Dogmatica Juridica
Dogmatica Juridica
Dogmatica Juridica
TESE APRESENTADA AO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE
DOUTOR EM DIREITO
FLORIANÓPOLIS
1994
TOMO 1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
e aprovada por todos os membros da banca examinadora, foi julgada adequada para a obtenção do
título de DOUTOR EM DIREITO.
BANCA EXAMINADORA:
Orientador
Prof. Dr. Leonel Severo Rocha
Co-orientador
Prof. Dr. Alessandro Baratta
Coordenador do Curso:
Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira Júnior
This thesis has its object in the dogmatic model of the Penal Science the
Penal-Juridical Dogmatic actually conceived as one of the emergent and
dominant scientific paradigms that takes part (as one of the Juridical Dogmatic
specialties), in its project and way in the cultural boundary where it came from
the Continental Europe and in that it was lately transnationalizated as the
Latin America. It is articulated from two fundamental questions: has the function
officially declared by the Penal Dogmatic been fulfilled in and for the modernity, of
rationalizing the punishable violence and to support the individual human rights in
the management of the Penal Justice (Juridical Security) in the name of which it has
historically intended to legitimate its ideal of pratic Science? Is it by the
compliment of this function that we can explain its strong durability in the
modernity, against the secular problematic of which it has also been the object
since its creation?
The gravitation point of the thesis is located exactly in the functional control
of the paradigm, and it proposes to answer those questions facing a genetic
reinterpretation of the Penal Dogmatic as a Science (functionally doubtful) of the
penal system conducted by its declared (promises) and latent functions and by its
deficit and excessive realizations.
The general objective followed, that we formulated as the central hipothesis
of the investigation, is to demonstrate that there is, in the actual penal system, a
very deep historical deficit of the compliment of the other functions (simbolic and
instrumentals) not only distinct, but opposite of those officially declared, that its
own paradigm, latent and doubhtfully has potencialized since its historic creation.
And these are the functions, developed with efficiency inside the failure ot its
declared ones, that explain its functional relation with the social reality and its
strong historic durability. The promises of the Penal Dogmatic aren't only in the
long list of the not fulfilled modern promises, but they are in it as a change of
direction: an inverse efficacy of the one that was promised. When we unfold this
fundamental hipothesis, we try to inventory explained arguments of the dogmatic
limits in the guaranty of the human rights against the punishable violence, and we
try to demonstrate, on the other hand, the deep knowledge separation between
Penal Dogmatic and social reality, setting the relationship between its juridical
deficit of security and its epistemological-knowledge deficit, marking out this last
own funcionality and them, the especificity of the crises that for these
contradictions, can be imputed to the paradigm.
The thesis is structured in five chapter and a conclusion. if follows a method
of indutive attacking and a method of internal comparaive proceeding, and it is
based on bibliographic research of many different fields. Generically, while the
first part (chapters I, II and III) is about the Penal Dogmatic, since the early basis
of the Juridical Dogmatic "latu sensu" and of the modern penal learning, the
second part (chapters IV and V) is about the modern penal system since its
foundation too, the functional relationship between Dogmatic and Penal system
and its control, basing the central hipothesis and demarcating its many ways of
being.
The conclusions point, therefore, to a complex and contraditory relationship
between Penal Dogmatic and violence that put it in the way of the promise of the
control of the punitive violence to the capture by ths own institucionalizated
violence in the penal system and by an instrumental efficacy opposite of that one
that was promised, with a simbolic efficacy of the promises: the "illusion" of the
juridical security. That's why, although it is an essencially interpretative analysis of
the Penal Dogmatic and not prescriptive of the future, the aim that guides the
thesis, is to summarize a list of contradictions that, if since the sustenance of the
human rights point to a failure and the Penal Dogmatic crisis and for the necessity
of a suspension and auto-critic of the dogmatism in the Penal Science.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 1
TESE APRESENTADA AO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE
DOUTOR EM DIREITO
FLORIANÓPOLIS
1994
TOMO 2
CAPÍTULO IV: O IMPULSO DESESTRUTURADOR DO MODERNO SIS-
TEMA PENAL E A MUDANÇA DE PARADIGMA EM
CRIMINOLOGIA: O CONTROLE EPISTEMOLÓGICO-
FUNCIONAL DA DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL .............. 272
1. Introdução ................................................................................................................ 272
2. Caracterização do moderno sistema penal: modelos penais fundamentais e estrutura
organizacional ............................................................................................................ 278
- Modelos penais fundamentais .......................................................................... 281
- Estrutura organizacional ................................................................................... 283
3.O discurso oficial de autolegitimação do poder penal: da legitimação (negativa) pela
legalidade à legitimação (positiva) pela utilidade ......................................................... 285
-A legitimação pela legalidade vinculada ao Direito Penal do fato e à segurança
jurídica : programação normativa do sistema penal ........................................... 287
-A legitimação pela utilidade vinculada ao Direito Penal do autor e à defesa social:
fins da pena ..................................................................................................... 289
-Legitimidade e (auto)Legitimação ...................................................................... 292
4. Da construção (legitimadora) à desconstrução (deslegitimadora) do moderno sistema
penal: delimitando o marco teórico do controle dogmático ......................................... 294
5. Da história oficial às histórias revisionistas da gênese do moderno sistema penal ........ 303
-A história oficial: o enfoque idealista ou ideológico ............................................ 303
-As histórias revisionistas: a crítica historiográfica materialista ............................. 304
- Indicações epistemológicas comuns das histórias revisionistas materialistas ....... 305
6. O labelling approach e o paradigma da reação social: uma revolução de paradigma
em Criminologia ....................................................................................................... 315
6.1 Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: a negação da ideologia da
defesa social .......................................................................................................... 316
6.2. Matrizes teóricas, pressupostos metodológicos, quadro explicativo e teses funda-
mentais do labelling approach: a troca de paradigmas ........................................... 322
- Interacionismo simbólico e construtivismo social modelando o paradigma episte-
mológico do labelling approach ................................................................... 323
- O crime e a criminalidade como construção social: o papel constitutivo da rea-
ção social na construção seletiva da criminalidade ........................................... 325
- O quadro e os níveis explicativos do labelling approach : da dimensão da defi-
nição à dimensão do poder (de definir, selecionar e estigmatizar) e de um modelo
consensual a um modelo pluralista ..................................................................... 328
- O sistema penal (processo de criminalização) numa perspectiva dinâmica e no
continuum do controle social: relatividade do controle penal em relação ao controle
social e do Direito Penal em relação ao sistema penal ........................................ 332
- Mudança de paradigma ................................................................................... 335
7. De um modelo pluralista a um modelo conflitivo: o desenvolvimento da dimensão do
político no paradigma do reação social ....................................................................... 336
8. Do labelling approach à Criminologia crítica ............................................................ 338
8.1. Marco teórico-metodológico, quadro explicativo e teses fundamentais da Criminologia
crítica ................................................................................................................... 338
- Recepção crítica do paradigma da reação social: irrreversibilidade e limites analí-
ticos do labelling approach (de um modelo pluralista a um modelo materialista) 338
- Da descrição da fenomenologia da desigualdade (seletividade) à sua inter-
pretação estrutural: a relação funcional entre sistema penal e sistema social capita-
lista ................................................................................................................. 344
9. A desconstrução epistemológica do paradigma etiológico: dependência metodológica e
aporia criminológica .................................................................................................. 345
10. A reinterpretação da Escola Clássica e da Criminologia positivista como saberes do
controle sócio-penal ................................................................................................ 350
11. Do controle epistemológico do paradigma etiológico de Criminologia ao controle
epistemológico-funcional do paradigma dogmático de Ciência Penal ......................... 353
-Uma nova relação entre Criminologia e Direito Penal como uma relação Ciência-
objeto ............................................................................................................... 354
- Uma nova relação (secundária) entre Criminologia e Dogmática Penal ................. 355
12. Marco teórico e bases do controle dogmático: inserção da Dogmática Penal no âmbito
do sistema penal .................................................................................................... 360
INTRODUÇÃO
1. Objeto
Assim sendo, estamos perante uma situação nova que, à falta de melhor
nome se pode designar por transição pós-moderna.
Seja como for, se um novo paradigma sócio-cultural está a emergir nas
sociedades do capitalismo avançado, sob os sintomas de crise que a
modernidade parece inexoravelmente emitir, o contexto de oposição e
justaposição entre o moderno e o "pós-moderno" testemunha antes de mais nada
a necessidade de se revisitar as próprias promessas da modernidade e avaliar os
seus déficit e excessos de realização, com os quais esta crise tem preliminarmente
a ver.
E dado que a modernidade creditou à Ciência e ao Direito um lugar
central na instrumentalização do progresso e do seu projeto emancipatório, no
qual os "direitos humanos aparecem como uma das principais promessas" o
reencontro com o desempenho instrumental da Ciência aparece, no balanço deste
final de século, como uma exigência de importância fundamental. (SOUSA
SANTOS, 1989b, p.3 e 1991, p.23).
Nesta perspectiva
"O ponto de partida do diagnóstico da Ciência moderna como
problema reside na dupla verificação de que os excessos da
modernidade que a Ciência prometeu corrigir, não só não foram
corrigidos, como não cessam de se reproduzir em escala cada vez
maior, e que os défices que a Ciência prometeu superar, não só não
foram superados, como se multiplicaram e agravaram. Acresce que a
Ciência não se limitou a ser ineficaz e parece, pelo contrário, ter
contribuído, como se de uma perversão matriarcal se tratasse, para o
agravamento das condições que procurou aliviar."(SOUSA
SANTOS,1991, p.25)
CAPÍTULO I
CONFIGURAÇÃO E IDENTIDADE DA DOGMÁTICA JURÍDICA
1. Introdução
3.Do grego "parádeigma" para o latim "paradigma", o signo é traduzido, num dos mais importante
dicionários brasileiros da língua portuguesa (1986, p.1265) por "modelo, padrão, estalão".
Empregamos contudo o signo no sentido, já clássico, que lhe imprimiu KUHN (1979, p.219),
segundo o qual "um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham.
E, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que compartilham um paradigma."
Uma melhor explicitação deste conceito encontra-se no final deste capítulo sob o item "7.2". O
signo "matriz" será usado, por sua vez, para designar um "modelo", apenas, ou um "modelo que
condiciona algo".
5. O conceito que segue deve ser entendido, pois, como uma aproximação, uma estilização, o mais
fidedigna possível, da Dogmática Jurídica na sua auto-imagem.
dado tempo e espaço e por tarefa metódica (imanente) a "construção" de um
"sistema" de conceitos elaborados a partir da "interpretação" do material
normativo, segundo procedimentos intelectuais (lógico-formais) de coerência
interna, tem por finalidade ser útil à vida, isto é, à aplicação do Direito. Trata-se
de uma Ciência de "dever-ser" (normativa), sistemática, descritiva, avalorativa
(axiologicamente neutra) e prática .
A Dogmática Jurídica se concebe como uma Ciência e fala em nome
dela:
7. Alguns destes pressupostos são mencionados em PUCEIRO (1981, p.15-6) e FARIA (1988,
p.24).
8. Nos referimos ao conceito clássico formulado por WEBER (1979, p.17) segundo o qual o Estado
moderno "é uma associação de domínio com carácter institucional que tratou, com êxito, de
monopolizar, dentro de um território, a violência física legítima como meio de domínio e que, para
esse fim, reuniu todos os meios materiais nas mãos do seu dirigente e expropriou todos os
processos decisórios e a conseqüente estatalização, normativização (realizado pela
codificação) e positivação do Direito;
e) separação de poderes , com a distribuição de competências do
monopólio estatal da criação e aplicação do Direito entre o Poder Legislativo e o
Judiciário, tornado independente e "autônomo";
f) a ênfase sobre a segurança jurídica como certeza de uma razão
abstrata e geral, resultante de um Estado soberano.
No paradigma dogmático convergem, pois, uma matriz epistemológica
(saber) e uma matriz política (poder) e diversos processos a ambas relativos, de
forma que ele é tributário, tanto do discurso cientificista quanto do discurso
estatalista-legalista do século XIX, encontrando-se geneticamente vinculado à
promessa (epistemológica) de edificação de uma "Ciência do Direito" (ROCHA,
1982, p.126) e, na culminação de seu desenvolvimento, à promessa (funcional) de
racionalização da práxis jurídica típica do Estado moderno.
São tais condicionamentos, entre outros, que conferem ao paradigma
dogmático um ethos específico, e que filtrarão e ressignificarão, pois, o ingresso
da tradição jurídica no seu interior.
Mas apesar de ser um produto histórico, o paradigma dogmático é
marcado também por um potencial e uma vocação universalista, uma vez que ele
se liberta, posteriormente, de sua estrutura histórica originária para ser recebido,
certamente por um processo de transculturação, por diversos países da América
Latina, incluindo o Brasil, entre outros, em cujo marco permanece também como
o modelo normal ou oficial de Ciência Jurídica.
funcionários feudais que anteriormente deles dispunham por Direito próprio, substituindo-os pelas
suas próprias hierarquias supremas."
O monopólio estatal da violência física, ou seja, o controle dos meios de coerção física pelo
Estado moderno caracteriza o recurso típico - embora não o único - e o aspecto especificamente
"político" da sua dominação, num dado território, recoberta por uma legitimidade que se refugia no
"reino da lei", isto é, na legalidade.
Tal potencial parece estar vinculado, por sua vez, à própria
descontextualização do Direito operada pela Dogmática Jurídica que assentando
na conversão da juridicidade num espaço abstrato (vazio) e num tempo igualmente
abstrato (cronológico) (SOUSA SANTOS, 1990, p.31), torna-se um paradigma
suscetível de ser apropriado em espaços e tempos diversificados.
Por outro lado, é tão forte a identificação moderna entre Ciência
Jurídica e Dogmática Jurídica que se acaba estendendo este modelo a culturas
jurídicas onde ele inexistia, como a romana e a medieval. É portanto imprópria
tanto a alusão a uma "Dogmática Romana" ou a uma "Dogmática Medieval",
quanto a consideração da Dogmática Jurídica como a instrumentalização
científica do positivismo jurídico, alusões que somente são possíveis
prescindindo-se da sua gênese estrita, uma vez que " o modelo dogmático
propriamente dito procede da Escola histórica e encontra sua expressão
culminante na construcão jurídica." (HERNÁNDEZ GIL, 1981a, p.42)
Com efeito, pela centralidade que o método, isto é, a operação
intelectual, predominantemente lógica, projetada sobre o direito vigente ( em
particular a operação de "construção jurídica")9 assume, na tipificação do
paradigma dogmático, entendemos autorizada a tese de sua procedência enraizada
na Escola histórica alemã do começo do século XIX , de onde procede a
formulação daquele método.
10. De qualquer modo, como sustenta GIORGI (1979) as raízes do positivismo jurídico se encontram
já na Escola histórica que pode ser vista como um positivismo jurídico em gestação na medida em
que, com sua rejeição ao racionalismo e ao universalismo do jusnaturalismo moderno e o
deslocamento do objeto da Ciência Jurídica para um dado sensível da experiência (mesmo que
seja "o espírito do povo") antecipa um approach juspositivista ao Direito.
Sobre o significado do juspositivismo como approach, teoria e ideologia aludimos a seguir sob o
tópico "caracterização do positivismo jurídico".
referimos, ao invés de se retroceder (à tradição jurídica romana ou medieval),
acaba-se por postergar, impropriamente, a sua gênese.
Assim,
11.Segundo WIEACKER (1980, p.38-9), a Ciência Jurídica européia nasce em Bolonha no século XI
e a origem do pensamento dogmático, em sentido estrito, pode ser localizada neste período.
processo de dessacralização do Direito, que passa a ser visto como uma
reconstrução, pela razão, das regras de convivência. (FERRAZ JÚNIOR, 1988b,
p.70)
Através da Escola do Direito Natural projeta-se assim, para o âmbito
jurídico, a concepção racionalista de Ciência:
12. A ambigüidade do signo positivismo impõe alguns esclarecimentos sobre os sentidos em que o
empregamos nesta tese.
Distinguimos entre o positivismo materializado através de escolas de pensamento específicas que,
do ponto de vista da história das idéias, se desenvolvem com uma certa homogeneidade e
continuidade e o positivismo como conceito classificatório, cuja formulação remete a diferentes
raízes e tradições de pensamento.
Como Escolas reconhecemos a Filosofia Positiva (representada por SAINT-SIMON (na
primeira fase de seu pensamento) COMTE, SPENCER, DARWIN e outros), a Escola positiva
italiana (representada por LOMBROSO, FERRI, GARÓFALO e outros) e a Escola de Viena,
Neopositivismo ou Positivismo lógico (representada por WITTGENSTEIN (na primeira fase de
seu pensamento) CARNAP e outros).
Como conceitos classificatórios consideramos aqui o positivismo e o positivismo jurídico.
Por positivismo, positivismo científico ou concepção positivista (expressões usadas aqui como
equivalentes) entendemos um conceito classificatório que traduz um núcleo ou unidade mínima e
genérica de sentido desta matriz epistemológica que permita abarcar as suas heterogêneas raízes
e desenvolvimentos (como as Escolas citadas e outros) É este conceito classificatório que
explicitaremos a seguir.
Desta forma, se a Escola do Direito Natural (1600-1800) operou o
trânsito do ideal científico racionalista para o âmbito jurídico, o "o momento
fundacional do método jurídico moderno deve ser fixado no instante do trânsito
do jusnaturalismo racionalista ao positivismo, operado através do historicismo
(PUCEIRO, 1980, p.59)
"Para o positivismo, a Ciência é inconcebível sem o método. O afã de proceder metodicamente e o aperfeiçoamento
do método seriam os fatores dos quais derivariam todas as virtudes da Ciência, a começar pela sua objetividade".
(CUPANI,1985, p.60-1)
14.É importante registrar, neste sentido, que é a Escola histórica alemã não apenas quem vai criar o
termo "Ciência Jurídica", mas também quem vai se empenhar em dar à investigação do Direito um
caráter científico. (FERRAZ JR., 1988a, p.18)
A obra jurídica de RUDOLF VON JHERING se caracteriza por uma significativa linha divisória.
Enquanto no primeiro período de sua criação, sobretudo no "Espírito do Direito Romano",
JHERING não apenas apoiou a Jurisprudência dos Conceitos formal de PUCHTA, mas a elevou
ao seu ápice, no segundo período, de que são expressão já o próprio livro III do "Espírito" e as
obras "O fim no Direito" e "A luta pelo Direito", perseguiu-a com sarcasmo e procurou substitui-la
por uma orientação muito diversa.
Quanto à FRIEDRICH SAVIGNY, também há que se diferenciar a obra de juventude da obra de
maturidade. PUCEIRO (1981, p.59-96) assinala três etapas na sua evolução intelectual. A
primeira, deve ser situada em torno das "lições de metodologia" (Juristische Methodenlehre)
ministradas em 1802-1803 na Universidade de Marburgo e de seu ensaio sobre a posse, o menos
conhecido. A segunda se expressa através dos escritos programáticos de 1814 e 1815 através dos
quais SAVIGNY pode ser considerado o fundador da Escola histórica. A etapa final deve ser
situada em torno de 1840, ano de publicação do primeiro volume do seu "Sistema de Direito
romano atual", obra na qual culminam quatro décadas de reflexões metodológicas.
A respeito ver também LARENZ (1989, p.10-26 passim).
Para os representantes da Escola Histórica, não obstante seus
deslocamentos de concepções, o Direito é o dado; o historicamente posto, por
uma vontade determinada em um contexto espacial e temporal específico. Tanto
para SAVIGNY quanto para JHERING o Direito não se reconhece, como na
teoria do Direito natural, a partir de seu conteúdo, mas a partir de sua forma de
aparição na vida social. É a "positividade o que constitui formalmente ao objeto
'Direito'." (PUCEIRO, 1981, p.16)
Com a afirmação da pertinência do Direito ao âmbito das realidades
históricas e, portanto, ao dos fatos empiricamente verificáveis, a idéia
jusnaturalista de um Direito abstrato e universalmente válido é relegado ao campo
das ideologias ou da metafísica. Toda a afirmação de leis ou princípios
pretensamente universais é, por sua própria impossibilidade de verificação
empírica, matéria da subjetividade e está, portando, subtraída ao domínio da
Ciência.
O saber jurídico busca sua cientificidade através da eliminação
sistemática de tudo aquilo que, de um modo ou de outro, não se refira a sua
positividade.
É nesta ordem de idéias que
15.LUHMANN (1983, p.19) assinala, nesta perspectiva, que o conceito de construção jurídica de
Jhering, ao promover a inserção do "sistema" no próprio objeto (Direito) e a fundamentação da
própria "sistemática" científica a partir dele, requer como conseqüência a passagem à concepção
do sistema jurídico como sistema parcial da realidade social (sociedade; ou seja, uma diferenciação
do sistema jurídico como subsistema social.
Os conceitos da Dogmática, elaborados sobre a base de um esquema
lógico de indução-dedução, assumem uma espécie de "expansão lógica"
JHERING que lhes outorga uma força normativa similar àquela da matéria-prima
fornecida pela análise química. Assim, embora JHERING sustente que a
construção deve aplicar-se diretamente ao Direito Positivo, o paradigma
dogmático não se apoia, geneticamente, nas normas jurídicas, entendidas como o
limite da experiência jurídica possível. Pois a tarefa metódica de índole construtiva
se projeta para além dos termos em que se circunscreve o dado positivo,
reenviando o jurista para a descoberta e apreensão de conceitos e princípios
(latentes) a que as normas se referem de modo não exaustivo.
Este é o significado da expressão "conceitualismo genético" a que se
costuma fazer referência para designar a "Jurisprudência dos Conceitos" (1º
Jhering): o dado genético do Direito é o conceito.
Assim,
"O direito é algo mais que uma massa de leis - afirma Jhering em
diversas oportunidades - e as dificuldades mais sérias para sua
assimilação não residem, tanto no número ou quantidade de normas
como na natureza das mesmas, inacessível a uma apreciação
puramente quantitativa." (PUCEIRO, 1981, p.121)
"(...) por momentos abandona o que para uma visão superficial poderia
ser a 'prática', não é senão para remontar-se à origem das instituições e
determinar assim a sua inserção sistemática: 'para ser prática, a
jurisprudência não deve se restringir unicamente às questões práticas'."
(PUCEIRO, 1981, p.136)
16.Com efeito, ocorre no interior da Escola histórica ( que se desenvolve ao longo de praticamente
seis décadas) um deslocamento de sua preocupação originária, tal como aparece em seus escritos
fundacionais, de dar ao pensamento jurídico um caráter científico através da incorporação da
História do Direito ao pensamento jurídico, pela ênfase que passa a ser conferida à Dogmática,
como teoria do Direito vigente. A Ciência Jurídica, nos quadros da Escola histórica,
originariamente aspirando a se constituir como Ciência histórica do Direito, passa a se configurar
como Ciência Dogmática e formal. (FERRAZ JR., 1988b, p.74-5 e PUCEIRO, 1981, p.27)
Todavia, este aparente paradoxo, em que uma concepção metodologicamente histórica do Direito
desemboca numa separação entre Ciência e Dogmática, assumindo esta uma posição relevante e
até certo ponto distanciada dos próprios fenômenos históricos, pode ser desfeito ao perquirirmos o
conceito de história que lhe é imanente. É que o Direito passava a ser assumido como fenômeno
histórico não no sentido de que estava na história; ou seja, de que era recolhido na temporalidade
efêmera do acontecer humano, mas no sentido de que era história na sua essencialidade - um
processo feito pelo homem. Todavia, como este processo é análogo ao da fabricação (a história
como um fazer e não como um agir), ele tem começo, meio e fim. E, ao final do processo, o
Direito feito, é o Direito vigente. Desta forma, embora a Escola histórica insistisse na historicidade
do método, ao final da pesquisa, o resultado se tornava mais importante do que a própria
investigação que o precedera. Daí a presença que a Dogmática do Direito vigente assume, no
pensamento jurídico, em relação à sua história. (FERRAZ JR., 1988b, p.74-5)
Se com a Escola histórica ficam configuradas, nesses termos, as
notas típicas do paradigma dogmático tal como se transfere à Ciência Jurídica
posterior (PUCEIRO, 1981, p.25) é com o positivismo jurídico que ele assumirá
uma identidade autônoma e acabada.
4.1. Caracterização do positivismo jurídico17
18.Esta caracterização de BOBBIO foi objeto de crítica de MAYNEZ (1977, p.22) que, desde uma
perspectiva unitária de definição do juspositivismo, sustenta que a distinção entre "Direito real" e
"Direito ideal" protagonizada por BOBBIO - embora proceda de AUSTIN - contradiz a essência
do positivismo jurídico, a saber, "o monismo jurídico positivista, ou a afirmação de que não há
mais Direito que o "positivo" entendendo por tal o que o poder público, através de seus órgãos,
cria, reconhece e aplica."
Este approach do positivismo jurídico se fundamenta no juízo de
conveniência segundo o qual partir do Direito que "é", ao invés do Direito que
"deve ser", serve melhor ao fim principal da Ciência Jurídica: o de proporcionar
esquemas decisórios aos órgãos jurisdicionais e construir o sistema da ordem
vigente, pois, como o demonstra a verificação histórica, é este o Direito que se
aplica nos tribunais e que interessa conhecer. (BOBBIO, 1981, p.49)
Nesta acepção, positivista é, conseqüentemente, aquele que adota frente
ao Direito uma atitude avalorativa ou eticamente neutra prescindindo, na sua
delimitação,de juízos finalistas ou axiológicas, numa clara rejeição aos critérios
jusnaturalistas de validade do Direito. (BOBBIO, 1981, p.42)
Através desta orientação metodológica o positivismo jurídico pretende
pois, fundamentalmente, delimitar a esfera do Direito enquanto objeto da Ciências
Jurídica e seu principal efeito é, a nosso ver, o de conformar a ideologia da
"neutralidade ideológica" da Ciência Jurídica.
19. Ao que PUCEIRO (1981, p.37) responde: " o que é factual ou histórico, não é a vinculação
existente entre a primeira e a segunda acepção, mas a resposta à questão do conceito de Direito
que vem impicada de modo essencial na segunda acepção."
1) relativamente ao conceito de Direito, a teoria da coatividade, que o
concebe como um sistema de normas jurídicas gerais aplicadas coativamente ou
cujo conteúdo é a regulamentação do uso da força em dada sociedade;
2) relativamente ao conceito de norma jurídica, a teoria imperativa, que a
concebe como mandato (de cumprimento estrito e coercitivo);
3) relativamente às fontes de Direito, a teoria monista, que preconiza a
supremacia da lei escrita sobre outras fontes como o Direito consuetudinário, o
Direito científico, o Direito judicial, o Direito que deriva da natureza das coisas, as
quais são reduzidas à condição de fontes subordinadas;
4) relativamente ao conceito de ordenamento jurídico, a consideração
do complexo das normas como um sistema completo (sem lacunas) , coerente
(sem antinomias), decidível, do qual o proibido e o permitido são logicamente
inferíveis e se pode extrair soluções para todos os casos concretos;
5) relativamente ao método da interpretação científica e judicial, a
consideração da atividade do juiz e do jurista como atividade essencialmente
lógica, dedutiva e não criativa e, portanto, neutra. E, em especial, a consideração
da Ciência Jurídica como hermenêutica (Escola da exegese francesa) ou
Dogmática (Escola pandectista alemã). (BOBBIO, 1981, p.45)
O positivismo como teoria se apóia, então, sobre diversos juízos de
fato que podem ser sintetizados na seguinte fórmula: é faticamente verdadeiro que
o Direito vigente é um conjunto de normas de conduta que direta ou indiretamente
são formuladas e aplicadas pelo Estado. (BOBBIO, 1981, p.50)
Desta forma, insiste BOBBIO (1981, p.45-6), estas características do
Direito não foram descobertas em conseqüência da consideração do Direito como
fato, mas da sua identificação como fato, em determinado momento histórico (que
coincide coma concentração da produção jurídica nos órgãos estatais) com o
complexo de normas produzidas pelo Estado, isto é, com a Lei.
Por isto, o approach juspositivista, embora estreitamente vinculado
com uma teoria do Direito - pela suficiente razão de que a distinção mesma entre o
Direito que é o Direito que deve ser requer uma teoria mais ou menos elaborada
sobre o Direito-não se vincula, necessariamente, a uma teoria estatal do Direito.
Historicamente, contudo, a ela se vinculou. 20
20. PUCEIRO sustenta, contra BOBBIO, que a vinculação entre a primeira e a segunda acepção do
positivismo jurídico é essencial. A sua caracterização como approach oferece as vantagens e
desvantagens de sua excessiva generalização. Se, por um lado, permite um enfoque unitário de
correntes do positivismo jurídico como o positivismo legalista-estatalista e o sociologismo; por
outro lado, não permite delinear com suficiente clareza o modelo do juspositivismo. Por isto,
entendido na primeira acepção é insuficientemente caracterizado. Somente o recurso à segunda
permite contar com uma idéia medianamente clara e precisa do que se deve entender por
positivismo.
O primeiro e segundo sentido são, pois, essencialmente complementares, pois uma "atitude" para o
Direito que partisse de uma valorização do mesmo exclusivamente na sua condição de "dado"
somente poderia configurar uma posição positivista se complementada por uma "teoria" positivista
do dado jurídico. O centro de gravidade de uma conceitualização do positivismo jurídico
verdadeiramente útil e eficaz para a análise da experiência científica recai, em conseqüência, sobre
o positivismo como teoria. (PUCEIRO, 1981, p.35-7 passim)
21.BOBBIO está utilizando o signo ideologia, como se vê, no sentido positivo de um sistema de
representações (idéias, crenças, valores) conexas com a ação.
2ª) o Direito, como conjunto de normas impostas pelo poder que exerce
o monopólio da força em determinada sociedade, serve, com sua mera existência,
independentemente do valor moral de suas normas, para a obtenção de certos fins
desejáveis como a ordem, a paz, a certeza e, em geral, a justiça legal.
De ambas as posições, deduz-se o juízo em que descansa o positivismo
como ideologia: o Direito, pela forma como é estabelecido e aplicado e pelos fins
a que serve, seja qual for seu conteúdo, tem por si mesmo um valor positivo e,
por isso, suas prescrições devem ser incondicionalmente obedecidas. (BOBBIO,
1981, p.46-51 passim)
Este aspecto realiza a passagem da teoria à ideologia do positivismo
jurídico; isto é, a passagem da descrição objetiva à valoração positiva do Direito.
O efeito deste trânsito é a transformação do positivismo jurídico de
teoria do Direito em teoria da justiça; ou seja, em uma teoria que não se limita a
indicar, no plano fático, o que é o Direito, mas a recomendar o que, no plano
axiológico, é o justo. (BOBBIO, 1981, p.48)
Desta forma, observa BOBBIO (1981, p.48), também o nexo entre o
positivismo legal e o positivismo ideológico é factual ou histórico e não lógico ou
essencial. Se a teoria positivista é condicionada pela idéia moderna de Estado
como monopólio da coação e da lei a ideologia positivista implica uma exaltação
do Estado e sua função na vida do Direito.
O positivismo ideológico aparece assim historicamente vinculado ao
positivismo legal , decorrendo daí a identificação do Direito estatal com o Direito
justo. Na identidade positivista Direito-Lei-Justiça, a Justiça se identifica com a
justiça legal.
4.2. A recepção do positivismo jurídico22 pelo paradigma dogmático de
Ciência Jurídica
23. Enquanto JHERING afirma que "a construção doutrinária deve aplicar-se diretamente ao Direito
positivo", o Comentário às Pandectas, de WINDSCHEID, uma das obras mais significativas do
espírito científico da Dogmática inicia com uma definição do Direito em termos de lei: "Lei é a
declaração emanada do Estado no sentido de que alguma coisa será Direito". (citados por
PUCEIRO, 1981, p.107)
um lado se insere nas exigências da concepção positivista de Ciência, como o
sublinha BOBBIO (1981,40-1); por outro lado, e simultaneamente, expressa para a
Ciência Jurídica as exigências de neutralização política do Judiciário que
FERRAZ JÚNIOR (1988b, p.77) destaca "como uma das peças importantes no
aparecimento da Dogmática como uma teoria autônoma." De modo que a
recepção do approach juspositivista pelo paradigma dogmático é que gera,
precisamente, o efeito de neutralidade ideológica da Ciência Jurídica.
No paradigma dogmático convivem doravante um método de aplicação
universalista com um objeto espacialmente localizado (o Direito Positivo de
determinado Estado ) e ramificado.
Assim,
"Ainda quando a dogmática consagra uns universais no conhecimento
do direito, este é para ela, como objeto de investigação, um
determinado direito positivo. Enquanto método, é suscetível de
aplicação geral. Um estudo da dogmática mesma, como tema de
metodologia, permite tratá-la como uma operatividade que se reitera
em suas linhas essenciais no que se refere a qualquer ordenamento.
Entretanto, ao não partir de um a a priori encarnado numa idéia do
direito, já que reputa como tal o historicamente vigente dentro de cada
comunidade jurídica, ela mesma tem que se estabelecer o problema da
própria demarcação do direito sobre a que versa. Junto à
universalidade do procedimento discursivo está, pois, a
particularidade ou concretização do objeto. Por isso começa com a
identificação das normas. Este era um tema complexo, e segue sendo,
referido ao direito romano." (1988a, p.51 - grifo nosso)
Neste sentido,
"A reflexão sobre o direito e o direito mesmo tornam a se aproximar
graças a uma dupla identificação: norma jurídica equivale
primordialmente à lei e o direito não é senão a aplicação desta à
realidade social. O esclarecimento teórico da norma se realizaria em um
âmbito de assepsia racional, e sua aplicação prática vai fluir por
caminhos de similar 'pureza'.
......................................................................................................
Não havia dúvida, portanto, da viabilidade de uma ciência jurídica que
não tem por que se preocupar de problemas que a excedem;
legitimação da validade formal do direito, da obrigação que dela
emana ou da conseqüente obediência do cidadão. Seus frutos práticos
não seriam menos evidentes, o substituir com uma racionalidade de
base científica as arbitrariedades camufladas atrás da fantasmagórica
'razão prática'."(OLLERO, 1982, p.24-5)
24. De fato, a análise da ideologia dogmática nestes termos remete diretamente, como veremos a
seguir, para a caracterização de sua atividade como "prescritiva".
positivo passa a ser assim as normas jurídicas que entraram em vigor por decisão e somente por
decisão podem ser revogadas".
