Paula Toyneti Benalia - O Dia em Que Te Amei
Paula Toyneti Benalia - O Dia em Que Te Amei
Paula Toyneti Benalia - O Dia em Que Te Amei
“Algumas coisas estão escritas para acontecer. Por mais que se esquive, os
olhares se cruzam, os sorrisos se tocam e, mesmo que o coração não saiba
naquele instante, o dia para se amar está marcado para acontecer.”
HELENA
Londres, 1801
Olhei para o lado e tentei endireitar a coluna. Não que eu estivesse em
uma posição que me arruinaria, mas minha mãe acharia que sim.
“Helena, endireite essa coluna. Nenhum homem na face da terra te
achará desejável e adequada como esposa, se você se portar dessa maneira...”
“Helena, você come em demasia, parece um cavalheiro...”
“Helena, você ri absurdamente alto...”
“Helena...”
Eu sempre era inadequada, segundo minha mãe, para seus próprios
propósitos. Nunca concordei, porém sendo rejeitada nas últimas duas
temporadas, comecei a pensar o contrário.
Depois de passar todos os bailes sentada, esperando por horas e com a
caderneta de danças vazia, eu tive certeza: seria solteirona e teria que aguentar
minha mãe pelo resto da vida me dizendo o quanto eu era inadequada e como lhe
dava gastos excessivos com vestidos que nunca seriam admirados.
Nessa noite, o de cor creme, em seda francesa, delicado e ornamentado
por fitas e flores de tecido, talvez realmente não pagasse o investimento, como
afirmaria meu pai, horas mais tarde.
Esse era o primeiro baile oferecido em Londres, na minha terceira
temporada, e minha falta de postura condizia com meu desânimo. Estava
enjoada de ficar escutando os comentários deselegantes das amigas da minha
mãe. Estava farta dos olhares de pena das minhas amigas que já estavam casadas
e com os filhos no colo. Estava irritada com tudo e odiava o mundo e o que a
sociedade me reservava.
O baile tinha um convidado especial, que deveria chegar em breve, e os
comentários sobre ele também me irritavam. Ele era comparado a um deus. Tudo
porque, segundo as línguas fofoqueiras, ele, o Duque de Misternham, escolheria
uma esposa nessa temporada.
Eu sei, ele era um duque, herdeiro de uns dos ducados mais antigos da
Inglaterra. Contudo, deus? Ele era um ser humano, como todos os outros, que
deveria sentir cócegas como eu e se alimentar como todo mortal. Além do que,
se dizia que ele já tinha levado metade da população feminina de Londres para a
perdição. Destruído casamentos, desonrado moças inocentes e levado homens a
duelaram com ele pelo menos uma vez por semana. Então, como ele poderia ser
comparado a um deus? Um homem tão mau e cheio de defeitos? Não sabia a
resposta. Eu só tinha uma certeza: não olharia para ele e nem me atreveria a
cruzar seu caminho. Não que ele fosse me notar, obviamente, não tinha grandes
expectativas quanto a isso.
Comei a sorrir, imaginando se ele não aparecesse. Todos estavam
idealizando o momento em que ele entraria no salão. E eu, imaginando se
chegasse o fim do baile e ele não comparecesse — o que realmente poderia
acontecer. As caras pregueadas e murchas de todas as mães que sonharam com
esse momento, em que suas filhas poderiam ao menos arrancar um suspiro do
duque.
Oh, céus! Eu teria outra crise de risos. Segurei os lábios apertados e
fechei os olhos, controlando a respiração. Minha mãe não me perdoaria por isso.
A última crise foi na mesa de jantar dos Bulivers, a família mais tradicional de
Londres. O pensamento me trouxe outra ânsia e não aguentei. Explodi em
gargalhadas que ecoaram pelo salão.
Tentando me controlar, pisei na ponta do meu pé direito, com a ajuda do
esquerdo. A dor deveria ser suficiente para me fazer chorar ao invés de rir.
Entretanto, deparei-me com um vazio no lugar onde deveria estar meu dedão. Eu
sempre tive todos os outros dedos do pé muito maiores que o dedão. Meu pé era
uma aberração. Minha irmã sempre dizia que quando um homem se casasse
comigo e visse meu pé, me devolveria no mesmo instante. Então, outro espasmo
e mais gargalhadas.
Procurei minha mãe pelo salão. Assim que visse seu olhar feroz, eu me
acalmaria. Encontrei-a rapidamente conversando com algumas senhoras
respeitadas e constatei que seu olhar não era dos melhores. Já o seu vestido, cor
de abacate, não tinha lhe caído nada bem. Céus, se continuasse rindo dessa
forma, não me casaria em nenhuma temporada e, com toda certeza, a minha
estaria encerrada esta noite. Meu pai me colocaria de castigo no quarto, trancada,
até a morte.
— A senhorita está bem? — Escutei uma voz grossa, única e perfeita
para os meus ouvidos.
Antes mesmo que levantasse os olhos, eu já tinha parado de rir e minha
pele estava arrepiada. E tudo apenas por causa de uma voz!
Eu já sabia quem poderia ser o seu dono, sua fama era iminente. Sua
postura e seus modos podiam ser reconhecidos por todos e, mesmo que nunca
tivesse colocado meus olhos nele antes, eu já sabia:
Duque de Misternham.
O novo deus de Londres; o devorador de damas inocentes; o destruidor
de lares... e os outros títulos eu não consegui mentalizar na hora... Oh, Deus! Se
sua voz já era assim...
Dei uma olhada nele e encontrei um par de olhos negros que
combinavam perfeitamente com os cabelos mais negros que já tinha visto e o
corpo mais... mais... Sim, ele era um deus da beleza, e me senti incapaz de
respirar só de vê-lo. Alto, talvez cerca de 1,85 a 1,90 m, com uma barba rente ao
rosto, que deixava seus lábios desenhados.
Me odiei e o odiei. Como podia proceder assim com alguém e se divertir
com isso? Era visível um sorriso nos seus lábios. Ele estava se divertindo com o
meu constrangimento. E era um sorriso pervertido e dissimulado.
Senti minhas bochechas queimar e me lembrei que deveria estender
minha mão para o cumprimento, já que ele esperava por isso.
Na verdade, ele nem deveria estar falando comigo, já que não tínhamos
sido apresentados. Definitivamente, ele gostava de arruinar jovens inocentes.
Como teimosia sempre foi o meu forte, não lhe dei o gosto de
cumprimentá-lo. Não porque corresse o risco de ser um escândalo. O simples
fato de eu respirar já o era. Eu só não me renderia aos seus encantos. Meu corpo
já o tinha feito, porém eu morreria a idolatrar um homem terrível como ele.
— Estou ótima! — respondi quando me achei capaz de falar. — Estou
rindo. Isso deve ser um bom sinal.
— Não está mais rindo, Senhorita. Suas bochechas estão coradas, no
entanto, seu sorriso se aplacou. O tom dos seus lábios combina perfeitamente
com sua pele nesse momento.
Abri a boca, inconformada com suas palavras indecentes. Eu queria dizer
como ele era inadequado, arrogante e presunçoso, mas tudo o que consegui foi
abrir a boca sem parar, feito uma vespa. Eu nem sabia se vespas tinham boca e se
a abriam. Minha capacidade de raciocinar estava indo embora, junto com minha
paciência.
— Me concederia uma dança na sua caderneta? — ele perguntou,
estendendo as mãos.
— Nunca! Minhas danças estão todas prometidas aos verdadeiros
cavalheiros presentes no salão.
— Então, não deve mais ter cavalheiros em Londres, já que aposto toda
minha fortuna que a sua está em branco. Ninguém te convidou para dançar,
Lady.
E sem mais nenhuma palavra ele se foi, me deixando com a sensação de
ser a garota mais idiota de toda a Inglaterra. Definitivamente, eu me sentia uma
vespa, um inseto que foi esmagado por ele e por toda sua arrogância.
CAPÍTULO 2
“Se perder os sonhos, perdeu a vida. Precisa-se deles para acordar todos os
dias e ter uma razão para lutar. Deus, não me faça esquecer os meus pelos
caminhos...”
(Diário de Helena, Londres, 1801.)
HELENA
Sem conseguir me mexer, fiquei jogada na cama, esperando ao menos
uma criada para me socorrer.
Ele não tinha machucado meu rosto. O bom e digno Márquez, como
todos diziam, sabia que precisava de um belo rosto para manter o casamento. Já
o restante do meu corpo estava marcado. Espalhado por todo o lençol, sangue
que eu nem tinha consciência de onde surgia.
Meu corpo não importava, já que eu serviria só por uma noite. Fiquei
aterrorizada com a lembrança.
Nunca me esqueceria do dia em que uma das minhas amigas chegou
chorando ao meu quarto, depois do casamento, e contou a dor que sentiu, a
humilhação e os tapas no rosto que levou do marido quando reclamou.
Isso não era amor. Não era assim que eu sonhava.
Sonhos? Eu tinha bastante, minha mente vivia recheada deles.
Agora, estava impossibilitada de fugir, esperando o meu destino final.
Fiquei variando na cama, lembrando do que aconteceu e do que viria.
Nem assim me permiti chorar.
Depois disso apaguei.
“Que meu destino seja amar, nunca odiar; que meus olhos encontrem o que
buscam por tanto tempo, que na primavera eu encontre flores e não
espinhos; que os sorrisos sejam correspondidos; as lágrimas encontrem um
lenço e o abraço, um aperto. Este é meu desejo: ter um amor.”
(Diário de Helena, Londres, 1798.)
HELENA
Não teve um abraço, um adeus e nem uma lágrima fingida. Assim foi a
minha despedida de casa.
Um alívio para a minha família.
Para o duque, entretanto, estava claro que eu seria um fardo. Por que me
escolher, então? Eu descobriria.
Meu corpo estava latejando de dores, pude sentir a temperatura começar
a se elevar. Se tivesse uma febre no caminho, era bem capaz que ele me jogasse
para fora da carruagem em movimento.
— Consegui uma licença especial, um padre bondoso, uma igreja
abandonada e algumas testemunhas sem importância. Vamos nos casar hoje
mesmo! — ele anunciou despretensiosamente.
Uma tontura quase me fez cair do banco. Eu teria que me entregar a ele
hoje, sem ter ideia do que um casal fazia na cama, a não ser pelos relatos de
algumas amigas que se casaram e choraram ao se lembrar da noite de núpcias. O
choro não fora de alegria!
Meu corpo não estava em condições de receber mais punições. Meu
Deus, o que eu faria?
O silêncio na carruagem era constrangedor. Continuei olhando para as
ruas de Londres, evitando seu olhar. Eu poderia senti-lo sobre mim.
A febre estava chegando com força. Tinha dificuldade para controlar os
tremores. Cruzei os braços para me aquecer e esconder minhas mãos trêmulas.
— Você sabe que terá que dormir essa noite comigo para validarmos o
casamento, não sabe? — perguntou ele por fim, quebrando o silêncio.
— Eu do-dormirei com vossa graça um-uma única noite... — minha voz
me traía, e estava tremendo compulsivamente — para validar o casamento, já fui
avisada disso.
— Ótimo. Que bom que já sabe do acordo que fiz com seu pai. É tedioso
dormir com a mesma mulher por mais de uma noite. Vocês são enjoativas.
Aproveitei suas palavras cruéis e olhei bem para ele. Eu precisava gravar
isso na minha memória, para que a sua beleza, que era incomparável, não
encontrasse lugar no meu coração. Por dentro, o duque era um monstro.
— Se está tremendo por medo, fique tranquila. Geralmente todas gemem
de prazer quando estão por baixo.
As palavras baixas me fizeram corar. Arrogante!
— Tenho certeza de que serei inesquecível para o senhor. Nenhum
gemido há de sair da minha boca. Você me enoja.
Um sorriso malicioso se abriu nos seus lábios perfeitos.
— Sou um ótimo apostador. Quer fazer parte de uma aposta?
— E o que seria? — perguntei mordendo a isca.
— Se você gemer uma única vez, eu venço.
— E qual seria o meu prêmio se você perder a aposta?
— Deixo você escolher o que quiser como prêmio. Assim como escolho
o meu.
— Qual se-seria? — Eu não sabia mais se gaguejava de frio, ou de
vergonha pelo que imaginava vir a seguir.
— Vou aproveitar meus privilégios de marido e te possuir em cima do
tapete persa da minha sala de estar.
Senti o ar faltar dos meus pulmões. Meu sangue, que já fervia pela febre,
parecia prestes a entrar em ebulição.
Sem me deixar abater, continuei:
— Achei que ter uma mulher mais de uma vez na sua cama era enjoativo.
— Na verdade, será uma vez na cama e outra no tapete! — Ele piscou o
olho, como se tivesse matado uma charada.
Odiei-o! Por me irritar, por ficar mais lindo quando piscava
maliciosamente, por não se importar com nada além do meu corpo....
E me odiei. Por pensar tudo isso.
Eu sonhava em como seria o corpo de um homem debaixo de todas
aquelas roupas. Os livros me davam alguma noção do que acontecia na cama de
um casal; mesmo o mundo real me provando que nada de bom poderia surgir
daquilo, eu sonhava com o amor e que este tornaria tudo diferente.
Então o odiei ainda mais por roubar todos os meus sonhos.
A carruagem parou e porta se abriu, nos livrando daquela discussão
infundada.
George desceu, estendo as mãos para me auxiliar.
Eu descobri que andar não era mais possível. Meu corpo não me
obedecia. Arqueada dentro da carruagem, eu não conseguia mudar os passos.
— Não adianta você começar a se fazer de doente. Não me comovo com
dramas, Helena! — ele disse irritado.
Eu precisava de forças para lutar. Movida por uma força chamada
vingança, consegui dar alguns passos. Meu único sonho de casamento com
George era transformar sua vida em um inferno.
Tentei descer sem pegar na sua mão. Quase caí e fui amparada por ele.
— Aiii! — Acabei deixando escapar um gemido de dor quando meu
corpo encostou no seu. Só o peso do vestido já estava me fazendo sofrer pelas
feridas.
— Já arranquei gemidos seus na porta da igreja. Acho que a aposta é
minha — ele se gabou, sem conseguir olhar além do próprio nariz e ver que eu
estava machucada. — Você deve estar com dores por conta de ficar sem se
mover dentro da carruagem. Parecia uma estátua! — ele completou.
Não respondi. Resolvi ficar quieta pelo resto do dia.
A cerimônia foi rápida. Nada de promessas, amor ou beijos. A única
coisa que precisei fazer foi dizer sim.
Quando fui colocada novamente dentro da carruagem, agora como uma
duquesa, eu não tinha mais forças nem para respirar.
Todo meu corpo estava desistindo. Meus olhos me traíam, querendo se
fechar, e os tremores aumentaram. Eu nem me importava mais em esconder meu
mal-estar.
Pela primeira vez, desde que o noivado foi anunciado, eu ansiava por
minhas núpcias. Eu ansiava por uma cama, não importando a que custo ela viria.
— Helena! Helena! — escutei George me chamando.
Vinha de tão longe sua voz. Será que ele estava me deixando?
— Não pode me jogar para fora... da-da carruagem... — suspirei. Falar
estava ficando difícil. Minha língua pesava... — Sou uma duquesa agora.
— Pelo amor de Deus, você está ardendo em febre. Por que não me
disse?
Sem muito jeito, senti quando seus braços apoiaram meu corpo.
— Vo-cê estava um pouco irritado... Vou ficar bem, meu mestre, milorde,
meu dono... precisa me dizer como quer que eu o chame... — As palavras
confusas me davam a sensação de que estava delirando.
— Pare com isso. Vai ficar bem. Vou cuidar de você.
— Como um cavalo... Certo?
Pensei na ironia da vida. Até no dia do meu casamento eu daria um
perfeito escândalo. Sem modos, doente, imprestável.
O destino tinha sérios problemas com a minha existência.
Tudo que pude pensar antes de apagar, foi que talvez eu gemesse na
cama sem querer, e George ganharia a aposta.
Eu estava doente. Não teria controle quando ele me possuísse. Apaguei
sonhando com um tapete persa.
CAPÍTULO 6
“Um duque nunca perde a compostura, nunca deve mostrar suas fraquezas
ou se acovardar. Isso está na sua essência. Na verdade, não como duque,
mas como homem. Não importam as circunstâncias, sejam elas por uma
mulher ou em caso de vida ou morte.”
(Anotações de George, Paris, 1800.)
GEORGE
Se eu realmente tinha um coração, ele quase parou quando Helena
desfaleceu nos meus braços.
Desesperado, bati no coche para que ele fosse mais rápido. Em poucos
minutos estávamos em frente à mansão Hasprind.
Peguei-a nos meus braços e desci rapidamente. De olhos fechados,
parecia um anjo, tão frágil.
Ignorei o pensamento, entrando como um furacão em casa. Todos os
criados me olharam com estranheza, sem entender.
— Busquem um médico, urgente. Vou acomodá-la no meu quarto.
Preparem a banheira se for necessário e não avisem a minha mãe sobre a nova
hóspede.
Meu desejo era esfregar na cara da minha mãe o meu casamento. Ela não
tinha ideia de que tinha me casado, muito menos com Helena. No entanto, na
atual circunstância, eu não precisava dela me atrapalhando ou fazendo cenas
histéricas.
Subi as escadas, quase tropeçando nos próprios pés.
— Você não pode morrer agora, minha duquesa. Não vou deixar.
Não era só um apelo, era uma promessa.
O receio de talvez a perder me trouxe um mal-estar inexplicável.
— Vamos, abra os olhos, Helena.
Depositei-a na cama. Tirei seus sapatos para deixá-la mais confortável.
Não pude deixar de reparar nos seus dedos totalmente disformes. Sorri. Ela era
um escândalo desde os pés.
Imaginei como seria beijar aqueles dedos. Eu a desejava.
Sem entender qual era o meu problema, por desejar uma mulher quase
morta, peguei uma toalha umedecida que um dos empregados trouxera e
coloquei sobre sua testa, na tentativa de diminuir a temperatura.
De onde vinha essa febre?
Desesperado, pedi que todos saíssem do quarto e comecei a tirar as
camadas de vestido que a cobriam.
Deixando-a só com as roupas de baixo, notei, horrorizado, várias marcas
de sangue que faziam com que o tecido se grudasse ao seu corpo. O que
acontecera? Como ela tinha se machucado dessa forma? Por que não dissera
nada?
Meu Deus, ela está toda ferida e não pude perceber nada. Me senti o
pior dos homens imbecis.
A espera pelo médico foi uma angústia que nunca mais almejava sentir.
Minha testa suava, como se a alta temperatura do seu corpo estivesse afetando
todo o ambiente.
Escutei passos apressados se aproximando.
— Ah, graças a Deus... — Levantei-me quando o médico abriu a porta
do quarto. — Não sei o que houve, mas a lady está toda machucada.
Estarrecido, voltou-se para Helena na cama, em seguida me crucificou
com o olhar.
— Deveria ter considerado que as damas são frágeis, vossa graça! —
disse fazendo uma leve reverência.
— Ah, não...eu nunca....eu... — Estava gaguejando, como um garoto
covarde. O homem poderoso tinha se perdido complemente diante daquela
dama.
Respirei fundo, me recompondo.
— Não lhe interessa como a dama se feriu. Faça com que ela se sinta
melhor, agora — disse rudemente. — Esta é uma ordem.
— Claro, vossa graça.
Desviei o olhar quando ele se aproximou, analisando as feridas por cima
do tecido. Não sei se por odiar vê-la ferida ou notar os olhos de outro homem em
cima da minha mulher.
Passei as mãos pelos cabelos, perdido. Todos os meus planos estavam
fugindo do meu controle. Não era assim que seria. Eu levaria Helena para a
cama, esqueceria de tudo no momento e faria sexo com ela, carnal, cheio de
desejo e nada de amor. Depois a apresentaria à minha mãe e compareceria a
todos os malditos bailes e festas para os quais tinha sido convidado.
Envergonharia minha mãe de todas as formas e, quando tivesse o
suficiente da minha vingança, colocaria Helena em uma carruagem e a mandaria
para alguma casa de campo, onde seria bem tratada e esquecida por mim.
O problema é que nada caminhava como planejado.
Após alguns instantes, o médico cujo nome nem me dei ao trabalho de
saber, resmungou, me tirando dos meus pensamentos.
— Vou providenciar uma compressa com ervas, que deve ser colocada
sobre os ferimentos. Creio que será suficiente para diminuir a infecção e,
consequentemente, a febre.
Assenti sem saber como agradecer. Percebi que somente então voltei a
respirar normalmente. Não tinha nada de anormal comigo. Só estava aliviado
porque aquela mulher era minha responsabilidade e meu instrumento de
vingança.
Só isso.
Nada mais que isso.
Aliviado pela constatação, saí do quarto dando ordens para que os
criados seguissem todas as orientações do médico.
— Só me chamem quando ela acordar! — ordenei.
Fui para o meu quarto, que ficava ao lado, olhando para a porta de
comunicação que me ligava ao quarto de Helena. A frustração tomando conta do
meu corpo, que, exaurido pelo longo dia, esperava pelo alívio com a mulher que
era minha por direito.
Mais frustrado ainda por perceber que o bem-estar dela me importava
tanto. Me servi de um gole de uísque e esperei. Eu não sei se entraria mais
naquele quarto. Pediria que me dessem notícias e manteria distância.
Aquela mulher estava me afetando. Isso era inadmissível.
A distância seria a forma ideal para esfriar todas as coisas do meu corpo.
Assim como o restante do dia, a noite foi infernal. Trancado no meu
quarto, recebia notícias de hora em hora. O sono, que nunca era um bom amigo,
decidiu se esvair por completo.
Quando os primeiros raios de sol adentraram a janela, levantei como um
furacão. Irritado e frustrado.
Chamei uma das serviçais que cuidaram de Helena, para saber as últimas
notícias.
— A lady está melhor, um pouco indisposta, mas sem febre. O chá foi
servido no quarto e ela disse que aguarda o senhor.
— E minha mãe? — perguntei preocupado.
— Como foi ordenado, ela não sabe da nova hóspede e está à espera do
senhor para o desjejum da manhã.
— Obrigado. Pode se retirar.
Depois de uma pequena mesura, fui deixado a sós com meus
pensamentos.
O que ela desejava falar comigo? Eu sim, tinha coisas a lhe dizer.
Apressado, fui até o seu quarto; entrei sem bater ou ser anunciado.
— Bom dia — disse, tentando não me comover com sua aparência pálida
e apática —, espero que esteja se sentindo melhor.
Sentada na beirada da cama, vestindo um simples vestido verde rendado,
sua beleza impressionava, mesmo na atual condição.
— Gostaria de me desculpar, meu senhor. — Ela levou a xícara de chá
até a boca, tentando esconder seu constrangimento, que não me passou
despercebido. — Nunca mais vai se repetir. Até à noite devo estar melhor para
cumprir com meus deveres.
— Eu sei que está ansiosa — brinquei, tentando ser simpático antes do
que viria a seguir —, mas a quero bem recuperada. Não tenho pressa —
completei, obviamente mentindo. Eu tinha pressa.
Suas bochechas coraram, deixando-a mais linda, se é que isso era
possível.
— Helena, quero que me diga como se machucou dessa forma.
