A Priori Compartilhado - Streck
A Priori Compartilhado - Streck
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O337d
AGRADECIMENTOS
Nesse sentido, quero nomear aqui correndo o risco de deixar de fora deste
iventrio pessoas importantes alguns desses Amigos e Amigas que so, na verdade, coparticipes dessa minha empreitada acadmica.
Agradeo tambm ao prof. Dr. ERNILDO STEIN de quem hoje tenho a honra de
ser um frequente interlocutor. Muito embora a verdade deve ser dita compartilhe eu da
opinio do prof. Dr. ALBANO PEPPE para quem, diante de ERNILDO STEIN, h apenas uma ao
possvel: escutar.
Ao prof. Dr. LENIO LUIZ STRECK, pela dedicada orientao desta pesquisa e
pelo apoio perene.
DA
DE
MORAIS.
E ao CNPq pelo apoio financeiro sem o qual esta pesquisa no seria possvel.
RESUMO
As presentes reflexes tm como objeto a deciso judicial e pretendem investigar as
condies sob as quais se assenta uma deciso judicial. Vale dizer, pretende-se aqui dar conta
daquilo que acontece e est implicado no momento em que uma questo jurdica decidida.
Pretende-se tomar o fenmeno da deciso judicial como objeto da anlise para perguntar por
aquilo que o sustenta e que est pressuposto na atividade do agente decisor. Quer-se saber se
possvel afirmar a existncia de um tecido bsico que indique como os conceitos que so
articulados e operacionalizados pelo autor de uma deciso jurdica podem produzir sentido.
Essas questes colocam, no primeiro plano da anlise, o problema da recuperao do sentido
histrico e as possibilidades tericas que nisso esto implicadas. As respostas a essas questes
demandam a construo de ferramentas tericas que permitam investigar o elemento da
historicidade do sentido. Essa investigao se vale da hermenutica produzida no sculo XX
complementada pelo elemento epistemolgico da histria dos conceitos e da metaforologia
para construir o seu quadro terico de anlise. Valendo-se desses instrumentos, a pesquisa
procura apontar para o fato de que as abordagens que incorporam as bipolaridades tradicionais
para retratar o problema da deciso, tais quais: universal-particular; direito-fato; lei-caso etc.,
acabam por eclipsar o verdadeiro elemento basal que sustenta a experincia jurdica e que
emerge das configuraes culturais e morais que compem o horizonte de sentido da
comunidade poltica.
PALAVRAS-CHAVE: Deciso jurdica; Histria; Hermenutica; Histria dos Conceitos;
Metaforologia; Metodologia Jurdica; Epistemologia Jurdica.
10
ABSTRACT
These reflections have as object the judicial decision and intend to investigate the conditions
under which a court decides. That is, we intend to give an account here of what happens and
what is implicated when a legal issue is decided. It is intended to take the phenomenon of
judicial decision as an object of analysis to ask for what sustains it and it is presupposed on
the agent decider activity. We want to know if it is possible to affirm a basic fabric showing
how the concepts that are articulated and operationalized by the author of a legal decision may
make sense. These issues place in the foreground of the analysis, the problem of recovering
the historical sense and the theoretical possibilities that are involved in it. The answers to
these questions require the construction of theoretical tools that allow investigating the
element of the historicity of meaning. This research makes use of hermeneutics in the
twentieth century produced complemented by the element of epistemological history of
concepts and metaforology. Making use of these instruments, the research tries to point out
that the traditional approaches that incorporate traditional bipolarities to portray the decision
problem, such as: universal-particular; law-fact, statute-case etc., end up eclipsing the true
basal element that sustains the legal experience and that emerge from cultural and moral
settings that makes up the horizon of sense of political community.
KEYWORDS: Judicial Decision; History; Hermeneutics;
Metaforology; Legal Methodology; Legal Epistemology.
History
of
Concepts;
11
RESUMEN
Estas reflexiones tienen como objeto la decisin judicial y pretenden investigar las
condiciones en que un tribunal decide. Es decir, tenemos la intencin de dar cuenta de lo que
sucede y est implicado cuando una cuestin jurdica es decidida. Se tiene la intencin de
tomar el fenmeno de la decisin judicial como objeto de anlisis a preguntar por lo que
sostiene y por lo que es supuesto en la actividad del agente decisor. Queremos saber si es
posible afirmar un tejido bsico que muestra cmo los conceptos que se articulan y son
puestos en funcionamiento por el autor de una decisin judicial pueden producir sentido.
Estas cuestiones colocan en el primer plano del anlisis, el problema de la recuperacin del
sentido histrico y las posibilidades tericas que estn involucrados en ella. Las respuestas a
estas preguntas requieren la construccin de herramientas tericas que permiten investigar el
elemento de la historicidad del sentido. Esta investigacin hace uso de la hermenutica en el
siglo XX producida complementada por el elemento epistemolgico de la historia de los
conceptos y por la metaforologa para construir su marco terico de anlisis. Haciendo uso de
estos instrumentos, la investigacin trata de sealar que los enfoques que incorporan
bipolaridades tradicionales para representar el problema de decisin, tales como:. universalparticular; ley-hecho, ley-caso, etc, acaban eclipsando el verdadero elemento basal que
sostiene la experiencia jurdica y que surge de las configuraciones culturales y morales que
constituyen el horizonte de sentido de la comunidad poltica.
PALABRAS CLAVE: Decisin jurdica; Historia; Hermenutica; Historia de los conceptos;
Metaforologia; Metodologa Jurdica; Epistemologa Jurdica.
12
DE
ANDRADE, Procura da
13
SUMRIO
INTRODUO ......................................................................................................................15
CAPTULO I A necessidade da pergunta acerca dos problemas fundamentais da
deciso jurdica .......................................................................................................................39
1.1 Configuraes elementares acerca da deciso jurdica: o contexto dos estilos de vida
jurdicos que compem a tradio jurdica ocidental ...........................................................39
1.1.1 Estilo de vida romano-cannico: a deciso jurdica no contexto da bipolaridade
entre universal e singular..................................................................................................40
1.1.2 Estilo de vida do common Law................................................................................48
1.2 A inevitvel aproximao entre deciso jurdica e histria: entre o problema da histria
e a histria do problema........................................................................................................62
CAPTULO II O Problema da Histria ............................................................................78
2.1 A histria enquanto problema filosfico: o giro lingustico e a questo do fundamento
..............................................................................................................................................78
2.2 A hermenutica e a sua relao com o problema da histria .........................................85
2.2.1 O papel de Heidegger e da sua fenomenologia hermenutica.................................85
2.2.2 O Programa Gadameriano de uma Hermenutica Filosfica ..................................92
2.2.2.1 As principais diferenas entre a filosofia hermenutica de Heidegger e a
hermenutica filosfica de Gadamer ................................................................................94
2.2.2.2 Verdade e Mtodo e seu contexto: nem teoria geral da interpretao, nem nova
proposta metodolgica para as Cincias do Esprito ........................................................96
2.3 A histria dos conceitos (Begriffsgeschichte): a proposta de um quadro terico para se
pensar o movimento do tempo histrico.............................................................................105
2.3.1 Origens e estado atual dos estudos sobre a Histria dos Conceitos
(Begriffsgeschichte) ........................................................................................................105
2.3.2 A relao entre a Histria dos Conceitos (Begriffsgeschichte) e a metforologia
(Metaphorologie) de Hans Blumenberg .........................................................................113
2.3.3 A histria dos conceitos na obra de Reinhart Koselleck.......................................117
CAPTULO III A Histria do Problema.........................................................................129
3.1 Positivismo e Deciso: uma primeira aproximao .....................................................129
3.2 As diferentes manifestaes do positivismo e o modo com que cada uma delas lida com
o problema da deciso ........................................................................................................134
3.2.1 Positivismo legalista ..............................................................................................134
3.2.2 Positivismo normativista .......................................................................................136
3.2.2.1 Norma, Deciso e ordenamento no contexto do positivismo normativista ........137
3.2.2.2 A hierarquia normativa e Unidade do Ordenamento..........................................144
3.2.2.3 Ordenamento, sistema e deciso: o problema das antinomias............................148
3.2.2.4 O mito da completude do ordenamento: a questo das lacunas do ordenamento
........................................................................................................................................150
3.3 A Cincia Dogmtica do Direito: a deciso no contexto da teoria sobre o mtodo
jurdico................................................................................................................................155
3.3.1 Escola da Exegese .................................................................................................162
3.3.2 Escola Histrica.....................................................................................................165
3.3.3 Jurisprudncia dos Conceitos ................................................................................169
3.3.4 Jurisprudncia dos Interesses.................................................................................173
3.3.5 Jurisprudncia dos Valores....................................................................................178
3.3.5.1 Karl Larenz .........................................................................................................180
14
15
INTRODUO
Este trabalho trata da deciso judicial. Quer ele se aproximar de seus problemas
fundamentais tendo como intento oferecer uma resposta conhecida pergunta: como so
decididas as questes jurdicas? Na verdade, a invocao do como, no modo como a pergunta
aparece formulada, no capta com a fineza necessria aquilo que o objetivo central da tese.
At porque essa questo j fora respondida e devidamente trabalhada por outros autores.1
Melhor seria dizer que a proposta da pesquisa se resume a investigar as condies sob as
quais se assenta uma deciso judicial. Vale dizer, pretende-se aqui dar conta daquilo que
acontece e est implicado no momento em que uma questo jurdica decidida.
Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. So Paulo: Saraiva, 2011, passim.
16
17
histria e o seu consequente enfrentamento. certo que, em uma srie de autores como ser
demonstrado no decorrer deste trabalho essa questo aparece pressuposta, como uma
espcie de actus exercitus. O nosso objetivo aqui, contudo, alar esse vnculo a objeto
principal da investigao, alando-o condio de actus signatus. 2
Cf. STEIN, Ernildo. Pensar e Errar: Um ajuste com Heidegger. Iju: Uniju, 2011, p. 155. Explicando o
significado das expresses, Stein afirma que, para Heidegger, alm dos atos que so intencionados, existem os
atos que so atencionados. Os antigos falavam em actus exercitus (intentio obliqua), que um ato que
acompanha o actus signatus (intentio recta) do qual temos conscincia. (...) Gadamer, ao ouvir Heidegger
afirmar que a fenomenologia era capaz de trazer tona no apenas o universo intencionado, mas tambm o
universo atencionado, no qual nos movemos nos nossos atos quando nos relacionamos com pessoas, coisas,
objetos, viu abrir-se um horizonte novo para a filosofia. De se consigar que dessa dimenso atencionada que
retiramos a ideia de estruturas basaisdas decises jurdicas.
18
possibilidades projetadas pelo caso concreto judicializado e pelas hipteses abstratas previstas
nas estruturas jurdicas, deveria o julgador escolher aquela que melhor se adequasse a alguma
rgua criada pelo terico para legitimar o decidido. Uma escolha racional, pode-se dizer,
que pode estar habilitada por um procedimento especfico de legitimao, ou por uma
avaliao de meios e fins, e que determine qual a opo tima para dar soluo ao caso posto.
A constatao prvia que guia esta investigao a de que esse modelo de deciso
racional para o direito est esgotado. Simplesmente no apresenta um resultado satisfatrio
para o enfrentamento do principal problema que , justamente, a imprevisibilidade decisional.
E isso assim porque esse modelo tende a pensar o problema a partir de uma perspectiva
logocntrica, que exclui o problema da histria, da recuperao do sentido, de sua esfera de
preocupaes. Na verdade, opera-se um processo de destilao: exclui-se do problema da
deciso jurdica aquilo que poderia torn-lo irracional e fixa-se apenas naquilo que pode ser
racionalizvel. Assim, o problema do sentido, que um problema intimamente ligado
questo da histria, fica na melhor das hipteses relegado a um segundo plano.
19
20
Tal aproximao segue o rastro de duas pistas: a primeira retirada de uma intuio
de Hans-Georg Gadamer3 sobre a relao entre histria do direito e dogmtica jurdica algo
que aparece tambm, com diversa intencionalidade e desdobramento terico, em Emillio
Betti4; a segunda retirada do peclio comum; de um imaginrio difuso entre os juristas, que
tende a encarar a tarefa do juiz como uma atividade similar ou at mesmo equiparada do
historiador.
Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo II. Complementos e ndice. Petrpolis: Vozes, 2004, pp.129130.
4
Cf. BETTI, Emilio. Interpretao da Lei e dos Atos Jurdicos. So Paulo: Martins Fontes, 2007. Em especial os
captulos iniciais.
5
Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Mtodo. Salamanca: Sgueme, pp. 396 e segs.
21
22
23
objetivamente su valor posicional. El historiador tiene que realizar la misma reflexin que
debe guiar al jurista.7
Este trabalho, por sua vez, procura fazer o caminho de volta (do historiador para o
jurista; do problema da histria para o do direito). Com efeito, para poder reencontrar os fios
que ligam o problema da histria e da compreenso de seu sentido com o problema da deciso
jurdica, ser necessrio identificar os nexos originrios que forjam a relao entre histria e
direito. Isso para poder tornar visvel que a mediao entre o passado e o presente um
elemento essencial para a atividade do jurista e uma condio inescapvel para a deciso
judicial.
7
8
24
feita pelo ento presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Carlos Ayres Britto. Com
efeito, em uma das sesses do julgamento da Ao Penal n. 470, o ministro mencionou que a
atividade do juiz no momento de anlise do contexto probatrio que instrui uma ao
representa um ato de historiar o fato que d origem ao caso examinado.
em termos tericos, mas levado em imagens, histrias, lendas etc. (ii) a teoria frequentemente a propriedade de
uma pequena minoria, embora o interessante no imaginrio social que ele compartilhado por grandes grupos
de pessoas, se no por toda a sociedade. Isto conduz a uma terceira diferena: (iii) o imaginrio social aquele
entendimento comum que torna possvel as prticas comuns e um senso amplamente compartilhado de
legitimidade (TAYLOR, Charles. A Era Secular. So Leopoldo: Unisinos, 2010, p. 211).
9
BERMAN, Harold. Direito e Revoluo: A formao da tradio jurdica medieval. So Leopoldo: Unisinos,
2006, p. 190.
25
histria que nos permitem realizar uma descrio da cultura e das expectativas normativas que
compunham cada um desses quadros histricos.
Mas, de plano, cabe uma advertncia. Este trabalho no pretende afirmar, ao final,
que decidem melhor os juzes que conhecem histria. Em primeiro lugar, a anlise realizada
no coloca a lente sobre as questes intimamente ligadas subjetividade. No interessa, aqui,
a deciso do juiz enquanto indivduo, mas sim os contextos institucionais que emanam da
posio que ele ocupa. Nesse sentido, a histria no uma opo; condio de
possibilidade. Mesmo as decises ruins, tambm elas so o resultado de uma mediao entre
presente e passado. Tambm so frutos dessa confluncia entre direito e histria. A questo,
portanto, no conhecer a histria em sua totalidade para termos melhores julgamentos. A
finitude uma condio. Paradoxalmente, entretanto, justamente por sermos seres finitos
que a necessidade do sentido surge para ns como um destino. A grande questo : lanar luz
sobre esse elemento histrico pode criar condies para melhores justificaes do decido.
Em outras palavras, nestes termos, a questo da fundamentao fica melhor colocada.
HOBSBAWN, Eric. Interesting Times. A Twentieth-Century Life. Nova York: Pantheon Books, 2002. Em
especial, pp. 411 e segs.
26
potencial destrutivo jamais vivenciado em outros perodos; a grande depresso econmica que
praticamente levou falncia todo o sistema capitalista; o new deal; as democracias do
segundo ps-guerra; os movimentos pela efetivao dos direitos humanos, etc... todos
acontecimentos que levaram esse mesmo autor a nomear o sculo XX como A Era dos
Extremos.
No mbito das cincias humanas, ento, esse quadro assume uma proporo ainda
mais agigantada. Com efeito, so vrias as formas pelas quais se nomeia esse conflito entre
diversas posies tericas que competem, ao mesmo tempo, pelo ttulo de estatuto primrio
do conhecimento de cada uma das disciplinas que compem o universo da cultura: fala-se em
crise do fundamento11; poluio semntica12; e, at mesmo, em um relativismo
epistemolgico13. O campo jurdico um terreno frtil para isso. O sculo XX assistiu
11
Ver quanto a isso STEIN, Ernildo. A Caminho de uma Fundamentao Ps-Metafsica. Porto Alegre: Edipucrs,
1997. Nesse texto, afirma o autor que a crise pela qual passou a filosofia no final do sculo XIX e incio do
sculo XX gerou um processo de fragmentao do pensamento de modo que foi possvel a produo de vrios
modos de filosofar que competem concomitantemente pela soluo dos problemas filosficos. O livro citado
traz um modo interessante de colocar esse problema ao apresentar ao leitor dez modos possveis de se fazer
filosofia no sculo XX.
12
13
Cf. STEGMLLER, Wolfgang. A Filosofia Contempornea, Vol.I e II. So Paulo: EPU, 1977, passim.
Cf. DAGOSTINI, Franca. Analticos e Continentais. Traduo de Benno Dischinger. So Leopoldo: Editora
Unisinos, 2003, pp. 175 e segs.
27
Diante desse aparente caos terico, no interior do qual essas diversas posies
que podem at confluir para um consenso num determinado aspecto se apresentam de
maneira contraditria, o primeiro (e talvez o maior) esforo a ser empregado pelo pesquisador
passa pela construo de ferramentas que lhe possibilitem encontrar, dentro desse universo
complexo, algo que produza sentido.
14
Importante anotar que o termo Jurisprudncia aqui utilizado no sentido de Cincia Jurdica, sem uma
especfica conotao tribunalcia ou qualquer significado similar. Na verdade, Jurisprudncia dos Conceitos,
Jurisprudncia dos Interesses e Jurisprudncia dos Valores so expresses que traduzem um modo especfico de
se relacionar com o conhecimento do direito e apresentar solues para os casos judiciais. Desse modo, no
decorrer do texto, utilizaremos a grafia da expresso com J para nos referirmos Jurisprudncia enquanto
Cincia jurdica, ao passo que jurisprudncia com j utilizamos para nos referirmos ao termo em seu sentido
corrente, ligado s decises seqenciadas dos tribunais.
28
Com efeito, a construo desse quadro referencial terico realizada por Puntel a
partir de Rudolf Carnap, que introduziu no mbito da filosofia analtica o conceito de
linguistic framework, ou, quadro referencial lingstico.16 Todavia, Puntel vai alm de
Carnap e oferece um conceito que ao mesmo tempo mais abrangente e mais preciso do que
aquele com o qual operava este ltimo. Como ressaltado em nota, para Carnap o quadro
referencial lingustico s era acionado no momento em que algum queria nomear uma nova
espcie de entidades.
Puntel articula o conceito da seguinte forma:
Neste livro, o termo quadro referencial empregado em um sentido
terico abrangente, a saber, no sentido de quadro referencial terico.
O quadro referencial como quadro terico designa a totalidade de
todos aqueles quadros referenciais especficos (pensa-se
principalmente no quadro referencial lingustico, no lgico, no
15
Cf. PUNTEL, Lorenz. Estrutura e Ser. Um quadro referencial terico para um filosofia sistemtica. So
Leopoldo: Unisinos, 2008, p. 27 e segs.. Na esteira do autor leia-se o seguinte: a determinao mnimal mas
fundamental de filosofia, como entendida neste livro, diz que filosofia uma atividade terica, isto , uma
atividade que visa o desenvolvimento e a exposio de teorias. Para que o desenvolvimento e a exposio de
uma teoria seja factvel., devem ser reconhecidos e cumpridos muitos requisitos especficos. A totalidade dos
fatores que preenchem esses requisitos pode ser chamada de quadro referencial, mais precisamente quadro
referencial terico.
16
Cf. CARNAP, Rudolf. Empiricism, Semantics, and Ontology. Texto disponvel em:
http://www.philosophy.ru/library/carnap/02_eng.html>, acesso em 29.10.2010. Dentro das pretenes da
filosofia de Carnap, eis uma amostra do significado do conceito: If someone wishes to speak in his language
about a new kind of entities, he has to introduce a system of new ways of speaking, subject to new rules; we
shall call this procedure the construction of a linguistic framework for the new entities in question [Se algum
deseja falar em sua linguagem sobre uma nova espcie de entidades, deve introduzir um sistema de novos modos
de falar, sujeito a novas normas; daremos a esse procedimento o nome de construo de um quadro referencial
lingustico para as novas entidades em questo em traduo livre].
29
Podemos seguir os passos de Trcio Sampaio Ferraz Jr. para mostrar o modo
como se formou a tradicional dogmtica jurdica. Primeiramente, o autor mostra-nos que a
dogmtica jurdica, nos moldes como hoje a conhecemos, produto de um processo histrico
que s chega a cristalizar-se nos albores do sculo XIX, como resultado da aglutinao de trs
elementos centrais: a) a jurisprudncia dos romanos; b) a dogmaticidade dos glosadores
medievais; e c) o racionalismo sistemtico-iluminista dos sculos XVII e XVIII18. No contexto
17
18
PUNTEL, Lorenz. Estrutura e Ser. Um quadro referencial terico para um filosofia sistemtica, cit., p. 30.
Conferir, para tanto, FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio. Funo social da dogmtica jurdica. So Paulo: Max
Limonad, 1998. Importante anotar que, no que tange jurisprudncia romana, no se pode entend-la no modo
como articulamos o termo jurisprudncia no contexto atual. Para os romanos, a jurisprudncia era uma
confirmao, um fundamento do certo e do justo. Tratava-se da realizao concreta da prudncia grega, que
entre os gregos permanecia retida como uma simples promessa de orientao pela reta razo para a ao. Na
Idade Mdia, a teoria jurdica torna-se uma disciplina universitria, na qual o ensino era dominado por textos que
gozavam de autoridade. Por certo, permanece presente o pensamento prudencial da jurisprudncia romana, mas
acontece uma reformulao no seu carter: aquilo que os romanos chamavam de casos problemticos so
transformados em casos paradgimticos pelos medievais, casos estes que deveriam expressar uma harmonia
interna. Dito de outro modo, a idia de cria presente nos romanos substituda pela idia de escola dos
medievais. J na modernidade, a autoridade j identificada nos textos medievais passar por uma modificao
decisiva, na medida em que a harmonia revindicada dever se adequar ordem de um sistema abstratamente
considerado segundo os padres do pensamento matemtico. Assim, a tarefa da dogmtica jurdica ser
transformada radicalmente, na medida em que, alm da simples tarefa de exegese dos textos, ser-lhe- agregada
a tarefa de posicionar os resultados de sua produo no contexto de um sistema. Idem, ibidem, p. 25 e segs. Cabe
aqui tambm uma referncia ao modo como os medievais procediam ao estudo dos textos romanos para que se
tenha, com maior clareza, a influncia dos glosadores e comentadores para a conformao da dogmtica jurdica.