Positivação e decisão (em sentido lato, tanto legislativa quanto judicial) são, pois, signos co-
implicados que possibilitam a tomada de decisões vinculantes sobre as questões jurídicas,
assinalando com esta possibilidade um processo de organização e diferenciação do sistema
jurídico como subsistema do sistema social (LUHMANN, 1983:31)
Trata-se, portanto, de um fenômeno típico das sociedades complexas( incompatíveis com um
Direito de parâmetros imutáveis)em que os assuntos jurídicos passam a ser tratados por um
sistema jurídico diferenciado e são submetidos à decisão em caso de conflitos.
análise da identidade funcional da Dogmática Jurídica no marco do fenômeno da
"positivação" do Direito.26
Neste sentido põe de manifesto, em primeiro lugar, que se encontrando
associado à própria diferenciação do sistema jurídico como subsistema social27,
o desenvolvimento da Dogmática Jurídica vincula-se a um "processo de
abstração de dois graus", pois "na mesma medida em que diferencia um sistema
jurídico, a sociedade forma, junto às normas jurídicas, conceitos e regras de
disposição para seu tratamento." (LUHMANN, 1980, p.20)
Ao relacionar normas jurídicas abstratas, de vigência geral (programas
legais de decisão) e decisões judiciais de casos concretos e particulares o sistema
jurídico
26. Trata-se de explicitar aqui a função oficial perseguida pela Dogmática Jurídica e a identidade
funcional que assume em decorrência dela, independentemente de como se resolve esta questão. O
que será contudo objeto específico de análise nos capítulos quarto e quinto, relativamente à
Dogmática Jurídico-Penal.
27. Cuja diferenciação, como aludimos na nota "13", LUHMANN já vê manifesta no contributo de
JHERING.
Relacionando-se portanto com um processo jurídico de decisão, a
diferenciação de competências e a decidibilidade de conflitos aparece para a
Dogmática Jurídica como uma questão central. (LUHMANN,1980, p. 35)
Precisamente configurando-se como um saber conceitual, vinculado ao
Direito posto, é que ela pode instrumentalizar-se a serviço da ação
(decidibilidade), estando interpelada a cumprir uma função central neste
processo, qual seja, o de assegurar um nível de comunicação mínimo entre
as decisões da instância judicial e a programação da instância legislativa, provendo
o instrumental conceitual adequado e necessário para converter as decisões
programáticas do legislador nas decisões programadas do juiz. (LUHMANN,
1980, p.32-3 e BARATTA, 1982b, p.45)
Partindo assim da interpretação das normas jurídicas produzidas pelo
legislador (material normativo) e recolhendo-as individualmente na construção
sistemática do Direito, a Dogmática Jurídica conserva e desenvolve um sistema
de conceitos que, resultando congruente com as normas, teria a função de
garantir a maior uniformização e previsibilidade (certeza) possível das decisões
judiciais e, conseqüentemente, uma aplicação igualitária (decisões iguais para
casos iguais) do Direito que, subtraída à arbitrariedade, garante essencialmente a
segurança jurídica.
Trata-se de programar, orientar, pautar ou preparar as decisões
judiciais e, nesta mesma orientação, racionalizá-las para a gestação da segurança
jurídica; o que significa não apenas possibilitar as condições para a decibilidade
mas para decisões judiciais calculáveis , eqüitativas e seguras.
E na medida em que a Dogmática Jurídica insere-se como uma instância
comunicacional, cientificamente respaldada, entre as normas penais em abstrato
(programação legal) e a sua aplicação (decisões judiciais) deve-se atribuir a ela
uma "função imanente ao sistema jurídico" , uma vez que ocupa uma posição
funcional "dentro" ou no seu "interior". Trata-se de uma Ciência "do" sistema que
medeia o tráfego jurídico (LUHMANN, 1980, p.20) operando como "o código
predominante da comunicação normativa." (WARAT,1982, p.48)
No marco desta função comunicacional programadora (orientadora,
pautadora ou preparadora) das decisões judiciais com vistas ao seu controle
racional28, a Dogmática exerce a tarefa de (re)conhecimento e delimitação das
possibilidades do próprio Direito Positivo.
Trata-se de estabelecer
"(...) as condições do juridicamente possível, em concreto as
possibilidades da construção jurídicas de casos jurídicos. (...) Assim, a
Dogmática jurídica constitui o ponto mais elevado e mais abstrato das
possíveis determinações de sentido do direito dentro do próprio sistema
jurídico." (LUHMANN, 1980, p.34)
29. Por "metalinguagem" designa-se a linguagem (L2) em que se fala de outra, que configura seu
objeto lingüístico, a "linguagem-objeto" (L1) (A respeito ver WARAT, ROCHA e CITTADINO,
1984, p.48 et seq.)
Considerando que o Direito positivo, objeto da Dogmática Jurídica, se exterioriza mediante uma
linguagem (objeto), ela assume em relação a ele a condição de metalinguagem, estando num nível
lingüístico de segundo grau. E considerando que o Direito positivo "prescreve" uma programação
legal a cumprir a Dogmática Jurídica assume em relação a ele, nos termos aqui indicados, a
condição de metaprogramação ou programação de segundo grau, situando-se num plano mais alto
de abstração.
Assim, se a dogmática necessita dogmatizar o "dado" normativo
("princípio da inquestionabilidade dos pontos de partida") enquanto objeto
científico e fundamentar sua racionalidade (axioma do "legislador racional")
enquanto fonte única do Direito, um tal dogmatismo não implica, como já
afirmamos, nem uma adesão ao conteúdo (mutável) das normas jurídicas nem,
acrescentamos agora, o congelamento do seu sentido lingüístico.
No marco desta função a dogmática necessita "neutralizar os
conflitos", isto é, abstraí-los da problemática real e global (social, econômica,
política) na qual se inserem e torná-los conflitos abstratos, interpretáveis,
definíveis e decidíveis "juridicamente". Problemática que ela certamente não
ignora, mas que, conceitualmente, é apenas pressuposta na sua argumentação, já
que suas premissas e conceitos básicos tem que serem tomados, precisamente, de
modo não problemático. Neste proceder, ao mesmo tempo em todos os conflitos
se apresentam como decidíveis, não se revelam em toda a sua extensão, mas na
extensão necessária à sua decidibilidade. (FERRAZ JÚNIOR, 1988b, p.86)
Esta neutralização - que corresponde a uma descontextualização do
Direito operada pela dogmática - implica, de fato, um "corte" em relação à
realidade e daí sua abstração cognoscitiva, pois,
31. Das quais são expressivas a "Jurisprudência dos Interesses" e a tradição anti-formalista dos finais
do seculo XIX e princípios do século XX (Direito vivo de E. ERLICH, Escola do Direito livre).
dias, têm tido lugar a partir de diferentes perspectivas e instrumentais analíticos
não constituindo um quadro crítico monolítico. Sem a pretensão de sumariar aqui
este quadro amplo e rico em sua heterogeneidade, acreditamos que é possível
identificar, em seu âmbito, três grandes eixos de argumentos recorrentes que, sem
prejuízo de outros, dominam o universo da crítica histórica à Dogmática Jurídica:
a) o argumento de sua falta de cientificidade; b) o argumento de seu excessivo
formalismo pela ruptura ou divórcio com a realidade social; e c) o argumento de
seu conservadorismo ou de sua instrumentalização política conservadora do
status quo.
Enquanto o primeiro argumento interpela a problematização de sua
identidade epistemológica, o segundo interpela a problematização de sua
identidade metodológica e o terceiro a de sua identidade político-funcional.
Sendo este tríplice eixo o que nos interessa focalizar nesta tese,
ocupamo-nos na continuação, do primeiro deles, remetendo a abordagem dos
demais para o capítulo terceiro.
32. A "Teoria Pura do Direito" de KELSEN (1976) pode ser considerada um marco clássico de uma
Metajurisprudência prescritiva na medida em que representa uma das tentativas mais acabadas do
século XX de construir um modelo de Ciência do Direito em sentido estrito segundo os
pressupostos de universalidade, verdade, objetividade e neutralidade científicas em superação à
por ele denominada "Ciência Jurídica tradicional".
33.Considerando que os juristas que compartilham o paradigma dogmático na sua maciça maioria
consideram sua atividade como científica, suspendendo seu questionamento crítico, inclusive o
epistemológico, tal esforço insere-se sobretudo no âmbito da Filosofia, da Teoria e Epistemologia
jurídicas.
em distintas matrizes de Ciência (racionalista, positivista, neopositiva, neokantiana
e social) e de sua tipificação como técnica ou tecnologia, situando, em suas
grandes linhas, o perfil do que podemos então denominar uma Metadogmática de
controle epistemológico da Dogmática Jurídica.
A conferência pronunciada em Berlim, em 1847, pelo fiscal prussiano
J.V.KIRCHMANN (1986) sob o sugestivo título "A jurisprudência não é Ciência"
ou "Falta de valor da jurisprudência como Ciência" se notabilizou como um
marco clássico exemplar da desqualificação científica da Dogmática Jurídica,
permanecendo ainda hoje como "um espinho no coração da Ciência jurídica."
(BOBBIO, 1980, p.180)
Por detrás do vigor com que KIRCHMANN tornava pública sua
insatisfação com o objeto, o método e a falta de progresso dos resultados da
Dogmática Jurídica residia precisamente, como observa BOBBIO (1980, p.180)
uma confrontação deste paradigma com uma determinada concepção racionalista
de Ciência, pois em realidade
34.Em defesa do contributo cognoscitivo da Dogmática Jurídica ver LARENZ (1983, p.284)
delimitação como Ciência no sentido positivista, sem poder sê-lo nem abandonar
de todo semelhante pretensão."
O primeiro daqueles argumentos encontramos por exemplo em
BOBBIO que traduzindo a confrontação entre Dogmática Jurídica e concepção
positivista de Ciência constata:
36.Neste sentido entende também BETTIOL (19--, p.104-5) que o método da Dogmática Jurídica
"...é, indubitavelmente, um método positivo, porque parte, exclusivamente, dos dados jurídico-
positivos, da realidade do Direito vigente. Tudo o que supera ou é estranho à consideração desta
realidade, não deve contar para o jurista.Não é possível afirmar que, sob um aspecto especulativo,
exista uma diferença entre o jurista 'classificador' e o positivista à moda antiga, precisamente
porque ambos partem dos resultados da experiência sensível(...). Também o Direito se transforma,
dessa maneira, numa Ciência naturalística, a ordenar segundo os mesmos critérios de que se serve
o naturalista."
recente no âmbito de uma Metadogmática: a distinção entre Ciência e Técnica do
Direito segundo a qual
39. O que segue é uma explicação sintetizada do próprio conceito kuhneano de paradigma a que
aludimos na nota de nº "1" deste capítulo. A respeito ver KUHN (1975) e também CUPANI
(1985, p.57-74).
um paradigma: a "Ciência normal" e a "Ciência extraordinária", distinção que
remete, por sua vez, à sua teoria das "revoluções científicas."
A primeira, é precisamente a atividade regida por um paradigma bem
consolidado, que não é discutido e é, em geral, irrefletidamente aceito. O cientista
"normal" ocupa-se exclusivamente daquele tipo de problemas que o paradigma
definiu como científicos, aborda-os com aqueles recursos metodológicos
consagrados também pelo paradigma e espera resolvê-los de acordo com a
solução-tipo por ele fornecida .
O cientista normal, por ele definido como "solucionador de quebra-
cabeças", é uma personalidade predominantemente conservadora com relação ao
paradigma que defende e que representa para ele a maneira natural de cultivar a
Ciência.
Já a Ciência extraordinária consiste na atividade que se desenvolve
quando um paradigma começa a dar sinais de crise, isto é, não consegue mais
resolver os problemas conforme as regras vigentes e até que seja substituído por
outro . Para cada problema solucionado vão surgindo outros, de complexidade
crescente e a certa altura o efeito cumulativo deste processo entra num período de
crise em que, não tendo mais condições de fornecer soluções, o paradigma
vigente começa a revelar-se como fonte última dos problemas e das
incongruências. As "revoluções científicas", mais freqüentes, segundo KUHN, do
que se imagina, são precisamente os processos de substituição de um paradigma
por outro.
O cientista extraordinário é assim aquele que rompe com o paradigma
tradicional ao perceber suas falhas ou anomalias e busca um novo instrumental
para resolvê-las, chegando eventualmente a propor e até a impor um novo
paradigma. O cientista extraordinário é tal precisamente por ter questionado o
modelo científico tradicional.
Ele não lida com quebra-cabeças mas com autênticos problemas, para
os quais o paradigma vigente não oferece meios de solução e que exigem um novo
paradigma de acordo com o qual seja possível tratá-las e resolvê-las.
Resgatando a historicidade e o relativismo do signo Ciência a teoria
kuhneana dos paradigmas caracteriza a cientificidade de uma disciplina não pelas
suas opções, pressupostos epistemológicos ou produtos, mas pela sua forma
"paradigmática" de exteriorização.
E muito embora Kuhn também tenha por referente o modelo das
Ciências naturais, vimos na Dogmática Jurídica uma exemplar demonstração de
um paradigma científico concordando com FARIA (1988, p.31) em que "a
Dogmática jurídica certamente constitui o que há de mais paradigmático no âmbito
do pensamento normativo moderno."
Pois, com efeito, mais do que definir objeto, método e função que
caracterizam a identidade da Ciência Jurídica - isto é, seu âmbito, instrumentos e
sentido - o paradigma dogmático define toda uma maneira de cultivá-la; todo um
estilo de pensamento e ação que marca, com efeito, uma tradição específica de
fazer Ciência e na qual se formam, sucessivamente, novos juristas.
E se o que caracteriza a(s) Ciência(s) para KUHN é a sua forma
paradigmática de materialização - independentemente e respeitadas suas diferentes
opções e produtos - a Dogmática Jurídica pode ser concebida, precisamente,
como um paradigma científico peculiar que definido e compartilhado pela
comunidade jurídica configura, há mais de um século, o modelo "normal" e
oficial de fazer Ciência na tradição ocidental-continental e naquela sob sua
influência.
Deslocado o critério balizador de sua cientificidade liberada fica a
caracterização da identidade do paradigma desde o seu próprio interior, isto é,
sem aquela preocupação contrastiva pela sua (des)qualificação científica. E esta
caracterização pode ser feita recorrendo-se à contribuição analítica do próprio
debate metadogmático, liberado do critério contrastivo e recolocado no critério de
tipificação paradigmática da Dogmática Jurídica.
Neste sentido entendemos, coerentemente com o que vimos
sustentando neste capítulo, que a Dogmática Jurídica, embora não corresponda
inteiramente à matriz positivista é marcada, inegavelmente, por alguns
pressupostos dela que adquirem contudo, no seu interior, uma feição muito
especial, sobretudo porque condicionados pela centralidade de sua dimensão
prática e sua prometida função instrumental.
Assim, se na demarcação de seu objeto é norteada por um approach
positivista (que se expressa nas formulações da Escola histórica e se reitera no
juspositivismo), ao levar em conta não apenas a legislação (normatividade
abstrata), mas simultaneamente a aplicação judicial do Direito, situando-se
funcionalmente entre ambas, ela engloba uma dimensão técnica, para além das
normas jurídicas, como objeto de sua reflexão teórica e engendra um método
particular, marcado por elementos tanto racionalistas quanto positivistas.
Nesta perspectiva é necessário insistir, então, que embora produza um
determinado conhecimento sobre seu objeto a Dogmática Jurídica não é uma
Ciência de conhecimento em sentido estrito mas, antes, uma Ciência prática e,
como tal, marcada, sem dúvida, por uma dimensão técnica.
1. Introdução
41. Nos referimos a uma relação primária entre Dogmática Penal e Criminologia porque, como
veremos no quinto e último capítulo, uma contemporânea mudança de paradigma em Criminologia
está a oportunizar uma outra forma de relação entre ambas as disciplinas, que chamamos então de
secundária.
Daí a importância, para a compreensão do conceito da Dogmática
Penal, de reconstruí-lo não apenas desde suas bases fundacionais, mas das
bases fundacionais do moderno saber penal em sentido amplo.
Com efeito, a consolidação do paradigma dogmático na Ciência Penal
corre paralela, como veremos, ao surgimento e consolidação do paradigma
etiológico42 em Criminologia, no âmbito de uma tematização sobre as relações
entre ambos que se dá no marco do positivismo 43 e na esteira de um processo e
de um saber penal enraizado no ambiente cultural da Ilustração. Ela somente pode
ser compreendida, pois, no âmbito mais profundo da herança iluminista à herança
(jus)positivista, na medida em que a continuidade ideológica que esta
consolidação guarda com a primeira se define sob a égide da segunda.
Nesta perspectiva, no campo penal o paradigma dogmático não dá
começo definitivo até BINDING, na Alemanha, a partir de 1870, como fruto do
mesmo positivismo jurídico que originaria na Itália o tecnicismo jurídico-penal.
(MIR PUIG, 1976, p.197-8)
A Alemanha foi não apenas o berço da Dogmática Jurídica, mas
também da Dogmática Jurídico-Penal, pois considerando-se que o método da
Escola Histórica influiu poderosamente os juristas alemães, não só cultivadores
43. É importante registrar desde já que no campo penal o positivismo experimenta uma dupla
manifestação. Por um lado, se manifesta através da Escola Positiva italiana, à qual se vincula o
nascimento da Criminologia como Ciência (e que representa uma projeção exemplar da
concepção positivista de Ciência ao estudo da criminalidade). Para designar esta Escola ou o
positivismo nela materializado tem-se usado as adjetivações de positivismo "naturalístico" ou
"criminológico" e ainda "sociológico" ou "científico". Usaremos indistintamente estas
denominações. Por outro lado, o positivismo jurídico (como approach) se manifesta paralela - e
em certos casos, como na Itália, reativamente àquele - estando na base de consolidação da
Dogmática Jurídica no campo penal e do qual são aplicações exemplares neste campo as obras de
K. BINDING na Alemanha e da Escola Técnico-Jurídica na Itália.
V.LISZT talvez represente o empenho mais célebre de conciliação entre o positivismo naturalístico
e o jurídico - entre Criminologia e Dogmática Penal - num "modelo integrado de Ciência Penal".
do Direito privado, se compreenderá até que ponto o juspositivismo encontrou aí
o terreno preparado para a consolidação pioneira da Dogmática no campo penal.
Por outro lado, a Criminologia como Ciência nasce e se consolida no
âmbito da Escola Positiva italiana, no mesmo período.
Desta forma, a consolidação da Dogmática Penal - e a relação que
doravante mantém com a Criminologia - não pode ser situada sem uma ilustração,
ainda que sumária, da trajetória temática e metodológica experimentada pelo
moderno saber penal na Alemanha e Itália.
A trajetória do saber penal em Itália, tomando como marco a obra de
Beccaria até a consolidação da Dogmática Penal, encontra-se marcada por uma
oscilação de método e objeto que não se verifica na Alemanha onde as
oscilações metódicas existentes não foram acompanhadas das mesmas oscilações
de objeto. É que na Alemanha, tradicionalmente, desde Feuerbach, o Direito
Positivo, embora variando a determinação de seu sentido e confins, foi um objeto
mais constante de estudo.
Com efeito, a Escola Clássica (tendo por objeto o Direito natural e por
método o lógico-abstrato ou dedutivo) a Escola Positiva (tendo por objeto o
delito como fato natural e social e por método o científico ou indutivo) e a
Escola Técnico-Jurídica (tendo por objeto o Direito Positivo e por método o
técnico-jurídico) constituem, em Itália, as oscilações extremas neste sentido
entre as quais tem lugar inúmeras posições intermediárias.44
Na Itália, portanto, o universo do saber penal, na centúria que vai da
segunda metade do século XVIII até a segunda metade do século XIX, é
nuclearmente ocupado por duas grandes Escolas penais: a Escola Clássica e a
44. São estas três Escolas, portanto, que examinaremos aqui Sobre as inúmeras Escolas ou tendências
ecléticas ver, entre outros. ASÚA, 1950, p.30 et seq.; SODRÉ, 1977, p.253 et seq.)
Escola Positiva cujo embate travado, desde o advento desta última, marca o
século XIX com a luta entre as Escolas gerando, por esta razão, diversas
tendências ecléticas ou conciliadoras. A Escola Técnico-Jurídica representa, já na
viragem do século XIX para o século XX um autêntico movimento de reação
contra o sincretismo metodológico que, como herança desta luta escolar,
dominava o universo penal.
Na Alemanha, aquelas oscilações metódicas podem ser assim
sumariadas: antes de FEUERBACH, o Direito Natural se encontra entre as fontes
do Direito Positivo; de FEUERBACH até aproximadamente 1840, predomina o
Direito positivo como objeto da Ciência Penal, ainda que moderado pela recurso
ao Direito Natural; desde 1840 até aproximadamente 1870, há um retorno, graças
ao hegelianismo, da prevalência do Direito racional. A partir de então, e desde K.
BINDING, triunfa o positivismo jurídico e a consolidação do Direito positivo
como objeto da Ciência Penal, favorecido por sua vez pelo formalismo que
acabou dominando a Escola Histórica e pelo Código liberal da Alemanha
unificada datado de 1871. (MIR PUIG,1976, p.208-10)
E tendo em conta que o movimento ideológico que fez nascer em toda
Europa a Ciência Penal moderna se remonta, como é sabido, à Ilustração, de
forma imediata por obra de BECCARIA, é dela que partimos aludindo ao saber
penal italiano antes que ao alemão ainda que, cronologicamente, é neste que se
encontram as matrizes fundacionais da Dogmática Penal.
46. Sobre a vida e condições pessoais de Beccaria na produção desta obra, bem como sua
contextualização histórica ver CANTERO (1977, p.49-56).
47.A rigor, a linguagem da Escola clássica não é a linguagem dos "Direitos humanos", tal como veio
posteriormente a se universalizar. Mas a linguagem do indivíduo, da liberdade individual, dos
direitos subjetivos ou das garantias individuais. De qualquer modo, quando aquela for aqui
utilizada deve ser entendida como abarcando esta esfera dos Direitos humanos excluídos,
portanto sejam os Direitos individuais políticos, sejam os sociais, culturais, etc. E esta
pontualização vale também para o âmbito da Dogmática Penal e o seu emprego, enfim, ao longo
desta tese.
porque a denominação de "garantismo" seja talvez a que melhor espelhe o seu
projeto racionalizador.
48. Dentre os reformadores também há que mencionar, entre outros, a Jeremy Bentham, Gaetano
Filangieri, Giandomenico Romagnosi e Jean Paul Marat (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.120-1;
BARATTA, 1991a, p.25 e CANTERO, 1977, p.57-8).
Penal). Neste sentido ela simboliza, a um só tempo, as reivindicações daquele
movimento e as origens da Escola Clássica.
Com efeito, consubstanciando a projeção, para o campo penal, do
conjunto de "ismos" enraizados na Filosofia iluminista - racionalismo,
humanismo, contratualismo, liberalismo - "Dos delitos e das penas" é uma
expressão exemplar daquela dualidade a que acima nos referimos. Pois se trata de
uma obra simultaneamente de combate à Justiça Penal do Antigo Regime e
projeção de uma Justiça Penal liberal, humanitária e utilitária, contratualmente
modelada.
Na sua dimensão crítica (negativa) denuncia o estado da legislação
penal vigente, dominando por uma heterogênea e caótica profusão de leis
obscuras: um "código sem forma, produto monstruoso de séculos mais bárbaros"
(BECCARIA,1983, p.7). E responsabiliza estes vícios da legislação por
possibilitarem a arbitrária e desigual aplicação da lei conforme a condição social
do acusado.
As penas, assentadas no duplo pilar da expiação moral e da intimidação
coletiva, eram excessivamente arbitrárias e bárbaras, prodigando os castigos
corporais e a pena de morte.
Relativamente ao Processo Penal, todas estas características eram mais
acusadas. De caráter inquisitivo, era rigorosamente secreto ignorando as mais
elementares garantias dos direitos de defesa. A tirania da investigação da verdade a
qualquer preço conduzia ao sistema de provas legais, à obrigação do acusado de
prestar juramento e a obtenção por qualquer meio da confissão, considerada a
rainha das provas.
Em síntese, a Justiça Penal vigente atentava, em todos os sentidos,
contra a necessária certeza do Direito e a segurança individual.
Na dimensão reconstrutora (positiva), "Dos Delitos e das Penas"
consiste, em decorrência, na formulação programática dos pressupostos do
Direito Penal e Processual Penal no marco de uma concepção liberal do Estado e
do Direito baseada nas teorias do contrato social, da divisão de poderes, da
humanidade das penas e no princípio utilitarista da máxima felicidade para o
maior número de pessoas. (TAYLOR, WALTON e YOUNG, 1977, p. 19 e
BARATTA, 1991, p.25)
Orienta-se, neste sentido, pela exigência de segurança individual contra a
arbitrariedade do Príncipe (poder punitivo) e sua preocupação central é a
instauração de um regime estrito de legalidade (Penal e Processual Penal) que evite
toda incerteza do poder punitivo, ao mesmo tempo em que promova a sua
humanização e instrumentalização utilitária.
Por isto a obra BECCARIA representa, sem dúvida, um marco
fundacional do moderno Direito Penal e Processual Penal liberal. É sua aportação
para o Direito Penal, contudo, que nos interessa aqui focalizar.
Assim a formulação programática dos princípios da Legalidade dos
delitos e das penas, certeza e igualdade jurídica; humanidade, proporcionalidade e
utilidade (finalidade preventiva da pena) para a fundação de um Direito Penal
Liberal encontram-se, em sua obra, em antítese crítica relativamente aos vícios
mais graves por ele detectados na Justiça Penal vigente em seu tempo, historiada e
imortalizada, em especial, na obra de FOUCAULT (1987).
Partindo de um hipotético estado de natureza, é no contrato social, pois,
que BECCARIA (1983, p.15) encontra um novo fundamento e legitimidade para
as penas e o direito de punir:
49. Em 1767, Catalina II de Russia ordenou a elaboração de um Código Penal. José II da Áustria
promulga em 1787 uma Lei geral sobre o castigo dos delitos. Aparecem, na França, os códigos
revolucionários de 1791 e 1795. Em 1810 era promulgado o Código Penal napoleônico.
(CANTERO,1977, p.60).
"Sobre a base da codificação napoleônica se desenvolve, na França,a poderosa Escola da Exegese
que presidiu o pensamento jurídico francês - e não apenas penal- ao longo do século XIX. Os
códigos, recém-adotados, necessitam ser explicados e comentados. Será necessário mais de meio
século à jurisprudência francesa para precisar o alcance dos novos textos, através de expedientes a
um tempo seguros e rudentes. As preocupações então atuais são portanto de técnica jurídica, e
logo será assim em toda a Europa remodelada política, geográfica e, através da revolução
industrial, economicamente. O princípio das nacionalidades faz surgir novos códigos, que
pretendem superar seus modelos, francês e bávaro, do início do século." (ANCEL, 1979, p.55)
Em Alemanha, contudo, o primeiro código penal unitário data de 1871 e em Itália de 1889.(MIR
PUIG, 1976, p.199-200)
Sobre a codificação na Europa ver ASÚA (1950, t.1, p.276 et seq.); sobre a codificação em
IberoAmérica ver RIVACOBA Y RIVACOBA e ZAFFARONI (1980).
positivados ou em vias de positivação. É compreensível, assim, que no seu
desenvolvimento posterior o classicismo abandone a originária posição crítico-
negativa e produza um saber eminentemente construtivo.
No lugar da crítica à legislação, ao processo e à execução penal do
Antigo Regime, o classicismo passa a edificar a construção conceitual sistemática
do Direito Penal, do crime, da responsabilidade penal e da pena que deverão
sustentar o novo Direito Penal liberal. É possível então, também relativamente a
esta construção, estabelecer um certo senso comum do classicismo em sua fase
jusracionalista ou jusfilosófica.
50.MIR PUIG (1976, p.198) sustenta que o contexto político e jurídico da França, por um lado, e da
Itália e Alemanha, por outro, constitue uma das bases que explica a distinta atitude intelectual,
nestes países, frente ao Direito Natural.
É que, em Itália e Alemanha, que experimentaram unificações políticas postergadas, não se verifica a
imediata cristalização política e, conseqüentemente legislativa, das idéias liberais, tal como ocorreu
na França graças à Revolução, o que acarreta então uma importante conseqüência no âmbito da
metodologia jurídico-penal destes países. Enquanto na França a concretização das concepções
liberais no Direito Positivo ensejou já desde fins do século XVIII a passagem de uma atitude
metódica jusnaturalista a uma atitude de franca vinculação ao Direito positivo (dando origem ao
paradigma da exegese) na Itália e Alemanha, encontrando-se a legislação penal ainda ancorada no
espírito do Antigo Regime e em contradição, portanto, com a filosofia política do Estado liberal, o
saber penal se manteve vinculado ao Direito natural, único que refletia as aspirações da época.
De BECCARIA a CARRARA, a versão contratualista do Direito Penal
cede lugar à versão católico-tomista, pois sua origem natural não é mais o
contrato, mas as Leis divinas.
De qualquer modo, este deslocamento não altera aquela conexão, já
referida, entre o método racionalista e a ideologia liberal no interior do
classicismo,51 pois ainda que Carrara tenha adotado a versão católico-tomista
Assim, prossegue MIR PUIG (1976, p.199-200), até o advento do Código Penal italiano
unificado de l889 a Ciência Penal neste país "...preferiu o caminho de preparar o advento do novo
Direito Penal, criando a magnífica construção ideal-racionalista da Escolca Clássica, a limitar-se ao
estudo do insatisfatório e fragmentado Direito positivo.Deste modo se os Códigos franceses foram
o fruto do Direito natural da Ilustracão, o italiano de 1889 o foi do naturalismo da Escola Clássica.
E se o Código Penal francês de 1810 constituiu nesse país a base do positivismo do século XIX,
em Itália deveria esperar-se que o Código de 1889 oferecesse o terreno propício para a aparição
do Tecnicismo jurídico-penal. Em Alemanha a situação legislativa era mais próxima à italiana que
a francesa."
Mas se é convincente esta explicitação contextual e possível admitir a Escola Clássica prepara,
em Itália, o advento de um código penal unitário e liberal é fundamental reconhecer, por outro lado,
que suas construções apresentam um evidente potencial universalista, pois libertando-se de seu
contexto originário e dos seus próprios pressupostos jusnaturalistas exerceram "uma influência
extraordinária nas legislações de todo o mundo" na modulação do Direito Penal liberal e neste
sentido contribuíram decisivamente para a sua consolidação. (TAYLOR, WALTON,
YOUNG,1990, p.25)
51. FERRI (1931, p.35-7) escreve, a este respeito, que a Escola Clássica, em seguida à Revolução
Francesa teve uma orientação político-social em pleno acordo com as reivindicações dos
'Direitos do homem' e, em reação aos excessos medievais da Justiça Penal, estabeleceu a razão e
os limites do Direito de punir por parte do Estado e reivindicou todas as garantias para o indivíduo.
Como sistematização filosófico-jurídica foi inspirada pela doutrina do 'Direito Natural', que foi
um dos confluentes ideais na Revolução Francesa e valeu-se do método dedutivo, então imperante
sem contraste nas Ciências morais e sociais. Como escola jurídica, contudo, bifurcou-se. Pois, ao
lado das doutrinas filosófico-jurídicas desenvolvidas com abstração do Direito positivo,
desenvolveu-se a "corrente crítico-forense" que, seguindo a tradição dos criminalistas práticos,
passou a ocupar-se da interpretação dos códigos penais vigentes.
E é por esta via que CARRARA chega à sua "fórmula sacramental"
do crime como "ente jurídico" que sintetiza, a seu ver, a essência do crime e
traduz a verdade fundante do sistema clássico:
"A teoria da imputação considera o delito nas suas puras relações com
o 'agente', e a este, por sua vez , em suas relações com a 'Lei moral',
conforme os princípios do 'livre arbítrio' e da responsabilidade
humana, princípios que são imutáveis, não se alterando com o decorrer
dos tempos ou o variar do povos e costumes."52
52. E acrescenta a seguir respondendo à crítica contra o livre-arbítrio formulada por FERRI: "Não me
ocupo de discussões filosóficas; pressuponho aceita a doutrina do 'livre arbítrio e da
imputabilidade moral do homem', e sobre essa base edificada a Ciência Criminal, que sem ela mal
se construiria." (CARRARA, 1956, p.37)
53. Convém situar, pois, desde já, o marco geral das teorias da pena, que se desenvolvem da Escola
clássica, passando pela Escola positiva à contemporaneidade, seja para melhor situar a
Mas não obstante alguns clássicos, como BECCARA, atribuírem à
pena uma finalidade essencialmente preventiva de impedir o aumento dos crimes
("prevenção geral negativa"), nesta fase jurídica da Escola Clássica a atribuição de
uma finalidade retributiva à pena coroa, essencialmente, o seu sistema, pois ela se
apresenta como decorrência lógica do livre-arbítrio.
Neste âmbito,
contribuição das Escolas na sua formulação, seja pela referência que a elas faremos em distintos
momentos deste trabalho.
Para as teorias absolutas (Kant, Hegel, Carrara) a função da pena é a retribuição. A pena não é
vista como um meio para a realização de fins, uma vez que encontra em si mesma a sua própria
justificação. Neste sentido não se pode dizer que não seja atribuída à pena uma função positiva,
mas sim que esta função é interna ao Direito mesmo pois é essencialmente reparatória, de
reafirmação do Direito.
Para as teorias relativas o fim da pena é a prevenção e ela é vista, ao revés, como um meio para
a realização de fins socialmente úteis. Relativamente a estas é possível diferenciar quatro tipos
ideais de modelos teóricos, observando que freqüentemente encontram-se teorias nas quais se
utiliza mais de um modelo, geralmente em disposição hierárquica de funções (teorias
plurifuncionais).
Segundo um esquema universalmente utilizado nos manuais, as teorias relativas se classificam em
teorias da "prevenção especial" e teorias da "prevenção geral" conforme o seu destinatário
principal seja identificado, respectivamente, no castigo penal ou na sua ameaça.
