Dogmatica Juridica

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DOGMÁTICA E SISTEMA PENAL: EM BUSCA DA

SEGURANÇA JURÍDICA PROMETIDA

Vera Regina Pereira de Andrade

TESE APRESENTADA AO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE
DOUTOR EM DIREITO

Orientador: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha

FLORIANÓPOLIS
1994
TOMO 1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

A TESE DOGMÁTICA E SISTEMA PENAL: EM BUSCA DA


SEGURANÇA JURÍDICA PROMETIDA

elaborada por VERA REGINA PEREIRA DE ANDRADE

e aprovada por todos os membros da banca examinadora, foi julgada adequada para a obtenção do
título de DOUTOR EM DIREITO.

Florianópolis, 20 de dezembro de 1994.

BANCA EXAMINADORA:

Prof. Dr. Leonel Severo Rocha- Presidente

Prof. Dr. Alessandro Baratta- Membro

Prof. Dr. Eugenio Raúl Zaffaroni- Membro

Profa. Dra. Ester Kosovski - Membro

Prof. Dr. Nilson Borges Filho- Membro

Orientador
Prof. Dr. Leonel Severo Rocha

Co-orientador
Prof. Dr. Alessandro Baratta

Coordenador do Curso:
Prof. Dr. José Alcebíades de Oliveira Júnior

Aos meus pais e companheiros, Luiz Carlos e Jacy,


pela sua trajetória de amor, dignidade e luta.

In memoriam, aos meus avós José Orisaldes e


Clotilde, Joaquim e Maria Bethânia, pela sabedoria;
pelas lições e a saudade que me deixaram.

A Alessandro Baratta, pelo brilho da obra e da


militância do cidadão cosmopolita eternizado na
humildade intelectual e na simplicidade do homem.
AGRADECIMENTOS

Aos meus familiares, pela presença.


Ao professor Leonel Severo Rocha, para além da orientação desta tese, pelo inestimável
aprendizado que me oportunizou, ao longo de uma década como sua aluna de mestrado e doutorado;
Ao professor Alessandro Baratta, mestre cujo estímulo e contribuição incansáveis, do além-
mar, foram de importância decisiva para a realização deste trabalho sem esmorecer frente às
dificuldades do caminho;
Ao professor Cesar Luiz Pasold, pela continuidade no Doutorado, das valiosíssimas lições de
mestrado e pelo apoio à carreira acadêmica;
Aos colegas do Curso de Pós-Graduação e Graduação em Direito da UFSC, cujos nomes
deixo de declinar porque foram muitos que emprestaram sua contribuição e apoio nas mais diversas
situações;
Ao professor João José Caldeira Bastos, pela gentileza da leitura e sugestões que fez ao
texto inicial;
Aos coordenadores e funcionários do Curso de Pós-Graduação em Direito, aos chefes e
funcionários do Departamento de Direito Público e Ciência Política e aos diretores e funcionários do
Centro de Ciências Jurídicas, pelo atencioso e competente encaminhamento de tantas solicitações ao
longo do Curso de Doutorado.
Aos professores Rogélio Pérez Perdomo e Wanda Capeller; André-Jean Arnaud e Roberto
Bergalli, cujas portas abertas, orientação e apoio integral recebidos durante a realização de estágio
junto ao Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de Oñati, na Espanha, foram decisivos para
torná-lo, a um só tempo, produtivo e prazeroso;
Aos funcionários do Instituto Internacional Sociologia Jurídica de Oñati, igualmente
incansáveis no atendimento de nossas reivindicações antes, durante e após o estágio;
Aos professores Boaventura de Sousa Santos, Ana Isabel Nicolas e Antônio Garcia-Pablos
de Molina, pela recepção e apoio na pesquisa realizada, respectivamente, no Instituto de Estudos
Sociais em Coimbra e na Universidade Complutense de Madrid;
Ao Daniel Bustelo e Mônica Eliçabe Urriol e a todos os demais parceiros da trajetória de
Oñati;
Aos meus alunos que tem me proporcionado, como meus mestres, ricas experiências e
aprendizado e aos mestrandos, em especial, que contribuíram na ministração de aulas no Curso de
Graduação em Direito;
Ao João Inácio Müller, pela arte final do trabalho; à Lyz Quaresma, Rafael Carmolinga e
Cidnei Soares, pelas traduções; às bibliotecárias da UFSC, Goretti e Marili, pela revisão bibliográfica
À CAPES, pela concessão de bolsa de estudos para estágio no exterior.
Aos amigos e aos que o foram, na colaboração e solidariedade.
RESUMO

Esta tese tem por objeto o modelo dogmático de Ciência Penal - a


Dogmática Jurídico-Penal ou Penal - concebida como um dos paradigmas
científicos emergentes e dominantes na modernidade que integra, como uma das
especialidades da Dogmática Jurídica, o seu projeto e trajetória no marco cultural
onde se originou - a Europa continental - e naquele para o qual foi posteriormente
transnacionalizado - como a América Latina. E se articula a partir de dois
interrogantes fundamentais: tem sido cumprida a função oficialmente declarada
pela Dogmática Penal na e para a modernidade, de racionalizar a violência punitiva
e garantir os direitos humanos individuais na administração da Justiça Penal
(segurança jurídica) em nome da qual tem pretendido historicamente legitimar o
seu ideal de Ciência prática? É pelo cumprimento desta função que se explica sua
marcada vigência na modernidade contra a secular problematização da qual
também tem sido objeto desde sua gênese?
O eixo de gravitação da tese radica, pois, no controle funcional do
paradigma, propondo responder a tais interrogantes mediante uma
reinterpretação genética da Dogmática Penal como Ciência (funcionalmente
ambígua) do sistema penal sob o fio condutor das suas funções declaradas
(promessas) e latentes e dos seus déficit e excessos de realização.
O objetivo geral perseguido, que formulamos como hipótese central da
investigação, é demonstrar que há, no âmbito do moderno sistema penal, um
profundo déficit histórico de cumprimento da função declarada pela Dogmática
Penal ao mesmo tempo em que o cumprimento excessivo de outras funções
(simbólicas e instrumentais) não apenas distintas, mas opostas mesmo às
oficialmente declaradas , que seu próprio paradigma, latente e ambiguamente tem
potencializado desde sua gênese histórica. E são estas, desenvolvidas com êxito
por dentro do fracasso de suas funções declaradas, que explicam sua relação
funcional com a realidade social e sua marcada vigência histórica. As promessas
da Dogmática Penal não apenas se inscrevem na longa agenda das promessas não
cumpridas da modernidade mas nela se inscrevem como uma perversão matriarcal:
uma eficácia inversa à prometida. No desdobramento desta hipótese fundamental
procuramos inventariar argumentos explicativos dos limites dogmáticos na
garantia dos direitos humanos contra a violência punitiva e demonstrar, por
outro lado, a profunda separação cognoscitiva entre Dogmática Penal e
realidade social estabelecendo a relação entre seu déficit de segurança jurídica e
seu déficit epistemológico-cognoscitivo, assinalando a própria funcionalidade
deste último e, enfim, a especificidade da crise que, por estas contradições, se
pode imputar ao paradigma.
A tese está estruturada em cinco capítulos e conclusão, segue um método
de abordagem indutivo e um método de procedimento interno comparativo e
baseia-se em pesquisa bibliográfica interdisciplinar. Genericamente, enquanto a
primeira parte (capítulos I, II e III) trata da Dogmática Penal desde as bases
fundacionais da Dogmática Jurídica em sentido lato e do moderno saber penal, a
segunda parte (capítulos IV e V) trata do moderno sistema penal, também desde
sua fundação, da relação funcional entre Dogmática e sistema Penal e do seu
controle, fundamentando a hipótese central e demarcando os seus
desdobramentos.
Suas conclusões apontam assim para uma relação complexa e contraditória
entre Dogmática Penal e violência que a insere no trânsito da promessa de controle
da violência punitiva à captura por esta mesma violência institucionalizada no
sistema penal e por uma eficácia instrumental inversa à prometida, acompanhada
de uma eficácia simbólica das promessas: a "ilusão" de segurança jurídica. Daí
porque, embora se trate de uma análise essencialmente interpretativa da Dogmática
Penal e não prescritiva do seu futuro, o escopo que a orienta é sumariar um
quadro de contradições que, se desde o pilar da regulação apontam para o
sucesso; desde o pilar dos direitos humanos apontam para o fracasso e a crise da
Dogmática Penal e para a necessidade de uma suspensão e auto-crítica do
dogmatismo na Ciência Penal.
RESUMEN

Esta tesis tiene por objeto el modelo dogmático de Ciencia Penal  la


Dogmática Jurídico penal o penal  concebida como uno de los paradigmas
científicos emegentes y dominantes en la modernidad que integra, como una de las
especialidades de la Dogmática Jurídica, su proyecto y trayectoria en el marco
cultural en que se originó  Europa Continental  y en aquél para el que fue
posteriormente trasnacionalizado  como América Latina. Y se articula a partir
de dos interrogantes fundamentales: ¿ha sido cumplida la función oficialmente
declarada por la Dogmática Penal en la y para la modernidad, de racionalizar la
violencia punitiva y garantizar los derechos humanos individuales en la
administración de la Justicia Penal (seguridad jurídica) en nombre de la cual ha
pretendido legitimar historicamente su ideal de Ciencia práctica? ¿Es por el
cumplimiento de esta función que se explica su marcada vigencia en la modernidad
contra la secular problematización de la que también ha sido objeto desde su
génesis?
El punto de gravitación de la tesis radica, pues, en el control funcional del
paradigma, proponiendo contestar a tales preguntas por medio de una
reinterpretación genética de la Dogmática Penal como Ciencia (funcionalmente
ambigua) del sistema penal bajo el hilo conductor de sus funciones declaradas
(promesa) y latentes y de sus déficit y excesos de realización. El objetivo general
perseguido, que formulamos como hipótesis central de la investigación, es
demostrar que hay en el ámbito del moderno sistema penal, un profundo déficit
histórico de cumplimiento de la función declarada por la Dogmática Penal al
mismo tiempo en que el cumplimiento excesivo de otras funciones (simbólicas e
instrumentales) no sólo distintas, sino opuestas a las oficialmente declaradas, que
su mismo paradigma, latente y ambiguamente ha potencializado desde su génesis
histórica. Y son éstas, desarrolladas con éxito dentro del fracaso de sus funciones
declaradas, que explican su relación funcional con la realidad social y su marcada
vigencia histórica. Las promesas de la Dogmática Penal no sólo se inscriben en la
larga agenda de las promesas no cumplidas de la modernidad sino que en ella se
inscriben como una perversión matriarcal: una eficacia inversa a la prometida. En el
desarrollo de esta hipótesis fundamental buscamos hacer inventario de los
argumentos explicativos de los límites dogmáticos en la garantía de los derechos
humanos contra la violencia punitiva y demostrar, por otro lado, la profunda
separación cognoscitiva entre Dogmática Penal y realidad social estableciendo la
relación entre sus déficit de seguridad jurídica y su déficit epistemológico
cognoscitivo, señalando la funcionalidad misma de este último y, enfin, la
especialidad de la crisis que por estas contradicciones se puede imputar al
paradigma.
La tesis consta de cinco capítulos y conclusión, sigue un métódo de
abordaje indutivo y un método de procedimiento interno comparativo y se basa en
investigación bibliográfica multidisciplinar. Genericamente, mientras la primera
parte (capítulos I, II y III) trata de la Dogmática Penal desde las bases
fundacionales de la Dogmática Jurídica en sentido lato y del moderno saber penal,
la segunda parte (capítulos IV y V) trata del moderno sistema penal, también
desde su fundación, de la relación funcional entre Dogmática y sistema Penal y de
su control, fundamentando la hipótesis central y delimitando sus despliegues.
Sus conclusiones indican una relación cmpleja y contradictoria entre
Dogmática Penal y violencia que la incluye en el tránsito de la promesa de control
de la promesa de control de la violencia punitiva a la captura por esta misma
violencia institucionalizada en el sistema penal y por una eficacia instrumental
inversa a la prometida, acompañada de una eficacia simbólica de las promsas: la
"ilusión" de seguridad jurídica. Por eso, aunque se trate de una análisis
esencialmente interpretativa de la Dogmática Penal y no prescritiva de su futuro, la
intención que la orienta se sumariar un cuadro de contradicciones que, si desde la
base de la regulación indican el éxito; desde la base de los derechos humanos
indican el fracaso y la crisis le la Dogmática Penal y la necesidad de una
suspensión y autocrítica del dogmatismo en la Ciencia Penal.
ABSTRACT

This thesis has its object in the dogmatic model of the Penal Science  the
Penal-Juridical Dogmatic  actually conceived as one of the emergent and
dominant scientific paradigms that takes part (as one of the Juridical Dogmatic
specialties), in its project and way in the cultural boundary where it came from 
the Continental Europe  and in that it was lately transnationalizated  as the
Latin America. It is articulated from two fundamental questions: has the function
officially declared by the Penal Dogmatic been fulfilled in and for the modernity, of
rationalizing the punishable violence and to support the individual human rights in
the management of the Penal Justice (Juridical Security) in the name of which it has
historically intended to legitimate its ideal of pratic Science? Is it by the
compliment of this function that we can explain its strong durability in the
modernity, against the secular problematic of which it has also been the object
since its creation?
The gravitation point of the thesis is located exactly in the functional control
of the paradigm, and it proposes to answer those questions facing a genetic
reinterpretation of the Penal Dogmatic as a Science (functionally doubtful) of the
penal system conducted by its declared (promises) and latent functions and by its
deficit and excessive realizations.
The general objective followed, that we formulated as the central hipothesis
of the investigation, is to demonstrate that there is, in the actual penal system, a
very deep historical deficit of the compliment of the other functions (simbolic and
instrumentals) not only distinct, but opposite of those officially declared, that its
own paradigm, latent and doubhtfully has potencialized since its historic creation.
And these are the functions, developed with efficiency inside the failure ot its
declared ones, that explain its functional relation with the social reality and its
strong historic durability. The promises of the Penal Dogmatic aren't only in the
long list of the not fulfilled modern promises, but they are in it as a change of
direction: an inverse efficacy of the one that was promised. When we unfold this
fundamental hipothesis, we try to inventory explained arguments of the dogmatic
limits in the guaranty of the human rights against the punishable violence, and we
try to demonstrate, on the other hand, the deep knowledge separation between
Penal Dogmatic and social reality, setting the relationship between its juridical
deficit of security and its epistemological-knowledge deficit, marking out this last
own funcionality and them, the especificity of the crises that for these
contradictions, can be imputed to the paradigm.
The thesis is structured in five chapter and a conclusion. if follows a method
of indutive attacking and a method of internal comparaive proceeding, and it is
based on bibliographic research of many different fields. Generically, while the
first part (chapters I, II and III) is about the Penal Dogmatic, since the early basis
of the Juridical Dogmatic "latu sensu" and of the modern penal learning, the
second part (chapters IV and V) is about the modern penal system since its
foundation too, the functional relationship between Dogmatic and Penal system
and its control, basing the central hipothesis and demarcating its many ways of
being.
The conclusions point, therefore, to a complex and contraditory relationship
between Penal Dogmatic and violence that put it in the way of the promise of the
control of the punitive violence to the capture by ths own institucionalizated
violence in the penal system and by an instrumental efficacy opposite of that one
that was promised, with a simbolic efficacy of the promises: the "illusion" of the
juridical security. That's why, although it is an essencially interpretative analysis of
the Penal Dogmatic and not prescriptive of the future, the aim that guides the
thesis, is to summarize a list of contradictions that, if since the sustenance of the
human rights point to a failure and the Penal Dogmatic crisis and for the necessity
of a suspension and auto-critic of the dogmatism in the Penal Science.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................... 1