Nesse sentido, Harold Berman assevera: o curriculum de uma Faculdade de Direito do sculo XII consistia, em
primeiro lugar, da leitura de textos do Digesto. (...) Como o texto era muito difcil, ele tinha que ser explicado.
Por isso, aps ler o texto, o professor glosava-o , isto , interpretava-o, palavra por palavra, linha por linha
(Glosa em grego significa tanto lngua, ou linguagem, como palavra incomum). As glosas, ditadas pelo
professor, eram copiadas pelos estudantes entre as linhas do texto; quando se tornavam mais longas, espalhavamse pelas margens. Logo, as glosas adquiriram autoridade quase igual do prprio texto glosado (Cf. BERMAN,
Harold. Direito e Revoluo... cit., p. 166). interessante notar que nesse contexto que se forma a chamada
doutrina. Por certo que, com o surgimento da prensa no contexto da revoluo provocada por Gutemberg, essa
tcnica de glosar e comentar os textos romanos foi substancialmente transformada a partir da produo em larga
escala de livros jurdicos. importante tambm lembrar que, no ambiente da Codificao, o carter proto-
30
do sculo XIX, a dogmtica jurdica se organizar a partir de crticas lanadas ao mtodo dos
antigos glosadores, que basicamente ficaro restritas ao problema da falta de sistematicidade
dos estudos medievais. Ao mesmo tempo, seu trabalho ser construdo em torno dos cdigos
dos oitocentos que, por s s, j expressavam o ideal de sistematicidade , de modo que ela
passa a receber um carter lgico-demonstrativo de um sistema dedutivamente fechado, cuja
maior expresso ser a chamada jurisprudncia dos conceitos. Assim, podemos identificar,
como traos marcantes deste perodo de sedimentao da dogmtica jurdica, a primazia da lei
e o carter sistemtico do direito.
teolgico atribudo aos textos romanos ser transferido para os Cdigos Civis, cujos marcos centrais so o Code
Napoleon de 1804 e o BGB Alemo de 1900. A partir desse novo espao de experincia (Koselleck) ser
construdo um novo horizonte de expectativa (Koselleck): o objeto da glosa ser a obra do legislador racional,
impressa na forma de cdigo!
31
Assim, podemos dizer que Verdade e Mtodo, a obra mxima do filsofo, antes
de qualquer coisa, elaborada contendo em seu ncleo uma inteno filosfica: com ele
Gadamer no quer apresentar um conjunto de cnones para a interpretao de textos, nem
tampouco construir uma nova fundamentao para as assim chamadas cincias do esprito.
Pelo contrrio, como o prprio filsofo reconhece no Prefcio segunda edio: interessa
para ele perguntar como possvel a compreenso. No desenrolar dessa pergunta, Gadamer
no se interessa por aquilo que devemos ou queremos fazer nesse momento compreensivo,
mas sim por aquilo que, para alm do nosso querer e dever, acontece quando
compreendemos. Nessa medida, a investigao realizada em Verdade e Mtodo pretende
rastrear e mostrar aquilo que comum a toda maneira de compreender, no estando em jogo o
que cada campo especfico das chamadas disciplinas hermenuticas, ou seja, o Direito, a
Teologia e a Literatura, produz em termos de procedimentos especficos para seu
32
desenvolvimento terico e tcnico, mas sim aquilo que, independentemente do campo em que
se situe, acontece quando compreendemos.
33
passam a ser aceitas como naturais. Precisamos pensar uma teoria da histria que nos garanta
o possvel enquanto possvel e no simplesmente como uma realidade que pode vir a
acontecer.
Essa possibilidade terica vem-nos de Reinhart Koselleck e da construo de uma
semntica dos tempos histricos. Segundo Koselleck, o que est no centro das discusses
tericas sobre a histria no so questes referentes ao modo como os fatos efetivamente
aconteceram, mas sim como os sujeitos histricos perceberam em determinadas pocas
algo como um tempo histrico. Esse tempo histrico indica que h um conjunto de aes
humanas que acontecem no a partir das determinaes temporais compreendidas de maneira
fsica ou astronmica (tempo da natureza), mas de acordo com certas esferas sociais
saturadas.
A tese de Koselleck que a modernidade alterou radicalmente o espao de
experincia produzindo um tipo de histria que conduzia a um nico e delimitado horizonte
de expectativa (trata-se do futuro pensado a partir do passado, da porque futuro passado).
Isto se d do seguinte modo: No contexto da baixa idade mdia entre os sculos XVI e XVII
o modo como o tempo histrico se manifestava poderia ser apresentado a partir da seguinte
mxima: historie magistra vitae (a histria a mestra/professora da vida). Ou seja, o espao
de experincia era composto de tal forma que desde os polticos maquiavlicos at os
letrados cristos pensava-se a histria a partir de seu carter pedaggico, isto , os erros do
passado devem ser evitados no futuro, e os acertos, repetidos. O horizonte de expectativas,
por outro lado, permanecia relativamente aberto na medida em que esse futuro no era
absolutamente determinado pelas lies da histria. Dito de outro modo, o futuro no o
lugar do historiador, ou do filsofo da poltica. O futuro o lugar dos profetas e da
escatologia catlica. Isso significa que o presente pensado a partir desta dupla tenso: de um
34
lado o passado que condiciona a vida a partir de seu carter pedaggico; de outro, o futuro
que se mantm obscuro pelo temor/certeza da chegada do juzo final. Ocorre que os profetas
erraram, sucessivamente, em suas previses acerca do fim total. Numa poca de guerras, o
incio de cada conflito era tido como um preldio do juzo final. Apesar disso o mundo no
acabava. Pelo contrrio, a engenharia do Estado Absolutista conseguiu por fim s guerras
civis religiosas. Posteriormente, o surgimento do Estado liberal imps limites ao poder
poltico, assegurando as regras de livre mercado. Campo extremamente propcio para
fertilizao da idia de progresso.
As metforas de que fala Blumenberg devem ser pensadas a partir de dois modos
distintos de manifestao: podem apresentar-se como metforas rudimentares ou como
metforas absolutas.
As
metforas
absolutas
referem-se
ao
mbito
do
indizvel,
do
35
36
Com esse jogo queremos destacar o fato de que, ao mesmo tempo em que
podemos observar um problema na histria do direito (a no tematizao explcita do vnculo
que existe entre deciso e histria), tambm somos atingidos pelo problema epistemolgico
que envolve a histria e todas as suas consequncias: como recuperamos o sentido histrico?
A resposta : a partir da nossa prpria historicidade. Todavia, essa questo reivindica a
construo de instrumentos e ferramentas tericas que nos permitam um melhor acesso ao
sentido que buscamos.
37
Por fim, no quarto e ltimo captulo, nossa inteno apontar mais diretamente
para aquilo que propriamente a tese-da-tese, ou seja, a determinao de que a deciso no
parte de um lugar qualquer ou de qualquer lugar. Na verdade ela se coloca a partir de uma
abertura que s se d porque est inserida em uma cultura jurdica que produz,
necessariamente, configuraes morais.
38
Para tornar ainda mais claro o que se pretende mostrar, procuramos aclarar a
questo a partir de um dilogo com a obra recente de Luigi Ferrajoli. Ao final, conclumos
que essas configuraes morais que preenchem as estruturas basais da deciso jurdica no
so obstculos a uma melhor colocao dos problemas decisrios no direito mas, ao contrrio,
representam um fator positivo que impulsiona as decises jurdicas em direo a respostas
constitucionalmente adequadas.
39
1.1 Configuraes elementares acerca da deciso jurdica: o contexto dos estilos de vida
jurdicos que compem a tradio jurdica ocidental
19
No que tange ao sentido projetado pela expresso tradio jurdica ocidental seguimos, em primeiro lugar, a
Harold Berman. Cf. BERMAN, Harold. Direito e Revoluo... cit., passim.
20
A expresso estilo de vida de Erich Rothacker e compe o quadro epistemolgico de sua Antropologia
Cultural. O autor explora o mesmo conceito em outro trabalho de inspirao similar intitulado Filosofia da
Histria (Cf. ROTHACKER, Erich. Problemas de Antropologa Cultural. Cidade do Mxico: Fondo de Cultura
Econmica, 1957, pp. 126 e segs.; Cf. ROTHACKER, Erich. Filosofa de la Historia. Madrid: Pegaso, 1951,
captulo II, passim). Os autores comparativistas, de uma maneira geral, referem-se ao common Law e ao direito
romano-cannico como famlias (DAVID, Ren. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporneo. So Paulo:
Martins Fontes, 2002, passim), tradies (MERYMANN, John Henry. PREZ-PERDOMO, Rogelio. The Civil Law
Tradition. 3 ed. Stanford: Stanford University Press, 2007, passim) ou sistemas (LOSANO, Mrio. Os Grandes
Sistemas Jurdicos. So Paulo: Martins Fontes, 2006, passim. ). Optamos, entretanto, pela expresso estilo de
vida por ser ela hermeneuticamente mais adequada. Com efeito, o termo tradies no nos serve porque, como
dito anteriormente, a palavra tradio aqui utilizada para se referir ao elemento comum que une todo o
pensamento jurdico ocidental. J a palavra famlia tambm no nos parece adequada em face de ressaltar demais
os elementos comuns e abstratos que compe cada um desses movimento jurdico-culturais, suprimindo-lhes as
diferenas que lhes so constitutivas. O termo sistema, por sua vez, seria inadequado uma vez que denota uma
abordagem marcadamente idealista, que preterida pela presente pesquisa. Na verdade, estamos aqui mais
interessados em investigar as condies concretas que permitem, mesmo com todas as diferenas culturais que
envolvem os distintos povos que compem esses estilos de vida jurdicos, a ocorrncia de fluxos migratrios
entre essas culturas. Ou seja, como as mais distintas vivncias acabam por se interpenetrar produzindo um
40
quadro conceitual comum. A expresso estilos de vida, de Rothacker, se coloca no espao aberto pelas pesquisas
diltheynianas sobre a histria. Tem uma profunda relao com o conceito de vivncia, embora, como veremos
oportunamente, seja trabalhado pelo autor de um modo distinto. Portanto, aponta ela para uma abertura mais
clara da questo, no interior da qual a investigao pode produzir melhores resultados.
21
A tenso entre o universal e o singular que existe no mbito da deciso jurdica apresentada de maneiras
diversas por diversos autores. Particularmente interessante a exposio que faz Jan Schapp (Problemas
Fundamentais da Metodologia Jurdica. Porto Alegre: Fabris, 1985, pp. 13 e segs.)
41
Veja-se, nesse sentido, a discusso realizada por Arthur Kaufmann em seu Analogia e Natureza da Coisa no
interior do qual o autor prope uma espcie de realismo moderado que procura equilibrar as posies extremas
entre o universal e o particular. Para Kaufmann os juristas dos conceitos (Jurisprudncia dos
conceitos/Pandectistica) representariam um modo de pensar a questo em que se d total primazia ao universal
como se este possusse existncia autnoma. Por outro lado, os adeptos do direito livre ou dos movimentos
teleolgicos, tais quais o finalismo de Ihering e a Jurisprudncia dos interesses de P. Heck, seriam seguidores de
um nominalismo extremo para o qual s existe o particular, os universais estariam apenas na inteligncia.
Assim, para sair desse confronto de extremos que Kaufmann retrata segundo a terminologia da controvrsia
dos universais que teve lugar no medievo entre os realistas escolsticos e os nominalistas dever-se-ia postular
uma posio mediadora, que temperasse em doses equilibradas os argumentos extremados. Assim, recorre ele ao
conceito de analogia entis desenvolvido pela filosofia tomista para postular uma correspondncia entre ser e
dever-ser, entre o universal e o singular (Cf. KAUFMANN, Arthur. Analoga e Naturaleza de la Cosa. Santiago:
Editorial Jurdica de Chile, 1956, passim).
42
modernidade para essa questo, certamente teramos como ponto de partida a questo da
subsuno. Melhor seria dizer, talvez, do dogma da subsuno.
Como j mencionado, essa equiparao entre direito (jus) e lei (lex) deve-se a
uma srie de elementos culturais que emergiram em um determinado tempo histrico. A
principal consequncia poltica da manifestao desse fenmeno que ela abre espao para a
excluso do problema da justia no campo do direito. Um desses elementos, embora no seja
o nico, pode ser pensado a partir de alguns argumentos de rousseaunianos que causariam
impacto nas concepes desse movimento. De fato, conhecida a afirmao do genebrino
presente em seu Do Contrato Social de que a ideia de uma lei injusta seria contraditria uma
vez que no seria possvel que o povo que fez a lei pudesse ser injusto consigo mesmo.23
23
Um necessrio comentrio quase biogrfico a respeito de Rousseau, pode aclarar melhor aquilo que se quis
afirmar no texto. Como cedio, durante a revoluo francesa, Rousseau chegou a ser alado a patrono da
revoluo. Influenciou, tambm, em alguma medida, as ideias polticas que foram articuladas e afirmadas no
decorrer da revoluo americana. Sua obra, nesse contexto, associada defesa radicalizada da ideia de que o
titular da soberania no o Prncipe, mas, sim, o povo, construindo as bases para a concepo de repblica que
ser articulada pelo direito poltico moderno (Cf. GOYARD-FABRE, Simone. Os Princpios Filosficos do Direito
Poltico Moderno. So Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 179 e segs.) Por outro lado, os contrarrevolucionrios e
43
44
45
24
Tambm Mario Losano, no segundo volume de seu Sistema e Estrutura do Direito, indica a vinculao de
Blow a esses movimentos antissistemticos que polularam no final do sculo XIX e incio do sculo XX.
Losano aponta, inclusive, para uma possvel inspirao de Blow pela leitura do opsculo de Hermann
46
Com efeito, a obra de Blow pode ser considerada a mais remota manifestao
crtica contra o dogma da subsuno; um primeiro, e ainda tmido, ataque ao conceitualismo
da pandectstica. Por outro lado, no ambiente do direito francs, Francois Geny escreve, seno
a primeira, certamente a mais famosa, crtica metodolgica ao modelo de deciso estabelecido
pelo exegetismo. Geny atacava exatamente esse aspecto predominantemente lgico-formal
que o paradigma do dogma da subsuno carregava consigo. Sua grande inteno, como
sabido, era oferecer uma alternativa metodolgica a esse paradigma dominante e que
incorporasse um tipo de mtodo cientfico mais adequado para o estudo do direito. No caso, o
mtodo adequado teria inspiraes sociolgicas ao invs de lgico-filosficas e teria suas
atenes voltadas para o fato jurdico em detrimento do entendimento meramente conceitual.
Kantorowicz (Der Kampf um die Rechtswissenschaft ), publicado, na verdade, sob o pseudnimo Gnaeus Flavius
que inaugurou o chamado Movimento do Direito Livre. Interessante que Losano traz colao um
depoimento de Gustav Radbruch poca tambm vinculado ao Direito Livre no qual se afirma que a opo
pelo pseudnimo que levou ao relativo sucesso do manifesto, pois conferiu ao texto de um jovem pesquisador a
aparncia de um escritor experiente, com autoridade para tratar dos temas ali abordados. Nos termos do
depoimento de Radbruch, foi esse fator, provavelmente, que possibilitou a leitura e aderncia de juristas de
renomado prestgio como o caso de Franz Klein e do prprio Blow (Cf. Losano, Mario G. Sistema e Estrutura
no Direito. Vol. II. So Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 153/154).
47
ressaltar, desde logo, que a controvrsia das lacunas e a correlata questo da criao
jurisprudencial do direito mais uma consequncia do que, propriamente, inteno primordial
do referido movimento. Na verdade, os esforos originrios desse movimento esto
vinculados a uma pretenso que poderamos mencionar, com algumas ressalvas, como
epistemolgica: h uma reivindicao de correo quanto ao objeto da cincia jurdica e,
em consequncia, de seu aparato metodolgico. No caso, busca-se o deslocamento do objeto
da questo conceitual pura em direo aos fatos sociais, vale dizer, o objeto de estudo do
jurista no seriam conceitos estabelecidos pela histria ou por alguma legislao qualquer,
mas, sim, os prprios fatos sociais. Mais do que os conceitos, a sociedade que interessa ao
direito. De outra banda, a alterao do objeto implicava a correlata superao do mtodo
predominante de deciso: o paradigma da subsuno. No caso, prope-se uma nfase mais
indutiva e menos dedutiva no processo de deciso das questes jurdicas.
48
Por certo, essa uma aproximao muito precria a respeito do modo como o
estilo de vida do common Law lida com a questo da deciso judicial. Portanto, para uma
melhor colocao da questo a partir daquilo que esta investigao persegue, faz-se necessrio
25
Cf. POSNER, Richard. A Problemtica da Teoria Moral e Jurdica. Trad. Marcelo Brando Cipolla. So Paulo:
Martins Fontes, 2012, passim.
26
Cf. ESSER, Josef. Principio y Norma en la Elaboracin Jurisprudencial del Derecho Privado. Traduo de
Eduardo Valent Fiol. Barcelona: Bosch, 1961.
49
um adentramento mais rigoroso nos contextos histricos que conformam esse estilo de vida
jurdico.27
Para anlise mais rigorosa no que se refere diferenciao entre o civil law e
common law, faz-se necessria anlise da formao do direito escrito e do direito
consuetudinrio originria da recepo do direito romano.
O segundo e mais decisivo consistia na prpria vontade dos reis franceses que
sabiam que o direito romano seria instrumento imprescindvel para a dominao de
27
A discusso aqui posta aparece tratada de forma similar, porm com diversa intencionalidade, no livro de
TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. ABBOUD, Georges. CARNIO, Henrique Garbelini. Introduo Teoria e Filosofia
do Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, Cap. 8, p. 214 et seq.
28
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, Madrid: Tecnos, 1996, Cap. X, n. 1, pp.
165/167.
Sobre o tema, ver: CAENEGEM, R. C. Van. Uma introduo histrica ao direito privado, So Paulo: Martins
Fontes, 2000, n. III, pp. 43/160.
50
29
Corroborando a importncia do direito romano para o desenvolvimento do common law, ver: FRANK, Jerome. La
influencia del Derecho Europeo Continental en El common law, Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1957, pp.
15/16.
30
31
51
32
DAVID, Ren e JAUFFRET-SPINOSI, Camile. Les grans systmes de droi contemporains, 9. ed., Paris: Prcis,
Dalloz, 1988, p. 350 et seq.
33
GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World: sustainable diversity in law, 3. ed., New York: Oxford
University Press, 2007, p. 234.
Nesse ponto importante destacar, conforme j citamos, que Cannata tambm ressalta a utilizao do direito
romano como instrumento de poder, cf. CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea,..
cit., p. 167.
52
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIII, n. I.3, pp. 211/212.
Em sentido prximo, Patrick Glenn enfatiza que a existncia de uma jurisdio leal Coroa cujo intuito era
assegurar a prevalncia da kings peace para diferentes partes do reino constitui trao marcante que individualiza
sobremaneira o common law ingls. GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World: sustainable diversity in
law, cit., n. 7, p. 226.
35
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIII, n. I.3, p. 212.
36
GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World: sustainable diversity in law, cit., n. 7, p. 228.
Interessante notar que o sistema dos writs que verdadeiramente individualiza o common law ingls dos demais
sistemas, uma vez que, na origem a atuao do juiz ingls (judge) aproximava-se sobre maneira da atividade do
pretor romano, apesar da profissionalizao dos judges, ambos atuavam na instruo e conduo do processo
relegando a terceiros (particulares) a soluo da controvrsia. Os particulares seriam o iudex romano e o jri
ingles. GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World: sustainable diversity in law, cit., n. 7, pp. 227/228 e p.
230.
37
GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World: sustainable diversity in law, cit., n. 7, p. 230.
53
litgios entre seus tenants in chief (feudatrios que haviam recebido a investidura diretamente
do rei); 2) na qualidade de rei da Inglaterra, era competente ainda para julgar os placita
coronae, ou seja, os litgios nos quais a Coroa estava diretamente interessada, e.g., os litgios
que perturbassem a paz do rei (Kings peace); 3) por ocupar o cume da pirmide feudal, tinha
poder sobre os demais tribunais inferiores, isso porque aquele que no tivesse conseguido
fazer valer seu direito perante seu senhor (a quem estava diretamente subordinado), caberialhe apelar ao rei.38
38
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIII, n. II.5, p. 216.
39
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIII, n. III.11, p. 225.
Sobre a influncia da equity no civil law, conferir: FRANK, Jerome. La influencia del Derecho Europeo
Continental en El common law, cit., pp. 11/12 e pp. 21/25.
54
Nesse sentido, Jerome Frank pontua que o common law nunca seria o que
hoje se no tivesse existido o Tribunal da Chancelaria (equity). Isso porque, graas equity,
coexistiram duas jurisdies distintas e opostas no mesmo ordenamento, algo que no poderia
ser imaginado por um jurista latino ou germnico. A importncia da equity foi tamanha que
Jerome Frank ressalta que apenas seis ou sete sculos aps ela que o continente conheceu
uma jurisdio fundada na equidade e boa-f.41
40
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIII, n. III.11, p. 226.
Ver ainda: GORDLEY, James. Common law v. civil law: una distinzione che va scomparendo?, in Scritti in onore
di Rodolfo Sacco: la comparazione giuridica alle soglie del 3 millenio, t. I, Milano: Giuffr Editore, 1994, n. 2,
p. 562.
41
Jerome FRANK. La influencia del Derecho Europeo Continental en El common law, Barcelona: Bosch Casa
Editorial, 1957, pp. 23/24.
42
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIII, n. IV.12, p. 228.
O Judicature Act entrou em vigor em 1875, tendo sido substitudo em 1925 pela Supreme Court of Judicature
(consolidation) Act de 1925, que sofreu ainda algumas modificaes por meio dos Administration of Justice Acts
de 1928 e 1932.
Em sua origem a High Court of Justice continha cinco divises que conservavam o nome dos antigos tribunais.
Trata-se da Queens Bench Division, Chancery Division, Common Pleas Division, Exchequer Division e, por
55
ltimo, Probate, Divorce and Admiralty Division. Em 1880, as trs Common Law Division (Queens Bench,
Common Pleas, Exchequer) foram reunidas na Queens Bench Division. Atualmente, as trs divises da High
Court so denominadas Queens Bench Division, Chancery Division e Family Division.
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIII, n. IV.12, p. 228.
43
44
GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World: sustainable diversity in law, cit., n. 7, p. 243.
Por exemplo, o prprio Monstesquieu ressalta ter extrado sua percepo acerca da diviso de poderes a partir
da constituio inglesa. Do mesmo modo, os prticos ingleses que trabalhavam perante o trinal da equity,
eclesisticos, e o tribunal de almirantazgo, formaram uma corporao (Doctors Commons), que funcionou do
final do sculo XV at a primeira metade do sculo XIX. Esses prticos eram denominados civilians em
oposio aos common lawyers, que trabalhavam perante os tribunais do common law propriamente dito. Os
civilians ingleses conheciam profundamente o direito continental e, juntamente com os juristas escoceses, foram
os mediadores entre ele e o direito ingles. CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea,
cit., Cap. XIII, n. IV.16, p. 236.