As teorias da prevenção geral se subdividem em teorias da prevenção geral negativa (Bentham,
Feuerbach, Beccaria) e positiva(Escola funcionalista desde Durkheim e, contemporaneamente,
representada pela "teoria da prevenção-integração"). Nas primeiras, cujos destinatários são os
infratores potenciais, a função da pena é a intimidação ou disuasão neles provocada pela
mensagem contida na lei penal, em especial pela cominação da pena em abstrato, que estaria então
dirigida a criar uma contramotivação ao comportamento contrário à lei. Nas segundas, cujos
destinatários são, ao revés, os cidadãos fiéis à lei, a função da pena é a de declarar e afirmar
valores e regras sociais e de reforçar sua validez, contribuindo desta forma para a integração do
grupo social em torno daqueles e para o reestabelecimento da confiança institucional desprezada
pelas trangressões ao ordenamento jurídico. Embora reconheça antecedentes na formulação
durkheimiana foi objeto de recente reelaboração na Alemanha ,no marco conceitual da teoria
sistêmica pela chamada teoria da "prevenção-integração" que representa, também, o ponto de
chegada do desenvolvimento da Ciência penal alemã dos último decênios.
As teorias da prevenção especial também se subdividem, por sua vez, em teorias da prevenção
especial negativa e positiva. As primeiras afirmam a função de neutralização do
trangressor:custódia em lugares separados, isolamento, aniquilamento físico. As segundas
(particularmente desenvolvidas desde a Escola Positiva italiana e retomadas no pós-guerra pela
teoria da Nova Defesa social representada entre outra por ANCEL (1979) afirmam, ao revés, a
função de tratamento do condenado para sua reeducação e readaptação à normalidade da vida
social.
A respeito do exposto ver BARATTA (1985, p. 82-3).
"As várias teorias formuladas pelos clássicos movem-se entre os extremos da imputabilidade e o da pena
retributiva pelo que, frente a uma concepção que ponha em dúvida a liberdade do querer ou atribua à pena tarefas
que não encontrem seu apoio lógico na teoria da culpa, podemos tranqüilamente afirmar que estamos fora do
campo de ação do classicismo, que, no esforço de salvaguardar a soberania da Lei contra qualquer arbítrio,
restringia os poderes do juiz no campo da legalidade, transformando-o em mero executor do legislador."
(BETTIOL, 1966, p.25)
O domínio dos clássicos por quase cem anos no campo penal e sua
pretensão de plenitude da problemática penal leva ANCEL (1979, p.57) a afirmar
que,
54.
Os italianos CESARE LOMBROSO(1836-1909), ENRICO FERRI(1856-1929) e RAFFAELE
GAROFALO (1851-1934) são considerados como os máximos definidores e divulgadores da
Escola Positiva. O "L'Uomo delinqüente" (publicado em 1879), de LOMBROSO, a "Sociologia
Criminale" (publicada em 1891), de FERRI e a "Criminologia - studio sul delitto e sulla teoria della
represione" (publicada em 1885) de GAROFALO são consideradas as obras básicas (os seus
"evangelhos").
Apesar da especificidade destas obras guias da escola com enfoque, respectivamente,
antropológico, sociológico e jurídico, a Escola Positiva possui, ao contrário da Clássica, um caráter
mais unitário e cosmopolita. Até porque, "interessava aos positivistas italianos manter a unidade por
razões internacionais. A difusão da escola pelo mundo culto foi uma de suas principais
preocupações." (ASÚA, 1950, p.60-1;. CANTERO, 1977, p.79-80 e SOUSA,1982, p.17)
Conforme opinião mais generalizada, é evidente a influência do positivismo comteano, do evoluciosmo
de DARWIN e da obra de SPENCER sobre a Escola Positiva (Cf. ASÚA,1950, p.66; SOUSA,
1982, p.23 e SANTOS, Beleza dos. In prefácio de FERRI,1931, p.IX. Sobre a opinião de
FERRI a respeito: (1931, p.39-42 passim.)
Neste horizonte histórico e sob novos pressupostos ideológicos e
teóricos a crítica do positivismo ao classicismo é centrada, visivelmente, em duas
grandes dicotomias: individual x social e razão x realidade (racionalismo x
empirismo).
FERRI (1931, p.38-9) identificava assim duas razões fundamentais para
o "declínio" da Escola Clássica, após cumprida a missão histórica , segundo ele,
unicamente, de "diminuição das penas".
A primeira razão foi que
"(...) as afirmações do direito individual em face do Estado, como
reação contra os abusos da Justiça Penal antes de BECCARIA,
chegaram - elas mesmas - ao maior excesso, em virtude da Lei do ritmo
histórico, pela qual cada reação ultrapassa os limites da ação que a
provocou. O imputado foi considerado como uma vítima da tirania do
Estado, e a Ciência Criminal atribuía CARRARA a missão de limitar os
abusos do poder: do que resultou uma diminuição dos direitos, outro
tanto legítimos, da sociedade em face do delinqüente."
55. Curiosamente, contudo, FERRI, que originariamente combateu o socialismo, passou a dizer-se
socialista, proclamando a MARX, junto com DARWIN e SPENCER entre seus grandes ídolos,
para posteriormente defender o fascismo. (Cf. OLMO, 1984, p.36; ASÚA, 1947, p.33-5;
LYRAFILHO,197, p. 16)
"(...) que, o método dedutivo ou de lógica abstrata faz perder de vista
o criminoso, enquanto que na Justiça Penal ele é o protagonista vivo e
presente, que se impõem á consciência do juiz primeiramente e mais
acentuadamente que a 'entidade jurídica' do crime e da pena." (FERRI,
1931, p.39)
- O Método (experimental)
56.A respeito da importância da obra dos "estatísticos criminais" como antecipação da Sociologia
Criminal, bem como na transição do classicismo para o positivismo ver TAYLOR, WALTON,
YOUNG (1990, p. 55-6)
57.DIAS e ANDRADE (1984, p.5) noticiam que "o termo Criminologia terá sido utilizado pela
primeira vez, há pouco mais de um século (1879), pelo antropólogo francês TOPINARD. Foi, por
outro lado, em 1885 que ele apareceu como título duma obra científica: a Criminologia de
GARÓFALO."
BUSTOS RAMÍREZ (in BERGALLI e BUSTOS RAMÍREZ, 1983a, p.16) também noticia que
o nome de Criminologia foi "inventado" em 1879 por TOPINARD.
ROSA DEL OLMO (1984, p.25) noticia por sua vez, cremos que equivocadamente, que o termo
"Criminologia" para designar a originariamente denominada Antropologia criminal foi cunhado em
1889 por Paul Topinard e que Garófalo foi provavelmente o primeiro a utilizá-la ao assim intitular
seu livo publicado em 1885 na Itália.
De qualquer forma passou a abranger o que originariamente se designou por Antropologia
Criminal e também por Sociologia Criminal designando as diversas perspectivas ( antropológicas,
sociológicas, psicológicas,multifatoriais, etc) de abordagem causal-explicativa (etiológica) do
fenômeno da criminalidade.
contou com o auxílio de FERRI, quem sugeriu, inclusive, a denominação
"criminoso nato".
Procurou desta forma individualizar nos criminosos e doentes
apenados anomalias sobretudo anatômicas e fisiológicas (como pouca capacidade
craniana, frente fugidia, grande desenvolvimento dos arcos zigomático e maxilar,
cabelo crespo e espesso, orelhas grandes, agudeza visual) vistas como constantes
naturalísticas que denunciavam, a seu ver, o tipo antropológico delinqüente, uma
espécie à parte do gênero humano, predestinada, por seu tipo, a cometer crimes.
Sobre a base destas investigações e descrição do criminoso nato,
buscou primeiramente no atavismo (manifestação de traços característicos de uma
etapa de desenvolvimento biológico primitivo na raça humana) uma explicação
para a estrutura corporal e a criminalidade nata. Por regressão atávica, o criminoso
nato se identifica com o selvagem. 58
Posteriormente, diante das críticas suscitadas, reviu sua tese,
acrescentando como causas da criminalidade a epilepsia e, a seguir, a loucura
moral. Atavismo, epilepsia e loucura moral constituem o chamado, por Vonnacke,
de "tríptico lombrosiano".
O que importa ressaltar então, é que sobre estas bases a obra
lombrosiana marca o nascimento da Criminologia como "Ciência causal-
explicativa" que nasce, portanto, como Antropologia Criminal, centrada na
investigação causal do homem delinqüente. Daí sua significação especial para a
história da Criminologia.59
58. A respeito do exposto ver LOMBROSO (1983); SOUSA (1977, p.17-8) e LAMNEK (1980,
p.20).
59. Subscrevemos portanto aqui a posição de que a Criminologia como "Ciência" ou reivindicando um
estatuto científico surge com a Escola Positiva italiana e, concretamente, com a obra de Lombroso
(OLMO, 1982, p.22) e que é este o marco inicial de consolidação do chamado "paradigma
etiológico" de Criminologia.
Foi de Ferri, então, considerado o maior expoente e o mais autêntico
representante da Escola Positiva, que veio a segunda resposta sobre as causas do
crime.
Desenvolvendo a Antropologia lombrosiana e orientando-se por uma
perspectiva sociológica, admitiu uma tríplice série de causas ligadas à etiologia do
crime: individuais (orgânicas e psíquicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais
(ambiente social) e, com elas, ampliou a originária tipificação lombrosiana da
delinqüência.
Conectando e investigando esta tríade de causas deu origem, por sua
vez, à Sociologia Criminal que representa, então, o desenvolvimento da
Criminologia etiológica numa perspectiva sociológica
Assim para FERRI (1931, p.40-1)
"todo o crime, do mais leve ao mais terrível, não é o 'fiat'
incondicionado da vontade humana, mas sim a resultante destas três
ordens de causas naturais. E visto que estas diversamente influem, caso
por caso, indivíduo por indivíduo, disso advém a classificação dos
criminosos (criminoso nato - louco - habitual - ocasional - passional)
que fica como pedra angular do novo edifício científico (...)."
DIAS e ANDRADE (1984, p.12-3) afirmam, neste sentido, que "...não é arbitrário identificar o
positivismo italiano com o aparecimento da Criminologia científica" já que "foi o impacto da escola
positiva italiana - devido à volumosa bibliografia dos seus principais vultos, às revistas que
fundaram e em que participaram, ao dinamismo da sua intervenção em congressos e debates - que
converteu o estudo das causas do crime em Ciência de cultivo universal."
Isto não significa, por um lado, que tal Escola esgote o positivismo criminológico, que se estende
ao longo do século XX: e, por outro, que a Criminologia inexistia até o seu advento, questão a que
retornaremos no quinto capítulo. De qualquer modo, como veremos também aí, o estatuto
científico da Criminologia etiológica foi também, tal como o da Dogmática Penal, profundamente
questionado.
que conformam a personalidade de uma minoria de indivíduos como
"socialmente perigososa".
- Criminoso
60. O que FERRI designa, porém, por repressão, é o que contemporaneamente se designa por
prevenção especial (positiva) baseada na ideologia do tratamento e na ressocialização ou
readaptação social do criminoso através da execução da pena.
Visivelmente contra a medida da penalidade orientada pelo classicismo,
escreve FERRI (1931, p.47) que
"(...) apto para orientar a atividade dos científicos do direito penal para
uma perspectiva nova: a reforma do Direito penal. Substituída a
liberdade de vontade pelo determinismo causal, resultava possível uma
'luta' científica contra o delito. Mas para levar a cabo estas idéias era
imprescindível a reforma do Direito Penal vigente apoiado na idéia da
liberdade de vontade (...)." (BACIGALUPO, 1982, p.54)
"A solução do conflito entre livre arbítrio e determinismo se consegue aceitando o que chamamos neoclassicismo.
Este propõe uma distinção qualitativa entre a maioria, que é concebida como capaz de eleger livremente, e a
minoria de desviantes, cuja conduta está determinada." (TAYLOR, WALTON, YOUNG, 19__ , p.55)
"(...) acerca da fisionomia, da estrutura, da orientação que a legislação devia tomar, sem que fosse abordada a
questão principal a respeito da legitimidade de uma Ciência do Direito Penal como Ciência Jurídica. Esta ainda
inexistia." (BETTIOL,19--, p.102)
62. Por opção metodológica, expusemos primeiramente aqui o modelo de ferriano. Mas é importante
ressaltar que os modelos de Ciência Penal de FERRI, BINDING, LISZT e ROCCO são
cronologicamente contemporâneos, desenvolvendos entre a década de 80 do século XIX e a
primeira década do século XX e simbolizando, exemplarmente - embora não fossem os únicos
existentes - a convivência híbrida, para além de Itália, entre o positivismo criminológico e o
positivismo jurídico e a sua disputa pela hegemonia na Ciência Penal. Neste sentido, como
veremos, polemizaram entre si. Se ROCCO já tinha diante de si a obra "Sociologia Criminal"
(1900) de FERRI e a ela responde e polemiza em sua conferência de 1910 como, por outro
lado, subscreve o enfoque dogmático de BINDING e LISZT; em seus "Princípios de Direito
Criminal" (1928) FERRI elabora uma crítica vigorosa ao tecnicismo jurídico alemão e
especialmente italiano, simbolizado, respectivamente, nos delineamentos de LISZT e ROCCO.
Por outro lado, na Alemanha, BINDING e LISZT, apesar de suas convergências na formulação
do modelo dogmático, polemizam entre si.
63. FERRI adverte que seu modelo de "Sociologia Criminal" seria mais adequadamente designado por
"Ciência geral da criminalidade" que, em parte, se exprime com o termo de "Criminologia" de
Garofalo.
nome e por ele confirmado nos seus "Princípios de Direito Criminal" (1928),
onde afirma:
A
SOCIOLOGIA CRIMINAL
é a Ciência da CRIMINALIDADE e da DEFESA SOCIAL contra esta isto é
o estudo científico
do CRIME
como
fato INDIVIDUAL fato SOCIAL
(condições fisio-psíquicas (condições do ambiente
do delinqüente) físico e do social)
ANTROPOLOGIA,PSICOLOGIA ESTATÍSTICA CRIMINAL
PSICOPATOLOGIA CRIMINAL INQUÉRITOS MONOGRÅFICOS
COMPARAÇÕES ETNOGRAFICAS
PARA sistematizar a
DEFESA SOCIAL
PREVENTIVA REPRESSIVA
Indireta ou remota (Direito e Processo Penal
(Substitutivos penais) Técnica carcerária
direta ou próxima Institutos pós-carcerários)
(Polícia de Segurança)
"(...) não pode ser criminalista quem, conhecendo às Leis vigentes, não
conhecer os dados da Sociologia Criminal. Por outro lado, pois que a
Justiça Penal é a organização jurídica dos remédios repressivos contra
a criminalidade, é natural que a disciplina jurídica dos crimes e das
penas que foi a missão histórica - para a defesa dos direitos do homem -
e a missão científica - para um conhecimento sistemático - da Escola
Clássica, fique parte integrante dos conhecimentos necessários ao
legislador e a todos quanto (acusadores, defensores, juízes) lidam
praticamente com as normas da Justiça Penal."
"O estudo tecnicamente jurídico do crime, e da pena e do julgamento (direito e processo penal) não é mais do que
um ramo da Ciência Criminal e limita-se precisamente ao estudo das regras jurídicas da repressão que são
expressas pelo nome de Justiça Penal e que são uma parte somente da defesa social contra a criminalidade, como
suprema e imanente função do Estado." (FERRI, 1931, p.76)
64. Sendo polêmicas a origem e significação do chamado "tecnicismo jurídico" situemos os seus
contornos para assumir uma posição .
Quanto à "gênese", discute-se se o tecnicismo jurídico é de origem alemã ou italiana. Parece-nos
que a tendência dominante é atribuir sua paternidade aos alemães, especialmente a KARL
BINDING e FRANZ VON LISZT (Cf. FERRI, 1931, p.58; CANTERO, 1977, p.94-5; ASÚA,
1950.t.1, p.11; ROCCO,1981, p.59; BETTIOL, 19--, p.102 e 1966, p.63-6;
NUVOLONE,1981, p.6-7; BRUNO, 1967, p.40)
FERRI(1931, p.59-60) sustenta, nesta direção, que a orientação do tecnicismo-jurídico afirmado
em Itália em finais do século XIX e que se junta à corrente critico-forense da Escola Clássica é
sobretudo uma derivação e uma imitação da orientação germânica, enquanto entende que o único
argumento de estudo para o criminalista é a Lei penal vigente em cada país.
Nesta perspectiva, também acentua CANTERO (1977, p.95), não se pode dizer que o movimento
propugnado por ROCCO seja original, nem é correto chamá-lo, como faz PETROCELLI ,de
direção jurídica italiana. Pois ROCCO importa à área latina o que já havia tido lugar na dogmática
alemã.
MAGGIORE (1954, p.114) contudo, sustenta que o tecnicismo jurídico, cuja origem comumente
se diz alemã, atribuindo sua paternidade a BINDING e LISZT é, em realidade, italiano,
desenvolvendo as posições de CARRARA (que centralizou em seu sistema o caráter jurídico da
pena e do delito). E destaca que na Itália, de pois de ALESSANDRO STOPPATO (1858-1931)
teve e tem insignes representantes como CIVOLI (1861-1932), ROCCO (1876-1942), CONTI
(1864-1942) MASSARI (1874-1934), MANZINI, BATTAGLINI, DELITALA e outros.
Também a sua "significação" é polêmica, pois enquanto alguns sustentam que se trata de uma
Escola; para outros não passa de uma orientação metodológica para a Ciência Penal.
ASÚA (1950,t.2, p.111) afirma que, embora de raízes alemãs, é apenas na Itália que o tecnicismo
jurídico assume o caráter de Escola, tendo uma formação lenta e trabalhosa, desde MANZINI e
ROCCO a BETTIOL e PETROCELLI, passando por DELITALA, CICALA, MASSARI,
VANINI, DE MARSICO, ANTOLISEI, etc. E que tendo sido classificada por FLORIAN como
clássica, por FERRI como neoclássica e por GRISPIGNI como continuadora da Terceira Escola,
trata-se de uma Escola neoclássica representando, mais estritamente, um deslinde de campos: "o
Direito Penal vigente, com seu conteúdo dogmático e seu método jurídico, separado da
Criminologia, ciencia de conteúdo causal e naturalista e método experimental e sociológico."
(ASÚA, 1950,t.2, p.115)
Entre os que compartilham da significação do tecnicismo jurídico como "orientação metodológica"
encontram-se, entre outros, SODRÉ (1977, p.268); BETTIOL (1966, p.64-5) e CANTERO
(1977, p.94) que entende ser inexata sua qualificação como Escola, seja neoclássica ou eclética.
Pois o "tecnicismo jurídico não é mais que a indicação de um método de interpretação e
elaboração científica do Direito, sem uns postulados filosófico-sociais determinados".
De qualquer modo, parece ser consensual a consideração de ARTURO ROCCO como o seu mais
autorizado representante, mesmo se precedido na Alemanha por BINDING e LISZT e na Itália
por STOPATTO e MANZINI (Cf. ASÚA, 1950, t.1, p.112; FERRI,1931, p.64; CANTERO,
1977, p.91; BETTIOL, 1966, p.64; PIMENTEL, 1983, p.36-7).
A nosso ver, cabe razão à ASÚA quando afirma que é apenas na Itália que o Tecnicismo jurídico
assume a dimensão de uma Escola e, acrescentamos, movimento de reação. E neste sentido
contém, inegavelmente,uma orientação metodológica na medida em que tematiza sistematicamente
as condições de possibilidade para a afirmação da Ciência Penal como Ciência Jurídica
(Dogmática Penal); assim como, de resto, a Escola Clássica estabeleceu as condições de
possibilidade da Ciência Penal como Ciência Jusracionalista e a Escola Positiva como Sociologia
Jurídica. Neste sentido, a Escola Técnico-Jurídica italiana se ocupa, também, tal como as
ARTURO ROCCO produziu a sistematização mais significativa,
acabada e célebre do tecnicismo jurídico, na aula inaugural dos cursos da
Universidade de Sassari, por ele proferida em 15 de janeiro de 1910, que se
converteu na obra "Il problema eil metodo della scienza del diritto penale",
conhecida como "prolusão sassaresa", e que expressa, visivelmente, a origem
reativa do tecnicismo jurídico italiano.
"Qual é, em especial, a causa próxima de tal estado de coisas? O diagnóstico não parece difícil. A única Ciência
clássica do direito penal, que no começo ignorava e logo esquecia os ensinamentos da escola histórica do direito,
pretendera estudar um direito penal que estivesse à margem do direito positivo; se iludira com forjar um direito
penal diverso do consagrado nas leis positivas do Estado, um direito penal de caráter absoluto, imutável, universal,
cuja origem remontasse à Divindade, ou à revelação da consciência humana, ou às leis da natureza, ou às leis do
pensamento e da idéia. A mesma obra, monumental e gloriosa de CARRARA, não escapou a este vício dos tempos;
é precisamente no tempo em que tal vício encontra sua razão de ser (...) a orientação positiva moderna, como em
outro tempo a antiga escola histórica, combateu precisamente este erro; mas caiu por sua vez em outro
igualmente manifesto, ao afirmar, contra o princípio da divisão do trabalho científico, que é condição absoluta do
desenvolvimento humano, que a Ciência do direito penal nada mais é que um capítulo e um apêndice da sociologia."
65. ROCCO (1982, p.33-6) dirige assim uma longa critica às construções clássicas e positivistas da
pena, da responsabilidade penal, do delito e do delinqüente por terem ignorado seus aspectos
jurídicos.
Da pena, produziram mil teorias sobre sua origem, missão, fundamento, objetivo, legitimação,
reforma e ainda, "por estranho que pareça", sobre a possibilidade de sua abolição. Mas nem
sequer defiram o que é, juridicamente.
Da responsabilidade penal, do livre-arbítrio ao determismo, não estabeleceram de modo preciso as
condições subjetivas e objetivas requeridas pelo Direito Penal vigente para que alguém seja
penalmente responsável.
Do delito, não trataram como transgressão jurídica, desaparecendo quase completamente sua
noção como "fato juridicamente ilícito" do qual nascem obrigações e Direitos.
Do delinqüente, ignoraram a noção de personalidade jurídica que atribui ao réu, enquanto cidadão,
a garantia de Direitos dos quais não pode ser privado aprioristicamente, antes ou depois da
trangressão e até mesmo da condenação, sendo impossível um diagnóstico seguro de sua
delinqüência potencial e uma prognose segura de sua delinqüência efetiva.
jurídico do Direito e da Ciência Penal, a crise era vista, sobretudo, como crise de
identidade da Ciência Penal.
De acordo, pois, com o
66. É importante ressaltar que ROCCO recorre, em sua obra, a extensas notas explicativas buscando
demonstrar o deslocamento, no final do século XIX, de uma concepção de Direito e Ciência Penal
jusnaturalista para uma concepção juspositivista como tendência dominante. Significativamente,
também se apóia em extensa literatura alemã - na qual inclui-se as obras de BINDING e LISZT -
o que confirma a interpretação das raízes alemãs do tecnicismo jurídico.
Delimitado o objeto, a preocupação correlata de ROCCO é fixar a
autonomia e o método da Ciência Penal, tratando-se, ao mesmo tempo de conferir
mais relevância à distinção, o que não significa separação
67. FERRI (1931, p.64-7 e 81), por sua vez, acusando vigorosamente os neo-clássicos (tecnicistas)
italianos de terem 'copiado' LISZT e os alemães, "esquecendo-se que o Direito Penal é uma
criação original do gênio itálico e deste foi irradiado sempre para os outros países," identifica aí
seu "erro fundamental". Pois, importar a dogmática do Direito Privado e demais disciplinas implica
ignorar a índole própria do Direito Penal, a saber, de ser a única, entre todas as Ciências da
enciclopédia jurídica, que tem como objeto a pessoa do delinqüente. O Direito Privado e também
o processual, admistrativo, constitucional, internacional estuda e regula as relações jurídicas e os
negócios jurídicos como formas de atividades normais, independentemente das pessoas que os
praticam. O erro metódico, pois, é considerar os crimes como relações jurídicas atribuídas a um
homem médio (como os contratos, testa mentos etc.) quando são sempre formas de atividade
anormal e anti-social e, como tais, sua disciplina é inseparável da observação da pessoa do
delinqüente.
Conclui então FERRI (1932, p.67): "Continuar, portanto, a orientação da Escola Clássica, já
apreciada quanto aos seus resultados negativos para a defesa social, e agravá-la ainda com os
processos de dogmática jurídica do Direito Privado transportados ao Direito Penal, pode ser na
verdade uma boa ocasião para utilizar e revender em Itália o stock das numerosas abstracções e
locubrações alemães e também um diversivo para iludir o conflito entre a Escola Clássica e a
Escola Positiva, quer dizer, entre o modelo aprioristico e o metodo galiLeiano no estudo da Justiça
Penal."
nestas três ordens de investigações no que deve consistir o estudo
técnico do direito positivo (...)." (ROCCO, 1982, p.18)
68. Que acaba por destruir o espírito diferencial das Ciências Jurídicas já que se o "Direito Penal é
certamente diferente do Direito Privado e este do Direito Público (...) comentar um artigo do
Código Penal em nada difere de comentar um artigo do Código Civil e Comercial."
(ROCCO,1982, p.21-2)
69. Como tem sido observado, ROCCO utiliza impropriamente o termo dogmática para designar
apenas uma etapa do método técnico-jurídico quando designa, por comum acordo na comunidade
científica, o próprio modelo dogmático de Ciência Penal como um todo.
Desta forma, se a exege não proporciona mais do que o conhecimento
empírico do Direito; a dogmática, ao contrário, proporciona o seu conhecimento
científico. "Relativamente à exegese, que é a "Ciência da Lei", a dogmática pode
chamar-se verdadeiramente a "Ciência do Direito". (ROCCO, 1982, p.22-3)
Enfim, se a exegese e a dogmática dão a conhecer o sistema do Direito
vigente - o Direito que é - a crítica, como terceira e última etapa do método
técnico-jurídico investiga o Direito que deve ser ou o Direito ideal adquirindo
legitimidade unicamente após se esgotar aquelas duas etapas metódicas, "já que
não é possível criticar o que pelo menos cientificamente, ainda não se conhece."70
70.ROCCO (1982, p.31-3) distingue e propugna dois níveis de crítica. No primeiro, circunscrito ao
âmbito do Direito Penal Positivo, deve o penalista identificar, por dedução lógica do sistema, suas
contradições ou antinomias e, por dedução lógica da aplicação do Direito Penal, sua
impossibilidade de efetivar os objetivos sociais e políticos desejados pelo "legislador". Como parte
"vital" da elaboração jurídica incumbe-lhe "prever o Direito futuro baseando-se nas recônditas
intimidades do Direito atual." Trata-se da "crítica jurídica" em sentido estrito.
No segundo nível, cujo referente é não o sistema, mas as evoluções de ordem social e política,
compete ao penalista a tarefa de ajuizar a crítica e a reforma do Direito Penal vigente indicando,
com base nas necessidades sociais e nas oportudades políticas, quais os melhores meios
repressivos na luta contra a criminalidade. Trata-se aqui da Ciência Penal de "lege ferenda" ou
Ciência ou Arte da Legislação Penal.
É de se observar que este segundo nível corresponde àquela função político-criminal que a
Dogmática Penal passou a desempenhar na preparação de reformas penais, mas não considerada,
efetivamente, como atividade interna ao seu paradigma nem como sua função em sentido estrito,
mas sedundária.
"Qualquer um vê a utilidade de tal organização e sistematização lógica,
não estamos dizendo formal, dos princípios do direito penal vigente; ela
busca proporcionar o conhecimento científico das normas do direito
àqueles que são chamados por sua missão na vida social a interpretar e
aplicar o direito, seja combatendo como advogados, seja decidindo na
qualidade de magistrados; procura dar ao intérprete jurista ou
magistrado o quanto é necessário para a administração prática da
justiça; trata, em outras palavras, de tornar útil a Ciência jurídica no
campo prático da aplicação judicial, assim como manter a vida prática
cotidiana do direito à latura de um conhecimento científico da lei."
(ROCCO, 1982, p.15).
71. FERRI (1931, p.68), contrariamente, insistia em que as construções jurídicas dogmáticas, "são,
nove sobre dez, inutilizáveis e inaplicáveis, tanto na Justiça Penal cotidiana, como na reforma das
Leis penais. Ora, o Direito, como estudo scientifico das normas de conduta social, deve servir á
vida prática e quotidiana e não ser fim de si mesmo e exercício solitario de dialéctica infecunda."
Assim, prossegue FERRI (1931, p.87) "(...) ao actual excessivo esforço da dogmática juridica, que
não corresponde á função prática do Direito, deverá substituir-se uma orientação, também no
campo jurídico, melhor inspirada na observação dos factos."
herança das Escolas Clássica (Filosofia e Política) e Positiva (Antropologia e
Sociologia Criminais) dividiam o campo penal.
Tal resposta, orientada pela "necessidade de especialização" foi
pontualizada como a necessidade de estabelecer, no âmbito do método jurídico,
uma divisão do trabalho que, requerendo uma rígida fixação do objeto e limites
de cada disciplina não deveria implicar uma "separação" e muito menos um
"divórcio científico".(ROCCO,1982, p.11-14 passim)
Enquanto a Ciência Penal teria por objeto de estudo o crime e a pena
como fatos jurídicos, a Antropologia teria por objeto o crime como fato
"individual" e a pena como fato social; a Sociologia o teria a ambos como fato
social, sendo estas duas Ciências ao lado da História e do Direito comparado as
fontes do "conhecimento científico" do Direito, e não do "Direito" como
"penando de inexatos afirmaram alguns" a respeito da Sociologia. (ROCCO,
1982, p.37-44 passim)
E, sem desfigurar sua essência jurídica, a Ciência Penal deveria recorrer
a tais fontes em caráter "subsidiário" ou "complementar".É que para evitar que o
estudo dogmático, eminentemente lógico-dedutivo, se convertesse em formalismo(
"escolho" em que tropeçavam freqüentemente as Ciências Jurídicas) se mantendo
"rente à vida" era necessário que a dedução lógica se reintegrasse e
complementasse, "dentro de certos limites", com a indução experimental.
(ROCCO, 1982, p.44)
É desta maneira, e somente assim, que a
"(...) a Ciência jurídica, Ciência do raciocínio lógico, pode andar de
braço com a Ciência da observação experimental. Assim, pois, o direito
penal, Ciência das normas jurídicas (...) se quiser ser consciente da
finalidade e da função social das normas que estuda, deve também em
certa medida enriquecer-se com o conhecimento do homem que comete
o delito e ao qual se aplica a sanção, com o conhecimento do ambiente
em que se comete o delito e em cujo meio a sanção desenvolve seus
efeitos; é necessário, em outros termos, que chegue a conhecer, dentro
de certos limites, o delito como fenômeno natural, individual e social, e
a pena como fenômeno social, levando em conta os dados que
atualmente lhe oferece aquelas Ciências novas que são a antropologia
(somatologia e psicologia) e a sociologia criminais." (ROCCO, 1982,
p.38-9)
Desta forma, nada impede que o penalista assuma, "de vez em quando"
o papel do antropólogo ou do sociólogo, ou que se empenhe na investigação
filosófica ou política, mas, para evitar uma intromissão ilícita e perigosa na clareza
da investigação própria e estritamente jurídica não pode esquecer que uma coisa é
Direito, outra Antropologia, Sociologia, Filosofia e Política. E que, nestes
momentos, "se despe de sua toga de jurista e veste o hábito, igualmente rígido" do
antropólogo, do sociólogo, do filósofo do Direito ou do cientista político.
(ROCCO, 1982, p.11-3)
Rocco pensava assim ter dado uma resposta acabada ao tormentoso e
polêmico problema das relações entre a Dogmática Jurídico-Penal e a
Criminologia.
"(...) o assunto até aqui tão debatido das relações entre a Ciência do
direito penal e a antropologia, a psicologia e a Sociologia criminais se
ilumina com uma luz intensa: a Ciência do direito penal, com respeito
às suas construções jurídicas, utiliza como meio, como dados e como
pressuposto, a indução antropológica, psicológica e sociológica, da
mesma forma em que se vale da indução histórica e comparada; mas
não há nela mais antropologia, psicología ou Sociologia do que historia
ou direito comparado." (ROCCO, 1982, p.44)72
72.Embora não considerando a Filosofia do Direito e a Ciência Política como fontes da Ciência Penal,
aduz que não sucede de outra maneira no que respeita às relações do Direito Penal com estas
disciplinas.
Em conclusão, portanto, apesar da reação que empreendeu contra o
positivismo criminológico o tecnicismo jurídico não transcendeu o horizonte
positivista, pois não se tratava de superá-lo, mas deslocá-lo, tornando hegemônica
uma determinada versão: a do positivismo jurídico. Na Itália, portanto, não se
produz a afirmação do Direito positivo e a consolidação do paradigma dogmático
na Ciência Penal até o século XX, com a Escola Técnico-Jurídica.
73. ARMIN KAUFMANN (1976) contudo, num estudo específico sobre a obra de BINDING,
trata de demonstrar, como a seguir pontualizaremos, os limites do positivismo jurídico de
BINDING que todavia lhe é atribuído insistentemente e sem restrições.
experimentado portanto na Alemanha a transcendência experimentada na Itália,
tanto o positivismo jurídico quanto o positivismo naturalístico tiveram uma forte
influência na Ciência Penal germânica manifestando-se nas origens da Dogmática
Jurídico-Penal. 74
Neste sentido enquanto o primeiro constitui a "manifestação última e
mais extrema do liberalismo clássico, o naturalismo foi o primeiro reflexo de uma
nova concepção de Estado: o Estado social" (MIR PUIG, 1976, p.209)
Foi na Alemanha, pois, que o positivismo jurídico deu lugar ao
nascimento da Dogmática Penal e é na matriz alemã (Binding, Von Liszt e Beling)
que se inspira, como já afirmamos, a reação tecnicista em Itália.