CAPÍTULO I: CONFIGURAÇÃO E IDENTIDADE DA DOGMÁTICA


JURÍDICA .................................................................................... 23
1. Introdução ............................................................................................................ 23
2.Heranças que marcam o paradigma dogmático de Ciência Jurídica........................... 34
2.1 A herança jurisprudencial...................................................................................... 34
2.2. A herança exegética............................................................................................. 36
2.3. A herança sistemática........................................................................................... 37
3. O positivismo como matriz epistemológica do paradigma dogmático de Ciência
Jurídica................................................................................................................. 39
3.1. A concepção positivista de Ciência....................................................................... 40
3.2. A recepção da concepção positivista de Ciência pela Escola histórica : configuração
e identidade metodológica do paradigma dogmático............................................... 43
- Objeto e tarefa metódica da Dogmática Jurídica............................................ 43
- A Dogmática Jurídica como Ciência prática................................................... 51
- A redefinição das heranças na tipificação historicista do paradigma dogmático 53
4. O positivismo jurídico e sua recepção pelo paradigma dogmático de Ciência
Jurídica.................................................................................................................... 55
4.1. Caracterização do positivismo jurídico.................................................................... 56
- O juspositivismo como approach ao Direito...................................................... 57
- O juspositivismo como teoria............................................................................ 59
- O juspositivismo como ideologia....................................................................... 61
4.2. A recepção do positivismo jurídico pelo paradigma dogmático: da identidade metodoló-
gica à identidade ideológica................................................................................... 63.
- A recepção do approach juspositivista........................................................... 63
- A recepção das teorias juspositivistas............................................................. 66
- A recepção da ideologia juspositivista............................................................ 69
- O significado do dogmatismo na Ciência Jurídica............................................. 71
5. O sentido da Dogmática Jurídica como "Ciência prática" ............................................ 73
5.1. Da identidade ideológica à identidade funcional....................................................... 73
5.2.Uma promessa funcional no interior da promessa epistemológica: ressignificando a
auto-imagem da Dogmática Jurídica ....................................................................... 79
6. O Estado moderno como matriz política do paradigma dogmático de Ciência
Jurídica..................................................................................................................... 81
7. Problematização da Dogmática Jurídica...................................................................... 82
7.1.O estatuto teórico da Dogmática Jurídica e o problema de sua identidade
epistemológica:perfil de uma Metadogmática de controle epistemológico da Dogmática
Jurídica.................................................................................................................... 83
7.2. A Dogmática Jurídica como paradigma científico ..................................................... 96
7.3. Do controle epistemológico ao controle epistemológico-funcional da Dogmática
Jurídica ................................................................................................................... 100
8. Da função racionalizadora declarada de lege ferende à função pedagógica e raciona-
lizadora de lege lata ................................................................................................ 101

CAPÍTULO II: O MODERNO SABER PENAL: CONSOLIDAÇÃO DA DOG-


MÁTICA JURÍDICO-PENAL E SUA RELAÇÃO PRIMÁRIA
COM A CRIMINOLOGIA
1. Introdução ................................................................................................................. 105
2. A Escola Clássica: do saber filosófico ao saber jurídico-filosófico em defesa
do indivíduo................................................................................................................. 109
2.1. A unidade ideológica da Escola Clássica.................................................................... 111
2.2. A unidade metodológica da Escola Clássica.............................................................. 112
2.3 O movimento reformista e a obra de Beccaria: bases filosóficas e ideológicas funda-
cionais do moderno Direito Penal e a promessa de segurança jurídica........................ 114
2.4 O jusracionalismo e as bases jusfilosóficas do Direito Penal liberal ........................... 118
2.4.1 Postulados fundamentais : o senso comum do classicismo ....................................... 120
- Crime (ente jurídico).......................................................................................... 120
- Responsabilidade penal (fundada na responsabilidade moral derivada do livre-
arbítrio)........................................................................................................... 124
- Pena (retribuição e tutela jurídica).................................................................... 125
2.5. O fato-crime no centro do classicismo : a reiteração da promessa de segurança
jurídica no universo do Direito Penal liberal do fato-crime ...................................... 127
3. A Escola Positiva: o saber científico-criminológico em defesa da sociedade................ 130
3.1. Postulados fundamentais: o senso comum do positivismo ........................................ 133
- O método (experimental)................................................................................. 133
- Crime (fato natural e social)............................................................................. 134
- Criminoso....................................................................................................... 138
-Responsabilidade penal (baseado na responsabilidade social, derivada do de-
terminismo e temebilidade do delinqüente)........................................................ 139
- Pena (defesa social)......................................................................................... 141
3.2.O autor-criminoso no centro do positivismo: o Direito Penal intervencionista do autor 143
4. Implicações legislativas das Escolas: da reforma e consolidação do Direito Penal do
fato à reforma para o Direito Penal do autor............................................................. 144
5. Implicações teóricas das Escolas: da luta entre as Escolas à divisão do trabalho
científico e disputa pela hegemonia entre Dogmática Penal e Criminologia....................... 147
5.1. Gênese e hegemonia da Criminologia como Ciência (paradigma etiologico)............. 147
- O modelo de Sociologia Criminal de E.FERRI e a imersão sociológica da
Ciência Penal.................................................................................................. 151
5.2. Matrizes fundacionais do paradigma dogmático de Ciência Penal ........................... 155
- A Escola Técnico-Juridica e o modelo de Ciência Penal de A.ROCCO:a
reação tecnicista............................................................................................ 156
- A crise da Ciência Penal:diagnóstico das causas e correção dos erros............. 157
- Objeto e tarefa metódica da Ciência Penal...................................................... 161
-As etapas do método técnico-jurídico:exegese, dogmática e crítica .................. 163
-A função prática da Ciência Penal ................................................................... 165
-A autonomia e as fontes da Ciência Penal: a resposta ao problema das relações
entre Dogmática e Criminologia ...................................................................... 166
5.2.1.Matrizes do tecnicismo jurídico:K.BINDING e V.LISZT:................................... 169
- O modelo de Ciência Penal de K.BINDING................................................... 171
- A escola sociológica alemã e o modelo de Ciência integral (global, universal,
total ou conjunta) do Direito Penal de V.LISZT............................................... 174
5.3. Da luta escolar à disputa científica Criminodogmática .............................................. 178
6. Consolidação do paradigma dogmático na Ciência Penal e sua relação com o
paradigma etiológico de Criminologia: autonomia metodológica e unidade funcional
na luta contra o crime................................................................................................. 180
7. Do saber filosófico, político e totalizador à especialização e neutralidade das
Ciências criminais: da fundamentação jusfilosófica à fundamentação científica da
promessa de segurança jurídica................................................................................... 185
CAPÍTULO III: ESPECÍFICA IDENTIDADE DA DOGMÁTICA JURÍDI-
CO-PENAL: FUNÇÕES DECLARADAS E METAPROGRA-
MAÇÃO PARA O SEU CUMPRIMENTO
1. Introdução ............................................................................................................... 189
2.A recepção do neokantismo de Baden pela Dogmática Penal: em busca de
uma (re)fundamentação científica................................................................................ 191
3.A auto-imagem da Dogmática Penal........................................................................... 201
4.A auto-imagem funcional : as funções declaradas (promessas) da Dogmática Penal....... 207
5.Dogmática penal e Estado de Direito: o discurso racionalizador/garantidor centrado no
pólo "de Direito" do Estado moderno.................................................................... 214
6.A promessa de segurança jurídica na trilha do Direito Penal liberal do fato-crime: a
conexão método-sistema-segurança jurídica............................................................... 215
6.1.Processo formativo do sistema dogmático do crime................................................ 219
6.2.Sistema do crime e princípio da legalidade............................................................... 224
7.Da hermenêutico-analítica à propedêutica.................................................................. 228
8.Da ideologia liberal à ideologia da defesa social.......................................................... 229
9.Segurança jurídica para quem?................................................................................... 233
10.Da racionalidade do legislador à racionalidade do juiz comunicadas pela racionalidade
do sistema dogmático : o encontro da segurança jurídica com a justiça no Direito
Penal dogmaticamente idealizado............................................................................... 235.
11.Problematização da Dogmática Penal no passado e no presente................................ 238
11.1.A crítica interna à Dogmática Penal e a reafirmação da promessas: uma peregri-
nação intrassistêmica pelas categorias do crime....................................................... 239
- O positivismo naturalista................................................................................... 240
- O neokantismo valorativo................................................................................. 242
- O finalismo....................................................................................................... 245
- A reafirmação das promessas na peregrinação intrasistêmica. ........................... 249
- Requisitos objetivos e subjetivos da imputação de responsabilidade penal na cons-
trução sistemática do crime para a maximização da segurança jurídica ............... 254
11.2 A crítica externa da Dogmática penal........................................................................ 257
- A crítica política : a ambigüidade político-funcional do paradigma ..................... 257
- A crítica metodológica : a ambigüidade metodológica do paradigma ............... 258
12. Tendências contemporâneas no sistema do crime : abertura para a realidade social
ou refuncionalização da Dogmática Penal ? .............................................................. 262
DOGMÁTICA E SISTEMA PENAL: EM BUSCA DA
SEGURANÇA JURÍDICA PROMETIDA

Vera Regina Pereira de Andrade

TESE APRESENTADA AO
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE
DOUTOR EM DIREITO

Orientador: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha

FLORIANÓPOLIS
1994
TOMO 2
CAPÍTULO IV: O IMPULSO DESESTRUTURADOR DO MODERNO SIS-
TEMA PENAL E A MUDANÇA DE PARADIGMA EM
CRIMINOLOGIA: O CONTROLE EPISTEMOLÓGICO-
FUNCIONAL DA DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL .............. 272
1. Introdução ................................................................................................................ 272
2. Caracterização do moderno sistema penal: modelos penais fundamentais e estrutura
organizacional ............................................................................................................ 278
- Modelos penais fundamentais .......................................................................... 281
- Estrutura organizacional ................................................................................... 283
3.O discurso oficial de autolegitimação do poder penal: da legitimação (negativa) pela
legalidade à legitimação (positiva) pela utilidade ......................................................... 285
-A legitimação pela legalidade vinculada ao Direito Penal do fato e à segurança
jurídica : programação normativa do sistema penal ........................................... 287
-A legitimação pela utilidade vinculada ao Direito Penal do autor e à defesa social:
fins da pena ..................................................................................................... 289
-Legitimidade e (auto)Legitimação ...................................................................... 292
4. Da construção (legitimadora) à desconstrução (deslegitimadora) do moderno sistema
penal: delimitando o marco teórico do controle dogmático ......................................... 294
5. Da história oficial às histórias revisionistas da gênese do moderno sistema penal ........ 303
-A história oficial: o enfoque idealista ou ideológico ............................................ 303
-As histórias revisionistas: a crítica historiográfica materialista ............................. 304
- Indicações epistemológicas comuns das histórias revisionistas materialistas ....... 305
6. O labelling approach e o paradigma da reação social: uma revolução de paradigma
em Criminologia ....................................................................................................... 315
6.1 Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: a negação da ideologia da
defesa social .......................................................................................................... 316
6.2. Matrizes teóricas, pressupostos metodológicos, quadro explicativo e teses funda-
mentais do labelling approach: a troca de paradigmas ........................................... 322
- Interacionismo simbólico e construtivismo social modelando o paradigma episte-
mológico do labelling approach ................................................................... 323
- O crime e a criminalidade como construção social: o papel constitutivo da rea-
ção social na construção seletiva da criminalidade ........................................... 325
- O quadro e os níveis explicativos do labelling approach : da dimensão da defi-
nição à dimensão do poder (de definir, selecionar e estigmatizar) e de um modelo
consensual a um modelo pluralista ..................................................................... 328
- O sistema penal (processo de criminalização) numa perspectiva dinâmica e no
continuum do controle social: relatividade do controle penal em relação ao controle
social e do Direito Penal em relação ao sistema penal ........................................ 332
- Mudança de paradigma ................................................................................... 335
7. De um modelo pluralista a um modelo conflitivo: o desenvolvimento da dimensão do
político no paradigma do reação social ....................................................................... 336
8. Do labelling approach à Criminologia crítica ............................................................ 338
8.1. Marco teórico-metodológico, quadro explicativo e teses fundamentais da Criminologia
crítica ................................................................................................................... 338
- Recepção crítica do paradigma da reação social: irrreversibilidade e limites analí-
ticos do labelling approach (de um modelo pluralista a um modelo materialista) 338
- Da descrição da fenomenologia da desigualdade (seletividade) à sua inter-
pretação estrutural: a relação funcional entre sistema penal e sistema social capita-
lista ................................................................................................................. 344
9. A desconstrução epistemológica do paradigma etiológico: dependência metodológica e
aporia criminológica .................................................................................................. 345
10. A reinterpretação da Escola Clássica e da Criminologia positivista como saberes do
controle sócio-penal ................................................................................................ 350
11. Do controle epistemológico do paradigma etiológico de Criminologia ao controle
epistemológico-funcional do paradigma dogmático de Ciência Penal ......................... 353
-Uma nova relação entre Criminologia e Direito Penal como uma relação Ciência-
objeto ............................................................................................................... 354
- Uma nova relação (secundária) entre Criminologia e Dogmática Penal ................. 355
12. Marco teórico e bases do controle dogmático: inserção da Dogmática Penal no âmbito
do sistema penal .................................................................................................... 360