56
a casos anlogos. Por exemplo, em matria de direito contratual, so numerosas as regras que
compem o direito ingls, cuja inspirao romanista.45
45
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIII, n. IV.16, p. 237.
57
utilizaremos da obra de Harold Berman e da comparao que ele faz entre o sistema francs e
o ingls.46
De modo geral, Harold Berman afirma que o direito francs (civil law)
diferenciou-se do ingls (common law) no fim do sculo XIII e no sculo XIV, aps o
fortalecimento do Parlamento de Paris, e do tribunal ingls em Londres. Aps um sculo, o
direito francs passou a basear-se no procedimento por escrito, e o ingls na oralidade. A
soluo dos casos era destinada aos juzes profissionais no caso do civil Law; j no ingls, em
juristas e justias de paz leigos. O processo ingls fundamentava-se na acusao e negao
pelas partes oponentes, com a soluo da controvrsia sendo de competncia do jri; o
francs, por sua vez, lanava mo do interrogatrio judicial das partes e das testemunhas sob
juramento. No que se refere ao direito material, o direito francs mais sistemtico,
romanizado e codificado que o ingls, mais particularista, prtico e orientado para resoluo
dos casos. Por consequncia, o direito francs inclua os conceitos de obrigaes civis,
contratos, delito, propriedade e direito pblico.47
46
Para uma anlise sobre o tema, conferir: GORDLEY, James. Common law v. civil law: una distinzione che va
scomparendo? In: Scritti in onore di Rodolfo Sacco: la comparazione giuridica alle soglie del 3 millenio, t. I,
Milano: Giuffr Editore, 1994, p. 561 et seq.
47
BERMAN, Harold J. Law and Revolution: the formation of the western legal tradition, v. 1, London: Harvard
University Press, 1983, n. 13, pp. 477/478.
58
48
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIV, n. I, p. 238.
49
GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World: sustainable diversity in law, cit., n. 7, p. 244.
50
GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World: sustainable diversity in law, cit., n. 7, p. 244.
51
CAENEGEM, R. C. Van. Legal History. A European perspective, London: Hambledon Press, 1991, n. 7, p. 170.
59
Nessa perspectiva, qualquer tentativa de legislar/codificar o direito noescrito ingls era vista como uma forma de descartar uma das maiores vantagens que os
ingleses, historicamente, usufruam em seu sistema, que era justamente a aptido de possuir
aplicao flexvel.54 Ou seja, por no possuiam suas regras jurdicas essencialmente
codificadas, os ingleses consideravam que o seu sistema jurdico estava mais qualificado para
se adaptar s novas realidades histricas e sociais.
52
GLENN, H. Patrick. Legal Traditions of the World: sustainable diversity in law, cit., n. 7, pp. 244/245.
Sobre a questo, ver: CAENEGEM, R. C. Van. Legal History. A European perspective, cit., n. 7, pp. 171/174.
53
54
60
Alm da posio ocupada pela legislao em cada um dos sistemas, outro fator
diferenciador a ser apontado o modelo de aplicao do direito de cada um desses sistemas,
case law vs. code law.
55
Cf. OVALLE FAVELA, Jos. Estudios de Derecho Procesal, Mxico: Universidad Autnoma de Mxico, 1981,
n. IV, p. 130.
56
FRANK, Jerome. La influencia del Derecho Europeo Continental en El common law, cit., pp. 19/20.
57
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIV, n. I, p. 238.
61
58
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIV, n. I, p. 239.
59
Para exame da influncia promovida pelo common law nas demais tradies ver: H. Patrick GLENN. Legal
Traditions of the World: sustainable diversity in law, cit., n. 7, p. 248 et seq.
60
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIV, n. I, p. 239.
62
propriedade que apresentado pelo direito romano sob uma perspectiva individualizada, vis
este desconhecido pelos juristas do common law ingls.61
61
CANNATA, Carlo Augusto. Historia de La Ciencia Juridica Europea, cit., Cap. XIV, n. I, p. 239.
63
filosofia poltica. Com efeito, autores como Hugo Grotius e Burlamaqui que escreveram
grandes tratados de temas ligados ao direito pblico na poca enraizavam suas obras no
espao de experincia aberto pelas teorias jusnaturalistas da modernidade. Outros autores que
igualmente produziram uma srie de textos sobre a mesma temtica no eram, propriamente,
juristas. Eram eruditos letrados, telogos ou filsofos. Nesse tempo, h quase que uma
identificao do direito pblico com os temas do jusnaturalismo moderno, que se colocava na
condio de uma espcie de herdeiro daquilo que era conhecido, ao tempo do Imprio
Romano, como jus gentium.
64
pensadas tendo como eixo gravitacional os problemas exarados das relaes jurdicas de
direito privado. Manuais influentes, como o caso do de Karl Larenz embora sejam citados
com frequncia por alguns constitucionalistas brasileiros so inteiramente dedicados aos
problemas de direito privado.
Para esclarecer melhor essa questo, qual seja, a centralidade que o direito
administrativo ocupa no contexto dessa formao da cincia do direito pblico, importante
elucidarmos de forma mais especfica o sentido que Fioravanti constri para o estatalismo.
No que tange relao Estado-Indivduo, ou Estado-Sociedade, Fioravanti fala
em trs modelos de fundamentao terica das liberdades (direitos fundamentais de primeira
dimenso):
65
Em primeiro lugar preciso destacar que tambm o modelo individualistarevolucionrio se reveste de um certo carter estatalista na medida em que a fundamentao
63
Cf. FIORAVANTI, Maurizio. Los Derechos Fundamentales. Apuntes de historia de las Constituciones. 4 ed.
Madrid: Trotta, 2003, pp. 42-43.
66
das liberdades se encontra dada a partir de Declaraes estatais que reconhecem os direitos
dos cidados existentes antes da formao do Estado. Como afirma Fioravanti, o modelo
estatalista se difere do individualista porque neste, ao contrrio daquele, se presume a
existncia da sociedade civil dos indivduos como anterior ao Estado. Mas o elemento estado
e o sentimento de descontinuidade histrica que tambm se manifesta no modelo estatalista
se afigura presente j neste primeiro perodo ps-revoluo. interessante notar como que,
historicamente, o modelo estatalista possibilitado por aquilo que ele mesmo pretende
superar. Com efeito, as principais estruturas estatalistas j estavam presentes na forma de
fundamentar as liberdades do individualismo revolucionrio. H apenas uma mudana de
rota com a radicalizao do papel que o direito posto pelo Estado exerce em relao aos
indivduos. Neste ponto, Castanheira Neves extremamente perspicaz ao demonstrar a intima
relao que o iluminismo racionalista possui com o positivismo jurdico que se forma
exatamente no ambiente de estruturao do Estado de Direito do sculo XIX64.
Para pontuar essa primeira diferena que estamos procurando afirmar, podemos
dizer que, se no modelo individualista, a fundamentao das liberdades se dava atravs de
uma situao pr-estatal que justificava o reconhecimento pelo Estado de direitos inalienveis
do indivduo; no modelo estatalista o fato da prpria positivao da lei que far as vezes de
fundamento; ou seja, tecnicamente certo dizer que, no interior do modelo estatalista s h
um direito: o de ser tratado conforme as leis postas pelo Estado.
64
Cf. CASTANHEIRA NEVES, Antnio. Curso de Introduo Ao Estudo do Direito. Coimbra: Sebenta, 1976, Parte
II.
67
65
Cf. FIORAVANTI, Los Derechos Fundamentales. Apuntes de historia de las Constituciones, p. 47.
66
68
sabido que a teoria de Friedrich Mller, que nos legou a forma mais bem
acabada de diferenciao entre texto da norma e norma, se prope como ps-positivista:
supera o conceito de norma do positivismo jurdico e d resposta a um problema que o
positivismo deixa em aberto, a saber, a questo da interpretao do direito atravs da
concretizao da norma. Todavia, h um outro elemento de ruptura que pode ser observado na
obra do professor alemo. Sua teoria pretende-se, tambm, ps-privativista. Vale dizer,
superadora das questes tradicionais que o direito privado cunhou para retratar os problemas
metodolgicos do direito.
69
Sem embargo do que foi dito acima, podemos afirmar que, nas questes de
direito pblico, essa assepsia no possvel de ser realizada nem de forma aparente. certo
que a tradio do direito pblico estatalista eclipsou o aspecto destacado. De toda forma,
impossvel no perceber que, no momento em que um agente jurisdicional decide uma
questo de direito pblico, ele interfere no s nos projetos pessoais ou no modo como cada
pessoa vive a sua vida. No momento que decide uma questo de direito pblico a jurisdio
interfere nas questes que se apresentam no horizonte da pergunta pela vida boa, pela melhor
comunidade etc..
Nesse aspecto, o juiz que decide uma questo jurdica como esta no est
apenas envolvido em questes morais como , ele mesmo, um agente moral que, com sua
deciso, participa dos problemas que decorrem do projeto comunitrio de uma vida boa, dos
destinos da comunidade poltica. impossvel para o juiz, em um problema como este,
encontrar um ponto arquimediano a partir do qual possa proferir sua deciso. E isso por um
motivo simples: ele prprio, enquanto agente moral, estar implicado no resultado de sua
deciso, ainda que, tecnicamente, no seja ele parte no processo que decidiu. Ou seja, o juiz
no somente nesses casos, mas, principalmente nesses casos responsvel pela deciso que
profere. Por isso, Dworkin vai dizer que os juzes tm responsabilidade poltica.
Nesse ponto, importante referir que essa clssica distino entre direito
pblico e direito privado vem sofrendo um processo de desgaste constante em face da
influncia do constitucionalismo sobre essa dualidade. O constitucionalismo ser, assim, o
70
ponto de ruptura entre o privado e o pblico, na medida em que as questes pblicas passaram
a fazer parte da agenda das sociedades.
A distino entre direito pblico e direito privado tem sua origem nos conceitos
romanistas de ius privatum e ius publicum, como foi mencionado linhas acima. O primeiro
relacionado ao interesse privado da sociedade civil (conjunto dos indivduos sujeitos
privados). J o interesse pblico encontra seu titular e exequente na figura do Estado. Assim,
em termos tradicionais, o direito pblico pode ser visto como regulador do Estado, enquanto a
sociedade civil seria regulada pelo direito privado.67
67
PRATA, Ana. A Tutela Constitucional da Autonomia Privada, Coimbra: Almedina, n. 1.2, p. 28. Ver ainda:
Miguel Nogueira Brito. Sobre a distino entre direito pblico e direito privado. In: Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor Srvulo Correia, v. I, Lisboa: Faculdade da Universidade de Lisboa, 2010, n. 1, p. 43-45.
68
JRS, Paul. KUNKEL, Wolfgang. Derecho Privado Romano, Barcelona: Editorial Labor, 1937, 32, p. 78.
Nesse sentido, a definio de Ulpiano (D. 1,1,1,2): ius publicum est, quod ad statum rei Romane spectat;
privatum, quod ad singulorum utilitatem spectat.
69
JRS, Paul. KUNKEL, Wolfgang. Derecho Privado Romano, cit., 32, p. 79.
71
Com efeito, a distino entre direito pblico e direito privado, em sua origem,
repousa na prpria diferenciao entre Estado e sociedade, oriunda do constitucionalismo
monrquico do sculo XIX, a partir do qual o poder estatal sustentava a si prprio na figura
do monarca; j a sociedade, enquanto instituio, organizava-se na cmara baixa do
parlamento e no era fator de legitimidade do poder real.
70
CORDEIRO, Antnio Menezes. Teoria geral do direito civil, v. 1, 3.a ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p.
12. ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Introduo ao Pensamento Jurdico e Teoria Geral do Direito Privado,
So Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, n. 44.1, p. 172.
71
ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Introduo ao Pensamento Jurdico e Teoria Geral do Direito Privado,
cit., n. 44.1, p. 172.
72
Rosa M. A. Nery sublinha que, no plano ideolgico, o direito privado deve ser
visto como o ordenamento que possui as regras protetivas do cidado contra o Estado e contra
o arbtrio de grupos. Ou seja, ele tem por escopo prevenir ingerncias indevidas nas esferas
dos particulares e a intromisso arbitrria da autoridade na liberdade das pessoas.72
72
ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Introduo ao Pensamento Jurdico e Teoria Geral do Direito Privado,
cit., n. 44.1, p. 1723
73
ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Introduo ao Pensamento Jurdico e Teoria Geral do Direito Privado,
cit., n. 44.2, p. 175.
74
HBERLE, Peter. El Estado constitucional, Buenos Aires, Editorial strea de Alfredo y Ricardo Depalma,
2007, 2., p. 83.
73
Tanto assim que Rosa M. A. Nery pondera que essas novas categorias de
direito ora podem ser analisadas como direito pblico, ora como direito privado: tudo
depender de qual a finalidade imediata da anlise do fato em questo.75
Nesse contexto, para o Estado ser considerado Estado Constitucional ele deve
respeitar a delimitao entre esfera pblica e privada, no sentido de que nem todas as funes
pblicas so funes estatais (e.g., funes desempenhadas pela imprensa, igrejas e partidos
polticos) e, ao mesmo tempo, algumas funes pblicas no podem ser funes sociais (e.g.,
segurana pblica e defesa nacional).76
75
ANDRADE NERY, Rosa Maria de. Introduo ao Pensamento Jurdico e Teoria Geral do Direito Privado,
cit., n. 44.2, p. 174.
76
BRITO, Miguel Nogueira. Sobre a distino entre direito pblico e direito privado, cit., n. 5.1, p. 69.
74
sociedade constituda e eventualmente a ser constituda. Assim, a dignidade humana cria uma
fora protetiva pluridimensional, de acordo com a situao de perigo que ameaa os bens
jurdicos de estatura constitucional.77
HBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: Dimenses da dignidade
Ingo Wolfgang Sarlet (org.) Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 128-129
78
Peter Hberle, A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, cit., p. 133
75
princpios. interessante perceber que o modelo de realizao das regras mantem-se atrelado
ao dogma da subsuno. Isso, do mesmo modo como o conceitualismo pregava para o
ambiente do direito privado. Portanto, Alexy preserva o sistema de aplicao do direito
pensado pelos juristas conceitualistas do sculo XIX e adiciona um elemento de soluo dos
problemas de direito pblico. Mas, com isso, continua a separar direito e poltica; direito e
moral. No fundo a regra, e sua aplicao subsuntiva, um modo de o jurista entregar-se a uma
espcie de apoliticidade do direito.
Essa questo era intuda pelo civilista francs George Ripert que, j ao seu
tempo, asseverava: Expulsos da poltica e at da filosofia, os juristas refugiaram-se no estudo
da tcnica. Nesse campo, deixaram-lhes toda a liberdade e receberam todos os incitamentos,
porque semelhantes estudos so inofensivos.79
RIPERT, Georges. O Regime Democrtico e do Direito Civil Moderno. So Paulo: Saraiva e Livraria
Acadmica, 1937, p. 13.
76
as
consequncias
da
revoluo
copernicana
do
direito
pblico,
consequncias
de
uma
rematerializao
do
direito
constitucional.
Por
77
80
Por esse motivo, a presente pesquisa segue a proposta de Lenio Streck no sentido de mencionar o fnomeno
constitucional que tem lugar no Segundo ps-guerra como Constitucionalismo Contemporneo, deixando em
Segundo plano a expresso neoconstitucionalismo. De fato, em Verdade e Consenso, o autor faz uma espcie de
catarse com relao ao uso que fez, em obras anteriores, do termo neoconstitucionalismo para, ao final, concluir
que sua defesa nunca se alinhou aos postulados discricionaristas e axiologistas das propostas que compem o
universo terico do neoconstitucionalismo. Por isso, sugere uma novo termo para se referir ao novo modelo de
direito instalado a partir das Constituies do segundo ps-guerra: o constitucionalismo Contemporneo. Ao
contrrio do que se defende no mbito no neoconstitucionalismo, o constitucionalismo Contemporneo se
assenta na afirmaoo de um grau de autonomia para o direito, no antidiscricionarismo decisional e na defesa
radical da fora normativa da Constituio (Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso... cit., introduo).
78
81
82
Cf. GADAMER, Hans-Georg. Hermenutica em Retrospectiva. Petropolis: Vozes, 2006, Vol. II p. 185 e segs.
Cf. LAMEGO, Jos. Hermenutica e jurisprudncia: Anlise de uma Recepo. Lisboa: Fragmentos, 1990 p.
217.
79
a) um analtico;
b) um continental.84
83
STEIN, Ernildo. As Iluses da Transparncia: Dificuldades com o conceito de mundo da vida. Iju: Uniju,
2012, p. 15.
84
DAGOSTINI, Franca. Analticos e continentais. Trad. Benno Dischinger. So Leopoldo: Unisinos, 2003. p. 175
e ss. A referncia a esta obra no aleatria ou casual. A autora desenvolve nela um guia enciclopdico de toda
Filosofia produzida nos ltimos trinta anos, procurando pontuar as principais diferenas e divergncias entre os
modos de fazer Filosofia: a) Analtico mais prximo aos autores da tradio anglo-sax; e b) continental que
se expressa principalmente nos filsofos oriundos da Europa continental. Existem pontos de convergncia que
em algum momento aproximam as duas tradies, que se do nos temas da superao da metafsica e da
80
colocao da reflexo filosfica no mbito da linguagem de modo a no admitir mais a dissociao entre
pensamento e linguagem (movimento conhecido como linguistic turn giro lingustico). Contudo, cada uma
delas apontar caminhos diferentes tanto no que atina questo da linguagem, ou ao papel da Filosofia em
relao linguagem, quanto em relao superao da metafsica.
85
81
terico, mas tambm no seu sentido prtico: o que significado pela linguagem aparece a
partir dos contextos histrico-concretos a partir do qual esto envolvidos o sujeito que
conhece e o objeto que conhecido.
Assim, o ponto convergente que faz encontrar analtica e a hermenutica o girolingustico. Todavia, entre elas h diferenas considerveis quando abordam a questo do
fundamento, o papel da histria e o problema da relao sujeito-objeto.
Importante registrar que, sobre o chamado giro lingustico, Lenio Streck vai alm
para afirmar um giro ontolgico-lingustico, uma vez que alm da preeminncia do problema
da linguagem (que aparece com clareza nas filosofias de matriz analtica), tambm a questo
ontolgica deslocada para um plano concreto e ftico no mbito da filosofia hermenutica
de Heidegger.86
Porm, se certa essa afirmao, tambm certo que uma volta para trs do
linguistic turn no possvel. Como afirma Castanheira Neves: O direito linguagem, e ter
de ser considerado em tudo e por tudo como uma linguagem. O que quer que seja e como quer
que seja, o que quer que ele se proponha e como quer que nos toque, o direito -o numa
86
Cf. STRECK, Lenio Luiz. O que isto Decido conforme a minha conscincia? 2 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2011, em especial o captulo 2.
82
Como afirma Emlio Betti: o encontro do intrprete com o texto da lei nunca
um contato direto que prescinda da mediao de elos intermedirios.88
87
NEVES, Antnio Castanheira. Metodologia Jurdica: Problemas Fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora,
1999, p. 90.
88
83
HEIDEGGER,
Martin.
Hermeneutica
de
la
Faticidad.
Texto
www.heideggeriana.com.ar/hermeneutica/indice.htm. Acessado em 27 de julho de 2007.
disponvel
em
84
90
85
91
HEIDEGGER, Martin. O Tempo da Imagem do Mundo. In: Caminhos da Floresta. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2002, p. 101.
86
mostra algo que pode soar estranho: ele afirma que o passado do Ser-a no se situa atrs
deste ente, mas sempre e a cada vez lhe antecipa.
92
87
93
94
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. Trad. Jorge Eduardo Rivera. Madrid: Trotta, 2006, pp. 43-50.
Texto escrito por Heidegger em resposta questo formulada por Willian Richardson sobre a to falada
viravolta do pensamento heideggeriano, que marcaria uma mudana de rumo desde a questo posta em Ser e
Tempo e nas obras e textos que o circundam, para as obras em que o sentido do ser em sua dimenso temporal
questionado. O texto completo pode ser encontrado em: STEIN, Ernildo. Introduo ao Pensamento de Martin
Heidegger. Porto Alegre: Edipucrs, 2002, pp. 80-86.
88
sujeito humano. Antes o ser como presentar, caracterizado pela sua marca temporal,
interessa o ser-a (Dasein R.O.).
Destacamos nesta frase trs pontos: 1) a palavra ser colocada entre aspas; 2) o
questionamento do ser no poder continuar sendo uma imposio do sujeito humano; 3) o ser
como presentar e sua marca temporal.
Cf. STEIN, Ernildo. Pensar Pensar a Diferena. Filosofia e Conhecimento Emprico. Iju, Uniju, 2002, p.
87; ver tambm TUGENDHAT, Ernest. op. cit..
89
97
90
da Cincia da Lgica de Hegel, Heidegger faz meno expressa a essa destinao histrial do
ser. Diz ele que somente atingimos a proximidade do que nos vem do destino historial
atravs do sbito instante de uma lembrana. Isto tambm vale para a experincia de cada
cunho da diferena de ser do ente ao qual corresponde uma particular interpretao do ente
enquanto tal98.
98
99
91
HEIDEGGER, Martin. Tempo e Ser. In: Conferncias e Escritos Filosficos. So Paulo: Nova Cultural, 2005,
pp. 256-257.
101
STEIN, Ernildo. Sobre a Verdade. Lies Preliminares ao pargrafo 44 de Ser e Tempo. Iju: Uniju, 2006, p.
245.
102
Cf. STEIN, Ernildo. Pensar Pensar a Diferena. Iju: Uniju, 2002, p. 61.
92
como uma das chaves heideggerianas para se sair do problema da metafsica. Por certo, no se
trata de uma soluo. Ser e Tempo a prova de que no existe uma filosofia blindada contra
aporias. Porm, a diferena ontolgica determinante para que se possa perceber os
dogmatismos da tradio, abrindo caminho para construo de novos rumos, no s para a
Filosofia, mas tambm para as cincias humanas enquanto constituio de um saber crtico,
consciente e no comprometido com uma determinada concepo da verdade; uma verdade
que se esquece de seu lugar mais prprio que a dimenso de ser, qual o pensamento no
pode jamais renunciar.
Com efeito, preciso ter presente desde logo que o projeto terico presente na
hermenutica gadameriana no estava envolvido ao menos no diretamente com as
consequncias especficas que as suas descobertas produziriam no mbito da histria, do
direito, da poltica etc.. Enquanto filosofia, a hermenutica de Gadamer paira sobre todas
essas regies procurando descrever aquele que o acontecimento comum que envolve todas
elas: a compreenso. A inovao presente na obra de Heidegger, que descobre o carter
existencial de toda a experincia hermenutica, ou seja, a ideia de que toda compreenso
93
decorre de uma autocompreenso do Dasein que, desde sempre, envolve-se com o mundo em
uma relao circular em que, ao mesmo tempo que se compreende em seu ser, compreende
tambm o ser dos entes circundantes, apropriada por Gadamer e explorada dentro da
experincia das cincias que se acham envolvidas, mais diretamente, com o problema da
compreenso.
