio creata,
Gratia plena concepta e nacida,
Dominus tecum, por l escogida,
Benedicta tu, rosa preservala,
ulicribus omnium beata,

OBRAS VARIAS.

333

Benedictos fructus del verbo divino


Ventris tui, Domina, de tanto bien dio,
Jesus, Maria, y sed t nuestra avocata.
Muy serensima Reina y seora,
Devoto auditorio, hermanos en Christo;
Aquestas palabras, si bien habeis visto,
De mi fundamiento que oistes ahora,
Hallareis escritas de carbon ah fuera.
Escribilas loco sin le faltar nada,
Segun que dicen, que pared cayada
Papel de locos, oireis cada hora.
Non volo, volo, et deficior.
En nuestro comun hablar por compas,
Sin nada quitar ni mas aadir,
Quieren aquestas palabras decir,
No quiero, quiero y es por demas.
Mediante la gracia del Spiritu Santo,
Tres partecitas har del sermon,
Y todas tres partes en declaracion
De aqueste mi tema, del todo y del canto.
La primera parte ser declarar
Esto no quiero, que es lo que. no quiero ;
En la secunda que es lo que quiero,
Y muy brevecico, por no os enojar.
En la tercera habeis de notar
Cuales son las cosas que son por demas,
Autorisadas por Santo Tomas ;
Y esto acabado ireis reposar.
Cuanto la parte que dije primera,
Que dice non volo, scilicet no quiero,

3*4

OBRAS BB GIL ViCEKTB.

Aqueste no quiero declaro primero,


Ans procedendo de aquesta masera,
No quiero deciros, ni nadie lo quiera,
Como Dios es ans uno y trino ;
No quiero deciros su poder divino^
Que obra ea s y que obra fuera.
No quiero arguir que es lo que haca
Antes que el cielo y la tierra criase,
O porque no hiio tal que no pecase
Aquella primera celeste hierarquia.
No quiero dar cuenta adonde tenia
Dios este mundo antes de criado,
Ni daros razon como es engendrado
El hijo del Padre, por ninguna via.
No quiero mover question teologal,
Si otro respeto, salvo encarnar,
Le hizo la humana natura tomar,
O porque no tom natura angelical:
Ni tomar cuenta al Verbo eternal,
Si cuando encarn se apart del Padre.
O si d'oo initio perserv su madre ;
Ni quiero hablaros ueste original.
No quiero deciros especulaciones
De Santo Agostin de cntate el celra ;
No quiero de Scoto alegar ni letra,
No quiero disputas en predicaciones.
No quiero deciros las opiniones
De los que hacian el mundo ah eterno ;
Ni alegar texto antigo moderno,
Si el Papa si puede dar tantos perdones.
Ni el precipto que est condenado,

OEIiAS VARIAS.

IV el saber divino si tiene alvedrio,


Y su alvedrio si tiene podero
Para mudar-se lo determinado.
No quiero estas dudas, porque es escusado
Subillas ninguno al predicatorio;
Ni disputar si el Romano Papado
Tiene podero en el Purgatorio.
No quiero arguir escusada question,
Si fue el Infierno antes del pecado ;
No quiero arguir si el fruto vedado
5i era manzana 6 pera melon.
No quiero deciros naqireste sermon
Si fue el diluvio curso natural,
Segun los de Grecia ; si fue divinal
Ira saosa con causa y razon.
No quiero tocar secretos guardados,
No quiero meterme en divinas honduras,
Ni quiero volar naquellas alturas.
Do queman las alas los desasesados.
No quiero ser uno de algunos letrados,
ue por demostrarse profundos varoues,
Disputan consigo en las predicaciones
Y en las escuelas estanse callados.
No quiero arguir en placer ni pena,
Los aos de Arquiles, Patreulo cetra,
Ni desquadrinar aUen efe la letra,
Si era mas luenga Eeuba 6 Elena.
Qu hace la historia ser mala buena
Saber donde (Jlises err el camino ?
Ni quiero ser cierto ni ser adivino,
Quien fue el primer juez en Vaena.

333

335

OBRAS DE GIL VICETTE.

Ans que concluyo el no quiero, que e>


.Mi voluntad naqueste sermon
Dejar los secretos de especulacion,
1 decir las cosas que tienen mas pies.
\ porque, seores, no os enhadeis,
Esto es cuanto la parte primera.
La otra segunda es de otra manera,
Que dice quiero. Veamos lo que es.
Quiero deciros con grande querella.
Quiero deciros de parte de Dios
Y de Santa Maria, que anda con vos,
\ conmigo el diablo la zacapella,
Quiero deciros que moza y que vieja,
Y viejo y mozo, monja y fraile,
Todos andamos al son de su baile,
Vos yo, y aquel y aquella.
Juro las rdenes que recib,
Y al sacramento que hoy celebr,
Gtue nunca en el mundo hubo tanta fe
Con el Infierno como hoy ha hi.
Sedme testigos que os lo digo ans.
Que ya este mundo no puede turar :
No puede turar, quier-se finar,
Segun las seales que en l conoc.
Nueve seales habeis de saber
Que tiene el enfermo que se quiere finar:
Lo primero es que pierde el gustar ;
Y lo segundo el desconoeer.
Lo tercero es que se pierde el ver ;
El cuarto apaa la ropa sin tiento,
El quinto tiene un desasosegamiento,

OBRAS VARIAS.

337

Que no se contenta de estar ni yacer.


Lo sexto no hace eura operacion .^
Seteno que tiene los cabos muy frios :
Engruesa la lengua, dice desvarios,
Que es lo octavo seal con razon.
El nono y ltimo, con fuerza y pasion
Aprieta los dentes con ansias mortales.
Quiero deciros que aquestos seales
Veo que el mundo est en conclusion.
Digo que la primera seal : pierde el gusto.
En cuatro manjares de grande sabor
Se mantiene el mundo de necesidad ;
El uno es justicia, el otro verdad,
El otro es la fe, el otro el temor.
Y pues perdi el gusto de este su dulzor.
Y tales manjares cobr tal fastio,
Yo os juro, seores, neste hbito mio,
Que nunca jamas sane el su dolor.
Ol mundo ! seal es de tu perdimiento
Perdieres el gusto de tantas dulzuras.
Oh evangelios, santas escrituras,
Como os hacen molinos de viento !
Acudid al mundo, que est en pasamiento,.
JVo puede vivir, ya no: gusta nada.
Otra seal muy mas apretada
Que ya no conoce ; que es mas perdimiento.
Ya no conoce su criador,
Ya no conoce para quo es criado,
Ya no conoce que cosa es pecado,
Ya no conoce si tiene seor ;

338

OBRAS DE GIL VICENTE.

Ya no conoce su redentor,
Ya no conoce sus santos consejos,
Ya no conoce ni mozos ni viejos,
Ya no conoce que cosa es mejor.
Ya no conoce quien lo viene ver,
Ya no conoce ni padre ni madre,
Ya no conoce compadre ni comadre,
Ya no conoce pesar ni placer.
Ya no conoce su desconocer,
Ya no conoce hermano ni hermana,
Ya no conoce parienta cercana,
Ya no conoce ni quiere conocer.
Tercera seal.
Otra seal tercera le siento ;
ftue pierde la vista, los ojos quebrados.
No ve los peligros de tantos pecados,
No ve el camino de tanto tormento,
No ve la ceguera de su pensamiento,
Ni ve los barrancos nesta triste estrada ;
Ni ve ad va ni que posada,
Ni siente lo cierto de su perdimiento.
No ve lo que toma ni lo que le dan ;
No ve lo que deja, ni ve lo que lleva ;
No ve quien lo alumbra, ni ve quien lo ciega ;
Ni ve lo que pide ni que le daran :
No ve quien lo llama, ni que afan;
No ve lo que topa, ni de que se guarda;
No ve lo que viene, ni ve lo que tarda ;
No ve lo que es piedra, ni lo que es pan.

OBRAS VARIAS.

339

Cuarta seal: apaa la ropa.