CAPÍTULO V: CONFIGURAÇÃO, OPERACIONALIDADE E FUNÇÕES DO


MODERNO SISTEMA PENAL: DAS FUNÇÕES DECLARADAS
ÀS FUNÇÕES REAIS DA DOGMÁTICA COMO CIÊNCIA DO
SISTEMA PENAL
1.Introdução .................................................................................................................. 367
2. Configuração do moderno sistema penal e seu campo correlato de saber no marco do
sistema capitalista: poder e saber penal ..................................................................... 369
- Ressignificando o saber e a reforma penal iluminista: dos objetivos declarados aos
objetivos latentes e reais ................................................................................... 370
-Ressignificando a linha de objetivação do crime (Direito Penal do fato) da Escola
Clássica à Dogmática Penal .............................................................................. 377
-Ambigüidade genética do moderno saber e poder penal: dominação e garantismo 381
-Ressignificando a linha de objetivação do criminoso (Direito Penal do autor) : a
complementariedade criminológica .................................................................. 384
- O princípio da seleção: do fracasso (das funções declaradas) ao sucesso (das
funções latentes e reais) da prisão .................................................................... 391
3. O saber oficial como saber do sistema de controle sócio-penal: ressignificando a "luta"
entre as Escolas Clássica e Positiva e a disputa Criminodogmática (contradição teórica
interna e convergência funcional) .............................................................................. 393
-A convergência tecnológica e legitimadora da Dogmática Penal e da Criminologia
como Ciências do controle ............................................................................... 396
-Ressignificando a consolidação da Dogmática Penal ......................................... 396
4. Operacionalidade do sistema penal: da seletividade quantitativa à seletividade quantita-
tiva-qualitativa como lógica de funcionamento do sistema penal. ................................. 398
4.1.Fundamentos básicos .............................................................................................. 400
-O papel criador do juiz e dos demais agentes do controle social ....................... 400
-A criminalidade de colarinho branco ................................................................ 401
-A cifra negra da criminalidade: desqualificação das estatísticas criminais para a
quantificação da criminalidade real e reapropriação para a quantificação da
criminalização e análise da lógica do controle penal ......................................... 402
4.2. A seletividade quantitativa: a imunidade e não a criminalização é a regra no funciona-
mento do sistema penal ......................................................................................... 402
-A criminalidade oculta e a redefinição do conceito corrente de criminalidade : a
criminalidade como conduta majoritária e ubícua e não de uma minoria criminal 404
4.3.A seletividade quantitativa-qualitativa ....................................................................... 407
-As cifras negras internas ao processo de criminalização e a redefinição do con-
ceito corrente sobre a distribuição (estatística) e a explicação (etiológica) da
criminalidade ................................................................................................... 408
-A criminalidade como conduta majoritária e ubicua mas desigualmente distribuída:
imunidade e criminalização são orientadas pela seleção de pessoas e não pela
incriminação igualitária de condutas ................................................................. 410
-A seletividade como grandeza sistematicamente produzida: variáveis não legal-
mente reconhecidas e mecanismos de seleção ................................................. 411
-Da tendência (etiológica) de delinqüir à tendência (maiores chances) de ser crimi-
nalizado .......................................................................................................... 414
- Funções reais da Criminologia positivista como ciência do controle sócio-penal:
contributo tecnológico e legitimador ................................................................. 415
-A selecão judicial ............................................................................................ 417
5. Da descrição da fenomenologia da seletividade à sua interpretação estrutural: da
desigualdade penal à desigualdade social .................................................................... 423
-Da negação da ideologia da defesa social à negação do mito do Direito Penal
igualitário ........................................................................................................ 431
-Função real do sistema penal na reprodução material e ideológica da desigualda-
de social ........................................................................................................... 433
6. Operacionalidade do sistema penal na América Latina: da seletividade encoberta à
radicalização da arbitrariedade aberta ....................................................................... 433
7. Contrastação entre operacionalidade e programação (normativa e teleológica) do
sistema penal : uma funcionalidade de eficácia instrumental invertida ....................... 440
-Violação da programação normativa: da proteção à violação dos direitos humanos 440
-Descumprimento da programação teleológica: das funções declaradas às funções
reais da pena ................................................................................................... 442
-A violência institucional como expressão da violência estrutural ............................ 444
8.Das funções instrumentais às funções simbólicas do Direito Penal ............................... 444
9.Crise de legitimidade e demanda por legitimação: o funcionamento ideológico do sistema
penal ......................................................................................................................... 446
10.Constrastação entre operacionalidade e Metaprogramação dogmática do sistema penal 450
10.1.A relação funcional entre Dogmática Penal e realidade social: das funções declaradas
às funções latentes e reais da Dogmática Penal como ciência do sistema penal ......... 452
-Déficit ou subprodução de garantismo e limites estruturais na racionalização da
violência punitiva e garantia dos direitos humanos: da onipotência à ilusão de
poder ............................................................................................................. 452
-Excessos ou sobreprodução de seletividade e legitimação: a eficácia instrumental
invertida e a eficácia simbólica da funções declaradas ...................................... 457
-Da convergência funcional declarada à convergência funcional real e crise de
legitimidade da Dogmática Penal e da Criminologia e do modelo integrado de
Ciência Penal .................................................................................................... 461
10.2.Da relação funcional à separação cognoscitiva entre Dogmática Penal e realidade
social .................................................................................................................... 463
-Recondução do déficit funcional de garantismo ao déficit epistemológico-cognos-
citivo ................................................................................................................ 463
-A funcionalidade do déficit epistemológico-cognoscitivo: o código ideológico
legitimador do discurso dogmático .................................................................... 467

CONCLUSÃO ...................................................................................................... 469

BIBLIOGRAFIA .............................................................................................. 482

INTRODUÇÃO
1. Objeto

Esta tese tem por objeto o modelo dogmático de Ciência Penal - a


Dogmática Jurídico-Penal ou Penal - concebida como um dos paradigmas
científicos emergentes e dominantes na modernidade que integra, como uma das
especialidades da Dogmática Jurídica, o seu projeto e trajetória no marco cultural
onde se originou - a Europa continental - e naquele para o qual foi posteriormente
transnacionalizado - como a América Latina. E seu eixo de gravitação radica na
análise das funções da Dogmática Jurídico-Penal no âmbito do sistema penal do
Estado moderno.
Um breve entroito se impõe, neste sentido, para explicitar a formulação
geral do problema que condiciona e orienta o seu horizonte de projeção, ao
mesmo tempo em que pretende justificá-la, para a seguir pontualizar os termos de
sua tecitura: definição, natureza e abrangência espaço-temporal da análise,
objetivo e hipótese geral desenvolvida, estrutura e desenvolvimento da tese,
método e instrumental teórico utilizados, e, enfim, as dificuldades experimentadas
e alguns esclarecimentos adicionais.
São três os vetores básicos que concorrem nesta formulação do
problema, definição e justificativa da tese: a) a problematização global do projeto
da modernidade e da Ciência, que embora escapem a uma tematização no interior
deste trabalho, necessitam ser referidos pelo tributo acima assinalado; b) a
problematização global do paradigma dogmático de Ciência Jurídica c) a
problematização do moderno sistema penal sendo estas duas últimas, todavia,
amplamente desenvolvidas no seu interior.
2. Formulação do problema e justificativa

SOUSA SANTOS, que tem vindo a desenvolver uma das mais


expressivas análises interpretativas da modernidade, sua trajetória e crise,
caracteriza-a como um projeto sócio-cultural complexo, ambicioso e
revolucionário, mas também internamente ambíguo.
Trata-se de um projeto ambicioso pela magnitude das promessas
sendo marcado por uma profunda vocação racionalizadora da vida individual e
coletiva e neste sentido caracterizado, em sua matriz, pela tentativa de um
desenvolvimento equilibrado entre "regulação" e "emancipação humana", os dois
grandes pilares em que se assenta. 1 Mas, por isso mesmo, aparece tão apto à
variabilidade quanto propenso a desenvolvimentos contraditórios. Pois, enquanto
as exigências de regulação apontam para o potencial do projeto para os
processos de concentração e exclusão; as promessas emancipatórias e as lógicas
ou racionalidades construídas para sua realização apontam para suas
potencialidades em cumprir, contraditoriamente, certas promessas de justiça,
autonomia, solidariedade, identidade, liberdade e igualdade. (SOUSA SANTOS,
1989a, p.225; 1990, p.3 e 1991)
Assim, "se por um lado, a amplitude de suas exigências abre um
extenso horizonte para a inovação social e cultural; por outro lado a complexidade
de seus elementos constitutivos faz com que o excesso de satisfação de algumas
promessas assim como o déficit de realização de outras seja dificilmente evitável.
1. O pilar da regulação constitui-se do princípio do Estado (formulado destacadamente por
HOBBES); do princípio do mercado (desenvolvido particularmente por LOCKE e ADAM
SMITH); e do princípio da comunidade (que inspira a teoria social e política de ROUSSEAU).O
pilar da emancipação está constituído pela articulação entre três lógicas ou dimensões de
racionalização e secularização da vida coletiva, tal como identificadas por WEBER: a racionalidade
moral-prática do Direito moderno; a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica
modernas e a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatua modernas.(SOUSA
SANTOS,1989a, p.225 e 1991, p.23)
Tal excesso e tal déficit estão inscritos na matriz deste paradigma." (SANTOS,
1989a, p.240-1)
Neste final de século é possível concluir, pois, que

"Tanto o excesso como o déficit de realização das promessas históricas


explica nossa difícil situação atual que aparece, na superfície, como um
período de crise, mas que, em um nível mais profundo, constitui um
período de transição. Desde o momento em que todas as transições são
parcialmente visíveis e parcialmente cegas, resulta impossível designar
com propriedade nossa situação atual. Provavelmente isto explica
porque a inadequada denominação 'pós-moderna' se tornou tão
popular. Mas pela mesma razão este nome é autêntico na sua
inadequação." (SOUSA SANTOS,1989a, p.223)

Assim sendo, estamos perante uma situação nova que, à falta de melhor
nome se pode designar por transição pós-moderna.
Seja como for, se um novo paradigma sócio-cultural está a emergir nas
sociedades do capitalismo avançado, sob os sintomas de crise que a
modernidade parece inexoravelmente emitir, o contexto de oposição e
justaposição entre o moderno e o "pós-moderno" testemunha antes de mais nada
a necessidade de se revisitar as próprias promessas da modernidade e avaliar os
seus déficit e excessos de realização, com os quais esta crise tem preliminarmente
a ver.
E dado que a modernidade creditou à Ciência e ao Direito um lugar
central na instrumentalização do progresso e do seu projeto emancipatório, no
qual os "direitos humanos aparecem como uma das principais promessas" o
reencontro com o desempenho instrumental da Ciência aparece, no balanço deste
final de século, como uma exigência de importância fundamental. (SOUSA
SANTOS, 1989b, p.3 e 1991, p.23).
Nesta perspectiva
"O ponto de partida do diagnóstico da Ciência moderna como
problema reside na dupla verificação de que os excessos da
modernidade que a Ciência prometeu corrigir, não só não foram
corrigidos, como não cessam de se reproduzir em escala cada vez
maior, e que os défices que a Ciência prometeu superar, não só não
foram superados, como se multiplicaram e agravaram. Acresce que a
Ciência não se limitou a ser ineficaz e parece, pelo contrário, ter
contribuído, como se de uma perversão matriarcal se tratasse, para o
agravamento das condições que procurou aliviar."(SOUSA
SANTOS,1991, p.25)

Como se insere o modelo dogmático de Ciência Penal no projeto da


modernidade?
Na medida em que o Estado aparece como um componente
fundamental do pilar da regulação ao mesmo tempo em que o reconhecimento do
homem como sujeito de direito e os direitos humanos aparecem como uma
exigência fundamental do pilar da emancipação, o projeto da modernidade se vê
confrontado, desde o início, com a necessidade de equilibrar o poder monumental
do Estado centralizado com a subjetividade atomizada dos indivíduos livres e
iguais perante a lei e de cuja tentativa a teoria política liberal aparece como a
máxima expressão.
Daí que o poder penal do Estado moderno apareça recoberto de limites
garantidores do indivíduo consubstanciados nos princípios constitucionais do
Estado de Direito e do Direito Penal (e Processual Penal) liberal e que um
princípio fundamental seja a exigência da generalização e igualdade no
funcionamento da Justiça penal em que se este poder se institucionaliza.
No âmbito da Justiça Penal a garantia dos direitos humanos assume,
então, um significado às avessas: não se trata de realizá-los ou solucionar os
conflitos a eles relativos, mas de impedir a sua violação ali onde intervenha a
violência punitiva institucionalizada: a dualidade regulação/emancipação se traduz
na exigência de um controle penal com segurança jurídica individual.
A Dogmática Jurídico-Penal representa, precisamente, o paradigma
científico que emerge na modernidade prometendo assegurar aquele equilíbrio
limitando esta violência e promovendo a segurança jurídica. O máximo contributo
que pode prestar ao pilar da emancipação é, portanto, o tributo do garantismo.
Consolidando-se historicamente na Europa continental desde a segunda
metade do século XIX como um desdobramento disciplinar da Dogmática
Jurídica, ela é assim concebida, pelos penalistas que protagonizaram e
compartilham do seu paradigma (auto-imagem) como "a" Ciência do Direito
Penal que, tendo por objeto o Direito Penal positivo vigente em um dado tempo e
espaço e por tarefa metódica (imanente) a construção de um sistema de
conceitos elaborados a partir da interpretação do material normativo, segundo
procedimentos intelectuais (lógico-formais) de coerência interna, tem uma função
essencialmente prática: racionalizar a aplicação judicial do Direito Penal.
Desta forma, na sua tarefa de elaboração técnico-jurídica do Direito
Penal vigente a Dogmática, partindo da interpretação das normas penais
produzidas pelo legislador e explicando-as em sua conexão interna, desenvolve
um sistema de teorias e conceitos que, resultando congruente com as normas,
teria a função de garantir a maior uniformização e previsibilidade possível das
decisões judiciais e, conseqüentemente, uma aplicação igualitária (decisões iguais
para casos iguais) e justa do Direito penal que, subtraída à arbitrariedade, garanta
essencialmente a segurança jurídica e, por extensão, a justiça das decisões.
Enquanto metaprogramação do Direito Penal positivo, a Dogmática
Penal constrói assim toda uma arquitetônica teórica e conceitual que,
consubstanciada em requisitos objetivos e subjetivos para a imputação de
responsabilidade penal pelos juízes e tribunais, objetiva vincular o horizonte
decisório à legalidade penal e ao Direito Penal do fato-crime; ou seja, vincular as
decisões judiciais à lei e à conduta do autor de um fato-crime, objetiva e
subjetivamente considerada em relação a este e exorcizar, por esta via, a
submissão do imputado à arbitrariedade judicial.
São duas, assim, as grandes promessas da Dogmática Penal na e para a
modernidade, estreitamente relacionadas. É que na sua promessa epistemológica
de constituir-se "na" moderna Ciência do Direito Penal está contida uma
promessa funcional que condiciona, essencialmente, a identidade de seu
paradigma. Trata-se de uma promessa bifronte que, orientada por uma matriz
liberal, credita à Ciência Penal uma função instrumental
racionalizadora/garantidora.
E é precisamente em nome da segurança jurídica, que aparece no
discurso dogmático como a idéia-síntese de suas promessas que tem pretendido
justificar, historicamente, a importância de sua já secular existência e o seu ideal
de Ciência. E ao mesmo tempo em que o discurso da segurança jurídica aparece
fortemente enraizado e consolidado na mentalidade dogmática em geral
considera-se, a contrário sensu, que a ausência de uma Dogmática Penal
implicaria o império da insegurança jurídica.
Revisitar suas promessas significa então indagar: mas, em que medida
tem sido cumpridas as funções declaradas da Dogmática penal na trajetória da
modernidade? tem a Dogmática penal conseguido garantir, com sua
metaprogramação, os direitos humanos individuais contra a violência punitiva? tem
sido possível controlar o delito com igualdade e segurança jurídica? encontra
congruência na práxis do sistema penal o discurso garantidor secular em nome
do qual a Dogmática Penal fala e pretende legitimar o seu próprio ideal de
Ciência? E é pelo cumprimento da função racionalizadora/garantidora declarada
que se explica a vigência histórica da Dogmática Penal ou ela potencializa e
cumpre funções distintas das prometidas?
Tais são as questões centrais que a tese objetiva responder, cuja
opção a insere no âmbito de um controle funcional da Dogmática Penal.
Situado o universo desta problematização global do projeto da
modernidade na qual inserimos a Dogmática Penal situemos o universo da
problematização do paradigma dogmático, genericamente considerado, cujo
balanço constitui o segundo eixo na definição e justificativa desta tese.
É que paralelamente à sua marcada vigência - na comunidade científica,
no Poder Judiciário e nas Escolas de Direito, seus principais locus institucionais
de sustentação - a Dogmática Jurídica, globalmente considerada, convive desde
sua gênese com uma marcada problematização, em cujo universo é possível
individualizar, sem prejuízo de outros, três grandes argumentos dominantes e
recorrentes: a) o de sua falta de cientificidade, que interpela sua promessa e
identidade epistemológica ; b) o de sua separação da realidade social decorrente
de seu excessivo formalismo, que interpela sua identidade metodológica ; e c) o
de seu conservadorismo ou de sua instrumentalização política conservadora do
status quo social, que confronta sua identidade funcional.
O primeiro argumento, que gravita em torno da indagação se "a
Dogmática é ou não uma Ciência e de que Ciência se trata" e tem ocupado um
lugar central no âmbito de uma Metadogmática, tem sido sustentado sobretudo
mediante a contrastação do modelo dogmático com o modelo positivista de
Ciência, a partir da qual se procura desqualificar a cientificidade da Dogmática
Jurídica por não satisfazer às exigências epistemológicas deste modelo. Trata-se,
portanto, de um controle epistemológico da Dogmática Jurídica fundado no
paradigma nas Ciências naturais.
O segundo argumento, centrado no formalismo do método dogmático e
na supervalorização que ele encerra dos aspectos lógico-formais do Direito, em
detrimento de sua materialidade social, tem enfatizado a separação entre
Dogmática Jurídica e realidade social. O terceiro, enfim, tem acentuado a
instrumentalidade do paradigma na legitimação das relações de dominação
capitalista em que o Direito se insere.
Mas, se a recorrência histórica desta crítica, é uma evidência muito
forte de que a Dogmática é um paradigma geneticamente problemático; a
sobrevivência dogmática secular contra e apesar dela confere procedência a uma
tese básica do funcionalismo: toda instituição de marcada vigência - no caso, um
paradigma científico - é tal porque e enquanto cumpre alguma função social;
porque e enquanto mantém uma conexão funcional com a realidade social.
Revisitando esta crítica e projetando-a para o campo da Dogmática
Penal, extraímos do seu universo as seguintes indicações:

a) Há uma sobreprodução do controle epistemológico e uma


suprodução do controle funcional da(s) Dogmática(s) Jurídica(s). A um excesso
de questionamento da sua promessa epistemológica (Trata-se a Dogmática
Jurídica, efetivamente, de uma Ciência?) corresponde um profundo déficit
histórico de questionamento de sua promessa funcional (Tem a Dogmática
cumprido sua declarada função racionalizadora da práxis do Direito?) que é, a
nosso ver, a promessa fundamental.
Pois, na medida em que a Dogmática é uma Ciência intrinsecamente
empenhada numa função prática imediata e esta instrumentalidade condiciona o
seu próprio modelo de Ciência (identidade epistemológica) ao mesmo tempo em
que pretende justificá-lo, é o controle funcional, não apenas pelo seu déficit
histórico, mas porque mais rico em conseqüências para o paradigma que deve
assumir a centralidade. Assim, ao invés de se tentar desqualificar a cientificidade
da Dogmática Jurídica, precisamente, dentre outros argumentos, porque se trata
de uma Ciência prática, antes que uma Ciência de conhecimento em sentido
estrito, o fundamental é realizar o seu controle epistemológico por dentro desta
instrumentalidade declarada, o único que pode conduzir à deslegitimação de seu
modelo;
b) A Dogmática Jurídica encontra-se cognoscitiva ou teoricamente
separada da realidade social, mas funcionalmente não. E é a sua relação funcional
com a realidade que explica sua marcada vigência histórica. Conseqüentemente
esta somente pode ser apreendida a partir das funções realmente cumpridas na
realidade social2;

c) A crítica política tem revelado uma função latente, não declarada, de


legitimação, cumprida pela Dogmática Jurídica.
Por outro lado, se a necessidade de resgatar o controle funcional das
promessas dogmaticas (funções declaradas) cresce em importância face à sua
subprodução ela se apresenta particularmente relevante no campo da Dogmática
Penal por ser, dentre os desdobramentos disciplinares da Dogmática Jurídica, o
que circunscreve o campo de maior vulnerabilidade: o da garantia dos direitos
humanos no sistema da Justiça Penal, ou seja, contra a violência física
institucionalizada.
Enfim, como a relação funcional da Dogmática Penal é com o sistema
penal - uma vez que elaborou promessas para serem efetivadas em seu âmbito - a
análise deste, em especial de seu real funcionamento, assume o posto de
referencial básico no controle funcional da Dogmática Penal.
Impõe-se, neste sentido, a necessidade de uma análise relacional apta a
comparar a programação normativa e a metaprogramação dogmática do Direito
Penal para o cumprimento das promessas com a operacionalidade do sistema

2 .Nestareinterpretação negadora da separação entre teoria e prática e afirmadora da funcionalização


prática da teoria, que cumpre um papel fundamental na definição da tese, nos inspiramos
particularmente numa obra de PÉREZ PERDOMO (1978).
penal enquanto conjunto de ações e decisões e, em especial, com as decisões
judiciais. Pois é esta análise contrastiva que possibilita emitir juízos de
(in)congruência entre operacionalidade ("ser") e programação ("dever-ser") do
sistema penal; ou seja, verificar se o sistema opera ou não no marco daquela
programação e, em especial, se as decisões judiciais são, de fato, pautadas pela
metaprogramação dogmática e, por extensão, igualitárias, seguras e justas.
E é precisamente um saber específico e problematizador do sistema
penal, consubstanciado pela crítica historiográfica, sociológica e criminológica e
cujo desenvolvimento culmina numa "revolução de paradigma" em Criminologia,
que vimos consolidar-se no campo penal desde a década de 60.
Passando, pois, do universo da problematização genérica do paradigma
dogmático para o universo da problematização específica do sistema penal
chegamos aqui ao terceiro vetor básico assinalado.
Pois são os resultados desta crítica sobre a gênese, estrutura,
operacionalidade e funções do sistema da penal, entendido como subsistema de
controle social (controle sócio-penal), os resultados aptos a deslocar a
centralidade do controle epistemológico fundado na contrastação do modelo
dogmático com as Ciências naturais para um controle epistemológico-funcional
fundado nos resultados das Ciências sociais, pois é esta a arena de sua
materialização.
E a projeção destes resultados para a problematização específica da
Dogmática Penal, que já é um caminho aberto por criminólogos e penalistas
críticos, tem potencializado novos argumentos e uma nova consistência para
individualizar seus específicos problemas e limitações, agudizando o acúmulo da
crítica histórica à Dogmática Jurídica - que também sobre ela paira, enquanto um
de seus desdobramentos disciplinares - e gerando hoje não apenas um quadro
desconcertante para a sua vigência, mas um quadro em que aquele acúmulo
parece ter chegado ao seu esgotamento; um quadro que sugere um paradigma em
crise.
E tal é o saber que, mais do que orientar a definição desta tese,
assumimos como marco teórico para a análise do sistema penal e o controle da
Dogmática Penal, na esteira deste caminho já entreaberto.
Em suas grandes linhas, tal crítica evidencia, precisamente, que o
sistema penal é um dos locus em que o desenvolvimento contraditório da
modernidade vem a se materializar com intensidade, buscando uma explicação
global para tal desenvolvimento que remete à distinção entre funções declaradas e
funções latentes e reais potencializadas desde a fundação do sistema.
Daí a convergência de suas premissas problematizadoras do sistema
penal com aquelas do projeto da modernidade acima assinaladas e de cuja
convergência e resultados retemos, por sua vez, duas indicações fundamentais:
a) Ao mesmo tempo em que a Dogmática Penal se insere oficialmente
no projeto da modernidade como uma Ciência instrumental para a realização de
uma das suas principais promessas e expressa a sua vocação racionalizadora
ela se insere, igualmente, na sua ambigüidade interna e potencialidade de seu
desenvolvimento contraditório que se materializa particularmente no sistema penal;
b) A Dogmática Penal integra o projeto e a trajetória da modernidade
não apenas como uma Ciência do Direito Penal, isto é, como uma instância
científica externa "sobre" ele, mas como uma instância interna do sistema penal
e, enquanto tal, é co-constitutiva de sua identidade e integra o seu real
funcionamento e desenvolvimento contraditório, inserindo-se naquele diagnóstico
da Ciência moderna como problema.

3. Definição, natureza e abrangência espaço-temporal da análise


Com base no exposto, procuramos responder aos interrogantes
originariamente formulados mediante uma análise interpretativa da Dogmática
Penal como Ciência (funcionalmente ambígua) do sistema penal sob o fio
condutor das suas funções declaradas (promessas) e latentes e dos seus déficit e
excessos de realização. O que reivindica partir, coerentemente com a formulação
enunciada, das bases fundacionais do paradigma dogmático e do próprio sistema
da Justiça Penal. Pois é somente este reencontro que possibilita captar as
contradições que, estando na base da relação funcional Dogmática-sistema penal
condiciona a sua trajetória histórica. Neste sentido, o fio condutor da análise é
apontar a contradição que marca geneticamente a Dogmática penal entre
promessas humanitárias garantidoras e a captura por exigências reguladoras do
sistema penal, a partir da qual se desnudam suas funções latentes.
A perspectiva assumida é, pois, a de que a resposta àquelas questões
originárias e a compreensão da situação presente da Dogmática Penal e dos
desafios que esta hoje interpelada a responder demandam mais do que nunca
revisitar o paradigma desde suas bases fundacionais. Pois, se é verdade que a
modernidade não pode fornecer a solução para os problemas de nosso tempo
histórico, "não é menos verdade que somente ela permite pensá-la." (SANTOS,
1991, p.27)
Reinterpretar a Dogmática Penal nestes termos implica assim uma
tentativa de ler o paradigma com uma inserção distinta da tradicional. Implica
redescobrir nele potencialidades humanistas e virtualidades. Mas implica também
falar de poder, violência e dominação enquanto elementos que embora
sistematicamente neutralizados e recusados pela sua vocação racionalizadora lhe
imprimem significação plena.
Se a opção por uma tal análise interpretativa já deixa antever a natureza
globalizante de nossa investigação baseada, se antecipe, em pesquisa bibliográfica
interdisciplinar, esta opção conduz a esclarecimentos acerca de sua abrangência
espaço-temporal. São duas, neste sentido, as questões a ponderar.

Em primeiro lugar é necessário considerar que a matriz originária do


paradigma dogmático de Ciência Jurídica e Jurídico - Penal em particular
encontra-se na Alemanha sendo posteriormente recebida em outros Estados da
Europa continental (Itália, Espanha, Portugal, Grécia, Holanda etc.) e da
América Latina (Brasil, Argentina, Costa Rica, Peru, Venezuela etc.) gozando
portanto de uma marcada vigência nesta região do centro e da periferia do
capitalismo mundial.
Isto está a indicar que existe um potencial universalista do paradigma
dogmático, que lhe permite funcionar contextualizadamente e fora do lugar do
origem; ou seja, para além da história interna da América Latina em relação ao
Eurocentro e da história interna de cada Estado integrante de ambas as regiões.
Pois, tanto a América Latina quanto a Europa, apesar de sua evidente unidade
continental, não podem ser vistas como blocos monolíticos. Em especial, há
também uma periferia no interior da própria Europa, que pode ser vista como
uma semi-periferia do poder planetário (Portugal, Grécia, Espanha).
Em segundo lugar, constatação análoga se impõe relativamente ao
modelo de sistema jurídico e de sistema penal (como parte integrante daquele) da
modernidade, cujo potencial universalista o atesta sua marcada vigência no
conjunto das sociedades capitalistas.
Desta forma, embora a apreensão da diversidade regional e contextual
no funcionamento dos sistemas penais e da Dogmática Penal seja um problema
que não pode ser abordado senão historicamente a apreensão da universalidade
estrutural de seu funcionamento como "modelos" hegemônicos que são, é um
problema que só pode ser abordado teórica e globalmente. E esta universalidade
está dada: a) pela existência de uma lógica de operacionalização dos sistemas
penais que, embora submetida a variações regionais e contextuais aparece como
qualitativamente comum nas sociedades capitalistas; b) pela existência de
funções comuns que, embora submetidas a diferentes apropriações regionais e
contextuais, aparece como o fundamento dos sistemas penais nas sociedades
capitalistas; c) pela inserção geral da Dogmática Penal na lógica de
operacionalidade do moderno sistema penal.
A própria natureza da investigação, ao partir das bases fundacionais da
Dogmática e do sistema penal, e eleger como marco teórico para o seu controle
funcional um saber descontrutor que, embora também recebido na América
Latina, é enraizado no capitalismo central, impõe este marco como seu referencial
de gravitação. Desta forma embora ela pretenda abranger, pelos motivos
expostos, também a vigência da Dogmática Penal na América Latina é
fundamental assinalar que segue uma orientação centro-periferia.
É fundamental também aduzir que a análise tem por referencial a
vigência regular da Dogmática no marco ao qual seu próprio discurso se vincula:
a normalidade da vigência do Estado de Direito. Pois os regimes de exceção,
sejam os fascismos, nazismos ou ditaduras européias e latino-americanas
colocaram a vigência da Dogmática Penal ao que tudo indica, total ou
parcialmente sob suspensão.