94
95
96
In verbis:
2.2.2.2 Verdade e Mtodo e seu contexto: nem teoria geral da interpretao, nem nova
proposta metodolgica para as Cincias do Esprito
97
dessa pergunta Gadamer no se interessa por aquilo que devemos ou queremos fazer nesse
momento compreensivo, mas sim por aquilo que, para alm do nosso querer e dever,
acontece quando compreendemos. Nessa medida, a investigao realizada em Verdade e
Mtodo pretende rastrear e mostrar aquilo que comum a toda maneira de compreender, no
estando em jogo o que cada campo especfico das chamadas disciplinas hermenuticas, ou
seja, o Direito, a Teologia e a Literatura, produz em termos de procedimentos especficos para
seu desenvolvimento terico e tcnico, mas sim aquilo que, independentemente do campo em
que se situe, acontece quando compreendemos.
Dito isto, importante ter presente, portanto, que no podemos fazer uso
aplicativo dos elementos que Gadamer explora em sua obra nesses campos diversos da
cultura. Vale dizer, no h uma passagem direta, por exemplo, dos conceitos gadamerianos
para o Direito. Tais conceitos so produzidos, como afirma Stein, para apanhar o
compreender como um todo, e no o compreender de cada campo em especfico107. Todavia,
certo que, as anlises acerca do compreender, da histria e da linguagem que so realizadas
em Verdade e Mtodo produzem profundas alteraes no modo como a cincia jurdica se
constitui. Mostra-se evidente, por exemplo, a contribuio que Verdade e Mtodo oferece para
pr mostra a estreiteza do perspectivismo metodolgico que impera nos modelos jurdicoepistemolgicos do sculo XX, frente ao carter omniabrangente da compreenso. Tambm
podemos lembrar o modo como a obra de Gadamer pode contribuir para afastar o fantasma do
relativismo no direito (lembrando o que o prprio filsofo afirma: o interesse hermenutico
do filsofo aparece exatamente no momento em que se conseguiu evitar o erro108), que tem
sido explorado amplamente por Lenio Streck, que produz, em seu Verdade e Consenso, uma
107
STEIN, Ernildo. Da Fenomenologia Hermenutica Hermenutica filosfica. In. Veritas, vol. 47, n. 1, Porto
Alegre, maro 2002, p. 22
108
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Mtodo. 12 ed. Salamanca: Ediciones Sgueme, 2007, p. 15.
98
verdadeira Teoria da Deciso Jurdica que, , sem dvida, o problema fundamental da cincia
jurdica contempornea.
109
110
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Mtodo... cit., p. 477. Neste caso, o eco de Heidegger parece evidente.
Com efeito, o prprio Gadamer afirma, em inmeras ocasies, o impacto profundo que lhes causaram as
interpretaes de Aristteles lanadas por Heidegger naquilo que era conhecido at ento como Relatrio Natorp
e que, posteriormente, foi publicado no volume 61 da obra completa sob o ttulo: Interpretaes
Fenomenolgicas de Aristteles. Nesse texto, antes de proceder a uma interpretao radical de alguns dos
principais conceitos aristotlicos, Heidegger afirma de maneira preventiva: A crtica da histria nica e
exclusivamente crtica do presente HEIDEGGER, Martin. Interpretaciones Fenomenolgicas sobre Aristteles.
Indicacin de la situacin hermenutica. Madrid: Trotta, 2002, p. 33
99
100
112
113
STEIN, Ernildo. Critica da Ideologia e Racionalidade. Porto Alegre: Movimento, 1986, p. 37.
101
De todo modo, preciso ter presente que essas questes que colocam em
primeiro plano histria e hermenutica ou, dizendo de melhor maneira, entre a teoria da
histria e a hermenutica, foram abordadas em um dilogo registrado na forma de livro
entre Koselleck e Gadamer. importante registrarmos aqui alguns elementos constitutivos
desse debate muito embora seja necessrio termo presente, tambm, as afirmaes de
Gumbrecht, para quem, no seria possvel algo como a histria dos conceitos sem a
hermenutica. Vale dizer, a histria dos conceitos s pode florescer e dar frutos em solo
hermenutico.
102
existenciais, uma vez que ela procura desvelar o Dasein como o ser
que compreende o ser.114
E mais adiante, o autor esclarece de forma definitiva o que separa Ser e
Tempo da antropologia filosfica:
Com a sua histria dos conceitos, Koselleck cria condies para realizar uma
semntica dos tempos histricos a partir da articulao entre contextos sincrnicos (espao
de experincia) e diacrnicos (horizonte de expectativas) de analise. Com Marcelo Cattoni,
poderamos dizer, tambm, que se articula aqui memria e projeto, experincia e
expectativa.116 As pretenses de Koselleck com a sua Historik seriam, de certo modo, mais
radicais: o autor tenciona aqui a criao de uma doutrina das condies de possibilidade das
histrias. Talvez por isso o recurso a Ser e Tempo, uma vez que tal obra est situada no
horizonte da filosofia transcendental (no clssico),117 realizando assim uma espcie de
Teoria da Histria. O recurso a Heidegger, todavia, salvaria a teoria proposta por Koselleck da
simples epistemologia, colocava suas consideraes fora do estreitamento realizado pela
114
STEIN, Ernildo. Antropologia Filosfica: Questes Epistemolgicas. Iju: Uniju, 2009, p. 90.
115
116
CATTONI, Marcelo. Constitucionalismo e Histria do Direito. Belo Horizonte: Pergamum, 2011, p. 64.
117
Sobre o conceito de transcendental no classico, seguimos aqui a Ernildo Stein tal como exposto em
Exerccios de Fenomenologia. Iju: Uniju, 2004, passim.
103
118
104
105
Ademais, aquilo que pretendemos atingir de forma mais direta com esta
investigao, qual seja, a dimenso do a priori compartilhado que sustenta as configuraes
conceituais que iro compor a fundamentao das decises jurdicas, fica melhor
compreendido a partir da compreenso da historicidade do sentido.
106
Esse projeto ambicioso foi levado a cabo em dois grandes textos publicados na
Alemanha entre 1879 e 1899. O primeiro deles chamado Geschichte der philosophischen
Terminologie (Histria da Terminologia Filosfica), de Rudolf C. Eucken e, o segundo,
intitulado Wrterbuch der philosophischen Begriff (Dicionrio de Conceitos Filosficos), de
Rudolf Eisler. Entre estes dois textos, o de Eisler, certamente, foi o que teve a repercusso
mais significativa e duradoura. A obra chegou a quatro reedies no ainda estreito espao
editorial do incio do sculo XX e era frequentemente citada em importantes estudos das
mais diversas reas do conhecimento. Veja-se, por exemplo, o caso de Karl Engish, que faz
seguidas referncias obra de Eisler em seu texto mais influente, Introduo ao Pensamento
Jurdico.123
121
Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e Estagnao. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012, p. 21.
122
123
Cf. ENGISH, Karl. Introduo ao Pensamento Jurdico. 6. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1999, passim.
107
Rothacker teve que esperar at a dcada de 1950 para levar adiante as suas
pretenses. Assim, j no incio dos anos 50, ele reuniu em torno de si um grupo de professores
e pesquisadores que colocaram esse projeto em marcha. Entre os nomes que compunham o
grupo inicial de Rothacker possvel mencionar os de Hans-Georg Gadamer, Karl-Otto Apel,
Hans Blumenberg e Joachim Ritter, entre outros. A partir de 1955, comeam a aparecer os
textos que iro compor a primeira manifestao daquilo que Gumbrecht chama no sem
alguma condescendncia
(Arquivo para Histria dos Conceitos). O projeto do Arquiv, contudo, permanecer inacabado.
Alis, todo o movimento descrito at aqui serve para compor uma espcie de painel de fundo
ou uma pr-histria, como quer Gumbrecht daquilo que seria a Histria dos Conceitos no
sentido em que estamos trabalhando aqui.
Nessa medida, o grande personagem dessa histria ser Joachim Ritter. Esse
autor, seguindo a trilha aberta por Rothacker, reestabelecer os pontos essenciais do projeto a
partir da necessidade de uma nova verso do dicionrio de Eisler, apresentando os seus
objetivos de forma mais clara e direta do que Rothacker havia conseguido fazer.
108
Em outras palavras, Ritter esperava que seu projeto pudesse oferecer um espao
para a fundamentao das cincias do esprito que fosse mais abrangente e que, ao mesmo
tempo, possusse mais transparncia histrica do que a hermenutica. De se consignar, por
importante, que o projeto de Ritter se faz a partir da hermenutica. possvel afirmar, em
alguma medida, que sem hermenutica no existe histria do conceito. Todavia, e esse o
ponto essencial, havia um pretenso de ir alm do ponto que a hermenutica havia alcanado,
oferecendo uma fundamentao mais radical para as cincias histricas.
109
caso dos Conceitos Histricos Bsicos, organizados por Reinhart Koselleck, Otto Brunner e
Werner Conze, de oito volumes. Alm do Conceitos Estticos Fundamentais, que possua
cinco volumes. Outros textos, de igual inspirao e formato, foram produzidos no ambiente da
histria dos conceitos. Por certo, a dimenso das publicaes, somada ao grande nmero de
autores necessrio para compor um projeto dessa envergadura, dificultaram sobremodo a
projeo do movimento para alm das fronteiras alems. Os custos editoriais barraram no
apenas a traduo de tais obras para outras lnguas, como, tambm, as suas reedies em
lngua alem. Os grandes dicionrios da histria dos conceitos ou, pirmides do esprito
(Gumbrecht) permanecem hoje, mesmo com todos os facilitadores de acesso informao,
internet, e-books etc., fechados em um castelo impenetrvel e acessvel a uns poucos
privilegiados que, alm de dominar o idioma de origem, precisam reunir condies scioeconmicas para aquisio de tais obras.
Esse aspecto, talvez, seja um dos fatores que contriburam para a divulgao e
propagao da histria dos conceitos em torno de, praticamente, um nico nome: Reinhart
Koselleck. H que se somar a isso outros elementos importantes. Merece destaque, nesse
sentido, a iniciativa de Koselleck de levar adiante algo que permaneceu retido em Ritter
apenas como projeto: estabelecer um programa metodolgico, ou um quadro referencial
terico, que representasse o modo de trabalho da histria dos conceitos. O livro Futuro
Passado: contribuio semntica dos tempos histricos que apareceu em 1979
representa, certamente, o resultado desses esforos.124
124
Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuio Semntica dos Tempos Histricos. Rio de
Janeiro: Contraponto, 2006, passim.
110
Esse dado nos permite afirmar que, no contexto atual, o paradigma da histria dos
conceitos inicialmente dotado de um carter extremamente germanizado mais atuante
em contextos acadmicos internacionais do que, propriamente, no ambiente alemo. Esse
125
111
fator corroborado pela anlise quase catrtica realizada por Gumbrecht126, como tambm
pela formao do History of Political and Social Concepts Group do qual participam
estudiosos de vrias nacionalidades.
Cf. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e Estagnao... cit., especialmente o ensaio intitulado
Pirmides do Esprito. Sobre a rpida ascenso, as dimenses invisveis e o sbito esmorecimento do
movimento da histria dos conceitos.
112
113
Uma deciso ser assim um modo de superar o modo historicista de isolamento da distncia
temporal e um modo de superar um conceitualismo tardio, em que a realidade estaria
aprisionada no interior dos conceitos. Ou seja, a aplicattio quer dizer que a historia que
impulsiona o conceito e no o contrrio. a partir disso que a deciso no algo que est
disposio do intrprete, como uma opo. Antes disso, estar inserida na historicidade do
conceito. Veja-se, por exemplo, a importncia da integridade e da coerncia em Dworkin,
que, embora sem referir Gadamer e a histria dos conceitos na especificidade, segue nesse
rumo, ao dizer que o direito um conceito interpretativo. No por nada que tanto Gadamer
como Dowrkin so antirrelativistas. A deciso ser um ato presentificativo do direito.
114
No mbito da histria dos conceitos, um autor ocupa uma posio ambgua. Tratase de Hans Blumenberg. Como j mencionado, Blumenberg trabalhou com questes que
envolviam o projeto da histria dos conceitos. Mais especificamente, Blumenberg
desenvolveu um espao reflexivo que tinha por finalidade auxiliar na discusso metodolgica
no interior da qual a histria dos conceitos estava envolvida. Trata-se da metaforologia.
115
127
BLUMENBERG, Hans. Paradigmas para una Metaforologia. Madrid: Trotta, 2003, p. 47.
116
Tal fator se deve quilo que Blumenberg elege como o objetivo de sua obra:
pensar de novo a fundo a relao entre fantasia e lgos.128 Vale dizer, o autor quer pr em
relevo o iter que existe entre o mhytos e o lgos na perspectiva de encontrar configuraes de
sentido que foram encobertas pela anlise rasa, diretamente vinculada dimenso do lgos.
128
117
Por que Blumenberg importante? Para auxiliar o encontro com essa dimenso
prvia, anterior ao discurso conceitual, e que compe os sentidos que compartilhamos. Na
realidade, boa parte dos significados que nos unem enquanto comunidade esto nessa
dimenso pr-reflexiva; fazem parte de uma histria que no contada pela lgica conceitual,
mas, sim, por uma lgica hermenutica.
129
118
119
quadro geral referencial (framework) no interior do qual estaria inserida a teoria jurdica do
Estado130. Alis, como bem lembra Bobbio, uma tal distino no podia ser percebida antes
do advento da sociologia como cincia geral que englobava a teoria do Estado.131
130
Cf. Neste ponto, compondo o quadro de seu conceito de Estatalismo liberal. Maurizio Fioravanti procura
apontar para a proximidade das hipostasiaes tericas de George Jellinek e Carr de Malberg. Para ele, ambos
os autores procuravam reler as revolues do sculo XVIII num mximo nvel estatalista visando construir uma
autntica soberania de Estado (Cf. FIORAVANTI, Maurizio. Los Derechos Fundamentales: Apuntes de historia de
las Constituciones. 4 ed. Madrid: Trotta, passim).
131
Cf. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade. Para uma Teoria Geral da Poltica. 7 ed. Rio de Janeiro,
1999, p. 56.
132
Cf. WEBER, Max. Economia e Sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. II. So Paulo:
Editora UNB, 2004. Nesse quadro terico, a sociologia jurdica descreveria os fatores reais de poder dando conta
de como o direito e o Estado realmente so; ao passo que a teoria jurdica do Estado se ocuparia da correo,
de algum modo ideal, destes contedos reais. Nem preciso dizer que, neste mesmo espao histrico, so
lanadas teorias que procurem romper com essa dependncia do Direito para com a sociologia. Esse o caso da
Teoria do estado fundada por Kelsen que, a partir de seu extremismo normatista, negar o poder do Estado como
fato para consider-lo apenas na validade deontolgica do direito (Cf. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e
do Estado. So Paulo: Martins Fontes, 2004.). Por certo que a tese kelseniana de que o Estado resolvido
totalmente no ordenamento jurdico desaparecendo, portanto, como ente diverso do prprio Direito, foi o
calcanhar de Aquiles da teoria do direito de Kelsen. Como afirma Bobbio assumidamente um de seus
maiores continuadores De todas as teses kelsenianas, a da reduo radical do Estado a ordenamento jurdico
foi a que teve menor fortuna (Cf. BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade... cit., p. 57).
120
133
Ressalte-se que a eleio destes dois pontos no meramente aleatria. Com efeito, tericos que deram
continuidade ao projeto weberiano j haviam identificado, no interior da teoria, os problemas apresentados no
texto. Esse o caso do corifeu da chamada fenomenologia social, Alfred Schtz. Com efeito, Schtz foi aluno de
Weber e considerava a sociologia compreensiva o maior avano metodolgico alcanada pelas cincias sociais.
Todavia, sua proximidade com Husserl, o contato com a fenomenologia transcendental e a posterior concluso
de sua tese de doutoramento sob a orientao deste ltimo, o levou a corrigir alguns pontos da sociologia
weberiana. Schtz apresenta, basicamente, trs pontos de discordncia com relao a Weber: 1) a falta de uma
descrio das estruturas da vida ordinria que se desenvolve no interior daquilo que Husserl nomeou de mundoda-vida; 2) Uma concepo de interpretao e de significado que ficava aqum das conquistas efetuadas pela
semntica husserlinana; 3) em conseqncia, a falta de uma problematizao adequada do problema do tempo
que comporta aqui o modo como a histria aparece em sua reflexo na descrio dos contextos de ao dos
indivduos (Cf. SCHTZ, Alfred. La construccin significativa del mundo social. Introduccin a La sociologia
comprensiva. Barcelona: Paids, 1999; SCHTZ, Alfred. LUCKMANN, Thomas. The Structures of the Life-world.
Vol. I e II, Evanston: Northwestern University Press, 1973).
121
preciso ficar claro, contudo, que no estamos afirmando aqui que Weber
desconsidera uma anlise histrica das instituies sociais na composio de seu trabalho.
certo que, depois de construir as categorias basilares de sua sociologia compreensiva, Weber
se voltar para a histria no intuito de identificar o modo como a modernidade estrutura suas
relaes de poder e de dominao social. A questo aqui o modo portanto, um problema
de mtodo como a histria por ele percebida. Para ficar no exemplo especfico do Estado,
por exemplo, impossvel que essa instituio seja tratada como algo natural e histrico ao
mesmo tempo. O Estado ou bem natural e, portanto, determinado por uma natureza que
lhe confere (alguma) racionalidade ou bem histrico, construdo por fatores culturaistemporais.
122
que com as devidas ressalvas poderamos dizer que ontolgico134. Isso porque nem a
realidade histrica algo autnomo em relao mente que a conhece, nem a mente que
134
O sentido desse ontolgico que afirmamos aqui pensado a partir do giro ontolgico operado por Martin
Heidegger. importante ter presente o sentido deste giro ontolgico. Trata-se da grande revoluo a mais
decisiva pelo menos que Martin Heidegger legou para a filosofia. Mais alm de possveis desacordos, o certo
que, depois de Heidegger, essa questo no pode ser ignorada por nenhum estudioso interessado em
compreender a fundo o problema do conhecimento. Isto porque, toda tradio anterior que Heidegger
denomina Metafsica relegou a um plano ntico um problema que necessariamente ontolgico, isto ,
investigou objetivando no ente algo que pertence esfera do ser. Mas isso se deu de diversas maneiras e de
nenhuma delas pode-se dizer que estavam erradas. H equvocos, mal entendidos, que levam a metafsica a
pensar o ente ao invs do ser. Tambm isso no quer dizer que inexistiu um sentido do ser em toda histria da
Metafsica. O que o filsofo percebe a partir de sua intuio fundamental que a compreenso do ser algo
inerente condio humana, que desde sempre nos acompanha ainda que dela no necessariamente estejamos
conscientes. H um vinculo necessrio entre homem e ser, na medida em que para mencionar algo, preciso
dizer que esse algo . E esse vnculo a Metafsica no pensou. Ora, quem diz o do ser este ente chamado
homem, ser humano e que em Heidegger responde pelo termo alemo Dasein. Portanto, toda problemtica
ontolgica (a pergunta pelo sentido do ser) passa pela compreenso deste ente que pode dizer porque
compreende o ser. Assim surge o que o filsofo denomina ontologia fundamental. ela fundamental porque ela
possibilita todas as demais ontologias porque compreende as estruturas do ente que, existindo, compreende o ser.
O Dasein existe porque compreende o ser e, compreendendo o ser se compreende, lanando-se para adiante de si
mesmo. Quando se diz: processo instrumento, h toda uma estrutura de sentido que se antecipa e possibilita
diz-lo. Esse sentido o ser e compreend-lo passa ser a tarefa fundamental da ontologia. Mas Heidegger se
movimenta numa dimenso ainda mais originria que a prpria existncia do humano. Como o Ser-a (Dasein)
o nico ente que existe os demais entes intramundanos subsistem a ontologia fundamental, que condio
de possibilidade de todas as demais ontologias, receber a forma de uma analtica existencial, porque pretende
compreender, fenomenologicamente, as estruturas deste ente que existe. Essa a revoluo: toda a tradio
anterior pensou a ontologia fora do homem. Era uma ontologia da coisa, de essncias, de objetos, portanto uma
ontologia que, paradoxalmente, se dirigia ao ente e no ao ser. Heidegger desloca o homem para dentro da
ontologia incluindo o seu modo-de-ser na problemtica ontolgica e transforma a reflexo filosfica em uma
ontologia da compreenso. Desse modo, Heidegger recoloca a pergunta capilar de Kant: o que o homem?
numa dimenso existencial. A pergunta pelo que o homem descamba sempre para explicaes categoriais que
resvalam para longe na definio de sua resposta. Atravs de sua fenomenologia hermenutica Heidegger mostra
como no possvel explicar o que o homem, mas apenas compreender como ele . Portanto, na ontologia
fundamental procura-se constituir um horizonte a partir do qual se possa pensar o ser enquanto ser, ao invs do
ente enquanto ente que caracterizava a ontologia desde Aristteles. Diante da ontologia fundamental importa
pensar a diferena que existe entre ente e ser; uma diferena constituidora de sentido na qual desde sempre nos
movemos ainda que dela no tenhamos nos dados conta: a diferena ontolgica. Conforme esclarece Stein h
dois nveis que, desde Aristteles, esto consagrados na ontologia: o nvel do ente enquanto ente e o nvel do
ser do ente. A tradio metafsica aborda esses nveis de maneira objetivstica. Ela trata os dois nveis como
objetos a serem conhecidos. Os diversos autores, at a Idade Mdia, do formas vrias ao conhecimento deste
objeto, mas sempre se examina o modo como so conhecidos, mas no se pergunta porque eles no so
questionados enquanto so condies de possibilidade, razo pela qual Aristteles permanece nos dois nveis.
Quando Heidegger introduz um ente privilegiado, o Dasein, aparece outro nvel de problematizao do ser. O ser
no se d isolado como objeto a ser conhecido; mas ele faz parte da condio essencial do ser humano. O Dasein
compreende o ser e por isso tem acesso aos entes. Sem essa compreenso nada se move no conhecimento, tudo
permanece opaco. Mas assim como pelo ser compreende os entes, compreende-se tambm como ente; e no
apenas isso. Compreende o ser porque compreende a si mesmo e se compreende porque compreende o
ser(Diferena e Metafsica. Ensaios sobre a desconstruo. Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 103 itlicos do
original). Especificamente no mbito da Direito, exemplar a explorao que Lenio Streck realiza das
conseqncias do giro ontolgico para a reflexo jurdica (Cf. Hermenutica Jurdica e(m) Crise. Uma
Explorao Hermenutica da Construo do Direito. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005).