74Cfr. MIR PUIG, 1976, p.208 e 1982, p.10; BUSTOS RAMÍREZ, in BERGALLI e
BUSTOS RAMÍREZ, 1983a, p.35)
75. Cf.MUÑOZ CONDE, 1976, p.109; MIR PUIG, 1976, p.208 e 1982, p.10;BUSTOS
RAMÍREZ,in BERGALLI e BUSTOS RAMÍREZ, 1983a, p.35
Em um artigo escrito em 1881, denominado "Strafgesetzgebund,
strafjustiz und Strafrechtswissenschaft in normalen Verhalniss zueinander"
("Legislação Penal, Justiça Penal e Ciência do Direito Penal em uma relação
normal entre elas") na "Zeitschrift für die gesamte strafrechtswissenshaft"
("Revista para um modelo integral de Ciência do Direito Penal") dirigida por VON
LISZT, BINDING, após destacar as falhas da doutrina alemã até então, conclui
que a Ciência Penal, como Ciência Jurídica, tem uma dupla missão: servir de guia
à prática presente e futura, mas, em ambos os casos, de "lege lata" ou de "lege
ferenda", ela deve ser e seguir sendo uma Ciência do Direito Positivo.
Em seu "Handbuch des deutschen Strafrechts" (Manual de Direito Penal
alemão), publicado em 1885, se mantém fiel à tarefa da Ciência Penal como tarefa
da "Ciência do Direito Positivo" e tarefa da "Dogmática do Direito permanente",
fixando de forma incisiva sua delimitação e tarefa e excluindo energicamente a
possibilidade e a legitimidade de uma "Filosofia do Direito Penal", entendida como
Ciência do Direito Penal, que teria por objeto um suposto e inexistente Direito
Penal Natural, Racional ou Ideal. (ROCCO, 1982, p.57-8)
A reação de BINDING (citado por ROCCO, 1982, p.57-8) então é mais
dirigida contra a herança jusnaturalista ainda persistente na tradição jurídica alemã:
"(...) pois bem, não existe nenhum direito eterna e imutável que o
homem possa conhecer, nenhuma filosofia estável do direito que esteja
em condições de oferecer algo diferente das idéias fundamentais do
direito que regeu ou rege ainda, nenhuma filosofia do direito que seja
algo distinto da jurisprudência, nenhuma jurisprudência que seja algo
alheio à Ciência do direito positivo. Toda tentativa de submeter a
Ciência do direito penal aos preceitos do direito natural de qualquer
sistema filosófico é, portanto, um ataque sobremaneira retrógrado a
sua liberdade, concebido como delimitação estreita de sua matéria e
dirigido contra a unidade de seu objeto."
"(...) assume importância decisiva a constatação de que no terreno dogmático Binding foi tudo menos um
positivista. Baseia-se nas estruturas lógico-reais que antecedem qualquer direito positivo pelas 'formas
apriorísticas do direito', tal qual ele as reconhece ou supõe reconhecidas." (KAUFMANN, 1976, p.352)
76.E que correspondeu, na Itália, à "Terza Scuela", com MANUEL CARNEVALE, BERNARDINO
ALIMENA e JUAN B.IMPALLOMENI, que também se preocupava com a "autonomização" da
Ciência Penal
77. Citado por ROCCO, 1982, p.60; BACIGALUPO, 1982, p.56-7; COÑDE,1975, p.107-8 e
168; ROXIN,1972, p.18 e MIR PUIG,1977.
generalizações conceituais. Como Ciência eminentemente prática , que, por estar
sempre ao serviço da administração da justiça, encontra nesta fonte de constante
enriquecimento, a Ciência do Direito Penal deve ser caracteristicamente sistemática
e permanecer como tal. Pois, só a ordenação dos conhecimentos na forma de um
sistema garante aquele domínio seguro e imediato dos casos particulares, sem o
qual a aplicação do Direito é sempre diletantismo, abandonada ao acaso e à
arbitrariedade.
Em 1899, ao pronunciar sua aula inaugural em Berlim, LISZT (citado
por BACIGALUPO, 1982, p.57) reafirmava que "a Ciência do Direito Penal, em
primeiro lugar - e nisto somos da mesma opinião que a Escola Clássica - tem que
transmitir aos jovens juristas, ávidos de aprender, o cúmulo de normas jurídicas
segundo o método lógico-dedutivo."
A construção do sistema conceitual deveria seguir então três etapas
metódicas: a) recopilação do material de análise, ou seja, das normas, no direito
positivo; b)análise precisa das normas jurídicas e dos conceitos que nela se ligam
como sujeito e predicado e síntese dos resultados obtidos, isto é, dedução de
conceitos das normas jurídicas; c) sistematização segundo a classificação dos
conceitos e das proposições que os conectam entre si (SOLANO NAVARRO,
1990, p.181-2).
A Criminologia, ao contrário, não conhece outro método que o comum
a todas as demais Ciências: a observação objetiva e metódica de fatos dados e sua
tarefa é a investigação científica do delito em suas causas e efeitos; ou seja, a
busca das Leis que determinam a criminalidade. A tarefa da Política Criminal, que
passa a ser relevada a partir, precisamente, do seu modelo seria, enfim, a de
elaborar o conjunto sistemático de princípios fundados na investigação científica
das causas do crime e dos efeitos da pena segundo os quais o Estado deve
conduzir a luta contra o crime através da penas e das instituições conexas; ou seja,
elaborar as estratégias mais racionais para a prevenção e repressão do crime. 78
O modelo liszteano, procurando englobar num quadro
fundamentalmente unitário e harmonioso, as Ciências Penais em sentido amplo -
que deveriam guardar autonomia, ainda que relativa, em função daquela unidade -
acentuava que apenas o conjunto destas Ciências poderia lograr o controle e
domínio do inteiro problema do crime. E que sua reunião funcional era necessária
na luta contra a criminalidade. (DIAS e ANDRADE, 1984, p.93)
Assim, a Ciência Integral de VON LISZT entendeu a "integração" entre
Dogmática Penal, Criminologia e Política Criminal em função de fins práticos. É
que para cumprir sua tarefa especificamente dogmática (elaboração sistemática
dos conceitos que servem à aplicação do Direito Penal) a Ciência Penal tem que
recorrer a conhecimentos e experiências criminológicas. Mas ela tem também que
assumir a tarefa de promotora e projetista da reforma penal, sendo a orientadora
do legislador na luta contra o delito. Não se trata, pois, no modelo liszteano, de
uma integracão das Ciências Penais ao nível metodológico mas de uma mera
"reunião funcional" vinculada ao papel social asignado ao penalista como
orientador do juiz e do legislador ("político-criminal"). (BACIGALUPO, 1982,
p.56-8)
Nele, portanto, contrariamente ao modelo ferriano, a Dogmática e a
Criminologia preservam sua autonomia metodológica e a função da Ciência Penal
vincula-se tanto à aplicação judicial quanto à reforma do Direito Penal.
Desta forma, LISZT caracteriza a "Ciência Integral do Direito Penal" , a
um só tempo, como Ciência Social e como Ciência Jurídica . E neste duplo
78Cfr.
ROCCO, 1982, p.60; BACIGALUPO, 1982, p.57 e CÕNDE, 1975, p.107-8 e
ANDRADE, 1983, p.34
caráter, enquanto corresponde à Política Criminal desempenhar a chamada
missão social do Direito Penal, compete à Dogmática Penal desempenhar a função
liberal do Estado de Direito, assegurando a igualdade na aplicação do Direito e a
liberdade individual frente ao ataque do "Leviathan". (ROXIN,1972, p.16)
Nas palavras do próprio LISZT (citado por MIR PUIG, 1976, p.220):
"(...) por muito paradoxo que possa resultar, o Código penal é a Magna
Carta do delinqüente. Não protege a ordem jurídica, nem a
coletividade, mas o indivíduo que se levanta contra ela. Outorga-lhe o
direito de ser castigado apenas sob os pressupostos legais e unicamente
dentro dos limites legais. O duplo aforismo: nullum crimen sine lege,
nuela poena sine lege é o bastão do cidadão frente à onipotência
estatal, frente, ao desconsiderado poder da maioria, frente ao
'Leviathan'. Há anos venho caracterizando o Direito penal como 'o
poder punitivo do Estado juridicamente limitado'. Agora posso
acrescentar: o Direito penal é a infranqueável barreira da Política
criminal."
79. O mesmo potencial verifica-se na Criminologia que, conformada segundo o paradigma etiológico
experimentou o mesmo fenômeno de transnacionalização. A respeito ver OLMO (1984,
especialmente p. 81-122) Neste sentido, tal como destacamos relativamente à construção do
saber clássico (no final da nota "10" acima) se, por um lado, a construção dos modelos dogmático
e criminológico encontrava-se condicionada por contextos históricos determinados continha, por
outro lado, um forte potencial universalista que possibilitou, precisamente a sua transnacionalização.
dogmática, empenharam-se em aproximar-se dela, por exemplo, os
Estados Unidos da América do Norte."
"(...) três pilares do sistema das 'Ciências criminais', reciprocamente interdependentes. A Criminologia está
chamada a aportar o substrato empírico do mesmo, seu fundamento 'científico'. A Política Criminal, a transformar
a experiência criminológica em 'opções' e 'estratégias' concretas assumíveis pelo legislador e os poderes
públicos. O Direito Penal, a converter em proposições jurídicas, gerais e obrigatórias, o saber criminológico
esgrimido pela Política Criminal com estrito respeito das garantias individuais e dos princípios de segurança e
igualdade próprios de um Estado de Direito."
"(...) o fracasso do modelo de integração de Ferri teve como conseqüência que a Criminologia causal-explicativa,
orientada pela idéia de prevenção especial, reduzira os limites de sua influências aos fixados por V.Liszt."
(BACIGALUPO, 1982, p.63)
"(...) se fala do período iluminista, não se pode analisar apenas um aspecto do fenômeno penal, mas também há que
os compreender a todos e, em tal medida, os autores iluministas além de penalistas eram também político-
criminais e criminólogos. Assim nasce a Ciência penal do século XIX, mas ela perderá rapidamente o caráter
global e crítico-prático que lhe deram os iluministas; cada uma das direções mencionadas tenderá a
unilateralizar-se. Do que se trata já não é de transformar o Estado, e sim mantê-lo, eliminando as falhas de
disfuncionalidade que o possam afetar. Isto muda totalmente a atitude dos novos pensadores do direito penal, que já
não têm uma visão totalizadora, mas atomizadora do fenômeno penal. Desse modo, uns se dedicam ao direito penal
exclusivamente, outros à Criminologia, e alguns à política criminal, sendo este ramo o que tem menos importância
até que aparece V. Liszt." (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.119)
80. É este saber que vai da Filosofia à Ciência do Direito Penal e da criminalidade, isto é, o saber
clássico, dogmático e criminológico que consideramos, ao longo desta tese, com "saber oficial" do
sistema penal.
do Direito Penal com o respaldo da Ciência incumbindo-lhe assegurar, na práxis
do Direito Penal, o que o saber pré-dogmático consolidou na sua programação
normativa.
Incumbe analisar, pois, a específica identidade que a Ciência Penal
assume no marco geral do paradigma dogmático e como se materializa em seu
âmbito esta promessa, na continuidade da linha de construção do Direito Penal
do fato. Tal é o objetivo do próximo capítulo.
CAPÍTULO III
1. Introdução
Ao mesmo tempo,
"(...) o retrocesso experimentado a princípios do século XX pelo
positivismo naturalista, em razão do predomínio alcançado pelo
neokantismo valorativo, levou a uma nova consideração das relações
entre Criminologia e Direito Penal." (BUSTOS RAMIREZ, 1987, p.524)
82 .São
duas as escolas ou correntes filosóficas que, no século XX, marcam um retorno a KANT: a
Escola de Marburgo, que segue basicamente ao KANT da Crítica da Razão Pura (1781) e a
Escola de Baden ou Escola Sudoccidental alemã que segue ao KANT da Crítica da Razão Prática
(1788) ainda que ambas com semelhantes concepções gnoseológicas.
Os principais representantes da Escola de Baden - que aqui nos interessa - são WILHELM
WINDELBAND (1848-1915), HEIRINCH RICKERT (1863-1936), EMIL LASK (1875-
1915) e GUSTAV RADBRUCH (1898-1949), tendo os dois últimos orientado sua obra filosófica
para o jurídico ; isto é, para a metodologia da Ciência do Direito. No neokantismo de Baden, ao
contrário do neokantismo de Marburgo, - que se ocupou basicamente dos temas lógico,
epistemológico e metodológico nas Ciências Físicas e Matemáticas - encontramos uma reflexão
orientada para as Ciências da Cultura, especialmente em relação à história.
A respeito do exposto ver ESPARZA (1982, p.91)
Seus representantes se opõem à concepção puramente naturalista da realidade - típica do
positivismo - porque nega a especificidade das Ciências da Cultura. Assim, ao monismo naturalista
do positivismo, opõem o dualismo entre o mundo do ser naturalístico (a explicar) e o universo
axiológico-cultural (a compreender). Daí as classificações dicotômicas herdadas do neokantismo
de Baden: Ciências da Natureza -Ciências do espírito (DILTHEY); Ciências ideográficas-Ciências
nomotéticas (WINDELBAND) ou Ciências Naturais - Ciências Culturais (RICKERT).
empregavam o seu método e instrumentos, como a lingüística e a história,
colocava-se o interrogante, como disse LARENZ, sobre a possibilidade de
apreender, com os métodos das Ciências Exatas da natureza, o conjunto da
realidade suscetível de experiência. A resposta a esta questão, como tentou
demonstrar RICKERT, era evidentemente negativa.
Assim, continua LARENZ (1989, p.107-8):
"(...)os juízos de valor e os juízos de existência pertencem a dois mundos completamente independentes que vivem
lado-a-lado um do outro, mas sem se penetrarem reciprocamente. E é esta consideração que está na base daquilo a
que chamamos dualismo metodológico." ( RADBRUCH, 1979, p.48)
"(...) uma ciência cultural compreensiva e como tal tem a caracterizá-la três notas fundamentais. Ela é
simultaneamente: (a) compreensiva, (b) individualizadora, e (c) referencial a certos valores (wertbeziehend)."
(RADBRUCH, 1979, p.240)
"(...) uma disciplina auxiliar, subordinada, cuja única função é apresentar dados às disquisições conceituais
valorativas do Direito Penal, o que por sua vez podia utilizá-los 'arbitrariamente' já que se tratava sempre
definitivamente de um problema jurídico (valorativo) e não puramente natural(...)." (RAMÍREZ, 1987, p.524)
"(...) faz com que o neokantismo limite, como o [jus] positivismo, o objeto da ciência do Direito penal ao Direito
positivo. Só ele constitui um dado da experiência empírica, único modo científico de estar de acordo com a
realidade. Os neokantianos firmavam aqui o delineamento de von Liszt: além da realidade empírica e, portanto,
além do Direito positivo, cabe apenas a 'crença', âmbito da filosofia, mas não da ciência." (MIR PUIG, 1982, p.244-
5)
Neste sentido,
"(...) o neokantismo buscou uma fundamentação epistemológica das ciências do espírito - e do Direito - que
satisfizesse o [jus]positivismo. Pretendeu 'superá-lo' sem o contradizer, para o qual se limitou a 'complementá-lo'
subjetivamente (...). O resultado foi uma solução de compromisso aprisionada em um inevitável dualismo de 'ser' e
'dever ser', de realidade empírica livre de valor e significado valorativo da realidade ou, em terminologia de
RADBRUCH, de Stoff e Idee." (MIR PUIG, 1982, p.240)
"(...)tornou-se tanto aqui como em outros países, por influência principalmente de ARTURO ROCCO e
VINCENZO MANZINI, e, por conseqüência, do Código Penal italiano de 1930, a doutrina dominante. A maior
"A Ciência do Direito Penal somente pode consistir no estudo da lei penal em sentido lato ou do complexo de
normas jurídicas mediante as quais o Estado manifesta o seu propósito de coibir a delinqüência. (...) Este, o
irrefragável postulado do chamado tecnicismo jurídico-penal.
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Se não fazemos nítida separação entre ciência penal, que tem por objeto o estudo do direito penal positivo e as
teorias ou hipóteses de trabalho (Arbeithpothese) sob o rótulo genérico de 'criminologia' ou 'ciências
criminológicas', não poderemos evitar uma confusão babélica de idiomas, e tudo resultará na desorientação e na
perplexidade. A autêntica Ciência Jurídico-Penal não pode ter por objeto a indagação experimental em torno ao
problema da criminalidade, mas tão somente a construção do direito penal através de normas legais. Parte de
premissas certas, que são as normas jurídicas, para chegar, logicamente, a conclusões certas.
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É a Dogmática Jurídico-Penal ou Jurisprudência Penal, tomado o vocábulo jurisprudência no sentido romanístico. (...)
Trata-se de uma ciência normativa, e não causal-explicativa. Tem por objeto, como adverte GRISPIGNI, não o ser, o
Sein, mas o dever ser, o Sein Sollende, que são os mandamentos ou preceitos legais. Seu método, seu único método
possível é o técnico-jurídico ou lógico-abstrato. Seu processus é o mesmo de todas as ciências jurídicas: o estudo
das relações jurídicas (...), construção lógica dos institutos jurídicos (...) e, finalmente, a formulação do sistema, que
é a mais perfeita forma do conhecimento científico.
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A Ciência penal não se exaure numa pura esquematização rígida de princípios neutros, pois que é a ciência de um
direito eminentemente modelado sobre a vida e para a vida. Não se pode isolar-se desta."
"(...) o método próprio do Direito Penal, enquanto ciência prática, é o subjetivo ou de observação interna, com os
subsídios complementares do objetivo ou externo. É o chamado método técnico-jurídico que (...) toma como base (...)
os textos legais ou a legislação repressiva vigente porque, (...) só essa legislação ou direito positivo constitui uma
realidade atual; (...) Dada essa base para a construção da Ciência Jurídica, é de se ver logo que outro método não
pode ser empregado senão o técnico-jurídico. (...) A Ciência, portanto, do direito positivo, isto é, a Dogmática
Jurídica, (...) é, e ficará sempre, uma disciplina de natureza lógico-abstrata."
GARCIA (1959, p.9-10) assevera, por sua vez, que a Ciência do Direito
Penal é
"(...) disciplina eminentemente jurídica, assim pelo seu objeto como pelo seu método de investigação. (...) É graças
a esses dois elementos - objeto e método - que a Ciência do Direito Penal se distingue das outras ciências penais,
não jurídicas, como são geralmente designadas - causal-explicativas: a Antropologia Criminal, a Psicologia
Criminal, a Sociologia Criminal, etc.
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Adotam aquelas Ciências Naturais ou Causal-Explicativas o método indutivo, que procura descobrir as causas dos
fenômenos, servindo-se da observação e, quanto possível, da experimentação, método esse completamente diverso
do adotado pela Ciência do Direito Penal, disciplina normativa e jurídica por excelência, a ser aprofundada com os
processos lógicos que veiculam o raciocínio. É claro que, embora diversas, essas disciplinas devem estar
estreitamente ligadas, não se justificando que o cientista penal se alheie aos trabalhos e conclusões das outras
ciências penais."
"A Ciência do Direito Penal em sentido escrito, isto é, a Dogmática do Direito Penal vigente, é (...) Ciência
Normativa. O seu objeto de estudo é uma norma de comportamento, a norma jurídico-penal. Partindo das normas
legais vigentes, para sobre elas construir um corpo de doutrina, descobrindo e formulando conceitos,
classificando-os, dando-lhes unidade, a dogmática só tem um caminho natural, que é o lógico. Este é o método
necessário de toda Ciência Jurídica e, assim, também, do Direito Penal."
"(...) pura ciência de conceitos, mas completa e fecunda os seus conceitos com uma orientação teleológica
inspirada nos dados naturalistas e na realidade social onde a norma tem de atuar; põe-se em contato com a vida,
para que nela o Direito realize seus fins, com a vida, que sugere novos problemas, quando a dogmática já tem
encerrado os seus. Mas a construção da Ciência do Direito Penal é sempre um trabalho de lógica, de técnica
jurídica (...)." (BRUNO, 1967, p.43-4)
"Como Ciência Jurídica, tem o Direito Penal caráter Dogmático, não se compadecendo com tendências causal-
explicativas. Não tem por escopo considerações biológicas e sociológicas acerca do delito e do delinqüente, pois,
como já se escreveu, é uma Ciência Normativa, cujo objeto é não o ser, mas o dever ser (...) Seu método é o técnico-
jurídico, cujos meios nos levam ao conhecimento preciso e exato da norma. (...) Tal método é de natureza lógico-
abstrata, o que bem se compreende já que, se a norma jurídica tem por conteúdo deveres, para conhecê-los bastam
sua consideração e estudo, nada havendo para observar ou experimentar. Cumpre, entretanto, evitar excessos de
dogmatismo, pois a verdade é que, como reação ao Positivismo Naturalista, que pretendia reduzir o Direito Penal a
um capítulo da Sociologia Criminal, excessos se têm verificado, entregando-se juristas a deduções silogísticas
infindáveis (...). As reconstruções dogmáticas são formas jurídicas de conteúdo humano e social, donde o jurista
não há de olvidar a realidade da vida (...)." (NORONHA, 1979, p.16-7)
"O Direito Penal, como Ciência Jurídica, tem natureza dogmática, uma vez que suas manifestações têm por base o
direito positivo. Expõe o seu sistema através de normas, exigindo o seu cumprimento sem reservas. (...) O método
do Direito Penal é o técnico-jurídico, que permite a 'pronta realizabilidade do Direito', no dizer de Hermes Lima.
Segundo assinalou Jhering, o Direito existe para realizar-se, pois a sua realização é a vida e a verdade do Direito.
Chama-se método técnico-jurídico o conjunto de meios que servem à efetivação desse objetivo."
MIRABETE (1985, p.27) compartilha, enfim, a auto-imagem dogmática
com a fundamentação neokantiana nos seguintes termos:
"Diz-se que o Direito Penal é uma Ciência Cultural e Normativa. É uma Ciência Cultural porque indaga o dever
ser, traduzindo-se em regras de conduta que devem ser observadas por todos no respeito aos mais relevantes
interesses sociais. Diferencia-se, assim, das Ciências Naturais, em que o objeto de estudo é o ser, o objeto em si
mesmo. É também uma Ciência Normativa pois o seu objeto é o estudo da lei, da norma, do direito positivo, como
dado fundamental e indiscutível na sua observação obrigatória. Não se preocupa, portanto, com a verificação da
gênese do crime, dos fatos que levaram à criminalidade ou dos aspectos sociais que podem determinar a prática do
ilícito, preocupações próprias das ciências causais explicativas, como a Criminologia, a Sociologia Criminal, etc.
Como Ciência Jurídica, o Direito Penal tem caráter dogmático, já que se fundamenta no direito positivo, e
exigindo-se o cumprimento de todas suas normas pela obrigatoriedade. Por essa razão, seu método de estudo não é
experimental, como na Criminologia, por exemplo, mas técnico-jurídico. Desenvolve esse método na interpretação
das normas, na definição dos princípios, na construção dos institutos próprios e na sistematização final de
normas, princípios e institutos."
88 . Fica visível em seu discurso que a (re)fundamentação neokantiana da Dogmática Penal não afeta
sua identidade básica e sua auto-imagem genérica. Em primeiro lugar, porque muitos penalistas
De modo que, efetivamente, como observa CARRASQUILLA (1988,
p.74)
"(...) o direito é tratado como pensamento e a nacionalidade da ciência jurídica, sua cientificidade, depende de que
se observem as regras da lógica formal e, com base nelas, se elabore um discurso racional."
nem sequer a referem. Em segundo lugar, mesmo os penalistas que procuram tipificá-la como
Ciência Normativa e "Cultural", limitando-se a identificar o "cultural" com o mundo do "dever-ser",
sem qualquer alusão à especificidade do correspondente método compreensivo-axiológico,
acabam por reconduzi-lo ao próprio "normativo" e ao método técnico-jurídico, revelando a
hegemonia que a atividade metódica "lógico-abstrata" goza sobre a "compreensivo-axiológica"
no interior do paradigma.
Assim, a identificação entre Ciência da "Cultura" e Ciência do "Dever-Ser" aparece praticamente
equiparada à indentificação entre Ciência da "Cultura" e Ciência do "Direito Penal Positivo", para
ser claramente contraposta às Ciências Empíricas (identificadas com ciências do "ser") que se
ocupam da realidade social, em especial à Criminologia. Ao distanciar cuidadosamente seu objeto
e atividade metódica das contaminações da "realidade social"- embora para retornar à sua
conexão com a "vida", na imortalizada linguagem de Jhering - os penalistas dogmáticos enfatizam
também que se trata de uma atividade intelectual predominantemente "lógica". O suplemento
neokantiano, quando reconhecido, não implica, igualmente, uma renúncia à exigência de
objetividade científica.
E esta promessa vimos claramente enunciada desde o interior de suas
próprias matrizes fundacionais, de forma exemplar e paradigmática, (porque desde
então reiterada na comunidade jurídico-penal) no modelo liszteano de "Ciência
Integral do Direito Penal".
Com efeito, como já o referimos no capítulo anterior, neste modelo, a
Ciência Penal, como ciência eminentemente prática - ao serviço da administração
da justiça - somente poderia afirmar-se como Ciência sistemática. É precisamente
na ordenação dos conhecimentos na forma de um sistema que LISZT via a
possibilidade de um domínio seguro e imediato dos casos particulares, apto a
libertar a aplicação do direito do acaso e da arbitrariedade89.
Concordamos neste sentido com ROXIN (1972, p.18) quando afirma
que com esta enunciação LISZT proferiu as palavras-chaves que se repetem até
hoje nos tratados e manuais dogmáticos para explicar a importância funcional da
sistemática no Direito Penal.
Assim WELZEL (1987, p.11), um dos mais significativos expoentes da
Dogmática germânica contemporânea reafirma aquela promessa funcional:
89 . É de ressalvar que embora no modelo liszteano fosse também atribuída à Dogmática Penal uma
função político-criminal de preparação de reformas legislativas, foi esta função vinculada à
aplicação judicial do Direito Penal que centralizou, como passamos a demonstrar, a auto-imagem
funcional do paradigma ficando aquela reconhecida e exercida num plano secundário.
Em conferência pronunciada em 1966, respondendo especialmente aos
ataques contra a Dogmática alemã, de ter cultivado a disciplina jurídica do Direito
Penal como " a arte pela arte" sustenta que
"(...) a divisão do delito em três diferentes graus de juízo e valoração estruturados uns sobre e, em seguida a
outros (...) proporciona alto grau de racionalidade e segurança na aplicação do direito e ao diferenciar os graus de
valoração, possibilita, além disso, um resultado final justo. (...)
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Efetivamente, este foi o desejo decisivo da dogmática. Já o havia entendido LISZT quando no prólogo da primeira
edição de seu tratado (1881) exigiu 'conceitos claros e bem delimitados'.(...)
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A dogmática não foi cultivada 'unicamente' na Alemanha, como a arte pela arte, mas, sim, como firme baluarte
contra invasões ideológicas. Isto aconteceu precisamente no Terceiro Reich. Nessa época a dogmática foi objeto de
ataques severos, por ser ' um pensamento liveral de divisão'. A tempestade foi contida, precisamente, pela
dogmática.(...)
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É significativo e, em certo sentido lamentável (para nós) , que não tenha sido um alemão mas um espanhol, que
tenha recordado aos ruidosos "críticos da reforma penal", o significado da dogmática (...)." (WELZEL,1974, p.7-9)
"A dogmática nos deve mostrar o que é devido com base no Direito. A
dogmática jurídico-penal, pois, averigua o conteúdo do Direito penal,
quais são os pressupostos que se darão para que entre em jogo um tipo
penal, o que é que distingue um tipo de outro, onde acaba o
comportamento impune e onde começa o punível. Torna possível, por
conseguinte, ao assinalar limites e definir conceitos, uma aplicação
segura e calculável do Direito Penal, torna possível subtraí-lo à
irracionalidade, à arbitrariedade e à improvisação. Quanto menos
desenvolvida esteja uma dogmática, mais imprevisível será a decisão
dos tribunais, mais dependerão do acaso e de fatores incontroláveis a
condenação ou a absolvição."
"(...) Porque a existência do Direito Penal é imprescindível e não depende para nada da possibilidade de
demonstrar a livre decisão humana no caso concreto, porque toda idéia jurídica progressiva necessita de uma
formulação legal que será tanto mais perfeita e eficaz quanto mais alto for o nível científico-jurídico, porque uma
ciência desenvolvida do Direito Penal é a que torna possível controlar os tipos penais, porque a pena é um meio
necessário e terrível de política social, porque temos que viver com o Direito Penal, por tudo isso a dogmática
jurídico-penal tem futuro." (GIMBERNAT, 1982, p.32)
"A Dogmática jurídico-penal (...) trata de averiguar o conteúdo das normas penais,
seus supostos, suas conseqüências, de delimitar os fatos puníveis dos impunes, de
conhecer, definitivamente, que é o que a vontade geral expressa na lei quer castigar
e como quer fazê-lo. Nesse sentido a Dogmática jurídico-penal cumpre uma das mais
importantes funções que tem encomendada à atividade jurídica em geral em um
Estado de Direito: a de garantir os direitos fundamentais do indivíduo frente ao
poder arbitrário do Estado que, embora se processe dentro de uns limites, necessita
do controle e da segurança desses limites."
"(...) é desenvolver sistematicamente e interpretar, em sua conexão interna, o conteúdo das normas que constituem
o ordenamento jurídico-penal. Ao cumprir esta missão a Ciência do Direito Penal colabora para uma reta
administração de justiça, pois - como observou WELZEL - só o conhecimento do Direito em sua conexão interna
destaca sua aplicação sobre o acaso e a arbitrariedade."
"A Dogmática Jurídica é a Ciência da norma jurídica, que visa ao seu conhecimento sistemático, para permitir a
aplicação igualitária e justa do Direito. Mas isto é alcançado, superando-se a simples atividade dos glossadores,
através da reconstrução científica do direito vigente."
"(...) por finalidade permitir uma aplicação eqüitativa (no sentido de casos semelhantes encontrarem soluções
semelhantes) e justa da lei penal. Tornando, como diz Novoa, 'segura e calculável a aplicação da lei', estabelecendo
limites e definindo conceitos, a dogmática subtrai daquela aplicação a irracionalidade, a arbitrariedade e a
improvisação."
"(...) dogmática panlogista, fruto decantado do positivismo, considera que a tarefa essencial da Ciência Jurídica
consiste privativamente na interpretação lógico-gramatical (no auge adornada com certos matizes teleológicos)
das normas jurídicas e na construção de um sistema formal coerente de conceitos e princípios que harmonize com
o direito positivo de cada país e permita a prática racional, igualitária, segura e previsível da administração da
justiça penal, sem a menor consideração pelas necessidades e conveniências, pressupostos e efeitos sócio-
políticos da lei ou da ciência, dos que devem ocupar-se, segundo se diz, os especialistas das respectivas disciplinas,
de modo algum o jurista como tal. "
E POZO (1988, p.38) subscreve que a crença implícita na sua auto-
imagem é a de que é possível a partir dos dogmas e mediante o auxílio da lógica,
deduzir soluções para os casos concretos. Desta forma, a sistematização das
normas e dos dogmas, por um lado, e a elaboração de conceitos e teorias - cada
vez mais sutis - por outro, "permitiriam fazer do Direito um sistema cuja aplicação
seria mais precisa e previsível".
Nesta perspectiva, conclui que é
"(...) indispensável aceitar que o método de abstrações se impôs progressivamente com a finalidade de racionalizar
a atividade jurídica. Ou seja, com o intuito de lograr um alto grau de previsibilidade em relação com as decisões
judiciais e a diminuir destas elementos pessoais (arbitrários)." (POZO, 1988 p.39)
"(...) se apresenta assim como uma conseqüência do princípio de intervenção legalizada do poder punitivo estatal e
igualmente como uma conquista irreversível do pensamento democrático. (...) A idéia do Estado de Direito exige
que as normas que regulam a conveniência sejam conhecidas e aplicadas, além de serem elaboradas por um
determinado procedimento, de um modo racional e seguro, que evite o acaso e a arbitrariedade em sua aplicação e
que as dote de uma força de convicção tal que sejam aceitas pela maioria dos membros da comunidade." (COÑDE,
1975, p.135-6)
"(...) todo o desenvolvimento da teoria de delito até mais ou menos nos anos 70 do presente século dominou a
tendência de erguer a ação em base e pedra angular do sistema. Este delineamento vem já do pensamento
globalizador e total dos hegelianos, para os quais o delito era ação e por isso mesmo uniam num só problema os
aspectos objetivos e subjetivos na teoria do delito, enquanto a ação era uma estrutura objetiva-subjetiva, daí que já
neles aparecesse um conceito de ação semelhante ao da teoria finalista. Só que aparecia magoado pela confusão
entre ação e culpabilidade, ao absorver-se todo o subjetivo naquele primeiro conceito. Ora, ainda que os
causalistas, tanto naturalistas como valorativos, tenham atacado o delineamento unitário dos hegelianos e buscado
uma diferenciação clara e terminante dos diferentes problemas que surgiam dentro da teoria do delito, não
atacaram entretanto o delineamento fundamental dos hegelianos, isto é, que delito é ação." (BUSTOS RAMÍREZ,
1984, p.167)
93 . MONREAL (1982, p.13) registra, neste sentido, que até agora o Código de Direito Canônico
denomina "imputabilidade" à "culpabilidade, conforme seus cánones 2195, 2196 e 2199.
delito: a antijuridicidade (uma contrariedade da ação com as normas jurídicas) e a
culpabilidade (uma censura à disposição anímica do agente).
Com o transplante que V. LISZT faz desta divisão para o campo penal
inicia-se a moderna construção sistemática do crime que, à diferença da anterior,
sintetizadora e global, nasce marcada por um pensamento analítico95.O sistema da
teoria do delito é, tal como aparece no seu "Tratado" "um sistema categorial
classificatório" usando esta expressão no sentido empregado por RADBRUCH.