El cuarto seal apaa la ropa,
lia ropa que halla, agena y la suya,
La suya y agena, no pergunta cuya ;
Cuya seal es su vida poca,
Poca firmeza, ceguera muy loca,
Loca la vida y loca la muerte,
Muerte que apaa en paso tan fuerte,
Fuerte seal, que es fuego de estopa.
Apaa ya el mundo pierna tendida,
Apaa ya ciego sin conocimiento,
Apaa sin gusto del mantenimiento,
Apaa sin gusto, quiere dar la vida,
Apaa de prisa, que est de partida ;
Apaa, no sabe ya lo que se toma.
Apaa la ropa la casa de Roma,
Apaa la manta de cualquier partida.
El quinto seal (oh no me duerma ninguno)
Esque el doliente no se contenta de estar sosegado,
No se contenta de estar bien echado,
Ni agradece ya mas bene alguno.
Impaciente y muy importuno ..^
No estoy bien aqui... quirame ir de aqui...
Adonde alli ? oh qu seal de paso fortuno !
Poco vivirs ; oh, triste de ti !
Quirame vestia:., quirame levantar...
Oh! levantadme... quiero ser Conde...
Quiero seoria... Conde ! y donde?
Ad quieres ir, que no hay lugar ?
No puedo aqui estar ni asosegar :

340

OBRAS HE GIL VICESTS.

Cuitado, qu has? Oh, no te contentas?


Naciste desnudo y en cama de riendas
No asosiegas? poco has de turar.
Estos traveseros quitaldos all...
No quiero esta rivnta ; dadme un obispado. . .
No estoy bien contento, no estoy bien echado :
Esta cabecera muJalda acull...
Bullidme esta cama que muy dura est.
No puedo aqui estar ni asosegar. . .
Quierame ir Roma, quiero arcebispar ^
Quiero ser Papa... Oh, el mundo se va!
Sexto seal: no obra en l medecina.
Ya no le aprovechan las curas divinas
Del hijo de Dios por l tan sagrado,
Y por su salud muerto y crucificado,
Y no obran ya en l sus doctrinas;
Ya no le aprovechan callentes ni frias
Las yerbas y flores de la redencion,
Ya no le aprovecha que est en conclusion,
Sedme testigo que acaba sus dias.
Ya no le aprovechan aguas estiladas
Por los ojos claros de la gloriosa ;
Ya no le aprovecha la pasion penosa
De mrtires y vrgenes por l degolladas :
Oh qu seal de presto acabadas
Aquestas pisadas del mundo doliente !
Pues de sus males sanar no consiente,
Y est al cabo de sus tres jornadas.

OBRAS VARIAS.

34l

Stimo seal: tiene los cabos frios.


Frias las manos para dar loores
Por males 6 bienes Dios su seor ;
Fras, nieladas en por su amor
Dar de lo suyo pobres pecadores ;
Frias, muy frias en pagar sudores
A cuantos cristianos por esclavos tuve ;
Frias sin sangre en pagar lo que debe
A los cuitados de sus servidores.
Frios los pies para visitar
Los desamparados de los hospitales ;
Frios los cabos son ciertas seales
Que el triste del mundo se quiere acabar.
Frios, hielados para caminar
A ver su Dios, ni romeras;
Frios, mortales, que acaba sus dias :
El mundo, hermanos, se quiere finar.
Otro seal octavo lo ataja,
Que engruesa la lengua, la habla turbada ;
Engruesa la triste que est emponzoada
De falsos testimonios por dame esa paja.
De noche y de dia parlar como graja
Lisonjas, mentiras de vidas agenas. ' Oh mundo, t mueres, pues ya que apenas
De las cosas buenas no hablas migaja.
Oh qu seal, pues que ya dispara
Con lengua daosa la habla turbada.
El nono seal, fin de esta jornada,
Aprieta los dientes con rabiosa cara,
Medoa, espantable, terrienta, amara,

342

OBRAS BE GIL VICENTE.

Con tanta soberbia y cada vez mas.


Oh triste de mundo, poco turars ;
Antes no te viera, que tal te hallara.
Cerrados los dienta.
Oh pese tal, y Dios es testigo ;
Oh reniego de tal, y Dios es presente ;
Oh mala seal cuando el doliente
Se muerde las manos lidiando consigo.
No s que te diga ni s que te digo ;
A segun las visages que haces sin tiento,
Ya te aparecen en tu finamiento
Aquellas visiones de nuestro enemigo.
T perdiste el gusto por le co nplaeer,
Perdiste la vista por le contentar,
Apaas la ropa para se la dar,
Ganaste soberbia por no le par 1er.
Oh soberbio mundo, frailes y abades,
Soberbios beguinus, soberbios e .tanos,
Soberbios los meses, soberbios lis aas,
Soberbios palacios, sobebias herdades,
Soberbio te finas en cama de engaos.
Y pues los seales de tu acabamiento
Ya estan al cabo do ninguno apela,
No puede tardar aquella candela
Dal cielo espantable coa ira y tormente.
Ser tal la hora de tu pasamiento,
Que solo en vella las gentes se finen,
Dum veneris judieare seeulum per jncm ;
Esta es la candela de tu finamiento.
Esto abasta, sefioies, no mas

OBRAS VARIAS.

Cuanto la parte segunda presento,


En la cual puede notar quien la siente,
Glue el triste del mundo va de cara atrs.
Y porque sigamos la regla y compas
De nuestro sermon, segun su manera,
Siguese ahora la parte tercera,
Que dice en el tema : es por dems.
Es por demas la buena simiente
Sembrada en la tierra esteril y mala ;
Es por demas vestirse de gala
lia vieja arrugada sin muela ni diente ;
Y por demas es
Al galgo ser lindo, si no tiene pies ;
Y es por demas- dieta al goloso :,
Y es por demas buen peine al tinoso,
Y todas las cosas que ahora oireis.
Es por demas pedir al judo
Que sea cristiano en su corazon ;
Es por dems buscar perfeccin
Adonde el amor de Dios est frio.
Tambien est llano
Que es por demas al que es mal cristiano
Doctrina de Cristo por fuerza ni ruego ;
Es por demas la candela al ciego,
Y consejo al loco y don <d villano.
Es por demas predicar verdad,
Es por demas llamar por virtud,
Es por demas traeros alud,
Es por demas reprender maldad :
Es por demas, por bien que pareza,
Es por demas loar la bondad ;

33

34

OBRAS BE GIL VICENTE

Es por demas quebrar la cabeza,


Es por demas, que tanto se os da.
Es por demas, y aqui concluyo,
Es por demas aqueste sermon ;
Empero Dios demando perdon,
Clue manda que diga y de miedo rehuyo.
Pliega la Vrgen y al hijo suyo
Glue nrs d muerte con nuestra victoria,
Y nos restituya nel cielo ad quam gloria
Nos perducat por el amor suyo.
A morte d'ElRei D. Manuel,
Gluem longa vida deseja
Deseja ver-se enganar,
Pois que lhe vejo chamar
Vida, nao que vida seja,
Seno a modo de fallar ;
E pois no triste acabar
Se comeja o desengano,
Nao sei quem vai desejar
Glue dure vida de engano.
Riqueza ou grande poder,
Ou muito alta senhoria,
Ou bonana ou alegria,
Pois logo deixa de ser,
Quando era, o que seria?
Oh vida van e vazia,
Occupada em presumpeo,
Aprende com discrio,
Porque cada hora do dia

OBRAS VARIAS.

Te d o mundo lio.
Oh quem vio as alegrias
Daquellas naves to bellas,
Bellas e pod'rosas velas,
Agora ha to poucos dias,
Pera ir a Iffanta nellas !
Vai buscar o senhor delias,
Rei que o mundo mandou,
Vers que tal se tornou ;
E verei como te velas
Da vida que o enganou.
Vela-te, vida, na vida,
No sejas morte na morte :
Guia-te per este norte
De to supita partida
D'hum Rei to so e to forte :
Dero.lhe a terra por corte,
Dos eortezos apartado,
E hum lenol por reinado ;
Porque o mundo desta sorte
Desengana o enganado.
Romance ao mesmo assumpto.
Pranto fazem em Lisboa,
Dia de Santa Luzia,
Por ElRei Dom Manuel,
Que se fmou nesse dia. .
Choro Duques, Mestres, Condes,
Cada hum quem mais podia ;
Os fidalgos e donzellas
,

345

346

OBRAS BE MI VICSNTE.