Depositando a xícara de volta à bandeja, seus dedos se cruzaram e ela
começou a apertá-los em sinal de nervosismo.
— Já estou bem. Isso que importa.
— Eu lhe fiz uma pergunta. E minhas perguntas são ordens! — exclamei
rudemente.
Ela abaixou o olhar, e notei imediatamente como as palavras a
magoaram.
— Desobedeci a meu pai e fui punida.
A ira tomou conta do meu ser e precisei me controlar para não quebrar a
primeira coisa que encontrasse pela frente. Maldita sociedade hipócrita.
— A partir de hoje, está proibida de visitar sua família, e eles só entram
nessa casa sob minha ordem. Entendido?
Seus olhos se levantaram, cruzando com os meus. Jurei ver fogo dentro
deles.
— Você não é meu dono.
— Sim, amada esposa. Sou seu dono.
— Eu não sou sua amada. Sou sua nova égua que você adquiriu.
Satisfeito?
Seu tom de voz era ameaçador, e isso a deixava maravilhosa. A vontade
de beijar aqueles lábios me fez esquecer por um minuto qual era o seu papel na
minha vida.
— Ficarei satisfeito quando você se comparar a um bom e adestrado
cavalo. E quando cumprir seu dever de esposa.
Saí do quarto sem olhar para trás, ou acabaria agarrando aquela mulher
naquelas condições. Inferno!
CAPÍTULO 7
“Os livros já diziam que o amor deve ser perfeito, nunca premeditado ou
não correspondido, ou então traria sofrimento à alma. Quando o meu
chegar, ele será avassalador e eu saberei que é amor, porque não me fará
sofrer, somente amar.”
(Diário de Helena, Londres, 1800.)
HELENA
Meu sangue fervia de ódio por aquele homem, que assim como meu pai,
se achava acima de todos, o deus das mulheres, o soberano do mundo. Ele não
me conhecia!
Precisava me recuperar logo e, então, ele se arrependeria de vestir calças
e ter se casado comigo.
Ah, que sensação boa a da vingança! Abriu até meu apetite. Comi quase
tudo o que me foi servido no quarto.
Voltei para a cama depois disso. Por mais que me esforçasse, meu corpo
não correspondia a meus estímulos.
George não apareceu nos próximos dez dias, e minhas feridas
cicatrizaram, a febre foi embora. Prisioneira dentro do quarto, criados me
vigiavam e tinham ordens para não me deixarem sair. A cada minuto que era
mantida ali, só conseguia pensar em tudo que faria para destruir a imagem
daquela família. Começaria na noite de núpcias. George esperava a moça
recatada, a boa e envergonhada esposa. Ele já teria uma prévia do que
encontraria no caminho.
Uma vez, escutei em uma roda de fofocas — em muitos dos bailes nos
quais me escondia, entediada com tantas conversas chatas, sorrisos falsos e
mulheres caçando maridos — que, dentro de um quarto, uma boa esposa nunca
fazia barulhos, nunca devia se desnudar com as velas acesas e de maneira
alguma tocar no marido. Isso era considerado papel das amantes. O escândalo de
Helena!
Uma das criadas entrou no quarto, sem saber direito como agir. Ao que
tudo indicava, seguia ordens de George e não estava conseguindo colocá-las em
prática.
— Quer me dizer alguma coisa?
— Sim, Milady — disse constrangida —, o duque mandou informar que
vem visitá-la esta noite e que esteja preparada para recebê-lo como lhe é devido.
As palavras a fizeram corar, assim como a mim.
— Diga ao duque que honro com minhas palavras, e que a égua que ele
comprou para seu uso pessoal estará a seu dispor.
Sorri com a palavras que esperava que fossem transmitidas exatamente
como tinham sido ditas. Fiquei com pena da criada por ter sido colocada nessa
situação, no entanto, este era um dos primeiros infortúnios da minha longa
caminhada de vingança.
Fui até o meu baú de roupas, procurando por algo que me fosse útil nessa
noite. Infelizmente, as roupas eram decentes demais, comportadas em excesso.
Sentei na cama. Bufei irritada.
Pensei melhor e tive uma ideia brilhante. Com um sorriso nos lábios,
escolhi um vestido cafona, todo rendado em tons de rosa-bebê que, segundo a
minha mãe, se não estivesse no meu corpo, lembraria quem quer que o vestisse,
de um verdadeiro anjo. Eu o colocaria, faria o rosto mais inocente que ele já
tinha visto em Londres e, assim que convencido de que o seu negócio fora o
melhor já feito, que o seu cavalo era puro-sangue, passaria a mostrar o escândalo
que estava propenso a ser.
Apesar da vergonha, do medo de tudo o que se sucederia, estava
empolgada com meus planos. Eu precisava disso para não desabar. Precisava ter
esperanças de que alguma coisa na minha vida tinha sentido.
A criada me ajudou com os preparativos, rejeitei o jantar nessa noite,
com medo de não me sentir bem se me alimentasse, e fiquei pronta, sentada na
cama o aguardando.
Um frio no meu estômago foi inevitável. Precisava me fazer de forte,
mas a verdade é que por dentro eu era a Helena de sempre, morrendo de medo
de ser destruída por esse homem que parecia atropelar tudo que entrava em seu
caminho.
Escutei passos se aproximando da porta e gelei. Respirei fundo quando vi
a maçaneta se movimentar. Então ele entrou. Era como se até o ar parasse e
depois fizesse reverência para ele, que se impunha onde fosse; o seu perfume já
invadiu minhas narinas, me fazendo odiá-lo por gostar tanto daquele cheiro.
Homens não deviam cheirar bem! George vestia com elegância um terno escuro
com colete e uma camisa branca. A gravata torta e desarrumada demonstrava
que ele não fizera uso de seu lacaio para se vestir. Aquilo só acrescentava o ar de
cretino que já rondava sua fama.
Seus olhos se fixaram nos meus enquanto um sorriso indecente se
formava em seus lábios, como um convite ao pecado. Ele era o pecado!
— Pensei que poderia se atrasar, mas vejo que a expectativa para esta
noite fez com que você se antecipasse, assim como eu estou adiantado! — Ele
fechou a porta do quarto, se encostando nela, com as pernas cruzadas.
— Engano seu. Na verdade, o meu anseio é para que tudo termine logo.
Então, me preparei já prevendo que você pudesse se adiantar. Vejo que não se
contém para certos assuntos.
Ele jogou a cabeça para trás em uma risada que fez algumas gotas de
suor se formarem na minha testa. De repente, o quarto ficou quente. Não
entendia o motivo.
— Para sua decepção, pretendo fazer esta noite se estender. Nada será
rápido, nem tedioso, eu te garanto. — Ele deu alguns passos em minha direção.
A cada movimento seu, o ar se esvaía dos meus pulmões. — Está com medo,
Helena?
Ergui o rosto, sem me deixar esmorecer por suas palavras indecentes.
— Não sinto medo de nada! — disse sem pestanejar.
Havia seis velas acesas espalhadas pelo quarto. Como em jogo, ele foi até
uma delas e a apagou. Voltou seu olhar em minha direção. Dessa vez, o sorriso
tinha ido embora, sendo substituído por algo que eu não sabia distinguir.
Levantei-me. Precisava começar a agir. Meu corpo tremia. Estava
assustada. Fechei os olhos, lembrando por um instante do passado, das
humilhações, das surras e, por fim, de como fui entregue como um produto.
Não! Eu era forte! Tinha de ser!
Abri os olhos, caminhei em sua direção e coloquei uma mão em seu
peito.
— Não quero que apague as velas — sussurrei ao pé de seu ouvido. —
Você não negocia seus cavalos no escuro, negocia?
Afastei-me para ver sua reação e, pelo seu rosto pasmo e ausência de
palavras, estava no caminho certo.
Comecei a desabotoar os botões do vestido, um por um, com os dedos
ainda trêmulos. George parecia paralisado e me olhava como se faíscas saíssem
dos seus olhos.
Prolonguei sua espera. Para manter aqueles olhos sobre mim e para tentar
me manter em pé, o que me parecia impossível. O que eu estava fazendo não era
algo que julgasse possível.
Quando abri o último botão, ele escorregou por meu corpo, me deixando
nua na sua frente, já que me privei das roupas de baixo.
George abriu os lábios, as palavras continuavam ausentes, e me perguntei
por um minuto se ele fugiria do quarto. O meu instinto era me cobrir nem que
fosse com as mãos. Meu rosto queimava, indo contra o que se expunha ali.
Estava envergonhada.
Notei que sua respiração ficou irregular, e ele balançou a cabeça em
negativa.
— Você não faz ideia do que acabou de fazer! — disse aparentando
manter a calma. Acho que ninguém estava calmo nesse quarto!
Não entendi suas palavras e o olhei confusa.
Mas a resposta não veio, a não ser seus braços que me agarraram e seus
lábios que se uniram aos meus, a língua pedindo passagem para algo que eu não
sabia bem como fazer, a não ser o fato de que minhas pernas perderam as forças
e ele precisou me segurar.
CAPÍTULO 8
“As manhãs serão os momentos mais preciosos. Todos os dias, quando abrir
os olhos e eu notar que os seus estão me encarando e mostrando o quanto
me ama, será perfeito. No amor, tudo é.”
(Diário de Helena, Londres, 1800.)
HELENA
Fazia dois dias que ele tinha partido e meu coração parecia não ter
desacelerado; seu cheiro ainda estava nas minhas narinas e seu gosto insistia em
permanecer nos meus lábios. A insônia era minha companhia. Eu me revirava,
imaginando-o na cama com outras mulheres, o ciúme me corroendo e tentando
convencer a mim mesma que não passava de orgulho ferido, já que toda Londres
nesse momento deveria estar de burburinho às minhas costas. Mesmo que eu não
tivesse sido apresentada oficialmente como duquesa e que o casamento em si
tenha sido um escândalo, já que não fui cortejada, eu estava casada com o Duque
de Misternham.
Podia escutar os comentários, todos conjecturando como eu devia ser
sem graça por ter sido abandonada na primeira semana de núpcias. Como era
incapaz de agradar um homem. A humilhação cresceu dentro do meu peito e
levantei na madrugada, acendendo as velas, andando de um lado para o outro.
Precisava planejar o que faria no baile na próxima semana, ou enlouqueceria.
George precisava sentir na pele toda a humilhação a que me expunha.
Começaria chamando a modista pela manhã. O traje ideal já estava arquitetado
na minha mente.
Depois, o levaria à loucura, até conseguir gerar um filho dele. Já que esse
era o seu pior pesadelo, seria o meu maior desejo a partir de agora. Assim que
ele partiu, minhas regras desceram, me fazendo lamentar por não ter sido eficaz
da primeira vez. Mas um dia seria. Ele me desejava. Podia ver nos seus olhos.
Me valeria disso.
E tudo o que ele desejava, eu faria o contrário. George pediu que eu
acabasse com a mãe. E tudo o que fiz foi dar carta branca a ela. Coloquei todos
os criados à sua disposição e comando, me trancando no quarto. Se o castelo
pegasse fogo, eu ajudaria ateando mais fogo.
Quando o dia amanheceu, pedi que chamassem a minha modista e não a
que George instruíra. Como ele tinha deixado ordens para que cumprissem os
meus desejos, fui atendida.
Logo Lady Marshala, uma jovem modista que estava fazendo sucesso
por suas ideias inovadoras, chegou.
— Ai, como estou feliz, duquesa, por lhe atender! — disse falsamente.
Afinal, semanas antes, ela odiava costurar meus vestidos.
Diziam nas rodas de fofoca que precisava do dinheiro, mas que seria
jogar seu nome na sarjeta ver suas criações sendo usadas por uma figura como
eu, que tinha tão pouca representatividade na sociedade. Agora, como duquesa,
esse cenário parecia mudar. Eu só a chamei porque realmente o seu trabalho era
brilhante e precisava dele.
— O que vai querer? — perguntou empolgada, enquanto suas criadas a
ajudavam a tirar das várias maletas sedas das mais variadas cores. — Temos
creme, bege, azul-celeste, rosa-bebê....
— Preto! — cortei-a, antes que ela transformasse o meu quarto em uma
loja de tecidos.
Ela paralisou, e seus cílios espessos começaram a piscar excessivamente.
— Eu...me desculpe. Não fiquei sabendo que tinha perdido algum
familiar distante. Que indiscrição a minha. Está de luto, vossa graça. Me
desculpe! — Colocou a mão no peito, constrangida.
Abri um sorriso, já imaginando a mesma reação das pessoas no baile.
— Não estou de luto, Marshala. A cor foi escolhida por opção. Eu adoro
vestidos pretos.
Seu olhar foi da pena para o espanto, e depois para choque, em questão
de segundos. Era cômico.
— Espero que possa atender ao meu pedido. Ou será que, dentre tantas
sedas, você não terá nada que agrade uma duquesa? — Arqueei as sobrancelhas
em tom de dúvida.
Se tinha algo que Marshala odiava, é que duvidassem do seu trabalho. O
que a incentivava sempre era um desafio.
Rapidamente ela abriu outro baú e retirou uma seda preta, estendendo
sobre a cama.
Abri um sorriso de aprovação.
— Só preciso tirar suas medidas. Tenho alguns modelos que são última
moda em Nova Iorque. Tenho certeza que vai lhe agradar. Não ficará tão perfeito
devido à cor escolhida, mas com os ajustes ideais poderemos fazê-lo ficar com
um tom alegre.
Enquanto pegava a fita métrica, as criadas começaram a dobrar de volta
os tecidos espalhados.
— Quero que você seja generosa no decote e que use um espartilho bem
apertado, valorizando minhas curvas. As luvas devem ser brancas, e quero
discrição sua sobre o meu vestido: se vai continuar sendo minha modista,
ninguém saberá o que vou usar no baile, entendido?
— Com toda certeza, vossa graça! — confirmou.
Encomendei outros vestidos para algumas ocasiões futuras, e já exausta,
dispensei-a no final da tarde.
Maria Elisa, a mãe de George, não tinha dado o ar da graça. Ao descer
para jantar, agradeci porque mais uma noite jantaria sozinha, como todas as
outras desde que meu marido partira.
Me sentia solitária naquela casa. Por mais que não fosse perfeita, ao
menos eu tinha alguém para conversar quando morava com minha família.
Agora vivia isolada. Era triste.
Quando foi servido o primeiro prato, ela apareceu, me fazendo
arrepender por não ter pedido o jantar no quarto. Sem pedir licença, sentou na
mesa e nem um boa-noite esboçou. O silêncio era constrangedor. Seus olhos
estavam fixos na minha boca. Ela reparava na quantidade que eu comia.
Irritada demais para continuar calada, coloquei o garfo de volta à mesa e
a encarei.
— Algum problema? — perguntei.
— Só reparando como você é inadequada.
— Já pode se retirar... — Apontei para a porta. — Se já fez sua análise,
faço o convite para que se recolha ao seu quarto e faça seu jantar lá. Eu me casei
com George e não pretendo ser adequada para você.
— Se acha por um minuto sequer que ele a ama, anda lendo muitos
romances shakespearianos. Isso não passa de um capricho de George para me
irritar. Nesse momento, ele deve estar exausto em uma cama qualquer com
prostitutas, em bares de Londres. Daqui a alguns dias não vai nem sequer
procurá-la na cama. Você é uma infeliz, Helena. George quer me humilhar
perante Londres, fazendo com que você seja um escândalo e depois deixá-la
sozinha em uma casa de campo, já que nunca vai permitir que você tenha um
filho, para me punir com o fim da sua linhagem.
Se ela esperava que eu me acabasse em lágrimas, a surpresa ficou
estampada em seu rosto minutos depois, quando sorri. Por dentro eu fervilhava
de ódio. Não tinha lágrimas para derramar. Já tinham matado tudo dentro de
mim. Meus sonhos havia muito tempo tinham sido pisoteados por meu pai e,
mais recentemente, por George. Agora as coisas começavam a se encaixar na
minha mente. Não tinha razão nenhuma para que o Duque de Misternham se
casasse com uma mulher como eu, sem classe, com um dote inferior, um título
sem importância, beleza incomum, a não ser o escândalo estampado no rosto. A
não ser que isso fosse sua arma de vingança.
O problema é que a mesma arma que ele tinha nas mãos era a mesma que
eu mantinha carregada e apontada para sua testa. Eu o estava ajudando a destruir
a própria mãe. Dispúnhamos dos mesmos artifícios e eu, tola, achando que
estava arquitetando um grande plano de vingança. Ri com desgosto, vendo como
aquele homem poderia ser ardiloso, estando um passo à frente.
Tendo perdido o apetite, algo raro, pedi licença e me retirei da mesa.
Precisava pensar. Chegando ao meu quarto, sentei na grande poltrona que
deveria me fazer sentir uma princesa e, na verdade, me lembrava como era
plebeia. Abaixei a cabeça, pensando em desistir. Por fim, eu seria o fracasso que
meu pai tantas vezes afirmou. Minha mãe sempre contava nos jantares, rindo em
excesso, das lembranças do nascimento da minha irmã; em como ela percebeu,
já no parto, a diferença entre nós duas. Eu vim ao mundo com tanto escândalo,
que o meu choro foi ouvido a quarteirões, enquanto minha irmã nasceu como
uma dama: linda, reluzente e contida.
Levantei o rosto. Não! Eu não podia desistir agora, seria uma covarde.
Nem tudo estava perdido. Se o maior desgosto da minha família era a vergonha a
que eu os expunha, meu pai desejava sair por cima ao me destruir, entregando-
me àquele casamento que para ele representou seu bilhete de ouro. Uma filha
que sempre foi seu horror, de repente se tornava a esposa de um duque,
deixando-o acima da sociedade. Minha mãe, nesse momento, estava com toda
certeza empilhando convites e mais convites para bailes e chás da tarde, e eu
tinha aberto uma porta para que minha irmã fosse cortejada pelos melhores
partidos da Inglaterra.
De repente, tudo se acendeu. Meu mundo se iluminou novamente. Nada
estava perdido. Eu poderia acabar com eles, mantendo a vingança que estava
destinada a George. Se eu fosse o maior escândalo de Londres, sujaria o nome da
minha família, colocaria o nome de meu pai na lama e levaria o da minha irmã à
ruína. Quem iria querer se casar com ela, quando descobrissem que pertencia a
uma linhagem tão imperfeita, e tinha uma irmã com criação tão esdrúxula?
Todas as bocas de Londres e da Inglaterra em breve estariam falando que a
Família Deltolen não dera educação apropriada às filhas, e os pretendentes da
minha irmã deixariam de procurá-la; os convites para os eventos sociais
cessariam; e até às entradas para os famosos clubes noturnos que meu pai tanto
prezava se fechariam.
Nunca, nos últimos anos, eles ouviriam falar de uma mulher que
provocou mais escândalos em bailes que a Duquesa Helena de Misternham.
E, por fim, viria George. A ele, eu o venceria com o desejo — a arma
mais poderosa que uma mulher poderia usar. Com ela, já se venceram guerras e
se destruíram impérios.
Eu vi nos olhos dele como me desejava. Só tinha um problema para
resolver: a minha inexperiência. Mas já tinha escutado que prostitutas em
Londres salvavam casamentos falidos por pouco dinheiro. Quando os primeiros
raios de sol entrassem pela janela, eu entraria em uma carruagem e encontraria
uma delas. E quando George menos esperasse, eu o atingiria onde mais doía. Eu
carregaria um filho dele. O seu maior pesadelo. E por mais que ele ameaçasse
dizer que me abandonaria e que o filho seria um bastardo, em algum lugar do
mundo saberia que sua linhagem se perpetuou, e isso seria algo que ele nunca se
esqueceria. A minha vingança eterna!
CAPÍTULO 12
“Eu o amaria, dia após dia, e ele se encantaria por minha pureza, como todo
bom marido, e no escuro somente a luz da lua seria testemunha do nosso
pecado.”
(Diário de Helena, Londres, 1801.)
HELENA
Meu coração estava acelerado. Juntei algum dinheiro que George deixara
para as despesas da modista e que não tinha gastado tudo e solicitei a carruagem,
para ir até ela. Não poderia levantar suspeitas.
Dali, iria a pé até o bordel que conhecia. Nunca tinha estado lá, e damas
teoricamente não deveriam saber onde ficava um. No entanto, esses se
proliferavam pelas ruas de Londres e ficava impossível esconder sua existência.
Quando o cocheiro me deixou em frente à modista, disfarcei e consegui
passar pela porta sem ser vista por ele, mais preocupado em reparar em dois
moleques que discutiam por uma bola.
Precisei andar várias ruas até encontrar o bordel que procurava. O local
era um cadáver velho, em uma rua suja, mas segundo as línguas fofoqueiras dos
bailes, por dentro era um dos mais luxuosos e comandado por Lady Nataly, uma
jovem prostituta que levava os homens à loucura e os fazia deixar fortunas em
sua cama. Ela era uma lenda. Era com ela que pretendia me encontrar.
Bati à porta, olhando com medo para trás. Era perigoso damas andarem
sozinhas pelas ruas de Londres; bandidos e estupradores estavam por toda parte.
Uma pequena fresta foi aberta e um parte de olhos negros me olhou com
curiosidade.
— O que deseja, senhora?
— Falar com Lady Nataly — respondi.
Ela tentou fechar a porta, com medo. Coloquei o meu pé para impedir.
— Diga que venho pedir um favor e trago muito dinheiro em retribuição.
Ela assentiu e saiu. Esperei por mais alguns minutos até ela voltar.
— Pode entrar. Ela vai recebê-la.
Quando as portas foram abertas, não pude deixar de ficar surpresa.
Apesar da extravagância, o lugar era lindo. Todo revestido de veludo vermelho e
preto, o grande salão não combinava com o casebre velho por fora. As mesas de
mogno escuro, todas entalhadas, denunciavam que o público à noite era
numeroso. O bar estava fechado, mas havia um arsenal incontável de bebidas; e
a um canto montado, um pequeno palco era adornado por um lustre que
lembrava os dos famosos teatros de Londres.
— Por aqui... — ela me chamou, tirando minha atenção do salão.
Subimos por uma escada para o andar de cima e fui levada a um
camarim, onde Nataly me esperava sentada em uma elegante poltrona vermelha.
— Deixe-nos a sós, Meri — pediu para a jovem que me acompanhou. —
E feche a porta.
Nunca tinha visto uma mulher mais bela. Seus longos cabelos ruivos
ondulados combinavam perfeitamente com os grandes olhos verdes que me
encaravam com curiosidade. As sardas estavam maquiadas, mas ainda eram
visíveis. Mesmo nesse horário da manhã, ela usava batom vermelho, que
contrastava com sua pele clara. O corpo voluptuoso era marcado pelo vestido
indecente, que deixava seus seios saltando do decote.
— Ma chérie, seja bem-vinda — disse com sotaque francês. — O que
deseja?
Fez sinal para que me sentasse à sua frente.
— Preciso de instruções. E estou disposta a pagar por isso.
Ela sorriu.
— Não durmo com mulheres, merci! — Estendeu a mão.
Corei com sua insinuação.
— Não entendeu, Nataly. Só quero que me ensine a arte do amor com
suas palavras, nada mais que isso — expliquei.