123
conhece essa realidade autnoma em relao a ela. Ambas esto implicadas na estrutura
circular da compreenso; ambos articulam-se a partir do crculo hermenutico135.
135
Sobre o crculo hermenutico, no sentido que assume em Heidegger, Ernildo Stein anota o seguinte: O
homem se compreende quando compreende o ser, para compreender o ser. Mas logo em seguida Heidegger vai
dizer: No se compreende o homem sem se compreender o ser. Ento a ontologia fundamental caracterizada
por esse crculo: estuda-se aquele ente que tem por tarefa compreender o ser e, contudo, para estudar esse ente
que compreende o ser, j preciso ter compreendido o ser. O ente homem no se compreende a si mesmo sem
compreender o ser, e no compreende o ser sem compreender-se a si mesmo; isso numa espcie de esfera
antepredicativa que seria o objeto da explorao fenomenolgica da vem a idia de crculo hermenutico, no
sentido mais profundo (Cf. STEIN, Ernildo. Racionalidade e Existncia. O ambiente hermenutico e as cincias
humanas. 2 ed. Iju: Uniju, 2008, p. 79).
124
reconstruo da poltica e do Estado passa pela correta colocao desse problema. Portanto, a
principal questo metodolgica que precisa ser enunciada j de antemo nesta pesquisa a
seguinte: como compor esses contextos histricos dos quais exsurgem as ideias polticas, sem
recair nos naturalismos e nas ingenuidades (filosficas) descritas anteriormente?
125
algo como um tempo histrico. Esse tempo histrico indica que h um conjunto de aes
humanas que acontecem no a partir das determinaes temporais compreendidas de maneira
fsica ou astronmica (tempo da natureza), mas de acordo com certas esferas sociais
historicamente saturadas.
Nas palavras do autor:
As decises polticas tomadas sob a presso de prazos e
compromissos, o efeito da velocidade dos meios de transporte e de
informao sobre a economia ou sobre aes militares, a permanncia
ou instabilidade de determinadas formas de comportamento social no
mbito das exigncias econmicas e polticas temporalmente
determinadas, tudo isso conduz obrigatoriamente seja atravs de um
processo de atuao e ao recproca ou de relao de dependncia
um tipo de determinao temporal que, sem dvida, condicionada
pela natureza, mas que tambm precisa ser definida especficamente
sob o ponto de vista histrico.136
Para ele e aqui podemos marcar uma diferena com relao ao modo como Bobbio e
Weber encaravam o problema da histria h determinados textos (poderamos citar o
Leviat de Hobbes como um bom exemplo disso) em que essa experincia histrico-temporal
manifesta-se na superfcie da linguagem, de maneira explcita ou implcita. Em suma, trata-se
de textos que abordam a relao entre um determinado passado e um determinado futuro.
A configurao dessa relao dada no a partir da deduo de uma cadeia abstrata de
princpios que conduziro a um fim ltimo na histria (paz perptua); nem por meio de
tenses dialticas e contradies do modo capitalista de produo (chegando, assim, ao
comunismo); mas sim atravs de duas categorias que tentam apanhar o tempo histrico em
suas mximas possibilidades. Trata-se de pensar o espao de experincia e o horizonte de
136
126
137
Quanto a estas duas categorias Cf. Koselleck, Reinhart. Futuro Passado... cit., pp. 305 e segs.
127
Em alemo, o autor realiza uma operao semntica a partir da diferena entre Historie e Geschichte. Para
efeitos de nossa pesquisa, usaremos o recurso da traduo para o portugus que representa a histria como
Historie com h minsculo e histrica como Geschichte com h maisculo.
139
128
129
130
131
Essa resposta procurada por ele a partir de uma ateno linguagem que os
advogados, juzes, legisladores e os cidados em geral utilizam ao referir-se a assuntos
jurdicos, tendo como pano de fundo as anlises desenvolvidas pela filosofia analtica da
linguagem de Austin e Wittgenstein.
Num resumo bastante genrico, e nos limites daquilo que interessa a esta obra
introdutria, podemos dizer que Hart assume como pressuposto o fato de que toda expresso
lingustica seja ela jurdica ou no possui um ncleo duro de significado e uma zona de
penumbra.
Para demonstrar sua tese, Hart formula um exemplo. Vejamos: se uma regra
diz proibida a circulao de veculos no parque, diante das diversas hipteses de
interpretao, todos estariam de acordo que no se permite a circulao de automveis ou
caminhes. Apesar disso, haveria dvida sobre a proibio da circulao de bicicletas, por
exemplo. Neste caso, estaramos segundo Hart diante de um caso difcil e a soluo
deveria ser dada a partir de um critrio aproximativo de analogia com os casos de fcil
aplicao
da
regra.
Nesse
mbito
aproximativo-analgico,
os
juzes
possuem
132
O sentido limitado oferece poucos problemas para sua definio. Significa que
o poder de escolha daquela autoridade qual se atribui poder discricionrio se determina a
partir da escolha entre duas ou mais alternativas. A esse sentido, Dworkin agrega a
distino entre discricionariedade em sentido fraco e discricionariedade em sentido forte, cuja
determinao bem mais complexa do que a de discricionariedade em sentido limitado.
Desse modo, algum que possua poder discricionrio em seu sentido forte
pode ser criticado, mas no pode ser considerado desobediente. No se pode dizer que ele
cometeu um erro em seu julgamento. neste sentido forte da discricionariedade que Dworkin
assenta sua crtica ao positivismo hartiano quando este afirma ter o juiz poder discricionrio,
toda vez que uma regra clara e pr-estabelecida no esteja disponvel.
133
141
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Srio. Traduo de Nelson Boeira. So Paulo: Martins Fontes,
2002, pp. 50 e segs.
142
143
134
3.2 As diferentes manifestaes do positivismo e o modo com que cada uma delas lida
com o problema da deciso
3.2.1 Positivismo legalista
144
Sobre a questo, ver: NEVES, Antonio Castanheira. Escola da exegese, In: Digesta, v. 2, Coimbra: Coimbra
Ed., 1995, n. 2, p. 109 et seq.
145
Essa construo que identifica no positivismo diferentes ramificaes explorada de forma aprofundada por
STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a letra da lei uma atitude positivista? In: Revista Novos Estudos Jurdicos, vol.
15 n.1, pp. 158-173/jan-abr 2010.
135
Neste caso, o direito nunca poderia ser analisado numa perspectiva quer
semntica, quer pragmtica. Esse fato acaba por produzir um reducionismo na anlise do
direito, na medida em que os problemas interpretativos no so problematizados em anlises
exclusivamente sintticas.
Esse ponto est na raiz das crticas que o movimento do direito livre e a
jurisprudncia dos interesses faro s teorias positivistas (legalistas). Urge ressaltar que esses
movimentos no deixavam de ser positivistas. Todavia, como ser abordado no captulo 10, a
abordagem por eles proposta possua um ntido carter sociolgico.
136
137
convem transcrever a sntese realizada por Marcelo Cattoni a respeito das teses de Kelsen
sobre a interpretao:
146
CATTONI, Marcelo. Processo Constitucional. 2 ed. Belo Horizonte: Pergamum, 2013, pp. 37-39.
138
Kelsen apresenta duas teorias: uma esttica, em que o direito entendido como
um sistema de normas em vigor; e uma dinmica, que tem por objeto o processo jurdico em
147
Nesse sentido, conferir tambm TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. ABBOUD, Georges. CARNIO, Henrique
Garbelini. Introduo Teoria e Filosofia do Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, passim.
148
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 1985, passim. Cf. tambm LOSANO,
Mario G. Sistema e estrutura no direito, v. 2. So Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 51 et seq.
139
que o direito produzido e aplicado, o direito em seu movimento. De acordo com a maneira
estrita com que Kelsen explora o objeto da cincia jurdica, surgem dois importantes
conceitos: o de norma jurdica e o de proposio jurdica. As proposies jurdicas so juzos
hipotticos que enunciam ou traduzem que de conformidade com o sentido da ordem jurdica,
nacional ou internacional, dada ao conhecimento jurdico, sob certas condies ou
pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas consequncias pelo mesmo
ordenamento determinadas. So exemplos de proposies jurdicas: se algum comete um
crime, deve ser-lhe aplicada uma pena, se algum no paga uma dvida, deve ser procedida a
execuo forada. J as normas jurdicas no so juzos, elas so mandamentos, imperativos,
comandos, permisses ou atribuies de poder ou competncia, so prescries.149
149
150
140
151
Mister salientar que a obra Teoria Pura do Direito movimenta-se no espao da cincia do direito. Assim, ainda
que o objeto da cincia jurdica sejam as normas, a cincia, em si, no produz norma. Ela somente produz
proposies a respeito das normas, constituindo-se assim, em uma metalinguagem bem ao estilo do empirismo
lgico formulado pelos frequentadores do Crculo de Viena.
152
importante anotar algumas coisas em torno do que o neokantismo de Marburgo representou para a
experincia jurdica. Seu primeiro representante de projeo foi Rudolf Stammler, que conservou do kantismo a
necessria distino entre a fenomenalidade do direito positivo e o conhecimento que o filsofo dele pode obter
mediante um juzo de reflexo. O direito positivo da ordem do fato e do a posteriori. Em compensao, ele
observa que uma cincia do direito necessita elevar-se ao conceito de direito considerado em sua validade
universal. Esse procedimento permite observar nele a idia que o anima a priori. Como Kant e
posteriormente Kelsen Stammler estima que a pureza do direito (exigncia racional a priori) deve ser a busca
fundamental da cincia do direito e que indispensvel expurg-la de toda contaminao pela moral ou pela
histria (Cf. GOYARD-FABRE, Simone. Filosofa Crtica e Razo Jurdica. So Paulo: Martins Fontes, 2006, p.
228). Isso decorre, numa perspectiva mais ampla, da prpria orientao predominante em Marburgo.
141
Neste nvel, ele efetua o corte radical entre direito e moral, ou qualquer outro
tipo de manifestao tico-valorativa, ao mesmo tempo que exclui qualquer tipo de
abordagem psicologicista sobre o direito. Desse modo, o objeto de sua epistemologia jurdica
apresenta-se exclusivamente dado pelo sistema de normas jurdicas, que imprimem sentidos
nos atos sociais153.
153
Cf. WARAT, Luis Alberto. Epistemologia Jurdica e Ensino do Direito. Florianpolis: Fundao Boiteux,
2004, pp. 241 e segs.
154
142
constituda a partir de uma ordenao normativa encadeada hierarquicamente que tem como
ponto de interrupo uma criao gnoseolgica de Kelsen, chamada norma fundamental.
Outro ponto que foi introduzido por Kelsen foi tratar da relao entre as
normas jurdicas na perspectiva de um ordenamento jurdico. Por mais paradoxal que possa
parecer, o conceito de ordenamento jurdico s colocado como um problema autnomo no
contexto da cincia jurdica produzida no sculo XX. Antes disso, havia uma preocupao
com o sistema e com sua coerncia interna, mas essa perspectiva, como afirma Bobbio, ficava
restrita descrio da prpria norma jurdica: a norma jurdica era a nica perspectiva a
partir da qual o direito era estudado. O ordenamento jurdico era, quando muito, um
conjunto de muitas normas, mas no um objeto autnomo de estudo, com seus problemas
particulares e diversos.155
Certamente, isso tem uma razo: as anlises sistemticas do sculo XIX, como
veremos adiante mais amide, ficavam restritas ao direito privado, orbitando em torno dos
155
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 2007, Cap. III, n.1, p. 174.
143
Como dito acima, em sua Teoria Pura do Direito, Kelsen isolou os problemas
referentes ao ordenamento jurdico naquilo que ele chamou de dinmica jurdica, enquanto
que os estudos sobre a norma foram reservados para uma parte inicial que ele nomeou de
esttica jurdica.
144
156
145
Com efeito, Kelsen formulou a tese de que o ordenamento jurdico possui uma
estrutura suprainfraordenada. Essa estruturao do ordenamento , por vrias vezes, remetida
clssica metfora da pirmide normativa. Embora no seja errado mencionar essa
estrutura suprainfraordenada a partir dessa metfora, no se pode dizer que ela tenha sido
descrita por Kelsen em sua Teoria Pura do Direito. Mais especificamente, ela aparece em um
texto produzido pelo autor para explicar comunidade acadmica a novidade de sua teoria.157
Cf. KELSEN, Hans. El mtodo y los conceptos fundamentales de la Teora Pura del Derecho. Madrid:
Editorial Reus, 2009, n. 32, pp. 68 e segs.
146
147
Durante toda sua vida, o tema da norma hipottica fundamental foi, certamente,
o maior espinho terico de Kelsen (verdadeiro calcanhar de Aquiles de sua teoria). Por
diversas vezes, ele alterou sua definio de modo que podemos registrar, aqui, ao menos duas
delas: a) em um primeiro momento, Kelsen afirma ser a norma hipottica fundamental o
resultado de uma operao lgica conhecida por tautologia: ela porque ; fundamento
porque fundamento. Anos depois, em sua obra pstuma chamada Teoria Geral das Normas,
Kelsen se apropria da filosofia do como se (Alsob Philosophie) de Hans Vaihinger para
afirmar que a norma hipottica fundamental seria uma fico necessariamente til, sem a qual
no seria possvel pensar em um fundamento unitrio para todo o ordenamento jurdico.
Por fim, calha registrar que mesmo autores que refinaram a teoria sobre o
ordenamento jurdico continuaram seguindo as intuies fundamentais de Kelsen. Norberto
Bobbio que produziu um trabalho notvel sobre o tema confessava expressamente que, em
linhas gerais, continuava seguindo a teoria kelseniana. Nas palavras do autor:
158
159
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito... cit., Parte II, cap. II, n. 9, p. 199.
148
160
Existem muitas peculiaridades no modo como o conceito de sistema foi articulado no interior do pensamento
jurdico ao longo da histria. No h espao aqui para se descer a esse grau de mincias. Assim, remetemos o
leitor para LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. cit., vol. I e II, passim.
149
Bobbio define a antinomia como sendo uma situao em que so criadas duas
normas, sendo que uma obriga e a outra probe. Ou uma obriga e a outra permite, ou uma
probe e a outra permite o mesmo comportamento. Ademais, essas normas precisam ter o
mesmo mbito de validade, ou seja, devem existir no mesmo mbito temporal, espacial,
pessoal e material;
161
Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. cit., Parte II, cap. III, n. 17, p. 238.
162
Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. cit., Parte II, cap. III, n. 17, p. 238.
150
Por fim, calha registrar que todo esse discurso em torno do problema das
antinomias reivindica algo que nomeado por Bobbio de dever de coerncia. Esse dever de
coerncia pode ser analisado na dimenso legislativa ou na dimenso judicial.163
Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. cit., Parte II, cap. III, n. 20, p. 254.
151
152
possibilitava uma atividade criativa por parte dos juzes. Era uma zona de lacuna ou de Freies
Recht (direito livre), que possibilitava ao juiz uma atividade de colmatao.
164
153
Esse ponto, alis, oferece uma tima amostra do anacronismo que acomete o
direito brasileiro, em especial a processualstica. Ao mesmo tempo, demonstra como a teoria
do direito no faz parte das preocupaes daqueles que influem diretamente na construo do
discurso legislativo. O Cdigo de 1973 e o projeto da comisso de juristas de NCPC fala(va)
em lacuna ou obscuridade da lei, um problema enfrentado pela teoria do direito do final do
sculo XIX e do incio do sculo XX, a partir dos movimentos que se seguiram
jurisprudncia dos interesses e ao movimento do direito livre. Assim, tanto o cdigo vigente,
165
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral do Direito. cit., Parte II, cap. IV, p. 286 e segs.
154
jurdico.
Ocorre
que
ordenamento
jurdico
seria
um
conceito
166
155
A discusso sobre o mtodo, tanto no mbito da filosofia como no campo das diversas cincias, foi objeto de
exaustiva anlise de muitos autores das mais diversas tradies tericas e recortes argumentativos. Indicamos
aqui obras que, de um modo ou de outro, capilarizam os debates realizados. Cf. STEIN, Ernildo, A Questo do
Mtodo na Filosofia. 3. ed., Porto Alegre: Movimento, 1983, em especial captulo II, n. 4, pp. 97-112. Para
determinao do mtodo no mbito das chamadas cincias humanas ou do esprito (Geistwissenschaften)
discurso no interior do qual est inserido o Direito assume particular importncia a obra de Dilthey. Nesse
sentido, consultar DILTHEY, Wilhelm, Introduo s Cincias Humanas. Traduo de Marco Antnio Casanova.
Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2010, n. XII, pp. 68-74. 167 Nesse sentido, conferir tambm TOMAZ DE
OLIVEIRA, Rafael. ABBOUD, Georges. CARNIO, Henrique Garbelini. Introduo Teoria e Filosofia do
Direito. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, passim.
156
do saber, fizeram com que o debate sobre o mtodo pudesse ser encarado como uma espcie
de polo unificador do discurso. Vale dizer, independentemente da rea em que se situe o
filsofo ou o cientista, a discusso sobre o mtodo por meio do qual eles organizam seus
conhecimentos ou suas tcnicas representa uma preocupao comum.
157
Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Cincia do Direito. cit., prefcio pp. XXI e XXII.
169
170
Nesse sentido, consultar STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso, cit., passim. Cf., tambm, STRECK, Lenio
Luiz. O que Isto Decido conforme minha Conscincia? cit., passim.
171
172
RAPP, Friedrich. Mtodo. In Hermann Krings, Hans Michael Baumgarten e Christoph Wild. Conceptos
Fundamentales de Filosofia. Tomo II. Barcelona: Herder, 1978, p. 530.
158
173
Tambm Gadamer faz essa observao quando aborda a questo do mtodo: Em verdade, a palavra mtodo
soa muito bem em grego. Todavia, enquanto uma palavra estrangeira moderna, ela designa algo diverso, a saber,
um instrumento para todo conhecimento, tal como Descartes a denominou em seu Discurso do mtodo.
Enquanto um termo grego, a palavra tem em vista a multiplicidade, com a qual se penetra em uma regio de
objetos, por exemplo, enquanto matemtico, enquanto mestre de obras ou enquanto algum que filosofa sobre
tica (GADAMER, Hans Georg. Hermenutica em Retrospectiva. Vol. II, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 164).
174
159
De se consignar que existem propostas metodolgicas de refinado matiz terico que procuram retratar a
metodologia jurdica como uma estratgia para equacionar a complexa relao existente entre sistema (mbito
textual) e problema (mbito ftico-normativo). Esse o caso de Antnio Castanheira Neves e da verdadeira
escola que se constitui em torno de sua obra, que pode ser notada na obra de autores como Fernando Pinto
Bronze e Jos Manuel Aroso Linhares. No que tange proposta mencionada, Cf. CASTANHEIRA NEVES, Antnio.
Metodologia Jurdica: Problemas Fundamentais. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1993, em especial n. 3,
pp. 155 e segs.
160
lei, ora a vontade do legislador. Neste momento, importante colocar corretamente a questo
da metodologia jurdica e o ambiente discursivo que lhe correspondente.
176
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de Cincia Positiva do Direito. 4 tomos. Campinas:
Bookseller, 2000.
161
De se ressaltar que a interpretao que Pontes oferece sobre o movimento do direito livre discrepa da sua
tradicional retratao como um movimento em favor do simples reconhecimento da liberdade criativa do juiz (o
imbrglio sobre as lacunas do direito) . Na verdade, nos termos formulados pelo jusfilsofo, o movimento do
direito livre implicava liberdade de investigao no direito. Vale dizer, a institucionalizao da possibilidade de
investigar cientificamente o direito, para alm do dogmatismo ingnuo do conceitualismo alemo (jurisprudncia
dos conceitos), do exegetismo francs e do formalismo anglo-americano (vale lembrar que o movimento do
direito livre, diferente das escolas metodolgicas que possuam clara identificao nacional, internacionalizouse). Essa interpretao corroborada, inclusive, pelo ttulo do opsculo que d vida ao movimento: A luta pela
cincia do direito (Der Kampf um die Rechtswissenschaft, opsculo de Hermann Kantorowicz publicado, na
verdade, sob o pseudnimo Gnaeus Flavius) que indica, a toda evidncia, seu carter cientfico e no apenas
jurisprudencial (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Sistema de Cincia Positiva do Direito. Vol. II.
Campinas: Bookseller, 2000, pp. 220 e segs.). Em ltima anlise, o movimento do direito livre seria
ressalvadas as inmeras peculiaridades da poca um ato de afirmao do desprendimento do Direito da
Metafsica; de constituio verdadeira de uma cincia do direito.
162
CAENEGEM, R. C. Van. Uma introduo histrica ao Direito Privado. So Paulo: Martins Fontes, 2000, n. I.,
p. 5.
179
163
180
LOSANO, Mario. Os Grandes Sistemas Jurdicos. So Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 59.
164
emerge no regime de Napoleo no pode ser interpretado, nem suscitar desavenas. Ele se
basta para solucionar as disputas jurdicas produzidas pela sociedade.
Caenegem anota uma importante referncia: esse tipo de abordagem
metodolgica deve-se ao clima de total subordinao e desconfiana a que estavam
submetidas a jurisprudncia (juzes) e a erudio (doutrinadores). Assim, natural que a
escola dominante de pensamento praticasse uma interpretao literal dos cdigos, razo pela
qual ficou conhecida como escola exegtica.181
O elemento racionalista, que oferece colorido filosfico escola da exegese,
apresenta-se no carter sistemtico assumido pela codificao. Nesse sentido, importante
lembrar, com Kaufmann e Castanheira Neves, que o movimento codificador representa, em
grande medida, a realizao concreta do ideal lgico-sistemtico presente no jusnaturalismo
racionalista. 182
Em concluso:
- A sistematicidade jusnaturalista-racionalista;
181
CAENEGEM, R. C. Van. Uma introduo histrica ao Direito Privado, cit., p. 208. O autor afirma ainda que o
nome foi sugerido por E. Glasson que, no centenrio do Code civil, tratou do tema mencionando a existncia de
advogados civilistas que formaram uma espcie de escola que poderia ser chamada de Escola da Exegese.