Muito tristes em porfia ;


Os Iftantes davo gritos.
A Manta se carpia :
Seus cabellos, fios d'ouro,
Arrincava e destrua;
Seus olhos maravilhosos
Fontes d'agua parecia.
Bem merecem ser escriptas
As lstimas que dizia.
..Pao to desamparado
Derribado merecia,
Pois a sua fortaleza
Se tornou em terra fria.
O minha senhora madre
Rainha Dona Maria,
.. Quem a vs levou primeiro
Mui grande bem vos queria,
Pois que vos livrou da pena
Que passamos neste dia.
E outras magoas que de tristes
Contar no nas ousaria.
O Principe dava suspiros,
Que a alma se lhe sahia ;
Suas lagrimas prudentes,
Como a grau senhor cumpria :
De dia sempre velava,
De noite nunca dormia.
A Rainha estrangeira
Ja chorar o no podia :
Com ronea voz dolorosa
. Estas palavras dizia ;

OBRAS VARIAS.

Oh Reina desamparada !
du har sin compaa,
Pues que en esta triste vida
Sola una vida tenia !
Y pues me la llev la muerte,
Pera qu quiero la mia ?
Oh sin ventura casada
Tres aos no mas habia,
Quien tan presto fue viuda,
Triste para que nascia ;
Nia sola en tierra agena,
Hurfana sin alegra !
Se htta vez acordava
Outras sete esmorecia ;
Assi pedia a Deos morte
Como quem pede alegria,
Dizendo : llvenme luego,
Que esta tierra ya no es mia :
Por la mar por donde fuere
Algun peligro vena,
Que me matase mi sola
Salvando la compaa.
O bom Rei em seu acordo
Deste mundo se partia :
Sua morte conhecendo,
Com muita sabedoria,
Per palavras piedosas
Os sacramentos pedia;
Fallando sempre com todos,
Deu sua alma a quem devia.
Morto levo o gran Rei

347

348

OBKAS SE GIL VICENTE.

Senhores de gran valia,


Dizendo huns aos outros :
Oh que triste romaria !
Que grande amigo perdemos
E que doce companhia !
.Ta passada a meia noite,
Tres horas antes do dia
Mettido em hum ataude
O qu'inda ha pouco regia,
O gran senhor do Oriente
Dos seus Paos se partia.
Seiscentas tochas accezas,
Escuras a quem as via ;
Triste pranto at Belem
Nem passo no se esquecia.
Em terra fica enterrado,
Porque assi mandado havia,
Conhecendo que era terra
A mundanal senhoria.
Disse que os vos thesouros
A morte no pertencia.
Desque ficou enterrado
Cada hum se despedia.
Dizendo estes versos tristes
A gloriosa Maria.

OBRAS VARIAS.

349

Orao dos Grandes de Portugal a N.


Senhora, depois de enterrado D.
Manuel.
O Duque de Braganca.
Senhora Virgem gloriosa,
Que leixastes sepultado
O verbo deificado
Vestido da carne vossa!,
Do mundo desamparado .,
Este vosso encommendado
Rei, que tanto vos queria,
Que lhe ds tanta algria,
Como nos leixa cuidado
Neste dia,
O mestre de Santiago.
Senhora dos tres Reis Magos,
E de todolos Senhores,
Coroa dTmperadores,
Que tragastes tantos tragos
Tristes polos peccadores ;
Polas vossas sanctas dores.
Que este Rei que era nosso
Haja de vs os favores,
Como hum dos servidores
GUie foi vosso.
O Marquez de Villa Real.
O d'a6 initio Senhora
Perservada e conservada,

350

OBRAS DE GIL VICENTE.

Ante que os anjos criada,


Por sua superiora
No seio de Deos guardada;
Pois que fez esta pousada
ElRei em vossa memoria,
Ponde sua alma na gloria
Per vossa mo laureada
De victoria.
O Marquez de Torres.
Senhora, que o Rei dos Ceos
Viste na cruz espirar,
Espirar -e lamentar,
Dizendo : Oh Deos, meu Deos !
Foste-me desamparar !
Vos queirais l emparar
Este Rei que aqui leixamos
Em to escuro logar,
E a nos alumiar,
due vos vejamos.
O Conde de Marialva.
Senhora, Senhora nossa,
Senhora nossa avogada,
Sereis deste Rei lembrada,
Por aquella sancta hora
Que fostes encommendada.
Ca vos fica soterrada
Sua Alteza e consumida;
Dae-lhe l vida mudada,
Porque a vida aqui lograda
Nao he vida.

OBRAS VARIAS.

O Bispo cTEvora.
Ca vos fica este Senhor
Pobremente sepultado :
Senhora, seja lembrado
Que em vosso sancto louvor
O achei sempre oecupado,
Hi fica desemparado,
C'o pago que o inundo d,
De terra emparamentado :
Senhora, tende cuidado

Delle l.
O Conde de Tniugal.
Senhora, ns nos partimos
Desconsolados e tristes,
Como quando vos partistes
Donde vosso filho ouvimos
Qufi morto enterrar o vistes.
Peo-vos, pois que o paristes
Deos e homem natural,
Que a esta alma Real
Deis o bem que descubristes
Eternal.
O Conde da Feira.
Imperatriz das alturas,
Sobre os coros enxalada,
Pera sempre alumiada,
Aqui vos fica s escuras
O Rei da gran nomeada.

351

352

OBRAS DE GIL VICEXTE.

Acabou sua jornada


Senhora, muito improviso :
O Virgem toda paraiso,
Dae-lhe gloria desejada,
Pois sois isso.
O Conde de Penclla.
Senhora, nossa esperana,
Triumpho da nossa vida,
Nave de certa guarida,
Fiel de fina balana.
Nossa carreira sabida :
O sem mgoa concebida,
Redemptora d'Israel,
Dae a ElRei Dom Manuel
A gloria que nos foi havida
Per Gabriel.
O Conde d'Alcoutim.
Querello-me, Senhora, a vs
De nossa vida enganosa,
Que alem de trabalhosa,
Parte-se breve de ns
Pera terra tenebrosa.
L queirais ser piedosa
Ao Rei que ora enterramos,
E a ns, que isso esperamos,
Nos dae esperana vossa
At que vamos.

OBRAS VARIAS.

O Conde Portalegre.
Virgem que a Deos paristes
Junto com Jerusalem,
No sancto logar de Belem ;
Consolae os choros tristes
Que Lisboa agora tem.
Aqui leixamos seu bem,
Tornado nem bem nem mal :
O Rainha imperial,
Amerceae-vos de quem
Deveis mais que a ninguem
Em Portugal.
Romance.
A acclamao de D. Joo III.
Desanove de Dezembro,
Perto era do Natal,
Na cidade de Lisboa
Mui nobre e sempre leal,
Foi levantado por Rei
Dos reinos de Portugal
O Prncipe Dom Joo,
Prncipe angelical.
Sahio n'hua faca branca,
Parecia de cristal,
Guarnecida de maneira
Que no se vio sua igual.
Opa leva roagante,
Tudo fio d'ouro tal,

353

334

OBRAS BK 1 TICZKTX.

Forrada de ricas martas.


Bera parecia real;
Pelote de prata fina,
Prata mui oriental,
Barrado de pedraria
Yinha-lhe iMii natural.
De perlas no fazem eonta
Porque be baixo metal .
So lram collar que levava
Toda Alexandria val :)
Na cabea leva preto,
Por seu padre natural
Sabio cora lagrimas tristes.
Como filho mui leal.
O seu rosto to fermoso
Glue parece divinal,
Seus olhos resplandeeio
Como est relias igual ;
Os cabellos da cabea
D'ouro ero que no. d'al ^
Sua boca graciosa
Com ar mui angelical,
Hum semblante soberano,
' Hum olhar imperial.
No foi tal contentamento!
No povo todo em geral
Como ver na Rua nova
Ir o seu Rei natural
Com tanta graa e lindeza,
Que no parece humanai.
Os forasteiros diiio :

OBRAS VAHIAS.

Mui ditoso he Portugal.


O Iffante Dom Luis
Leva o estoque Real ;
O Iffante Dom Fernando,
Outro seu irmo carnal,
Ao estribo direito
A pe, no lhe estava mal,
Porque em tal solemnidade
Tudo lhe vem natural :
Todolos Grandes a p,
Gluantos ha em Portugal.
O Conde Priol levava
A bandeira principal.
Chegou assi a San Domingos,
Onde estava o Cardial :
Benzeo o mui alto Rei
De beno pontifical,
E deu logo juramento ;
Jurou n'hum livro missal
De fazer cumprir as leis
Como lei imperial ;
Confirmou os privilegios
Desta cidade Real.
Os povos muito contentes
De Rei to especial,
De pequeno sempre grande,
Magnfico e liberal,
Oue he virtude julgada
Dos Principes principal.
Isto tudo assi acabado,
Dissero : Arraial ! Arraial '

355

356

OBRAS DE GIL VICENTE.