— Pardon, não posso abrir exceção. Dinheiro não é problema. Depois,
outras mulheres saberão e virão bater nessa porta. Este não é meu trabalho.
— Disseram que você ajudava muitas a salvar seus casamentos...
— Boatos, mon petit, boatos. Por isso não devo aceitar. — Ela colocou
suas mãos carinhosamente sobre as minhas. — Se acerte com seu marido. Amor
sempre é melhor que sexo, acredite em mim.
Balancei a cabeça. Não poderia desistir, não estando ali.
— Não é sobre amor, Nataly. Sou uma duquesa. Posso te oferecer muito
mais que dinheiro. Te ofereço proteção e fico te devendo um favor que pode me
cobrar quando quiser, da forma que desejar.
Ela me olhou, parecendo tentada dessa vez. Aquela mulher tinha todo o
dinheiro de Londres que precisasse. Os homens deixariam o que ela pedisse.
Pensei com tristeza que até meu marido poderia ter passado ali nos últimos dias.
— Me diz só uma coisa. Se não é sobre amor, sobre o que é? —
perguntou, me olhando nos olhos com preocupação.
Tinha um sorriso meigo por trás daquele batom vermelho. Não era uma
prostituta que falava comigo. Era uma mulher preocupada com uma amiga que
ela nem conhecia. Senti pena, imaginando o que a levava àquela vida, como
tantas outras na Inglaterra. Com o aumento da desigualdade social e do
desemprego, aquilo se alastrava como uma praga.
— Vingança — disse olhando nos seus olhos. — Não posso mais ser
humilhada! — completei.
Ela assentiu.
— Prometo que nunca ninguém saberá que estive aqui e, quando
precisar, não importa o que for, me procure. Farei o que for preciso para te
ajudar.
— Combinado. Me diz seu nome.
— Claro. Sou Helena, Duquesa de Misternham.
— Ah, você é a famosa duquesa escondida por George.
A forma como ela disse o nome do meu marido com intimidade me
incomodou. Só não deixei transparecer. Talvez ela até conhecesse seus gostos na
cama e isso me ajudasse.
— Helena, le sexe para os homens é diferente do que é para nós,
mulheres. E vou te explicar todos os detalhes. A primeira coisa que precisa
compreender, ma chérie, é que na cama não tem espaço para vergonha, pudor e
muito menos amor. Não para os homens. Se quer satisfazer seu marido, esqueça
seus sonhos, os poemas e tudo que imaginou e se entregue ao corpo e ao que
sente nele.
Assenti, absorvendo cada palavra do que ela dizia.
— Nunca perca o contato visual. Seduza seu marido com os olhos e, por
fim, com a boca. Use-a em todos os lugares que puder imaginar. Isso inclui todas
as partes do corpo de um homem.
Senti meu rosto combinar perfeitamente com o restante da decoração
daquele lugar. A declaração dela me fez corar terrivelmente. Como isso era
possível? Eu não estava preparada para o que buscava. Tinha sido um engano,
um terrível e grande engano!
Tentei levantar.
Nataly me segurou pelo braço.
— Fique onde está e não se assuste. Nada do que estou te dizendo é ruim
ou vai te ferir. Você só não está acostumada. Helena, sente atração por seu
marido? Quando ele te toca, faz você sentir coisas?
Lembrei-me da primeira noite em que estivemos juntos, de como perdi o
controle, do abismo em que caí sem ao menos saber para onde ia. Pensei em
como desejava retornar para lá, como nunca desejei outra coisa em toda minha
vida, e me odiava por isso. Ansiava por seu toque, por seus beijos, por qualquer
migalha sua e me enganava muitas vezes pensando que era só vingança. Como
era tola! Ia muito além de vingança.
— O seu silêncio já diz tudo, pobre mon couer. Está nas mãos dele na
cama. Não deve. O poder tem que estar nas suas mãos. Você o detém. Tem que
ser a senhora dele e nunca o contrário. Compreende?
— Não acho que consiga ser como você — refleti mais para mim mesma
—, cometi um engano vindo aqui.
— Não. Agora é uma questão de honra te ensinar. Homens são fortes,
vestidos diante da sociedade, mas perdem todo o poder diante de uma mulher
nua. Isso só depende de você, Helena. Olhe pra mim, você o deseja, lembre-se
de usar isso a seu favor. Aproveite para se deleitar desse momento, mas
mantenha o foco na sua vingança. Onde está seu marido agora?
— Com alguma outra mulher.
— Pobre cherri — ela estendeu a mão e acariciou meu rosto —, lembre-
se disso quando o vir e use suas armas. Vou ensinar todas elas a você. Vamos
começar até pela forma como você se alimenta perto dele, no jantar, quando
estão a sós, até o momento em que tira a roupa para ele. Tudo, tudo é uma
questão de estratégia.
E assim, Nataly começou a descrever detalhadamente coisas que eu
nunca imaginei nem em sonhos. Cada palavra era memorizada, cada gesto
imitado, cada atitude minimamente calculada.
Ao entardecer, me despedi de Nataly, considerando aquela mulher que
vivia à margem da sociedade e que talvez nunca mais encontrasse, uma amiga.
De longe avistei a carruagem que me trouxe e, disfarçadamente, fingi que saía da
modista. O cocheiro de nada desconfiou.
O caminho de volta foi cheio de reflexões e, quando coloquei meus pés
no castelo, senti que estava mudada. Tinha saído dali como dama e retornava
como cortesã — ao menos de alma.
CAPÍTULO 14
“Nada pode ser maior infortúnio para um homem que se encantar por uma
mulher. Não digo por sua beleza. Isso o fazemos sempre. O erro reside em
nos apaixonarmos por sua audácia.”
(Anotações de George, Londres, 1801.)
GEORGE
Cheguei em casa tarde da noite. Era proposital. Não estava disposto a
encontrar minha mãe, muito menos Helena.
Exausto, fui direto para o meu quarto. Não pude deixar de notar a
claridade que vinha por baixo da porta do quarto dela. Ainda estava acordada a
esse horário? Por qual motivo?
Senti uma vontade descontrolada de entrar lá sem pedir licença, como me
era direito, e arrancar sua roupa antes que ela se desse conta, e tomá-la ali, de pé,
encostada à parede do quarto, porque não daria tempo de arrastá-la para a cama.
Senti-me um selvagem. O que estava acontecendo comigo?
Fui para o meu quarto e fiz questão de trancar a porta de comunicação.
Ou cometeria uma loucura e não era uma boa hora. Me despi e entrei na banheira
que já estava à minha espera. Aquilo me acalmaria.
Quando deitei na cama, sabia que teria uma longa noite pela frente.
Pela manhã me tranquei no escritório, sem comunicar minha chegada. O
baile seria à noite, então todos já previam o meu regresso. Coloquei todas as
finanças atrasadas em dia, e ao me inteirar dos assuntos da propriedade, descobri
que Helena deixara tudo nas mãos da minha mãe, que gastara mais dinheiro do
que necessário, expulsara dois criados e castigara outros três. Aquilo me irritou
tanto que decidi adiantar minha conversa com minha mulher. Ao que parecia, se
eu dissesse para ela comer, ela faria jejum por um ano. Seu prazer era me
desagradar.
Procurei-a por toda a mansão. Ela não estava em canto nenhum. Seu
novo hobby também deveria ser se esconder de mim. Fui procurá-la nos jardins
e, de longe, pude vê-la olhando para o grande lago florido que, particularmente
nessa época do ano, era encantador pelas ervas daninhas que enfeitavam toda sua
volta. Ela estava maravilhosa em um vestido simples de cambraia na cor rosa-
claro, que deixava sua pele pálida e contrastava com o verde da vegetação. Seus
cabelos estavam soltos, balançando ao vento. Qualquer outra dama estaria
usando-os presos, manteria um xale nos ombros e as luvas nos braços. Não
Helena. Os braços estavam cruzados, provavelmente porque tinha frio.
Ela parecia pensativa, e eu daria metade da minha fortuna para saber
quais eram seus pensamentos.
Caminhei devagar para não a assustar.
— Vejo que cuidou com primor de tudo que deixei nas suas mãos.
Acredito que esteja aqui para analisar o tamanho das minhas terras, para estimar
o quanto valem e depois vendê-las para o primeiro comprador que aparecer,
minha senhora! — ironizei.
Ela se virou, surpresa com a minha chegada. Não sorriu ao me ver.
Afinal, não éramos um casal apaixonado. Eu não teria um abraço caloroso da
minha mulher depois de teoricamente ter ficado dias em Londres atrás de
amantes.
A propriedade ficava a poucos minutos da cidade. E já desejava arrastá-la
para lá, só de me deparar com seu olhar que me encantava.
— Na verdade, estava caçando o melhor lugar para fazer uma cova...
Estou em dúvida ainda. Quer dar alguma sugestão? – brincou, com um sorriso
maligno nos lábios.
Não aguentei. Por mais que tentasse me manter sério, gargalhei.
— E essa cova seria para quem?
— Estava calculando exatamente isso. Precisa ser grande, já que é para
duas pessoas — disse, fazendo menção de que incluía a mim e à minha mãe.
Eu adorava seu humor sarcástico. Mulheres costumavam ser tão sem
graça fora da cama. Helena era excepcional. Desviei os pensamentos, me
focando no que viera fazer ali.
— Não achou que deveria ter se concentrado em cumprir minhas ordens,
na minha ausência?
— Não, eu não achei! — respondeu sem pestanejar.
Precisei de alguns instantes para absorver a resposta. Era petulante
demais para uma pessoa só.
— Creio que me enganei na escolha de esposa; talvez os ares de Paris
façam bem para sua pele... — ameacei. Palavras vagas e sutis não estavam
resolvendo. — Tenho lindas casas de campo por lá. Acredito que posso adiantar
sua partida.
Sua expressão não mudou para assustada; ao contrário, ela abriu um
sorriso maior do que poderia caber naquele rosto delicado.
— Tenho minhas próprias convicções de que, no momento, sou mais útil
para vossa graça em Londres. Enquanto isso, creio que precisa se concentrar em
entender que não se casou com um cavalo ou uma égua, como imagina todos os
dias, e que não vou cumprir suas ordens, como um dos seus criados. Sei que
você é filho único, um garoto mimado que sempre teve tudo e não conheceu
limites, como sua mãe mencionou. Contudo, sou um ser humano e mereço o
mínimo do seu respeito.
Seus olhos faiscavam de ódio, apesar do seu sorriso.
A menção às lembranças das palavras da minha mãe a fez cometer um
erro terrível. Segurei seus braços, querendo calar a sua boca.
— Não se atreva a questionar minha autoridade. Entendeu? Como ousa
falar comigo assim? — gritei.
Imprimi força excessiva ao segurá-la, e ela se assustou. Violência parecia
ser algo que ela conhecia bem. Arrependi-me no mesmo instante, diminuindo a
pressão.
Tinha vontade de fazê-la engolir tudo que dizia. Como estava enganada!
Não conhecia Susan, não sabia do meu passado, de como tinha sido privado de
tudo que mais amei na vida. Ela, sim, fora mimada e ficava ali, fazendo juízo de
forma errada.
Não sabia como lidar com aquela mulher. Qualquer outro homem a
levaria para o quarto e lhe daria uma bela surra. Eu era incapaz de tal atitude.
Não estava em minha índole encostar um dedo em uma mulher. Mas minha
paciência estava por um fio. E não tinha nada que ela gostasse, não tinha
vínculos. Como castigar Helena? Como, Deus?
Ela nunca chorava, nunca se abatia, não conhecia suas fraquezas, não
tinha amigas a quem se apegar, a família ficara para trás. Nada. Era dura feito
uma pedra. Não temia nada, minhas ordens, minha mãe...nada.
De repente, me peguei temendo aquela mulher. Dentre minhas armas,
nenhuma tinha poder sobre ela. Era soberana e ainda controlava meus desejos
como nenhuma outra.
E precisava dela, ali em Londres, por algum tempo.
— Vá para o seu quarto. Está proibida de sair de lá, a não ser para o
baile. Todas as refeições serão servidas ali; não vai pisar nos jardins, nem ao
menos nas escadas. Entendeu?
— Estou de castigo? — perguntou, dando um sorriso debochado.
— Não. Estará ao meu dispor! — respondi com satisfação.
— Como quiser, milorde — disse em uma reverência.
O problema é que era uma falsa reverência. Nem sequer um fio de cabelo
seu se rendia aos meus pés.
Irritado, fiquei olhando-a se afastar. Mais tarde, fui para o meu quarto,
verificando se ela estava no dela. Ao menos, desta vez, ela tinha me obedecido.
Comecei a me arrumar para o baile. Não poderíamos sair tarde, já que
nos últimos tempos o aumento excessivo de cavalos prejudicava o trânsito
próximo a grandes eventos.
Estava ansioso. Isso era estranho. Odiava aqueles eventos. Talvez porque
fosse apresentar Helena e envergonhar minha mãe na mesma noite. Deveria ser
isso. De pé, na sala, olhando para as escadas enquanto a aguardava descer, me
dei conta de que era muito mais que isso. Estava ansioso por vê-la vestida de
gala, como na noite em que a vi pela primeira vez e estava imaginando como
seria tê-la em meus braços para uma valsa. E finalmente despi-la no final da
noite. Esses eram os planos.
Escutei passos e olhei para cima. Nada me preparou para o que vi.
Primeiro, os seus cabelos, divinamente encaracolados e presos em um
coque que os deixavam rebeldes e soltos; o seu vestido que era indecente e
deixava quem quer que a visse, imaginando praticamente tudo que estava por vir.
Seus seios pareciam saltar pelo decote e o espartilho estava tão apertado que eu
duvidava que ela respirasse. E, por fim, ela vestia nada menos do que preto!
Seu rosto se iluminou pelo meu espanto, e o sorriso foi inevitável.
— Não sabia que estava de luto... Será que me passou algum detalhe?
Cheguei a me preocupar. Alguma tia distante? Perdeu alguém que não sei?
— Não perdi ninguém — respondeu sorrindo ainda mais, o que a deixava
com os olhos brilhantes, e que Deus me ajudasse, como ficava linda. — Eu me
casei.
Senti vontade de colocá-la em meus ombros e a arrastar para a cama, tirar
seu vestido e, depois de me aproveitar do seu corpo, fazê-la se vestir como lhe
era devido. Mas ela estava perfeita para os meus planos.
Abri um sorriso cúmplice.
— Está de luto pelo casamento? – indaguei. — E me permite saber o que
perdeu para ficar de luto?
— Não creio que vá querer saber. Perderíamos o baile! — respondeu,
descendo as escadas lentamente, seus olhos fixos nos meus até chegar próxima
ao meu corpo.
— Não creio que esteja disposto a perder esta noite com assuntos fúteis
de sua esposa! — sussurrou perto do meu ouvido.
Senti que nunca mais poderia me mover. As suas palavras tinham
enviado estímulos a todas as partes do meu corpo. Onde ela tinha aprendido
isso? Helena não era essa mulher sedutora que estava na minha frente. Nunca!
Tinham sequestrado a minha inocente Helena e trouxeram outra que acabaria
comigo!
CAPÍTULO 15
“Ter meus sonhos destruídos por aquele que deveria ser o personagem
principal destes, deveria ser a minha destruição. Mas não. Usaria para
salvação, nem que fosse ao menos da minha dignidade.”
(Diário de Helena, Londres, 1801.)
HELENA
Aquele homem era perigoso, e precisei pisar nos seus pés algumas vezes
para que ele controlasse certas liberdades que impunha a mim.
— Por que está fazendo isso? — perguntei, irritada o suficiente quando a
segunda valsa começou.
— O quê? Dançando com você? Ora essa, achei que você gostasse da
minha companhia, já que sugeriu duas danças na sua caderneta e não controlou a
ansiedade, me colocando à frente do seu marido.
Corei. Ele era um excelente dançarino, isso não poderia negar, mas de
nada valia sua companhia irritante, a não ser provocar ciúme em George, que
com um copo de uísque nos observava atentamente.
— Estou dizendo que amigos não mantêm esse tipo de comportamento,
Lorde Vandik. Ou então, posso julgar que meu marido escolhe muito mal os que
mantém.
Ele deu uma risada antes de dizer:
— Acredito que George saiba escolher tão mal os amigos como escolheu
a mulher! — zombou de mim.
Talvez aquele cretino sem escrúpulos, como julguei nos poucos minutos
que estive ao seu lado, pudesse pensar que me afetaria. Se soubesse como estava
enganado.
Encarei aqueles olhos maliciosos, que faiscavam de divertimento e que
deveriam encantar metade da Inglaterra com seu ar pecaminoso, e sorri em
deboche, como ele fazia.
— A diferença é que amigos não o satisfazem na cama — coloquei uma
mão no seu ombro, me aproveitando da dança, e sussurrei ao seu ouvido, já
imaginando George nos observando —, e ele pode trocá-los em qualquer clube
barato de Londres. Enquanto eu sou muito valiosa em outros quesitos.
Senti minha pele ferver pelo comentário indecente, sussurrado ao ouvido
de um estranho. As palavras de Nataly eram para ser usadas somente com meu
marido, porém percebi que todos os homens eram meros fantoches perante uma
mulher, e achei que Pietro merecia ser castigado por sua falta de lealdade para
com meu marido nessa noite.
Não me afastei. Esperei por sua resposta, que demorou alguns instantes
para chegar. Ao que parecia, ele estava surpreso.
— Acho que está indo longe demais. Não tenho intenções de enfrentar
um duelo com George.
Joguei a cabeça para trás e gargalhei. Eu tinha apavorado o pobre
homem, que se mostrava tão perspicaz.
— Covarde, como se mostrou desde o início. Também não tenho
intenções de ir além dessa dança com você, que já está me enjoando. Você me
parece ser um péssimo amigo. Espero que apareça muito pouco em nossa
residência! — completei, deixando-o sozinho no meio da valsa.
Caminhei sendo o centro das atenções daquela sociedade que, no
momento, me desprezava por ser tão escandalosa. Se eles soubessem quão
grande era o meu desprezo por eles, não teriam coragem nem de olhar em meu
rosto. O meu andar soava triunfante a todos e fixei meus olhos em George, que
me encarava furioso.
Mantive meus passos lentos. Até chegar a ele, aquela valsa terminaria e
seria a sua vez. Tinha muito pela frente, mesmo eu desejando ardentemente que
essa noite terminasse em breve. Ela sugava tudo de bom que restava em mim.
Era o quadro dos meus sonhos fracassados e, por mais que representasse a minha
vingança, nunca traria minha felicidade.
Quando parei na frente do meu Lorde, fiz uma pequena reverência e
estendi a mão. Ele a pegou, apertando meus dedos de forma que gemi. Era nossa
vez de dançarmos.
George me conduziu até o centro, seus passos eram firmes e ele mantinha
minha mão entre as suas, apertando-as, sem aliviar. A orquestra tocou as
primeiras notas destoantes de uma valsa. Ele inclinou a cabeça para o lado e me
olhou de uma maneira como se quisesse me arremessar contra a parede. Tinha
ódio e tinha desejo.
Ele me tomou em seus braços e me fez rodopiar, colando meu corpo ao
seu, em um movimento brusco. Não tinha nada de delicado em seus movimentos
como a música pedia.
— Gosta de palavras sussurradas ao ouvido?— disse no meu.
Meu corpo todo se arrepiou, não sabia se pelas palavras, ou pelo contato
com o dele. Para mim, não tinha ninguém ali no salão, nesse momento. Era
como se o mundo tivesse se apagado e restado só nós dois.
— Depende de quem as sussurra... — provoquei-o.
Ele apenas sorriu, mordendo o lábio inferior. Senti vontade de fazer
aquilo em sua boca, porque sentia raiva dele, mas desejava aqueles lábios
também, e seria uma junção dos meus dois desejos.
— Você gosta de brincar com fogo, Helena. Isso pode ser perigoso, já
que eu posso mandar fazer uma fogueira com Londres — me ameaçou.
Se ele imaginou que isso por um instante surtiria efeito em mim, era um
tolo.
— Quando você estiver fazendo sua fogueira em Londres, estarei no
campo, onde pretende me mandar, meu lorde. Até lá, imagino que vá me manter
bem viva, para seus nefastos planos. Torrada, não creio que eu tenha proveito.
Agora... — Fiz uma pausa, debruçando meu queixo no seu ombro. Aquilo me
parecia tão indecente e, no entanto, tudo que pude sentir foi seu perfume. Fechei
os olhos diante da sensação que me trouxe. Sorte que ele não via meu rosto. —
Posso estar um pouco aquecida para esta noite, e isso sim, pode ser do seu
agrado.
Não esperei uma resposta. Aproveitando o ritmo da música, me afastei
em um rodopio. Ele me puxou de volta, mantendo suas mãos em minha cintura,
os olhos fixos aos meus.
— Sou capaz de imaginar inúmeros adjetivos para descrever você... —
afirmou ele — e esta noite só consigo pensar em vários palavrões que gostaria de
dizer se não estivéssemos em um ambiente tão inapropriado. Você é uma
maldita, Helena. Vai se arrepender por usar desse mísero poder que detém
enquanto preciso de você aqui. Em breve, será só um pedaço de carne
descartável e, juro, não terei benevolência com seu futuro.
Lancei-lhe um olhar desafiador.
— Não preciso de sua piedade e muito menos das suas ameaças. Creio
que você já tirou tudo de bom e roubou meus maiores bens. Então, George, vou
usar da minha curta vida ao seu lado para tornar bastante infernal a sua,
insignificante.
Ele balançou a cabeça.
A música parou e esperamos que outra recomeçasse. Ele soltou a minha
mão. Ficamos em silêncio até que a música recomeçou.
Ele me olhou com intensidade e, relutante, pegou minha cintura
novamente. Dessa vez, senti que ele não desejava a dança e, sim, me matar se
isso fosse possível.
Começamos a rodopiar pelo salão. Ao menos na dança eu não parecia um
desastre como em todos as outras áreas da minha vida.
Decidi tentar acalmar meu marido. Afinal, éramos um casal para todos os
efeitos, e eu precisava manter meus planos de engravidar e, a ao que tudo
indicava, a ira e o desprezo que ele parecia sentir nesse momento não me
ajudariam mais tarde, no quarto, onde os planos de vingança da noite
terminavam.
— Espero que sua mãe esteja suficientemente infeliz para que pense em
colocar algumas ervas venenosas no meu chá pela manhã — disse com voz
calma. Eu sabia que fazê-lo pensar na ira da mãe e em como contribuí para isso,
ajudaria a dissipar o furor dirigido a mim.
— Aconselho-a a não ingerir nada que não seja preparado sob sua
supervisão, a partir de agora — concordou comigo. — Nunca a vi tão furiosa.
Aquilo me fez pensar o que levaria um filho a ter tanto ódio da mãe. Eu
tinha meus motivos para querer me vingar e odiar os meus pais e gostaria de
compreender os dele.
George ficou mudo. Seu olhar vagou para longe. Sua mente não estava
mais nesse salão, estava viajando para o desconhecido.
— Já amou muito algo a ponto de sentir que aquilo era parte do seu ser,
da sua existência? — ele me perguntou, me pegando de surpresa.
Neguei com a cabeça. Engoli seco, querendo no fundo lhe dizer que ele
me tirava aquele direito. Seus olhos estavam sombrios e me encaravam. Só que
não era mais ódio que tinha ali dentro, era mágoa.