182
Cf. KAUFMANN, Arthur. Introduo Filosofia do Direito e Teoria do Direito Contemporneas. cit., p. 83
e segs. Para Kaufmann os juristas racionalistas procediam totalmente de acordo com a escolstica, na medida
em que tambm eles estavam convencidos da possibilidade de, a partir de um nmero reduzido de princpios
superiores e apriorsticos, extrair, atravs da pura deduo, todas as regras de direito, sem ter em conta a
realidade emprica, as circunstncias espao temporais. (...) Na realidade, acabava por se proceder
empiricamente, quando se pediam emprstimos ao direito romano, cuja racionalidade se enaltecia (era o tempo
da recepo). S assim puderam nascer os grandes cdigos jusnaturalistas. Tambm Castanheira Neves afirma
que o jusnaturalismo moderno-iluminista preparou desde meados do sc. XVIII, e consumou-se, a partir de
1794 (a data do Cdigo prussiano) na codificao. Os cdigos iluministas, e mesmo o ps-revolucionrio Code
civil francs de 1804 outra coisa no foram, fundamentantemente, do que a consagrao dos sistemas
racionalmente construdos pelo jusnaturalismo moderno-iluminista em positivo-codificados sistemas legislativos
(CASTANHEIRA NEVES, Antonio. A Crise Actual da Filosofia do Direito no Contexto Global da Crise da
Filosofia. Tpicos para a possibilidade de uma reflexiva reabilitao. Coimbra: Coimbra editora, 2003, p. 2627.). Desse modo, fica claro que o jusnaturalismo moderno no apenas preparou o caminho para a codificao,
como se consumou nela. Em outra obra Castanheira Neves vai alm da tese da consumao do direito natural na
codificao, procurando apontar para a maturao dos conceitos fundamentais do positivismo jurdico j ao
tempo do perodo racionalista-iluminista Cf. CASTANHEIRA NEVES, Antnio. Curso de Introduo Ao Estudo do
Direito. Coimbra, 1976, Parte II, passim.
165
183
O historiador belga retrata essa tese em diversas obras. Em maiores detalhes ela aparece em CAENEGEM, R. C.
Van. Judges, Legislators & Professors. Chapters in European Legal History. Cambridge: Cambridge University
Press, 2002, passim. No mesmo sentido, Cf. CAENEGEM, R.C. van. European Law in the Past and the Future.
Cambridge: Cambridge University Press, 2002, passim.
166
reivindicar a indicao dos autores (doutrinadores) que captanearam cada uma das correntes
tericas. No caso da Escola Histrica, o grande nome Friedrich Carl von Savigny184.
Importante referir, j de incio, que a escola histrica apresenta elementos
importantes para a afirmao posterior do pandectismo, cujo ponto culminante atingindo
com o formalismo conceitual da Jurisprudncia dos conceitos e que dar vida ao BGB
(Brgerliches Gesetzbuch) de 1900. Alm disso, Savingy e seu historicismo influenciou, de
maneiras diversas e em variados graus, juristas como Rudolf von Ihering e Friederich Puchta.
Sobre o historicismo e o mtodo da Escola Histrica, calha comear com uma
afirmao de Jos Lamego que aponta para a existncia de um peculiar tipo de miscigenao
uma ambiguidade, na verdade no interior do historicismo, que envolve elementos
claramente modernos (como o ideal de sistema), com ingredientes de reao ao processo de
afirmao da modernidade (de afirmao das vivncias histricas, de crtica ao racionalismo e
de reabilitao da tradio).185
Na verdade, o historicismo opera, efetivamente, o trnsito do jusnaturalismo
para o juspositivismo (entendido como nfase ao direito positivo, mas no numa perspectiva
de cincia positivista, como se constri a partir do sculo XIX). Fica ao meio do caminho,
mas no nem jusnaturalista (ao contrrio, representa uma postura crtica com relao ao
racionalismo) e tampouco positivista, haja vista a nfase que se d contextualizao
histrica quase exotrica dos institutos jurdicos.
A escola histrica, nessa perspectiva, opera uma reao aos postulados de
supratemporalidade dos ideais de justia existentes no ambiente jusnaturalista, afirmando ser
184
Sobre a vida e obra de Savigny Cf. LPEZ, Frederico Fernndz-Crehuet. La perspectiva del sistema en la obra
y vida de Friedrich Carl von Savigny. Granada: Editorial Comares, 2008, passim.
185
Cf. LAMEGO, Jos. Hermenutica e Jurisprudncia. Anlise de uma recepo. Lisboa: Fragmentos, 1990,
n. 1.1.1., p. 19
167
186
Sobre essa problemtica Cf. LPEZ, Frederico Fernndz-Crehuet. La perspectiva del sistema en la obra y vida
de Friedrich Carl von Savigny. cit., pp. 117 e segs.
187
168
188
189
190
191
169
unanimes em afirmar que dessa estrutura metodolgica que a cincia do direito da Europa
continental, ainda hoje, retira seus fundamentos.
192
Cf. WIACKER, Franz. Histria do Direito Privado Moderno. cit., parte IV.
193
170
erudito, enquanto que a experincia francesa, como vimos, coloca nfase na figura do
legislador.
No contexto da obra de Puchta, a cincia do direito deveria realizar uma
genealogia dos conceitos e agrup-los na forma de uma pirmide, estruturada segundo os
critrios da lgica formal. Do conceito mais geral, deduzem-se conceitos mais especficos e o
conhecimento jurdico deve articular-se no interior desses vrios estratos de estrutura
ascendente e descendente.
Essa rgida estrutura conceitual funciona na perspectiva do sistema.194 Todavia,
diferentemente da proposta de sistema encampada por Savigny, a estrutura sistemtica da
Jurisprudncia dos conceitos no aferida pelo nexo de institutos (dos quais derivam regras
especficas de conduta, nos termos propostos pela escola histrica), mas, sim, de um nexo de
proposies que esto alocadas no contexto da pirmide conceitual195. O nexo orgnico
reivindicado pela escola histrica transmuta-se em um nexo lgico de conceitos.
Um exemplo de como funciona o mtodo da Jurisprudncia dos conceitos pode
ser retirado da obra de van Caenegem. Depois de afirmar que a principal contribuio
acadmica para a formao do BGB foi dada pelo eminente pandecstista Bernhard
Windscheid, Caenegem assevera: o BGB um cdigo sistemtico e teoricamente coerente,
inteiramente no esprito dos pandectstas, como mostra sua importante Allgemeiner Teil
(Parte Geral). (...) Um exemplo da estrutura sistemtica do BGB e da maneira pela qual
caminha de princpios gerais at normas especficas a pirmide conceitual, acrescentamos
fornecido pelo contrato de compra e venda. Primeiro preciso consultar o Allgemeiner
Teil (artigos 116 e seguintes, artigos 145 e seguintes), em seguida os artigos sobre os
194
Cf. LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. 1. So Paulo: Martins Fontes, 2010, cap. XIII, n. 5,
pp. 337 e segs.
195
171
princpios gerais das obrigaes (artigos 275 e seguintes), depois os princpios gerais sobre
obrigaes contratuais (artigos 305 e seguintes) e, finalmente, os artigos sobre contratos de
venda em particular (artigos 433 e seguintes).196
Nesse ilustrativo exemplo apresentado por Caenegem, fica fcil assimilar o
movimento dedutivo descendente presente no mtodo da Jurisprudncia conceitual. No caso
retratado por Caenegem o procedimento se instala no sentido geral-particular. Todavia, o
movimento poderia, tambm, ser inverso, ascendente, particular-geral: de um contrato de
venda particular induzir-se-iam elementos sobre os princpios gerais das obrigaes
contratuais, voltando-se s disposies sobre os princpios gerais das obrigaes, at desaguar
nas regras contidas na Parte Geral. Qualquer movimentao, seja ela ascendente (indutiva),
seja ela descendente (dedutiva), est abarcada pelo mtodo da Jurisprudncia dos conceitos.
Diante disso, possvel perceber que o modelo de Direito Privado, em especial
o Cdigo Civil, existente no Brasil caudatrio desse tipo de procedimento metodolgico.
Mesmo o Cdigo promulgado em 2002, manteve, em suas grandes linhas, o mtodo formalconceitual produzido pela cincia das pandectas.
Nesse sentido, extremamente instigante uma colocao efetuada por Jos
Reinaldo de Lima Lopes tendo em vista o tipo de pensamento jurdico que predominava no
Brasil no sculo XIX. Segundo Lima Lopes, a essa poca nos tornamos uma nao fortemente
influenciada pela pandectstica alem e, ao mesmo tempo, passamos a fazer doutrina com
autores franceses e italianos que, como vimos com relao aos franceses, pouco ou nada tem a
ver com o direito civil alemo.197
196
CAENEGEM, R. C. van. Uma introduo histrica ao Direito Privado. cit., pp. 221-222.
197
LIMA LOPES, Jos Reinaldo de. O Direito na Histria. Lies Introdutrias. op., cit., n. 3, p. 24.
172
198
199
173
200
174
raiz desse movimento metodolgico esto outras duas posturas tericas que, cruzadas, servem
de impulso para Heck e seus seguidores: trata-se do pensamento professado pelo segundo
Ihering e dos postulados defendidos pelo chamado movimento do direito livre.
Com relao a Rudolf von Ihering, calha registrar que comum, entre os
estudiosos de sua obra, dividi-la em dois momentos distintos:
a) em um primeiro momento registrado no magistral Esprito do Direito
Romano encontramos um Ihering ainda ligado filosofia sistemtica que, embora j
demonstre um profundo senso crtico com relao s teses do historicismo de Savigny,
continua ainda a buscar os nexos orgnicos que possibilitem a construo do fenmeno
jurdico. Na referida obra, o jusfilsofo trata, em diversos pargrafos, daquilo que ele
chamava de alfabeto jurdico, uma espcie de cabedal conceitual que o jurista precisa ter
disposio para poder articular o conhecimento sobre o Direito.201
b) Em um segundo momento tem-se uma ruptura com esse elemento
sistemtico, que ligava sua obra pandectstica, e o jusfilsofo passa a professar um tipo de
proto Jurisprudncia sociolgica inspirado no darwinismo social com sua ideia de
finalidade do direito.202
esse segundo momento da obra de Ihering203 que ir inspirar os partidrios
da Jurisprudncia dos interesses.
201
IHERING, Rudolf von. O Esprito do Direito Romano. Vol. III. Rio de Janeiro: Alba, 1943, 43, I, pp. 24 e
segs.
202
Cf. IHERING, Rudolf von. A Finalidade do Direito. Tomo I. Campinas: Bookseller, 2002, l, pp. 225 e segs.
Essa diviso entre os momentos da obra de Ihering tambm explorada por Losano em seu Sistema e Estrutura
no Direito, cit., vol. 1., n. XIV, pp. 349 e segs., e vol. 2., n. IV, pp. 150 e segs.
203
Importante consignar que a obra de Ihering tem sido dividida pelos seus estudiosos em duas fases. A primeira
fase (ou o Ihering I) corresponde aos seus primeiros trabalhos, incluindo o monumental Esprito do Direito
Romano. Nesse primeiro momento, as premissas de sua teoria ainda se encontram em alguma medida vinculadas
escola histrica e ao desenvolvimento da "Cincia das pandectas". Embora haja peculiaridades com relao
175
composio de seus textos, certo que essa sua primeira fase marcada por um certo esforo conceitualista, na
linha do que vinha sendo desenvolvido at ento. Por outro lado, a segunda fase de seu pensamento (ou Ihering
II) marcada profundamente por uma aproximao ao que, naquele tempo, ficou conhecido como darwinismo
social. O texto que marca essa viragem da obra de Ihering A finalidade do Direito, no qual se desenvolve um
raciocnio teleolgico-evolucionista para a construo da teoria jurdica (h algumas tradues para o portugus
que traduzem o ttulo dessa obra por A Evoluo do Direito). Foi esse segundo momento da obra de Ihering que
acabou por influenciar os movimentos libertrios da cincia jurdica a que o texto faz referncia). Para
aprofundamento, Cf. LOSANO, Mrio. Sistema e Estrutura no Direito. op., cit., volumes I e II, passim
204
205
Cf. LOSANO, Mrio. Sistema e Estrutura no Direito. cit., vol. 2., n. IV, 5, pp. 150-151.
Importante registrar que autores importantes, ligados aos altos crculos da universidade alem, foram
influenciados pela leitura desse texto. Esse o caso de Oskar von Bllow tido como o fundador da cincia
processual. Mario Losano, no segundo volume de seu Sistema e Estrutura do Direito, indica a vinculao de
Bllow a esses movimentos antissistemticos que polularam no final do sculo XIX e incio do sculo XX.
Interessante que Losano traz colao um depoimento de Gustav Radbruch poca tambm vinculado ao
Direito Livre no qual se afirma que a opo pelo pseudnimo que levou ao relativo sucesso do manifesto,
176
pois conferiu ao texto de um jovem pesquisador a aparncia de um escritor experiente, com autoridade para
tratar dos temas ali abordados. Nos termos do depoimento de Radbruch, foi esse fator, provavelmente, que
possibilitou a leitura e aderncia de juristas de renomado prestgio como o caso de Franz Klein e do prprio
Blow (Cf. LOSANO, Mrio. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. II. So Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 153154).
206
LOSANO, Mrio. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. II. So Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 160.
177
decises contra legem. A Jurisprudncia dos interesses, ento, pode ser entendida como uma
ala moderada do movimento do direito livre.207
Tal qual os adeptos do direito livre, Heck criticava a falcia conceitual da
Jurisprudncia dos conceitos. Segundo Losano, essa falcia se apresenta da seguinte maneira:
considerar ser possvel deduzir logicamente as normas umas das outras, quando na verdade a
deduo opera a partir de conceitos gerais preexistentes na mente de quem aplica do direito.208
Como alternativa, Heck apontava para a dimenso concreta dos interesses em
conflito de modo a demonstrar como a obra mais preciosa da pandectstica o BGB de 1900
no conseguia regular plenamente o tecido social. Era preciso suprir as insuficincias do
pensamento lgico dedutivo puro com elementos intuitivos que o jurista perceberia na
realidade social concreta. Portanto, apenas um estudo sociolgico da gnese dos interesses
que levaram o legislador a criar a lei que poderia preencher os espaos lacunosos dessa
mesma lei. O mtodo para compor os interesses em conflito era dado por uma ponderao
(Abwgung), que deveria apontar para o interesse que deveria prevalecer.
Assim que se inaugura uma nova perspectiva metodolgica que voltar a
aparecer na chamada Jurisprudncia dos valores: a ponderao. Para Heck, toda norma
jurdica representa uma tentativa de conciliar, segundo um princpio de ponderao
(Abwgung) os interesses opostos que, sociologicamente, aparecem na base dessa mesma
norma.
207
LOSANO, Mrio. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. II. So Paulo: Martins Fontes, 2010, p 164.
208
LOSANO, Mrio. Sistema e Estrutura no Direito. Vol. II. So Paulo: Martins Fontes, 2010, Idem.
178
209
179
Trata-se de uma poca retratada por autores como Larenz, Lamego e Haverkate
como a da perda das certezas jurdicas210.
Isso deve-se, em grande parte, a uma peculiaridade histrica que cerca a
Jurisprudncia dos valores. O final da Segunda Guerra Mundial representa um marco para
composio de uma nova ordem, social, poltica e jurdica. Em termos sociais, os anos que se
seguiram a 1945 vivenciaram as agruras do perodo da reconstruo da Europa e, a partir da
dcada de 1950, desenvolveram condies de vida e igualdade sem paralelo na histria (a
chamada era de ouro do capitalismo). Politicamente, a queda do nazismo e do fascismo
enquanto inimigos comuns abriu espao para a polarizao do mundo entre as duas grandes
ideologias: o capitalismo e o socialismo. o tempo da chamada guerra fria. Juridicamente,
a principal mudana operada pelo fim do perodo blico , certamente, o novo papel
desempenhado pelas Constituies e um remapeamento global do direito pblico em face da
fora normativa dos direitos fundamentais. Todavia, um elemento que permanece pouco
explorado diz respeito ao papel que a redescoberta cultural dos Estados Unidos211
desempenhou nessa reconfigurao do jurdico.
Na ltima dcada, comearam a surgir estudos muitos deles oriundos da
cincia poltica que do conta da expanso do judge made law no continente Europeu e,
mais recentemente, pelos pases perifricos (hoje chamados de emergentes, como o caso do
Brasil)212. Ou seja, as transformaes operadas pelo constitucionalismo do segundo ps-
210
Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Cincia do Direito. cit., p. 1; Jos LAMEGO. Hermenutica e
Jurisprudncia. cit., passim.
211
212
Nesse sentido, importante mencionar as seguintes obras: Chester Neal TATE e Torbjrn VALLINDER. The
global expansion of Judicial Power: the judicialization of politics. in Chester Neal TATE; Torbjrn VALLINDER.
(Orgs.). The global expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995; Martin
SHAPIRO; Alec Stone SWEET. On law, politics & judicialization. New York: Oxford University Press, 2002; Ran
HIRSCHL. Towards juristocracy. The origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge:
Harvard University Press, 2007. H tambm textos traduzidos para o portugus e publicados recentemente na
Revista de Direito Administrativo da Fundao Getlio Vargas: Ran HIRSCHL. O novo constitucionalismo e a
180
guerra
papel
efetivo
desempenhado
pelo
Tribunal
Constitucional
Federal
181
213
214
215
182
217
Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Cincia do Direito. cit., Parte V, letra c, pp. 555 e segs.
183
Jurisprudncia dos Interesses e da Abwgung de que falava Philipp Heck. Em Larenz e nos
demais partidrios da Jurisprudncia dos valores que tratam do problema da ponderao, essa
questo diz respeito a uma ponderao da coliso normativa em caso orientada por uma pauta
valorativa.218
Por fim, importante transcrever a seguinte passagem de Losano: a expresso
intra ius demonstra que o direito ainda entendido como um conjunto coerente (um sistema
em sentido clssico, talvez), em cujo interior pode-se, porm, ir alm do direito positivo, ou
seja, alm do direito estatudo segundo os procedimentos constitucionais.219
Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Cincia do Direito. cit., Parte V, n3, pp. 574 e segs.
LOSANO, Mario. Sistema e Estrutura no Direito. n. 4, p., 256.
184
tornar objetivo o conhecimento desses valores que varia de autor para autor. Em Larenz,
como vimos, h uma nfase na conscincia jurdica dos indivduos; Esser, por sua vez,
procura estabelecer esses valores a partir da prpria sociedade e de seu contexto de vivncias.
Em seus trabalhos, o autor procura desenvolver uma espcie de Jurisprudncia
comparativa, colocando lado a lado as experincias interpretativas que se manifestam em
pases de common law e aqueles que se operam em pases de civil law. No livro Princpio e
norma na elaborao judicial do direito privado, Esser pratica esse tipo de metodologia
procurando desenvolver a partir da distino anglo-sax entre principle e rule uma
distino entre princpio e norma. Com isso o jusfilsofo se aproxima de uma abordagem que
confere nfase figura do juiz procurando, todavia, explorar meios de conteno dessa
mesma atividade. Numa passagem extremamente percuciente, Losano afirma o seguinte sobre
a obra de Esser: Visto que Esser se move num ambiente de direito continental, a ligao
entre o mundo dos princpios e as normas do ordenamento jurdico deve, de qualquer
maneira, passar atravs de um elemento legislativo, que para Esser constitudo pelas
clusulas gerais.220
A importncia de Esser deve ser referida tambm em face de sua peculiar
preocupao em apontar para a insuficincia de um pensamento jurdico autossuficiente
apontando, chamando a ateno para a necessidade de se constituir um saber jurdico a partir
de um dilogo com a filosofia, a sociologia e demais cincias sociais. Alm disso, seu
inegvel tino comparativista, abrir o estudo do direito para um dilogo produtivo entre as
tradies que compem o direito ocidental.221
220
221
Cf. ESSER, Josef. Principio y Norma en la Elaboracin Jurisprudencial del Derecho Privado. Barcelona:
Bosch, 1961, passim; ESSER, Josef. Precomprensione e scelta del metodo nel processo di individuazione del
diritto. Camerino: Edizione Scientifiche Italiane, 1983, passim.
185
3.3.5.3
Consideraes
Jurisprudncia
dos
valores
jurisprudncia
do
Bundesverfassungsgericht
Como afirmado no incio deste item, a Jurisprudncia dos Valores possui, com
relao s demais posturas metodolgicas que aqui retratamos, a peculiaridade de ter
repercutido, de alguma forma, na atividade concreta dos tribunais. Em especial, a
jurisprudncia do Tribunal Constitucional Federal alemo.
Neste caso, aquilo que ficou conhecido como revoluo copernicana do
direito pblico 222, produziu uma srie de debates reconduzindo a Constituio e o Direito
Constitucional a um lugar realmente novo no mbito da experincia jurdica vivenciada pela
Europa continental.
Dentre as mais variadas concepes, nunca demais lembrar as idias de fora
normativa da constituio223 e de aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais que, nesta
quadra da histria, condicionam efetivamente o legislador infraconstitucional.
222
Cf. HESSE, Konrad. A Fora Normativa da Constituio. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Safe,
1991, passim.
186
Como referncia, podemos citar: BverfGE 7, 198; BverfGE 7, 377; BverfGE 35, 202; BverfGE 41, 251.
Importante referir que todos os casos aqui citados so amplamente discutidos em livros j traduzidos para o
portugus. Eles podem ser facilmente encontrados em LARENZ, Karl. Metodologia da Cincia do Direito. cit.,
Parte V, n. 3, p. 576-579; ou em ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Malheiros, 2008,
passim.
225
Nesse sentido, JESTAEDT, Mathias. El positivismo jurdico aplicado al Tribunal Constitucional Alemn. El
poder del guardin y la impotencia del seor de la Constitucin. In La ponderacin en el Derecho. Eduardo
MONTEALEGRE (org.). Bogot: Universidade Externado, 2008, pp. 255 e segs..
187
Para maiores informaes sobre a discusso norte-americana acerca do chamado ativismo judicial, Cf.
WOLFE, Christopher. The rise of modern judicial review. From constitutional interpretation to judge-made law.
Boston: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994.
227
Cf. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. So Paulo: Malheiros, 2008, n. 2.2.2.1., pp. 164 e
segs.
188
Cf. JESTAEDT, Mathias. El positivismo jurdico aplicado al Tribunal Constitucional Alemn. El poder del
guardin y la impotencia del seor de la Constitucin. In La ponderacin en el Derecho. Eduardo
MONTEALEGRE (org.). Bogot: Universidade Externado, 2008, pp. 255 e segs..
189
229
Essa critica aparece na introduo 4 Edio de STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. cit., Introduo,
n. 4, pp. 47 e segs.
230
Por todos, Cf. BARROSO, Luis Roberto e BARCELLOS, Ana Paula de. O comeo da Histria: a Nova
Interpretao Constitucional e o papel dos Princpios no Direito Brasileiro. In Virglio Afonso da SILVA (org.).
Interpretao Constitucional. So Paulo: Malheiros, 2005.
190
esses que so conduzidos para dentro do sistema jurdico pela via dos princpios
constitucionais que devem ser aplicados segundo as regras da ponderao.
Streck afirma que as teses da Jurisprudncia dos valores serviram, na realidade
alem, para oferecer um mtodo que possibilitasse a abertura de uma estrutura de legalidade
extremamente fechada e rgida. As concepes de sistema predominante, inclusive, tambm
apontavam para um fechamento rigoroso do direito e para uma restrio forte da criao da
atividade judicial. Isso comeou a se alterar com a partir das denncias do movimento do
direito livre e das criticas falcia conceitual efetuada pela jurisprudncia dos interesses.