Alli toco as trombetas,


Atabales outro tal :
Todos lhe beijo a mo
Os senhores em geral.
Aqui diz o Autor o que cada hum dos senho
res de Portugal diruo ao beijar da mo.
Eu estava ca no cho,
Como outro desmazelado,
Do theatro to alongado,
Que via beijar-lhe a mo,
Mas no ouvia o fallado.
E occupei o cuidado
No que cada hum diria,
Assi de minha fantesia,
Segundo vi o passado
E a mudana que via.
O novo Rei sabedor
Diria com san vontade :
Nome da Sancta Trindade,
E seja por seu louvor
E por bem da Christandade ;
No me d a prosperidade
Vangloria de meu reinado,
Pois Salomo diz verdade,
Que tudo he vaidade,
Bem olhado.
Diria mui humilhado
O senhor Duque de Bragana:
Alto Rei, nossa esperana,
Deos que vos deu o reinado

OBRAS VARIAS..

Vos dar sempre bonana.


Esta supita mudana
Bem parece obra divina ;
E com esta segurana
Fazei que vossa balana
Seja fina.
O Mestre de Santiago,
De quem sempre merc vejo,
Diria d'amor sobejo :
Eisaqui minha alma trago,
Com que servir-vos desejo :
De todo o meu me despejo.
E fique-me o corao
Onde est tanta affeio ;
Glue sempre em vs me revejo,
Com rezo.
O Marquez de Villa Real
Diria lagrimejando :
neto d'ElRei Fernando,
Todo de sangue Real,
Pera bem vos seja o mando.
E diria aconselhando :
Governae polo antigo,
Que este pasto est em p'rigo,
As ovelhas suspirando
Sem abrigo.
O Bispo d'Evora creo
Que ouvindo esta rezo,
Diria : Pera redempo
Foi homo missus a Deo,
Cujo nome era Joo.

357

35S

OURAS SE GIL VICENTE.

Bejo-vos, Senhor, a mo,


E ferrae sobre o velho,
No cureis daquelle espelho
Que cegou a Reboo,
De meu conselho.
O Conde de Marialva sei
Que diria assocegado :
Reino bem aventurado,
Louva teu Deos por tal Rei,
Que agora ests povoado.
Mandae chamar vosso gado
E perguntae-lhe que ha,
E de pouco pera ca
O porque anda arrepiado
Vos dir.
Diria o Conde de Penella,
Como todos mui leal :
Beijo vossa mo Real,
E guiae-vos pola estrella
De vosso bom natural.
Sde isento e liberal,
Provedor de lavradores
E pae dos povos menores ;
Cos grandes muito Real,
E moderados favores.
Diria o Conde Priol,
Depois de lh'a mo beijar :
Deos vos queira prosperar ;
Este he bom re mifa sol,
Porm forte de cantar.
Quero-vos aconselhar

OBRAS VARIAS.

Que faais grande thesoures


Antes de fama que d'ouro ;
E tende o muito cubiar
Por agouro.
Diria o muito jucundo
Senhor Conde de Tentugal :
Houvera de ser Portugal
Todo universo mundo
Pera Rei to cordeal.
Conselho vos dou Real :
Que se elle for mester,
Seja de homem, a meu ver,
Sabio, velho e leal,
Que he o que o conselho quer.
Diria o Conde da Feira :
Senhor, sam certificado
Que so Deos d o reinado :,
E, pois vo-lo deu, elle queira
GUie o logreis prosperado.
Porm sereis avisado
Glue a todo o julgador
Deis gran tena de temor,
Porque o povo coitado
No coma po de dolor.
Diria o Conde d'Alcoutim
Beijando a mo preciosa :
Dcos vos d vida ditosa
E tire os dias de mi
Pera voss;i vida e nossa.
E pera ella ser fermosa
Sde livre e no mandado :

359

360

OBRAS DE SIL VICENTE.

Aamae qualquer criado


due nao seja, diz a grosa,
Mais que vos, custa vossa,
Adorado.
O de Portalegre diria,
Mui catholico privado :
Senhor, sejais bem casado,
E sempre eom alegra
Logreis vos vosso reinado.
E porque mui nomeado
Por todo a mundo sejais,
Herejes nao consintais,
Porque est Deos assanhado
Nos mostro os temporaes.
Conde de Villanova.
Este senhor mui prudente
Dira : Seja louvado
Deos que vos fez laureado,
E seu fiel presidente,
E dino de mor reinado.
Pera bem aconselhado,
Nao ouais mexeriqueiros,
Nem os que forem primeiros
Nao vos fao ser irado,
Sem ouvir os derradeiros.
O Conde do -Vimioso,
Como quem sabe d'aor,
Diria com grande amor :
Assi como sois fermoso,
Tal ser vosso lavor.

OBRAS VARIAS.

Conselho-vos, Rei, meu senhor,


For vossa honra e proveito
Que deis ao bom servidor
Antes renda que favor
Muito estreito.
Diria o Conde Almirante
A ElRei mui excellente :
Fazei, como gran prudente,
Que vosso reino se mande
Per vossa Alteza somente.
Por quanto o commum da gente
He dizer : eu icnho l ;
E onde rezo no ha
A descobre hum bom presente
De mui pouco pera ca.
Diria o Bispo do Funchal :
Senhor, beijo-vo-la mo
Por christianissimo Romo,
Rei terceiro em Portugal
Do sane to nome Joo.
Pois conselho aqui vos do,
O conselho que eu daria,
Que perdessem a valia
As adherencias, pois so
As que do vida ao ladro
Cada dia.
O Regedor lhe diria,
Tambem o Governador
Neste dia : O Senhor
Do mundo de vs confia
Os gados de que he pastor :
11

3ti

3G2

OBRAS DB GIL VICENTE.

A vos fez seu guardador,


E nao, Senhor, pola renda :
Outro vos reja a fazenda,
Porque o vosso lavor
Na justiea so entenda.
Dirio os Vereadores
Da nobre e sempre leal :
Pois que nacestes Real,
Vos seguireis os primores
D'Alexandre e Annbal v
E pera mais divinal
Nao estimeis o dinheiro,
E a todo bom cavalleiro
Sede muito liberal
E esquivo ao lisongeiro.
Diria o Povo em geral :
Bonana nos seja dada,
Que a tormenta passada
Foi tanta e to desigual,
Que no mundo he soada.
E pois a mo vos he dada,
Fazei-nos sorte ditosa,
E praza Virgem gloriosa
tlue guardeis esta manada
Como vossa.

orras varias.

363

Pranto de Maria Parda,


Por que vio as ruas de Lisboa com to poucos
ramos nas tavernas e o vinho to caro,
e ella no podia viver sem elle.
Eu so quero prantear
Este mal que a muitos toca ;
Que estou ja como minhoca
Glue puzero a seccar.
Triste desaventurada,
(Aue to alta est a canada
Pera mi como as estrellas ;
Oh coitadas das guclas I
Oh guelas da coitada !
Triste desdentada escura,
Ou em me trouxe a taes mazelas !
Oh gengivas e arnellas,
Deitae babas de seceura ;
Carpi-vos, beios coitados,
Oue ja l vo meus toucados,
E a cinta e a fraldilha ;
Hontem bebi a mantilha,
Oue me custou dous cruzados.
Oh Rua de San Gio,
Assi 'sts da sorte mesma
Como altares de quaresma
E as malvas no vero.
O-uem levou teus trinta ramos
E o meu mana bebamos,
Isto a cada bocadinho ?
O vinho mano, meu vinho,

364

OBRAS SS eiL V1CESTE.

Glue ma ora te gastamos.


O travessa zanguizarra
De Mata-porcos escura,
Como estas de ma ventura,
Sem ramos de barra a barra.
Porque tens ha tantos dias
As tuas pipas vazias,
Os toneis postos em p?
Ou te tornaste Guin
Ou o barco das enguias.
Triste quem no cega em ver
Nas carnicerias velhas
Muitas sardinhas nas grelhas ;
Mas o demo ha de beber.
E agora que esto erguidas
As coitadas doloridas
Das pipas limpas da borra,
Achegou-lhe a paz com porra
De^recerem as medidas.
0 Rua da Ferraria,
Onde as portas ero mayas,
Como ests cheia de guaias,
Com tanta loua vazia !
Ja m'a mim acconteceo
Na manhan que Deos naceo,
A hora do nacimento,
Beber alli hum de cento,
Glue nunca mais pareceo.
Rua de Cata-que-fars,
Que farei e que fars !
(Auando vos vi taes, chorei,

OBRAS VARIAS.