4. Objetivo e hipótese geral

O objetivo geral perseguido, que formulamos aqui como hipótese


central da investigação, é demonstrar que há, no âmbito do sistema penal, um
profundo déficit histórico de cumprimento das funções declaradas da Dogmática
Penal ao mesmo tempo em que o cumprimento excessivo de outras funções
(simbólicas e instrumentais) não apenas distintas, mas opostas às oficialmente
declaradas, que seu próprio paradigma, latente e ambiguamente tem potencializado
desde sua gênese histórica. E são estas, desenvolvidas com êxito por dentro do
fracasso de suas funções declaradas, que explicam sua relação funcional com a
realidade social e sua marcada vigência histórica. As promessas da Dogmática
Penal não apenas se inscrevem na longa agenda das promessas não cumpridas da
modernidade mas na própria "perversão matriarcal" da Ciência moderna.
No desdobramento desta hipótese fundamental procuramos inventariar
argumentos explicativos dos limites dogmáticos na garantia dos direitos humanos
contra a violência punitiva e demonstrar, por outro lado, a profunda separação
cognoscitiva entre Dogmática Penal e realidade social estabelecendo a relação
entre seus déficit de segurança jurídica e seu déficit epistemológico-
cognoscitivo, assinalando a própria funcionalidade deste último e, enfim, a
especificidade da crise que, por estas contradições, se pode imputar ao
paradigma.
As conclusões da tese apontam assim para uma relação complexa e
contraditória entre Dogmática Penal e sistema penal que a insere no trânsito da
promessa de controle da violência punitiva à captura por esta mesma violência
institucionalizada no sistema penal e por uma eficácia instrumental inversa à
prometida, acompanhada de uma eficácia simbólica das promessas: a "ilusão" de
segurança jurídica. Daí porque, embora se trate de uma análise essencialmente
interpretativa da Dogmática Penal e não prescritiva do seu futuro, o escopo que a
orienta é sumariar um quadro de contradições que, se desde o pilar da regulação
apontam para o sucesso; desde o pilar dos Direitos Humanos apontam para o
fracasso e a crise da Dogmática Penal e para a necessidade de uma suspensão e
auto-crítica do dogmatismo na Ciência Penal. Seu escopo passa, neste momento
conclusivo final, de interpretativo a transformador.
Nesta perspectiva as preocupações que a orientam não são inovadoras.
Ela insere-se num caminho já secularmente inaugurado relativamente à Dogmática
Jurídica em geral e hoje especialmente percorrido por criminólogos e penalistas
críticos relativamente à Dogmática Penal, pretendendo engrossar as fileiras dos
esforços nesta direção.

5. Estrutura e desenvolvimento da tese

A constelação de subtemas e problemas tratados ao longo desta análise


- que o sumário por sua vez ilustra - não podem ser cobertos nos limites desta
introdução. Uma visão panorâmica do seu desenvolvimento todavia se impõe
neste lugar.
A tese está estruturada em cinco capítulo sucedidos de conclusão.
No primeiro capítulo reconstituímos a configuração do paradigma
dogmático de Ciência Jurídica em perspectiva histórica, situando as heranças e
matrizes que o condicionam e a identidade (metodológica, ideológica e funcional)
estrutural que, ao longo desta configuração, foi assumindo. O que significa
produzir uma estilização da estrutura e função do paradigma desde suas bases
fundacionais até a sua maturidade. É no final deste capítulo que situamos os eixos
recorrentes da crítica histórica à Dogmática Jurídica nos centrando no problema
da sua identidade epistemológica e do déficit de controle funcional da(s)
Dogmática(s) Jurídica(s).
No segundo, reconstituímos a consolidação do paradigma dogmático
na Ciência Penal paralelamente à consolidação do paradigma etiológico de
Criminologia e a relação primária entre ambos (e a Política Criminal) no marco
do modelo integrado de Ciência Penal que oficialmente se consolida na
modernidade, partindo de uma reconstituição do moderno saber penal em sentido
lato que remonta à reforma penal iluminista e à Escola Clássica. Abordamos
assim a trajetória que vai da Filosofia (saber clássico) à Ciência do Direito Penal
(saber dogmático) e da Criminalidade (saber criminológico) e a construção de um
Direito Penal do fato-crime e de um Direito Penal do autor que esta trajetória deixa
como legado, acentuando como a consolidação da Dogmática Jurídico-Penal se
dá, por um lado, na esteira de um paradigma genérico de Dogmática jurídica já
constituído mas, por outro lado, como é tributária de heranças e problemáticas
específicas do campo penal em que se insere. Daí que a Dogmática Jurídico-
Penal seja marcada por uma dependência paradigmática ao mesmo tempo em que
por uma relativa autonomia decorrente desta especificidade.
No terceiro capítulo reconstituímos, pois, sua específica identidade
(epistemológica, metodológica, funcional e ideológica), demarcando suas
funções declaradas (auto-imagem funcional) e horizonte de projeção; ou seja, a
metaprogramação dogmática do Direito Penal construída para o cumprimento
destas funções, assinalando que ela contém, a um só tempo, um código
tecnológico e um código ideológico-legitimador. Situamos, a seguir, o universo
da crítica interna à Dogmática Penal, centrada no sistema do crime, e da crítica
externa ao nível político e metodológico aqui já referidas, finalizando com as
tendências contemporâneas no sistema do crime.
No quarto, deslocamos a abordagem da Dogmática para o sistema
penal. Caracterizamos inicialmente o moderno sistema penal e suas estratégias de
legitimação. Situamos, a seguir, a trajetória do "impulso desestruturador", isto é, a
emergência de um saber crítico e deslegitimador do moderno sistema penal e a
"revolução de paradigma" que ela arrasta consigo , mediante a qual a Criminologia
se transforma de uma Ciência das causas da criminalidade (paradigma etiológico)
em uma Ciência da criminalização (paradigma da reação social), ocupando-se
hoje, especialmente, do controle sócio-penal e da análise da estrutura,
operacionalidade e reais funções do sistema de penal, que veio a ocupar um lugar
cada vez mais central no interior do objeto da investigação criminológica. Após
situar a desconstrução epistemológica, então operada, do paradigma etiológico de
Criminologia, situamos o horizonte de uma nova relação (secundária) entre
Dogmática e (nova) Criminologia na qual esta é assumida, juntamente com a
historiografia do sistema penal, como marco teórico para a análise do sistema
penal e o controle epistemológico - funcional da Dogmática Penal, cujas bases de
realização pontualizamos ao final do capítulo.
No quinto e último capítulo analisamos a configuração,
operacionalidade e funções do moderno sistema penal, no marco do sistema
social capitalista e realizamos o controle epistemológico-funcional da Dogmática
Penal com base naquele saber, pontualizando a contrastação entre o
funcionamento do sistema penal e metaprogramação dogmática para o
cumprimento das suas promessas , fundamentando a hipótese central da tese e
seus desdobramentos. As conclusões sintetizam os resultados fundamentais desta
contrastação.

6. Método, instrumental teórico e esclarecimentos adicionais

O método de abordagem adotado é o indutivo no sentido que lhe


confere ALVES (1983, p.114 e 116)) segundo o qual a indução "é uma forma de
argumentar, de passar de certas proposições a outras;(...) é uma forma de pensar
que pretende efetuar, de forma segura, a passagem do visível ao invisível." Assim,
sempre que se passa do particular para o geral, amplia-se o conhecido, para ir ao
encontro de um argumento ampliativo. "O raciocínio indutivo caracteriza-se, pois,
por passar do conhecido ao desconhecido, do visível ao invisível."
Se a única estratégia metodológica utilizada é, como já referido, a
pesquisa bibliográfica interdisciplinar, cumpre agora pontualizar tais fontes e
como são utilizadas em face do método.
Genericamente, pois, enquanto a primeira parte da tese se ocupa da
Dogmática Jurídica e Jurídico-Penal (capítulos I,II e III) a segunda (capítulos IV
e V) se ocupa do sistema penal e do controle funcional baseado na análise
contrastiva.
No movimento deste método ela desloca-se, pois, da descrição do
saber, desde seu discurso declarado, "visível", utilizando como fonte o próprio
saber descrito e contribuições provenientes da Epistemologia, da Filosofia, Teoria
e Sociologia Jurídicas e da Teoria Política; à descrição do poder e do sistema
penal, em cujo marco é possível controlá-lo e expor seus potenciais funcionais
latentes, "invisíveis", com base, então, no saber já indicado: a historiografia do
sistema penal, a Criminologia da reação social e a Criminologia e o Penalismo
críticos. Daí se evidencia que o método de procedimento seguido é, por sua vez,
o comparativo.
O campo, por outro lado, das dificuldades experimentadas e dos
próprios limites da análise proposta acaba por se desenhar no mesmo movimento
de sua enunciação. Pois é na sua natureza mesma, teórica interdisciplinar e
globalizante que eles radicam.
Se romper com o monólogo que a unidisciplinariedade e a
especialização impõe é cada vez mais necessário e conseqüente, a busca do
diálogo interdisciplinar é, pela multiplicidade de leituras e domínios que requer,
uma tarefa muito árdua e necessariamente aproximativa e inacabada.
Por outro lado, se o que nos propomos a fazer é uma análise
interpretativa globalizante e exploratória das funções da Dogmática Penal que
explicam sua marcada vigência não há como escapar ao considerável grau de
abstração que esta opção implica. Enfim, o ônus da horizontalidade é, também, o
déficit da verticalidade analítica - já que muitas das questões apontadas certamente
não puderam receber o tratamento merecido.
Seja como for, como se trata de fazer uma interpretação em
perspectiva histórica, procurando apontar as relações a ter em vista e não uma
"história de" o panorama pode, como ensina ECO (1983, p.10), "afigurar-se um
tanto desfocado, incompleto ou de segunda mão".
Em cada capítulo priorizamos determinados autores representativos das
disciplinas pesquisadas, em razão da expressividade, importância e convergência
da sua contribuição para a análise proposta e neste sentido estamos conscientes
de ter inflacionado alguns em detrimento de outros do universo pesquisado. É
necessário esclarecer, contudo, que as contribuições recolhidas não implicam, na
tese, a subscrição integral de suas respectivas teorias, o que geraria
incompatibilidades internas insanáveis.
Por outro lado, as inúmeras definições conceituais para as quais o texto
desta tese remeteu não devem ser vistas como definições "essencialistas", mas
como definições operacionais ao seu desenvolvimento.
Priorizamos as citações diretas, não obstante reconhecer seu peso talvez
demasiado no texto, pela sua importância na argumentação e o seu valor
informativo
Todas as citações diretas e indiretas em idioma estrangeiro, foram
traduzidas para o idioma nacional do idioma em que se encontravam na fonte
consultada, o qual pode ser verificado pela referência que acompanha as citações.
Na relação bibliográfica final constam, além das obras diretamente
citadas no texto, aquelas que, embora não citadas, integraram o universo
pesquisado, concorrendo de algum modo para a sua realização.

CAPÍTULO I
CONFIGURAÇÃO E IDENTIDADE DA DOGMÁTICA JURÍDICA

1. Introdução

Como ponto de partida de nossa análise sobre o paradigma3 dogmático


de Ciência Penal (Dogmática Jurídico-Penal ou Dogmática Penal), impõe-se como
tarefa preliminar reconstituir a configuração e identidade do paradigma dogmático
de Ciência Jurídica4 (Dogmática Jurídica) em sentido lato, pelo menos por dois
motivos fundamentais.
Em primeiro lugar, porque o paradigma dogmático não é uma
peculariedade da Ciência Penal. Trata-se de um paradigma referido a um modelo
geral de Ciência Jurídica e do qual a Ciência Penal, enquanto Ciência Jurídica
parcial, será tributária em sua especificidade.
Em segundo lugar, porque, historicamente, o paradigma dogmático
"desenvolveu-se à sombra do Direito Privado" (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p.81) e
na esteira de uma tradição privatista é recebido posteriormente pela Ciência
Penal.

3.Do grego "parádeigma" para o latim "paradigma", o signo é traduzido, num dos mais importante
dicionários brasileiros da língua portuguesa (1986, p.1265) por "modelo, padrão, estalão".
Empregamos contudo o signo no sentido, já clássico, que lhe imprimiu KUHN (1979, p.219),
segundo o qual "um paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham.
E, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que compartilham um paradigma."
Uma melhor explicitação deste conceito encontra-se no final deste capítulo sob o item "7.2". O
signo "matriz" será usado, por sua vez, para designar um "modelo", apenas, ou um "modelo que
condiciona algo".

4. Utilizaremos, indistintamente, todas estas denominações.


Desta forma, a Dogmática Penal não apenas se consolidou como um
desdobramento disciplinar da Dogmática Jurídica, mas na esteira de um paradigma
já consolidado no Direito privado e em alguns ramos do Direito público
(HERNÁNDEZ GIL, 1981, p.36; ROCCO, 1982, p.17-30 passim) e, apesar de
possuir uma certa especificidade e uma relativa autonomia, deriva suas condições
de produção e possibilidade deste paradigma geral, guardando com ele uma
relação de dependência significativa.
O objetivo deste capítulo não é, assim, reconstruir a história da
Dogmática Jurídica - o que seria impossível nos limites desta tese - mas
reconstruir a configuração do seu paradigma em perspectiva histórica, situando
as heranças e matrizes que o condicionam e a identidade (metodológica,
ideológica, funcional e epistemológica) que, ao longo desta configuração, foi
assumindo.
Trata-se, portanto, de produzir uma estilização do paradigma
perquirindo os elementos que, desde sua gênese ou bases fundacionais até a sua
maturação, vão concorrendo para compor a identidade estrutural que o tipica
desde então até à contemporaneidade.
Para fazê-lo é necessário fixar então previamente o conceito de
Dogmática Jurídica, cuja configuração procuraremos reconstruir. E fixá-lo
tomando por referente - acreditamos ser o critério autorizado - a própria imagem
compartilhada pelos juristas dogmáticos sobre o trabalho que realizam (auto-
imagem), pois é precisamente este acordo que evidencia a existência do paradigma
dogmático na Ciência Jurídica. 5
Assim, na auto-imagem da Dogmática Jurídica ela se identifica com a
idéia de Ciência do Direito que, tendo por objeto o Direito Positivo vigente em um

5. O conceito que segue deve ser entendido, pois, como uma aproximação, uma estilização, o mais
fidedigna possível, da Dogmática Jurídica na sua auto-imagem.
dado tempo e espaço e por tarefa metódica (imanente) a "construção" de um
"sistema" de conceitos elaborados a partir da "interpretação" do material
normativo, segundo procedimentos intelectuais (lógico-formais) de coerência
interna, tem por finalidade ser útil à vida, isto é, à aplicação do Direito. Trata-se
de uma Ciência de "dever-ser" (normativa), sistemática, descritiva, avalorativa
(axiologicamente neutra) e prática .
A Dogmática Jurídica se concebe como uma Ciência e fala em nome
dela:

"Os juristas estão geralmente convictos de que a atividade


desenvolvida por eles - estudar o direito para facilitar sua aplicação - é
uma atividade de caráter científico. Eles, nos seus escritos referem-se
freqüentemente à Ciência jurídica ou dogmática jurídica e à doutrina
ou jurisprudência. Na Alemanha Federal e nos países fortemente
influenciados pelo pensamento jurídico germânico utiliza-se com
assiduidade a expressão 'dogmática jurídica' em sentido positivo. Essa
expressão é sinônimo de 'Ciência'." (POZO, 1988, p.11)