(COÑDE, 1975, p.168)
"Deste modo surgirão diferentes momentos dentro do conceito de delito, que permitirão uma maior precisão de um
ponto de vista conceitual - categorias a ter em conta para definir o delito - como também de um ponto de vista
garantidora - pressupostos necessários à imposição da pena." (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.150)
94 .Cabe razão contudo à MONREAL (1982, p.13) quando afirma que CARRARA já fazia esta
separação, muitos anos antes em seu monumental "Programa" " . Assim no §8 quando distingue
entre imputação de um delito desde um ponto de vista físico (tu o fizestes voluntariamente) e legal
(tu obrastes contra a lei).
95 . A respeito do exposto ver BUSTOS RAMÍREZ (1984, p.148-50).
É esta
"(...) consideração conceitual e também garantidora, no sentido que nem todo fato que transgride o direito há de
merecer uma pena, a que faz surgir o terceiro elemento do delito, a tipicidade. Só são fatos delituosos aqueles que
aparecem descritos em um tipo legal; tipo legal é aquela parte de uma disposição legal que descreve um
determinado fato. Em outras palavras, só aqueles fatos que transgridem o direito e que guarda um tipo legal podem
merecer uma pena." (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.150)
96 .BUSTOS RAMÍREZ (1986, p.150) registra que já no próprio Liszt encontramos, em certo
sentido, um conceito sobre tipo e já antes, em Stübel, um discípulo de Feuerbach, porém ligado e
confundido com considerações de caráter processual, que não permitiam separá-lo do conceito de
corpo de delito.
LUISI (1987, p.13-4) escreve neste sentido que, conforme assinalado por diversos autores, a
expressão alemã Tatbestand (literalmente 'estado de fato')que geralmente é traduzida em
português por 'tipo',surge no jargão alemão em fins do século XVIII e princípios do século XIX,
no campo do processo penal, onde é mais sentida a necessidade de dar contornos certos e
precisos ao fato delituoso. Com ela se traduz para o idioma teuto a locução latina corpus delicti,
compreendida esta como a ação punível, isto é, o fato objetivo. Como categoria conceitual do
Direito Penal, no entanto,o vocábulo aparece pela primeira vez na obra de L. Von Feuerbach, "que
põe em relevo a sua origem política vinculada a uma concepção liberal do Estado de Direito". E o
termo é usado, correntemente, na Ciência penal germânica do século XIX, por autores como
Stübel, Berner, Luden, Kasper, Scharper, Merkel e outros.
A tipicidade é, portanto, a mera adequação entre o fato-crime cometido
e o tipo penal. Mas embora não tendo, em si, um significado valorativo, a
subsunção da conduta num tipo penal erigia-se no ponto de referência das
sucessivas valorações. (COÑDE, 1975, p.170).
Assim surgiu o novo sistema "clássico" do crime com sua divisão em
três diferentes graus de juízo e valoração doravante definido como conduta
típica, antijurídica e culpável, sancionada com uma pena.(WELZEl, 1974, p.6)
Daí o que se convencionou chamar sistema "clássico" do delito se
convencionou também identificar por sistema "Liszt-Beling", na medida em que
sentaram as suas bases fundamentais, pois, não obstante a revisão continuada de
que será objeto ao longo do século XX terá preservada, como veremos, sua
estrutura categorial que " vem a constituir-se no denominador comum dos autores
modernos "(MONREAL, 1982, p.15)
"(...) a doutrina do Tatbestand representa na dogmática penal 'a versão técnica do apotegma político' 'nullum
crimen sine lege', como quer M. Jiménez Huerta, ou o 'precipitado técnico do princípio da legalidade', para
lembrarmos a expressão de G. Bettiol. Vale dizer que o Tatbestand traduz, em termos técnicos jurídicos, a
exigência de certeza na configuração das figuras delituosas, limitando o arbítrio dos governantes e,
principalmente, daqueles que julgam." (LUISI, 1987, p.13)
"(...) o conceito de tipicidade é visto pela maior parte da doutrina como categoria disciplinadora de toda a
arquitetônica relativa à teoria do delito. Assinala a dogmática que a noção de tipo, além de constituir o mandato
proibitivo, concretiza a antijuridicidade, assinala e limita o injusto, demarca o 'iter criminis ' estabelecendo seus
momentos penalmente relevantes, e, afinal, ajusta a culpabilidade à figura considerada. Em conseqüência e nos
termos da conexão feita pelo pensamento dogmático, a regra da legalidade passa a ser um princípio reitor de toda
produção teórica relativa à conceituação do delito. Ela fundamenta os conceitos de tipicidade, antijuridicidade e
culpabilidade, sintetizando o suposto funcionamento, ou o funcionamento ideal destas categorias analíticas. Isto
porque o princípio da legalidade reproduz a exigência fundamental que o conceito de tipicidade encerra:
correspondência entre o fato antijurídico e a descrição legal; reitera o conteúdo da antijuridicidade, vinculando a
existência do crime à violação do direito contido na lei, e reassegura o conceito tradicional de culpabilidade,
relacionando a culpa com a prática de um ato previamente estabelecido em um tipo."
E na verdade
"Tal valor sobrepor-se-ia e sobredeterminaria as outras funções exercidas pela regra. Conforme opinião
consensual da doutrina, a regra da legalidade, antes de ser um princípio jurídico é um anteparo da liberdade
individual; uma limitação do juspuniendi dos Estados (...); uma garantia do cidadão em face dos poderes do Estado.
Ele impediria o arbítrio na aplicação da lei penal, assegurando o exercício regular e democrático da Justiça. Ele,
enfim, outorgaria segurança ao cidadão."(CUNHA,1979, p.58)
7. Da hermenêutico-analítica à propedêutica
encontramos, salvo exceções, em presença da afirmação de uma ideologia da defesa social como
no teórico e político fundamental do sistema científico. A ideologia da defesa social (ou do fim)
nasceu ao mesmo tempo que a revolução burguesa e enquanto a ciência e a codificação penal se
impunham como elementos essencial do sistema jurídico burguês, ela tomava o predomínio dentro
do específico setor penal. As escolas positivistas herdaram depois da escola clássica,
transformando-a em algumas de suas premissas, conforme as exigências políticas que assinalam, no
seio da evolução da sociedade burguesa, a passagem do estado liberal clássico ao estado social".
(BARRATA, 1991, p.35-6)
100 .A respeito ver também BARATTA (1991, p.35-7) e BERGALLI (In: BERGALLI & BUSTOS
RAMÍREZ,1983a, p.243-244).
significa a violação do Direito Penal e, como tal, é o comportamento de uma
minoria desviada.
e) Princípio do interesse social e do delito natural. No centro mesmo
das leis penais dos Estados civilizados se encontra a ofensa a interesses
fundamentais para a existência de toda sociedade (delitos naturais). Os interesses
que protege o Direito Penal são interesses comuns a todos os cidadãos. Somente
uma pequena parte dos fatos puníveis representam violações de determinados
ordenamentos políticos e econômicos e restulam sancionados em função da
consolidação dessas estruturas ("delitos artificiais").
f) Princípio do fim ou da prevenção. A pena não tem (ou não tem
unicamente) a função de retribuir o delito, mas de preveni-lo. Como sanção
abstratamente prevista pela lei, tem a função de criar uma justa e adequada contra-
motivação ao comportamento criminal, isto é, intimidá-lo (prevenção geral
negativa).Como sanção concreta tem como função a ressocialização do
delinqüente (prevenção especial positiva)101.
Esta ideologia se mantém constante até nossos dias, não obstante as
alterações intra-sistêmicas da Dogmática penal e consubstancia, especialmente em
seus princípios "d" e "e" o que BARATTA (1978, p.9-10) denomina o "mito do
Direito Penal igualitário" que se expressa, então, em duas proposições:
a) O Direito Penal protege igualmente a todos os cidadãos das ofensas
aos bens essenciais, em relação aos quais todos os cidadãos têm igual interesse;
b) A lei penal é igual para todos, isto é, os autores de comportamentos
anti-sociais e os violadores de normas penalmente sancionadas tem "chances" de
converter-se em sujeitos do processo de criminalização , com as mesmas
conseqüências.
101 .Este princípio articula-se em torno às teorias jurídicas da pena a que aludimos na nota "13" do
segundo capítulo.
A ideologia da defesa social sintetiza, desta forma, o conjunto das
representações sobre o crime, a pena e o Direito Penal construídas pelo saber
oficial e, em especial, sobre as funções socialmente úteis atribuídas ao Direito
Penal ("proteger bens jurídicos" lesados garantindo também uma penalidade
igualitariamente aplicada para os seus infratores) e à pena (controlar a
criminalidade em defesa da sociedade, mediante a prevenção geral (intimidação) e
especial (ressocialização)).
O "princípio da legalidade" representa, por sua vez, o legado vertebral
da ideologia liberal que, se dialetizando com esta ideologia da defesa social
poderia ser inserido especialmente entre o princípio da "legitimidade" e da
"igualdade" nos seguintes termos: o Estado não apenas está legitimado para
controlar a criminalidade, mas é auto-limitado pelo Direito Penal no exercício
desta função punitiva realizando-a no marco de uma estrita legalidade e garantia
dos Direitos Humanos do imputado.
A identidade ideológica102 da Dogmática Penal reside assim na
dialetização do discurso liberal com o discurso da ideologia da defesa social em
cujo universo deve ser inserida e compreendida a sua função declarada.
102 . O signo ideologia é empregado, aqui, com um duplo e simultâneo significado: a) no sentido
positivo (ao qual Bobbio denomina significado "fraco") designando um sistema de representações
(idéias, crenças, valores) conexas com a ação, isto é, que implica um programa para a ação, e b)
no sentido negativo, (denominado por Bobbio de significado "forte") designando falsa consciência,
ocultamento/inversão da realidade. Enquanto discurso ideológico, o discurso dogmático comporta,
pois, uma dimensão positiva, de materialização, que corresponde ao seu discurso declarado, visível
(programa de ação) e uma dimensão negativa, de ocultação e inversão da realidade, traduzida
naquilo que ele oculta (seus silêncios) ou deforma ao se materializar.
Estes dois significados da ideologia, embora remontem a diferentes tradições de pensamento
(weberiana, a primeira; marxiana, a segunda) e experimente uma longa evolução, não são, a
nosso ver, incompatíveis, mas complementares e fundamentais à caracterização do discurso
dogmático . Pois se ele é, por um lado, um discurso eminentemente positivo, configurador de
sentido (ações e consenso, real ou aparente) comporta, simultaneamente, uma construção ilusória
da realidade em função da qual aquele sentido mesmo é produzido. (Por todos ver BOBBIO et al.
1986, p.585-597)
E esta dupla dimensão preside tanto à ideologia "liberal" quanto à ideologia da "defesa social", que
a conformam.
Enquanto ideologia jurídico-penal dominante o discurso dogmático,
traduzido num conjunto de representações, constitui um programa para a ação,
sendo neste sentido eminentemente positivo, configurador de sentido (ações e
consenso, real ou aparente). Mas comporta, simultaneamente, uma representação
ilusória da realidade em função da qual aquele sentido mesmo é produzido.
Contém assim um duplo código: junto à mensagem tecnológica (programadora)
encontra-se uma evidente mensagem legitimadora do Direito e do sistema penal, a
cujo significado retornaremos oportunamente.
Assim se supõe
"(...) de uma parte, que a lei e sábia e como tal consulta as necessidades reais da população (não o supor seria um
desrespeito à 'majestade da lei') e, de outra, que o desenvolvimento pura e estritamente lógico, formal e conceitual
dos textos normativos e dos princípios em que se inspiram, há de levar direito e forçosamente a conclusões retas
para a lógica racional do discurso, isto é, verdadeiras, que resultam ser ao mesmo tempo as mais adequadas,
saudáveis ou justas para a solução dos correspondentes conflitos sociais, ou seja, para a realização social da
justiça [dura lex, sed lex]. Existiria, portanto, uma espécie de harmonia preestabelecida entre a verdade lógico-
formal do discurso jurídico e a justiça material ou sócio-política das soluções, como se a justiça consistisse em
mera plana (desprestigiosa) verdade lógico-sistemática. Tudo sucede como se a verdade lógico-formal do direito
houvesse que arrastar sem remédio à justiça das decisões (já que as leis, enquanto sobias, se reputam igualmente
justas)." (CARRASQUILLA, 1988, p.74-5)
106 .Neste sentido diz GRONINGEN (1980, p.11) que "a generalidade da lei e sua aplicação
uniforme são apresentadas como garantia da igualdade entre os cidadãos."
racional livre de arbitrariedades. À maior perfeição científica corresponderia
menor possibilidade de conseqüências irracionais." (OLLERO, 1982, p.24-5)
Neste sentido a promessa dogmática de certeza-segurança jurídica
encontra-se vinculada, também, " a uma certa idéia de verdade científica, a partir
da qual a ciência concebe e legitima um conhecimento "objetivo" e "certo",
transubjetivamente válido no seio da comunidade científica dos
juristas."(PUCEIRO, 1987, p.83)
A ideologia da defesa social explicitada por BARATTA evidencia,
enfim, que a Dogmática Penal pressupõe não apenas a racionalidade do legislador
(princípio do interesse social) e do juiz (princípio da igualdade) mas também a
"legitimidade" do poder punitivo do Estado Moderno.
É o que salienta BACIGALUPO (1982, p.70) ao afirmar precisamente
que ela parte de uma determinada idéia de legitimidade do exercício do poder
penal do Estado que se expressa na formulação de princípios jurídico-penais.
O vigoroso esforço racionalizador da Dogmática Penal é, assim, um
vigoroso esforço "neutralizador" do exercício do poder punitivo mediante o qual
a Dogmática Penal não apenas esgota-o no trânsito lógico do legislador ao juiz
mas incide no "pensamento mágico de afirmar que a simples institucionalização
formal realiza o programa, quando simplesmente o enuncia." (ZAFFARONI,
1987, p.39)
"(...) alcançar um sistema definitório de sucessivas determinações no campo do delito, igual ao usado por Linné no
âmbito das plantas (...). São estas idéias que levam Lizt e Beling a estabelecerem um sistema de características
limitadas e limitantes: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Se trata, portanto, de um ordenamento
onicompreensivo ao mesmo tempo que vai sendo especificado pelas características seguintes. A ação aparece como
o substantivo, as demais características como simples adjetivações." (BUSTOS RAMÍREZ, 1986, p.159)
107 .A "teoria da ação social" pode ser considerada, segundo diversos autores, como uma variante da
causalista valorativa.
uma transformação no mundo exterior perceptível pelos sentidos. (COÑDE, 1975,
p.169)
E é a ação assim concebida a que recebe o tipo e conforma a tipicidade.
Interessa exclusivamente constatar o resultado produzido pela ação e a relação de
causalidade. A tipicidade resulta, em decorrência, numa característica meramente
descritiva e objetiva. A antijuridicidade, enquanto segunda adjetivação da ação,
vem a ser sua especificação valorativa , isto é, consiste na valoração de sua
danosidade social ou ataque a bens jurídicos.
Em síntese, o crime, como conceito que engloba a ação típica e
antijurídica tem como caráter fundamental o da objetividade. É o âmbito do
objetivo, seja objetivo-descritivo, quando referido à tipicidade; seja objetivo-
valorativo, quando referido à antijuridicidade. (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.159)
A valoração do ato, contudo, aduzia LISZT a valoração do autor,
traduzida na categoria culpabilidade - o aspecto "subjetivo" do delito - que
estabelece precisamente a relação subjetiva psicológica (dolo ou culpa) com a
ação típica e antijurídica. (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.160)
A culpabilidade é então concebida no sentido meramente psicológico
como a relação subjetiva entre o ato e seu autor, estruturando-se assim as
chamadas formas da culpabilidade, dolo e culpa, precedidas pela constatação da
capacidade psíquica do autor, a chamada imputabilidade. (COÑDE, 1975, p.170)
Neste sistema se materializava perfeitamente a tarefa (técnico-jurídica) e
a função (racionalizadora/garantidora) que LISZT atribuía à Ciência do Direito
Penal.
"(...) se caracteriza pela intenção de referir a valores as categorias de teoria geral do delito, mostrando assim a
influência manifesta da filosofia neokantiana que nesta época teve seu máximo esplendor e reflexo entre os
penalistas alemães, e pelo afã de substituir o formalismo positivista por um positivismo teleológico" (COÑDE,
1975, p.172)
E doravante
"(...) o injusto não só é objetivo, como também valorativo e por exceção - inexplicável - contém momentos subjetivos;
por isto, a tipicidade é objetiva, descritiva, valorativa e com elementos subjetivos nas causas de justificação (por
exemplo, o conhecimento da agressão na legítima defesa). A culpabilidade por sua vez é o âmbito próprio do
subjetivo, mas é também valorativa. Definitivamente, o que primou e que recorre agora todo o delito, é o valorativo,
que vai da tipicidade à antijuridicidade e surge como o elemento então essencial e vinculador do delito. O qual
aparece como lógico, pois é a conseqüência da aplicação das teses neokantianas valorativas ao campo do direito
penal. Mas, contudo, a base segue sendo positivista naturalista, pois a ação é concebida só como causalidade."
(BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.162:3)
"(...) com o qual o neokantismo se apresenta frente ao positivismo. Na dogmática penal isso significou que não se
quis derrubar o edifício do delito construído pelo positivismo naturalista de von LISZT e BELING, mas apenas
introduzir correções no mesmo. É por isso que o conceito neoclássico de delito aparece como uma mistura de dois
componentes dificilmente conciliáveis: origens positivistas e revisão neokantiana, naturalismo e referência e
valores." (MIR PUIG, 1976, p.241-2)
108 .
Muito embora a plenitude das conseqüências do finalismo para a teoria do delito não tenha lugar
até 1939, com o artigo de WELZEL denominado "Studien zum System des Strafrechts" e só
passe ao primeiro plano da atenção da Dogmática Penal depois da Segunda Guerra Mundial suas
bases metodológicas foram fixadas por WELZEL já em 1930, em seu artigo "Kausalität und
Handlung" e precisadas e desenvolvidas em 1932. (MIR PUIG, 1976, p.245).
WERNER NIESE, REINHART MAURACH, GÜNTER STRATENWERTH e ARMIN
KAUFMANN também são outros nomes importantes no enriquecimento desta concepção.
seu próprio caminho, careciam de um aperfeiçoamento sistemático. (BUSTOS
RAMÍREZ, 1984, 1974, p.162-4)
O subjetivismo metodológico e o relativismo valorativo são os pontos
que centralizam a crítica de WELZEL ao neokantismo desde um prisma
objetivista de modo que
"A passagem do subjetivismo ao objetivismo constitui o fundamento metódico da teoria do delito desenvolvida pelo
finalismo. A substituição do relativismo valorativo pela afirmação de 'verdades eternas' e de 'estruturas lógico-
objetivas' é a chave de abóboda da filosofia jurídica de Welzel. Mas o abandono do subjetivismo gnosiológico
neokantiano é, ao mesmo tempo, um primeiro pressuposto da filosofia antologicista desse autor, pelo qual tal giro
metodológico é, como costuma acontecer, um fator prévio que condiciona sua total construção." (MIR PUIG, 1976,
p.247-8)
Com efeito, para WELZEL (citado por MONREAL, 1982, p.75) existem no
mundo "objetividades lógicas" ou "estruturas lógico-objetivas", representadas por
certos dados ontológicos fundamentais e que assinalam, por isto, limites muito
precisos ao Legislador e à Ciência Penal. De modo que é necessário ao primeiro,
ao normar ações, e à segunda, ao interpretar seu objeto, respeitar aquela estrutura
pré-jurídica, derivada da natureza das coisas, (que ninguém e nenhum poder no
mundo pode modificar) sob pena de, desconsiderando-a, legislar um Direito
ineficaz, falso, contraditório e não objetivo ou deixar a aplicação do Direito Penal
abandonada ao arbítrio, no caso da Ciência Penal. 109
Sustentando que as categorias a priori - que constituem a base do
sistema do delito - não são "subjetivas", no sentido de que podem variar de
acordo com o intérprete, mas "objetivas", WELZEL inverte a metodologia
neokantiana, rechaçando a tese da "função do método de configuração da
matéria": não é o método que determina o objeto, mas o objeto que determina o
método. (MIR PUIG, 1976, p.250 e 252-3)
"Ação humana é exercício de atividade final.. A ação é, por isso, acontecer 'final', não somente 'causal'. A
'finalidade ou o caráter final da ação se baseia no que o homem, graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de
certos limites, as conseqüências possíveis de sua atividade, pôr-se, portanto, fins diversos e dirigir sua atividade,
conforme seu plano, à obtenção destes fins. Atividade final é um obrar orientado conscientemente desde o fim,
enquanto que o acontecer causal não está dirigido desde o fim, mas é a resultante causal dos componentes causais
existentes em cada caso. Por isso, a finalidade é - dito em forma gráfica - 'vidente'; a causalidade 'cega'."
(WELZEL, 1987, p.54)
"(...) a doutrina final da ação não é a única manifestação da metodologia finalista. É este um aspecto pouco estudado
no que é preciso insistir. Junto à finalidade da ação, a concepção da essência da culpabilidade como reprovalidade
por ter podido o autor do injusto atuar de outro modo (a célebre fórmula de Anders - handeln - Können) constitui o
segundo pilar da teoria do delito de Welzel. Pois bem: o 'poder atuar de outra forma' constitui para esse autor uma
'estrutura lógico-objetiva' ancorada na essência do homem, como ser responsável caracterizado pela capacidade de
autodeterminação final com arranjo a um sentido. Em outras palavras, se trata, tanto como na ação final, de uma
conseqüência da metodologia ontologiscita de Welzel de importância capital para a teoria do delito. Tanto as 'leis
da estrutura da ação' como os 'princípios de culpabilidade' 'são independentes das mutantes modalidades de ação e
constituem as componentes (die bleibenden Besetandteile) do Direito Penal' (...) 'com isto nos achamos no
autêntico núcleo da teoria da ação final'(...)." (MIR PUIG, 1976, p.248-9)
110 .Traduzindo não apenas a delimitação do objeto da Ciência Penal ao Direito Penal positivo, mas
a rejeição categórica de interferências extra-normativas no seu estudo
normativismo conceitualista com resquícios jusnaturalistas (BINDING,
WELZEL).111
Para efeitos de nossa análise, contudo, o mais significativo da evolução
da teoria do crime, aqui sumariada no limite de sua compreensão mínima, é, antes
que as revisões ou alterações propostas e as suas diferenças metodológicas
internas,o que esta evolução preserva; antes que suas variações, suas
permanências.
Neste sentido importa-nos primeiramente concluir, com ROXIN (1972,
p.79-80) que "se pode descrever a teoria do delito dos últimos decênios como
uma peregrinação dos elementos do delito pelos diferentes estágios do sistema."
E isto porque, como vimos:
"Quase todas as teorias do delito que se deram até data são sistema de elementos, isto é, desintegram a conduta
delituosa numa pluralidade de características concretas (objetivas, subjetivas, normativas, descritivas, etc.) que se
incluem nos diferentes graus da estrutura do delito e que se reúnem, deste modo, como mosáico para a formação
do fato punível. Este delineamento conduz a aplicar uma grande agudeza à questão de que lugar corresponde a esta
ou àquela característica no sistema do delito..." ROXIN (1972, p.79-80)
111 .Taltestemunha que, mais correto do que falar de exege ou interpretação da lei, como primeira
etapa do método dogmático, é falar de interpretação do material normativo, como propomos na
caracterização da auto-imagem dogmática na introdução do capítulo primeiro.
dinamitando mais abaixo, sob protestos ou aplausos de colegas que
retornam ao tema com novas distinções, acréscimos e adendos."
Neste sentido,
"Dita polêmica se desenvolveu dentro dos estreitos limites que apontou à Ciência do Direito penal o positivismo
jurídico de finais do século passado. Segundo esta teoria, a única tarefa do jurista consistia em interpretar o
Direito positivo e desenvolvê-lo num sistema fechado, de acordo com princípios lógicos dedutivos, subindo dos
concretos preceitos da lei até os últimos princípios e conceitos fundamentais. A elaboração do sistema era, por
conseguinte, a missão fundamental da Ciência do Direito penal (...) (COÑDE, 1976, p.179)
Por isto mesmo, a peregrinação causalismo-neokantismo-finalismo se
apresenta como eminentemente sistemática. Como um " uma luta para dentro: uma
espécie de guerra civil entre, por e para juristas(...)." (COÑDE, 1975, p.179-180)
Conseqüentemente, suas respectivas metodologias tem implicações na
forma de apreensão das categorias da teoria do crime; ou seja, o que muda são
os caminhos da construção e seu produto mas não a idéia de construção
sistemática mesma sendo mantida, em decorrência, a estrutura categorial básica
proveniente do originário sistema originário LISZT-BELING.
E uma vez que tanto o causalismo, quanto o neokantismo e o finalismo
mantêm a tripartição clássica da estrutura do delito, limitando-se a mudar o
conteúdo das categorias tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade ampliando ou
restringindo o que originariamente se lhes asignou, o sistema, neste sentido,
avançou muito pouco. (COÑDE,1975, p.177)
Nesta perspectiva, a polêmica entre causalismo e finalismo, na qual veio
a se polarizar o sistema dogmático pode ser situada como uma terceira grande
polêmica no universo do saber penal que, guardadas as especificidades, substitui a
originária luta entre classicismo e positivismo e, a seguir, entre Dogmática e
Criminologia constituindo a nota mais chamativa da último pós-guerra.
Chegamos, assim, ao terceiro e decisivo aspecto que nos interessa aqui
enfatizar. Além de manter seu approach e tarefa metódica a Dogmática Penal não
abandona, ao longo de sua peregrinação intrassistêmica, a promessa
racionalizadora/garantidora com que se constitui na modernidade, que permanece
no centro dos modelos então configurados.
Mesmo que impliquem diferentes relações entre o sistema e a lei penal112
os modelos intrassistêmicos da teoria do delito preservam, significativamente, a
"(...) que o sistema de lei interpretada não pode ser senão sistema das estruturas prévias da lei mesma, ou seja, o
do objeto regulado. Em outras palavras: teoria da ação e teoria do delito não se diferenciam. Assim dizia Welzel já
em 1939: 'A teoria da ação é a mesma teoria do delito'. (...) Precisamente a compreensão das estruturas óticas
prévias à lei mesma seria o que preservaria a aplicação do direito da causalidade e da arbitrariedade."
(BACIBALUPO,1989, p.468)
113 . Conforme item "5.2.1" do segundo capítulo e item "4" deste capítulo
114 . A respeito ver também item "4" deste capítulo.
Com a teoria finalista culmina, portanto, todo um processo dogmático
de revisão da teoria do crime cujo escopo é precisamente superar as contradições
anteriores e obter "uma maior precisão conceitual e garantidora" , muito embora
entreabrindo outros pontos críticos que põem tais resultados em discussão.
(BUSTOS RAMÍREZ,1984, p.167)
Nesta perspectiva podemos concluir que a Dogmática Penal não apenas
transplanta, para o âmbito da aplicação judicial do Direito Penal,a promessa de
segurança jurídica que o saber clássico enraizara na normatividade penal, mas
confere a esta promessa o respaldo da Ciência, incumbindo-lhe assegurar, na
práxis do Direito Penal o que o saber pré-dogmático consolidou na sua
programação normativa. Constitui, assim, a formalização mais acabada do Direito
Penal na modernidade.
Diante do exposto, se não se pode superdimensionar o discurso liberal
na Dogmática Penal e a ele tudo reconduzir, é possível afirmar sua importância e
permanência paradigmática ao longo da peregrinação resenhada.
"No Direito Penal, o grande prestígio da teoria dogmática do delito faz com que os juízes justifiquem
invariavelmente a legalidade de suas decisões em termos de tipicidade, culpabilidade e antijuridicidade. Essa teoria
está tão arraigada na mente dos penalistas que não se pode mais conceber o delito sem o seu auxílio. Nesse campo,
quando surge uma inovação é pela mera troca de notas de um elemento pelo outro, como fez Welzel com a sua
teoria finalista da ação, deslocando o dolo e a culpa da culpabilidade para a tipicidade. Teoricamente, nada impede
que se substitua a teoria dogmática do delito pela teoria dos âmbitos de validez Kelsenianos, por exemplo. Isto,
porém, não seria aconselhável em termos de força retórica(...)Além disso, por trás da teoria dogmática do delito,
encontram-se respaldadas posturas políticas muito importantes. Portanto, a legalidade de uma decisão penal
continua sendo otimamente demonstrada através da teoria dogmática do delito."
"O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às
circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá,conforme seja
necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime:
"(...) é puramente instrumental, pois há de ser tida tão somente como um meio para a melhor aplicação do Direito
na vida real (...). (...) em tal sentido, o jurista deve limitar-se sempre a tê-la como um puro modelo, que pode facilitar
a compreensão ordenada do conceito correspondente; para isso deve considerá-la como algo esquemático e flexível,
incapaz por si mesma proporcionar a verdade (...)." (MONREAL, 1982, p.183).
116 . E que o conhecimento dogmático é, em seu conjunto, fonte da socialização jurídica e da práxis
jurídico-penal. Forma e conforma, idelogicamente, a mentalidade jurídica e a perpetuação do
jurista dogmático cumprindo também uma importante função pedagógica.
com a "realidade social". Pois se a Dogmática Penal apresenta uma extraordinária
capacidade de permanência espaço-temporal e uma sobrevivência histórica
secular, não obstante sua "debilidade" epistemológica e divórcio "analítico" com a
realidade social é porque ela mantém uma conexão funcional com a realidade; é
porque potencializa e cumpre certas funções na realidade social117, ao mesmo
tempo em que traz inscrita uma potencialidade universalista que lhe permite
funcionar fora de seu espaço e tempo originários.
Nesta perspectiva, se o argumento da separação entre Dogmática e
realidade social é verossímel relativamente à sua dimensão de conhecimento ou
metodológica ele é insustentável relativamente à sua dimensão prática ou funcional
pois a Dogmática Penal está presente nas Escolas de Direito, nas reformas
legislativas e nos Tribunais e suas teorias, conceitos e princípios
instrumentalizando a educação jurídica, a criação legislativa ou a aplicação
judicial da lei penal, isto é, sendo usadas na argumentação decisória.
Nesta esteira, a crítica do divórcio entre Dogmática Penal e realidade
social necessita ser recolocada no marco da ambigüidade que
metodologicamente separa e funcionalmente insere (e sustenta) a Dogmática Penal
na realidade. Que marca, simultaneamente, sua "debilidade" analítica e a "força"
de sua sobrevivência histórica. E a partir desta percepção faz-se necessário
perquirir as funções "latentes" e "reais" da Dogmática Penal para além de suas
funções "declaradas" 118 e cuja perspectiva permite reconduzir a crítica
metodológica à própria crítica política (ou político-funcional) acima referida, que
assinala precisamente uma função legitimadora "latente" cumprida pela Dogmática
Penal.
117 .Subscrevemos pois aqui uma tese básica do funcionalismo segundo a qual toda instituição - no
caso, um paradigma científico- de marcada vigência satisfaz alguma necessidade e cumpre alguma
função social.
118 . Com o significado pontualizado na nota "7" do primeiro capítulo.
12. Tendências contemporâneas no sistema do delito: abertura para a
realidade social ou refuncionalização da Dogmática Penal?
"(...) fica como um mal-estar que aumenta quando se põe pendente a sempre discutida questão, se não estará
caracterizado o trabalho sistemático de filigrana de nossa dogmática, que opera com as mais sutís finezas
conceituais, por uma desproporção entre a força desenvolvida e sem rendimento prático. Se apenas se tratasse de
ordenação, proporção e domínio da matéria, a disputa pelo sistema 'exato' deveria aparecer como pouco frutífera."
"(...) do ano 1965, época em que a teoria finalista alcança sua total consagração, surge uma nova etapa na evolução
da teoria do delito, que sobre a base da renovação produzida na Criminologia e na política criminal, analisa o delito
não apenas de uma perspectiva conceitual ou "estritamente" dogmática, mas preferencialmente (...) do sentido e
fundamento da pena. Com isso também se escavavam os alicerces da teoria finalista, que por seu delineamento
ético básico, se sustentava sobre um estrito retribuicionismo e, por tanto, sobre a idéia do livre arbítrio como
princípio fundamentador da imposição da pena a um sujeito." (BUSTOS RAMÍREZ ,1984, p.167)
"(...) ela constitui a saída para um período de evidente perturbação e mal-estar, caracterizado, por um lado, pela
consciência da escassez dos ganhos legados por anos de apaixonado debate doutrinal, polarizado sobretudo em
torno das teses do finalismo, à margem dos ensinamentos da Criminologia e das renovadas aspirações da política
criminal".
119 .Desenvolvidamente,
sobre as novas tendências da teoria do delito ver: MIR PUIG, 1976, p.277-
299; ANDRADE, 1983, p49-64; COÑDE, 1975, p.177-187.
ao sistema do delito) que, fundada sobretudo na teoria sistêmica, encontra-se no
centro da Dogmática germânica desde meados da década de 70.
Segundo BARATTA (1985, p.8) a aplicação deste marco teórico em
ambos os níveis representa assim uma tentativa de sair de gravíssimas aporias
teóricas e contradições práticas nas quais a Dogmática Penal e a Política Criminal
oficial se encontram desde anos mergulhadas.
Numa linha que recolhendo as contribuições das obras de K.
AMELUNG, H.J. OTTO e C. ROXIN encontra sua mais sistemática expressão na
obra de G. Jakobs, este novo enfoque pode ser reunido sob a denominação de
"teoria da prevenção-integração". (BARATTA, 1988, p.3-4)
Nesta formulação é muito significativa, por exemplo, a contribuição de
ROXIN quem, a partir de uma enfoque sistêmico-funcional em sentido lato, dá
uma nova sistematização à teoria do delito, particularmente ao conceito de
culpabilidade.
Objeta ROXIN (1972), contra o ontologicismo de WELZEL, que não
são as estruturas prévias do objeto de regulação das normas que legitimam o
sistema do delito na aplicação da lei, mas a coincidência de suas soluções com
determinados fins político-criminais. Desta forma, a pré-estrutura das normas
penais não estaria dada pela ação, mas pelos fins da pena.
Na base de um entendimento do Direito Penal como "a forma em que
as finalidades político-criminais de transformam em módulos de vigência jurídica".
ROXIN (1972, p.77) sustenta ele que o sistema dogmático será o sistema da lei
penal na medida em que garanta resultados conforme aos fins da pena.