365

E tornei-me por detras.


Que foi do vosso bom vinho,
E tanto ramo de pinho,
Laranja, papel e cana,
Onde bebemos Joanna
E eu cento e hum cinquinho.
O tavernas da Ribeira,
Nao vos ver a vos ninguem
Mosquitos, o vero que vem,
Porque sereis arceira.
Triste, que ser de mi !
Que ma ora vos eu vi !
Que ma ora me vos vistes !
Que ma ora me paristes,
Mae da fllha do ruim !
Quem vio nunca toda Alfama
Com. quatro ramos cagados,
Os tornos todos quebrados !
O bicos de minha mama !
Bem alli Sancto Esprito
la eu sempre dar no flto
N'hum vinho claro rosete.
Oh meu bem doce palhete,
Quem pudera dar hum grito !
0 triste Rua dos Fornos,
Que foi da vossa verdura !
Agora rua d'amargura
Vos fez a paixo dos tornos.
Quando eu, rua, per vos vou,
Todolos traques que dou
Sao suspiros de saudade ;

366

OBRAS DE GIL VICENTE.

Pera vs ventosidade
Niici toda como estou.
Fui-me Poo do cho,
Fui-me praa dos canos ;
Carpi-vos, manas e manos,
(iue a dezaseis o do.
O velhas amarguradas,
Que antro tres sete canadas
Sohiamos de beber,
Agora, tristes ! remoer
Sete raivas apertadas.
O rua da Mouraria,
Gluera vos fez matar a sde
Pela lei de Mafamede
Com a triste d'agua fria ?
O bebedores irmos,
(lue nos presta ser christos,
Pois nos Dcos tirou o vinho?
O anno triste cainho,
Porque nos fazes pagos?
Os braos trago cansados
De carpir estas queixadas,
As orelhas engelhadas
De me ouvir tantos brados.
Gluero-mMr s taverneiras,
Taverneiros, medideiras,
llue me dem hua Ciinada,
Sobre meu rosto fiada,
A pagar l polas eiras.

OBRAS VARIAS.

Pede fiado Biscainha.


O Senhora Biscamha,
Fiae-me canada e meia,
Ou me dae hua candeia,
Que se vai esta alma minha.
Acndi-me dolorida,
(ine trago a madre cahida,
E arra-se-me o gorgomilo :
Emquanto posso engoli-lo,
Soccorei-me minha vida.
Biscainha.
No dou eu vinho fiado,
Ide vs embora, amiga.
GUiereis ora que vos diga ?
No tendes isso aviado.
Dizem l que no he tempo
De pousar o cu ao vento.
Sangrade-vos, Maria Parda ;
Agora tem vez a Guarda
E a raia no avento.
A Joo Cavalleiro, Castelhano.
Devoto Joo Cavalleiro,
Que pareceis Isaas,
Dae-me. de beber tres dias,
E far-vos-hei meu herdeiro.
No tenho filhas nem filhos,
Seno canadas e quartilhos;
Tenho enxoval de guarda,

367

368

OBRAS DE GIL VICENTE.

Se herdardes Maria Farda,


Sereis fora d'empecilhos.
Joo Cavalleiro.
Amiga, dicen por villa
Un ejemplo de Pelayo,
Que una cosa piensa el bayo
Y otra quien lo ensilla.
Pagad, si quereis beber ;
Porque debeis de saber
Que quien su yegua mal pea,
Aunque nunca mas la vea,
El se la quiso perder.
Vai-se a Sranca Leda.
Branca mana, que fazedes ?
Meu amor, Deos vos ajude ;
Que estou no ataude,
Se me vs no accorredes.
Fiade-me ora tres meias,
Que ando por casas alheias
Com esta sde to viva,
Que ja no acho cativa
Gota de sangue nas veias.
Sranca Leda.
Olhade, mulher de bem,
Dizem qu'em tempo de figos
No ha hi nenhuns amigos,
Nem os busque ento ninguem.
E diz o exemplo dioso,

OBRAS VARIAS.

369

Que bem passa de guloso


O que come o que no tem.
Muita agua ha em Boratem
E no poo do tinhoso.
Vai-sc a Joo do Lumiar.
Senhor Joo do Lumiar,
Lume da minha cegueira,
Esta era a verde pereira
Em que vos eu via estar.
Fiae-me hum gentar de vinho,
E pagar-vos-hei em linho,
Que ja minha lai i no presta :
Tenho mandada hua besta
Por elle a antre Douro e Minho.
Joo do Lumiar.
Exemplo de mulher honrada,
Que nos ninhos d'ora a hum anno
No ha passaros oganno.
I-vos, que sois aviada.
Emquanto isto assi dura,
Matae com agua a seceura,
Ou ide a outrem enganar,
Que eu no m'hei de fiar
De mula um matadura.
Indo pera casa de Marim 'Alho, vai dizendo :
Amara aqui hei d'estalar
Nesta manta emburilhada :
Oh Maria Parda coitada,

870

OBRAS DE QU. VICENTE.

Que nao tens ja que mijar !


Eu no sei que mal foi este,
Peor sem vezes que a peste,
Que quando era o tro e o tramo,
Andava eu de ramo em ramo
Nao quero deste, mas deste.
Diz a Martm Alho.
Martim Alho, amigo meu,
Martim Alho meu amigo,
To secco trago o embigo
Como nariz de Juden.
De sde nao sei que faa :
Ou fiado ou de graa,
Mano, soccorrede-me ora,
Que trago ja os olhos fora
Como rala da eaa.
Martim Alho.
Diz hum verso acostumado :
Quem quer fogo busque a lenha j
E mais seu dono d'acenha
Appella de dar fiado.
Vos quereis, dona, folgar,
E mandais-me a mim fiar?
Pois diz outro exemplo antigo,
Quem quizer comer comigo
Traga em que se assentar.
Vairse Fatula.
Amor meu, mana Falula,

OBRAS VARIAS.

Mmha gloria e meu deleite,


Emprestae-me do azeite,
(Ave se me scca a matula.
At que haja dinheiro,
Fiae, que poueo requeiro,
Duas canadas bem puras,
Por nao ficar s escuras,
<Aue se m'arde o candieiro.

Fatula.
-

Diz Nabucodonosor
No sideraque e miseraque,
Aquelle que d gran traque
Atravesse-o no salvanor.
E diz mais, quem muito pede,
Mana minha, muito fede.
Sete mil custou a pipa ;
Se quereis fartar a tripa,
Pagae, que a vinte se mede.
Mara Parda.
Raivou tanto sideraque
E tanta zarzagania,
.Vou-me a morrer de sequia
Em cima d'hum almadraque.
E ante de meu finamente,
Ordeno meu testamento
Desta maneira seguinte,
Na triste era de vinte
E dous desde o nacimento.

371

'.Tri.

OBRAS SE Gil. VICENTE.

Testamento.
A minha alma encommendeA. No e a outrem nao,
E meu corpo enterrara
Onde esto sempre bebende-,
Leixo por minha herdeira
E tambem testamenteira,
ltianor Mendes d'Arruda,
O-ue vendeo como sesada,
Por beber, at' peneira.
Item mais mando levar
Por tochas cepas de vinha,
E ha borracha minha
Com que me hajo d'eneensar,
Porque teve malvasia.
Encensem-me assi vazia,
Pois tambem eu assi vou^
E a sde que me matou,
Venha pola cleresia.
Levar-me-ho em hum andesDe dia, s horas certas
Que esto as portas abertas
Das tavenias per hu for.
E irei, pois mais nao pude,
N'hum quarto por ataude,
Que no tivesse agna p
O sovenite a No
Cantem sempre a meude.
Diante irao mui sem pejo
Trinta e seis odres vazios,

OBRAS VARIAS.