E a visão que de si mesmo oferece o paradigma é de neutralidade


valorativa, quer em relação a sistemas econômico-políticos, quer a grupos dentro
de um sistema social. Ele se apresenta a si mesmo como compatível com qualquer
sistema pois, em seu sentido epistemológico, não é solidário de nenhum conteúdo
de Direito.
Fixado este conceito, acrescentamos então que mais do que perquirir
como ele se configurou , perqueriremos a identidade da Dogmática Jurídica
para além de sua auto-imagem seja revelando aspectos que o paradigma não
reconhece (como a ideologia e a natureza prescritiva de seus enunciados) por
conceber-se de outro modo (como Ciência avalorativa e descritiva) seja
problematizando seu estatuto científico, embora para reafirmá-lo, por vias distintas
das dogmaticamente reconhecidas.
Procuraremos então demonstrar que a Dogmática Jurídica se singulariza
pela adoção de determinado approach ao estudo do Direito, que lhe
circunscreve o objeto e pela adoção de determinado método, atendendo a uma
ideologia de base e direcionando-se para determinado fim ou função declarada. É
da articulação entre approach-objeto-método-ideologia-função 6 que deriva sua
específica identidade.
A conjugação da análise da dimensão metodológica com a dimensão
ideológica e funcional da Dogmática Jurídica é fundamental assim, para a

6. Como salientam pertinentemente HASSEMER e COÑDE (1989, p.99), em linguagem jurídica


tradicional se entende por "função" as conseqüências queridas ou desejadas de uma coisa,
equiparando-se a "meta" ou "missão" e, acrescentamos, fim ou finalidade. Assim no discurso
dogmático vimos o emprego dos signos "função" "meta", "missão", ou "fim" usados indistintamente
neste sentido quando referidos à Dogmática Jurídica e Jurídico-penal.
Este significado difere contudo, como advertem ainda os mesmo autores, daquele atribuído à
"função" em linguagem sociológica, na qual designa, tradicionalmente, "a soma das conseqüências
objetivas de uma coisa".
FERRAJOLI (1986, p.26), ao abordar os equívocos referentes aos debates sobre doutrinas,
teorias e ideologias da pena acentua, por sua vez, a necessidade de distinguir entre função e fim.
Pontualiza o emprego do signo "função", no sentido sociológico acima aludido, para designar usos
teóricos descritivos (relativos à descrição de um "ser") e a palavra "fim" (que corresponderia à
"função" na linguagem jurídica) para indicar usos teóricos normativos ou prescritivos (que
expressam um "dever-ser"). Pois, adverte, do vício metodológico consistente em confundir função
e fim ou, correlatamente, ser e dever-ser, decorre a conseqüente confusão entre explicações (ou
descrições) e justificações.
Interessa-nos, a partir destas referências semânticas e metodológicas, fixar o sentido em que
empregamos o signo função nesta tese.
Levando em conta a necessidade de distinguir entre conseqüências desejadas e conseqüências
reais ou, segundo FERRAJOLI, entre os planos do "dever-ser" ( a se realizar) e do "ser"
(efetivamente realizado) subscrevemos a importância de distinguir entre fim e função no sentido por
ele aludido.
Mas entendemos que esta distinção é lingüisticamente melhor traduzida apelando-se a uma
adjetivação do próprio signo função.
Assim, priorizamos nesta tese a expressão função "declarada", "oficial", "manifesta" ou
"promessa", mais do que a expressão "fim" e seus derivados para designar as conseqüências
queridas ou desejadas e oficialmente perseguidas pela Dogmática, expressivas de um "dever-ser".
(discurso dogmático declarado).
Usamos a expressão função "latente" ou "não declarada" para designar as conseqüências que,
embora não desejadas ou oficialmente buscadas pela Dogmática são por ela potencializadas. E
usamos, enfim, a expressão função "real" para designar as conseqüências reais da Dogmática, ao
nível do "ser" .
De qualquer modo, quando a expressão função aparecer sem adjetivação deve-se ser entendida
conforme o contexto, como designativa de um destes significados respeitado, todavia, o emprego
que cada autor faz do signo.
compreensão da sua específica identidade e para questionar sua própria
identidade epistemológica.
Preliminarmente, assumimos uma posição sobre a configuração e
identidade do paradigma dogmático de Ciência Jurídica que demarcará a trajetória
e os limites de nossa exposição, neste primeiro capítulo.
FERRAZ JÚNIOR identifica, a partir da análise do conhecimento
jurídico europeu continental, três grandes tradições ou heranças jurídicas que
constituíram a base sobre a qual se originou a Dogmática Jurídica, neste quadro
cultural, no século XIX: a herança jurisprudencial (romana), a herança exegética
(medieval) e a herança sistemática (moderna), cuja perspectiva assim sintetiza:

"A verdade é que nos países de tradição românica o conhecimento do


Direito tomou, inicialmente, a forma de uma técnica elaborada que os
romanos chamaram de 'jurisprudentia', caracterizada como um modo
peculiar de pensar problemas sob a forma de conflitos a serem
resolvidos por decisão de autoridade, mas procurando, sempre,
fórmulas generalizadoras que constituíram as chamadas doutrinas. Na
Idade Média, sobretudo na época dos glosadores, àquela técnica
jurisprudencial acrescentou-se ainda, como um ponto de partida para
qualquer discussão, a vinculação a certos textos romanos,
especialmente o 'Código Justinianeu', o que foi dando às disciplinas
jurídicas uma forma de pensar eminentemente exegética, base da
Dogmática Jurídica. Com o advento do Racionalismo, nos séculos XVII
e XVIII, a crença nos textos romanos acabou substituída pela crença
nos princípios da razão, os quais deveriam ser investigados para serem
aplicados de modo sistemático. No entanto, foi no século XIX que as
grandes linhas mestras da Dogmática Jurídica se definiram. A herança
jurisprudencial, a herança exegética e a herança sistemática
converteram-se na base sobre a qual se erigiu a Dogmática Jurídica, tal
qual a conhecemos hoje, à qual o século XIX acrescentou a perspectiva
histórica e social." (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p.3)

A importância desta perspectiva é, a nosso ver, a de assinalar o tributo


que a configuração do paradigma dogmático deve, por um lado, à história do
pensamento jurídico (europeu continental), evidenciando que, ao se perquirir a
gênese da Dogmática Jurídica, não se pode ignorar a tradição jurídica e o grau de
racionalização do conhecimento do Direito por ela acumulado.
Contudo, foi apenas no século XIX que as grandes linhas mestras do
paradigma dogmático se definiram; ou seja, que se configuraram definitivamente
os elementos característicos deste paradigma tal como se transferem à Ciência
Jurídica posterior.
Por um lado, pois, entendemos importante conceber o paradigma
dogmático como herdeiro de elementos que, embora redefinidos no seu interior,
em função de sua específica identidade, foram originariamente gestados em
tradições jurídicas do passado.
Mas se aquela tríplice herança jurídica a que nos referimos contribuirá,
por um lado, para conformar a identidade do paradigma dogmático; por outro
lado, seria equivocado concebê-lo meramente como o produto de uma recepção
linear e cumulativa destas tradições, uma vez que resulta de exigências e
condicionamentos específicos do século XIX, sendo um produto deste tempo e
fruto de uma confluência de fatores.
Neste sentido
"(...) a dogmática jurídica não pode ser vista apenas como o produto ou
resultado de uma evolução universal de conceitos e métodos através da
história do pensamento científico. Ela deve ser entendida, também,
como resposta a certos imperativos institucionais que permeiam,
moldam e conformam a própria cultura jurídica de natureza positivista
e de inspiração liberal. Dito de outra maneira, a dogmática não se
limita somente a um enfoque determinado das questões fundamentais
da Ciência do Direito - representa, igualmente, uma atitude ideológica
que lhe serve de base e um ethos cultural específico." FARIA (1988, p.
24)

Nesta perspectiva destacamos a contribuição analítica fornecida por


PUCEIRO (1981, p.13), fundamentando precisamente a tese de que o paradigma
dogmático deve ser visto como conceito "histórico", enquanto guarda uma
vinculação essencial com uma determinada estrutura histórica, a respeito da qual
adquire um conteúdo e sentido precisos. E não como conceito "universal",
suscetível de ser estendido a qualquer época, pois
"A dogmática, como forma de configuracão do saber jurídico-
científico se refere de modo concreto a uma certa atitude metodológica,
condicionada por fatores de índole científica, histórica, cultural e
política (...)." (PUCEIRO, 1981, p.14)

O paradigma dogmático se configura, assim, paulatinamente, na


Europa continental do século XIX como convergência de um conjunto de
processos parciais e conseqüentes que estão na base da modernidade, dentre os
quais destacam-se os atinentes a um conceito de Ciência, que preside aos seus
momentos fundacionais, e de Estado, que preside à sua formulação acabada,
vinculando-se, ao longo de seu desenvolvimento, a uma idéia de saber e de
Estado que reconhece, entre outros, os seguintes pressupostos de base7:
a) a consolidação de um conceito moderno de Ciência, basicamente
voltado ao seu caráter sistemático e coerência lógico-formal;
b) a separação entre teoria e práxis (não obstante a funcionalização
prática da teoria) e a conseqüente afirmação de um modelo de saber jurídico
como atividade essencialmente teórica, presidida por uma atitude axiologicamente
neutra e tendencialmente descritiva;
c) a superação das (modernas) doutrinas de Direito Natural e a
historificação do objeto do saber, através da paulatina identificação entre os
conceitos de Direito e norma jurídica (Lei) num primeiro momento, e, a seguir,
entre Direito e sistema conceitual de Ciência;
d) a consolidação de um conceito moderno de Estado8 caracterizado
pelo monopólio estatal da violência física, da criação e aplicação do Direito por

7. Alguns destes pressupostos são mencionados em PUCEIRO (1981, p.15-6) e FARIA (1988,
p.24).

8. Nos referimos ao conceito clássico formulado por WEBER (1979, p.17) segundo o qual o Estado
moderno "é uma associação de domínio com carácter institucional que tratou, com êxito, de
monopolizar, dentro de um território, a violência física legítima como meio de domínio e que, para
esse fim, reuniu todos os meios materiais nas mãos do seu dirigente e expropriou todos os
processos decisórios e a conseqüente estatalização, normativização (realizado pela
codificação) e positivação do Direito;
e) separação de poderes , com a distribuição de competências do
monopólio estatal da criação e aplicação do Direito entre o Poder Legislativo e o
Judiciário, tornado independente e "autônomo";
f) a ênfase sobre a segurança jurídica como certeza de uma razão
abstrata e geral, resultante de um Estado soberano.
No paradigma dogmático convergem, pois, uma matriz epistemológica
(saber) e uma matriz política (poder) e diversos processos a ambas relativos, de
forma que ele é tributário, tanto do discurso cientificista quanto do discurso
estatalista-legalista do século XIX, encontrando-se geneticamente vinculado à
promessa (epistemológica) de edificação de uma "Ciência do Direito" (ROCHA,
1982, p.126) e, na culminação de seu desenvolvimento, à promessa (funcional) de
racionalização da práxis jurídica típica do Estado moderno.
São tais condicionamentos, entre outros, que conferem ao paradigma
dogmático um ethos específico, e que filtrarão e ressignificarão, pois, o ingresso
da tradição jurídica no seu interior.
Mas apesar de ser um produto histórico, o paradigma dogmático é
marcado também por um potencial e uma vocação universalista, uma vez que ele
se liberta, posteriormente, de sua estrutura histórica originária para ser recebido,
certamente por um processo de transculturação, por diversos países da América
Latina, incluindo o Brasil, entre outros, em cujo marco permanece também como
o modelo normal ou oficial de Ciência Jurídica.

funcionários feudais que anteriormente deles dispunham por Direito próprio, substituindo-os pelas
suas próprias hierarquias supremas."
O monopólio estatal da violência física, ou seja, o controle dos meios de coerção física pelo
Estado moderno caracteriza o recurso típico - embora não o único - e o aspecto especificamente
"político" da sua dominação, num dado território, recoberta por uma legitimidade que se refugia no
"reino da lei", isto é, na legalidade.
Tal potencial parece estar vinculado, por sua vez, à própria
descontextualização do Direito operada pela Dogmática Jurídica que assentando
na conversão da juridicidade num espaço abstrato (vazio) e num tempo igualmente
abstrato (cronológico) (SOUSA SANTOS, 1990, p.31), torna-se um paradigma
suscetível de ser apropriado em espaços e tempos diversificados.
Por outro lado, é tão forte a identificação moderna entre Ciência
Jurídica e Dogmática Jurídica que se acaba estendendo este modelo a culturas
jurídicas onde ele inexistia, como a romana e a medieval. É portanto imprópria
tanto a alusão a uma "Dogmática Romana" ou a uma "Dogmática Medieval",
quanto a consideração da Dogmática Jurídica como a instrumentalização
científica do positivismo jurídico, alusões que somente são possíveis
prescindindo-se da sua gênese estrita, uma vez que " o modelo dogmático
propriamente dito procede da Escola histórica e encontra sua expressão
culminante na construcão jurídica." (HERNÁNDEZ GIL, 1981a, p.42)
Com efeito, pela centralidade que o método, isto é, a operação
intelectual, predominantemente lógica, projetada sobre o direito vigente ( em
particular a operação de "construção jurídica")9 assume, na tipificação do
paradigma dogmático, entendemos autorizada a tese de sua procedência enraizada
na Escola histórica alemã do começo do século XIX , de onde procede a
formulação daquele método.