Trata então de reconstruir o sistema do delito e as suas categorias
centrais - tipicidade, ilicitude, causas de justificação, culpa, formas do crime, etc.
e, em especial a culpabilidade - procurando identificar o seu conteúdo e limites a
partir da respectiva função político-criminal.
Mas alerta, cuidadosamente, que
Por isto mesmo ROXIN (1972, p.18) afirma, que a busca de segurança
jurídica "rege independemente das transformações do sistema e de suas
discrepâncias que, como é sabido, formam também hoje objeto de vivas
controvérsias".
Mas na aplicação da teoria sistêmica na sua versão mais acabada, que se
encontra na obra de JAKOBS, a preocupação garantidora ainda presente em
ROXIN não mais parece encontrar respaldo.
Partindo da concepção de LUHMANN do Direito como instrumento
de estabilização social, de orientação das ações e de institucionalização das
expectativas, com independência do conteúdo específico das normas jurídicas, a
teoria da prevenção-integração formulada por Jakobs atribui à pena a função
principal de reestabelecer a confiança e reparar ou prevenir os efeitos negativos
que a violação da norma produz para a estabilidade do sistema e a integração
social. (BARATTA, 1985, p.4-5)
Quando este efeitos,
"(...) em atenção à estabilidade do sistema, deixam de ser tolerados, intervém a reação punitiva. A pena, afirma
Jakobs, não constitui retribuição de um mal com um mal, não é dissuasão, isto é, prevenção negativa. Sua função
primária é, por outro lado, a prevenção positiva. A pena é prevenção-integração no sentido que sua função primária
é 'exercitar' o reconhecimento da norma e a fidelidade frente ao direito por parte dos membros da sociedade. (...) O
delito é uma ameaça à integridade e à estabilidade sociais, enquanto constitui a expressão simbólica oposta à
representada pelo delito. Como instrumento de prevenção positiva, ela tende a restabelecer a confiança e a
consolidar a fidelidade ao ordenamento jurídico, em primeiro lugar em relação com terceiros e, possivelmente,
também com respeito ao autor da violação" (BARATTA, 1985, p.5).
E posto que esta função independe do conteúdo específico das normas
penais, a abstração da validez formal do Direito relativamente aos conteúdos
valorativos, que é um princípio fundamental do juspositivismo é levada, na teoria
sistêmica da integração-prevenção, às suas últimas conseqüências.
Assim para JAKOBS, como para OTTO, o Direito Penal não tem por
função principal ou exclusiva a defesa de bens jurídicos, pois não reprime
primeiramente lesões de interesses, mas o comportamento como manifestação de
uma atitude de infidelidade ao Direito. Daí resulta que a violação da norma é
socialmente disfuncional não tanto porque resultam lesionados determinados
interesses ou bens jurídicos, mas porque a norma mesma é posta em discussão
como orientação da ação e é afetada, em conseqüência, a confiança institucional
dos consorciados. (BARATTA, 1985, p. 4-5 e 13)
Desta forma, a exigência funcionalista de reestabelecer a confiança no
Direito mediante a contraposição simbólica da pena não é somente o fundamento
desta, mas, transladada para o plano dogmático, o fundamento para determinar o
grau de culpabilidade e individualizar a medida punitiva. (BARATTA, 1985, p.7).
Com efeito, chegando por esta via político-criminal ao plano técnico-
jurídico, a teoria da prevenção-integração pretendeu dar uma nova fundamentação
ao sistema dogmático do delito dirigindo-se especialmente a resolver problemas
pendentes sobre o conceito de culpabilidade.
Depois da sistematização dada por WELZEL ao desenvolvimento da
concepção normativa da culpabilidade, restava por resolver o seguinte problema:
se a culpabilidade consiste na reprovação pela determinação subjetiva da conduta,
como escapar ao círculo vicioso segundo o qual o fato de que a determinação
subjetiva da conduta seja negativamente valorada - segundo o disposto numa
norma penal - resulta considerado como o critério mesmo desta valoração? Como
precisar um referente objetivo do juízo de culpabilidade prescindindo do princípio
ontológico e metafísico do livre-arbítrio, baseado na hipótese do sujeito "haver
podido atuar conforme a norma", que constitui uma circunstância real, à qual,
como está atualmente demonstrado, não é empiricamente verificável depois da
realização da conduta ou, de qualquer modo, não é verificável dentro dos limites
heurísticos do processo penal? (BARATTA, 1985, p.8)
Este fundamento ontológico do juízo de culpabilidade há muito vinha
sendo polemizado e centralizou a crítica da teoria do delito pós-finalista que, numa
progressiva normativização do conceito antecipou e preparou o terreno para a
rigorosa "renormativização" proposta por JAKOBS120 segundo a quem não é
possível nem necessário a fixação de um referente objetivo para o juízo de
culpabilidade e este não é um juízo de demonstração de responsabilidade, mas de
atribuição de responsabilidade conforme critérios normativos estabelecidos pelo
Direito (BARATTA, 1985, p.8).
O que importa na valoração negativa do comportamento delitivo e na
atribuição de responsabilidade penal a um indivíduo não é tanto o cometimento
consciente e voluntário de um fato lesivo de bens ou interesses dignos de tutela,
mas o grau de intolerabilidade funcional para a expressão simbólica de infidelidade
em relação aos valores consagrados pelo ordenamento jurídico (BARATTA,
1985, p.5-6).
120 .Assevera neste sentido BARATTA (1988, p.6661 e 1985, p.8-9) que a "radical" normativização
do conceito de culpabilidade, cujos resultados são evidentes na doutrina alemã contemporânea,
especialmente em JAKOBS, um dos mais originais discípulos de Welzel, passou por diversas
fases: a) o reconhecimento da liberdade de atuar como um 'artifício do legislador' e uma 'ficção
necessária' sustentada já em 1903 por E. KOHLRASCH); b) a demonstração da não
judicialidade, ou seja, da impossibilidade de determinar judicialmente o pretendido fundamento
ontológico do juízo de culpabilidade, o 'haver podido atuar diversamente', e de medir o grau de
culpabilidade (G.ELLSCHEID); c) o reconhecimento da independência lógica do juízo
relativamente ao seu pressuposto ontológico (C.ROXIN e G.JAKOBS).
Este desenvolvimento doutrinário culmina, na sua fase mais recente, na tendência a desvincular-se
o juízo de culpabilidade do conteúdo ético da reprovação; na tentativa de construir um conceito de
culpabilidade sem estigmatizacão (G.ELLSCHEID e W.HASSEMER) e até na perspectiva de
uma teoria do delito sem culpabilidade (BAURMANN).
Pontualizando o dilema da culpabilidade numa radical normativização
dos critérios pessoais (subjetivos) nela antes consubstanciados, subtrai-lhe o
critério ontológico e de limite de atribuição de responsabilidade penal com a qual a
teoria do delito pretendeu anteriormente comprovar sua função garantidora e
processual.
Desta forma, conclui BARATTA (1985, p.7) que dois dos
"(...) baluartes erguidos pelo pensamento penal liberal para limitar a atividade punitiva do Estado frente ao
indivíduo: o princípio do delito como lesão de bens jurídicos e o princípio de culpabilidade, parecem cair
definitivamente e são substituídos por elementos de uma teoria sistêmica, na qual o indivíduo deixa de ser o centro
e o fim da sociedade e do direito, para se converter num 'subsistema físico-psíquico' (G. Jakobs), ao qual o direito
valoriza na medida em que desempenhe um papel funcional em relação com a totalidade do sistema social."
121 . Numa crítica das incongruências internas e das funções ideológicas (concernentes à
fundamentação e legitimação do sistema penal) BARATTA (1985, p.15) sustenta que o
"progresso" representado por esta tendência é mais aparente do que real, pois parece evidente
que ela representa uma das diversas tentativas de dar uma nova fundamentação à pena e proteger
o sistema penal ante a profunda crise de legitimidade que o afeta exercendo uma função
conservadora e legitimante relativamente ao atual movimento de expansão e intensificação da
resposta penal face aos conflitos sociais, isto é, face a uma nova fundamentação neoclássica e
retribucionista do sistema penal.(BARATTA, 1985, p.15 e 21)
Assim, a perda do conteúdo ontológico e ético da culpabilidade, as tentativas de subtrair-lhe a
função estigmatizadora não são apenas a expressão de uma crise do conceito de culpabilidade mas
de uma crise mais profunda de legitidade do próprio sistema penal que abarca toda a teoria da
pena e da responsabilidade penal.(BARATTA,1988, p.6661-3)
para a realidade ela opera o trânsito de uma ontologização (WELZEL) para uma
(re)funcionalização e uma (re)legitimação tecnocrática do sistema do delito.
Daí BUSTOS RAMÍREZ (1984:59) ter afirmado que nas teorias
funcionalistas em geral desaparece toda transcendência garantidora e dogmática
da teoria do bem jurídico que passa a ser um simples axioma ou dogma e, a nível
social, passa a ser o mesmo que a posição imanente de BINDING a nível jurídico.
Por outro lado, enquanto modelo tecnocrático, esta tendência
funcionalista pode ser considerada contraposta e alternativa ao modelo crítico em
que atualmente se inspira a Criminologia (Criminologia Crítica) e que estando
igualmente a se interseccionar com a Dogmática Penal, se baseia na radical
reafirmação das garantias dos Direitos Humanos.
Seja como for, a função racionalizadora/garantidora persiste, contudo,
como a promessa paradigmática da Dogmática Penal pois nascida com ela é
reiterada até o último estágio oficialmente aceito do sistema do crime, o finalismo,
estendendo-se ainda expressamente ao sistema preconizado por Roxin.
Em síntese, pois, a situação presente da Dogmática Penal pode ser
sumariada como a de convivência entre a continuidade do pensamento
sistemático, que representa a conexão com o passado e a recepção de tendências
político-criminais funcionalistas e criminológicas críticas, que representa a
característica do presente.
É a recepção dos resultados desta crítica, que a Dogmática Penal
também está a experimentar, que pode possibilitar, efetivamente, a sua abertura
cognoscitiva para a realidade social. Mas, antes que isso, o próprio controle
epistemológico-funcional da Dogmática Penal a que aludimos no capítulo
primeiro e a cuja questão nos dedicamos, especificamente, no capítulo seguinte.
CAPÍTULO IV
123 .
De qualquer modo, o deslocamento, no âmbito da Teoria Jurídica, de uma análise estrutural para
uma análise estrutural-funcionalista do Direito tem conduzido a uma análise funcional da própria
Dogmática Jurídica. A teoria de LUHMANN pode ser considerada, neste sentido, um exemplar
Metadogmática funcional, com efeito. Mas uma Metadogmática descritiva e não crítica da
funcionalidade Dogmática; ou seja, como vimos no primeiro capitulo LUHMANN (1980, p.32)
analisa qual a função que as Dogmáticas estão chamadas a desempenhar nas "sociedades complexas",
independentemente de como se cumpre, realmente, esta função fornecendo, como procuramos
mostrar, uma importante contribuição para a compreensão de sua identidade funcional. Por isso
mesmo, não fornece um instrumental específico para o controle da real funcionalidade da Dogmática
Penal.
de saber diretamente implicado com a configuração do poder punitivo do Estado
moderno e do sistema penal em que se institucionaliza. E se este sistema possui
características comuns ao sistema jurídico global, possui também características
específicas na medida em que materializa um específico controle do delito.
Neste sentido, também pode-se dizer, que até a década de sessenta
deste século, o sistema penal não tinha sido convertido em objeto específico e
sistemático de abordagem científica e, portanto, inexistia um saber crítico do
sistema penal que pudesse ser assumido como saber de controle funcional da
Dogmática Penal.
A construção deste saber é, contudo, uma das características mais
salientes do campo penal desde a década de sessenta e, apesar de ser um edifício
inacabado quanto às suas conseqüências, já produziu resultados considerados
irreversíveis quanto à gênese, estrutura e operacionalidade do sistema penal,
aptos a deslocar um controle epistemológico fundado na contrastação da
Dogmática com as Ciências Naturais para um controle epistemológico-funcional
fundado nos resultados das Ciências Sociais. Pois é esta a arena de sua
materialização.
É de situar o universo de construção deste saber e de delimitá-lo que
trataremos na continuação, para fixar, ao final, os próprios termos em que
desenvolveremos, no capítulo seguinte, a análise do sistema penal e o controle
dogmático nele baseados.
Previamente a esta tarefa impõe-se, contudo, anteciparmos uma
caracterização genérica do moderno sistema penal que, legada por este próprio
saber, temos por referente nesta tese e a qual reaparecerá, todavia, tematizada, na
posterior explicitação que dele faremos.
É que - é fundamental que se frise - uma primeira e fundamental
contribuição deste saber, ao elaborar a genealogia e desvendar a lógica de
funcionamento do moderno sistema penal foi ter reconstruído sua própria
identidade estrutural, explicitando os seus modelos fundamentais, sua estrutura
organizacional e estratégias de justificação e legitimação. É sob este tríplice
aspecto que passamos à sua caracterização.
124 .Énecessário antecipar, pois, que COHEN já se insere no marco da literatura crítica do sistema
penal que, como veremos, desde a matriz do interacionismo simbólico, introduziu uma nova visão
e uma nova linguagem e conceitos relativamente à literatura criminológica tradicional .Assim a
introdução dos conceitos de controle ou reação social e conduta desviante para o centro da
análise criminológica, passando-se a aludir ao controle do desvio, controle sócio-penal, controle
penal ou do delito - designações que usaremos indistintamente - onde antes lia-se combate à
criminalidade e a conceber-se o sistema penal como um (sub)sistema de "controle social",
entendendo-se por este termo, em sentido lato, as formas com que a sociedade responde, formal e
informalmente, institucional e difusamente, a comportamentos e a pessoas que contempla como
desviantes, problemáticos, ameaçantes ou indesejáveis, de uma forma ou de otra e, nesta reação,
demarca (seleciona, classifica, estigmatiza) a próprio desvio e a criminalidade como uma forma
específica dela.
No marco desta literatura é aceita, assim, a distinção entre controle social formal (ou
institucionalizado) e informal (ou difuso) conforme, respectivamente, a inespecificidade ou
especificidade de atribuição normativa: enquanto o primeiro é aquele exercido por agências que
tem a atribuição normativa específica para intervir; o segundo é exercido de forma inespecífica na
sociedade. (A respeito ver: COHEN, 1988, p.15; LEMERT, 1972, GABALDÓN,1989, p.32 e
37 KAISER, 1983, p.82; CAPELLER, 1992b, p.63-79)
TABELA 2 - O IMPULSO DESESTRUTURADOR
__________________________________________________________________
Transformação do século XIX Anos 1960: Contra Ideologias/
Movimentos desestruturadores
__________________________________________________________________
Controle estatal centra- Descentralização, desinformalização,
lizado descriminalização, derivação, despo-
jamento, informalismo, não interven-
ção
Nesta Tabela 2 COHEN (1988, p.57) ilustra, por sua vez, os modelos
fundamentais (centralização, categorização e profissionalização, segregação,
mente) que, resultando da transformação havida na passagem da fase "1" para a
fase "2" conformam o moderno controle do desvio e o ataque que cada um
deles, respectivamente, passa a receber com os movimentos desestruturadores.
-Estrutura organizacional
Na estrutura organizacional do moderno sistema penal pode-se
distinguir, pois, duas dimensões e níveis de abordagem: a) uma dimensão
definicional ou programadora, que define o objeto do controle, isto é, a
conduta delitiva, as regras do jogo para as suas ações e decisões e os próprios
fins perseguidos; que define, portanto, o seu horizonte de projeção; b) uma
dimensão operacional que deve realizar o controle do delito com base naquela
programação.
O sistema é, pois, um conceito bidimensional que inclui normas e
saberes, (enquanto programas de ação ou decisórios), por um lado, e ações e
decisões, em princípio programadas e racionalizadas, por outro.
O Direito Penal entendido como legislação integra a dimensão
programadora do sistema. Tem, neste sentido, um caráter "programático", já que
a normatividade penal não realiza, por si só, o programa: simplesmente o enuncia,
na forma de um "dever-ser". E embora não a esgote (porque acompanhado de
normas constitucionais, processuais penais, penitenciárias etc.) a ele sem dúvida
foi atribuído um lugar central no sistema.
O poder legislativo é, de qualquer modo, a fonte básica da
programação do sistema, enquanto que as principais agências de sua
operacionalização são a Polícia, a Justiça e o Sistema de execução de penas e
medidas de segurança, no qual a prisão ocupa o lugar central.
Corporificam o sistema penal, portanto, o conjunto das agências
estatais responsáveis pela criação (Parlamento), aplicação e execução das
normas penais (Justiça, Polícia e sistema penitenciário e manicomial) e os
diferenciados funcionários ou agentes que as integram. 125
Assim,
"O sistema penal (como todo sistema) existe como a articulação
funcional de vários elementos sincronizados: a lei penal (criminalização
e ritualização), a justiça criminal (aplicação penal) a polícia e a prisão
(repressão penal) e órgão acessórios. Assim respectivamente: a) a
definição legal de crimes e penas e dos rituais de aplicação (Poder
Legislativo); b) a verificação de fato concretos adequados às matrizes
legais de crimes, com a metodologia conhecida como teoria do crime,
conforme rituais judiciais, com a aplicação (...) de penas, no processo
oficial de criminalização (Poder Judiciário); c) a prisão dos autores de
crimes (anterior ou posterior à criminalização oficial), a realização de
investigações e de exames preliminares informativos da criminalização
oficial (...) e a execução penal, como retribuição equivalente do crime
(Poder Executivo) (CIRINO DOS SANTOS, 1985, p.25-6)
125 . A respeito do exposto ver BERGALLI, 1989; BERGALLI in BERGALLI & BUSTOS
RAMÍREZ, 1983a, p.147-8; BARATTA,1978, p.9; KAISER, 1983, p.82-86; BATISTA, 1990,
p.24-5; CIRINO DOS SANTOS, 1985, p.25-6 e 1984, p.115; HUERTAS, 1989, p.5-6;
COHEN, 1984, p.64; ZAFFARONI, 1987, p.30-1; GABALDÓN, 1987, p.11-4 e 1989, p.37.
(ZAFFARONI, 1987, p.33) A opinião pública figura na "periferia" do sistema.
(HULSMAN, 1993)126
126 .Concebendo a justiça criminal como uma "forma específica de cooperação" ou "da organização
cultural e social que produz a criminalização" HULSMAN (1993, p.152) apresenta, segundo uma
matriz abolicionista, uma visão mais ampla da justiça criminal na qual insere, no mesmo plano do
Parlamento, Polícia, Tribunais e Prisão, os Departamentos governamentais (Ministério da Justiça,
Ministério do interior e outros) e a Universidade (Departamentos de Direito Penal e Criminologia).
E, no plano periférico ou circundante relativamente a este, os meios de comunicação de massa,
escolas, romances e literatura em quadrinhos como formadores de opinião pública. No plano
programacional do sistema insere os textos legais (lei) decisões políticas e doutrina dogmática.
quanto para a sua justificação e legitimação. (BUSTOS RAMÍREZ, 1983, p.31 e
CARRASQUILLA, 1988, p.78)
Para além, portanto, de um "monopólio" detido pelo Estado, o sistema
penal é um "exercício" de poder e de funções (FOUCAULT, 1987, p.26-30, 172
e 189 e ZAFFARONI, 1991, p.16) acionando um típico
"(...) controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca
desde que se detecta ou supõe detectar uma suspeita de delito até que se
impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade
normativizadora que gera a lei que institucionaliza o procedimento, a
atuação dos funcionários e assinala os casos e condições para atuar".
(ZAFFARONI, 1986, p.31)127
função, deduzindo dela um sistema de pautas decisórias com aparência de soluções; pela negativa,
ao reconhecer como racionais os limites impostos pelo conjunto das demais agências e assim
legitimar o seu exercício de poder."
apresenta como Estado de Direito e o seu poder de punir se afirma como direito
(jus puniendi) de punir. (BARATTA, 1986, p.79-80)
Desta forma, a produção de uma ideologia legitimadora do poder penal,
baseada no princípio da legalidade, acompanha desde o começo a história do
direito penal (BARATTA, 1986, p.82) e a
- Legitimidade e (auto)Legitimação
133 . A legitimação traduz-se, assim, numa forma de convalidar, autorizando-o, especialmente através
da promoção de um consenso social (real ou fictício), o sistema penal vigente.
"(...) representa o modo como o sistema punitivo tende a ser concebido
por parte dos indivíduos aos quais incumbe a tarefa de prepará-lo,
administrá-lo, controlá-lo e transmitir dele uma imagem útil ao seu
funcionamento. Mas este esquema ideológico não é um esquema
somente imaginário do sistema punitivo, privado de contato com a
realidade . Antes de tudo, por meio da ideologia dos próprios
organismos oficiais se realiza, de fato, aquela função de
autolegitimação do sistema que Weber chama a 'pretensão de
legitimidade'." (BARATTA, 1991,a, p.178)
135 .Esta matriz criminológica é designada na literatura, alternativa e sinonimiamente, por enfoque
(perspectiva ou teoria(s)) do interacionismo simbólico, labelling approach, etiquetamento,
rotulação ou ainda por paradigma da "reação social" (social reation approach), do "controle",
ou da "definição"; designações que também usaremos indistintamente.
136 .Segundo COHEN (1988, p.33) as histórias revisionistas chaves são, por ordem de publicação :
a) a obra de DAVID J.ROTHMAN ("The Discovery of the Asylum: Social Order and Disorder in
the New Republic"-1971); b)a obra de MICHEL FOUCAULT ("Surveiller et punir" -1975),
traduzido para o português sob o título "Vigiar e Punir"; c)a obra de DARIO MELOSSI e
MASSIMO PAVARINI ("Carcere e fabbrica: alle origini del sistema penitenziario -1977),
traduzida para o espanhol sob o título " Carcel y Fabrica: los origenes del sistema penitenciário".
A nosso ver é fundamental incluir-se aí a obra de GEORG RUSCHE e OTTO KIRCHEIMER
("Punishment and Social Structure") traduzida para o espanhol sob o título "Pena y Estructura
social", obra que, embora publicada nos Estados Unidos em 1939 passa a receber uma especial
atenção da literatura crítica do sistema penal desde a década de 60/70, exercendo influência sobre
as próprias historiografias de FOUCAULT e MELOSSI e PAVARINI.
"revolução de paradigma" em Criminologia, processo este que culmina na
construção da Criminologia crítica.
Assim a Criminologia contemporânea experimenta uma troca de
paradigmas mediante a qual está a se deslocar e transformar de uma Ciência das
causas da criminalidade (paradigma etiológico), que caracterizou seu estatuto
desde o século XIX, em uma Ciência da crimininalização (paradigma da reação
social), ocupando-se hoje, especialmente, do controle sócio-penal e da análise da
estrutura, operacionalidade e reais funções do sistema de penal, que veio a ocupar
um lugar cada vez mais central no interior do objeto da investigação criminológica.
(BARATTA, 1982; ANDRADE, 1991)
Pode-se dizer então que desde as histórias revisionistas de sua
fundação e elementos caracterizadores estruturais até a análise de sua inteira
dinâmica funcional o desconstrucionismo abala, precisamente, os sustentáculos
daquele duplo eixo legitimador do sistema penal a que nos referimos, expondo
não apenas a violação encoberta e aberta da programação normativa e teleológica
do sistema penal (da qual resulta sua grave crise de legitimidade, não obstante a
convivência com sua autolegitimação) mas também o cumprimento de funções
latentes, distintas das declaradas.
Como desdobramento destas desconstruções e com base nos seus
resultados sobre o sistema penal pode-se dizer que
137 .Desenvolvidamente, ver COHEN (1988, p.33-135). Ver também CAPELLER (1992b, p.66-
68).
relação entre Dogmática penal e Criminologia, dimensão na qual se situa, como
veremos, o controle dogmático aqui preconizado.
O campo penal, tradicionalmente um campo fechado, encontra-se
hoje aberto e perturbado. Aberto pelo diálogo, que o impulso desestruturador
passou a possibilitar, entre o penal e o social, o político e o econômico; e pela
descoberta, que ele co-constituiu, de novos parceiros para o penal. Ao dialogar
com as Ciência Sociais e abrir-se para uma nova parceiragem o penal deixa de
ser,ao menos como experiência, monopólio analítico dos penalistas e monopólio
da prática estatal.
O impulso desestruturador abrange, portanto, um extenso, heterogêneo
e riquíssimo universo teórico/prático que obviamente não pretendemos e
podemos abarcar. Para efeitos de nossos objetivos é na dimensão propriamente
desconstrutora que vamos nos fixar de modo que só ilustrativa e secundariamente
aludiremos aos seus desdobramentos político-criminais, ao nível teórico e
prático.138
E no interior desta dimensão elegemos três marcos que representam, a
nosso ver, os principais eixos de construção de um saber crítico do sistema
penal com uma simultânea e específica contribuição para o controle
epistemológico-funcional da Dogmática: a crítica historiográfica foucaultiana, a
crítica sociológica do labelling approach,139 de base interacionista, da qual
138 .Os desdobramentos político-criminais deste impulso estão em curso e plenos de conseqüências
práticas e teóricas sobretudo nas sociedades do capitalismo central. Sobre a política-criminal
decorrente do labelling approach, da Criminologia crítica e do abolicionismo penal ver
BARATTA (1976, 1983 b e 1991a) HULSMAN (1984 e 1986), DIAS & ANDRADE (1984),
PABLOS DE MOLINA (1984); sobre a mudança de estatuto epistemológico da Política Criminal
como disciplina ver DELMAS-MARTY (1992) CAPELLER (1992b, 1993); sobre uma avaliação
das experiências alternativas ver COHEN(1988); MATHEUS (1987); CAPELLER (1992b,
1993); LARRAURI (1987, 1988), GARLAND (1987).
139 .O labelling approach surge nos Estados Unidos da América em finais da década de 50 e inícios
da década de 60 com os trabalhos de autores como H. GARFINKEL, E. GOFMANN,K.
resulta, diretamente, o paradigma criminológico da reação social e a Criminologia
Crítica140 que, partindo deste paradigma, do reconhecimento da sua eficácia
142 .Pois,
é importante que se diga, sendo interpretada no seu própio curso é tida, por alguns, como
um questionamento e uma reversão da transformação inicial dos séculos XVIII e XIX; enquanto
que por outros é interpretada como uma mera continuação e intensificação das linhas originais (A
respeito ver COHEN,1988; COHEN e SCULL, 1983; MATTHEWS, 1987; LARRAURI, 1988
e 1991)
Nesta ótica o que emerge na modernidade - a fase adulta da
humanidade - é um Direito Penal liberal e humanitário por oposição e superação à
arbitrariedade do "Antigo Regime", visto por sua vez como uma realidade
normativa autônoma, cuja concretização é sujeita à suas regulações normativas
internas e suas opções éticas fundamentais. Um eventual fracasso é interpretado
como um desvio na posta em prática deste projeto; ou seja, como uma
conseqüência não desejada do Direito. Deste ponto de vista, a lógica da aplicação
seria uma lógica contrária à da normativização. A história oficial se apóia, assim,
sobre uma negação ou neutralização estrutural do poder e da dominação.
146 .A respeito ver também CIRINO DOS SANTOS (1981, p.42-3) e GARCÍA MENDEZ (1984,
p.262-3).
147 . A respeito ver também FOUCAULT,1987, p.26 a 30,172 e 189.
Inverte, neste sentido,a idéia de que é o saber que gera poder, para
afirmar que
"(...) o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o
serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão
diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição
correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não
constitua ao mesmo tempo relações de poder." FOUCAULT (1987,
p.30)
148 .Como a crítica tem anotado (COHEN,1980, GARCíA MENDEZ, 1984, p.262-3, BARATTA,
1991a, p.206) entre outros aspectos que vão do "idealismo de Foucault" ao "determinismo" das
historiografias marxistas, é necessário levar em conta que estas histórias concentram seus recursos
explicativos sobre a gênese e desenvolvimento da pena de prisão enquanto instituição hegemônica
do moderno sistema penal, no marco do surgimento e desenvolvimento do modo de produção
capitalista. Neste sentido, não obstante sua reconhecida contribuição para a reconstrução
científica da história do cárcere e para a análise das funções reais do sistema penal, cada uma
delas é limitada para compreender o sistema de controle atual, ou seja, das sociedades do
capitalismo avançado, porque os sucessos de que fazem a crítica estão hoje sobredefinidos.
De qualquer modo, como afirma BARATTA (1991a, p.204-5) "Tanto Rusche e Kircheimer,
quanto Foucault, estão conscientes de que nos países capitalistas mais avançados, na fase final de
desenvolvimento por eles descrito (a Europa dos anos Trina, no caso de Rusche e Kircheimer; a
Europa dos anos setenta, no caso de Foucault), o cárcere não tem mais aquela função real de
reeducação e de disciplina, que possuía em sua origem. Esta função educativa e disciplinar se
reduz, portanto, agora, a pura ideologia. As estatísticas das últimas décadas nos países capitalistas
Como observa NEPPI MODONA (1987, p.7), MELOSSI e PAVARINI
também invertem a concepção do cárcere como instituição isolada e separada do
contexto social
149 . A respeito desta distinção entre delitos "naturais" e "artificiais", que ficou a dever-se a
GARÓFALO, ver item "e" (Principio do interesse social e do delito natural) da ideologia da
defesa social citada no capítulo terceiro, segundo o qual se considera que apenas os delitos
"artificiais" representam, excepcionalmente, violações de determinados ordenamentos políticos e
econômicos e resultam sancionados em função da consolidação dessas estruturas.
"Um de seus ganhos mais destacados foi que os criminólogos
positivistas puderam fazer o que parecia impossível. Desvincularam o
estudo do delito do funcionamento e da teoria do Estado. Uma vez feito
isto e quando o mesmo resultado se obteve a respeito da conduta
desviada em geral, o programa de investigação e estudo para os
próximos anos ficou relativamente esclarecido, em especial a respeito
do que não se estudaria."(MATZA, citado por WALTON, TAYLOR e
YOUNG,1990, p.46)
152 A
respeito ver: OLIVEIRA, 1984, THOMPSON, 1988, BERGALLI, 1976 e
MIRPUIG, 1989.
6.2. Matrizes teóricas, pressupostos metodológicos, quadro explicativo
e teses fundamentais do labelling approach: a troca de paradig-
mas
"É interessante notar, dum ponto de vista cronológico, que dois dos
mais momentosos eventos da história da Criminologia ocorreram nos
anos sessenta e setenta dos séculos XVIII e XIX: 'a publicação de Dei
delitti e delle pene (1764) de BECCARIA e de L'Umo delinquente (1876)
de LOMBROSO. Serão de esperar rebentamentos tão explosivos nas
duas décadas que se avizinham?'"
153 .Desta forma, ainda que a perpectiva labelling não adquira o estatuto de um modelo teórico até
os anos sessenta, cabe assinalar já nos escritos de MEAD (1917-1918), THOMAS (1923) e
TANNEUBAUM (1938) valiosos e significativos antecedentes da mesma. A respeito PABLOS
DE MOLINA, 1988, p.586.
154 .Do interacionismo desenvolvido por MEAD, cuja tese central pode ser resumida em que a
sociedade é interação e que a dinâmica das instituições sociais somente pode ser analisada em
termos de processos de interação entre seus membros, se derivaram diversas escolas dentro das
quais a "Escola de Chicago" à que pertencem LEMERT e BECKER, a escola dramatúrgica de
GOFFMAN e a etnometodologia. (ALVAREZ G,1990, p.19)
ao vocabulário da dramaturgia e com a utilização de técnicas de
investigação próprias da microsociologia. Por outro lado, tal como o
interacionismo simbólico, também o labelling approach rejeita o
pensamento determinista e os modelos estruturais e estáticos, tanto no
que respeita à abordagem do comportamento como no que toca à
compreensão da própria identidade individual." (DIAS & ANDRADE,
1984, p.50)
Uma conduta não é criminal "em si" ou "per si" (qualidade negativa ou
nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua
personalidade (patologia). O caráter criminal de uma conduta e a atribuição de
criminoso a seu autor depende de certos processos sociais de "definição", que
atribuem à mesma um tal caráter, e de "seleção", que etiquetam um autor como
delinqüente.
Pois, no dizer de BECKER (1971, p.14):
"(...) devemos reconhecer que não podemos saber se um certo ato vai
ser catalogado como desviante até que seja dada a resposta dos
demais. O desvio não é uma qualidade presente na conduta mesma,
senão que surge da interação entre a pessoa que comete o ato e aqueles
que reagem perante o mesmo."
155 .Mas,
como acentua VETTER (citado por PABLOS de MOLINA,1988, p.593), uma vez que
não é da etiologia do delito que se ocupam os teóricos do labelling, não se pode extrair dele
diagnóstico algum sobre as causas (fatores e variáveis) da criminalidade. De tal forma que o valor
"constitutivo" que asignam aos agentes do controle social deve ser interpretado em sua acepção
simbólica, de acordo com as premissas do interacionismo. O etiquetamento não 'causa' a
criminalidade, mas os modelos ou pautas sociais de comportamento derivados da reação social
condicionam a natureza e o significado atribuídos àquela, bem como suas conseqüências.
Por outro lado, é importante observar que nem todos os teóricos do etiquetamento atribuem um
peso absoluto à reação social na criação do desvio, salientando neste sentido que deverá existir
uma conduta prévia, perante a qual a sociedade reage.
BECKER (1971, p.13) assinala , neste sentido "...que um ato dado seja desviante ou não depende
em parte da natureza do ato (ou seja, se quebranta ou não alguma regra), e em parte do que outras
pessoas fazem a respeito."
Além disso trata-se, a "criminalidade", não apenas de uma de uma
realidade social construída, mas construída de forma altamente seletiva e desigual
pelo controle social156.
A tese da seletividade, que já se encontra nas historiografias de
RUSCHE/KIRCHEIMER e FOUCAULT recebe aqui uma investigação
sistemática e é levada às suas últimas conseqüências a partir de outra das
revelações fundamentais do labelling: a das correlativas "regularidades" a que
obedecem a criminalização e o etiquetamento dos estratos sociais mais pobres,
visibilizada pela clientela da população carcerária.