— Na vida, podemos amar várias pessoas, e elas se tornarem parte do
nosso ser. Quando você perde alguém assim, é como se nunca mais se
encontrasse. Você nunca mais vai ser o mesmo. Minha mãe foi responsável por
me destruir por dentro, me subtraindo quem mais me importava na vida.
Nesse instante, fui tomada pelos ciúmes e desejei por um minuto ser uma
dessas pessoas na sua vida. Então compreendi que nunca seria. George amava
outra mulher, essa que ele dizia que sua mãe tinha tirado dele, e eu não passava
de uma lembrança diária desse amor, porque era o seu objeto de vingança para
sua amada.
Senti-me usada, magoada e ferida. Eu desejava ser uma mulher amada e
nunca achei que meu pedido pudesse ser injusto ou incoerente. Minha vontade
era sair correndo dali e entrar em um cômodo vazio, onde pudesse expor minha
tristeza e gritar até não ter mais voz. Só que tudo que fiz foi lançar um sorriso de
compreensão; afinal, mais do que nunca precisava ir até o fim e destruir aquele
homem.
Ele já tinha se apaixonado e me escolhera para se vingar por não ter o seu
amor. Esqueceu nessa negociação que eu era uma mulher que também queria
amor, que buscava felicidade. Ele esquecera de tudo.
Quando a dança terminou e fomos caminhando para a saída do salão,
minhas mãos tremiam. Comecei a repassar mentalmente as palavras de Nataly e
calcular até onde eu seria capaz de ir para cumprir o meu propósito. Bem lá no
fundo, me questionava se eu teria condições de sair intacta de tudo isso. Mas, em
uma guerra, mesmo o vencedor precisa contabilizar suas perdas e contar seus
mortos e feridos. Ninguém sai ileso. Eu precisava vencer; depois contabilizaria
minhas perdas, me lembrando também que nunca houve espaço para o coração
em uma guerra. Esse era o princípio fundamental de qualquer batalha.
CAPÍTULO 18
“Um homem deve repudiar a violência. Isso nunca tornou o seu humano
valente, só o faz covarde. Eu repudio toda forma de violência, seja ela
moral, física ou psicológica.”
(Anotações de George. Paris, 1799.)
GEORGE
Informei-me com o cocheiro, que anunciou que minha mãe já havia
partido fazia algum tempo. Provavelmente não aguentou tanto horror para suas
vistas que sonhavam com uma sociedade recebendo seu herdeiro em cerimônias
gloriosas, juntamente com sua duquesa perfeita.
No dia seguinte, eu lidaria com seus ataques de histeria. Mas essa noite
me concentraria em minha mulher, que a cada minuto me deixava mais confuso,
me fazendo desejá-la e odiá-la na mesma intensidade.
Entramos na carruagem. Ela se sentou no lado oposto ao meu. Isto era
bom, porque precisava me recuperar da torrente de sentimentos que me tomavam
nesse momento. Estava pensando se seria uma boa ideia tê-la nessa noite. Não
tinha controle sobre meus atos e tinha medo de duas coisas: machucá-la — o que
nunca me perdoaria se acontecesse —, ou então cometer o mesmo erro da
primeira noite em que a tomara, e isso estragaria tudo.
Quando a carruagem começou a sacolejar e o silêncio me incomodou
demais, decidi perguntar aquilo que me afligia por dias:
— Suas regras, elas já vieram?
Estava escuro ali, mas pude perceber Helena me encarando com fúria.
Aquilo a deixava com uma expressão que eu já conhecia muito bem. Franzia de
tal forma a testa que as sobrancelhas se sobrepunham e os olhos quase se
fechavam. A boca se abria como se ela quisesse despejar o mundo em palavras
em cima de alguém, o que não tardava a acontecer. Sua postura, que nunca era
ereta, nesse instante se tornava, como se ela ficasse pronta para enfrentar uma
guerra e os punhos se fechavam por baixo da luva, prontos para atacar. E tudo
isso, ao invés de a deixar detestável, a tornava incrivelmente desejável, a ponto
de eu agradecer por estarmos no escuro ou ficaria possivelmente muito
envergonhado.
— Não deveria responder a esta pergunta. Poderia deixá-lo na ânsia por
respostas e olhando para minha barriga por meses, imaginando se cresceria ou
não. Eu até poderia comer em excesso para ela crescer nos próximos dias —
gargalhou com a ideia —, mas não creio que esteja disposta a tal idiotice para
descer ao seu nível tão baixo, George. Sim, minhas regras desceram, para seu
alívio. Não tenho um filho seu sendo gerado em meu ventre.
Senti o ar saindo com alívio de meus pulmões com essas palavras. Se ela
soubesse o que isso significava...
Nesse momento senti minha raiva por ela crescer, porque brincava com
meus sentimentos de tal forma, sem ter ideia do que me levava a repudiar um
filho. Era egoísta e mesquinha, como todos criados nessa sociedade imunda.
Decidi que ela pagaria por todos os seus pecados nessa noite. Eu a
humilharia. Era isso que ela merecia. Eu a faria descer do pedestal em que se
colocava tão soberana. De repente, tudo clareou em meus pensamentos. Tinha,
sim, algo que eu poderia tirar de Helena e sorri, como o grande vencedor de uma
noite de rodada de cartas. Ela tinha algo que estava acima de tudo, acima da
família, dos amigos e até do seu próprio corpo: seu orgulho. Em êxtase, comecei
a bater os pés no chão. Começaria nessa noite e estenderia por dias, até que
lágrimas nunca derramadas brotassem daqueles olhos e ela implorasse uma
trégua.
A carruagem parou. Não a ajudei a descer dessa vez. Não estava para
cavalheirismo e, sim, para vingança.
Quando abri a porta da mansão, olhei para o seu queixo, que ela
mantinha erguido. Sinal do seu orgulho. Na manhã seguinte, aquilo mudaria.
— Suba para o seu quarto! — ordenei. As minhas palavras já eram mais
duras. O tom tinha mudado.
Ela parou e me olhou com estranheza.
— O quê? — perguntou.
— Suba para o seu quarto, dispa sua roupa e fique só com as de baixo.
Não se deite. Me espere em pé ao lado da cama. Não desobedeça em nada.
Vagarosamente, retirei o meu cinto. Era uma ameaça silenciosa, que
obviamente não pretendia cumprir, mas aquela mulher não conhecia ameaças por
palavras. Precisava ser mais rude.
Seus olhos pareciam saltar para fora. Abri um sorriso de satisfação — a
noite, por fim, começava a ficar perfeita.
— Vamos. Não tenho tempo para perder.
Como sempre, ela fez uma falsa reverência, com deboche. Não sei como
conseguia esse feito, mas ela o fazia. Ela se abaixava muito pouco, não o
suficiente, mantinha um desdém no olhar e aquilo me irritava.
Quando ela se virou para subir a escada, segurei seus braços.
— Faça isso direito. Ou ficaremos a noite toda tendo aulas de etiqueta.
— Você só pode estar de brincadeira! — ela sorriu com desgosto.
— Brincamos até esta noite, minha lady. Agora vamos começar a viver
exatamente como marido e mulher na Inglaterra. Vamos! Já!
Ela me encarou com fúria, relutante.
Ergui o cinto que estava na minha mão, para que ficasse na altura dos
olhos dela, lembrando quem tinha o poder ali. Tentei não fraquejar com o mal-
estar que isso me causava, porque o menor sinal de violência fazia aquela mulher
ceder e me lembrei das marcas espalhadas em seu corpo. Isso me fazia sentir
sujo.
Com uma delicadeza que ela não tinha, se abaixou e fez uma nova
reverência. Não estava perfeita, porém muito melhor que a anterior.
— Satisfeito? — perguntou em fúria.
— Está melhor. Vamos treinar todos os dias – garanti. — Agora suba e
faça o que ordenei.
Fiquei olhando Helena subir, degrau por degrau, com a cabeça erguida,
como um bom soldado indo para uma guerra. Quando ela sumiu de vista, peguei
o cinto e fui para os meus aposentos, a fim de me preparar para a minha batalha.
Afinal, teria que vencer as minhas guerras pessoais também, porque só de vê-la
nua sabia que perdia o controle e não poderia.
Certa vez, Pietro soltou em uma briga comigo — porque bons e velhos
amigos sempre devem dizer coisas verdadeiras nas horas das brigas, mesmo que
isso machuque — que eu deveria tomar cuidado para não acordar um dia e, ao
olhar meu reflexo, enxergar o meu pai ali. Porque a raiva pode ser tanta que
pensamos obsessivamente na pessoa odiada, a ponto de nos tornamos ela
própria. Ela se incute em nós sem que percebamos e, de repente, somos um só.
Ali sentado, pensando no que faria com Helena, lembrei de como meu pai
tratava minha mãe e me senti igual a ele — um velho nojento e asqueroso — e
me senti incapaz de continuar. Então precisei me lembrar de Susan, do seu
sorriso doce e em como aquilo se apagou no dia em que ela foi levada arrastada
pelos cabelos para fora de casa, chorando, aos gritos.
Lembrei dos aposentos onde ela ficava enclausurada como um bandido,
lembrei de tudo. Tinha que continuar. Não teria lugar para mais um covarde
naquela família.
Dei o tempo que achei necessário para que ela se despisse, e então abri a
porta de comunicação dos quartos, e lá estava ela. As velas deixavam seu corpo
iluminado não o suficiente para mostrar tudo como o dia o faria, mas o
necessário para desvendar sua beleza. E como era linda....não uma feiticeira. Era
uma deusa.
A passos lentos me aproximei da cama, onde ela me aguardava ao lado,
em pé, e coloquei o cinto em cima da cama. Era a prova de que eu não estava
brincando.
Procurei por resquícios de medo, pavor, e tudo o que encontrei em seus
olhos foi desprezo.
Precisava tirar alguma vantagem enquanto ela ainda estava coberta com
algumas peças de roupa. Quando estivesse completamente nua, receava que meu
corpo fosse o traidor.
— Me dispa! — ordenei. Essa noite não teria espaço para palavras
delicadas.
— Já enfrentei a fúria do meu pai por tantas vezes que perdi a conta. Não
temo por marcas no corpo e sei como ninguém apanhar calada — ela disse
olhando nos meus olhos. — O que faz você pensar que vou te obedecer? — me
desafiou.
— Porque não tenho limites! — ameacei-a mais uma vez.
Definitivamente, ela não temia nada. Poderia estar de frente a uma arma
que não mostraria medo.
Surpreendendo-me, seus dedos começaram a desabotoar os botões da
minha camisa, sem tirar as peças que estavam por cima e muito menos a gravata.
— Covarde, como todos os outros — ela sussurrou com desdém.
Quando uma pequena abertura surgiu, seus dedos encontraram passagem
até minha pele, que se arrepiou pelo toque das mãos quentes. Como um fraco e
tolo, não resisti e fechei olhos, porque o seu toque era maravilhoso.
— Vou te despir não porque está ordenando. Porque quero ver você se
render esta noite! — sussurrou novamente, desta vez perto do meu ouvido,
prensando seu corpo contra o meu.
Seus dedos agora não tremiam como antes e, com proeza, ela tirou a
parte de cima das minhas roupas, deixando as mãos percorrer meu corpo de
forma sensual. Se eu mesmo não fosse o primeiro homem que a tivesse levado
para a cama, apostaria muito dinheiro garantindo que essa mulher era experiente
e sabia muito bem o que fazia.
Suas mãos desceram perigosamente para as minhas calças, que ela
desabotoou, me tirando o resto do fôlego que ainda restava.
Então parou, se afastando e começou a tirar a própria roupa.
Tentei desviar os olhos e recobrar a consciência, buscando no fundo da
memória o que estava fazendo ali, os meus planos, mas estes já tinham virado
fumaça. Ela me hipnotizava com o olhar e um sorriso perverso.
As poucas roupas de baixo que ela mantinha viraram um montinho no
chão e lá estava ela, a minha deusa da luz — porque, sim, ela iluminava o quarto
mesmo estando no escuro. Helena caminhou de volta até mim e colou seu corpo
nu no meu, que ainda mantinha as calças. Seus seios nus entraram em contato
com o meu peito e tudo se perdeu.
Segurei sua nuca, obrigando-a a olhar mais uma vez para mim, para me
lembrar que não se brincava com essa mulher, e então invadi sua boca com os
lábios famintos, sem conseguir me controlar, minhas mãos passeando por seus
seios e escutando ela gemer nos meus braços.
Passei os dentes por seu lábio inferior, mordendo aquela boca que
poderia ser o meu pecado final. Isso fez com que ela empurrasse seu corpo mais
forte contra o meu e agarrasse meus cabelos.
Comecei a arrastá-la para a cama. Ela me deteve.
— Preciso terminar de tirar suas roupas, meu Lorde! — ela sussurrou,
levando sua mão até a minha braguilha, e descobri nesse instante que já tinha
chegado na lua.
— Sim, sim, por favor... — foi tudo o que consegui dizer.
— Isto, implore como um bom menino. Estou tirando suas roupas porque
está implorando. Compreenda que não nasceu no mundo homem para me dar
ordens.
Eu deveria discutir, fazer jus àquele cinto que mantinha em cima da
cama, mas me detive. Eu pensaria nisso mais tarde, porque no momento me
sentia incapaz até de respirar, quanto mais de pensar.
E foi assim que a joguei na cama, sabendo que novamente estava indo
com o inimigo, que já tinha perdido outra batalha e essa mulher seria o meu fim
— sim, ela sempre seria.
CAPÍTULO 19
DAMAS E CAVALHEIROS SENDO LEILOADOS EM UM SALÃO DE BAILE. M AS, DEIXANDO AS CRÍTICAS À NOSSA SOCIEDADE PARA A PRÓXIMA EDIÇÃO,
GOSTARÍAMOS DE FALAR DAQUELA QUE TORNOU UMA NOITE MEMORÁVEL EM UM P RÓLOGO, SE LEMBRARMOS DAS GRANDES TRAGÉDIAS GREGAS EM QUE
A PRIMEIRA PARTE DA TRAGÉDIA ERA EXPOSTA. A NTES QUE ME PERGUNTEM — NÃO CREIO QUE SEJA NECESSÁRIO, JÁ QUE SEU NOME RONDA TODAS AS
BOCAS PELA MANHÃ —, ESTAMOS FALANDO DA NOVA D UQUESA DE M ISTENHAM, A GRANDE H ELENA, OU PODERÍAMOS CHAMÁ-LA DE H ELENA DE
T ROIA? J Á QUE ESTAMOS FALANDO DOS NOSSOS ANTEPASSADOS GREGOS, ESSA CARINHOSA HOMENAGEM PODERIA SER POR SUA BELEZA OU POR
COMEÇAR UMA GUERRA? D EIXO PARA VOSSOS SENHORES A RESPOSTA. M AS ELA SE VESTIU DE NEGRO SEM SE ENLUTAR; DANÇOU COM O MARIDO E,
ESCANDALOSAMENTE, DUAS VEZES COM O MELHOR AMIGO DESTE; PROVOCOU ALGUNS INFORTÚNIOS NO JANTAR. V AMOS TORCER PARA QUE NADA ALÉM
DISSO OCORRA, OU TEREMOS UM INCÊNDIO NOS PRÓXIMOS DEBUTS DA TEMPORADA. S Ó ESPERAMOS QUE O C ONDE DE M ISTERNHAM, TÃO FAMOSO
POR SEUS DUELOS EM TEMPOS PASSADOS, NÃO TENHA QUE DUELAR PELA PRÓPRIA MULHER, E QUE H ELENA NÃO RESOLVA ESCREVER O EPÍLOGO DE TODA
D
ESSA HISTÓRIA, PORQUE, AÍ SIM, EUS NOS LIVRE DESSE GRAND FINALE”.
“Nunca se pode desejar mais que sua própria sanidade. Isso serve para
dinheiro, apostas, bebidas, principalmente mulheres. O desejo é uma arma
mortífera. Ele corrói todas as suas entranhas e, sem que você perceba, está
viciado em algo que o faz esquecer até os seus princípios.”
(Anotações de George, Paris, 1800.)
GEORGE
— Não tenho clima para tal ocasião, Vandik, me desculpe.
— Entendo, George, mas ficar enfurnado neste quarto, bêbado, fumando
ou alternando em vigílias de sono, não creio que vá trazer sua irmã de volta. Ao
menos me acompanhe até o clube e me ajude a encontrar o que preciso. Se não
ganhar uns trocados esta noite, amanhã não terei nem calças para vestir.
Deu um olhar de súplica. Era um grande filho da mãe.
— Já escolheu sua noiva?
— Sabe muito bem que não. Quanto maior o dote, menor o cérebro. Meu
Deus — ele abriu os braços, inconformado —, o que aconteceu com as mulheres
da Inglaterra? Só sabem falar de cabelo, roupas e filhos. Não as suporto.
Balancei a cabeça e, mesmo sem querer, minha mente caminhou para ela,
minha feiticeira que estava em casa. Diferente de todas as outras, ela pensava em
tudo, menos em futilidades. Em meio à dor, abri um sorriso contido.
— Você está rindo da minha desgraça, George? — Vandik disse sorrindo.
— Que bom. É disso que precisa. Se ao menos você quisesse ter filhos, poderia
ter uma herdeira. Eu esperaria. Você poderia oferecer um dote generoso e
resolveria meus problemas, meu amigo.
— Sorte a minha que não terei filhos. Você será o pior marido da
Inglaterra, Pietro. Lembre-se de procurar uma propriedade que tenha muitas
janelas, para morar com sua esposa. Vai precisar delas para fazer escapar suas
amantes.
Ele gargalhou.
— Sabe muito bem que não preciso esconder ninguém. Elas dividirão a
cama com minha esposa. — Seus olhos piscaram com perversidade.
Balancei novamente a cabeça. Ele não tinha cura.
Resolvi levantar e me arrumar. Teria que ceder e ir com ele até a Spret
House ou ele não me daria sossego essa noite. Isso seria bom até para colocar
algumas coisas em ordem na minha mente e poder voltar para casa.
Em uma hora estávamos em frente à casa mais famosa e perversa de
Londres. As noites ali nunca eram tranquilas, mas as sextas eram
excessivamente agitadas. Todas as prostitutas da casa faziam uma encenação e
eram leiloadas. Os maiores títulos londrinos, os principais banqueiros e os
homens mais ricos se reuniam ali para mostrar seu poder e disputar as mulheres
mais belas. Corriam rumores de que, nessas noites, saíam carruagens de dinheiro
daquele estabelecimento pelos fundos. Ninguém poupava esforços. Não era só
uma questão de sexo. Era uma questão de poder.
Eu mesmo já cheguei a pagar uma fortuna por uma delas certa vez. E não
foi porque a desejava. Simplesmente porque me colocava em um duelo com um
velho inimigo e não poderia perder para ele. Sempre era uma questão de honra.
Outros prostíbulos tentavam imitar tal feito, entretanto, a Spret House
consolidara a fama e os homens se matavam por um lugar na primeira fila, nas
noites de sexta.
— Pedi que nos reservassem cadeiras na primeira fila — Pietro me
alertou, apontando para os dois únicos assentos livres na fileira abarrotada de
homens elegantes e barulhentos.
O local não era muito grande e não comportava tantos cavalheiros. Creio
que, quando foi inaugurado, não se tinha ideia da dimensão que aquilo teria. No
canto direito, um grande bar era servido por algumas mulheres, todas vestidas
com saias espalhafatosas e corseletes que mal continham seus peitos saltando
para fora. Suas maquiagens exageradas e suas posturas escandalosas entretinham
os clientes, que já se embebedavam no bar enquanto aguardavam o grande
espetáculo da noite que daria início ao leilão.
Abrimos com grande custo espaço entre a multidão de homens e
ocupamos os nossos lugares. Pierro estava animado. Já eu não compartilhava do
seu ânimo. Estava ali por mera companhia. Não tinha interesse algum em levar
qualquer mulher para cama; talvez a única que desejasse me aconchegar nos
braços fosse Helena, porque ia além de algo carnal. Ela traria alívio para algo do
meu coração que estava sangrando no momento. Senti medo por meu
pensamento.
— Dizem que este lugar é regido por Dom Carlos, um senhor calvo e de
respeito entre os homens de negócio de Londres, porém é só uma fachada. Ele
trabalha, gerencia todo o negócio e arrecada o dinheiro para uma dama que é a
verdadeira dona de toda a fortuna que mantém outro prostíbulo de fachada. Ela é
conhecida como a deusa do mercúrio por seus cabelos cor de fogo ou a deusa
Afrodite, a deusa do amor — Pietro começou a divagar. Agradeci por me tirar
dos pensamentos que me levavam à Helena. — E mais! Não são só os cabelos.
Dizem que aquele que é tocado por ela, sua pele queima de tanto desejo.
Gargalhou, jogando a cabeça para trás. Fez sinal para que uma das
mulheres lhe servisse uma bebida.
— Lendas que rondam todos esses lugares e fazem com que estejam
sempre lotados, como esta noite! — deduzi.
— Que seja. Não creio que haja uma dama que tenha esse poder sobre
mim, realmente. Acredita nisso? Que uma mulher possa te desmanchar da
cabeça aos pés com um simples toque? — perguntou.
De novo, sua imagem surgiu, nua, as mãos me tocando, as palavras
desafiadoras, o olhar penetrante, como se nada e nem ninguém no mundo
pudesse afetá-la. Ah, como era impossível e como era linda.
— Não. Isso é para mulheres, covardes e romances. Aos homens, cabem
apenas as peças teatrais, durante as quais somos torturados em dois ou três atos a
assistir tais devaneios desses artistas da modernidade.
Pietro pegou a bebida que a dama lhe trouxe e enfiou o dinheiro no meio
dos seus peitos.
— Está coberto de razão, George. Por isso, não faço romantismo com
casamentos. É um contrato e um bom negócio. Nada mais. Falando nisso, não
posso tardar em encontrar meu bom contrato. As coisas estão se apertando.
Olhei para ele com preocupação.
— E o que faz aqui esta noite, sentado na primeira fila, pronto para dar
um lance em um dos leilões mais caros da história? — perguntei intrigado.
— Me divertindo! — respondeu piscando o olho e parecendo óbvio.
— O dinheiro, Vandik! De onde vai vir? Do céu? — exclamei.
— Minha loucura não chegou a ponto de acreditar em milagres. O
dinheiro virá de uma aposta que ganhei ontem.
— E não acha sensato utilizar o dinheiro para pagar algum dos seus
credores ou alguma penhora?
— Isso seria como tentar adoçar a água do mar — disse gargalhando. —
Então, por que não aproveitar a noite?
Este era Pietro, um inconsequente. Invejei-o. Talvez se tivesse um por
cento dessa coragem e jogasse tudo para as costas, não carregasse esse fardo
que, no momento, me entortava a coluna.
O pequeno palco se iluminou. O show começaria. Meu estômago se
embrulhou. Eu queria vivenciar o luto por minha irmã e não estar nesse lugar.
Não importava se fizesse cinco, dez ou quanto anos que ela estivesse morta; meu
desejo era poder ao menos estar no seu túmulo nesse momento e levar flores.