9. À esta tarefa metódica da interpretação à construção do sistema podemos denominamos de


dimensão "hermenêutico-analítica" de materialização da Dogmática Jurídica. Neste sentido, como
afirma FERRAZ JR. (1988a, p.70), "o problema básico da atividade jurídica não é apenas a
configuração sistemática da ordem normativa, mas a determinação do seu sentido.(...) Método e
objeto são questões correlatas, cujo ponto comum é o problema do sentido."
É a esta dimensão que, como veremos, se vincula a função prática da Dogmática Jurídica. Mas ,
apesar de central e centralizadora do paradigma não esgota sua produção, pois ele engloba uma
dimensão que podemos denominar "propedêutica" onde tem lugar uma produção teórica prévia à
hermenêutico-analítica, consistente na (re)produção de teorias majoritariamente compartilhadas
sobre a norma, o ordenamento jurídico, as fontes do Direito, a interpretação científica e judicial
etc; Distinguimos, desta forma, duas dimensões de materialização da(s) Dogmática(s) Jurídica(s)
que determinam a própria estrutura dos tradicionais manuais dogmáticos.
Neste sentido, se a interpretatio juris foi a grande arma da glosa em
suas múltiplas manifestações e o "sistema" encontrou uma expressão
paradigmática na Escola do Direito Natural dos séculos XVII e XVIII e no
racionalismo jurídico daquela época (em particular em G.W. LEIBNIZ), o que há
de novo no método dogmático é a chamada "construção jurídica", em cujo
âmbito a interpretação e o sistema serão também redefinidos relativamente
àquelas raízes.
De qualquer modo, se o approach e a formulação metódica
proveniente da Escola histórica são decisivos para a gênese do paradigma
dogmático de Ciência Jurídica, este atinge sua maturação com o positivismo
jurídico 10 que, expressando as notas típicas do Estado moderno em sua feição
de Estado de Direito Liberal, confere ao paradigma dogmático uma formulação
acabada.
Sustentamos neste sentido que o paradigma dogmático, embora
herdeiro de uma tradição jurídica secular, recebe sua formulação originária
(fundacional) da Escola Histórica, recebendo uma formulação acabada
(relativamente ao seu approach e ideologia de base) do positivismo jurídico em
sua fase madura, sob o influxo, então, de um conceito moderno de Estado.
Muito sintomático de que o juspositivismo tem uma importante
incidência complementar sobre a identidade do paradigma dogmático é que esta
incidência tem sido inclusive superdimensionada ao se considerar a Dogmática
Jurídica como a própria instrumentalização científica dele, caso em que, como já

10. De qualquer modo, como sustenta GIORGI (1979) as raízes do positivismo jurídico se encontram
já na Escola histórica que pode ser vista como um positivismo jurídico em gestação na medida em
que, com sua rejeição ao racionalismo e ao universalismo do jusnaturalismo moderno e o
deslocamento do objeto da Ciência Jurídica para um dado sensível da experiência (mesmo que
seja "o espírito do povo") antecipa um approach juspositivista ao Direito.
Sobre o significado do juspositivismo como approach, teoria e ideologia aludimos a seguir sob o
tópico "caracterização do positivismo jurídico".
referimos, ao invés de se retroceder (à tradição jurídica romana ou medieval),
acaba-se por postergar, impropriamente, a sua gênese.
Assim,

"A Ciência jurídica tradicional ou dogmática não aparece íntegramente


como uma teoria previa na qual figurem todos os elementos
componentes do modelo cognoscitivo. Supõe, claro é, uma atitude
perante o direito, a ciência e o comportamento metodológico; mas não
surgiu de uma vez e tampouco começou por enunciar-se como tal tudo
o que hoje consideramos tratamento dogmático do direito."
HERNÁNDEZ GIL (1981a, p.23-4)

A Dogmática Jurídica se configura, pois, através de um processo


multifário, apresentando uma origem plural, que impossibilita captar nela um
corpo doutrinário homogêneo. Trata-se não apenas de um conceito histórico, mas
de um conceito essencialmente complexo.
Demarcada esta perspectiva inicial sobre a configuração e identidade
do paradigma dogmático, aludimos, a seguir, à sua explicitação.

2. Heranças que marcam o paradigma dogmático de Ciência Jurídica

2.1. A herança jurisprudencial

Nesta perspectiva, uma primeira herança que irá marcar a Dogmática


Jurídica é o pensamento prudencial romano, cujo desenvolvimento, através do uso
da técnica dialética, conduziu os romanos a um saber considerado de natureza
prática, isto é, que procura fornecer diretivas para a ação. (FERRAZ
JÚNIOR,1988b, p.58)
Esta técnica elaborada, que denominaram jurisprudentia, caracterizada
por um modo peculiar de pensar os problemas sob a forma de conflitos a serem
resolvidos por decisão de autoridade, sob fórmulas doutrinárias genéricas, não
estava apartada do verdadeiro, no sentido de que era um saber que produzia o
verdadeiro no campo do útil, do justo, do belo, configurando um saber de
natureza ética.
Desta forma, o Direito assumiu o perfil de um programa decisório onde
eram formuladas as condições para uma decisão correta. É precisamente aí que
surge o pensamento prudencial com suas regras, princípios, figuras retóricas,
meios de interpretação, instrumentos de persuasão, etc. Socialmente, ele se separa
do próprio Direito e permite, então, que o Direito em si não seja visualizado sob a
forma de luta (como uma espécie de guerra entre o bem e o mal), mas como uma
ordem reguladora dotada de validade para todos, em nome da qual se discute e se
argumenta. "Em outras palavras, as figuras construtivas da dogmática nascente
deixam de ser parte imanente da ordem jurídica para serem mediação entre esta e
as decisões concretas (...)." (FERRAZ JÚNIOR, 1988b, p.70 e 86; 1980, p.3)
Na jurisprudência romana encontra-se portanto enraizada uma das notas
típicas que irá marcar o paradigma dogmático, que é a condição de Ciência
prática ou da ação, uma vez que
"(...) nela, está presente, de modo agudo, a problemática da chamada
Ciência prática, do saber que não apenas contempla e descreve, mas
também age e prescreve. Este caráter, aflorado na jurisprudência
romana, vai marcar o pensamento científico do direito no correr dos
séculos, tornando-se não só um dos traços distintivos, mas também
motivo para inúmeras tentativas de reforma, cujo intuito - bem
sucedido ou fracassado - será dar-lhe um caráter de Ciência, conforme
os modelos da racionalidade matemática." (FERRAZ JÚNIOR, 1988a,
p.21)

2.2. A herança exegética


Uma segunda herança latente, da idade medieval, que irá marcar a
Dogmática Jurídica, é a proveniente da tradição exegética, sobretudo à época dos
glosadores pois, com um caráter novo, mas sem abandonar o pensamento
prudencial dos romanos, ela introduz no pensamento jurídico a característica da
"dogmaticidade", cujo desenvolvimento foi possível 11

"(...) graças a uma resenha crítica dos digestos Justinianeus, a littera


boloniensis, os quais foram transformados em textos escolares do
ensino na universidade. Aceitos como base indiscutível do direito, tais
textos foram submetidos a uma técnica de análise que provinha das
técnicas explicativas usadas em aula, sobretudo no ´Trivium` -
Gramática, Retórica e Dialética, caracteri zando-se pela glosa
gramatical e filológica. Na sua explicação, o jurista cuida de uma
harmonização entre todos eles, desenvolvendo uma atividade
eminentemente exegética que era necessária porque os textos nem
sempre concordavam, dando lugar às ´contrarietates`, as quais, por sua
vez, levantavam as ´dubitationes`, conduzindo o jurista à sua discussão,
´controvertia`, ´dissentio`,´ambiguitas`, ao cabo da qual se chegava a
uma ´solutio`." (FERRAZ JÚNIOR, 1988b, p.61-2)

Desta forma, o surgimento da dogmaticidade, como nota típica da


teoria jurídica da idade média, não extingue o pensamento prudencial romano, mas
redefine-o, dando lugar a uma combinação entre prudência e dogmática: a
prudência se faz dogmática.
Se na Antigüidade Clássica, o Direito (jus) era um fenômeno de ordem
sagrada, imanente à vida e à tradição romana, conhecido através de um saber de
natureza ética, a prudência; desde a Idade Média percebe-se que, continuando a
ter um caráter sagrado, o Direito adquire todavia uma dimensão sagrada
transcendente com a sua cristianização, o que possibilita o aparecimento de um
saber prudencial já com traços dogmáticos. Por analogia com as verdades
bíblicas, o Direito tem origem divina e como tal deve ser recebido, aceito e
interpretado pela exegese jurídica. Desde o Renascimento ocorre, porém, um

11.Segundo WIEACKER (1980, p.38-9), a Ciência Jurídica européia nasce em Bolonha no século XI
e a origem do pensamento dogmático, em sentido estrito, pode ser localizada neste período.
processo de dessacralização do Direito, que passa a ser visto como uma
reconstrução, pela razão, das regras de convivência. (FERRAZ JÚNIOR, 1988b,
p.70)
Através da Escola do Direito Natural projeta-se assim, para o âmbito
jurídico, a concepção racionalista de Ciência:

"(...) o vasto e complexo Movimento do Direito Natural, (...)


representou, em resumo, a extensão da concepção racionalista da
Ciência ao campo das Ciências humanas, ou seja, a redução à Ciência
da experiência jurídica. (...) a unidade daquela que é chamada de
corrente do Direito Natural não é ideológica mas metodológica, e essa
unidade é dada justamente pela alcançada inserção do estudo ético-
jurídico na dominante concepção racionalista da Ciência e mecanicista
do mundo." (BOBBIO, 1980, p.177)

2.3. A herança sistemática

Delineia-se então a terceira grande herança que irá marcar o paradigma


dogmático: a herança sistemática proveniente do jusnaturalismo racionalista da era
moderna.
Se a tendência exegética de caráter dogmático, ao estilo dos glosadores,
dominou o pensamento jurídico medieval - assinalando um respeito pela
autoridade dos textos romanos a serem interpretados, tomados como pontos de
partida das séries argumentativas - a era subseqüente, chamada do Direito
Racional, irá introduzir a ligação entre pensamento jurídico e pensamento
sistemático. Entre as críticas então dirigidas à atividade dos glosadores estava sua
falta de sistematicidade pois, se existia neles um certo impulso para um tratamento
sistemático da matéria jurídica, estava ainda longe das exigências que a nova
Ciência moderna iria estabelecer. É nesta época que se introduz, igualmente, o
termo "sistema", que se torna escolar e se generaliza, tomando uma das
configurações básicas que hoje lhe atribuímos. (FERRAZ JÚNIOR, 1988b, p.65 e
1988a, p.22-3)
Assim, "a crença nos textos romanos foi substituída pela crença nos
princípios da razão, que doravante deveriam ser investigados para sua aplicação
sistemática." (FERRAZ JÚNIOR, 1980, p.3)
As relações entre Ciência e sistema datam, portanto, do século XVII,
quando o jusnaturalismo rompeu com os procedimentos usados pelos glosadores
e baseados na autoridade do direito romano. (ROCHA,1982, p.126)
A teoria jurídica européia, até então conformada como uma teoria
preponderantemente da exegese e da interpretação de textos singulares, passa a
receber um caráter lógico-demonstrativo de um sistema fechado, cuja estrutura
dominou e domina até hoje os códigos e o pensamento jurídico. Numa teoria que
deveria legitimar-se perante a razão, mediante a exatidão matemática e a
concatenação de suas proposições, o Direito conquista uma dignidade
metodológica toda especial.(FERRAZ JÚNIOR, 1988a, p.24 e 1988b, p.66)
Desta forma, a teoria jurídica, nos quadros do jusnaturalismo,
"(...) se de um lado quebra o elo entre jurisprudência e procedimento
dogmático fundado na autoridade dos textos romanos, não rompe, de
outro, com o caráter dogmático, que tentou aperfeiçoar, ao dar-lhe a
qualidade de sistema, que se constrói a partir de premissas cuja
validade repousa na sua generalidade racional. A teoria jurídica passa
a ser um ´construído sistemático` da razão, e em nome da própria
razão, um instrumento de crítica da realidade." (FERRAZ JÚNIOR,
1988a, p.26 e 1988b, p.67)

Em síntese, o jusnaturalismo moderno, ao produzir uma teoria jurídica


norteada pela idéia de sistema e pelo método sistemático, segundo o rigor lógico
da dedução, desloca o ponto de partida da teoria jurídica da autoridade para a
razão, introduzindo a noção de sistema como herança que não mais abandonará e
que constituirá uma das notas típicas do paradigma dogmático, não obstante o
deslocamento que fará em relação aos axiomas norteadores do sistema
jusnaturalista.
De qualquer modo, como lembra LARENZ (1989, p.19), se a idéia de
sistema, constitui, na Ciência Jurídica, uma herança da Escola do Direito natural,
também mergulha profundamente as suas raízes na filosofia do idealismo alemão.

3. O Positivismo 12 como matriz epistemológica do paradigma dogmático


de Ciência Jurídica

A condição de "Ciência prática", a atividade de "exegese ou


interpretação" e a noção de "sistema" constituem, então, as heranças mediatas
mais significativas da teoria jurídica européia para o paradigma dogmático que
somente se configura, contudo, sob a influência central e decisiva do positivismo,
pois "(...) parece evidente que o positivismo, no sentido mais amplo de sua
acepção, condiciona de modo essencial a estrutura e o conteúdo da teoria
disponível."(PUCEIRO, 1981, p.31)

12. A ambigüidade do signo positivismo impõe alguns esclarecimentos sobre os sentidos em que o
empregamos nesta tese.
Distinguimos entre o positivismo materializado através de escolas de pensamento específicas que,
do ponto de vista da história das idéias, se desenvolvem com uma certa homogeneidade e
continuidade e o positivismo como conceito classificatório, cuja formulação remete a diferentes
raízes e tradições de pensamento.
Como Escolas reconhecemos a Filosofia Positiva (representada por SAINT-SIMON (na
primeira fase de seu pensamento) COMTE, SPENCER, DARWIN e outros), a Escola positiva
italiana (representada por LOMBROSO, FERRI, GARÓFALO e outros) e a Escola de Viena,
Neopositivismo ou Positivismo lógico (representada por WITTGENSTEIN (na primeira fase de
seu pensamento) CARNAP e outros).
Como conceitos classificatórios consideramos aqui o positivismo e o positivismo jurídico.
Por positivismo, positivismo científico ou concepção positivista (expressões usadas aqui como
equivalentes) entendemos um conceito classificatório que traduz um núcleo ou unidade mínima e
genérica de sentido desta matriz epistemológica que permita abarcar as suas heterogêneas raízes
e desenvolvimentos (como as Escolas citadas e outros) É este conceito classificatório que
explicitaremos a seguir.
Desta forma, se a Escola do Direito Natural (1600-1800) operou o
trânsito do ideal científico racionalista para o âmbito jurídico, o "o momento
fundacional do método jurídico moderno deve ser fixado no instante do trânsito
do jusnaturalismo racionalista ao positivismo, operado através do historicismo
(PUCEIRO, 1980, p.59)

3.1. A concepção positivista de Ciência

A pedra angular do positivismo é o princípio do cientificismo, o qual


consagra a Ciência como a única forma válida de conhecimento, fazendo dela o
principal motor do progresso humano. O sentido do conhecimento resulta
definido pelo que realizam as Ciências. (PUCEIRO, 1980, p.16; BOBBIO, 1980,
p. 178-9; CUPANI, 1985, p.13-4)
Se, na concepção racionalista (GALILEI, HOBBES, LEIBNIZ) o
mundo era visto como um sistema ordenado regido por leis universais e
necessárias que o homem, enquanto ser razoável, era dotado de capacidade de
compreender, e a Ciência, conseqüentemente, concebida como adequação da
razão subjetiva do homem à razão objetiva do universo; na concepção positivista,
o mundo já não se define como um conjunto de leis absolutas e predeterminadas,
mas como um conjunto de fatos, causalmente determinados, incumbindo à
Ciência descobrir as leis em que o determinismo se manifesta. (BOBBIO, 1980,
p.175-6 e 178)
Ou, como a sintetizaria HABERMAS (1983, p.303) para a concepção
positivista "o mundo aparece como um universo de fatos, passivo de descrição,
revelado pela conexão interior factual sujeita a leis".
É sobre estes pressupostos que se funda a idéia geral de Ciência do
positivismo. Os dados sensíveis da experiência, isto é, os fatos verificáveis
(passíveis de observação, recolhimento e experimentação metódicos) constituem
o princípio e o fim (o guia) da investigação científica. O que não é redutível a fato
experimentalmente controlável não entra no sistema da Ciência. E como esta, para
o positivismo, é a única forma possível de conhecimento, não é sequer
cognoscível. Por outro lado, para a totalidade destes fatos sensíveis - do mundo
exterior ou interior (anímico) - vale a lei geral da causalidade: todo fenômeno tem
a sua causa, cronologicamente anterior, a qual, de harmonia com as leis naturais,
produz necessariamente aquele efeito. A missão da Ciência é descobrir as leis de
harmonia mediante as quais o determinismo se realiza em pormenor e, a partir
desta descoberta, explicar os fenômenos. (LARENZ, 1989, p.43)
Neste ponto de partida "o pensamento positivista revela-se como
paradigmático o modelo das Ciências da natureza como Ciências exatas, sendo,
nessa medida, o positivismo um naturalismo." LARENZ (1989, p.42)
Desta forma, o positivismo rejeita a especulação filosófica como
metafísica - porque não passível de verificação empírica - e reduz a Filosofia à
Filosofia da Ciência (Epistemologia). 13
E esta rejeição do racionalismo metafísico e do universalismo vai
essencialmente acompanhada de uma valorização do método de modo que