156 .E são as já referidas investigações sobre a criminalidade de colarinho branco, a cifra negra da
criminalidade e o papel criador do juiz e demais agentes do controle penal que constituem, como
veremos no capítulo seguinte, a base do instrumental argumentativo do labbeling na
fundamentação desta tese.
Desta forma, ao invés de indagar, como a Criminologia tradicional,
"quem é criminoso?", "por que é que o criminoso comete crime?" o labelling
passa a indagar "quem é definido como desviante?" "por que determinados
indivíduos são definidos como tais?", "em que condições um indivíduo pode
se tornar objeto de uma definição?", "que efeito decorre desta definição sobre o
indivíduo?", "quem define quem?" e, enfim, com base em que leis sociais se
distribui e concentra o poder de definição? (BARATTA, 1991a, p.87; DIAS e
ANDRADE, 1984, p.43).
É assim que a pergunta relativa à natureza do objeto e do sujeito na
definição dos comportamentos desviantes, orientou o desenvolvimento de três
níveis explicativos do labelling approach, cuja ordem lógica procede aqui
inverter:
a) um nível orientado para a investigação do impacto da atribuição do
status de criminoso na identidade do desviante (é o que se define como "desvio
secundário"157);
157 .Estenível prevalece entre os autores que se ocuparam particularmente da identidade e das
carreiras desviadas, como HOWARD BECKER, EDWIN M. SCHUR e EDWIN M.LEMERT a
quem se deve o conceito de "desvio secundário" (secondary deviance) que teorizado pela
primeira vez em seu "Social Pathology" em 1951, foi por ele retomado e aprofundado em
"Human Deviance. social problems and social control" (1972) tendo se convertido num dos
tópicos centrais do labelling.
BECKER, por exemplo, apesar de ter contribuído de modo decisivo ao desenvolvimento da
segunda direção de pesquisa, particularmente no que concerne à definição, se deteve
principalmente sobre os efeitos da estigmatização na formação do status social de desviante.
Não aludiremos posteriormente ao desenvolvimento experimentado pelo labelling neste nível.
Para os fins de nossa análise importa-nos reafirmar, com BARATTA (1991a, p.89), conforme já o
antecipamos no tópico "6.1" que, se relacionando com um mais vasto pensamento penalógico e
criminológico crítico sobre os fins da pena este nível de investigação põs em evidência que a
intervenção do sistema penal, em especial as penas privativas de liberdade, ao invés de exercer um
efeito reeducativo sobre o delinqüente, determinam, na maior parte dos casos, uma consolidação
de uma verdadeira e própria carreira criminal, lançando luz sobre os efeitos criminógenos do
tratamento penal e sobre o problema não resolvido da reincidência. De modo que seus resultados
sobre a "desvio secundário" e sobre as carreiras criminosas representam a negação do princípio
do fim e da prevenção e, em particular, da concepção reeducativa da pena e da ideologia do
tratamento. (BARATTA, 1991a, p.116)
Representa assim uma contribuição fundamental na demonstração do descumprimento das funções
declaradas da pena e para a passagem ao debate sobre as funções instrumentais e simbólicas da
pena, hoje no centro da Criminologia crítica.
b) um nível orientado para a investigação do processo de atribuição do
status criminal (processo de seleção ou "criminalização secundária" 158 ); e
c) um nível orientado para a investigação do processo de definição da
conduta desviada (processo de definição ou criminalização primária 159) que
conduz por sua vez, ao problema da distribuição do poder social desta definição,
isto é, para o estudo de quem detém, em maior ou menor medida, este poder na
sociedade. E tal é o problema que conecta a investigação do labelling com as
teorias do conflito. (BARATTA, 1991a, p.87; PABLOS DE MOLINA, 1988,
p.588, 592-3)160
A investigação se desloca dos controlados para os controladores e,
remetendo a uma dimensão macrosociológica, para o poder de controlar.
BECKER (1971, p.26) sintetiza esta dimensão do poder nos seguintes
termos:
158 .Tal é o processo de aplicação das normas penais pela Polícia e a Justiça. É o importante momento
da atribuição da etiqueta de desviante (etiquetamento ou rotulação) que pode ir desde a simples
rejeição social até a reclusão do indivíduo em uma prisão ou internação em um manicômio. Para os
teóricos do labelling a atribuição desta etiqueta é um momento fundamental não apenas na
construção seletiva da criminalidade mas pelo seus efeitos na identidade do sujeito etiquetado.
159 .Correspondente ao processo de criação (gênese) das normas penais, em que se decide quais
condutas vão ser legalmente definidas como crimes e quais não em determinada sociedade. Não
obstante, não se limitam a análise das definições legais, levando também em consideração ( com
maior ou menor ênfase) as definições informais dadas pelo público em geral (definições do "senso
comum").
160 .Podemos agora pontualizar, relativamente à negação da ideologia da defesa social anteriormente
referida, que são os resultados do nível analítico do impacto (a) que negam os princípios do fim
e da prevenção; os resultados do nível da atribuição do status criminal (b) que se contrapõem ao
princípio da igualdade e os relativos ao nível da definição (c) , conectados com as teorias do
conflito, que se opõem ao princípio do interesse social e do delito natural.
de poder. Além de reconhecer que o desvio é criada pelas respostas da
gente perante um particular tipo de conduta e por etiquetar esta
conduta como desviante, nós devemos também ter em mente que as
regras criadas e mantidas por esta etiqueta não são universalmente
aceitas. Ao contrário, estas são objeto de conflito e desacordo, parte do
processo político da sociedade."
Assim
161 . Neste sentido, o emprego do termo "sistema penal" já se consagrou na literatura, para além da
questão de saber se as diferentes agências da Justiça penal constituem um autêntico 'sistema' na
acepção que a este termo é conferida pela moderna teoria do sistema social ou antes uma mera
justaposição ou conjunto de subsistemas relativamente desintegrados. A respeito ver, por exemplo:
ZAFFARONI (1991, p.144); HULSMAN(1993, p.58-60); DIAS & ANDRADE (1984, p.373-
384)
Nesta perspectiva não apenas a criminalização secundária insere-se no
continuum da criminalização primária, mas o processo de criminalização acionado
pelo sistema penal se integra na mecânica do controle social global da conduta
desviada162 de tal modo que para compreender seus efeitos é necessário apreendê-
lo como um subsistema encravado dentro de um sistema de controle e de seleção
de maior amplitude.
O sistema penal não realiza o processo de criminalização e
estigmatização à margem ou inclusive contra os processos gerais de etiquetamento
que tem lugar no seio do controle social informal, como a família e a escola (por
exemplo, o filho estigmatizado como "ovelha negra" pela família, o aluno como "
difícil" pelo professor etc.) conforme salienta o interacionismo simbólico
(HASSEMER, 1984, p.82; COÑDE, 1985, p.37) e o mercado de trabalho, entre
outros, como salientará a Criminologia crítica.
Por outro lado, considerada a amplitude e pluridimensio-nalidade do
controle social163 relativizado fica, em seu âmbito, o controle exercido pelo
sistema penal de forma que
163 .Pois, de fato, o âmbito do controle social é amplíssimo e, dada sua proteica configuração nem
sempre é evidente, pois se exerce informalmente através de meios mais ou menos difusos e
encobertos (como a família, a educação escolar, a religião,os meios de comunicação de massa, e
muitos outros aspectos que tecem o complexo tecido social) até meios formalizados e explícitos
como o sistema penal que é, como já afirmamos, um exemplo típico de a social formal.
(ZAFFARONI, 1987, p.24-5)
.................................................................................................
As diferenças existentes entre o sistema jurídico-penal e outros sistemas
de controle social são mais bem de tipo quantitativo: o Direito penal
constitui um 'plus' adicional em intensidade e gravidade das sanções e
no grau de formalização que sua imposição exige." (COÑDE, 1985,
p.37)
- Mudança de paradigma
164 .Conforme já o antecipamos no item "3" e, em especial, na nota "2" deste capítulo. Neste sentido
merecem referência as importantes - e entre si polemizadas - construções de uma "Sociologia do
controle penal" e de uma "Teoria Crítica do controle social" que, na esteira do labelling e do
paradigma da reação social, são protagonizadas, respectivamente, por Bergalli e Anyar de Castro,
em especial para a América Latina.
Enquanto BERGALLI (1970, 1983,1987, 1989, 1990, BERGALLI et. al.1983, p.147-8) propõe
substituir a própria denominação "Criminologia" por "Sociologia do controle penal", cujo objeto
seria o controle penal concebido como espécie ou tipo particular do gênero controle social
realizado através do sistema penal; ANYIAR DE CASTRO (1986, 1987, 1990) entende que a
criminologia deve converter-se em teoria crítica da totalidade do controle social. Ambas as
formulações foram por sua vez polemizadas por MONREAL (1985)
estático e descontínuo de abordagem do comportamento desviante por um
modelo dinâmico e contínuo que o conduz a reclamar a redefinição do próprio
objeto criminológico. Ruptura que se traduz, por outro lado, na desqualificação
das estatísticas oficiais como instrumento fundamental de acesso à 'realidade'
criminal, devido às insuperáveis aporias a que conduziam, como veremos, do
ponto de vista gnoseológico. (DIAS e ANDRADE, 1984, p.43)
Produz assim, como se autoatribuem seus representantes e a literatura
em geral subscreve, um verdadeiro salto qualitativo - uma "revolução" de
paradigma no sentido kuhneano - consubstanciado na passagem de um paradigma
baseado na investigação das causas da criminalidade a um paradigma baseado na
investigação da criminalização. (BERGALLI, 1983, p.146-7; BARATTA, 1991a,
1982b; ALVAREZ, 1990, p.15-6 e 31; MUÑOZ GONZALEZ, 1989;
HASSEMER, 1984, p.84; LARRAURI, 1991, p.1; PAVARINI, 1987, p.127)
Foi assim que:
"A introdução do labelling approach, sobretudo devido à influência de
correntes de origem fenomenológica (como o interacionismo simbólico
e a etnometodologia), na sociologia da desviância e do controle social,
e de outros desenvolvimentos da reflexão sociológica e histórica sobre o
fenômeno criminal e sobre o direito penal, determinaram, no seio da
Criminologia contemporânea, uma troca de paradigmas mediante a
qual esses mecanismos de definição e de reação social vieram ocupar
um lugar cada vez mais central no interior do objeto da investigação
criminológica. Constitui-se, assim, um paradigma alternativo
relativamente ao paradigma etiológico, que se chama justamente, o
paradigma da 'reação social' ou 'paradigma da definição'." (BARATTA,
1983b, p.147 e 1991a, p.225)
165 . A respeito, tanto PAVARINI (1988, p.139-40) quanto BARATTA(1991a, p.123) assinalam
que as teorias conflituais da criminalidade não são teorias de medio alcance, pois partem de uma
teoria geral da sociedade na qual o modelo do conflito é fundamental. O horizonte
macrosociológico dentro do qual estudam a criminalidade e os processos de criminalização lhes é
proporcionado pela sociologia do conflito que, polemizando contra o estrutural-funcionalismo
(TALCOTT PARSONS e ROBERT MERTON) e seu modelo consensual de sociedade, se
afirma nos Estados Unidos e na Europa na metade dos anos cinqüenta, especialmente por obra de
LEWIS COSER e RALF DARENDORT."
Se criminal é o comportamento criminalizado e se a criminalização não é
mais do que um aspecto do conflito que se resolve através da instrumentalização
do Direito, e portanto do Estado, por parte de quem é politicamente mais forte,
os interesses que estão na base da formação e aplicação do Direito Penal não são
interesses comuns a todos os cidadãos, mas interesses dos grupos que tem o
poder de influir sobre os processos de criminalização. Conseqüentemente, a
questão criminal como um todo - e não apenas um determinado número de delitos
"artificiais" - é uma questão eminentemente política. (PAVARINI, 1988, p.140)
Mediante a relação instaurada entre conflito social e processo de
criminalização, a inserção do Direito Penal numa perspectiva política e uma
explicação mais articulada da natureza seletiva daquele processo as teorias
conflituais representam, por sua vez, uma pontual contraposição àquele elemento
da ideologia da defesa social chamado de princípio do interesse social e do
delito natural (BARATTA, 1991a, p.123)166
Assim,
"Quando, ao lado da 'dimensão da definição' esta 'dimensão do poder' é
suficientemente realizada na construção de uma teoria, estamos em
presença do mais pequeno denominador comum de todo esse
pensamento que podemos alinhar sob a denominação de 'Criminologia
crítica'." (BARATTA, 1983b, p.147)168
168 . Tal critério demarcador da Criminologia crítica, que adotamos aqui requer, portanto, um aporte
interacionista + uma aporte materialista das relações de poder que se inclui seu desenvolvimento a
partir de categorias do materialismo histórico, a ele não se reduz, conforme nota 18, in fine.
Embora seja extremamente válido, em especial para a América Latina, o critério postulado, por
exemplo por ZAFFARONI ( 1984:142)que acentuando a diversidade dos critérios críticos que
imperam na Criminologia não positivista, propõe considerar como crítica toda Criminologia, em
Para melhor situar o seu alcance explicativo da Criminologia crítica é
necessário referir que parte tanto do reconhecimento da irreversibilidade dos
resultados do paradigma da reação social e das teorias do conflito nele baseadas
sobre a operacionalidade do sistema penal e a ideologia da defesa social169 quanto
de suas limitações analíticas macrosociológicas e mesmo causais (BARATTA,
1991a, p.114; PAVARINI, 1988, p.187; MUÑOZ GONZALEZ, 1989, p.270)
Relativamente a tais limites170 dois aspectos tem sido especialmente
destacados. Em primeiro lugar, a abstração do enfoque político em relação ao
enfoque econômico do poder.
sentido amplo, que não pressuponha uma assepsia da reação social,já que o uso generalizado da
expressão permitiria uma certa univocidade científica.
Sobre a explicitação da relação que subsiste entre Criminologia e marxismo e o problema de uma
teoria materialista, dado que a obra de MARX e do marxismo em geral carece de uma teoria
explicativa do controle penal em si ver BARATTA, 1991a, p.165 et.seq. e PAVARINI,1988,
p.148 et seq.
169 .Quanto aos princípios da igualdade, do fim e da prevenção e do interesse social e do delito
natural.
170 . Desenvolvidamente ver BARATTA (1991a, p.119-121) e PAVARINI (1988, p.130-137).
insuficiente grau de abstração em relação à estrutura econômica. Pois, uma vez
que a atenção se fixa no processo de criminalização em si, sem perquirir seus
condicionantes estruturais, a interpretação pluralista acaba por reduzir-se a uma
interpretação "atomista" da sociedade, vista como um conjunto de pequenos
grupos, cujas relações não remetem nunca às relações mais gerais de classe, isto
é, a uma desigual distribuição das oportunidades sociais. (PAVARINI, 1990,
p.131)
173 .As primeiras são vistas como expressões específicas das contradições que caracterizam a
dinâmica das relações de produção e de distribuição, numa determinada fase do desenvolvimento
da formação econômico-social; na maior parte dos casos uma resposta inadequada, individual e
irracional, àquelas contradições, por parte dos indivíduos socialmente em desvantagem. As
segunda são estudadas à luz da relação funcional entre processos legais e ilegais da acumulação e
da circulação do capital e entre esses processos e a esfera política.(BARATTA,1978, p.14-5;
CIRINO DOS SANTOS,1984,p.100-124).
seleção dos bens jurídicos penalmente protegidos e dos comportamentos
ofensivos a estes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, pela seleção
dos indivíduos estigmatizados entre todos aqueles que praticam tais
comportamentos. (BARATTA, 1991a, p.167)
Contudo,
Pois,
"A Criminologia tradicional etiológica, mesmo nas suas versões mais
atualizadas (através da aproximação 'multifatorial') tem, por natureza,
uma função imediata e diretamente auxiliar, relativamente ao sistema
penal existente e à política criminal oficial. O seu universo de
referências e o seu horizonte de ação são quase sempre impostos pelo
mesmo sistema. É por isso que ela é obrigada a pedir a este a definição
do seu próprio objeto de investigação: a 'criminalidade' tal como é
definida pelas normas e estatísticas, os 'criminosos' como indivíduos
selecionados e estigmatizados (e deste modo tornados disponíveis para
a observação clínica) através da instituição da prisão".
(BARATTA,1983a, p.152)
176 .A
respeito ver (OLMO,1984; CASTRO, 1987; PAVARINI, 1988; TAYLOR, WALTON e
YOUNG, 1990; BERGALY e BUSTOS RAMÍREZ, 1983a).
ressocializar ou inocuizar -, que são os que se apartam do normal; mais
ainda, que apresentam características potenciais de separar-se do
normal - prognóstico científico de periculosidade. No fundo, o controle
se inicia com o nascimento do indivíduo e ainda mais atrás, com o
controle das características dos futuros pais. " (BUSTOS RAMÍREZ in
BERGALLI e BUSTOS RAMÍREZ, 1983b, p.17)
Por outro lado, como observa OLMO (1987, p.38-9), hoje podemos
constatar que esta incomunicabilidade não é mais absoluta, na medida em que
177 . Nesta interação entre Criminologia e Penalismo críticos, da qual a Escola de Bolonha italiana
pode ser considerada uma expressão exemplar podem situar-se, sem pretensões de exaustividade:
BARATTA, 1982b e 1991a; ZAFFARONI, 1989 e 1981; BUSTOS RAMÍREZ, 1987;
BERGALLI, 1984a; BACIGALUPO, 1982; ANYAR DE CASTRO,1987; GARCÍA MENDEZ
(19--); CARRASQUILLA, 1984; CONORADO FRANCO, 1990; NAVARRO SOLANO,
1990; TOSCA HERNANDEZ, 1991; CLEMENTE, 1991, SOLA DUEÑAS, 1982;
FERRAJOLI, 1986 e 1989; PERFECTO IBANÊZ (1988); CIRINO DOS SANTOS, 1985;
NILO BATISTA,1991.
É importante aduzir também que esta interação não tem se limitado ao nível da produção teórica
mas abrange o engajamento em movimentos de reforma da Justiça e de defesa dos direitos
humanos (em especial dos menores) em países europeus e latino-americanos.
178 . Conforme item "7.2" do primeiro capítulo.
desenvolvimento do aspecto crítico da Criminologia ao encontro do aspecto
garantidor do Direito Penal dogmático e vice-versa; ou seja, um "garantismo
crítico" entendido como vigilância sobre o (des)respeito aos direitos individuais
no marco do funcionamento efetivo ( e não idealizado) do sistema penal e sua
crise de legitimidade.
Em decorrência, sejam os movimentos político-criminais sejam as
postulações de reconstrução/transformação da Dogmática Penal orientados pela
Criminologia crítica se baseiam na mais radical afirmação das garantias dos
direitos humanos.
Assim, se o projeto de transformação do controle penal da
Criminologia crítica não se limita ao garantismo, é necessário insistir com
ANYAR DE CASTRO (1987, p.88-9), que apesar do que pensam alguns juristas,
ela não trata de negar o Direito: interessa-se antes por dotá-lo de novos conteúdos
e resgatar sua vertente garantidora. Salvo, aduzimos, em suas vertentes mais
radicalizadas.
Referindo-se, por exemplo, à investigação sobre sistemas penais e
Direitos Humanos dirigida por ZAFFARONI (1984a e b) na América Latina
ANYIAR DE CASTRO (1987, p.93-4) visualiza nela, precisamente, as
potencialidades de um aprofundamento daquele elo (garantismo crítico) ao
asseverar que
179 .Para designar este saber de controle aludiremos, alternativamente, à "Ciência social" à "crítica
historiográfica, sociológica e criminológica" ou à crítica social. E utilizaremos, complementarmente
argumentos de outras matrizes na medida de sua convergência com o marco assinalado.
contrastiva no marco de uma reinterpretação mais ampla, apta a dar conta das
duas grandes questões também deixadas pendentes e a retomar180: a) a da relação
funcional entre Dogmática e realidade social, que permite explicar sua
sobrevivência histórica e b) a da separação cognoscitiva entre Dogmática e
realidade social. A partir do marco teórico acima situado, podemos agora
pontualizar tais questões entreabertas.
É que um controle epistemológico-funcional não pode se limitar à
contrastação direta entre funções declaradas da Dogmática Penal e
operacionalidade do sistema penal, partindo dos próprios pressupostos
dogmáticos. Mas deve partir de uma reinterpretação global do paradigma que,
acorde com as indicações do saber eleito, chegue ao controle de sua auto-
imagem funcional (funções declaradas) desde o controle de sua auto-imagem
genérica.
Nesta perspectiva, a primeira indicação fundamental que retemos é a
necessidade de inserção analítica da Dogmática no âmbito do sistema penal, o
que conduz a ressignificar sua auto-imagem como Ciência (neutra) do Direito
Penal. Pois, para além de uma instância científica externa, isto é, sobre o
Direito Penal, trata-se de uma instância funcional interna181 ao sistema penal.
Operando como instância do sistema penal ela ocupa uma posição no
seu interior, situando-se, precisamente, como código de comunicação entre os
seus níveis definicional ou programacional (legislação penal-criminalização
primária) e operacional (Justiça- criminalização secundária).
183 . Sobre o acordo semântico para o emprego do signo ideologia nesta tese ver nota "21" do
terceiro capítulo.
funcionamento "dentro" da legalidade, igualdade e segurança jurídica e, portanto,
em torno ao monopólio da força assumido pelo Estado moderno. Concorre, desta
forma, para conformar um tipo de imaginário social sobre o sistema penal, ao
mesmo tempo em que oculta a sua real funcionalidade.
Não se trata de afirmar, contudo, que o discurso dogmático sobre o
Direito Penal (assim como o discurso criminológico) haja assumido
conscientemente uma função legitimadora mas que tem produzido , como
conseqüência de seu discurso, efeitos de legitimação. Do mesmo modo, em
momento algum este discurso assumiu-se como discurso do "controle penal".
Em quarto lugar, a inserção da Dogmática Penal como instância do
sistema penal - ponto de partida do seu controle - conduz a retomar a relação
funcional entre Dogmática e realidade social para além da relação funcional,
dogmaticamente imaginada, entre seu modelo científico e a aplicação judicial do
Direito Penal, abstratamente considerada.
É que nesta perspectiva a relação Dogmática Penal-realidade social
passa a ser concebida como relação Dogmática Penal-sistema de controle sócio-
penal-sistema social.
Seu lugar de materialização na realidade social é, portanto, o locus
contraditório, conflitivo e violento do sistema penal, que expressa contradições
inscritas na Sociedade e no Estado e não o locus apolítico por ela idealizado
(aplicação científica e neutra da lei penal pelo Judiciário).
Por último, os dados historiográficos, sociológicos e criminológicos
críticos sobre o sistema penal e sobre a ideologia da defesa social permitem
refundamentar o atraso teórico da Dogmática Penal (BARATTA, 1982) e o seu
déficit cognoscitivo. Pois, se a fundamentação deste atraso não é nova, tendo
vindo a se materializar no interior de disciplinas como a Semiologia, a Sociologia
Jurídica, as Teorias críticas do Direito e outras, com estes dados acumulam-se as
perspectivas para se concluir que a Dogmática Penal se apóia em crenças e
fundamentos teóricos totalmente desacreditados pelo conhecimento
contemporâneo.
A partir deste marco teórico é possível então oferecer uma resposta às
duas grandes questões pendentes sobre a relação funcional e a separação
cognoscitiva entre Dogmática Penal e realidade social.
Nesta perspectiva, entendemos que a crítica do sistema penal,
possibilita, embora indiretamente, não apenas uma interpretação da sobrevivência
dogmática, mas gera um "quadro desconcertante" (ZAFFARONI, 1989, p.431)
para a sua vigência, hoje, ao mesmo tempo em que cria as condições para um
questionamento mais profundo de sua crise, diante das quais buscamos identificar
sua especificidade e a partir das quais hoje se prediz, acrescente-se, as bases de
sua (re)construção/transformação, no horizonte de um novo modelo (integrado?)
de Ciência Penal.
É neste marco analítico que recolocamos e a partir dele pretendemos
responder àquelas indagações originárias.
CAPÍTULO V
1. Introdução
186 . O "centralmente orientada" significa que, tanto neste quanto no momento anterior apesar da
exposição destas matrizes ser nuclear e obedecer a uma seqüência utilizamos às vezes
intercaladamente os argumentos de uma em relação à outra e ainda, eventualmente, contribuições
que, embora externas a ambas , são convergentes com seus resultados.
não significou a passagem da barbárie ao humanismo, mas de uma estratégia de
punir a outra, mediante um deslocamento qualitativo do seu objeto (do corpo
para a mente), e objetivos (minimização dos custos econômico e político e
maximização da eficácia).
Neste revisionismo, embora não se ocupando diretamente da
Dogmática Penal, FOUCAULT percorre a trajetória de constituição do moderno
saber penal que vai do saber clássico (desde o discurso reformista, simbolizado
especialmente na obra de BECCARIA) ao criminológico evidenciando sua
conexão com a constituição do moderno poder penal e suas exigências latentes e
reais de dominação e ressignificando, desta ótica, a reforma penal iluminista, a
linha jurídica de formulação do "Direito Penal do fato" e a criminológica do
"Direito Penal do autor". Por esta via, possibilitar ressignificar também a
chamada "luta" entre as Escolas Clássica e Positiva e a disputa pela hegemonia
entre Dogmática penal e Criminologia que a ela se seguiu bem como a
convergência funcional latente e real de ambas no marco do sistema penal.
187 Por "ilegalidade de bens" FOUCAULT designa a criminalização ou tipificação das condutas
contrárias à propriedade privada que passa a assumir o primeiro posto em relação às condutas
contrárias à pessoa, como a vida, a liberdade etc., designadas por "ilegalidade dos direitos".
Foi assim que a reforma penal nasceu do ponto de interseção entre a
luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infra-poder das ilegalidades
conquistadas e toleradas. E sob o influxo desta dupla exigência é que vimos
formar-se, durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na
prática penal cotidiana como na crítica das instituições, uma nova estratégia para o
exercício do poder de punir que assumiu a forma de um projeto global para a sua
redistribuição. (FOUCAULT, 1987, p.75-6 e 80-1)
A conjuntura que viu nascer a reforma não é, portanto, a de uma nova
sensibilidade e respeito pela "humanidade" dos condenados - os suplícios são
ainda freqüentes - mas a de uma outra política em relação às ilegalidades e à
punição cujo verdadeiro objetivo
Desde suas formulações mais gerais, pois, a reforma deve ser lida
como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir, que objetiva
fundamentalmente diminuir seu custo econômico (dissociando-o do sistema de
propriedade, de compra e vendas, da venalidade tanto dos ofícios quanto das
próprias decisões) e seu custo político (dissociando-o do arbitrário poder
monárquico) aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos, de acordo
com modalidades que o tornam mais regular, mais constante e mais bem detalhado
em seus efeitos. Em suma, "constituir uma nova economia e uma nova tecnologia
do poder de punir; tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma
penal no século XVIII." (FOUCAULT, 1987, p.81-2)
Não tendo sido protagonizada pelo discurso dos ideólogos iluministas
ressalta dele, todavia, uma "notável coincidência" com esta estratégia reformista
global (FOUCAULT, 1987, p.75-6). Pois o que os ideólogos criticam não é tanto
ou apenas os privilégios, a arbitrariedade, a arrogância arcaica ou os direitos
incontroláveis da justiça; mas antes a mistura entre suas lacunas e seus excessos -
a distribuição mal regulada do poder - e sobretudo o princípio do qual provém
esta disfunção: o superpoder monárquico que identifica o direito de punir com o
poder pessoal do soberano.
Assim é a
"(...) que deve dar eficácia ao sistema punitivo implica num certo
número de medidas precisas. Que as leis que definem crimes e
prescrevem as penas sejam perfeitamente claras 'a fim de que cada
membro da sociedade possa distinguir as ações criminosas das ações
virtuosas'. Que essas leis sejam publicadas, e cada qual possa ter acesso
a elas; que se acabem as tradições orais e os costumes, mas se elabore
uma legislação escrita, que seja 'o monumento estável do pacto social',
que se imprimam textos para conhecimento de todos (...)"
(FOUCAULT, 1987, p.87)
"(...) desde que funciona o novo sistema penal - o definido pelos grandes
códigos dos séculos XVIII e XIX - um processo global levou os juízes a julgar
coisa bem diversa do que crimes; foram levados em suas sentenças a fazer
coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a
instâncias que não são as dos juízes de infração. A operação penal inteira
encarregou-se de elementos e personagens extrajurídicos."
"Não há uma justiça penal destinada a punir todas as práticas ilegais e que,
para isso, utilizasse a polícia como auxiliar, e a prisão como instrumento
punitivo, deixando no rastro de sua sombra o resíduo inassimilável da
'delinqüência'. Deve-se ver nessa justiça um instrumento para o controle
diferencial das ilegalidades.
...............................................................................................................
Os juízes são os empregados, que quase não se rebelam, desse mecanismo.
Ajudam na medida de suas possibilidades a constituição da delinqüência, ou
seja, a diferenciação das ilegalidades, o controle, a colonização e a utilização
de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante."(FOUCAULT, 1987,
p.248)
194 .Neste mesmo sentido pondera BUSTOS RAMÍREZ (1983, p.31), que a contradição da
Dogmática Penal consiste em que se por um lado nasce como um limite do Estado e uma garantia
do indivíduo, por outro pode ser utilizada como mera técnica de dominação.
195 . Neste particular, FOUCAULT, opondo igualdade jurídica universal e disciplina, poder jurídico
(Justiça) como produtor da condenação e poder disciplinar-normalizador (Prisão) como produtor
da delinqüência atribui à prisão e ao poder disciplinar nela exercido uma função central na
produção de uma "ilegalidade separada e útil" e daí a idéia do sistema penal como controle seletivo
da criminalidade.
E é precisamente esta lógica seletiva de operar radicada na
construção do universo da criminalidade mediante a diferenciação ou seleção de
pessoas, que FOUCAULT põe em evidência desde a fundação do sistema penal
que ocupará, da Criminologia da reação social à Criminologia crítica, por isso
mesmo chamada em seu conjunto de "Criminologia da seleção"196 (DIAS e
ANDRADE, 1984, p.386-7) a atenção central e receberá neste marco teórico uma
fundamentação decisiva e hoje considerada irreversível.
São seus resultados a este respeito que circunscrevem especialmente o
nível de investigação da "criminalização secundária" 197 - que nos interessa num
primeiro momento focalizar para o que iniciamos retomando os principais
argumentos, também já indicados, em que se fundam : a) o papel criador do juiz,
b) a cifra negra da criminalidade e c) a criminalidade de colarinho branco.
A Criminologia da reação social, por sua vez, cuja orientação subscrevemos aqui, trata de
demonstrar que a criminalidade é seletivamente construída pela inteira dinâmica do controle sócio-
penal e que o conjunto das agências formais de controle - e não apenas a prisão - concorrem
nesta construção. E neste sentido, tanto relativiza a centralidade que FOUCAULT atribui à prisão
na produção da delinqüência quanto demonstra que inexiste a oposição condenação igualitária x
execução penal disciplinar e assimétrica, totalizadora da vida do criminoso. Pois, a construção
seletiva da criminalidade antecede e atravessa inteiramente à Justiça. E neste sentido as variáveis
relativas ao autor criminoso têm um peso muito maior na sentença penal do que FOUCAULT lhe
atribui.
Obviamente que há que se levar em conta aqui o que já salientamos na nota nº "28" do capítulo
quarto: a genealogia de Foucault se ocupa de explicar a função da prisão na gênese do moderno
sistema penal. Daí sua ênfase na sua função educativa e disciplinar que hoje se reduz a pura
ideologia.
As teorias do labelling approach são explicativas do funcionamento atual do sistema penal e neste
contexto também se explicam suas teorias sobre as "carreiras criminosas" (desvio secundário) e
todas as demais hoje voltadas para as funções simbólicas da pena.
196 .Expressão que utilizaremos ocasionalmente para designar ambas as Criminologias ao mesmo
tempo.
197 . Conforme indicamos no item "6.2" do capítulo anterior.
- O papel criador do juiz e dos demais agentes do controle social
198 .Isto é, os registros relativos à atividade das agências do sistema penal, nos limites de uma dada
circunscrição e publicadas por regularidade.
"(...) o certo é que a estatística criminal não informa quase nada a respeito da
chamada 'criminalidade real', mas proporciona dados bem precisos sobre a
magnitude e qualidade da criminalização (Pilgram), aspecto que de modo
algum pode descuidar-se." (ZAFFARONI, 1984)199
199 .Ainda consoante ZAFFARONI (1984a, p.144) "Nos países do capitalismo central a estatística
criminal assume o valor de dado bastante preciso acerca da criminalização, mas nos países do
capitalismo periférico a informação estatística só proporciona o conhecimento de um setor da
criminalização e da reação social, dado que outro fica à margem dela, como são as sanções não
institucionalizadas, isto é, desaparições forçosas e involuntárias (ONU I), execuções extralegais
(ONU II), torturas e tratos desumanos (ONU III e IV), o que é bastante freqüente na América
Latina (...) e no mundo, onde aumentam as violações aos Direitos Humanos, apesar das
manifestações declarativas [João Paulo II (I), Puebla]. Com esta última observação fica dito que as
estatísticas não registram os crimes do poder político e econômico, os que não só se 'filtram' no
sistema penal, mas que freqüentemente ficam fora do primeiro filtro, quer dizer, do primeiro nível
de seleção normativa abstrata."
- A criminalidade oculta e a redefinição do conceito corrente de
criminalidade: a criminalidade como conduta majoritária e ubícua e não
de uma minoria criminal
200 . HASSEMER e COÑDE (1989, p.47) assinalam neste sentido que os dados mais importantes
sobre a cifra negra se resumem assim:
- a criminalidade real é muito maior que a oficialmente registrada;
- no âmbito da criminalidade menos grave a cifra obscura é maior que no âmbito da criminalidade
mais grave;
- a magnitude da cifra obscura varia consideravelmente segundo o tipo de delito;
- na delinqüência juvenil é onde se dá uma maior porcentagem de delinqüência com uma
relativamente menor quota sancionatória;
- a quota sancionatória é responsável também pelo fortalecimento de carreiras criminais;
- a impossibilidade de ficar na cifra obscura depende da classe social a que pertence o delinqüente.