Que despejei nestes frios,


Sem nunca matar desejo.
No digo missas rezadas,
Todas sejo bem cantadas
Em Framengo e Allemo,
Porque estes me levaro
As vinhas mais carregadas.
Item diro per d meu
Quatro ou cinco ou dez trintairos,
Cantados per taes vigairos,
Que no bebo menos qu'eu.
Sejo destes tres d' Almada,
E cinco daqui da S,
ue so filhos de No,
A que som encommendada.
Venha todo o sacerdote
A este meu enterramento,
Que tiver to bom alento
Como eu tive ca de cote.
<)s de Abrantes c Punhete,
D' Arruda e d^lcouchete,
DWlhos-Vedros e Barreiro,
Me venho ca sew dinheiro
At cento e vinte e sete.
Item mando vestir logo
O frade allemo vermelho
Daquelle meu manto velho
Que tem buracos de fogo.
Item mais, mais mando dar
A quem se bem embebedar
No dia em que eu morrer,

373

374

OBBAS CE Gil. VICEJiTE.

Quanto movel hi houver


E quanta raiz se achar.
Item mando agasalhar
Das orphans estas n mais
As que por beber dos paes
Fico proves por casar.
As quaes daro por maridos
Barqueiros bem reeozidos
Em vinhos de mui bos cheiros ;
Ou busquem taes escudeiros,
Que bebo coma perdidos.
Item mais me cumpriro
As seguintes romarias,
Com muitas ave-marias.
E no curem de Mono.
Vo por mim Sancta Orada
D'Atouguia e d'Abrigada,
E a Curageira sancta,
Que me dero na garganta
Saude a peste passada.
Item mais me prometti
Nua pedra da estrema,
Quando eu tive a postema
No beio de baixo aqui.
E porque gran gloria senta,
Lancem-me muita agua benta
Nas vinhas de Caparica,
Onde meu desejo fica
E se vai a ferramenta.
Item me levaro mais
Hum gran cirio pascoal

OBRAS VARIAS.

375

Ao glorioso Seixal,
Senhor dos outros Seixaes :
Sete missas me diro
E os caliz enchero,
No me digo missa scca ;
Porque a dor da enchaqueca
Me fez esta devao.
Item mais mando fazer
Hum espaoso esprital,
Que quem vier de Madrigal
Tenha onde se acolher.
E do termo d'Alcobasa
Quem vier dem-lhe em que jaa J
E dos termos de Leirea
Dem-lhe po, vinho e candea,
E cama, tudo de graa.
Os d'Obidos e Santarem,
Se aqui pedirem pousada,
Dem-lhes de tanta pancada
Como de maos vinhos tem.
Homem d'Entre Douro e Minho
No lhe daro po nem vinho ;
E quem de riba d'Avia for
Faz-lhe por meu amor
Como se fosse vizinho.
Assi que por me salvar
Fiz este meu testamento,
Com mais siso e entendimento
Que nunca me sei estar.
Chorae todos meu perigo,
No levo o vinho que digo,

376

OBRAS DE GIL VICENTE.

Glu'eu chamava das estrellas,


Agora m'irei parellas
Com grande sde comigo.
Trovas a Felipe Gcilhem.
O asno de 1519 veio a esta corte de Por
tugal hum Felipe Guilhem, Castelhano, que
se disse que fora boticario nel Porto de Santa
Maria ; o qual era grande logico e muito elo
quente de muito boa prtica, que antre mui
tos sabedores o folgavo de ouvir : tinha algu
ma cousa de mathematico ; disse a ElRei que
lhe queria dar a arte de Leste a Oeste, que
tinha achada. Pera demostra desta arte fez
muitos instrumentos, antre os quaes foi hum
astrolabio de tomar o sol a toda a hora : pra
ticou a arte perante Francisco de Mello, que
ento era o melhor mathematico que havia no
reino, e outros muitos qwe para isso se ajun
tro per mandado de S. A. Todos approvro a arte por boa : fez-lhe ElRei por isso mer
c de cem mil reis de tena, c,o habito e cor
retagem da casa da ndia, que valia muito.
Neste tempo mandou S. A. chamar ao Algar ve a hum Simo Fernandes, grande astrologo
mathematico ; tanto qne o Castelhano fallou
com clle, que vio que o entendia, e que lhe
fazia de tudo falso, qniz fugir pera Castella ;
descobrio-se a hum Joo Rodrigues, Portuguez,
que o mandou dizer a ElRei, que o mandou

OBRAS VARIAS.

377

prender em Aldea Gallega, estalido em hum


oavallo de posta. Sendo preso, porque era gran
de trovador, lhe mandou Gil Vicente estas
trovas.
Con sobra de pensamientos
Que continos penso yo,
No supe de los tormentos
Que la desdicha os d;
Sino ahora dos momentos,
due supe vuestras pasiones,
Todas buscadas por vos :
Porque los santos baTones
Conduen que las prisiones
Son por justicia de Dios.
muchos hko espantar
Vuesa prspera fortuna,
Pues nunca vistes la na*
Ni arroyo ni laguna,
Supistes muy bien pescar.
Diciendo el pueblo travieso
Contra' vs, sabio profundo,
Por emendarse el avieso
Jusfo fue que fuese preso
El mas suelto hombre del mundo.
Yo les dije con buen zelo,
Por el bien que en vos se encierra :
Este hombre subi" al cielo,
Del cielo mir la tierra,
En la tierra vido el suelo,
Del suelo vi el abiso,
Del abiso vi el profundo,

378

OBRAS DE GIL VICENTE.

Del profundo cl paraiso,


Del paraiso vio el mundo,
Del mundo vio cuanto quiso.
Ans que por esta via
Es de los sabios el cabo,
Glue sin ver astrolomia
El toma el sol por el rabo
En cualquiera hora del dia.
Respondieron al contrario,
Diciendo : No es verdad ;
Porque dende chica edad
No fue sino boticario,
Hasta ver esta ciudad.
Respondiles con gran ira :
No digais mal de mi amigo,
due cuando trata en mentira,
La mentira es ser testigo,
Tan dulcemente la espira.
Alegu por parto vuestra
Lo que s de vuestro engao,
Porque mostrais de una muestra,
Despues vendeis falso pao,
Como luego se demuestra.
Esto me plugo escribir
Porque habeis de responder,
X otra vez me habeis de oir,
Para acabar de decir
Lo que os queda por hacer.
Do todo esto es de crcer,
Que la bondad de esta tierra
Siempre fue y ha de ser,

OBRAS VARIAS.

379

ftue si misma hace guerra,


De buena, por bien hacer.
Si el trovado no est
Conforme vuestra elocuencia,
Pues que dice la verdad,
Reprtome la sentencia,
Lo al vaya como'va.
A APPonso Loves apaio.
Affonso Lopes apaio, christo novo que vi
via em Thomar, fez hum rifo que andava no
Cancioneiro Portuguez, ao qual rifo fizero
muitos muitas trovas e boas. Pedio o conde do
Vimioso a Gil Vicente que fizesse tambem, e
elle fez esta trova. Diz o rifo :
Matou-me Moura e no mouro
jE quem, m?a lanada deu
Moura cila e mouro cu.
A Moura que deu ferida
A quem nunca foi ferido
Nem se vio em arruido,
Deve ser Moura fmgida,
Pois matou Christo fingido :
Bem sei que morres ferido
Da ferida que sei eu ;
Porm com faca se deu.

330

OBRAS BE GIL VICENTE.


Ao MESMO,

estando cm Santarem muilo doente de camaras .


Senhor, eu ia-vos ver,
Pera vos ver e ouvir,
E eu ouvi-vos gemer,
Hum gemer e espremer
Como arremedar parir.
Ero camaras sem telhas,
Pera vs agastadias ;
Vs cagado at's orelhas,
- As vossas calas vermelhas
Tinhei-las por corredias.
Vosso cu com surdos brados
Apupava a seus vizinhos,
Que estavo dependurados .
Hum delles, por seus peccados,
Cercero-lhe os focinhos.
Diz que tinheis tal desmaio
Na tripa do cagalar,
Que vos disse o mez de Maio,
Melhor vos fora, apaio,
Q.ue cagreis em Thomar.
Outras.
Pois vosso negro bespeiro
Se vasa no mez de Maio,
Affonso Lopes apaio.
Que quem tem vida guaiada
Coma vos da vossa sorte,
Por vs he cousa provada

OBRAS VARIAS.