Ocorre que os fatores histricos levaram a uma dificuldade de implementao dessas teses,
que s chegaram a ser efetivamente ventiladas no mbito judicial com o final da Segunda
Guerra Mundial. A Jurisprudncia dos valores, nesse sentido, pode ser vista como um
aperfeioamento das teses da jurisprudncia dos interesses. Sua contribuio conduzir a
soluo da criao judicial do direito nos casos de lacunas pelos valores que sustentam todo
o discurso sobre o direito.
Esse ponto que parece no ter sido bem compreendido por parte da doutrina
brasileira. Como afirma Streck: os juristas brasileiros no atentaram para as distintas
realidades (Brasil e Alemanha). No caso especfico do Brasil, onde, historicamente, at
mesmo a legalidade burguesa tem sido difcil de emplacar, a grande luta tem sido
estabelecer um espao democrtico de edificao da legalidade, plasmado no texto
constitucional.231
Tambm no direito privado h uma acentuada incidncia das teses presentes na
Jurisprudncia da valorao. Isso acontece, no mais das vezes, na senda aberta pelas
chamadas clusulas gerais que, nem sempre so articuladas de forma adequada pela
231
191
232
Por todos, Cf. COSTA, Judith Martins. As Clusulas Gerais como Fatores de Mobilidade do Sistema Jurdico.
In Revista dos Tribunais, vol. 680, p. 47, Jun/1992; COSTA, Judith Martins. O Direito privado como um sistema
em construo As Clusulas Gerais no Projeto do Cdigo Civil Brasileiro. in Revista dos Tribunais, vol.
753, p. 24, Jul/1998
233
192
234
WOLFE, Christopher. The rise of modern judicial review: from constitutional interpretation to judge-made
law. Boston: Littlefield Adams Quality Paperbacks, 1994.
193
Essa questo aparece, por exemplo, nos textos de Walter Murphy (Judicial
Supremacy)235, que discute a ideia de supremacia judicial em contraposio noo de
autorrestrio; Laurence Tribe (The Invisible Constitution)236, um dos mais conhecidos
constitucionalistas estadunidense; John Hart Ely (Democracy and Distrust)237, que apresenta
uma posio bem distinta sobre o papel do judicirio na realizao da interpretao da
Constituio; Charles Beard (The Supreme Court and the Constitution)238, que faz uma ampla
reconstruo histrica sobre o nascimento do judicial review, retomando, de modo bastante
aprofundado, s peculiaridades da discusso sobre o posicionamento exarado no julgamento
do caso Marbury vs. Madison; Mark Tushnet (Taking the Constitution away from the
Courts)239, que faz uma interessante leitura sobre a relao da atuao do Suprema Corte com
a conjuntura poltica norte-americana; Alexander Bickel (The Last Dangerous Branch: the
Supreme Court at the Bar of Politics)240 e Raoul Berger (Government by Judiciary)241.
235
MURPHY, Walter F. Judicial Supremacy. In: LEVY, Leonard W.; KARST, Kenneth L.; MAHONEY,
Dennis J. (Orgs.). Judicial Power and the Constitution: selections from the Encyclopedia of the American
Constitution. New York: Macmillan, 1990, p. 54-7.
236
TRIBE, Laurence H. The invisible constitution. New York: Oxford University Press, 2008.
237
ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review. Cambridge: Harvard University Press,
2002.
238
BEARD, Charles A. The Supreme Court and the Constitution. Mineola: Dover Publications Inc., 2006.
Destaca-se que a primeira edio desta obra saiu em 1912, sendo que a segunda foi publicada em 1962, edio
esta que a mais recente em termos conteudsticos.
239
TUSHNET, Mark. Taking the constitution away from the courts. Princeton: Princeton University Press, 2000.
240
BICKEL, Alexander. The Last Dangerous Branch: the Supreme Court at the Bar of Politics. N. York: VailBallou Press, 1986.
241
194
evidente que isso se deve a uma certa posio privilegiada que desde o
incio marcou a histria norte-americana. No que tange especificamente engenharia
constitucional, este privilgio se deu basicamente por dois motivos concomitantes:
195
242
A expresso de Mirabeu e utilizada por Elster (Cf. ELSTER, Jon. op., cit., p.169).
243
196
244
Ambos citados por Elster (Cf. ELSTER, Jon. op., cit., p. 120). Alis, importante anotar que foi Elster quem
melhor trabalhou a aproximao entre a ideia de pr-compromisso que aparece na Odissia de Homero e as
modernas Constituies, principalmente aquela que representa a consagrao do constitucionalismo norteamericano. Com efeito, no pico de Homero, Ulisses, durante seu regresso a taca, sabia que enfrentaria
provaes de toda sorte. A mais conhecida destas provaes o canto das sereias que, por seu efeito
encantador, desviava os homens de seus objetivos e os conduzia a caminhos tortuosos, dos quais dificilmente
seria possvel voltar. Ocorre que, sabedor do efeito encantador do canto das sereias, Ulisses ordena aos seus
subordinados que o acorrentem ao mastro do navio e que, em hiptese alguma, obedeam qualquer ordem de
soltura que ele venha a emitir posteriormente. Ou seja, Ulisses sabia que no resistiria e, por isso, cria uma
autorrestrio para no sucumbir depois. Do mesmo modo, as Constituies poderiam ser vistas como as
correntes de Ulisses, atravs das quais o corpo poltico estabelece algumas restries para no sucumbir ao
despotismo das futuras maiorias (parlamentares ou monocrticas). Todavia, Elster revisitou essa sua construo e
a entende, atualmente, apenas parcialmente correta. Isso por uma srie de questes que no cabem serem aqui
analisadas. Para efeitos do que aqui pretendo encaminhar, entendo continuar correta a ideia de pr-compromissos
constitucionais tal qual Elster havia descrito em Ulisses and the Sirens.
245
197
Vejamos, ento, os contornos que essa jurisdio constituidora deste elo prcompromissrio receber na formao da federao americana.
De tudo o que foi dito, ao menos uma coisa parece ficar clara: a deciso de
Marshall no leading case Marbury v.s. Madson mais um ponto de chegada do que um ponto
de partida. Ou seja, nesta deciso, a Suprema Corte afirmou um mecanismo que j vinha se
sedimentando no interior da construo histrica do constitucionalismo e que encontrou as
condies adequadas para seu desenvolvimento em solo norte-americano.
importante lembrar que, nos debates sobre a unificao das treze colnias e
na redao da Constituio em 1788246, j estavam desenhados os contornos de um necessrio
controle dos atos do parlamento e do executivo com relao Constituio Federal. Isso se
d, como ressaltei no item anterior, a partir da ideia de pr-compromissos constitucionais. Por
isso a tese de Marshall, embora tenha gerado muitas controvrsias, no foi ruptural ou
inovadora no contexto do constitucionalismo norte-americano, mas, sim, ampliou a ideia de
supremacia constitucional (e, por conseguinte, de controle), sedimentando-a a partir da
atuao jurisdicional. 247
246
De se lembrar que, com a independncia das treze colnias, colocou-se em pauta o debate pela unio ou
separao de cada um dos territrios. Evidentemente que o problema passava pela afirmao de uma autonomia
administrativa de cada uma das colnias. em 1778, com a ratificao da Constituio pela maioria dos Estados,
que se culmina o processo histrico de unificao, ou melhor, de federao das colnias, que fora iniciado desde
o congresso de Albany em 1754.
247
Essa discusso em torno do posicionamento de Marshall pode ser encontrada na obra de Charles Beard, op.
cit., passim, que foi escrita justamente com o fito de colocar fim s discusses levantadas sobre a legitimadade
do judicial review.
198
Cf. MATTEUCCI, Nicola. op., cit., p. 167/169. Em traduo livre: A construo constitucional no estava
acabada: faltava uma instituio que permitisse um governo limitado e que impedisse perigosas tenses no
Estado federal; faltava, portanto, um juiz sobre a terra. A exigncia antevista por James Otis em 1761, segundo a
qual uma lei contrria a constituio nula e logo repetida em numerosos panfletos e na Circular letter de
Massachusetts (1768), tardou a afirmar-se institucionalmente, embora estivesse em plena sintonia com toda a
orientao poltica da revolta das colnias americanas contra a onipotncia do Parlamento ingls. (...) Esse
complexo de coisas confiado ao poder judicirio atravs de um correto funcionamento do sistema constitucional,
estava bem claro para os americanos que escreveram a Constituio. Mas a Constituio no previa
expressamente o judicial review, a reviso das leis por meio de um juzo judicial de constitucionalidade, muito
embora os artigos 3, seo II e 6, seo II, constitussem um pressuposto necessrio. Foi a mesma jurisprudncia
da Suprema Corte que deu corpo e realidade a este princpio; e o mrito corresponde a seu presidente, John
Marshall (...) cujas sentenas formaram um corpus imponente, que teve grande influncia no desenvolvimento
do direito americano.
199
Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na Amrica. Livro 1. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 159.
Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. op., cit., pp. 168/169.
200
251
201
Posner em 1997, cuja temtica girava em torno do ensaio de Oliver Wendell Holmes, The
Path of the Law, que, naquele ano, completava seu centenrio de publicao.
252
O autor
reescreveu e reorganizou os textos das palestras, incluiu trechos novos e respondeu a algumas
crticas que lhe foram apresentadas. O livro resultado de todo esse processo. Apresenta-se
como uma manifesto pragmaticista no direito: afirma-se nele que os mtodos de investigao
e deciso do direito no devem ser tributrios de uma teoria moral metafsica, mas, sim,
devem ser buscados pragmaticamente, no seio das cincias sociais e do senso comum.
253
abordagem mais condizente com aquilo que efetivamente se passa no mbito das prticas
decisrias no direito. Seria uma perspectiva mais profissional e menos terica de aproximao
do fenmeno jurdico.254
252
Cf. HOLMES, Oliver Wendell. The Path of Law. Kindle Book: Public Domain, 1897. O texto um programa
de uma teoria pragmtica do direito, que fez histria sob o epteto realismo jurdico. nele que se encontra a
frase de Holmes que entraria definitivamente para a posteridade: The prophecies of what the courts to do in fact,
are what I mean by the law. HOLMES, Oliver Wendell. Idem, Ibidem, pos. 58.
253
254
Para conhecer os detalhes da proposta profissionalista de Posner, ver: POSNER, Richard A. op., cit., pp. 291
e segs.
202
O jurista da escola de Chicago segue adiante para dizer que tanto a filosofia
moral quanto algumas de suas primas-irms, como a jusfilosofia e a teoria constitucional, so
impotentes para resolver questes jurdicas concretas.
256
255
256
Idem, Ibidem.
257
POSNER, Richard A. op., cit., p. XII. De se consignar que Ronald Dworkin menciona o mesmo caso em seu A
Justia de Toga. So Paulo: Martins Fontes, 2010, pp. 71 e segs.
203
204
Porm, se olhada mais de perto, essa sua anlise esconde uma srie de elementos que
comprometem toda a argumentao.
Para ele, no momento de decidir, mais importante do que o juiz conhecer tais
contedos morais (por exemplo, qual o valor da democracia no seio de uma comunidade; o
que significa a clusula de igual respeito; ou se compatvel com a Constituio uma lei que
probe o suicdio assistido por mdicos), ele ter o domnio instrumental das questes
econmicas, polticas e sociais envolvidas na questo. preciso que ele tenha um domnio,
com mxima previsibilidade possvel, sobre as consequncias geradas por sua deciso, tendo
sempre como guia a adoo da medida que traga maior benefcio ou uma melhora nas
condies gerais observadas pelas pessoas envolvidas no caso.
205
Desse modo, Posner faz uma admoestao a Dworkin, dizendo que sua
preocupao, quase realista, com os conceitos morais acaba por desvencilh-lo dessas
questes consequencialistas, produzindo, assim, um tipo de teoria da deciso que
desconsidera totalmente as condies reais que determinam in concreto o direito.
259
parte que o
260
206
improcedncia da tese , ela mesma, o que a torna mais atraente (para usar uma expresso
dworkiniana). A controvrsia sobre esse conjunto de princpios que uma questo moral
ser resolvida a partir do confronto dos vrios argumentos lanados para o caso, sendo que
prevalecer aquele que, de forma mais responsvel, demonstrar o melhor ajuste s praticas
jurdicas.
Por fim, a proposta de Posner, com toda a sua aparente indiferena s questes
morais, acaba sendo portadora de uma certa concepo de moralidade: aquela que se verifica
no utilitarismo. No fundo, o debate sobre os contedos morais dos conceitos jurdicos
inescapvel. Do mesmo modo que a reflexo terica tambm o . E isso por um motivo muito
simples: todo aquele que estiver comprometido com alguma ambio de igualdade e
democracia ter melhor sucesso se enveredar pelos caminhos da teoria. Nas palavras do
prprio Dworkin:
207
262
208
Em primeiro lugar, deve ter ficado claro que a grande ciso entre direito
publico e direito privado que ocorre no mbito do estilo de vida jurdico romano-cannico,
principalmente nas culturas ligadas aos pases do continente europeu, acaba por levar a uma
consequncia direta para o modo de se lidar com as questes relativas deciso jurdica. O
que, talvez, se mostre de maneira mais evidente, diz respeito dificuldade de se situar o
agente estatal que decide as questes jurdicas como um verdadeiro agente moral que, como
tal, est tambm implicado na deciso que exara.
209
Todavia, se olharmos para uma relao daquilo que, neste estilo de vida
jurdico se chama direito pblico, veremos que conforme afirmamos no primeiro captulo
desta pesquisa o agente decisor articular questes que tocam ou esto diretamente ligadas a
questes polticas basais que sustentam o convvio comunitrio. Usando uma linguagem da
teoria da justia, podemos dizer que uma deciso no mbito do direito pblico interfere ou
atinge diretamente, expectativas e projetos a respeito daquilo que se entende por uma vida
boa.
210
211
jurdico. H um espao cultural que o atravessa em virtude de sua radical condio histrica.
Um espao que o atinge de tal forma que o leva, necessariamente, a prestar tributos
Tradio que o vincula.
Esse espao basal, essa dimenso que sustenta a deciso, pode ser mostrada a
partir do modo como Lenio Streck vem procurando aclarar as questes em torno do conceito
de princpio no direito. Dizendo de melhor maneira, a recuperao desse tecido bsico do
apriori compartilhado, da dimenso subjacente ao discurso lgico pode ter a sua
manifestao, por assim dizer, apofntica, no mbito dos princpios.
212
chamados para atuar nos casos em que o modelo de regras no fosse suficiente para resolver
os problemas da realidade.263 No deixa de ser sugestivo o fato de que este tipo de estratgia
legislativa tenha sido utilizada, pela primeira vez, nos Cdigos dos oitocentos. Tais cdigos
tinham uma feio nitidamente privativista. Mas, o mais emblemtico que esses velhos
axiomas que foram chamados no sculo XIX de Princpios Gerais do Direito continuam a
ser aplicados em pleno Constitucionalismo Contemporneo, como se houvesse apenas uma
mera continuidade entre a nova Constituio e o regime jurdico anterior.
Tudo isso, ao fim e ao cabo, quer dizer o seguinte: toda e qualquer deciso
jurdica s ser correta (ou, na expresso utilizada em Verdade e Consenso, adequada
Constituio), na medida em que dela seja possvel extrair um princpio. Vale dizer, uma
deciso judicial hermeneuticamente correta se sustenta em uma comunidade de
princpios.264
263
264
Nesse sentido, Cf. Deciso Judicial e o Conceito de Princpio. op. cit., cap. 4.
213
Com efeito, essa afirmao tem implicaes srias. Talvez a principal delas
seja o fato de que, quando, em 1988, (re)fundamos nossa sociedade e institumos um regime
democrtico, fizemos nascer, concomitantemente, uma comunidade poltica recheada de
princpios com fortes contedos de moralidade. Chamamos isso de cooriginariedade entre o
Direito e a Moral: o espao em que se forma o discurso jurdico , desde-j-sempre, tomado
por um espectro de uma moral pblica. Essa cooriginariedade entre Direito e Moral vem
sendo mencionada em Dworkin como interconexo que, ao final, so conceitos similares.
265
266
Sobre o processo de secularizao da poltica Cf. KOSELLECK, Reinhart. Crtica e Crise. Uma contribuio
patognese do mundo burgus. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.
214
De algum modo, toda deciso jurdica tem o dever (no sentido do have a duty,
de Dworkin) de refletir esses princpios. Apenas a ttulo ilustrativo, podemos dizer que a
igualdade, o Estado de Direito, o Republicanismo, entre outros, compem esse espectro
principiolgico que, desde logo, transcende o discurso jurdico baseado em critrios
universalizantes-objetificadores prprios das teorias jurdicas que vem o direito como um
modelo de regras (como o so, no fundo, as teorias que acreditam na funo acessria dos
princpios, como argumentos para colmatao de lacunas). A garantia do direito fundamental
resposta correta depende intrinsecamente da compreenso desse fenmeno.267
Para ilustrar melhor essa questo, tomaremos como referncia uma discusso
contempornea que permeia a obra de Luigi Ferrajoli.
do
constitucionalismo
da
vinculao
jurdica
das
Constituies
e,
H vrios trabalhos que retratam a experincia das pesquisas desenvolvidas no PPG em Direito da
UNISINOS-RS, no mbito do Dasein ncleo de estudos hermenuticos, todas encampando essa preocupao
com a deciso jurdica. Nesse sentido, vale referir obra de Maurcio Ramires, na qual o autor faz uma
percuciente anlise do modo como se articulam os precedentes judiciais na operacionalidade jurdica brasileira.
Tambm com base no referencial da hermenutica filosfica, Ramires encontra o espao correto para realizar a
crtica do modo como os juzes se valem desse manancial jurisprudencial para estabelecer suas decises Cf.
RAMIRES, Maurcio. Critica Aplicao de Precedentes no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.
268
FERRAJOLI, Luigi. Constitucionalismo principialista e constitucionalismo garantista. In: ______; Lenio Luiz
Streck; Andr Karam Trindade. Garantismo, hermenutica e (neo)constitucionalismo Um debate com Luigi
Ferrajoli. So Paulo: Livraria do Advogado, 2012, passim.
215
216
A posio de Ferrajoli, nesse sentido, pode ser capitulada como uma espcie de
iluminismo constitucional, uma vez que h inmeros traos que aproximam seu
constitucionalismo garantista de elementos tericos e prticos que compunham o painel
terico-cultural do iluminismo dentre os quais, v.g., podemos citar:
ii) Por outro lado, h um certo proceder argumentativo nos termos de uma
filosofia da histria, dentro do qual o contedo regulatrio presente na ideia de progresso
condiciona a tessitura do texto. Isso fica claro tanto no modo como o autor expressa a defesa
de sua proposta terica (que aparece como um aperfeioamento ou reforo em um sentido
269
De se notar que, no ambiente cultural da modernidade, existe uma luta constante que vem desde Hobbes
no sentido de afirmar uma separao entre moral e poltica. Com efeito, a modernidade marcada por um
processo que procurou justificar os atos de governo e de imposio da fora fsica pelo poder poltico fora do
contexto teolgico que, no medievo, dava sustentabilidade poltica, a partir da unidade representada pelo poder
da igreja catlica. Os movimentos reformistas no interior da doutrina catlico-crist, a constante ecloso de
guerras civis religiosas e o posterior surgimento dos Estados Nacionais levaram formao de outros contextos
de justificao do poder poltico, que procuravam se desvencilhar das justificativas teolgicas/ontolgicas de at
ento. Portanto, a moral de uma comunidade poltica deve ser pensada nesse contexto. Todavia, as teses
iluministas foram mais radicais e reconheceram em toda e qualquer representao da moral algum tipo de
elemento irracional que deveria ser combatido pela Razo. Nossa posio, contudo procura se afastar desse
radicalismo iluminista. Ao contrrio, perfilamos a tese de que uma composio jurdica desde sempre sofre os
influxos da moralidade (que aquilo que lhe confere legitimidade), mas essa moralidade, justamente por ser
moral, no est a servio de uma crena pessoal ou da representao subjetiva que uma conscincia isolada
possui da sociedade. Essa moralidade instalada no espao pblico sendo, por isso, desde sempre uma moral
compartilhada.
217
270
Cf. FERRAJOLI, Luigi. Principia Juris. Teoria del dirito e della democrazia. Roma: Editori Laterza, 2007, 2 v.,
pp. 83 e segs.
218
Diante disso, parece correto afirmar que a critica de Ferrajoli acerta em cheio
as propostas tericas que, de um modo ou de outro, esto em dilogo com Robert Alexy. Seja
porque defendem um modelo de complementao entre o direito e a moral (na terminologia
da teoria da argumentao alexyana: uma relao de complementariedade entre o discurso
prtico especial, que o direito, e o discurso prtico geral, que a moral), seja porque
reconhecem na ponderao um procedimento til para soluo daquilo que, com base na
271
Em virtude dos limites deste trabalho, no possvel abordar todas as nuances que separam a ideia de
interrelao entre direito e moral de Dworkin (tal como aparece expressa, com maior refinao, em A Justia de
Toga. So Paulo: Martins Fontes, 2010, em especial a introduo) da tese da complementariedade entre direito e
moral, como quer Robert Alexy (de modo emblemtico, essa questo est descrita em La institucionalizacin de
la justicia. Granada: Editorial Comares, 2005). Para um aprofundamento dessa questo, ver: STRECK, Lenio
Luiz. Hermenutica Jurdica e(m) Crise. 10 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, em especial o psposfcio; e TOMAZ DE OLIVEIRA, Rafael. Deciso Judicial e o Conceito de Princpio. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008, em especial o item 4.
219
Nessa medida, h que se perguntar: ser que, diante de uma anlise cuidadosa,
a obra de Dworkin poder continuar a figurar como objeto da crtica efetuada pelo
constitucionalismo garantista?
220
consequncias,
que
no
esto
presentes
nas
teorias
A pergunta guia dessa investigao quer saber como possvel que esse juzo
de substancialidade da lei (e, em ltima anlise, dos demais atos do poder pblico) possa ser
feito de uma forma neutra, a partir de um ponto situado do lado de fora da leitura moral.
Queremos saber quais so as condies de possibilidade desse juzo de substancialidade da
lei e, ao final, afirmamos que esse juzo s possvel nos termos de uma leitura moral da
Constituio.