Almejei ao menos um abraço para poder chorar, e esse não era o do meu
único amigo. Pietro, do seu jeito torto, estava tentando me consolar da única
forma que conhecia, me levando para os braços de mulheres. Ele tentava aliviar
a minha dor como fazia com a sua todos os dias: por meio do sexo. E eu sabia
tão bem quanto ele que isso era passageiro, momentâneo, e quando o gozo do
momento terminava, restava um vazio ainda maior, que tentava compensar com
jogos e bebidas. Um abismo em que ele se afundava cada vez mais e mais.
Não tinha fim para aquela dor e, pela primeira vez, em muitos anos da
nossa amizade, eu compreendi o seu sofrimento. Sempre tive a esperança de
encontrar Susan, enquanto Pietro não alimentava nada. Não tinha esperança, só o
vazio, a dor da perda. O vazio que eu sentia agora.
Olhei de relance para ele, que batia palmas quando as luzes da plateia se
apagaram e apenas o palco se iluminou, abrindo as cortinas. Mesmo na
semipenumbra, notei que seus olhos não condiziam com suas palmas eufóricas.
Havia dor ali e ninguém via. Me enxerguei nele. Essa seria a minha existência.
Sem amor, miserável.
Meus olhos arderam pelas lágrimas contidas. Jurei que faria dos últimos
dias da vida da minha mãe um inferno.
Odiei minha existência. Odiei Helena por me fazer almejar sua
companhia nesse momento e me fazer ter alucinações a ponto de vê-la no palco,
vestida como as outras prostitutas, e mesmo nunca se igualando a tal, porque sua
classe e beleza eram inigualáveis. Uma das damas de costas, vestida de um
vinho que lembrava pecado, me fazia jurar que era ela.
Balancei a cabeça lamentando tal pensamento. Parecia que estava sob
efeito de ópio. Todas as mulheres se intercalavam, uma de frente e uma de
costas, para os homens. Esse era o suspense da noite. A que me chamava a
atenção tinha um vestido que deixava suas costas muito nuas e um colar de
pedras negras adornava seu pescoço. Os cabelos estavam presos em um coque
alto, e ela mantinha com classe um xale na cintura preso aos braços, como se
estivesse em um baile e não em um leilão. Alguns cachos se soltavam do coque e
lembrei do cheiro dos cabelos da minha mulher. Algo misturado com amoras do
campo e lavanda. Era magnífico.
Nesse instante, como em tantos outros, soube que estava perdido.
Decidido, resolvi que estava na hora de levar outra mulher para cama. Essa era a
resposta para minha obsessão por Helena. Se tinha outra mulher que me
chamava a atenção, esse era o momento oportuno para me afogar em um mar
que não tivesse o seu sabor e seu cheiro. Estava disposto a gastar até a última
libra que tinha no bolso para ter aquela mulher nos meus braços essa noite.
CAPÍTULO 23
“Sempre tive a sensação de que não tinha valor para minha família.
Sensação não, certeza. Não tem dor maior que se sentir um objeto, e sem
valor algum. Mas os sonhos me traziam a certeza maior de que o futuro me
agraciaria com alguém que me veria como um tesouro.”
(Diário de Helena, Londres, 1799.)
HELENA
Nataly sabia o que fazia no seu meio. Já eu, não tive muito tempo para
pensar. Ela tinha contatos e deu ordens até na Spret House e, num piscar de
olhos, eu estava em cima de um palco, vestida como uma prostituta pronta para
ser leiloada.
Meu coração batia freneticamente e achei que sairia pela boca a qualquer
instante. Tinha me colocado em perigo. Talvez realmente merecesse uma surra
essa noite.
De costas, não podia ver George ou qualquer outro homem.
Ali, exposta, começava a conhecer o verdadeiro pecado escondido da
sociedade londrina, oculto por camadas e camadas de vestidos e ternos
impecáveis nos bailes. Os cheiros dos charutos, bebidas e perfumes baratos, os
risos escandalosos, as palavras de baixo calão. Era outro mundo. Este lado do rio
Tâmisa deixava o lado oeste de Londres parecendo outro país.
— Comecemos a diversão, queridos! — uma mulher anunciou,
arrancando mais salvas de palmas. — Preciso de silêncio, silencio, vamos lá, sei
que estão com as calças arriadas — gargalhou.
Tudo era escancarado. Nada contido.
— Começaremos com Caroline.
— Vinte libras — alguém falou.
— Trinta — outro cobriu a oferta.
— Alguém tem mais a oferecer? Ninguém? Isso, senhores, Caroline
vendida esta noite a trinta libras. Pode ir, querida.
Mesmo de costas, pude ver a movimentação. A mulher saiu do palco,
sendo acompanhada do seu comprador.
— Nossa próxima lady está de costas, meus amados, e como sabem,
nossas melhores ofertas ficam nesse patamar. Então, este produto está em um
lance mínimo de cinquenta libras. Lady Merlin está ansiosa, segundo me
confessou, para executar uma dança e vai fazer uma pequena amostra, não é,
querida?
Ela começou a rebolar no palco, e os gritos e palmas fizeram meu
estômago dar um nó. Aquilo ficava pior a cada instante.
— Se contenham, se contenham — a mulher que conduzia o leilão pediu.
— Quem pode dar mais que cinquenta libras para ver essa mesma dança, mas
obviamente com Merlin totalmente nua?
— Eu dou 100! — alguém gritou.
— 150! — outro rebateu.
— Vendida por 150.
Senti que minhas mãos suavam. Teria mais uma mulher e eu seria a
próxima. Fiquei com receio de que George leiloasse outra antes e eu ficaria à
mercê do destino. Porém, Nataly estava ali de prontidão para me socorrer e disse
que interviria no que fosse preciso.
A outra garota não pareceu tão interessante e foi leiloada por 20 libras.
A cena era tão perversa e suja. Mulheres sendo leiloadas como produtos,
como quadros. Chegara a minha vez.
— Hoje temos uma dama que deve interessar a todos os homens desse
salão. Não divulgaremos seu nome. Isso vai instigá-los nos lances. Os
cavalheiros não viram seu rosto, mas devo garantir que nunca a vi neste lugar e
nem beleza comparável.
— Eu dou 500 libras! — escutei a voz inconfundível do meu marido, que
desde a primeira vez que ouvi se gravou na minha memória.
Meu coração se encheu de dor. Ele não sabia que era eu, embora eu
soubesse o que ele fazia nesse lugar, e ter a prova tão concreta de que ele me
enganava e tão de perto me feria por dentro. As mulheres deveriam aceitar que
seus maridos dormissem com quem bem entendessem e depois sujassem suas
camas, suas memórias e seu casamento, mas não eu! Meu coração sempre
sonhou com um homem que me amaria e seria só meu.
Ergui o rosto, não me deixando abater. Esse não era o intuito da noite. E,
sim, humilhá-lo. Era o que o faria.
— 750 libras! — Alguém cobriu a oferta.
Um murmúrio se formou entre os homens. Considerei que o valor era
alto demais até para um leilão de mulheres.
— Ora, ora, rapazes, mas nem viram o rosto da donzela e já estão quase
duelando por ela. Então, deixe-me apresentá-la a vocês e talvez dobraremos este
valor.
Respirei fundo e senti a mão da mulher sobre meu ombro enquanto
delicadamente ela me virava para o público.
Palmas, gritos e palavras de baixo calão. Mas nada disso importou. Meus
olhos se fixaram nos de George que, no mesmo instante, fizeram o
reconhecimento dos meus. E nunca vi na vida tanto ódio. Era como se
faiscassem fogo de dentro.
— 950 libras! — um senhor gritou, cobrindo a última oferta.
Meu marido se agarrou com tanta força à poltrona em que estava
sentado, fazendo menção de se levantar. Senti minhas pernas tremerem, com
medo de que ele pudesse ir até o palco e me arrastar dali.
— 1200 libras! — ele por fim disse, me fazendo respirar novamente. Se
ele estava fazendo a oferta, não seria capaz de cometer tal loucura.
— Vejo que a donzela vale uma propriedade! — a mulher que conduzia o
leilão disse, soltando uma gargalhada.
— 1500 libras! — escutei alguém falando. Não acreditei ser possível dar
tanto dinheiro por uma mulher.
— 5000 mil libras! — George disse, dessa vez provocando um silêncio
pasmado em todos.
Ninguém cobriria a aposta.
— Vendida — foi a palavra final que escutei.
E assim fui vendida mais uma vez. Primeiro por meu pai e, agora, no
leilão. Na Inglaterra todas as mulheres tinham um preço e não importava se esse
era 20 libras, cinco mil ou nenhum guinéu. Os homens podiam comprá-las
porque estavam acima delas, por alguma razão que eu não compreendia. Com
pesar, pensei que talvez em algum século, no futuro, as coisas pudessem ser
diferentes. Meu corpo poderia se vender, mas meu coração nunca se curvaria a
isso.
George se levantou e subiu ao palco, pegando com força excessiva sua
propriedade. Gemi quando agarrou meus braços e me arrastou escada abaixo. No
entanto, ninguém se importou, porque às prostitutas esse tipo de comportamento
lhes era digno.
Conforme fomos passando entre seus conhecidos e alguns amigos, pude
enxergar a surpresa quando parte reconheceu na prostituta a duquesa, e então
sorri. Estava vingada essa noite. Mas como em todas as outras, isso não trazia
alívio para minha dor, não trazia paz, porque não devolvia os meus sonhos e não
recuperava nada do que eu tinha perdido.
Quando chegamos à carruagem, meu marido me jogou para dentro, como
se faz com um objeto descartável, e se sentou na minha frente. Achei que levaria
uma surra. Tudo o que obtive foi um olhar de desprezo, que doeu muito mais.
Reparei que ele tinha a aparência cansada, triste, e cheguei a me
perguntar se tinha agido corretamente. O percurso foi silencioso e pareceu muito
mais longo.
Já em casa, ele pegou novamente nos meus braços e continuou me
arrastando até para dentro do seu quarto dessa vez. Nunca tinha estado ali. Temi
por isso.
Não disse nada. Não tinha do que me defender. Tinha feito tudo para
deixá-lo irado. Ele me soltou. Passei os dedos pelos meus braços, tentando
aliviar a dor causada pela pressão dos seus dedos. Dando-me as costas, ele ficou
de frente para a janela, passando as mãos freneticamente pelos cabelos.
— Me dê um único motivo para eu não surrá-la esta noite, Helena. Só
um. Estou implorando. — Ele se virou, me encarando. Tinha súplica nos seus
olhos, além do ódio. — Não quero odiar a você e a mim pela manhã. E é isso
que vai acontecer. Então, estou te pedindo. Me dê um único motivo. Não me
insulte com palavras. Estou a ponto de te matar se relar em você hoje.
Apontou seus dedos trêmulos para mim. Só então percebi que também
tremia e que também estava com medo. Só de pensar em levar outra surra, meu
corpo já convulsionava de imaginar a dor.
Poderia dizer que o odiava, que queria vingança por ter destruído meus
sonhos, que era para ser o escândalo que ele me pedira, tinha dezenas de motivos
para lhe dizer, mas queria um que fosse plausível para aplacar sua ira. Então falei
o que mais me doía e expus — pela primeira vez desde nosso casamento e em
toda minha vida — o meu coração, porque por mais que fosse sonhadora, a
Helena que as pessoas conheciam era sempre fria e nunca baixava a guarda.
— Porque estava ferida, magoada. Você nem saiu da lua de mel e me
deixa para se deitar com outras prostitutas. Fui lhe servir de uma, para que
sentisse o quão humilhada me sinto, o quão ferida fico quando se deita comigo e,
na manhã seguinte, sai sem olhar para trás, ou quando diz, olhando nos meus
olhos, que vai se deitar com outra.
Ele assentiu, franzindo a testa.
— Alguma vez pensou nas consequências dos seus atos? O que acha que
aqueles homens vão pensar de mim quando me virem da próxima vez?
— Alguma vez pensou no que eles pensam de mim quando nos veem
juntos nos bailes? Alguma vez imaginou como têm piedade de mim ou pensam
que sou trouxa? Não queria um escândalo?
— Sou homem, Helena. Um duque. As posições são diferentes. Queria
um escândalo, não que me humilhasse como homem.
Eu ri com amargura. Ele enrijeceu ainda mais.
— E o que o faz diferente? Calças, ou ausência de coração?
Ele fechou os olhos diante da minha pergunta.
— Não sabe, não é? E sabe por que não consegue responder a esta
pergunta? Porque nunca soube o que é sentir dor na vida. Só sabe mandar e ter
tudo o que deseja. Ser servido, ter tudo ao seu dispor, ser o duque deus e ter
TUDO! — disse com voz alterada. Estava perdendo o controle novamente. Não
era justo. Nada era justo. — Me tirou tudo e quer o quê? Me bater agora? Então
vamos lá, faça mais essa vontade. Estou ao seu dispor.
Fiz uma reverência, como ele tinha me ensinado, e esperei por sua ira.
Desta vez sabia que não escaparia. E talvez meu corpo estivesse pedindo por
isso, por uma surra e, por fim, a escuridão para esquecer da dor que me
consumia neste momento.
E então, tudo o que escutei foi um soluço, tão profundo, tão cheio de dor,
que senti meu coração se partir ao meio.
Fiquei olhando-o se afastar, sentar na beirada da cama, colocar a cabeça
entre as mãos e chorar, feito uma criança. Não soube o que fazer. Eu sabia que
tinha errado, mas Deus, aquilo não era sobre mim. Não poderia ser.
Eu soube nesse instante que ele sabia exatamente o que era sentir dor.
Soube também que a dor dele entrava em meu coração e o dividia em centenas
de pedaços; descobri que era muito maior a tristeza de vê-lo sofrer do que a
minha própria. Percebi que daria qualquer coisa para aliviar o que quer que
estivesse machucando George agora. Uma lágrima que nunca tinha rolado por
meu rosto caiu, e eu soube nesse dia que o amava.
Deveria ter algo extremamente errado comigo.
CAPÍTULO 24
“Pelo restante dos meus dias, por todas as feridas cicatrizadas do meu corpo
e pelas da minha alma, ainda abertas, eu precisava de amor, eu o teria. Isso
era uma promessa a mim mesma.”
(Diário de Helena, Londres, 1801.)
HELENA
O sol entrando pala janelas me fez acordar. Pensei estar sonhando quando
olhei para George, que ainda dormia profundamente, com as pernas entrelaçadas
entre as minhas e os braços me apertando pela cintura.
Lembranças da noite anterior fizeram com que meu coração se apertasse.
Algo mudou em mim, e eu acreditava, ao vê-lo ao meu lado, que em George
também. Uma esperança se iluminou dentro do meu ser e senti que talvez os
meus sonhos pudessem ser resgatados e que, sim, eu poderia ter a minha família.
Esperei, sem me mexer, ele acordar, o que não tardou a acontecer.
Um sorriso contido surgiu dos lábios perfeitamente desenhados no seu
rosto. A beleza dele sempre me tirava o fôlego.
— Creio que já dormi muito mais do que seria permitido a um homem
que tem propriedades para administrar e um escândalo para conter.
Coloquei as mãos sobre o rosto, envergonhada. Sim, eu provavelmente
tinha passado dos limites. Ah, se ele soubesse que uma das minhas únicas
amigas em Londres era uma prostituta.
— Não se envergonhe. Creio que vamos sobreviver a isso, só não posso
dizer o mesmo de minha mãe.
Dessa vez, um enorme sorriso estampou seus lábios. Pegando minhas
mãos entre as suas, ele as afastou do meu rosto.
— Me deixe olhar para a mulher mais linda de Londres. Não se esconda.
— Me diga, por que acha que em Londres aparência está além das
pessoas, principalmente quando se trata de mulheres? Acha que posso entrar
num baile sem ser julgada por minhas risadas escandalosas, meus atos insolentes
ou minha completa essência carregada de dolo?
Ele me escolhera por ser um escândalo. Nenhum homem em sã
consciência teria se casado comigo. E isso doía. Magoava-me saber que ninguém
poderia ser o que queria nesse mundo taxativo.
O silêncio se abateu sobre o ambiente e pensei que talvez o tivesse feito
refletir sobre sua irmã. Arrependi-me por minhas palavras. Antes de dizer algo,
ele me puxou para mais perto de si, me apertando em seus braços.
— Eu só sei que pode entrar em um baile em que sua risada é a mais
escandalosamente bela, seus atos insolentes fazem todos os homens se render
aos seus pés, e os seus comportamentos inaceitáveis fazem com que eles tenham
sonhos aos quais nem você vestida de prostituta faria jus. — Ele parou de falar,
depositando seus lábios sobre os meus em um beijo que me fez fechar os olhos e
então continuou sussurrando sobre eles. — E os homens correm de você, por
medo. Sabem que você vai destruí-los com pensamentos. Mulheres não devem
pensar.
Sorri com sua conclusão.
— O que elas devem fazer? — perguntei curiosa.
— Bordar, cuidar da casa, cuidar dos filh....
Ele se retesou diante da palavra retida. Ele ia falar de filhos, mas se
conteve. Fingi que não percebi, mas aquilo foi suficiente para que tudo mudasse.
George se afastou.
— Preciso me levantar. A obrigação me chama.
Depositando um beijo frio na minha testa, ele deixou a cama, vestiu o
roupão e saiu em direção ao seu quarto.
O vazio que sua ausência causou me trouxe uma melancolia sem fim.
Esse era o fim da nossa harmonia. Nunca seriamos uma família, concluí com
tristeza. Porém, muito tinha sido conquistado nessa noite. Precisava ir com
calma. Tudo poderia ser conquistado. Era isso que Nataly sempre dizia: “Para
uma mulher, não há limites”.
Diferente de todas as outras manhãs, me levantei com uma nova força,
me troquei e fui para a o café da manhã como a verdadeira dona dessa casa,
como a duquesa desse lar. George já ocupava o seu posto na mesa, ao lado da
mãe, que fez questão de me ignorar quando adentrei o cômodo.
Meu marido sorriu com gentileza, me recebendo com afeto. No entanto, a
harmonia foi quebrada no instante seguinte, quando sua mãe nos interrompeu:
— Devo lhe informar que é de bom decoro oferecer um baile após o
casamento. Sei que você não será capaz de organizar tal evento e estou disposta
a fazer isto por você.
Engoli em seco com o comentário e não esperei pela resposta de George:
— Na verdade, só não tinha pensado em fazê-lo porque estava muito
ocupada desfrutando as minhas núpcias. — O comentário indecente fez com que
meu rosto queimasse e ela se engasgasse com o copo de leite que bebia. — Mas
agora creio que posso dar andamento à festa tão aguardada por vossa graça e que
entrará para a história de Londres.
Desta vez, sua pele adquiriu um tom pálido e decidi que a vingança de
George se tornaria minha também. Se ele sofrera no passado por aquela mulher,
eu também me sentia na obrigação de fazê-la pagar por toda a tristeza causada ao
homem que nesse instante me olhava com admiração.
— George, creio que você não vai deixar que sua mulher destrua sua
propriedade e sua reputação com uma festa que será um verdadeiro fiasco! —
ela indagou, olhando indignada para meu marido.
Olhei na direção dele também, esperando por minha defesa, que não
tardou a chegar.
— Creio que teremos a melhor festa já vista em muito tempo. Você tem
todo o meu dinheiro, os meus criados e a mim ao seu dispor, minha lady — ele
disse, pegando minha mão por cima da mesa e levando aos seus lábios, em um
gesto de carinho que não era comum em público e muito menos a sós.
Senti-me lisonjeada e feliz, como nunca.
Aquilo seria emocionante. Organizar uma festa, mostrar para toda
Londres que eu não era só uma derrotada, esquecida nos bailes da capital, a filha
indigna. Eu era uma duquesa, casada com um homem que, por fim, poderia me
amar. Eu estava radiante!
A festa era o momento em que eu poderia lavar minha alma, mostrar ao
mundo meu valor. Eu poderia ser o escândalo, mas seria um escândalo de valor!
Eu daria a melhor festa já vista na cidade e, no fim da noite, faria questão
de continuar envergonhando minha sogra e meus pais, para que eles se
lembrassem do seu lugar nessa sociedade suja.
Indignada, sua mãe saiu da mesa.
— Teremos outro leilão nesse baile? — George perguntou me
provocando.
Gargalhei.
— Creio que não seria apropriado, meu Lorde. Mas estou pensando em
um baile de máscaras. Isso seria bem sugestivo.
— Ah, Helena... — Ele fechou os olhos brevemente e seu meio sorriso se
alargou. — Creio que seremos fofoca por muito tempo.
— Creio que sim! — assenti.
— Tem planos para esta tarde? — ele perguntou.
— Pretendia começar a organização do baile, por quê?
— Vou resolver alguns assuntos e depois preciso cumprir uma promessa
e te levar para cavalgar. Creio que deixamos esse assunto pendente. — Ele
piscou com malícia.
— Ah, sim. Seria necessário para minha compreensão sobre
adestramento e meu lugar na sociedade. Muito bem-vindo com um baile à vista.
Arqueando as sobrancelhas, ele se abaixou aproximando do meu ouvido.
— Seria extremamente necessário, minha lady. Quero te mostrar os
princípios básicos do adestramento do animal.
— Estou ansiosa— respondi em deboche.
Ele encostou os lábios na minha orelha, deixando um rastro de beijo por
ali que me fez flutuar por alguns instantes e esquecer do que falávamos.
— Se vista adequadamente e me encontre depois que almoçar, ao lado do
lago.
Suspirei tentando me recuperar, enquanto ele se retirava da sala de jantar.
De um dia para o outro tudo mudava. Tinha um marido que resolvera se
interessar por mim e uma vida que eu estava disposta a desfrutar, da minha
maneira.
A ideia do baile de máscaras surgiu como uma forma de poder trazer
Nataly para a festa. Eu a considerava uma grande amiga que me ajudara quando
tanto precisei, porém infelizmente ela nunca poderia frequentar os mesmos
eventos de minha classe social. No entanto, se estivesse disfarçada, isso seria
possível.
Empolgada, comecei a imaginar a noite do baile e tudo que poderia advir
dela. Também reveria Charlote. Estava com saudades daquela moça ingênua e
cheia de ideias malucas como eu. Seria uma noite histórica.
Pensei se poderia ser feliz com tudo aquilo e abrir mão da grande família
que sonhava, dos filhos... Então decidi deixar isso de lado momentaneamente.
Para cada coisa na vida tinha um momento certo, e para cada obstáculo, um
desvio, principalmente quando se tratava de amor.
CAPÍTULO 26
“Meu melhor amigo sempre dizia que mulheres são como tempestades.
Quando você menos espera, elas chegam e destroem tudo em você. A partir
daquele dia, comecei a considerar as tempestades algo fraco, que nunca me
deteriam.”
(Anotações de George, Paris, 1799.)
GEORGE
Debruçado sobre os papéis na minha mesa, lembrei de uma vez, ainda na
infância, quando peguei um resfriado e o médico preparou um remédio cheio de
erva que, além de um odor horroroso, era amargo como fel. Eu deveria ingerir
uma colher daquele líquido apavorante todas as manhãs, por sete dias
consecutivos. Para uma criança, aquilo era um castigo sem fim.