381

CLue quem tem vida cagada,


Cagada ha de ser a morte.
Quando vierdes corte,
E o cu vos der desmaio,
Dae-o demo, apaio.
Tomareis destes vasculhos,
Que pinto polas paredes,
Huns vela, outros ja vdes,
E tapae esses angulhos,
Assi que o pousadeiro,
Que vos poz em tal desmaio,
Se o quereis vedar, apaio.
Ao Conde do Vimioso,
A quem El Rei remetteo o autor sobre hum des
pacho seu. Foi isto em tempo de peste, e o
primeiro rebate della deu por sua casa ; e
andava ento na corte hum Goncalo d Ayola, Castelhano, muito fallador, e medrava
muito.
Senhor, a longa esperana
Mui curto prazer ordena ;
Minha vida est em balana
E a muita confiana
Nunca causou pouca pena.
Isto digo
Polo que passo comigo
Polo tempo que se passa :
Vejo minha morte em casa
E minha casa em perigo.

OBRAS SE GIL VICENTE.

Certo he, nobre senhor,


Que quiz Deos ou a Fortuna,
Que quem serve com amor,
Quanto maior servidor,
Tanto menos importuna.
Daqui vem
Que quem no pede no tem,
E quem espera padece,
E quem no parece esquece,
Porque no lembra a ninguem.
Muito debaixo da sola
Trouxera quanto desejo,
S'eu aprendra na escola
Onde Gonalo d'Ayola
Aprendeo tanto despejo.
Que o sesudo
Deste tempo falia tudo,
Quer va torto quer direita :
E tornando a meu respeito,
Pera mi sempre fui mudo.
Agora trago antre os dedos
Hua fara mui fermosa ;
Chamo-a : A Caa dos segredos.
De que ficareis mui ledos
E minha dita ouciosa.
Que o medrar,
Se estivera em trabalhar,
Ou valra o merecer,
Eu tivera que comer,
E que dar e que deixar.
Porm por cima de tudo,

OBRAS VARIAS.

33

O meu despacho queria,


Porque minha fantesia
Occupa o mais do estudo
Todo em vossa senhoria ;
E o cuidado,
Quando anda assi occupado,
Cuida muito e no faz nada ;
A vontade acho dobrada,
Mas o espirito cansado.
A ElRei D. Joo III.
Porque na fornada de Coimbra a Santarem
lhe levro huns Castelhanos almocreves de
aluguer quanto trazia, porque a Rainha
mandou que aos Castelhanos no tomassem
bestas por taxa, mas polo preo que elles qiiizessem .
quien contar mis quejas,
Gran senor ;
A quien contar mis quejas,
Si vos no ?
A Santarem cheguei eu
Bem tal como Deos naceo,
Que no trouxe l do ceo
Comsigo hum vintem de seu ;
E pois tanto bem vos deu,
Alto Senhor,
A quien contar mis quejas
Si vos no?
Castelhanos me trouxero,

384

OBRAS BE GIL VICENTE.

E levro quanto tinha,


Porque Deos e a Rainha
Diz que os favorecro :
To grande golpe me dero
Com favor,
Que no contar mis quejas
Si vos no.
E por mais desaventura,
Alem do muito dinheiro,
Fui eu de bom cavalleiro,
E cahi da albardura :
Ai de mi que estou em cura.
O Senhor,
A quien contar mis quejas,
Si vos no?
Fernand' Alvares me sera
Grande Saude e socgo,
E no bispo de Lamego
Queria eu a portaria.
E se passa deste dia,
Morto so,
I'orque no cuento mis quejas
Si vos no.

orras varias.

385

Carta oue Gil Vicente mandou de San


tarem a ElRei D. Joo III, estando S.
A. EM PALMELLA, SOBRE O TREMOR DE TER
RA, auE Poi a 26 de Janeiro de 1531.
Senhor !
Os frades do ca no me contentro, nem
em pulpito nem cm prtica, sobre esta tormen
ta da torra que ora passou ; porque no abas
tava o espanto da gente, mas ainda elles lhe
affirmavo duas cousas, que os mais fazia esmo
recer. A primeira, que pelos grandes peccados
que em Portugal se fazio, a ira de Deos fize
ra aquillo, e no que fosse curso natural, no
meando logo os peccados por que fora ; em que
pareceo que estava nelles mais soma de igno
rancia que de graa do Spirito Sancto. O se
gundo espantalho, que gente puzero, foi, que
quando aquelle terramoto partio, ficava ja ou
tro de caminho, seno quanto era maior, e que
seria com elles quinta feira hua hora depois
do meio dia. Creu o povo nisto de feio que
logo o sahruo a receber por esses olivaes, e ain
da o l esporo. E juntos estes padres a meu
rogo na crasta de S. Francisco desta villa, so
bre estas duas proposies lhe fiz hua falia na
maneira seguinte. Reverendos padres, o alii tissimo e soberano Deos nosso tem dous mun dos : o primeiro foi sempre e pera sempre ,
que he a sua resplandecente gloria, repouso
" permauecente, quieta paz, socgo sem conten

386

OBRAS SE OIL VICENTE.

da, prazer avondoso, concordia triumphante :


mundo primeiro. Este segundo em que vive mos, a sabcdoria immensa o edificou polo con trrio, s. todo sem repouso, sem firmeza certa, sem prazer seguro, sem fausto permanecente, todo breve, todo fraco, todo falso, te
.l meroso, avorrecido, cansado, imperfeito; pera que por estes contraires sejo conhecidas as
perfeies da gloTa do segre primeiro. Epe ra que melhor sinto suas pacficas concordanas, todolos movimentos que neste orbecriou,
e os affeitos delle sao litigiosos ; e porque nao
quiz que nenhacousa tivesse perfeitadurana sbre a face da terra, estabeleceo na ordem do mundo, que has cousas dessem fim
s outras, e que todo o genero de cousa ti vesse seu contraire ; como vemos que contra
a fermosura do Vero, o fogo do Estio ; e con tra a vaidade humana, a esperana da morte ;
e contra o fermoso parecer, as pragas da infermidade; e contra a fora, avelhice, econtra a privanea, inveja, e contra a riqueza,
fortuna, e contra a firmeza dos fortes e altos
arvoredos, a tempestade dos ventos ; e contra
os fermosos templos e sumptuosos, edificios, o
tremor da terra, que por militas vezes cmdi versas partes tem posto por terra mwitos edi ficios e cidades ; e por serem acontecimentos
que procedem da natureza, nao forao escrip tos, como escrevro todos aquelles que foro
por milagro, como Templum Pacts de Roma,

OBRAS VARIAS.

387

que cahio todo supitamente, no ponto que a


Virgem nossa senhora pario ; e o sovertilnen to das cinco cidades mui populosas de Sodo ma, e dos Egpcios no mar ruivo, e a desvtruieo dos que adorro o bezerro, e o soi vertimento dos que murmurro de Moyses
e Aram, e a destruio de Jerusalem, porsc rem milagrosos e procederem per nova peri misso divina, sem a ordem deste segre nisso ter parle. E porque nenha cousa ha hi
debaixo do sol sem tornar a ser o que foi, e
o que viro desta qualidade de tremor havia
i1 de tornar a ser por fora, ou cedo ou tarde,
ii no o escrevero. Concruo que' no foi este
ii nosso espantoso tremor, ira Dei ; mas ainda
ii quero que me queimem, se no fizer certo que
to evidente e manifesta foi a piedade do Se nhor Deos neste caso, como a furia dos ele mentos e damno dos edifcios.
E respondendo segunda proposio contra
aquelles que dizio que logo viria outro tremor
c que o mar se levantaria a 25 de Fevereiro,
digo, que tanto que Deos fez o homem,
i mandou deitar hum prego no paraiso terii real, que nenhum seraphim nem anjo nem
archanjo, nem homem nem mulher, nem
sancto nem sancta, nem sanctificado no ven tre de sua me, no fosse to ousado que se
ii entremettesse nas cousas que esto por vir.
E depois no tempo de Moyses mandou deitar
outro prego, que a nenhum advinhadeiro,

38$

OBRAS DE GIL VICENTE.

nem feiticeiro no dessem vida ; e depois de


feito Deos e homem, deitou outro prego so
bre o mesmo caso, dizendo aos discpulos :
no convem o v6s' outros saber o que est
por vir, porque isso pertence omnipotencia
do Padre. Polo qual mui maravilhado estou
dos lettrados mostrarem-se to bravos contra
to horridos preges e defezas do Senhor,
sendo certo que nunca cousas destas dissero,
de que no ficassem mais mentirosos que pro phetas ; e no menos me maravilho daquelles
que crem que nenhum homem pode saber
aquillo que no tem ser, seno no segredo
da eternal sabedoria , qne o tremor da terra
ii ninguem sabe como he, quanto mais quando
ii ser e quammanhe ser. Se dizem que por
estrologia, que he sciencia, o sabem ; no
digo eu os d' agora que a no sabem soletrar,
mas he em si to profundssima, que nem os
da Grecia, nem Moyses, nem Joannes de
ii Monteregio alcancro da verdadeira judica tura peso de hum ouo ; ese dizem que por
magica, esta carece de toda a realidade, e
toda a sustancia sua consiste em apparencias
de cousas presentes, e do porvir no sabe
nenhua cousa ; se por espirito prophetico, ja
crucificro o propheta derradeiro : ja no
ha de haver mais. Concruo, virtuosos padres,
sob vossa emenda, que no he de prudencia
dizerem-se taes cousas pubricamente, nem
menos servio de Deos , porque pregar no

OBRAS VARIAS.