201 . Entre as quais se incluem as pesquisas de 'autodenuncia' (self-reporter survey).
"(...) a criminalidade não é um comportamento de uma minoria restringida,
como quer uma difundida concepção (e a ideologia da defesa social ligada a
ela), mas, ao contrário, o comportamento de amplos estratos ou até da
maioria dos membros de nossas sociedades." (BARATTA, 1991a, p.103)
Tais revelações foram decisivas, por sua vez, para a conclusão de que
a "imunidade e não a criminalização é a regra no funcionamento do sistema penal"
(HULSMAN, 1986, p.127) pois há uma seletividade estrutural traduzida na
enorme distância que medeia entre a magnitude da abrangência da programação
penal e a capacidade operacional do sistema penal.
Neste sentido,
"O modo como o sistema da justiça criminal intervém sobre este limitado
setor da violência 'construído' através do conceito de crime é estruturalmente
seletivo. Esta é uma característica de todos os sistemas penais. Há uma
enorme disparidade entre o número de situações em que o sistema é chamado
a intervir e aquelas em que este tem possibilidades de intervir e efetivamente
intervém. O sistema de justiça penal está integralmente dedicado a
administrar uma reduzidíssima porcentagem da infrações, seguramente
inferior a 10%. Esta seletividade depende da própria estrutura do sistema,
isto é, da discrepância entre os programas de ação previstos nas leis penais e
as possibilidades reais de intervenção. A imunidade , e não a criminalização ,
é a regra no modo de funcionamento do sistema." (BARATTA, 1993, p.49)
202 .Uma expressiva resenha bibliográfica encontra-se em BARATTA, (1982b, p.43, nota 28,"c","d"
e "e" e p.50, nota 40).
"(...) um efeito sobre os resultados seletivos do sistema jurídico-penal que não
é em absoluto menor do que tem as variáveis oficialmente reconhecidas, ou
seja, aquelas que estão submetidas à obrigação de justificação e aos critérios
das ações profissionais." (BARATTA, 1982b, p.51)
- Seleção judicial
207 De fato, não é necessário porque bastaria, por exemplo, recorrer ao próprio SUTHERLAND e a
linha de investigação da criminalidade de colarinho branco por ele entreaberta.
Embora explicativa, nos termos antes aludidos, do conjunto das
decisões dos operadores do controle penal, uma teoria da criação judicial no
marco do paradigma da reação social se projetou, especialmente , como uma
Sociolocia (teórica e empírica) da seleção operada pelos juízes e tribunais em
cujo centro se encontram e assumem importância explicativa fundamental os
conceitos já aludidos.
Assim, se a teoria da criação judicial desde há muito colocou em
evidência que o espaço pelo qual a discricionariedade judicial ingressa é,
preliminarmente, pelo da vagueza e/ou ambigüidade da linguagem da lei208; se
projetada para o Direito Penal209 já permitiu evidenciar, por isto mesmo, a
debilidade do princípio da legalidade para cumprir uma função de garantia
(segurança jurídica); no marco da reação social ensejará a conclusão de que
210 . Desenvolvidamente sobre tais contradições e abertura de soluções decisórias ver BASTOS
(1990, p.52-9) e WARAT (1989, p.102-3)
211 . A respeito deste conceitos ver item "6.1" do terceiro capítulo.
indica que com estes juízos não se "descrevem" qualidades existentes no
sujeito,212 mas que são atribuídas a ele as correspondentes qualidades.A
determinação da responsabilidade é, portanto, uma atribuição de responsabilidade
e os pressupostos de tal determinação são critérios normativos construídos pelo
Direito que correspondem não a fatos mas a tipos de fatos (tipos penais) que
condicionam "normativamente" e não "ontologicamente" a imputação de
responsabilidade. (BARATTA, 1988, p.6660)
Além disso,
"(...) cada procedimento tem que principiar sob condição prévia de que
qualquer coisa pode, dentro do vasto quadro dos fatos gerais e conhecidos ser
outra coisa ( por fatos gerais e conhecidos entende-se: conhecidos do juiz
através de sua atividade oficial). A sentença não pode já ser tão facilmente
obtida a partir de preconceitos. No lugar de preconceitos têm que entre pré-
conceitos." (LUHMANN, 1980, p.58)
213 . É, de resto, esta indeterminação (que permite a possibilidade de qualquer dos contendores
acreditar no triunfo de sua causa) que, a par da autonomia sistêmica e da diferenciação, distinguem
o processo moderno face àquele das sociedades arcaicas e pré-modernas.
É que, como demonstrou FOUCAULT, a inscrição oficial de um
(contra) Direito Penal do autor no interior de um Direito Penal do fato, via
individualização judicial (e penitenciária) da pena integrava necessariamente a
lógica de controle diferencial do moderno sistema penal e que o seu exercício de
poder - a seleção de pessoas - se desenvolve por dentro desta aparente
contradição. Assim sendo, o moderno sistema penal interpelou oficialmente os
juízes a ultrapassar o universo do Direito Penal do fato e fazer da sentença muito
mais do que um julgamento de culpa do autor pelo seu ato (responsável em
função de certos critérios da vontade livre e consciente) para buscar na biografia
do autor, um juízo de (a)normalidade e uma prescrição técnica para uma
normalização possível.
Ao radiografar o curso deste desenvolvimento a Criminologia da reação
social demonstra que da abertura (oficial) do sistema para o (contra) Direito Penal
do autor à sua colonização pelo criminoso estereotipado foi apenas um passo e,
se acrescente, amplamente preparado pela Criminologia positivista.
217 .Seguindo a distinção operada por H.L.A. Hart entre juízos descritivos e juízos atributivos
atribuído a determinados indivíduos mediante uma dupla seleção: em primeiro
lugar, pela seleção dos bens jurídicos penalmente protegidos e dos
comportamentos ofensivos a estes bens, descritos nos tipos penais; em segundo
lugar, pela seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos aqueles que
praticam tais comportamentos. (BARATTA, 1991a, p.167)
A interpretação estrutural da fenomenologia da seletividade como
fenomenologia da desigualdade social parte assim da análise da criminalização
primária para a criminalização secundária resgatando o fenômeno da distribuição
seletiva dos "bens jurídicos" e chegando, por esta via, a uma desconstrução
unitária e acabada da ideologia da defesa social.
Assim, o processo de criação de leis penais (criminalização primária)
que define os bens jurídicos protegidos, as condutas tipificadas como crime e a
intensidade da pena (que freqüentemente está em relação inversa com a
danosidade social dos comportamentos), obedece a uma primeira lógica da
desigualdade que, mistificada pelo chamado "caráter fragmentário" do Direito
Penal, pré-seleciona, até certo ponto, os indivíduos criminalizáveis. E tal diz
respeito, simultaneamente, aos "conteúdos" e aos "não-conteúdos" da lei penal.
Quanto aos "conteúdos" do Direito Penal abstrato, esta lógica se revela
no direcionamento predominante da criminalização primária para atingir as formas
de desvio típicas das classes e grupos socialmente mais débeis e marginalizados.
Enquanto é dada a máxima ênfase à criminalização das condutas contrárias às
relações de produção (crimes contra o patrimônio individual) e políticas (crimes
contra o Estado) dominantes e a elas dirigida mais intensamente a ameaça penal; a
criminalização de condutas contrárias a bens e valores gerais como a vida, a
saúde, a liberdade pessoal e outros tantos não guarda a mesma ênfase e
intensidade da ameaça penal dirigida à criminalidade patrimonial e política.
Simultaneamente são preservadas, seja pela omissão ou criminalização simbólica,
as condutas desviantes típicas das classes sociais hegemônicas (detentoras do
poder econômico e político) cuja gravidade, embora difusa, é muitas vezes
superior à chamada criminalidade "tradicional". Criam-se, assim, zonas de
imunização para comportamentos cuja danosidade se volta particularmente contra
as classes subalternas.
E a seleção criminalizadora é visível desde a diversa formulação
técnica dos tipos penais e a espécie de conexão que eles determinam, por
exemplo, com o mecanismo das agravantes e das atenuantes. (é difícil que se
realize um furto não "agravado"). Enquanto as redes dos tipos são, em geral,
muito finas quando se dirigem às condutas típicas contra o patrimônio e o Estado
são freqüentemente mais largas quando os tipos penais têm por objeto a
criminalidade econômica e outras formas de criminalidade típicas dos indivíduos
pertencentes às classes no poder. Por todos estes mecanismos, estes crimes têm
também, desde sua previsão abstrata, uma maior probabilidade de permanecerem
impunes.
Quanto aos "não-conteúdos", o chamado "caráter fragmentário" do
Direito Penal que os juristas geralmente justificam como um dado da natureza das
coisas ou pela pretensa relevância penal e idoneidade técnica de certas matérias
em detrimento de outras se revela como uma lei de tendência. Pois tais
justificações constituem uma ideologia que encobre o fato de que o Direito Penal
tende a privilegiar os interesses das classes dominantes e a imunizar do processo
de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a
elas pertencentes, e ligados funcionalmente à exigência da acumulação capitalista,
e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de
desvio típicas das classes subalternas.
Nesta perspectiva, o processo de criminalização secundária não faz
mais do que acentuar o caráter seletivo do Direito Penal abstrato. Pois as
maiores chances de ser selecionado para fazer parte da população criminosa e ser
sujeito de sanções, especialmente as estigmatizantes, como a prisão, aparecem,
de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariado e
grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho (desocupação,
subocupação, falta de qualificação profissional) e defeitos de socialização familiar
e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais
baixos, e que na Criminologia positivista e em boa parte da Criminologia liberal
contemporânea são apontados como as causas da criminalidade, revelam ser,
antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é
atribuído.(BARATTA, 1991a, p.171-2)218
Considera assim que "A variável principal da distribuição desigual do
status de delinqüente parece indubitavelmente ser, à luz das investigações recentes,
a posição ocupada pelo autor potencial na escala social." (BARATTA, 1982b,
p.43, nota 30)
A corroborar tal constatação BARATTA (1991a, p.186-188) sumaria os
resultados das investigações empíricas 219 sobre os second code (estereótipos,
preconceitos, teorias de todos os dias) que guiam as decisões judiciais.
Com base nestes resultados conclui ser possível afirmar que, em geral,
existe uma tendência por parte dos juízes de esperar um comportamento
conforme à lei dos indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores; o
inverso ocorre com os indivíduos provenientes dos estratos inferiores. Orientados
por uma imagem estereotipada da criminalidade os juízes tendem, como ocorre
no caso do professor e dos erros nas tarefas escolares, a procurar a verdadeira
218 . No mesmo sentido do exposto ver também CIRINO DOS SANTOS, 1984, p.102-110.
219 .Refere
em especial as investigações de K.D.OPP e A.PEUCKERT, J.FEEST e
J.BLANKENGURG,J HOGAR, R.L.HENSEL e R.A.SILVERMANN e D.PETERS.
criminalidade principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperá-
la.
Assim, tais investigações empíricas tem colocado em relevo as
diferenças de atitude emotiva e valorativa dos juízes, em face de indivíduos
pertencentes a diversas classes sociais que os conduzem, inconscientemente, a
tendência de juízos diversificados conforme a posição social dos acusados, e
relacionadas tanto à apreciação do elemento subjetivo do crime (dolo, culpa)
quanto ao caráter sintomático do delito em face da personalidade (prognose sobre
a conduta futura do acusado) e, pois, à individualização e à mensuração da pena
deste ponto de vista. A distribuição das definições criminais se ressente, de modo
particular, da diferenciação social.
Especialmente significativa a respeito da individualização da pena é
que nas hipóteses de cominação alternativa de sanções pecuniárias e detentivas
os critérios de escolha funcionam nitidamente em desfavor dos marginalizados e
do subproletariado, no sentido de que prevalece a tendência a considerar a pena
detentiva como mais adequada, no seu caso, porque é menos comprometedora
para o seu status social já baixo. Assim, as sanções que mais indicam sobre o
status social são usadas, preferencialmente, contra aqueles que já o tem debilitado.
Também tem sido demonstrado que o insuficiente conhecimento e
capacidade de penetração por parte do juiz no mundo do acusado é desfavorável
aos indivíduos provenientes dos estratos inferiores da população. E isto não
somente pela ação exercida por estereótipos e preconceitos, mas também pelas
chamadas teorias de todos os dias, que o juiz tende a aplicar na reconstrução da
verdade judicial.
Por sua vez, a dupla seleção (criminalização primária e secundária)
operada pelo sistema penal não atua isoladamente, mas se insere no âmbito de
um controle social informal e de seleção de maior amplitude220 que com aquela
se dialetiza de forma que
"Desde o ângulo dos processos funcionais e integradores do sistema penal
oficial, podemos assinalar dentro desse complexo:a) os processos informais
de reacão social que correm paralelos aos processos de criminalização
oficiais (definicões comuns da criminalidade), 'a distância social' a respeito
de quem é submetido a sanções, a 'proibição de coalizão' e a 'obrigação de
coalizão', assim como os que constituem um início para processos oficiais de
criminalização ( a disposição de apresentar uma denúncia, ou de depor como
testemunha); b) deve ser considerada, ainda, uma série de processos que
transcorrem em instituições cuja relação com o processo oficial de
criminalização é mais bem indireta e quicás não foram ainda investigados
em toda sua complexidade pela análise sociológica contemporânea. Pense-se,
por exemplo, na importância dos processos sociais de marginalização
pertencentes ao mecanismo do mercado de trabalho e à seleção escolar.
Estes fatores, junto com o sistema de direito penal e os controles sociais
informais, conduzem à formação de setores entre os quais com
preponderância se recruta, para falar em termos de FOUCAULT, a
'população criminal', isto é, a maioria daqueles sobre os quais se concentra a
ação do sistema penal." (BARATTA, 1982b, p.49-50)221
220 .A respeito da inserção do sistema penal como um todo e do cárcere em particular no continnum
da seleção operada pelo controle social informal , em especial pelo sistema escolar e o mercado de
trabalho ver BARATTA (1991a, p. 179 et.seq).
221 . Sobre os conceitos utilizados pelo autor nesta citação ver nota nº 38 da mesma referência
bibliográfica.
Conclui então BARATTA (1976, p.10; 1982b, p.42-3 e 1991a, p.168)
que os resultados da análise teórica e de uma série inumerável de pesquisas
empíricas sobre os mecanismos de criminalização tomados em particular e em seu
conjunto podem ser condensados em três proposições que constituem a negação
radical do "mito do Direito Penal como direito igualitário"222 que está na base da
ideologia da defesa social.
Tais são:
a) O Direito Penal não defende todos e somente os bens essenciais nos
quais todos os cidadãos estão igualmente interessados e quanto castiga as ofensas
aos bens essenciais ,o faz com intensidade desigual e de modo parcial
("fragmentário");
b) A lei penal não é igual para todos. O status de criminal é
desigualmente distribuído entre os indivíduos;
c) O grau efetivo de tutela e da distribuição do status de criminal é
independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei,
pois estas não constituem as principais variáveis da reação criminalizadora e de
sua intensidade.
Eis aí evidenciada a "contradição fundamental de todo o Direito
burguês entre igualdade formal dos sujeitos de direito e desigualdade substancial
dos indivíduos, que, neste caso, se manifesta em relação às chances de serem
definidos como criminosos" (BARATTA, 1991a, p.168). Pois "o desigual
tratamento de situações e de sujeitos iguais no processo social de definição da
"criminalidade", responde a uma lógica de relações assimétricas de distribuição do
poder e dos recursos da sociedade." (BARATTA, 1983b, p.146)
Mas BARATTA (1986, p.80-1) insiste também na debilidade da
legalidade face às exigências do poder, já que cada vez que a lógica do conflito
222 . O qual circunscrevemos no item "8" do terceiro capítulo.
ultrapassa as previsões legais de intervenção punitiva esta também ultrapassa e
inclusive transborda os limites da legalidade.
Assim,
"Em inúmeras situações locais, estudos e controles realizados por instituições
e comissões de defesa dos direitos humanos, nacionais e internacionais, tem
colocado em evidência as graves e até gravíssimas violações apresentadas
pelo funcionamento da justiça criminal com relação a quase todas as normas
previstas para a defesa dos direitos humanos neste campo na legislação local
e nas convenções internacionais. Trata-se de graves e gravíssimas
ilegalidades cometidas por parte de órgãos de polícia, no processo penal e na
execução das penas. Em não poucos casos se trata de desvios de leis e
ordenamentos nacionais frente a princípios de direito penal liberal nacional e
internacional." (BARATTA, 1989d, p.13)
223 .Para HULSMAN (1993, p.75) também o sistema penal reforça, visivelmente, as desigualdades
sociais.
224 .A Pesquisa empírica dirigida por ZAFFARONI junto ao Instituto Interamericano de Direitos
Humanos e cujo informe final de sua autoria foi publicado em 1984 (ZAFFARONI, 1984a e
1984b) pode ser considerada o mais completo documento crítico sobre a realidade dos sistemas
penais latino-americanos. E sobre os resultados empíricos obtidos nesta pesquisa, associados à
recepção crítica dos marcos teóricos descontrutores/deslegitimadores do sistema penal oriundos
do capitalismo central é que se baseia seu posterior "Em busca das penas perdidas" (1991) e
outros artigos (1989) que, por consubstanciar suas conclusões mais atualizadas de base teórico-
empírica aludimos aqui.
reação social sobre a operacionalidade do sistema penal também para a região, ao
atribuir-lhe "a inquestionável vantagem de descrever detalhadamente - com um
arsenal ao qual não se pode imputar nenhum enfeite teórico - o processo de
produção e reprodução da delinqüência." (ZAFFARONI, 1991, p.60)
É que, como coloca em evidência, todos os sistemas penais
apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que,
cancelando o discurso jurídico-penal, se materializam no centro e na periferia do
capitalismo mundial e que, por constituírem marcas de sua essência, não podem
por sua vez ser eliminadas sem a supressão dos próprios sistemas penais.
(ZAFFARONI, 1991, p.15)
Assim,
"A análise do poder do sistema penal nos mostra hoje claramente que o poder
seletivo do sistema penal - inegável a estas alturas em qualquer país - não o
tem primeiro o legislador, logo o juiz, por último as agências executivas, mas
tudo ao contrário: exerce o poder do sistema o conjunto de agências
executivas, com poder configurador, e seletivo, haja vista que seleciona uns
poucos casos que submete à agência judicial. A agência legislativa se limita a
conceber âmbitos de seletividade que são exercidos pelas agências
executivas, ficando a judicial no meio de ambas, com poder muito limitado."
(ZAFFARONI, 1989, p.435-6)
Em suma,
227 .A respeito ver também ZAFFARONI, 1989, p.437; 1991, p.197, 203-204 e 212-3 e
BARATTA, 1988, p.6659.
228 .A respeito ver HASSEMER, 19-- e 1991; TERRADILLOS BASOCO, 1991; BARATTA,
1991b; MELOSSI, 1991; MUÑOZ G., 1991; EDWARDS, 1991; GÓMEZ DE LA TORRE,
1991; BUSTOS RAMÍREZ, 1991; KERCHOVE, 1984 e 1992; ANYIAR DE CASTRO,1987,
p.93-4; SANGUINÉ, 1992; PAUL, 1991.
se encontre na respectiva literatura um significado preciso, existe um acordo
global a respeito da direção na qual se busca o fenômeno do Direito simbólico.
Trata-se precisamente de uma oposição entre o "manifesto" (declarado) e o
"latente"; entre o verdadeiramente desejado e o diversamente acontecido; e se
trata sempre dos efeitos e conseqüências reais do Direito Penal. Simbólico no
sentido crítico é por conseguinte um Direito Penal no qual se pode esperar que
realize através da norma e sua aplicação outras funções instrumentais diversas das
declaradas, associando-se neste sentido com engano.
Afirmar assim que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que
ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções
latentes predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica -
e não empírica - destas. A função simbólica é assim inseparável da instrumental à
qual serve de complemento 229 e sua eficácia reside na aptidão para produzir um
certo número de representações individuais ou coletivas, valorizantes ou
desvalorizantes, com função de "engano".
229 . E foi DURKHEIM, em cuja obra culmina a dimensão social do simbolismo, já que foi o primeiro
a manejar complexos íntegros de crenças, frente a seus predecessores que manejavam simbolos
isolados, quem fixou em caráter definitivo que esta função instrumental esta unida, no Direito
Penal, à função simbólica. (TERRADILLOS BASOCO, 1991, p.10)
fracasso do projeto penal declarado mas, por dentro dele, o êxito do não
projetado; do projeto penal latente da modernidade.
Reencontramos novamente aqui outra indicação fundamental da crítica
historiográfica230 que se intersecciona com as grandes linhas da Criminologia
crítica: a explicação do fenômeno reside na distinção entre funções declaradas
(ideológicas) e exigências e funções latentes e na unidade do Direito, isto é, entre
programação normativa e sua aplicação.
Partindo desta distinção/unidade funcional é possível compreender que
o desenvolvimento contraditório do sistema penal não decorre de uma lógica da
aplicação contrária à lógica da normativização mas da unidade entre ambas, o
que significa "atribuir a todo o sistema, e não somente à aplicação, a sua função
real, controlável com os dados da experiência e interpretar como ideologia
legitimante as finalidades do legislador que, até agora, permanecem um programa
irrealizado." (BARATTA, 1991a, p.213-4)
Neste sentido, a discursividade da programação normativa e teleológica
do sistema penal contém, como vimos afirmando, um código ideológico
legitimador que integra e é fundamental ao funcionamento do sistema penal.
Em definitivo, pois,
232 Sobrea caracterização deste movimento e do papel dos meios de comunicação de massa
ver FRANCO, 1991, p.22-27.
ecológica, relações de gênero (homem x mulher) racismo, menores abandonados e
outros tantos, não apenas geram retornos inesperados para um sistema penal em
crise de legitimidade mas também novos desafios para a própria estrutura
(normativa, teórica e institucional) individualista em que assenta. Pois remetem, no
marco de sua lógica, tanto para o problema da responsabilidade penal coletiva e
de pessoas jurídicas quanto para a proteção de interesses difusos e coletivos
como por exemplo, o bem jurídico "patrimônio ecológico".
O horizonte do final de século aparece assim marcado por
reivindicações político-criminais contraditórias para o sistema penal. A
reivindicação de sua redução e abandono convive com a de sua expansão; e se
aquela primeira se faz acompanhar de um fortalecimento das garantias inexistentes,
esta preconiza o próprio abandono de seu reconhecimento formal. Enquanto está
demonstrada a debilidade dos potenciais garantidores do Direito Penal, continua
se apostando neles.
Seja como for, na convivência entre desregulação e (neo)regulação,
longe do Estado e perto do Estado tal horizonte, aqui apenas indicado, parece
testemunhar, mais do que nunca, a ambigüidade do Direito Penal, reatualizando, a
um só tempo, seu potencial técnico repressivo e seu potencial humanista-
garantidor.
O resultado, como a própria crítica também tem indicado, resgata
uma lição fundamental do funcionalismo: persiste a "história da legitimação"apesar
do fracasso. As críticas profundas não alteraram a natureza do sistema, que
sobrevive devido ao seu funcionalismo e a enorme força da retórica benevolente e
neste sentido pode sobreviver indefinidamente. (COHEN, 1985, p.41-2;
FOUCAULT, 1987; HULSMAN, 1993, p.161-2)233
233 Arespeito ver "tabela 1", "fase 3" de COHEN no item "2" e nota "21"do capítulo
anterior.
10. Contrastação entre operacionalidade e metaprogramação dogmáti-
ca do sistema penal
Assim
"Se nos referindo a CICOUREL e a outros introduzimos conceitos como
basic rules ou second code e aludimos com eles à totalidade do
complexo de regras (e dos mecanismos reguladores) que determinam
efetivamente a aplicação que faz o juiz da lei, podemos dizer que as
regras administradas pela metodologia e a dogmática do Direito Penal
e processual penal, cobrem somente parte do processo decisório. A
maioria das regras derivadas de fatores como o comportamento e a
socialização do juiz penal, regras que encontram expressão em seus
prejuízos e esterótipos, escapam da competência da ciência jurídico-
penal. Igualmente escapam a ela outras condições de aplicação da lei
que não dependem da consciência individual dos juízes, mas que
influem de maneira não menos intensa em sua atividade decisória,
como por exemplo os processos de influência derivados da estrutura
organizativa e comunicativa do aparato judicial." (BARATTA, 1982b,
p.51-2)
236 .Embora o horizonte teórico e globalizante no qual se insere nossa investigação não nos permita
verticalizar a análise teórica e empírica sobre a seleção operada pela agência judicial (o que
demandaria uma outra tese) na qual infindáveis estudos estão empenhados, os resultados trazidos
à colação permitem obter apenas conclusões igualmente genéricas mas todavia fundamentais sobre
a passagem da impotência garantidora da Dogmática Penal ao seu poder seletivo e legitimador.
Uma explicitação pontual do uso e da elusão do instrumental dogmático nas decisões judiciais
concretas, remete, todavia, à verticalização assinalada.
Ao invés de uma racionalização decisória para a gestação da igualdade e
segurança jurídica ela tem concorrido para a racionalização da seletividade
decisória e da violação dos direitos humanos consumada pela operatividade do
sistema penal, ao mesmo tempo em que colocado em circulação social sinais de
punição perfeitamente ajustados: o simbolismo da segurança jurídica, que cumpre
efeitos fundamentais de legitimação do sistema penal.
Ao mesmo tempo em que a segurança jurídica aparece empiricamente
falsificada, aparece simbolicamente reafirmada. De modo que "compramos a
suposta segurança que o sistema penal nos vende, que é a empresa de mais
notória insolvência estrutural de nossa civilização." (ZAFFARONI, 1991, p.27)
Conseqüentemente, não é pela efetividade da segurança jurídica , mas
pela instrumentalidade real de eficácia invertida e pela eficácia simbólica de suas
funções declaradas - a "ilusão" da segurança jurídica - que dá sustentação aquela
instrumentalidade que pode ser explicada a conexão funcional da Dogmática
Penal com a realidade social e sua marcada vigência histórica.
Não parecem restar dúvidas, pois, de que na lógica global de
funcionamento do sistema penal a ambigüidade dogmática tem sido
excessivamente apropriada pelas exigências de dominação e legitimação. A
segurança do homem tem sido colonizada e hegemonizada pela exigência de
segurança do próprio sistema social que o sistema penal contribui a reproduzir,
exercendo seu poder contra alguns homens - os mesmos expropriados na partilha
real do poder - em benefício de outros - os seus detentores.
Se os espaços de garantismo que o sistema penal possibilita são, por
sua intrínseca "violência institucional", muito vulneráveis - e uma Justiça Penal
recoberta de garantias formais parece ser um reconhecimento inequívoco disto -
hoje está evidenciado que a apropriação dos potenciais garantidores da Dogmática
Penal - que subsistem, todavia, no simbolismo de suas promessas - para uma ação
rigorosamente correta da Justiça Penal somente pode se dar em situações
contingentes e excepcionais. Mas não tem o poder de reverter a lógica da
seletividade e a arbitrariedade do sistema.
237 .
Se hoje está evidenciado o potencial seletivo desta Criminologia, questão importante entreaberta
é o questionamento do próprio conteúdo seletivo velado ou encoberto da Dogmática Penal. Tal é
precisamente o que sugere BACIGALUPO (1982:68) ao assinalar que "o descobrimento dos
critérios cotidianos de seleção com que operam os órgãos do controle social incidem na vigência
real do princípio constitucional de igualdade perante a lei e sugerem a necessidade de revisar o
conteúdo seletivo implícito das teorias da Dogmática Penal (...)"
Neste sentido, se no marco da Criminologia da seleção tem sido relevada a investigação do second
code de que são portadores os juízes e a opinião pública, não parece ter sido relevada a
interferência do second code do próprio dogmata na sua atividade científica (isto é, na
interpretação e construção teórica da programação penal) e analisado o potencial seletivo do
(seu)código tecnológico que, daí resultante, se interpõe entre a programação penal e as decisões
judiciais.
É é para este que BASTOS (1990, p.53) chama, todavia, a atenção ao constatar que o esforço
dogmático de depuração do sistema legislado deixa entrever, tantas vezes, a "interferência abusiva
de um outro sistema, o do próprio dogmata."
A desconstrução deslegitimadora do moderno sistema penal arrasta
consigo a desconstrução deslegitimadora dos seus paradigmas fundamentais de
sustentação - a Dogmática Penal238 e a Criminologia positivistas - e o próprio
modelo integrado de Ciência Penal que aparece hoje como um modelo
epistemológica e funcionalmente deslegitimado.
238 . Reafirmos aqui o ponto de vista, evidenciado ao longo deste e do capítulo anterior, de que a
deslegitimação do sistema penal e do discurso dogmático-penal opera num continnum de correntes
da Criminologia liberal culminando e atingindo um caráter irreversível com o interacionismo
simbólico que fundamentou a Criminologia da reação social, A respeito ver ZAFFARONI, 1991,
p.60,61,67,69 e 172; BARATTA, 1991a e nota "20" do capítulo anterior.
239 .E a tal vincula a sua crise, caracterizando-a como o "momento em que a falsidade do discurso
jurídico-penal alcança tal magnitude de evidência que este desaba, desconcertando o penalismo
da região. " latino-americana. ( ZAFFARONI,1991,p.14)
da defesa social240 e o abismo que hoje separa o conhecimento dogmático do
conhecimento produzido pelas Ciências Sociais.
240 E a tal vincula a crise da Ciência Penal dogmática (BARATTA, 1991, P.162).
241 . Princípios da legalidade, da igualdade jurídica, do bem e do mal, da culpabilidade, da
legitimidade, da igualdade, do interesse social e do delito natural, do fim e da prevenção.
242 . Que descrevemos no terceiro capítulo, em especial nos itens "8 a 10"
É que, em definitivo, há uma distância abissal entre a abrangência e
complexidade da fenomenologia do sistema penal revelada pela Ciência social e
a apreensão reducionista e idealizada que dela faz a Dogmática Penal.
O milagre da abstração normativa e descontextualização que ela
continua a cumprir até hoje consiste na superposição à imagem do sistema penal
como ele é pela imagem do Direito Penal como ele deveria ser.243
Esta superposição idealista resulta de um reducionismo analítico
mediante o qual a Dogmática Penal:
a) captando o Direito Penal como realidade normativa abstraída ao
invés de inserida na totalidade e unidade funcional do controle sócio-penal e
consubstanciada pela separação estática entre norma e aplicação judicial esgota a
complexa fenomenologia deste controle no trânsito da norma à aplicação judicial,
mediante a qual se interpõe, aproximativamente; b) idealizando a racionalidade do
legislador, do juiz e a sua própria, idealiza aquele trânsito como se o juiz realizasse,
neutra e mecanicamente, a programação penal enunciada pelo legislador e por ela
metaprogramada; c) centrando sua atividade comunicacional racionalizadora onde
apreende, esgota e idealiza a materialização do poder punitivo exclui dela,
conseqüentemente, todo o complexo poder do controle social informal e formal
que não reconhece como constitutivo daquele. Ao mesmo tempo, tendo uma
visão idealizada da atividade jurisdicional exclui dela todas as variáveis que não
reconhece como constitutivas das decisões judiciais.
Por não reconhecer as variáveis relativas ao autor, mas unicamente a
variável conduta/fato-crime como constitutiva das decisões judiciais ela
racionaliza esta num preciso esforço, aliás, de exorcização daquelas. E totalmente
243 . A respeito desta idealização ver especialmente o item "10" do terceiro capítulo.
abstraído, acrescente-se, da Dogmática Processual Penal (que igualmente não as
considera constitutivas do processo penal).
Ao mesmo tempo, por não reconhecer a subjetividade do juiz como
constitutiva das decisões judiciais supõe uma recepção mecanicista por ele da lei e
do seu instrumental decisório; isto é, uma incidência direta sobre a decisão.
Por não ter, enfim, uma visão totalizadora e crítica do próprio sistema
ela também não tem, conseqüentemente, uma consciência crítica de sua própria
relação funcional que vá além de uma relação funcional com a aplicação judicial
do Direito Penal, abstratamente considerada, com o que ratifica, também, a idéia
de neutralidade do Judiciário e da Ciência. Por isso mesmo a Dogmática Penal se
concebe como uma ciência "do" Direito Penal ; ou seja, como uma instância
científica sobre ele, servindo à sua aplicação.
Inserida, pois, numa visão liberal de autonomia do jurídico, em especial
do Judiciário, em relação ao político, que a conduz a exaltar o pilar "de Direito"
do Estado moderno e na ideologia da defesa social, a Dogmática Penal
"neutraliza" o próprio poder punitivo demonstrando uma visceral incapacidade
analítica para apreender seu pólo "capitalista" e a relação entre o penal e o poder.
Neste sentido é fundamental reconduzir o déficit funcional de
garantismo ao déficit epistemológico-cosgnoscitivo, pois, sob um argumento
geral pode-se concluir que a incapacidade estrutural da Dogmática Penal para a
racionalização garantidora deriva de sua própria debilidade analítica e idealismo
cognoscitivo.
Tal como argumenta W. PAUL (citado por BASOCO, 1991, p.14)
"(...) o fato de que o controle jurídico-penal na realidade empírica não
funciona, radica em que a concepção teórica de um direito penal
orientado para fins parte de uma ilusão, ou seja, de pressupostos
idealistas, e esquece que da perspectiva pragmática da práxis do direito
penal este não e mais que um direito instrumental (...)"
O problema, portanto, não está na tentativa de racionalização do "ser"
(operacionalização) a partir do "dever-ser" (programação) mas nos
pressupostos idealizados em que esta tentativa se apóia que, embora a
converta numa tentativa análoga à do legendário "Sísifo", convive com uma
onipotência e uma ilusão racionalizadora.
Desta forma, enquanto a Dogmática Penal racionaliza cada vez menos a
violência punitiva, "por esgotamento de seu arsenal de ficções gastas
"(ZAFFARONI, 1991, p.13) e segue ancorada numa visão idealizada do
funcionamento do Direito Penal, na premissa de sua legitimidade e no discurso da
segurança jurídica, os sistemas penais prosseguem na "desmesura" (RESTA,
1991) de sua violência seletiva e, na América Latina, genocida.
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