Quando choraminguei com Susan sobre minha lamentável situação, ela
com seu sorriso doce me disse que era algo simples de se resolver: era só pegar o
meu doce preferido, ingerir o líquido amargo tapando as narinas e rapidamente
comer o doce. Eu pouco sentiria do líquido amargo e o que ficaria na minha boca
seria o paladar adocicado. Suas palavras foram: “Nada de amargo pode superar
o doce da vida”.
Nessa manhã pensei em como Helena era o doce que me ajudava a
superar o cálice amargo dos últimos dias.
Alguém bateu à porta.
— Entre.
Era meu lacaio.
— Vossa Graça, chamou-me?
— Quero que sele dois cavalos, por favor. Escolha um bem manso e o
meu de costume.
— Sim, Milorde — ele assentiu e se retirou com minha permissão.
Tentei me concentrar para terminar o resto dos meus afazeres. Como
tinha me ausentado por alguns dias, muitas coisas tinham se acumulado. Uma
das minhas propriedades em Brighton estava com dificuldades na colheita e eu
precisava estar lá, mas devido ao casamento e aos meus propósitos com minha
mãe, não me permitia ausentar, o que dificultava e prejudicava mais os meus
negócios. Esperava resolver em breve, ou poderia ter prejuízos graves.
Organizei várias planilhas, encaminhei algumas cartas e, quando uma
certa silhueta não me saía da memória, decidi matar a saudade da minha dama.
Encontrei Helena sentada no sofá da sala, concentrada, com uma lista na
mão. Ela não me viu entrar e a surpreendi com beijo na bochecha, que a fez
corar.
— Fazendo a lista da festa ou dos convidados que pretende envenenar?
— perguntei com sarcasmo e um sorriso zombeteiro no rosto.
Colocando o dedo no rosto, ela se fez de pensativa.
— Na verdade, os dois. Quer me dar alguma sugestão de convidado ou
veneno? — Sorriu.
Sua concordância fez com que uma gargalhada ecoasse pela sala, e só
então percebi que era minha. Eu estava feliz. Ela me fazia feliz.
— Depois podemos pensar sobre isso. Pronta para nosso passeio?
— Não exatamente pronta, eu diria. Se o estivesse, estaria vestindo calça
como meu marido, assim poderia sentar-me em um cavalo adequadamente —
me respondeu com língua afiada, como somente Helena poderia, apontando para
o seu vestido de tecido leve próprio para montaria, na cor verde-água.
— Creio que isso não será empecilho para o nosso divertimento —
garanti, estendendo minha mão para que ela me acompanhasse.
— Seu divertimento está garantido exatamente nessa questão, aos tombos
que esse vestido me proporcionará.
Peguei sua mão envolvida em luvas de seda.
— Creio que não deixarei você cair. A não ser que eu fique por baixo.
O comentário em tom indecente fez com que ela corasse novamente, e
senti vontade de mudar meus planos e levá-la para o quarto, porém não poderia
fazer isso.
— Não sou mulher de ficar por baixo, você sabe disso — respondeu, me
surpreendendo como sempre.
Abri a porta da casa e a brisa da manhã nos surpreendeu, assim como a
paisagem bela do lugar que, se não fosse pelas lembranças do passado, seria
encantador. A vegetação era perfeitamente verde nessa época do ano e o lago
brilhava em contraste, refletindo as cores da mata e do céu.
De longe avistei os cavalos que já nos aguardavam.
— Ali! — apontei para os dois. — Aquele cinza é Joshua, meu preferido.
Sempre monto nele — expliquei para Helena.
— Devo presumir que ele é o mais adestrado, o que obedece às suas
ordens, e que lembra em comportamento muito mais um cachorro de madame a
um cavalo — disse com audácia, seus olhos faiscando em desejo por me
enfrentar. Ela gostava daquele jogo e eu ficava enfeitiçado por isso nela.
Parei nossa caminhada e entrelacei os braços em sua cintura, apreciando
seu olhar e a desafiando também.
— Acho que não sou muito adepto a cavalos domados. Joshua foi
encontrado perdido em uma mata aqui por perto. Estava assustado e arredio, e
não era um cavalo propício para ser domado. Era um dos mais ariscos que já
tinha encontrado na vida. E foi exatamente esse que escolhi para ser meu. Ele é
exótico, único.
Um dos cantos da boca dela subiu em um sorriso enviesado. Depositei
meus lábios ali, sentindo seu perfume encantador.
— Está dizendo que sou um cavalo indomável? — ela sussurrou. — E
faz caridade com coisas, como Joshua?
Sorri ainda mantendo meus lábios perto dos seus. Como uma mulher
poderia ser tão encantadora? Os meus planos nunca poderiam ter dado tão
errados. Nunca conseguiria deixá-la de lado. Ela era um furacão. O meu furacão.
— Estou dizendo que você é exótica, exclusiva e encantadoramente
indomável. Além de ser completamente minha.
Ela abriu os lábios sorrindo e os capturei, passando a língua pelo lábio
inferior, decidido a arrastá-la para o quarto.
Afundei os dedos em seus cabelos, sem me importar que desmancharia
seu lindo penteado. Precisava sentir a maciez daqueles cachos perfeitos.
Ela deixou escapar um gemido. Puxei seu corpo colando mais próximo
ao meu e ela me empurrou.
— Não! Por Deus! É dia e estamos ao ar livre. Ficou louco! — retrucou
rindo.
Assenti.
— Creio que sim. Acabei de mudar meus planos. Vamos cavalgar no
quarto. Teremos uma aula teórica de equitação.
Ela colocou as mãos sobre a barriga e se abaixou.
— Você está bem? — perguntei preocupado.
E então surgiu um estrondo! A gargalhada mais alta e estranha que já
tinha escutado na vida. Ela me olhou sem ar, com os olhos lacrimejando. Não
conseguia parar. Estava tendo uma crise de risos parecida com a que tivera no
primeiro baile em que a conhecera. Tudo que pude fazer, então, foi acompanhá-
la. Comecei a rir também e apontar para a casa, para onde deveríamos voltar.
Helena apontou para os cavalos e saiu correndo. Fui atrás dela, me sentindo
livre, me sentindo feliz.
Quando a alcancei, joguei-a nos meus ombros e a levei de volta para
casa, sem me importar se era um duque, um homem poderoso, se alguém estava
olhando. Só me importava que estava feliz com a minha mulher.
Ao abrir a porta de casa, Helena com seu escândalo chamou a atenção de
alguns criados, e assim fomos até o meu quarto, onde a joguei na cama e a despi,
de forma rápida, mas a amei de forma lenta.
E tudo era perfeito até que o fantasma do meu pai chegava e se colocava
entre nós; e quando eu derramava as minhas sementes na cama, podia ver a
tristeza se derramando no olhar da mulher que aprendi a amar. Mas convenci a
mim mesmo que com o tempo aquilo se apaziguaria, porque até as piores
tempestades cessavam. E a consciência me lembrava de que as tempestades
sempre deixavam destruição que o tempo não apagava.
Passamos a tarde na cama, falando de inutilidades, da festa, de coisas
bobas, de outras coisas importantes, e até de negócios. Com Helena era fácil.
Podia-se falar de qualquer coisa. De política a religião. Ela tinha uma resposta
para tudo.
— Me conta uma coisa, como você entrou naquele bordel? — acabei
perguntando em uma das nossas conversas banais.
E, de repente, a mulher de todas as respostas se calou.
Alguém bateu na porta para interromper um momento tão importante.
Levantei e coloquei o roupão. O meu lacaio sabia que odiava ser incomodado.
Deveria ser algo extremamente importante.
— Me espere na cama. É um minuto — pedi à Helena. Queria terminar
aquela conversa. Ela parecia pálida.
Abri uma fresta da porta.
— Me desculpe, Vossa Graça, sei que não gosta de ser incomodado, mas
é uma emergência.
Assenti para que ele continuasse.
— Senhorita Marcele está lá na porta. Disse que enviou uma carta para o
senhor faz um mês anunciando sua chegada para uma breve hospedagem de
férias. Comunicou que o senhor não respondeu, no entanto nunca a colocaria
para fora de sua propriedade.
— Oh, céus! — exclamei colocando a mão na testa.
Marcele era uma prima muito querida da minha família, de minha mãe, e
foi minha também, indo parar várias vezes na minha cama quando vinha passar
férias em casa. Olhei para Helena, que sorria apreensiva na cama. Eu não tinha
visto a carta de Marcele. Tinha ignorado muitas cartas nos últimos dias e agora
não tinha como colocar ela para fora de casa, e estaria muito encrencado se
Helena descobrisse nosso passado. Mas passado era passado. Eu agora era um
homem casado.
— Mande-a entrar e a acomode em um quarto de hóspedes — dei ordens
para o lacaio. — Já desço para recepcioná-la.
Quando ela saiu, olhei para minha mulher, que continuava pálida. Tinha
alguma coisa errada na história do bordel. E eu sentia que Marcele me traria
problemas.
Mulheres, mulheres, sempre as mulheres!
CAPÍTULO 27
“O perdão é um gesto nobre, mas não se deve confundir perdão com amor.
E nem amor com tolice.”
(Diário de Helena, Londres, 1800.)
HELENA
A vida é uma caixa cheia de lembranças que faz de você um ser humano.
Se as lembranças são boas, você se transborda em uma caixa de sorrisos. Se
ruins, depende de como você vai abrir essa caixa: se com amargura ou com
aprendizado.
Olhando para a porta do escritório, com o coração despedaçado mais uma
vez, eu poderia me afundar em lágrimas, em amargura, e me transformar na
vítima de uma história que insistia em dizer que as minhas lembranças não
poderiam ter finais felizes. No entanto, uma lição que eu sempre ouvia em todas
as minhas batalhas, é que soldados amargurados se trancam em memórias de
guerras e nunca vencem as barreiras do passado. Eu não seria a mulher frustrada
que se debruçaria na cama e choraria por dias, e dessa vez, não seria a dama
perfeita que imploraria pelo amor de George.
Amor tinha limites e a dor também.
Fiquei por horas ali me recompondo, porque doía muito e eu não me
permitiria chorar. Quando senti que conseguia respirar sem dificuldades, me
levantei, deixando para trás aquele lugar que me trazia lembranças dele, seu
cheiro, seu toque e seu abandono.
Ele não voltaria aquela noite. Vi no seu olhar um pedido de desculpas
silencioso. Por mais que me amasse, tinha muitas coisas entre nós dois que
nunca seriam superadas.
Decidi, assim que fechei aquela porta, que concluiria o que eu tinha me
proposto desde o início: teria um filho de George. Não era mais por vingança. Eu
só queria ter alguém para amar, uma família, e seria mais fácil ser enviada para
bem longe dali por um motivo que justificasse seu ódio, do que por sua
incapacidade de me amar.
Lembrei-me de uma instrução de Nataly: As mulheres são a perdição de
um homem, mas se você combinar com bebidas, terá o que desejar.
Nataly não estaria ali para me ver colocar em pratica todos os
ensinamentos que tanto aprendi com ela, já que enviou uma carta desculpando-se
por não poder comparecer ao baile. Não informou os motivos, apenas se
desculpou. Por mais que tivéssemos as máscaras para nos escondermos, creio
que aquele não era o seu mundo.
O baile seria a noite perfeita para os meus planos. Uma noite em que o
seduziria e o embebedaria. Meus pensamentos foram interrompidos por uma
criada. Levei um susto quando ela apareceu na minha frente.
— Me desculpe, vossa graça. Lady Marshala está à sua espera na sala de
visitas. Disse que é urgente.
Estranhei sua repentina visita. Já havia feito todas as provas do vestido
do baile e só estava esperando a entrega. Será que algo dera errado?
Rapidamente caminhei até ela. Tranquilizei-me ao ver que Marshala
tinha uma aparência feliz e não parecia alguém desesperada que não conseguiria
entregar uma encomenda.
— Olá, Marshala. Em que posso ser útil?
— Desculpe-me chegar de surpresa, mas tenho assuntos que creio ser do
seu interesse.
Fiz sinal para que se sentasse. Acomodamo-nos no sofá. Ela parecia
hesitante.
— Algum problema com minha encomenda?
— Oh, não... de forma alguma. Creio ser o vestido mais lindo que já
confeccionei em toda a minha vida. — disse orgulhosa. — A questão é
exatamente essa. Comentei com algumas senhoras da sua habilidade com
criações, e tenho vários pedidos para que você faça desenhos para as senhoras
mais elegantes de Londres.
Fiz menção de me impor. Ela estendeu a mão.
— Olhe, não leve como uma ofensa e sei que não precisa de dinheiro. No
entanto, mulheres não medem esforços para se sentirem lindas, tanto é que estão
oferecendo verdadeiras fortunas por suas criações. Seria uma parceria perfeita.
Ando com problemas financeiros na loja e esta seria a solução. Atrairia novos
clientes.
— Creio que não seja adequado a mulher de um duque trabalhar — foi
meu primeiro pensamento. Se George descobrisse, se sentiria desonrado e não
me perdoaria.
— Eu compreendo perfeitamente. Por isso estou lhe dando um nome
falso. Ninguém saberá que é você; seria um segredo.
Minha cabeça pensava em tudo. Seria uma afronta sem perdão a George,
no entanto, parecia a oportunidade de ser uma mulher que não dependia do
marido para comprar todas as suas coisas e, se algo não desse certo no nosso
casamento, uma possibilidade de me manter em segurança, sem precisar ser
sustentada por ele e, para isso, me sujeitar a ser abandonada em alguma casa de
campo, esquecida do mundo.
Pensei que aquilo era impróprio de tal forma, que eu seria considerada
uma vergonha perante a sociedade. Mas estava na hora de parar de me preocupar
com convenções.
— Quantas encomendas já temos? — perguntei por curiosidade.
— Com minhas indicações, tenho dez vestidos encomendados. Isso se
tornará algo muito maior quando os modelos ficarem conhecidos. Vou precisar
contratar ajudante! — disse extasiada. — Seremos sócias de um negócio
lucrativo.
Pensei por alguns minutos. Ela me olhava em silêncio.
— Vamos tentar... — disse por fim. — Mantenha isso em segredo. Você
vai me mandar por cartas as informações das clientes, o que desejam, seus
gostos... e lhe envio de volta o desenho. Dessa forma, não corremos o risco de
desconfiança. Alguém poderia estranhar sua visita constante a esta casa. E uma
vez por semana vou até sua loja com a desculpa de ver novos vestidos e recebo
meu pagamento.
Ela sorriu, parecendo deliciosamente satisfeita.
— Temos um acordo. Aqui está — ela me estendeu alguns papéis —, são
os pedidos que já temos.
Peguei os papéis, sabendo no fundo que se George descobrisse, nunca me
perdoaria. Considerei, então, que não haveria perdão algum para se buscar,
quando tudo estivesse terminado.
— Só uma pergunta — indaguei quando ela se levantava para ir embora.
— Que nome devo assinar nas criações?
— Lady Ludmila.
— Posso saber o porquê da escolha do nome? — perguntei curiosa.
— O significado do nome Ludmila é: aquela que é amada pelo povo, e
assim você será em breve entre as mulheres. Gosto de história e pesquisei nos
livros. Existiu na Boêmia, no século X, e conhecida por Santa Ludmila. Era uma
princesa.
— Conheço a história, mas Santa Ludmila era conhecida por ajudar os
pobres, o que não será o caso! — ironizei.
— Ajudaremos os ricos. Mas não estamos mais no século X, não é? —
disse achando graça.
— Sim. Só espero não ter o mesmo fim, já que a princesa foi enforcada.
Seus olhos se abriram em horror e, por fim, ela sorriu.
— Não. Estamos entrando em outra era. Não se enforcam mulheres em
Londres.
Talvez não em praça pública, mas éramos todos os dias sufocadas em
lento processo, posto que, submissas aos homens, nossas vontades e escolhas
não tinham importância alguma.
— Já vou indo.
Ela se despediu, me deixando com os pensamentos amargos sobre a
condição das mulheres, nesse mundo que considerava injusto, em que só
poderiam falar de bordados, eventos sociais e outras futilidades. Nunca poderiam
se impor aos maridos, ou trabalhar, muito menos dedicar-se a uma simples
leitura mais conteudista, necessitando sempre serem puras e submissas.
E George ainda me privara da única coisa que a sociedade considerava
justa para as mulheres: a maternidade.
Mas o que me impedia de ser diferente? Minhas mãos não estavam
amarradas, as ideias corriam soltas, e meu coração já não tinha ilusões para
amores românticos. Com esses pensamentos, fui até meu quarto, olhando para
todos os papéis, cada anotação, e a cabeça produzindo muitas coisas.
Precisei pegar alguns papéis e tintas no escritório de George, dos quais
esperava que ele não desse falta. Quando fosse à cidade, precisaria comprar
matéria-prima para o trabalho.
Os dois dias passaram rápido, e todos os vestidos já estavam desenhados.
Isso fez com que os pensamentos se desviassem de George, que, como esperado,
não apareceu em casa e, ao que tudo indicava, chegaria só à noite para a festa.
Por mais que me enganasse, o coração doía e o aperto no peito mostrava
que a ausência do meu marido era doença para a qual não conhecia remédio.
A casa estava barulhenta, tudo sendo arrumado. O salão de baile tinha
criados se atropelando para que tudo ficasse perfeito, o que sabia muito bem que
não aconteceria. Afinal, eu era Helena, e detalhes não eram meu ponto forte —
escândalos, sim.
Para relaxar, entrei na banheira e fiquei afundada em ervas
cuidadosamente preparadas por minha criada, que me ajudou a vestir e pentear.
O resultado, pela sua cara de espanto, parecia ter se superado.
O vestido era de cor azul-turquesa, confeccionado em seda sem corte na
cintura. O espartilho fora ajustado perfeitamente ao corpo e o decote quadrado,
aos seios, deixando-os o suficientemente à mostra para enlouquecer um homem.
As mangas longas não eram as espalhafatosas de sempre — que considerava em
muitos vestidos um exagero que quase cobriam o rosto das mulheres —; eram
justas e delicadas, a não ser no punho, onde várias camadas de seda faziam
pequenas dobras. O corpo do vestido era todo pregueado em ziguezague até a
cintura. Atrás, fitas de veludo haviam sido pregadas no mesmo formato fazendo
um emaranhado de fios que contrastavam com o azul do fundo. E para
completar, a saia feita em várias camadas de tecido para farfalhar quando me
movesse, era enfeitada com os desenhos do próprio tecido. A sobrecapa que o
compunha era de um tom um pouco mais escuro e confeccionada em um veludo
liso que formava pregas em toda sua extensão, terminando nas laterais do
vestido, e lembrava pequenas flores.
Precisei reconhecer que a união do meu desenho com o trabalho
impecável de Marshala criou uma obra-prima, que, com toda certeza, seria o
deslumbre de grande maioria dos convidados.
Sorri, pensando que esta deveria ser a minha grande noite; consciente,
porém, de que a felicidade tinha um gosto amargo sem ele.
Soube que ele já tinha chegado, pois ouvira barulhos no seu quarto. Sem
dizer nem um oi, um pedido de desculpas, ou sequer vir ao meu quarto olhar em
meus olhos e mesmo silencioso como sempre, me pedir perdão.
Saí do quarto, temendo meu coração. Quando o via, era como se tudo se
dissolvesse, inclusive minhas memórias. Só existia um grito de socorro interno,
buscando por meu ar que vinha dele.
Senti um frio na barriga, e então escutei um barulho. A porta do quarto
dele se abrira. Mesmo de costas, podia sentir seu olhar sobre mim e nossa
respiração ficando irregular. Respirei fundo e me virei.
Perfeito, em um terno escuro, completado por um casaco, a gola
elegantemente arrumada, deixando o colarinho alto da camisa, estava lindo.
Sempre estava. O ar faltou quando ele me encarou com os olhos brilhando.
— Está perfeita — murmurou sem ar, abrindo um sorriso discreto. — A
mulher mais bela que meus olhos já contemplaram.
Seu elogio parecia sincero. E era como se dissesse para si mesmo. O
sorriso se desfez e o olhar de tristeza de sempre apareceu, me sugerindo que ele
considerava que tinha acabado. Era um olhar de despedida, com desculpas
incluídas nele.
Assenti, sem dizer uma palavra. Temia que minha voz denunciasse minha
amargura.
Dei as costas a ele, me preparando para descer as escadas.
— Espere! — disse me chamando de volta. — Vamos deixar que esta
noite seja como planejado? Venha comigo. Seja minha esposa escandalosa?
Senti ódio por suas propostas. Era como se meus sentimentos não
importassem e eu fosse um fantoche que ele usava e, quando culpado,
abandonava em um canto. Mas tendo em vista meus planos, me pareceu a
oportunidade perfeita.
Sabendo que teria que seduzi-lo essa noite, me aproximei, ficando
próxima ao seu corpo e fiz uma reverência.
— Como quiser, Graça. Esta noite estou a seu dispor! — disse com ironia
nas palavras, sorrindo. — Como sempre— completei.
Ele sorriu em retribuição.
— Vamos descer então, minha lady! — disse, estendendo o braço. —
Creio que tenho a mulher mais bem vestida de toda a Inglaterra ao meu lado.
Antes de aceitar seu braço, coloquei a mão no seu ombro e me aproximei
da sua orelha.
— Desejo ser para meu marido a mulher mais linda da Inglaterra quando
estiver sem todo este aparato.
Senti que seu corpo se retesou e sorri, deixando um beijo em seu rosto.
Eu podia ser amável, tentaria ser a mulher que ele desejava nos últimos
dias, aprendera regras de etiqueta, de bom comportamento, e até me anularia por
esse casamento. George sabia disso e mesmo assim me desprezara. Mas ele sabia
também o quanto eu poderia ser vingativa. Ele só não imaginava até onde iria
uma mulher que tinha seu coração despedaçado. Eu poderia ser muito mais que
vingativa. Eu desejava ser cruel nesse momento.
CAPÍTULO 32
“Nunca temia a solidão, pois sempre sonhava com uma grande família.
Onde tivesse amor, a solidão não tinha espaço. Era a ordem natural da
vida...”
(Diário de Helena, Londres, 1799.)
HELENA
Suas mãos me tocavam, me queimando de desejo, e reduziam meu
coração a pó, porque sabia que era uma despedida.
Eu só precisava cumprir o meu intuito. Precisava engravidar nessa noite.
Então, por que estava com medo? Por que olhava para ele na cama com tanta
ternura, sabendo que, mesmo embriagado, ele me amava com amor e doçura?
Fechei os olhos, me entregando a todas as sensações, me entregando ao
sentimento que me levava à beira do abismo, sabendo que, dessa vez, sua mão
não estaria lá para me puxar para cima. Seria uma descida ao inferno depois que
terminasse.
E foi por isso que quando consegui fazer com que ele não se desfizesse
das suas sementes na cama e fechasse os olhos dizendo que me amava, lágrimas
rolaram com abundância do meu rosto, pingando em nossos corpos suados.
George já dormia nesse instante, enquanto meu coração se desmanchava em
lágrimas.
Doía tanto, muito mais que todas as surras da minha vida, muito mais
que ser desprezada por uma vida pela minha família. Era uma dor que não tinha
comparação.
Deitei ao seu lado e adormeci, ouvindo meus próprios soluços.