389

hade ser praguejar. As villas e cidades dos


Reinos de Portugal, principalmente Lisboa,
se hi ha muitos peccados, ha infindas esmolas
c romarias, muitas missas, e oraes, e procisses, jejuns, disciplinas, e infindas obras
4i pias, pubricas e secretas : e se alguns hi ha
"que so ainda estrangeiros na nossa f e se
ii consentem, devemos imaginar que se faz por
ventura com to sancto zelo, que Deos he
i disso muito servido ; e parece mais justa vir.. ludc aos servos de Deos e seus pregadores
animar a estes e confess-los e provoc-los,
iique escandaliz-los e corr-los, por contentar
a desvairada opinio do vulgo. E porque
tudo me louvro e concedero ser muito bem
apontado, o mandei a V. A. por escripto, at
lhe Deos dar tanto descanso e contentamento
como em todos seus reinos he desejado, pera
-que por minha arte lhe diga o que aqui fallece. E porm saber V. A. que este auto foi
de tanto seu servio, que nunca cuidei que se
offerecesse caso em que to bem empregasse o
desejo que tenho de o servir, assi visinho da
morte como estou : porque, primeira prega
o, os christos novos desapparecro e andavo morrendo de temor da gente, e eu fiz esta
diligencia e logo ao sabado seguinte seguiro
todolos pregadores esta minha teno.

390

OBRAS DE GIL VICENTE.

Eptstola dedicatoria a D. Joo III.


Os livros das obras que escriptas vi, Serenissimo Senhor, assi em metro, como em pro
sa, sao to florecidas de scientes materias, de
graciosas invenes, de doces eloquencias e ele
gancias, que temendo a pobreza de meu cngenlio, porque naceo e vive sem possuir nenha
tiestas, determinava leixar minhas miserrimas
obras por imprimir, porque os antigos e mo
dernos nao leixrao cousa boa por dizer, nem
invenco linda por adiar, nem graa por des
cubrir. Assi que, pera passar seguro da pena
que minha ignorancia padecer nao escusa, me
fora fermosa guarida nao dizer seno o que
elles dissero, ainda que eu ficasse como eco
nos valles, que falla o que dizem, sem saber
o que diz. Porm querendo eu no presente
preambulo ajudar-me do seu costumado estilo,
cm querer louvar as excellencies de V. A.,
como elles fazem aos senhores a quem suas obras
endero, que farei? sendo certo que, ainque
fosse em mi so a sua oratoria to facunda co
mo em todos elles, e me fosse traspassado o es
pirito de David, nao presumira escrever de
V . A. a minima parle de sua magnfica bondade, de sua nobilissima condio, de sua dis
creta mansidade, do perfeito zlo da sua justia, da sua paz, da sua guerra, da sua graa,
gravidade, conselho, sabedoria, liberalidade,
prudencia, e finalmente do seu christianissimo

OBRAS VARIAS.

39t

firmamento. Outro si querendo navegar pol;i


rota do seu exordio delles, pedindo a V. A.
iivor c emparo para que minha enferma es
critura no seja ferida de linguas damnosas ;
parece-me injusta orao pedir to alto esteio
pera to baixo edifcio ; quanto mais que, ain
da que digno fora de to nobre emparo, tenho
considerado queChristo filho de Deos, sob em
paro do poderio eternal do Padre, e todos seus
bemaventurados Sanctos, no passaro por esta
vida to livres, que dos malditos detractores
no fossem julgadas suas divinas obras por hu
manas leviandades, sua sancta doutrina por
maxima ignorancia, sua manifesta bondade
por falsa malcia, sua sanctissima graa por
sorreticio engano, sua excela abstinencia por
vil hipocrisia, sua celeste pobreza por terreno
vicio. Pois rustico peregrino de mi, que espero
eu ? Livro meu, que esperas tu ? Porm te rogo
que quando o ignorante malicioso te reprender, que lhe digas : se meu mestre aqui esti
vera, tu calras. Finalmente que por escusar
estas batalhas e por outros jespeitos, estava
sem proposito de imprimir minhas obras, se
V. A. m'o no mandra, no por serem dinas
de to esclarecida lembrana, mas V. A. ha
veria respeito a serem muitas delias de devao, e a servio de Deos endereadas, e no
quiz que se perdessem, como quer que cous;i
virtuosa, por pequena que seja, no lhe fica
por fazer. Por cujo servio trabalhei a copilla

392

obras se eil. Vicente.

o dellas com muita pena de minha velhice


e gloria de minha vontade, que foi sempre
mais desejosa servir a V. A., que cubiosa de
outro nenhum descano.
Sepultura de Gib Vicente.

O gran juizo esperando,


Jao aqui riesta morada ;
Tambem da vida cansada
Descansando.
Pergunta-me quem fui eu,
Attenta bem pera mi,
Porque tal fui coma ti,
E tal has de ser cotn'eu.
E pois tudo a isto vem,
O lector, de meu conselho,
Toma-me por teu espelho,
Olha-me e olha-te bem.

FIM.

IMDG\.

FARCAS.
PAG.

Fara
Fara
Fara
Fara
Fara
Fara
Fara
Fara
Fara
Fara
Fara
Fara

de Quem tem farelos


chamada Auto da ndia
chamada Auto da Fama
do Velho da Horta
chamada Auto das Fadas
de Inez Pereira
do Juiz da Beira
das Ciganas
dos Almocreves
do Clerigo da Beira
chamada Auto da Lusitania
dos Fisicos

5
25
43
62
89
119
158
190
200
225
258
297

OBRAS VARIAS.
Paraphrase do psalmo L
Sermo pregado em Abrantes, no nasci
mento do Infante D. Luis
Trovas moTte d'ElRei D. Manuel
Romance ao mesmo assumpto
Romance acclamao de D. Joo III..

323
331
344
345
353

Pranto de Maria Parda


Trovas a Felipe Guilhem
Trovas a Aflbnso Lopes apaio
Ao mesmo
Ao Conde do Vimioso
A ElRei D. Joo III
Carta a ElRei D. Joo III
Epistola dedicatoria ao mesmo
Sepultura de Gil Vicente

363
376
379
380
381
383
385
390
392

--

OBRAS PUBLICADAS PELA BIBLIOTHECA


PORTUGUEZA.

Obras de Bernardim Ribeiro


Obras de Gil Vicente

1 vol.
3

ESTO NO PRELO.

Obras de Francisco de Moraes.


Obras de Luiz de Cames.
.
As assignaturas da Binliotheca Poiitl.- i
gceza fazem-se por series de folhas da maneira \
' seguinte :
Serie de 30 folhas ou 1 080 paginas por 600 ris.
n
60

2160

1#140 i

90

3240
n
1#620 j

120

4320

2^040
130

S400

2^400 ij
O pagamento das series adiantado.
As entregas so feitas por volumes broxados.
No se vendem avulso seno obras com..pletas o seu custo a razo de 30 ris por
'folha.
Assigna-se no Escriptorio da Administrao
i da Birliotheca Portugueza, Lisboa, rua
Augusta n. 1 10 , e em casa dos seus corres
pondentes em todas as capitaes de Districto.
Toda a correspondencia deve ser dirigida
fraiica de porte, ao Administrador da Biblio.
Itheca Portlgbeza.

<--

Ws

Stanfoid Univeisity Libtaties

3 5 OIE 347 EES

STANFORD UNIVERSITY LIBRARIES


CECIL H. GREEN LIBRARY
STANFORD, CALIFORNIA 94305-6004
(415) 723-1493
All books may be recalled after 7 days
DATE DUE

f-rh,
V

Você também pode gostar