273
importante notar que h uma diferena entre argumentao e interpretao. A teoria de Dworkin, embora
use recorrentemente o termo argumento, uma teoria interpretativa e no argumentativa, vale dizer, Dworkin
no pode ser considerado um terico da Teoria da Argumentao. Essa sutileza no passou despercebida por
Paul Ricoer que no texto interpretao e/ou argumentao demonstra que diferentemente da teoria de Robert
Alexy, que possui a caracterstica de reivindicar para a pratica argumentativa geral a qualidade de Begrndung,
ou seja, de fundamentao, Ronald Dworkin est muito mais interessado no horizonte poltico-tico no qual se
desdobra a prtica interpretativa do direito. Para ele, afirma Ricoeur, o direito inseparvel de uma teoria
poltica substantiva. esse interesse ltimo que, afinal, o afasta de uma teoria formal da argumentao jurdica
(RICOUER, Paul. Interpretao e/ou Argumentao. In: O Justo. Vol. 1. So Paulo: Martins Fontes, 2008, pp.
153/173.
221
Do que foi dito acima, fica claro que Ferrajoli desfere um duro golpe naquelas
posies terico-filosficas que ele classifica como sendo parte do constitucionalismo
principialista. Afirma que todos os autores defensores desse principialismo constitucional
esto associados, de algum modo, a um modelo jusnaturalista ou tico objetivista de
fundamentao do direito. Demonstra como a reivindicao de uma conexo (necessria)
entre direito e moral pode nos colocar em um rumo no democrtico, que acabaria por
desembocar num tipo extremamente pernicioso de dogmatismo moral; que a distino entre
regras e princpios, no modo como vem sendo realizada, enfraquece o papel normativo das
constituies e, portanto, da hierarquia das fontes; e que estes fatores, associados ao modelo
ponderativo de aplicao do direito, levam ao ativismo judicial e ao enfraquecimento da
submisso dos juzes lei, colocando em xeque as fontes de legitimao da jurisdio.
222
274
223
275
STRECK, Lenio Luiz. O que isto decido conforme minha conscincia? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.
224
interconexo (no termo proposto, recentemente, por Ronald Dworkin) defende esse tipo
subjetivista de moral, decorrente de um cognitivismo tico.
225
277
Ibid., p. 212-3.
226
O que se quer dizer : essa dimenso moral da interpretao jurdica nada mais
faz do que tornar explcita, na superfcie do discurso, a dimenso de experincias que
compartilhamos no mbito do tecido bsico, na dimenso pr-reflexiva que est subjacente
relao sujeito-objeto. Portanto, a explicitao desses elementos interpretativos ou, como
diramos de melhor maneira, elementos hermenutico do direito que nos permite dar
resposta aos problemas jurdicos. o que permite que a deciso jurdica seja pronunciada.
227
das vagas que compem o Congresso Nacional estavam constantemente assujeitados por
candidatos com conhecidas e contumazes passagens pelos tribunais, respondendo por
processos de crimes graves, como evaso de divisas, lavagem de dinheiro, peculato e outros
crimes contra a administrao pblica (muitos com condenao inclusive em grau de reviso,
ou seja, em segundo grau de jurisdio), e que, ainda assim, continuavam a ser eleitos.
278
Essa situao gerou um sentimento de indignao por boa parte da populao brasileira, uma
vez que essa convivncia espria do sistema poltico com agentes pblicos respondendo a
vrios processos judiciais e com grandes indcios de m conduta na administrao da coisa
pblica acarretava/acarreta um descrdito das instituies democrticas. Tornou-se lugar
comum, tanto nos veculos de opinio da grande mdia, quanto em alguns setores da
comunidade jurdica, dizer que essa situao afrontava os ditames de moralidade
administrativa e que, portanto, haveria por parte do congresso a necessidade de se criar uma
legislao que desse efetivo cumprimento a essa regra constitucional (prevista no art. 37,
caput, da CF/1988 279).
Apenas a ttulo de curiosidade, importante lembrar que, em 2008, a AMB (Associao dos Magistrados
Brasileiros) promoveu uma ADPF (Arguio de Descumprimento de Preceito Fundamental), que um
mecanismo do controle concentrado de constitucionalidade previsto no art. 102, 1 da CF/1988, pedindo para
que fossem levados em conta como critrios para a aferio da elegibilidade dos candidatos a cargos eletivos os
antecedentes criminais e possveis aes de improbidade administrativa em curso. Esse pedido aconteceu em
2008, nas vsperas das eleies municipais, e suscitou um grande debate. Na oportunidade, o STF decidiu que o
pedido no poderia ser procedente uma vez que era contrrio presuno de inocncia garantida pela
Constituio (para uma anlise aprofundada do contedo dessa deciso Cf. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e
Consenso. 3 ed. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2009, p. 547 e segs.). Ocorre que, em 2009, mesmo depois da
deciso do Supremo em sentido contrrio, o tema continuou na pauta poltica do pas e acabou chegando, pela
via da iniciativa popular, ao Congresso Nacional brasileiro, na forma de Projeto de Lei Complementar. Em junho
de 2010, o congresso aprovou o projeto, dando origem Lei Complementar n. 135/2010, que originou o
imbrglio jurdico retratado no texto.
279
Teor do artigo 37, Caput da CF/1988: A administrao pblica direta e indireta de qualquer dos Poderes da
Unio dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios obedecer aos princpios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficincia e, tambm, ao seguinte:
228
presuno de inocncia. Trata-se de uma garantia constitucional que impede que o Estado
submeta o indivduo sua fora aplicando-lhe algum tipo de pena que lhe restrinja direitos,
seja esse direito a liberdade de ir e vir, seja esse direito o de votar e ser votado sem que
antes esse uso da fora fsica por parte do Estado esteja legitimado pelo estrito cumprimento
do devido processo legal. No caso brasileiro, para efeitos de decretao definitiva da
condenao (condio para legitimar a aplicao da pena por parte do Estado, ressalvados,
evidentemente, os casos em que a lei estabelece legitimamente a necessidade das prises
cautelares), a Constituio exige que sejam esgotadas todas as instncias recursais previstas
em nosso sistema processual ( essa a presuno de inocncia, prevista no artigo 5, inciso
LVII280 da CF/1988).
Eis o texto do inciso LVII do art. 5 da CF/1988: Ningum ser considerado culpado at o transito em
julgado de sentena penal condenatria.
229
senadores da repblica (conhecido como o famigerado caso dos mensales, que envolveu
membros de praticamente todos os partidos polticos do pas), abriu espao para que fosse
defendida uma alterao da lei eleitoral para que esses desvios de conduta pudessem ser
devidamente coibidos. Ou seja, a necessidade de moralizar o processo poltico impunha a
consagrao de uma legislao que se mostrasse apta consecuo de tal desiderato.
230
281
Essa a posio assentada pelo Min. Carlos Aires Britto em voto proferido no RE 633703-MG. Na verdade,
alm da virtual inconstitucionalidade da Lei n. 135/2010, pela afronta garantia da presuno de inocncia, h
outras inconstitucionalidades que podem ser a ela atribudas. No caso do recurso no qual o Min. Aires Britto
proferiu seu voto, o que se questionava era uma afronta ao art. 16 da CF/1988, que determina que lei que altera
regras do processo eleitoral s pode ser aplicada s eleies depois de um ano de sua entrada em vigor. No caso,
a lei foi aprovada em 2010 e teve sua aplicao determinada por alguns rgos da Justia Eleitoral j nas eleies
de 2010. Ofendeu, portanto, a regra da anterioridade anual presente no art. 16. No julgamento do citado Recurso
Extraordinrio, o STF excluiu a aplicao da lei s eleies de 2010. Porm, no houve pronunciamento da Corte
com relao inconstitucionalidade da lei por afrontar a garantia da presuno de inocncia. A questo encontrase, portanto, em aberto. Todavia, j no julgamento desse recurso extraordinrio, alguns ministros indicaram a
forma como votariam caso o objeto de anlise fosse a constitucionalidade da lei em tese e no sua aplicao s
eleies de 2010, como era o caso. O Min. Aires Britto foi um destes: sua posio vai no sentido de que a
garantia dos direitos individuais no pode esvaziar a efetividade dos direitos sociais. Portanto, na interpretao
por ele construda, a restrio garantia de presuno de inocncia se justifica em face do interesse maior, de
cunho social, de moralizao do processo poltico. Resta saber se essa construo permanece de p diante da
leitura moral da Constituio.
231
232
283
questo? Ou seja, a chamada lei da ficha limpa est ou no de acordo com a Constituio
brasileira de 1988?
282
283
Na 4 Ed. de Verdade e Consenso (Saraiva, 2011), Lenio Streck escreve uma longa introduo procurando
apontar para o ambiente no qual o livro e, no limite, toda sua obra deve ser lida. Nela, o autor apresenta aquilo
que ele chama de recepes equivocadas realizadas pelo pensamento constitucional brasileiro que, diante de uma
constituio normativa sem uma Teoria da Constituio adequada, foi obrigado a importar teorias produzidas por
outras culturas. Muitas vezes essas teorias acabam sendo adaptadas ao ambiente cultural brasileiro, produzindo
resultados patolgicos. Uma dessas recepes equivocadas refere-se, exatamente, ponderao proposta por
Alexy. Na verso brasileira da ponderao, pondera-se sem critrios. No se aplica a frmula quanto-tanto,
criada por Alexy justamente para conferir racionalidade ao procedimento utilizado pelo Tribunal Constitucional
Alemo. Resultado disso uma jurisprudncia constitucional que, muitas vezes, se apresenta em estado de
fragmentao, vindo a ocorrer situaes interessantssimas, como casos em que, num mesmo julgamento,
ministros diferentes, fundamentando sua posio na ponderao, chegaram a resultados totalmente diferentes.
Este caso descrito por Lenio Streck na terceira edio da mesma obra, pp. 533 e segs.
233
constitucional). O vcio das ms decises est nos maus argumentos e nas ms convices;
tudo o que podemos fazer contra elas apontar como e onde os argumentos esto falhos 284.
em questes com
necessidade imediata de soluo e que produzem, no mais das vezes, profundo impacto no
clamor popular. Vale dizer: a deciso deve apresentar argumentos que representem da melhor
forma o direito da comunidade poltica, e no o direito conforme uma natureza imutvel que,
de forma transcendente, condiciona o direito humano histrico e imperfeito; nem um direito
que atenda pragmaticamente ao interesse temporrio de setores da sociedade.
284
285
234
deve demonstrar que sua afirmao coerente com todos os precedentes e com as principais
estruturas do nosso arranjo constitucional
286
DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade... cit., p. 133. No que atina a essa dimenso horizontal da
integridade importante anotar que h uma srie de particularidades principalmente no que toca modificao
dos precedentes que mereceriam ser abordadas com vagar. Todavia, esse particular no faz parte dos objetivos
do texto, que est mais preocupado em colocar em questo o problema do juzo de substancialidade proposto
pelo constitucionalismo garantista na perspectiva de saber se, de alguma forma, tambm ele no reivindica um
horizonte moral para soluo de casos concretos. Todavia, h importantes obras que tratam com cuidado do
problema da aplicao dessa integridade horizontal. Problema particularmente inquietante nesse esfera
temtica aquele que se afigura a partir de uma constatao apressada de que essa necessidade de recursividade
das decises das prprias e das demais esferas que compem a estrutura judiciria poderia levar a um
continusmo histrico ou a um excessivo conservadorismo judicial. Todavia, essa preocupao apenas
aparente. Com efeito, conforme anota Francisco Borges Motta em obra que revela um crtica contundente ao
chamado protagonismo judicial assevera o seguinte sobre o problema da alterao das decises passadas: a
integridade obviamente convive com a possibilidade (melhor dito: necessidade) de alterao das decises
(concepes) anteriores, e esclarece que a no estar em jogo um escolha entre histria e justia. Neste fio,
uma deciso judicial que quebre (corretamente) um precedente, estar apenas realizando uma conciliao
entre as consideraes que em geral se combinam em qualquer clculo de direito poltico, e isso na exata
medida medida de que a deciso judicial nada mais faz do que tornar efetivos direitos polticos j existentes. No
h nada surpreendente aqui. Sucede simplesmente que as circunstncias variam e os princpios mudam de peso
no tempo. (...) De mais a mais, na medida em que se difunda e a a doutrina entra em cena que determinado
veredicto um erro, a sua reinterpretao no s se far oportuna, como necessria (MOTTA, Francisco J.
Borges. Levando o Direito a Srio. Um crtica Hermenutica ao Protagonismo Judicial. Florianpolis: Conceito,
2010, p. 123).
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Evidentemente, no! Mas, ento, qual delas a mais correta? Qual delas a melhor no
contexto do arranjo constitucional brasileiro? A resposta a essas perguntas depende,
necessariamente, de uma leitura moral que coloque todas essas posies num ambiente de
tenso, controvertido.
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com o pretexto de salvar o prprio direito, com o restabelecimento da ordem. Esse caminho
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perigoso, tortuoso e sem volta... Por mais que seja execrvel vivenciar diuturnamente a
reconduo de pessoas de duvidosa conduta com relao coisa pblica, sua excluso do
processo poltico deve ser feita no contexto das regras democrticas (atravs do sufrgio e dos
meios legais de condenao e ilegibilidade). Suspender o direito de presuno de inocncia
em virtude da necessidade de moralizar o processo poltico abrir um perigoso espao na
institucionalidade, a partir do qual emergem figuras tpicas de um Estado de Exceo.
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RAMIRES, Maurcio. Critica Aplicao de Precedentes no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010, p. 103/104.
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representa afronta presuno de inocncia. Portanto, no restam dvidas de que por uma
questo de integridade horizontal a afirmao da presuno de inocncia deva prevalecer no
julgamento da constitucionalidade da lei complementar n. 135/2010.
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do texto , fica muito claro que da deciso sobre os casos em que se discutem os direitos
fundamentais (substanciais) previstos nas Constituies emerge, necessariamente, um embate,
uma controvrsia ou uma disputa entre argumentos que espelham a moralidade da
comunidade poltica. O vencedor dessa controvrsia ser o argumento que resistir ao debate
pblico que, inevitavelmente, permeia a aplicao desse tipo de dispositivo constitucional,
demonstrando que, a partir dele, as prticas jurdicas permanecem compreendidas em sua
integridade.
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CONSIDERAES FINAIS
A explorao dessa cultura jurdica teve lugar a partir da anlise daquilo que
foi produzido pelo conhecimento jurdico em termos de cincia dogmtica do direito e,
tambm, de uma teoria geral do direito. Neste ltimo caso, o exemplo privilegiado foi o de
Hans Kelsen.
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momento em que uma questo jurdica decidida. Para isso, o fenmeno da deciso judicial
foi tomado como objeto da anlise tendo em vista descobrir aquilo que o sustenta e que est
pressuposto na atividade do agente decisor.
2. O encontro com esse tecido bsico que sustenta a deciso jurdica teve que
explorar os problemas que derivam da recuperao histrica do sentido. Nesse aspecto, a
pesquisa perseguiu o vnculo que existe entre histria e direito ou, mais precisamente, histria
e deciso, partindo da radicalizao da ideia de historicidade do intrprete-decisor.
245
5. Nesse aspecto a pesquisa se guiou, primeiro, pela hermenutica tal qual esta
se apresenta configurada no sculo XX a partir das obras de Heidegger e Gadamer. De
Heidegger, a pesquisa retira o modo absolutamente novo de se lidar com o problema da
histria graas sua operao de desepistemologizao da filosofia com a superao da
relao sujeito-objeto a partir da descoberta do carter auto-interpretativo do Dasein. Alm
disso, o teorema da diferena ontolgica possibilita uma forma positiva de se relacionar com o
passado, a partir de um modelo de pensamento em que o passado chamado a co-filosofar
com a filosofia atuante.
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Assim, podemos dizer que Verdade e Mtodo, a obra mxima do filsofo, antes
de qualquer coisa, elaborado contendo em seu ncleo uma inteno filosfica: com ele
Gadamer no quer apresentar um conjunto de cnones para a interpretao de textos, nem
tampouco construir uma nova fundamentao para as assim chamadas cincias do esprito.
Pelo contrrio, como o prprio filsofo reconhece no Prefcio segunda edio: interessa
para ele perguntar como possvel a compreenso. No desenrolar dessa pergunta Gadamer
no se interessa por aquilo que devemos ou queremos fazer nesse momento compreensivo,
mas sim por aquilo que, para alm do nosso querer e dever acontece quando
compreendemos. Nessa medida, a investigao realizada em Verdade e Mtodo pretende
rastrear e mostrar aquilo que comum a toda maneira de compreender, no estando em jogo o
que cada campo especfico das chamadas disciplinas hermenuticas, ou seja, o Direito, a
Teologia e a Literatura, produz em termos de procedimentos especficos para seu
desenvolvimento terico e tcnico, mas sim aquilo que independentemente do campo em que
se situe, acontece quando compreendemos.
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fsica ou astronmica (tempo da natureza), mas de acordo com certas esferas sociais
histricamente saturadas.
A tese de Koselleck que a modernidade alterou radicalmente o espao de
experincia produzindo um tipo de histria que conduzia a um nico e delimitado horizonte
de expectativa (trata-se do futuro pensado a partir do passado, da porque futuro passado).
Isso se d do seguinte modo: No contexto da baixa idade mdia entre os sculos XVI e
XVII o modo como o tempo histrico se manifestava poderia ser apresentado a partir da
seguinte mxima: historie magistra vitae (a histria a mestra/professora da vida). Ou seja, o
espao de experincia era composto de tal forma que desde os polticos maquiavlicos, at
os letrados cristos pensavam a histria a partir de seu carter pedaggico, isto , os erros do
passado devem ser evitados no futuro e, os acertos, repetidos. O horizonte de expectativas,
por outro lado, permanecia relativamente aberto na medida em que esse futuro no era
absolutamente determinado pelas lies da histria. Dito de outro modo, o futuro no o
lugar do historiador, ou do filsofo da poltica. O futuro o lugar dos profetas e da
escatologia catlica. Isso significa que o presente pensando a partir desta dupla tenso: de
um lado o passado que condiciona a vida a partir de seu carter pedaggico; de outro o futuro
que se mantm obscuro pelo temor/certeza da chegada do juzo final. Ocorre que os profetas
erraram, sucessivamente, suas previses acerca do fim total. Numa poca de guerras, o incio
de cada conflito era tido como um preldio do juzo final. Apesar disso o mundo no acabava.
Pelo contrrio, a engenharia do Estado Absolutista conseguiu por fim s guerras civis
religiosas. Posteriormente, o surgimento do Estado liberal imps limites ao poder poltico
assegurando as regras de livre mercado. Campo extremamente propcio para fertilizao da
idia de progresso.
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As metforas de que fala Blumenberg devem ser pensadas a partir de dois modos
distintos de manifestao: podem apresentar-se como metforas rudimentares ou como
metforas absolutas.
As
metforas
absolutas
referem-se
ao
mbito
do
indizvel,
do
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as discusses e tcnicas que foram criadas para solucionar os problemas jurdicos partiram,
portanto, dessa centralidade exercida pelo direito privado. Grandes escolas do cnone
jurdico, como o caso da Escola Histrica ou da Cincia das Pandectas, eram movimentos
universitrios que estavam envolvidos com o enfrentamento dos problemas de direito privado.
252
que boa parte das construes tericas que enfrentaram a questo da deciso jurdica foram
pensadas tendo como eixo gravitacional os problemas exarados das relaes jurdicas de
direito privado. Manuais influentes como o caso do de Karl Larenz embora sejam citados
com frequncia por alguns constitucionalistas brasileiros so inteiramente dedicados aos
problemas de direito privado.
15. sabido que a teoria de Friedrich Mller, que nos legou a forma mais bem
acabada de diferenciao entre texto da norma e norma, se prope como ps-positivista:
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18. Essas questes sero tratadas de um modo diferente em face do modo como
cada uma delas dar tratamento ao problema do mtodo. No mbito do Direito essa situao
pode ser facilmente visualizada. No de hoje que a proficincia do jurista sobre determinado
ramo do direito exige conhecimentos e tcnicas especficas. Isso responde a diversos fatores
que podem ser de modo genrico explicados pelo grau de complexidade da sociedade
contempornea, a exigir uma carga de regulamentao que atinge especificidades que antes
ficavam fora do direito, e pelo prprio desenvolvimento da disciplina jurdica em questo que,
no contexto atual, produz um volume imenso de publicaes que acabam por contribuir para
um endurecimento da linguagem de modo que se torna cada vez mais difcil a visualizao de
um cabedal conceitual comum, que abarque todo o mundo jurdico. Desse modo, cada vez
mais corriqueira a figura do especialista em Direito Tributrio, ou em Direito Constitucional,
ou em Direito Processual, etc., que domina as especificidades mais profundas de sua
disciplina mas que, ao mesmo tempo, tem dificuldades para lidar com questes que envolvem
os fundamentos mais abrangentes do fenmeno jurdico. Vale dizer, torna-se cada vez mais
complicada a instaurao de uma via de acesso que apanhe o direito em uma dimenso global
na perspectiva de uma espcie de Teoria Geral.
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20. Por outro lado, a breve recomposio histrica que fazemos a respeito da
interpretao da Constituio americana e, consequentemente, o problema de deciso que
existe em torno da experincia da judicial review, permite-nos perceber coisas importantes: de
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Cf. Karl LARENZ. Metodologia da Cincia do Direito. cit., prefcio pp. XXI e XXII.
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21. Deve ter ficado claro, portanto, que a grande ciso entre direito pblico e
direito privado que ocorre no mbito do estilo de vida jurdico romano-cannico,
principalmente nas culturas ligadas aos pases do continente europeu, acaba por levar a uma
consequncia direta para o modo de se lidar com as questes relativas deciso jurdica. O
que, talvez, se mostre de maneira mais evidente, diz respeito dificuldade de se situar o
agente estatal que decide as questes jurdicas como um verdadeiro agente moral que, como
tal, est tambm implicado na deciso que exara.
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23. Todavia, se olharmos para uma relao daquilo que, neste estilo de vida
jurdico se chama direito pblico, veremos que conforme afirmamos no primeiro captulo
desta pesquisa o agente decisor articular questes que tocam ou esto diretamente ligadas a
questes polticas basais que sustentam o convvio comunitrio. Usando uma linguagem da
teoria da justia, podemos dizer que uma deciso no mbito do direito pblico interfere ou
atinge diretamente, expectativas e projetos a respeito daquilo que se entende por uma vida
boa.
24. Assim, surge uma questo que no mais das vezes aparece no
explicitamente tematizada no mbito das teorias da deciso que se desenvolvem nesse
ambiente cultural: o que faz o decisor nos casos em que se enfrentam questes de direito
pblico? Existe espao para que este afirme a sua concepo pessoal de vida boa? Se a
resposta for afirmativa, o que seria, ento essa vida boa que se discute nesse mbito
pblico? A somatria dos vrios projetos de vida boa que se apresenta da reunio de todo
corpo ou organizao judicial?
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27.
Assim,
se
falamos
em
substncia,
em
controle
material
de
Por fim, cabe encerrar tais reflexes com um pensamento de Gadamer que cabe
perfeitamente no contexto apresentado nessas concluses:
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS
em:
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