D
ÚLTIMOS MESES. A
E ESPALHAFATOSOS ELES NÃO TÊM NADA! ELEGÂNCIA OS MANTÉM, A SEDA OS TORNA UM EVENTO PURO, OS FINOS TECIDOS FAZEM
O GOSTO DAS MAIORES DAMAS DA SOCIEDADE, E O ACABAMENTO É DA MAIS PURA CLASSE.
A SSINADOS POR H EMERA, ELES ANDAM ILUMINANDO AS NOITES LONDRINAS POR ONDE QUER QUE PASSEM. O QUE TODOS ANDAM SE
PERGUNTANDO É QUAL SERIA A VERDADEIRA IDENTIDADE DESSA DAMA QUE ENCANTA A TODOS COM SEUS MODELOS E SE ESCONDE POR TRÁS DO PAPEL?
S E
ERIA ELA TÃO BELA QUANTO SUAS CRIAÇÕES? SSA É A PERGUNTA QUE ESTA COLUNISTA FAZ NO DIA DE HOJE.
L S L
ADIES E EDAS, NONDRES, 02 DE OVEMBRO DE 1801.
“Um coração indomado pode até pertencer aos livros, às peças teatrais a
que assisto com tédio. Mas para os meros mortais, que domam cavalos e
damas impulsivas, como não controlariam algo que pulsa dentro do seu
próprio peito?”
(Anotações de George, Paris, 1978.)
GEORGE
O dia amanheceu como todos os outros. Sem graça, sem cor e
barulhento. Esse, particularmente, começou mais barulhento que os demais, com
uma carruagem se aproximando. Estranhei. Levantei da cadeira do escritório e
espiei pela vidraça.
Meu coração quase saiu pela boca quando reconheci minha própria
carruagem, que deixei à disposição na casa em que Helena estava hospedada,
encostando em frente à mansão.
Saí em disparada com os pensamentos fervilhando. Ela estaria passando
mal? Queria-me de volta? Diria que não estava grávida e tudo ficaria bem?
Deus, eu sentia tanto sua falta. Estava morto por dentro sem ela.
Abri a porta de casa desesperado e em seguida a da carruagem, antes que
alguém pudesse descer, mas tudo que encontrei foram duas criadas, um lacaio e
alguns poucos pertences.
— Alguém pode me dizer o que isso significa? — disse rudemente em
voz altiva.
Todos se encolheram e me olharam assustados.
— Desculpe, milorde! — o lacaio foi o primeiro a se manifestar. — Não
pudemos fazer nada, fomos surpreendidos pela noite e, quando acordamos esta
manhã, a casa já estava vazia e tudo que encontramos foi um bilhete da Milady
Helena.
Ele me estendeu o papel. Peguei-o com as mãos trêmulas.
Sei que sou um peso. Estou libertando você dessa responsabilidade.
Devolvo-lhe os criados, o lacaio e os seus pertences de maior valor.
A partir de hoje não preciso ser nem mais uma lembrança.
Helena
Todos me olhavam, esperando ordens, e tudo o que fiz foi pegar o papel e
picá-lo em dezenas de pedaços. Voltei para dentro de casa, entrei no escritório e
bati a porta com tanta força que os móveis até tremeram.
Olhei para os jornais que mantinha em cima da mesa, dezenas deles.
Todos continham notícias da nova e famosa desenhista de vestidos da cidade que
assinava como Hemera. Poderia ser uma coincidência? Eu duvidava! Primeiro,
porque a mulher desenhava para Marshala, a mesma modista de Helena. Os
vestidos começaram a surgir depois que ela partiu; algumas damas passaram a
usar preto; e agora Helena tinha dinheiro para se sustentar.
Ou talvez não. E se ela tivesse encontrado outro homem? Só de pensar,
senti meu sangue ferver. Eu a tinha deixado livre. Isso poderia ter acontecido. E
se por orgulho fosse morar em um lugar perigoso, sem se alimentar direito?
Conhecia Helena e sabia que era capaz de tais coisas. E se estivesse doente, indo
se tratar no campo?
Tantas coisas rondavam meus pensamentos. Desnorteado, me sentindo
incapaz de respirar na casa, pedi que o coche me levasse para um passeio até o
Hyde Park. Precisava refletir.
Os últimos meses tinham transcorrido como se eu vegetasse. Abandonei
os negócios, as coisas iam de mal a pior, os empregados se cuidavam por conta
própria, as propriedades dando prejuízos, minha barba estava por fazer, não saí
quase de casa, não encontrava alegria em nada...
A minha luz tinha partido. Entrava na escuridão e tudo tinha perdido o
sentido. Achei que, com o passar dos dias, aquilo se amenizaria, mas estava
enganado. A ausência dela era um tormento e cada dia ficava pior. Sentado em
um banco no Hyde Park, à beira do lago, olhei para o meu reflexo nas águas.
Fiquei imaginado como teria sido se a tivesse levado para um passeio ali.
Tantas coisas que não fiz com ela. Nunca tínhamos ido a uma ópera, a um teatro,
a passeios ao parque, a viagens...
Passei as mãos pelo rosto, cansado, desnorteado. Tinha sido tão
insensato, imaturo, ao planejar tudo de forma tão cruel, me esquecendo
completamente que me casaria com outra pessoa, uma mulher doce que roubou
meu coração no primeiro sorriso, na verdade, na primeira gargalhada. Detestava
ser daquela maneira, cruel, mesquinho como meu pai.
Então, por que sentado nesse banco me sentia como se estivesse olhando
para o seu reflexo nas águas? As palavras de Pietro por fim faziam sentido. Se
Susan estivesse viva, será que ela teria orgulho do irmão que via refletido ali?
Não! Ela teria vergonha.
Eu sequer fui atrás de procurar por sua filha, minha sobrinha, agindo
como um covarde, me escondendo como tal.
Deixei que tudo do meu pai se incutisse em mim e ao invés de fazer
vingança, me tornei seu reflexo, destruindo minha própria vida, a possibilidade
de escrever minha história. Continuava escrevendo a mesma dele. A história do
duque não terminava. Não fora enterrada com ele.
Olhei ao longe, e vi uma mulher carregando nos braços uma pequena
criança. Como poderia privar Helena daquilo? Uma criança teria o sangue do
meu pai, contudo teria a luz da minha mulher — o amor correria por suas veias:
o nosso amor. Ele teria sua língua afiada e provocaria desastres já desde
pequeno. Seria suficiente para uma criança ser feliz?
Eu estava errado. Ela não era o meu fim. Helena era minha salvação.
Só não sabia se ela me perdoaria e nem onde encontrá-la. E se realmente
estivesse com outro? E se realmente tivesse desistido de mim? Tantas coisas
poderiam ter acontecidos nos últimos meses...
Sem poder ficar nem mais um segundo longe da minha mulher, saí
correndo dali e pedi ao coche que me levasse até a casa de Pietro, que não partira
de Londres e continuava se metendo em problemas.
Encontrei-o ainda dormindo e precisei tirá-lo da cama à força, já que
provavelmente devia ter bebido até tarde.
— Meu Deus, o que houve? Algum infortúnio logo pela manhã?
— Preciso dos seus favores. Quero que encomende um vestido para dar
de presente para uma das suas amantes... — sugeri.
Minha esperança era que Hemera fosse realmente Helena. Poderia
contratar um detetive para procurá-la, mas isso demoraria dias e eu estava com
pressa.
— Ficou louco? Sabes muito bem que não tenho dinheiro e nem tempo
para tais luxos! — protestou incomodado.
— Preciso encontrar Helena. Ela partiu de uma das minhas casas essa
noite e creio que ela seja lady Hemera, essa tal desenhista de quem tanto se fala
nos últimos meses. Precisa me ajudar.
Ele sorriu.
— Sabia que voltaria atrás. Está um trapo, George. Isso não haveria de
durar muito tempo. Nesses termos, o ajudarei. Me diga o que devo fazer.
— Vá até a loja de lady Marshala e diga que precisa de algo especial.
Marque um horário com a desenhista para amanhã. Diga que não aceita a
encomenda sem falar com a desenhista. Ofereça muito dinheiro e não diga seu
nome. Se for Helena, vai reconhecê-lo. Amanhã, no horário marcado, vou
comparecer em seu lugar.
— Bom plano, meu amigo — ele disse me dando um pequeno tapa no
ombro. — Recomendo que faça a barba, corte os cabelos e se alimente por um
mês. Depois marcaremos a visita.
Gargalhou com seu próprio comentário. Não sorri. Estava sem paciência
para brincadeiras.
— Me desculpe, George. Farei o que pediu, mas pelo amor de Deus, ao
menos faça a barba, ou sua mulher pensará que se trata de um mendigo.
— Faça o que pedi e deixe que eu cuido da minha aparência.
— E se não for ela? — perguntou curioso.
— Encomendarei o vestido e você dará de presente para alguma amante,
como o plano inicial.
— Vou torcer por isso! — disse piscando o olho.
Desta vez eu sorri, sabendo que seu comentário não era sincero. Quando
dei as costas para sair, ele me chamou:
— George — seu olhar era compassivo e não tinha o tom de brincadeira
de sempre —, vá atrás de sua mulher e enterre o passado dessa vez. Era isso que
Susan desejaria e, acima de tudo, é isso que você merece.
Assenti, pela primeira vez sem discordar dele. Quando ele sorriu,
erguendo as sobrancelhas como sempre fazia, desejei que um dia pudesse
encontrar uma mulher para amar e que os seus fantasmas também fossem
enterrados.
Fui para casa me refazer, não só a barba, o cabelo, mas buscar a minha
integridade, tudo o que deixei perdido pelos cantos da casa. Durante aqueles
meses fui me dissolvendo em um homem que nem sabia onde estava, mas agora
sabia, a cada passo que dava rumo ao encontro dela, que o encontrava
novamente.
Eu só queria abraçá-la. Eu só queria amá-la. Eu só a queria, e meu
coração saltava de imaginar que com ela viria mais um. Mesmo que eu tivesse
de enfrentar todos os meus medos e abandonar todo o meu passado para que
tudo que estivesse sonhando se tornasse realidade.
CAPÍTULO 37
“Os sonhos nunca contemplam o real. Nos meus diários esqueci de dizer
que o amor é surpreendente, que ele é mágico. Ele chegou e superou todos
os meus sonhos, porque nada poderia se comparar ao amor do meu duque.
Não existem palavras para descrever os sentimentos que vivenciamos. Eu o
amo. Infinitamente.”
(Diário de Helena, Londres, 1802. )
HELENA
— É uma péssima ideia. Os negócios estão ótimos. Não precisamos
disso. Desde o início combinamos que não me exporia e assim deve ser!
Sentada na pequena sala onde Marshala costurava muitas das minhas
criações, nos desentendíamos pela primeira vez. Ela me olhava irritada e eu não
arredava o pé.
— Combinamos desde o início que o sigilo sobre a minha identidade
seria o primordial. Não estou te entendendo, Marshala. Quando as prioridades
mudaram? — perguntei cruzando os braços.
Aquela jovem cheia de ideias mantinha a testa enrugada. Seus longos
cabelos negros estavam soltos essa manhã. Como ela não receberia nenhum
cliente, não se importou em prendê-los.
— Ele garantiu que não vai dizer a ninguém. E além do mais, se disser, a
palavra dele não vai importar. Ele não terá provas. Estamos precisando nos
mudar. Olhe para isso? Está ficando impossível trabalhar neste cubículo com
tantas encomendas. — Ela levantou as mãos.
Realmente, as encomendas não paravam de chegar. Só no último mês
precisamos contratar mais duas ajudantes e os tecidos se acumulavam em caixas
empilhadas por todos os cantos e mesas. Estava ficando impossível atender a
todos os pedidos ali.
— Ele jogou no meu rosto um bolo de dinheiro e a escritura de uma
propriedade. Isso daria para fazer a mudança com folga. Não podemos ignorar.
Olhei para ela, pensativa.
— Eu não te entendo às vezes, Helena! — bufou irritada. — Quer que
George a encontre, assina como Hemera, mas se esconde atrás dos papéis.
Deseja ficar à margem de tudo, mas se coloca em uma sociedade no clube mais
famoso de Londres. Você só pode ser maluca!
Dessa vez ela sorria e eu também, porque as incoerências da minha vida
eram tantas que nem eu compreendia. Apreciava que não estivéssemos
discutindo mais. Nos últimos dias passamos a conviver tanto que me afeiçoei
àquela jovem de poucas palavras, mas de sorrisos gentis e ideias brilhantes.
— Creio que nem eu me entendo — disse por fim. — Vamos fazer esse
encontro. Apesar de ser estranho, não acha? Esse homem querer me ver
pessoalmente e se interessar tanto pelos vestidos que sua amante vai vestir?
— Eu acho estranho o dinheiro que esses homens gastam com mulheres
que não lhes pertencem. Neste caso, não vejo nada de mais ele querer garantir
que fique do seu gosto, já que não deve estar acostumado a comprar roupas,
como as mulheres... — disse deixando escapar um leve suspiro.
— Seja como for, vamos marcar esse encontro para amanhã, após o
almoço, e aqui na loja. Não devemos marcar com nenhuma outra cliente.
Ninguém pode me ver por aqui. E avise-o que mando cortar sua língua se
alguém souber da minha identidade.
Marshala jogou a cabeça para trás e gargalhou.
— Quem olha para você não imagina que por trás do olhar doce se
esconde essa mulher perversa. Você é uma mulher surpreendente. Nunca
imaginei que aceitaria minha proposta quando entrei na sua casa aquele dia.
George não sabe o que perdeu.
O assunto fez com que se dissipasse a alegria nos meus olhos.
— Devemos deixar alguns tecidos previamente separados para facilitar
meu trabalho... — disse, mudando de assunto.
Ela assentiu. Percebeu meu desconforto, porém não comentou. Passamos
a tarde organizando a pequena sala bagunçada para poder receber o Lorde.
Realmente, precisávamos de uma mudança.
— Você não me disse o nome dele... — perguntei quando, exausta,
colocava a última caixa dentro do pequeno armário cujas portas quase não
fechavam mais, de tão abarrotado.
— Apresentou-se como Barão de Farolmer. Seu rosto me pareceu tão
familiar, mas não creio ter ouvido esse nome em nenhum outro lugar! —
Marshala comentou pensativa.
— Realmente, não conheço essa família. Mas creio que o que importa é o
dinheiro.
Ficamos conversando até mais tarde e quando cheguei em casa, cansada
do trabalho, tomei um banho e fui dormir, sem ter muito tempo para pensar. Era
assim que fazia nos últimos dias. Era a maneira que tinha para me esconder. Era
minha maneira de não pensar tanto nele.
As manhãs sempre eram piores. Acordar sem George era doloroso e
olhar minha barriga crescendo, mesmo que bem pouco ainda e saber que ele
nunca veria aquilo, o meu pior pesadelo.
Coloquei um espartilho mais solto, disfarçando a pequena protuberância
que começava a se formar e escolhi para vestir um vestido azul-claro que ficava
solto no corpo e não marcava em nada minha cintura. Ninguém sabia da minha
gravidez a não ser Nataly. Não tinha dividido meu segredo com Marshala para
não a preocupar em relação aos negócios.
Tínhamos encomendas feitas para as próximas duas temporadas e isso
representava trabalho para muitos meses. Pretendia deixar tudo adiantado.
Quando meu pequeno nascesse, eu não pretendia trabalhar tanto, já que queria
tempo só para ele.
Olhei o jornal da manhã e bati o olho nas colunas de fofocas. Sempre
procurava ver se tinha o nome de George ali, com medo de encontrar algo. Sabia
que isso não tardaria a acontecer. Sabia também que não estava preparada para
isso.
O que me surpreendeu, entretanto, foi uma nota anunciando um noivado.
A minha irmã se casaria em breve e, para minha maior surpresa, não era com
nenhum marquês, conde, duque ou barão. Era com um comerciante local. Fiquei
feliz porque deduzi que ela se casaria por amor. Eu gostaria de acreditar que sim.
Ou talvez minha ruína a tivesse comprometido tanto que tudo o que restara a
meu pai foi isso ou vê-la solteira pelo resto da vida. O jornal dizia que o bom
moço tinha algumas posses e que o casamento com a filha do Marquês seria
notório na sociedade. Eu sabia, porém, que meu pai pagava por aquela coluna.
Dobrei o jornal e fui para a loja. Tinha que me encontrar com aquele
Lorde e depois passar o resto dos dias com meus desenhos.
Parei em frente à fachada e fiquei observando a pequena vitrine que hoje
tinha um vestido lilás exposto. Tinha sido uma das minhas últimas criações e era
um vestido simples para um caminhar, talvez durante o dia, no Hyde Park.
Confeccionado em seda pura e de caimento leve, próprio para o verão.
A loja não estava aberta ainda ao público e, quando entrei, Marshala
mexia em alguns papéis sobre a mesa.
— Que bom que chegou. O Lorde avisou que deve se adiantar.
— Meu Deus, essa mulher deve ser muito importante para que esses
vestidos sejam tão desejáveis! — disse irritada.
— Creio que não sejam os vestidos, querida, mas o que eles vão
proporcionar! — ela respondeu sorrindo com doçura.
Marshala era sozinha, assim como eu, mas diferente de mim, nunca tinha
se envolvido com ninguém. Não que eu soubesse. Nunca falava de nenhum
homem, não comentava de ninguém, não falava da família... era sempre sozinha.
Na verdade, Marshala era um mistério.
— Quando nos mudarmos, precisamos pensar em um nome para essa
loja. Fica estranho olhar essa fachada sem um nome, não acha? — perguntei.
— Sim. Vamos pensar em algo. Quer esperar lá dentro da salinha? Já vou
abrir para alguns clientes e, quando ele aparecer, o levo até lá.
Assenti, peguei meus papéis e caminhei até lá, encostando a porta.
Sentei na única poltrona disponível, para descansar os pés e aguardei
pacientemente o cavalheiro que viria encomendar os vestidos. Lembrei que
precisava de mais tinta para os desenhos. Fui até o armário. Escutei a porta se
abrir. Parei e olhei para trás.
Não era um Lorde qualquer ou um cliente qualquer que encomendou os
vestidos para sua amante.
Era George. Meu George.
Meu coração deu um pulo. Minha respiração parou, o sangue deixou de
circular e acreditei que até o mundo parou de girar nesse instante.
Não sabia se deveria rir, chorar ou expulsá-lo dali, o que seria, sim, a
atitude correta. Abaixei as mãos que estavam erguidas no armário, tentando me
recompor, e por um instante me permiti observá-lo.
Seus olhos pareceriam fundos e cansados. O seu semblante estava pálido.
Não era o mesmo George de meses atrás. Tinha perdido o brilho.
Quando consegui tomar fôlego e me recompor, disse de forma gélida:
— Creio ter acontecido algum engano. Já pode se retirar.
Ele fechou os olhos por um momento. Em seguida, meneou a cabeça.
— Só me deixe falar uma última vez. Depois...
— Depois o quê? — interrompi-o. — Você vira as costas e decide que
quer ir embora de novo? Por favor, eu não suporto mais!
Meu coração não aguentava nem um segundo de sofrimento. Só de olhar
para ele, já estava em pedaços novamente e demoraria meses reconstruindo tudo.
Meses para me livrar da sua imagem.
— Helena, eu o enterrei! — ele disse.
Balancei a cabeça, sem entender.
— Quando meu pai se foi, eu fiquei com tanto ódio que guardei tudo
dentro de mim. Ódio por mim e pela Susan. Peguei uma caixa, escrevi uma
carta, guardei um charuto dele, algumas coisas da Susan e deixei tudo lá e aqui
— ele deu um soco no seu coração —, mantive-me preso a essa escuridão por
todos esses anos, sem perceber que fiquei amargo e me tornei um reflexo do meu
pai. Mas hoje, eu o enterrei. Hoje, meu pai realmente morreu, Helena. Hoje ele
se foi. Eu não enterrei meu pai no dia em que ele morreu. Eu só o enterrei hoje.
Eu ainda tenho raiva dele, mas não quero que ele tenha influência em mais nada
na minha vida.
Seus olhos brilhavam pelas lágrimas acumuladas.
— Não tem problema sentir raiva das pessoas, George. O problema é
sentir raiva de si mesmo. Acho que se culpa por não ter conseguido salvar Susan.
Dessa vez, as lágrimas saltaram sem reserva. Ele as limpou com as costas
da mão, envergonhado.
— Eu deveria ter feito alguma coisa. Poderia ter tentado bater naqueles
homens, gritado mais talvez. Eu não sei....
— Meu Deus, George, você era uma criança. O que poderia fazer?
— Eu não sei! — Ele abriu os braços, inconformado. — Poderia tê-la
procurado mais antes que ela morresse, eu poderia ter tentado tantas coisas que
não fiz. Eu só sei que preciso enterrar tudo isso e seguir em frente. Eu perdi
Susan, mas não posso perder você. Eu sei que não está grávida e, se puder
acreditar em mim, eu lamento muito por isso.
As palavras me pegaram desprevenida e precisei me apoiar ao armário ao
meu lado. Ele não tinha como ver a barriga que crescia. Eu a mantinha
escondida.
Fui tomada por uma emoção sem tamanho sabendo que ele desejava
aquela criança que crescia no meu ventre.
— Eu não quero um filho seu, eu quero vários! Quero uma família, quero
toda a sua luz irradiando na minha vida, quero sua gargalhada escandalosa nos
meus ouvidos, o seu cheiro constante sendo minha companhia, quero seu abraço
pela manhã... eu quero tudo de você. E quero os pequenos, que virão cheios do
seu amor, ao meu redor, todas as manhãs da minha vida, Helena!
Tinha súplica, tinha amor na sua voz.
— George... eu....
— Não! — ele me interrompeu. — Não diga não. Eu sei que errei com
você, sei que não mereço nada seu, mas me deixe provar, me deixe, minha
Hemera? Eu vou curar todas as cicatrizes do seu coração e vou beijar todas as do
seu corpo por todos os dias da minha existência. Não tenha medo, porque eu
estou aqui e, desta vez, eu não vou estragar as coisas, estou me dando inteiro,
Helena. Não sou o duque, George Misternham, Lorde, milorde... sou
simplesmente o seu marido, o marido da Helena.
Dessa vez foram meus olhos que transbordaram ao ver aquele homem
cheio de orgulho, cheio de si, se entregando completamente ao amor que sentia
por mim. Sim, eu era toda dele. Não existia Helena sem o seu duque, sem o seu
marido, não mais. Voei nos seus braços porque era ali o meu lugar, não existia
sentido na luz sem escuridão.
CAPÍTULO 38
“Aprendi a abrir mão de tudo por amá-la e aprendi que nada me fazia mais
feliz. Aprendi que só era feliz se ela também fosse. E aprendi
principalmente que orgulho não importa, no fim das contas.”
(Anotações de George, Londres, 1802.)
GEORGE
A vida inteira eu soube exatamente que o sentido da minha vida era a
vingança. E agora, olhando a minha mulher, eu tive a certeza de que o sentido do
meu mundo era ela, não mais a vingança.
Eu desistiria de todas as minhas convicções se fosse necessário, abriria
mão do meu título, e até das minhas riquezas, por ela, porque a minha maior
riqueza e minha maior nobreza residiam nela.
Afaguei seus cabelos e respirei fundo, sentindo todo seu perfume. Era
como se não tivesse respirado nos últimos meses. Acariciei o seu rosto, me
demorando em ver como era linda. Então, encostei meus lábios nos seus,
matando a saudade do seu sabor, tentando me conter, pois a saudade era imensa
e desejava tomar tudo dela, todo o seu corpo.
— Me diga que continua me amando? — sussurrei com os lábios colados
aos seus. — Que não estraguei tudo?
— Nem que me traísse, me abandonasse e morresse mil vezes, para
deixar de te amar, George! — ela declarou.
— Fale de novo... — pedi e a tomei em outro beijo até que nós dois
perdêssemos a respiração.
— Eu te amo, meu amor! — ela disse de novo, desta vez acariciando o
meu rosto, emocionada. — George, eu preciso saber... realmente quer ser pai?
As palavras não me pegaram de surpresa desta vez. Sabia do seu receio.
Eu tinha sido um canalha tantas vezes que não seria fácil Helena confiar em
mim, mas estava disposto a ser paciente e mostrar a ela que desta vez seria
diferente.
— É tudo que desejo. Quero vê-la feliz e se isso a fará feliz, me fará
também. Além do mais, imagine ver uma cópia de você gargalhando ou um
menino teimoso que tenha seu gênio? Que Deus nos ajude.
Seus olhos brilharam e as lágrimas, que já estavam secando, voltaram a
brotar.
— Não vai precisar esperar, meu amor... — Ela sorriu, deslizando a mão
até sua barriga. — Já carrego um filho nosso em meu ventre.
Pude sentir exatamente quando meu coração parou de bater por alguns
instantes e o mundo deixou de existir, resumindo-se à sensação de tocar as mãos
dela sobre sua barriga. Era um misto de sensações inexplicáveis: emoção,
ternura, amor, receio e medo. Sim, eu estava extasiado pela notícia, e também
com medo.
Quando recuperei a respiração e meus batimentos cardíacos
normalizaram, eu me abaixei a abracei seu corpo, beijando sua barriga. As
palavras ainda faltavam, mas eu me sentia completo.
Sabia que tinha um longo caminho pela frente, que o medo me faria
duvidar em muitos momentos da minha capacidade de amar, que ficaria tentado
a olhar para trás em outros, mas estava ali, abraçando minha maior riqueza e, por
ela, eu daria a minha vida. Por eles, eu iria conseguir.
— Eu vou tentar ser um bom pai — disse me levantando, beijando seus
lábios novamente, sem me conter, porque o amor que sentia por essa mulher era
imensurável. — Não vou ser o melhor, longe disso, mas vou dar o meu melhor.
Sequei suas lágrimas e ela sorriu lindamente.
— Você será o melhor pai, George; pra mim, você o será, porque vai
amá-lo, vai se dispor de tudo como está fazendo agora, porque é isso que você
faz: deixa tudo por amor. Você é generoso, e tem o coração mais aberto ao amor
que já conheci e será um pai maravilhoso, tenho certeza disso. Vamos aprender
juntos, vamos superar nossos passados juntos...
— Será que posso te levar para casa agora? – perguntei receoso. —
Preciso de tudo de você nesse instante e não suporto mais a sua ausência.
— Creio que preciso dar satisfações à Marshala — disse com
cumplicidade. — Esperávamos fechar uma grande negociação esta tarde, e
tínhamos planos mirabolantes para o dinheiro e a propriedade que foi garantida
em troca dos vestidos, por seu cúmplice.
— Ah, Vandik, sempre exagerado... Eu tinha dito para ele oferecer
dinheiro em troca de um vestido. Ele reservou a tarde e chegou a colocar uma
das minhas propriedades em jogo. — Afinal, o que está fazendo aqui, Helena?
Sabe que não a desampararia!
No mesmo segundo me arrependi pelas minhas palavras e, antes que ela
dissesse alguma coisa, coloquei meus dedos sobre seus lábios.
— Não, não me diga nada. Sei muito bem o que está fazendo aqui, e não
esperaria menos de você. Me desafiar, ser dona da sua própria vida e cuidar de si
mesma é tudo que poderia fazer. Essa é você.
— Sim, essa sou eu! — ela concordou sorrindo. No entanto, agora tenho
uma sócia, e você ao menos vai pagar por alugar vestidos para mim, senhor
Misternham. Afinal, os meus já estão ficando apertados e precisamos de dinheiro
para a loja.
Fiz uma careta simulando estar irritado.
— Não tente me enganar. Sei que não está irritado.
— Desde quando desenha vestidos? — perguntei curioso.
— Ficar sentada tanto tempo nos bailes, rejeitada, serviu de algo.
Aprendi tudo sobe moda e resolvi usar minhas habilidades para me distrair.
Tenho um dom para o desenho que desconhecia e juntei com o bom gosto que
desenvolvi de observar as damas nos bailes.
— Não sabe como fico feliz por ter sido desprezada tanto tempo!
— George! — ela me reprovou, dando um pequeno tapa em meu peito.
— Estava guardada para mim. Não pode me condenar por meu egoísmo.
Beijei a ponta do seu nariz, descendo até os seus lábios. Meus dedos
foram chegando até as suas costas e encostei meu corpo ao seu.
— Precisamos ir... — sussurrei.
— Sim... precisamos! — ela concordou corada.
Ajudei-a a organizar seus papéis e explicar para Marshala os infortúnios
da aparição do seu marido. Garanti que manteria a compra e o que fora
combinado por Pietro. A pequena fortuna que ele combinou com a dama valia
cada libra. Na verdade, toda minha fortuna não tinha valor sem Helena.
Quando entramos na carruagem, parecia que algo ainda a incomodava.
— Deixamos algo para trás com Marshala? — perguntei mantendo suas
mãos entrelaçadas às minhas, enquanto sua cabeça estava encostada em meu
ombro.
— Não. Acabaremos de acertar o restante na próxima semana. Nada
urgente. Sei que é uma afronta trabalhar, mas gosto do que faço — ela disse,
afastando seu rosto e me olhando nos olhos — Não vai me privar disso, não é?
— Ainda acha que tenho algum poder sobre você? — perguntei sorrindo.
— Achei que já soubesse o suficiente para compreender que o poder está todo
em suas mãos, ou esqueceu que a deusa aqui é você? Fique tranquila, minha
doce esposa, você não será privada de absolutamente nada.
— Obrigada! — ela respondeu com o sorriso mais largo que eu já tinha
visto em seu rosto. — E tem outras coisas que precisa saber antes de me aceitar
de volta.
Encostei minha cabeça no apoio da carruagem, sabendo que pelo seu
semblante travesso e preocupado, não eram coisas de uma dama, como: “eu
comprei vestidos novos”, “quero ir para Paris”, “quero um colar novo”; eram
coisas estilo Helena — complicadas e escandalosas.
— Quando estive naquele clube, o Spret House, na vez que me passei por
prostituta, eu cheguei até lá através de uma amizade imprópria: uma prostituta
que contratei para me ajudar a te conquistar e me colocar dentro daquele lugar.
Por todos os meus pecados! Ela estava louca! Até para Helena aquilo era
demais. Fiquei sem fala diante das suas palavras, e a minha cara deveria estar
péssima, pois ela me olhava com espanto enquanto continuava:
— E nesses meses que ficou fora, foi Nataly quem me ajudou em tudo.
Foi ela que me deu apoio, que me alugou uma casa em seu nome para me
proteger da sociedade, e quem esteve presente quando você não estava. Ela foi e
é uma boa amiga. Agora, Nataly precisa de mim e fizemos uma sociedade.
— Por Deus, Helena! Que sociedade você poderia ter com esse tipo de
mulher?
Eu estava chocado. Sim, quando conheci Helena, eu sabia que ela era um
escândalo. Quando me casei com ela, tive certeza. Na convivência, comprovei
que era muito maior do que eu imaginava, mas agora eu estava a ponto de atestar
sua insanidade escandalosa perante a sociedade, se é que isso existia.
Olhei para suas mãos. Ela mantinha os dedos cruzados, um batendo no
outro, sem parar. Estava nervosa. E mordia os lábios.
— Continue... — pedi, antes que eu tivesse um infarto.
— Nataly, ao contrário do que todos pensam, é a verdadeira dona do
Spret House e vai fechar o clube e reabri-lo em outro lugar, mais amplo e
luxuoso. Me disse que lá, ela detém dinheiro e poder, como quase nenhum outro
homem em Londres.
— Bem que Pietro disse. Sempre achei que aquele lugar fosse regido por
Dom Carlos — divaguei. — Bom, mas isso não vem ao caso. O que você tem a
ver com isso? Não estou compreendendo aonde quer chegar.
— Nataly quer algumas sócias. E eu vou ser uma delas!
Se eu tivesse um coração frágil, teria morrido nesse instante. Se ainda
desejasse vingança da minha mãe, ela estaria concluída nesse minuto. Se
acreditasse que mortos ouvissem, meu pai estaria se remexendo no túmulo. E se
tivesse alguma certeza de que Helena conhecia a palavra juízo, imaginaria que
ela o teria perdido no dia em que nasceu.
Ela abriu um sorriso tímido de canto de boca e colocou uma mão em
cima da minha.
— Sei que a princípio pareceu uma péssima ideia. Também achava. Mas
agora não posso voltar atrás. Nataly precisa de mim e devo favores a ela.
— O que eu devo dizer a você, Helena? — perguntei perdido e
inconformado com aquela situação, mas um pequeno sorriso se formou nos meus
lábios.
— Que deve me domar? — ela perguntou, achando graça da minha cara
surpresa.
— Creio que devo aprender a andar no seu galope, caindo quantos
tombos forem necessários, porque você, amor meu, é um cavalo indomável. E
sinceramente? Não acredito que conseguirei domar você, minha deusa!
EPÍLOGO
H Á MUITO TEMPO NÃO SE VIA UM BAILE TÃO SOFISTICADO EM L ONDRES. A CONDESSA DE LOSCOVIS NÃO ECONOMIZOU NO BOM GOSTO, NAS
FLORES, NA BOA MÚSICA E NOS CONVIDADOS DE TODAS AS PARTES DA NOBREZA.
M UITAS DAS DAMAS DESFILAVAM COM SEUS VESTIDOS PERFEITOS, DESENHADOS POR HEMERA, QUE TODOS SABIAM, COM A INAUGURAÇÃO DA
A MAIORIA DAS DAMAS NÃO SE IMPORTAVA DE PAGAR PEQUENAS FORTUNAS POR SUAS CRIAÇÕES, QUE JUNTAMENTE COM A INSÍGNIA M ARSHALA,
VINHAM FAZENDO SUCESSO NAS RODAS DA ALTA SOCIEDADE. E NÃO ERAM SÓ PELOS VESTIDOS; ERAM PRINCIPALMENTE PELAS FOFOCAS. N UNCA FORA
ACEITÁVEL QUE UMA DUQUESA DESONRASSE O MARIDO DESTA FORMA: TRABALHANDO! E AS MÁS LÍNGUAS DIZIAM QUE O CASAMENTO OS DOIS
ACABARIA NA RUÍNA.
N ÃO É O QUE ESTA COLUNISTA PENSA; ACREDITO QUE AS DAMAS QUE O DIZEM, ESTÃO NA VERDADE COM INVEJA DO QUADRO PRESENCIADO NO
BAILE, QUE VOU PINTAR PARA MEUS QUERIDOS LEITORES.
IMAGINEM A CENA:
A DAMA MAIS BEM VESTIDA DA FESTA, CHEGANDO EM UM PERFEITO VESTIDO LILÁS, QUE EVIDENCIA SEUS CABELOS CASTANHOS QUASE DOURADOS
E SUA GRAVIDEZ JÁ AVANÇADA, FAZENDO-A PARECER UM ANJO, DE TÃO RADIANTE E FELIZ. A O SEU LADO, O DUQUE, DE BRAÇOS DADOS, FITANDO-A COMO
SE NADA MAIS EXISTISSE AO SEU REDOR, COMO SE O MUNDO SE REDUZISSE À SUA MULHER: H ELENA.
Q UANDO ENTRAM NO SALÃO, AS PESSOAS PARAM PARA OLHAR, COCHICHAM, FALAM MAL E, DISFARÇADAMENTE, DIZEM QUE ESTÃO INFELIZES,
ENQUANTO OS DOIS SORRIEM E G EORGE TOCA O VENTRE DA ESPOSA, SEM SE IMPORTAR COM AS CONVENÇÕES DO LUGAR.
A PÓS O JANTAR, QUANDO A VALSA COMEÇA, A GRANDE H ELENA, CONHECIDA POR SEUS ESCÂNDALOS, JÁ TEM DUAS VALSAS RESERVADAS AO
MARIDO, COMO VEM PRATICANDO EM TODOS OS BAILES. D ANÇAM, TROCAM SORRISOS, OLHARES, ALGUMAS CARÍCIAS, E TODOS NO SALÃO CONTINUAM
LANÇANDO OLHARES DE INVEJA, JURANDO QUE AQUELE CASAL ESTÁ POR UM TRIZ. ESTÃO RUINDO.
Q UANDO A MÚSICA PARA, CONVERSAM COM OS AMIGOS. E SCUTEI DE FONTE SEGURA QUE G EORGE CONFIDENCIOU A SEU MELHOR AMIGO,
N ÃO, NÃO CREIO QUE ESSE SEJA O OLHAR DE UM HOMEM TERRIVELMENTE IRRITADO. N ÃO, NÃO CREIO QUE ESSE SEJA O COMPORTAMENTO DE UM
ESSA É A OPINIÃO DESTA COLUNISTA E DE TODOS QUE ESTAVAM NO BAILE, MAS QUE, COBERTOS POR INVEJA, DIRÃO EXATAMENTE O CONTRÁRIO —
MESMO NA FORCA.
N ÃO DEIXEM DE ACOMPANHAR NAS PRÓXIMAS COLUNAS SOBRE A PROCURA DO D UQUE DE M ISTERNHAM POR UMA SOBRINHA DESAPARECIDA.
L ADIES E SEDAS, L
ONDRES, 24 DE A BRIL DE 1802.
CAPÍTULO 1
NATALY
A casa estava cheia. Era a última noite naquele salão. Depois ficaríamos
fechamos por alguns meses e reabriríamos no novo local que já estava sendo
preparado para receber a Spret House.
Dom Carlo também se aposentaria. Estava cansado de ficar por trás
daquela vida agitada, das cobranças, de cuidados dos credores, das minhas
meninas problemáticas, dos bêbados, dos jogadores e das minhas vinganças.
Estava cansado de tudo e eu não o julgava.
Desde que comecei aquele negócio, Dom Carlos era um comerciante que
fornecia lenhas. Depois que o velho senhor me protegeu de homens que queriam
nos fazer mal, as coisas começaram a melhorar e ele sempre esteve ao meu lado.
Se tinha uma coisa que eu sabia reconhecer era lealdade.
Estava deixando-o partir, mas a casa de jogos precisava de alguém que
ficasse a frente. Estávamos em 1803, e não se aceitavam mulheres a frente de
nada. Quando o sol se punha, a Spret recebia duques, condes, marqueses,
comerciantes, barões e todos os homens ricos e importantes da cidade. Éramos o
clube mais famosos de jogos e prostituição. Lá, deixavam suas fortunas e seus
segredos; em troca, eu lhes dava diversão. Mas precisava de um homem, e meu
segredo ficaria mantido até a minha morte. Aqueles homens não poderiam saber
que tinha uma mulher que comandava aquele império, ou então, tudo ruiria.
Naquele mundo eu era Nataly, uma prostituta, uma lenda. Ninguém
saberia dizer quantos homens já tinham passado pela minha cama ou não.
Muitos diziam que sim, contam histórias para os seus amigos, inventavam
fantasias e aquilo fazia de Nataly a deusa do amor. O que era verdade ou mentira
ficaria comigo até a morte, assim como meus segredos da Spret House.
Entretanto, para alguém que detinha tantos segredos, o maior dilema da
minha vida eu enfrentava naquele momento: substituir Dom Carlos. Eu não
confiaria em mais ninguém. Só tinha uma forma de garantir que não fosse traída:
eu precisava encontrar um marido. Um que tivesse cérebro suficiente para
controlar meus negócios, dívidas exorbitantes para poder ser comprado, nenhum
coração para se colocar na bandeja e escrúpulo algum para aceitar fazer parte
deste contrato.
— Tem certeza de que vai se expor esta noite? — Dom Carlos perguntou
preocupado.
Eu sempre ficava à espreita. Minhas aparições eram raras. Como toda
lenda, eu pouco era vista.
— Preciso estar atenta e só eu para identificá-lo. Conheço todas as fichas,
sei de cada dívida que eles têm, as terras que tomei de cada um, seus segredos...
mas os conheço por nome. Preciso vê-los jogando, ver suas habilidades. Preciso
conhecê-los pessoalmente, se são ardilosos, se tem boa presença. Sabe que
preciso de alguém que faça a diferença.
Ele sorriu em compreensão.
Eu tinha investido quase tudo o que tinha no novo clube, porque queria
fazer a maior fortuna já vista com ele. E não era por dinheiro. Era por vingança!
Não para uma pessoa . Eu odiava a sociedade como um todo e queria destruir um
por um que pisasse dentro daquele lugar. Arrancaria os seus segredos, seu
dinheiro e deixaria os maiores burgueses de Londres nas ruínas, como já tinham
feito com minha mãe.
— Está noite deixe todas as mesas livres para as apostas. Quero que
todos se endividem. Não coloque limites. Preciso que todos os cavaleiros de
Londres fiquem à beira da ruína. Estarei de olho em cada mesa. Dobre, triplique
as apostas! Coloque prostitutas servindo bebidas por conta da casa. Quando eu
der a ordem para encerrar, você e os credores farão as negociações com todos,
menos com o que eu der sinal. Este será o escolhido, aquele que será o meu
marido. Está noite, Dom Carlos, eu o escolherei. Não tenho outra opção.
Ele assentiu, deixando-me sozinha no escritório.
Retoquei meu batom, coloquei uma máscara para disfarçar e não chamar
muita atenção, respirei fundo e pensei nela mais uma vez. Ela nunca me disse o
nome da sua família, daqueles que a deixaram em ruína e foram responsáveis por
tudo que ela passou. Mas eu sou Nataly e em breve serei dona de metade de
Londres, pensei com um sorriso no rosto. Não só os bens, mas os segredos
seriam meus.
Com aqueles pensamentos, desci as escadas para o barulho infernal que
estava lá em baixo e comecei a analisar, mesa por mesa.
Dava para ver os tolos que perdiam com facilidade, aqueles que
ganhavam por sorte, aqueles que tinham habilidades, mas eu sabia que eram
casados, outros que não tinham aparência, até que um me chamou a atenção.
Primeiro por sua beleza. Eu sabia identificar um homem bonito de longe,
afinal, esse era o meu mundo.
Jogado de forma despojada na cadeira, diferente de todos os outros
cavalheiros do salão, ele não usava gravata por baixo do colete e do terno de
corte impecável, o que demonstrava que tinha bom gosto, mas era um libertino
nato. Sua camisa tinha dois botões abertos, o que era quase uma afronta para
uma dama. Não para mim obviamente. O cavalheiro olhava atentamente para as
cartas dispostas na mesa e mantinha as sobrancelhas arqueadas, em atenção ao
jogo. Notei quando ele disfarçadamente olhou, rapidamente, para todos os rostos
dos seus adversários que estavam cravados na mesa. Isso era um bom sinal; ele
analisava seus concorrentes. Na sequência, voltou a olhar suas cartas, sem
demonstrar qualquer sinal em sua face do que tinha nas mãos.
Afastei-me quando percebi que ele me olhou, paralisando seu olhar por
alguns instantes. Não queria chamar sua atenção nem queria perder o foco. Se
tinha algo que faria uma mulher perder o foco era o olhar daquele homem. Era
penetrante. Seus olhos eram verde-escuros, quase pretos, pude reparar.
De longe continuei observando-o durante toda a noite. Pude ver quando
blefou, como era mais esperto que os outros jogadores e que, no final, lamentou
todas as apostas, na certeza de que ganharia e nesta hora eu precisava que ele
perdesse. Foi assim que também pude perceber que, acima de tudo, aquele
homem era muito esperto, mas tudo se perdia quando via um par de peitos.
— Ma cherrie... — chamei Laura, uma das minhas meninas. Era assim
que chamava todas as minhas protegidas, as cortesãs que ficavam sobre minha
responsabilidade e que se tornaram minha família. — Está vendo aquele lorde?
— Apontei. — Sirva bebidas a ele e o distraia do jogo. Preciso que ele perca a
rodada de poker. Faça o que for necessário. Não se preocupe, eu pagarei sua
noite, petite.
Fiquei olhando, então ela cumpriu seu papel e pisquei para que Dom
Carlos, que estava próximo, se aproximasse.
— Quem é o cavalheiro? — preguei fazendo sinal com o olhar.
Ele gargalhou como gostava de fazer sempre que eu estava me
envolvendo em encrencas.
— Pietro Caster Fiester Goestela Vandick, sexto Conde de Goestela.
Perdeu os pais e os dois irmãos em um acidente suspeito e silencioso na infância,
herdou uma fortuna que destruiu ao longo dos anos em sua vida boêmia e
libertina. Hoje acumula tantas dívidas e credores em sua sola do sapato que, se
somássemos, chegaríamos até outros continentes. Se está vivo é por sua infinita
bondade à vossa graça, o Duque de Misternham, que vive lhe emprestando
dinheiro e remendando seus machucados, e por sua lábia, que não tem fim.
Coleciona amantes, disputa duelos como passatempo e neste momento —
apontou para mesa, onde Pietro colocava a mão na testa como eu previa —
acabou de perder uma fortuna na mesa de jogos, acrescentando mais uma dívida
às que já são imensas no clube.
Sorri imensamente. Ele era tudo de que eu precisava.
Sem família, sem passado, sem dinheiro, ardiloso, sem coração, sem
escrúpulos, de boa aparência e precisando ser comprado.
— Mande-o subir ao meu escritório. Esta noite vamos acertar suas
dívidas.
Dom Carlos me olhou incrédulo, mas não ousou discutir. Ninguém
ousava!
Eu já tinha feito a minha escolha. Estava indo fechar meu contrato, fazer
minha negociação. A minha vida era sempre um negócio, em busca de uma
grande justiça. Não tinha lugar para sentimentos no meu mundo.
Caminhei lentamente subindo as escadas. Olhando para trás, aquele clube
que me dava o poder de tudo, daqueles homens que achavam que tinham tanto,
mas, no final da noite, deixavam tudo nas minhas mãos. Seu dinheiro, suas
posses, suas terras, seus segredos, e eu os guardava para o dia da minha
vingança.
Faltava descobrir tudo sobre Susan, tudo sobre minha mãe e aí sim, eu
começaria a detonar todas as bombas, como em uma guerra.
No momento, eu precisava me concentrar no meu futuro marido, pensei
sorrindo. Pobre homem! Ele não imagina a guerra em que estava entrando e
também que não tinha escolha. Eu o tinha escolhido e quando Nataly escolhia,
você estava marcado com fogo para sempre.
AGRADECIMENTOS