"Para o positivismo, a Ciência é inconcebível sem o método. O afã de proceder metodicamente e o aperfeiçoamento
do método seriam os fatores dos quais derivariam todas as virtudes da Ciência, a começar pela sua objetividade".
(CUPANI,1985, p.60-1)

13.Esta rejeição da metafísica, endereçada à desqualificar a concepção racionalista da Ciência deve,


contudo, ser bem compreendida.Pois, como adverte BOBBIO (1980, p. 178), "A concepção
positivista da ciência não se distingue (...) da metafísica pelo distinto resultado a que tende - o
resultado é sempre a verdadeira lei da natureza - mas pelo distinto modo de obtê-lo (...).
O positivista é antimetafísico já não porque não comparta a idéia metafísica do saber total, mas
porque pensa que este não é o caminho: que o caminho para chegar ao saber total não é o
caminho especulativo mas o experimental. Ao fundo do caminho positivista, como do metafísico,
está a ciência verdadeira, a ciência total, a ciência absoluta, está a explicação verdadeira, única e
defintiiva de todas as coisas".
A ênfase do positivismo recai, desta forma, sobre os métodos e regras
de constituição do conhecimento, independentemente do domínio da realidade a
que se aplicam e dos sujeitos que o produzem, que perdem toda significação para
uma teoria do conhecimento reduzida ao âmbito da metodologia.
As Ciências se apresentam então como um sistema de procedimentos e
proposições; como um conjunto de regras segundo as quais as teorias são
construídas e verificadas.O científico é, antes de tudo, um registrador de fatos e
somente através desta obra de exploração e registro pode compor relações
constantes ou leis gerais, embora sujeitas à experimentação por novos fatos. E a
objetividade, para o positivismo, equivale a controle intersubjetivo graças ao qual
os enunciados científicos correspondem ao objeto, isto é, à "realidade".
(CUPANI, 1985, p.59)
Conseqüentemente, um conhecimento será considerado científico na
medida em que ostente as características externas de tal; ou seja, se articule a si
mesmo de modo sistemático e coerente e resista, a seguir, aos procedimentos de
verificação empírica das hipóteses em que se apóia. Os positivistas estão assim
persuadidos da existência de uma maneira científica de proceder (científica por si
mesma, por assim dizer) fora da qual não haveria Ciência, de modo que fazê-la,
equivale a utilizar o método científico. (CUPANI, 1985, p.61)

3.2. A recepção da concepção positivista de Ciência pela Escola Históri-


ca: configuração e identidade metodológica do paradigma dogmático

- Objeto e tarefa metódica da Dogmática Jurídica


A concepção positivista de Ciência servirá assim de fundamento à
tentativa mais acabada de edificação de uma Ciência Jurídica à maneira moderna
(OLLERO, 1982, p. 24) de forma que a

"(...) dualidade racionalidade-prática, que pulsa no núcleo do direito,


vai exigir uma abordagem especial quando a virada da teoria do
conhecimento na modernidade tende a aproximar progressivamente -
até torná-los inseparáveis - os termos racionalidade e Ciência. O
método não é mais caminho para a verdade e passa a ser condição
indispensável da mesma. A tarefa jurídica, para não perder suas
pretensões de racionalidade, procura a proteção da metodologia
científica; esta, por sua vez, parece exigir um progressivo afastamento
de sua dimensão prática." (OLLERO, 1982, p.23-4)

Ela dará origem, no âmbito jurídico, a uma ampla gama de tendências


doutrinárias, expressando-se nos capítulos metodológicos do "Sistema de Direito
Romano atual" de SAVIGNY e cuja matriz fundamental está, talvez, no livro II do
"Espírito do Direito Romano", de JHERING.14 (PUCEIRO, 1981, p. 16 e 25)

Sobre o conceito de positivismo jurídico trataremos a seguir neste capítulo.

14.É importante registrar, neste sentido, que é a Escola histórica alemã não apenas quem vai criar o
termo "Ciência Jurídica", mas também quem vai se empenhar em dar à investigação do Direito um
caráter científico. (FERRAZ JR., 1988a, p.18)
A obra jurídica de RUDOLF VON JHERING se caracteriza por uma significativa linha divisória.
Enquanto no primeiro período de sua criação, sobretudo no "Espírito do Direito Romano",
JHERING não apenas apoiou a Jurisprudência dos Conceitos formal de PUCHTA, mas a elevou
ao seu ápice, no segundo período, de que são expressão já o próprio livro III do "Espírito" e as
obras "O fim no Direito" e "A luta pelo Direito", perseguiu-a com sarcasmo e procurou substitui-la
por uma orientação muito diversa.
Quanto à FRIEDRICH SAVIGNY, também há que se diferenciar a obra de juventude da obra de
maturidade. PUCEIRO (1981, p.59-96) assinala três etapas na sua evolução intelectual. A
primeira, deve ser situada em torno das "lições de metodologia" (Juristische Methodenlehre)
ministradas em 1802-1803 na Universidade de Marburgo e de seu ensaio sobre a posse, o menos
conhecido. A segunda se expressa através dos escritos programáticos de 1814 e 1815 através dos
quais SAVIGNY pode ser considerado o fundador da Escola histórica. A etapa final deve ser
situada em torno de 1840, ano de publicação do primeiro volume do seu "Sistema de Direito
romano atual", obra na qual culminam quatro décadas de reflexões metodológicas.
A respeito ver também LARENZ (1989, p.10-26 passim).
Para os representantes da Escola Histórica, não obstante seus
deslocamentos de concepções, o Direito é o dado; o historicamente posto, por
uma vontade determinada em um contexto espacial e temporal específico. Tanto
para SAVIGNY quanto para JHERING o Direito não se reconhece, como na
teoria do Direito natural, a partir de seu conteúdo, mas a partir de sua forma de
aparição na vida social. É a "positividade o que constitui formalmente ao objeto
'Direito'." (PUCEIRO, 1981, p.16)
Com a afirmação da pertinência do Direito ao âmbito das realidades
históricas e, portanto, ao dos fatos empiricamente verificáveis, a idéia
jusnaturalista de um Direito abstrato e universalmente válido é relegado ao campo
das ideologias ou da metafísica. Toda a afirmação de leis ou princípios
pretensamente universais é, por sua própria impossibilidade de verificação
empírica, matéria da subjetividade e está, portando, subtraída ao domínio da
Ciência.
O saber jurídico busca sua cientificidade através da eliminação
sistemática de tudo aquilo que, de um modo ou de outro, não se refira a sua
positividade.
É nesta ordem de idéias que

"O objetivo da ciência jurídica, outrora vinculado ao empreendimento


construtivo da Ciência do direito natural, fica limitado à exposição das
condições de realização dos métodos e regras práticas da construção
jurídica. A Ciência do direito é Ciência do Direito Positivo, vale dizer,
daquilo que, desde um ponto de vista estritamente experimental cabe
verificar como direito." (PUCEIRO, 1981, p. 26-7)

Considera-se proveniente de SAVIGNY o giro epistemológico mais


importante produzido pelo conhecimento jurídico para a gênese da Dogmática
pois, com o entendimento do Direito e sua Ciência como história e sistema que se
demandam reciprocamente contribuiu de maneira sem precedentes para a
elaboração do modelo da Dogmática. De forma que no seu legado à Ciência
Jurídica, tão importante como o fator histórico é o sistemático, inseparavelmente
associados. O conhecimento sistemático qualifica o saber jurídico como
Ciência.(HERNÁNDEZ GIL, 1981, p. 24-29)
Neste sentido, os primeiros escritos de SAVIGNY (Lições de
Metodologia e sobre a posse) já adiantam vários dos temas mais importantes do
"Sistema", pois neles a vocação sistemática da época se enlaça com um novo
modelo de investigação cientifica embuído, todavia, de uma clara consciência da
relevância científica da singularidade dos acontecimentos históricos. (PUCEIRO,
1981, p.67)
Este resgate da importância da individualidade e da concreção histórica
dos materiais jurídicos (do individual na história) dista ainda da consciência da
historicidade do direito - entendido como dinamismo orgânico e espontâneo da
vida real - que caracteriza os escritos de 1814 e 1815.
Ao reconstruir a noção de posse o Direito aparece, para SAVIGNY,
como um dado positivo elaborado por um legislador historicamente determinado.
Como tal, apresenta a forma e a estrutura de um sistema, entendido no sentido que
obterá a partir da Escola Histórica. Se trata de um sistema imanente à realidade
social; de um subsistema dentro da totalidade do sistema social.
Sua visão da interpretação é conseqüente com dita visão geral do
Direito. Interpretar é reconstruir o sentido da lei - frase que conservará vigência até
o "Sistema" e dali se transferirá à Dogmática Jurídica. Como operacão intelectual
destinada a dar conta do sentido das normas, a interpretação tem por objetivo uma
sorte de objetivação da realidade histórica. (PUCEIRO, 1981, p.68)
História e sistema se supõe que se exigem mutuamente. Toda a teoria da
interpretação exposta por SAVIGNY, desde as "Lições" até o "Sistema", está
presidida pela idéia de que o sistema jurídico é uma totalidade hermética, princípio
baseado, por sua vez, na crença de uma racionalidade natural imanente ao mesmo.
É por isso que os diversos métodos interpretativos se reduzem em última instância
ao lógico-sistemático. (PUCEIRO, 1981, p.70)
A interpretação, especialmente a judicial se limita, conseqüentemente, ao
conhecimento científico dos materiais normativos,

"(...) como condição básica para a existência de um sistema social


baseado na previsibilidade dos comportamentos, a segurança e certeza
das relações e a primazia de um mecanismo abstrato de controle e
resolução de conflitos. Tudo isso supõe a colocação no primeiro plano
do interesse da Ciência da idéia de objetividade ou neutralidade
valorativa e, plano das técnicas, a proibição da interpretação
autêntica." (PUCEIRO, 1981, p.71)

Contudo, a primeira formulação teórica da Dogmática, que segue sendo


a mais completa e sugestiva, se deve ao JHERING do "Espírito do Direito
Romano":

"Antes de Jhering e antes inclusive da Escola histórica, mas sobretudo


a partir desta se vinha submetendo o Direito Positivo a um modo de
pensá-lo e tratá-lo, chamado dogmático, no que a operação
fundamental consistia na construção jurídica. Não obstante, havia um
grande vazio explicativo. O delineamento de Savigny era mais geral.
Por isso poderá dizer Jhering com razão: 'A Ciência parece muda, e
longe de estabelecer a teoria da construção jurídica, nem ainda tentou,
que eu saiba, sua definição'. O vazio ficou amplamente
coberto."(HERNÁNDEZ GIL,1981, p.30)

A partir, sobretudo, dos capítulos metodológicos do "Espírito do


Direito Romano", se distinguem dentro do corpo da Ciência uma primeira escala
ou fase do conhecimento que JHERING denomina jurisprudência inferior (a
interpretação) e uma escala mais alta, a jurisprudência superior, centrada na
conceitualização e sistematização.
A primeira, que é atividade interpretativa comum do cientista e do jurista
prático, engloba a análise a a concentração lógica; a segunda, que incumbe apenas
ao cientista, é a construção jurídica.
Se a tarefa da interpretação é, em SAVIGNY, uma forma de conceber o
conhecimento na esfera do Direito, em JHERING e já, definitivamente, para a
Dogmática, é uma etapa primeira e inferior da atividade de construção científica.
O campo da interpretação situa-se na fase analítica que precede à
conceitualização e sistematização. A partir da Escola Histórica interpretar será,
antes de tudo, reconstruir o pensamento contido na lei, o que marca a desaparição
do intérprete do campo da interpretação como reflexo do fenômeno mais
profundo pelo qual o sujeito cognoscente deixa de ser, para a teoria positivista, o
sistema de referência obrigatório do ato de conhecimento.
Logo, o modelo cognoscitivo da Dogmática está integrado pela análise,
a concentração lógica ou síntese e a construção jurídica, que constituem as três
operações fundamentais do método ou a técnica jurídica.(PUCEIRO,1981, p.18-
20; HERNÁNDEZ GIL, 1981, p.32)
O paradigma científico da Dogmática é assim perspectivado para as
seguintes notas distintivas:

"a) O objeto da tarefa dogmática são as normas positivas de origem


estatal.
b) A tarefa da dogmática é a construção científica de um sistema
conceitual capaz de dar razão rigorosa da totalidade da experiência
jurídica, elaborada a partir do material que oferecem as regras
positivas." (PUCEIRO, 1981, p.41)
De acordo com estes pressupostos, o núcleo do paradigma dogmático
estará constituído pela idéia de construção jurídica, que especificamente o
qualifica.
A construção é, para JHERING,15 uma aplicação do método da história
natural à matéria jurídica que opera a conversão das regras em definições
jurídicas. Seu resultado arquetípico é o sistema. Conhecer é sistematizar e
sistematizar é construir. A Dogmática aparece, assim, como o conjunto de
operações construtivas do jurista e, em outra possível acepção derivada, como o
resultado final desta tarefa, expressa sob a forma de um conjunto sistemático de
categorias científicas, destinado a dar razão da totalidade da experiência jurídica.
Deste forma, o Direito é inintelegível sem uma referência a sua conexão sistemática
interna. Esta se apresenta como uma exigência lógica, derivada da própria natureza
do objeto Direito e não como o resultado da aplicação artificial de uma ordem
externa. (PUCEIRO, 1981, p.109-110)
O ponto de partida da reflexão metodológica de JHERING consiste
assim

"(...) na afirmação de que o método jurídico não é uma regra exterior


arbitrariamente aplicada ao direito, e sim o resultado exigido pela
própria natureza do fenômeno jurídico - 'o método único' -. Seus
princípios e regras, as operações que o conformam desde o momento de
máxima simplicidade até sua fisionomia mais complexa e elaborada
vem exigidas por uma necessidade essencial, que outra não é senão o
encargo instrumental do direito: 'o regular de maneira segura a marcha
do direito no domínio da prática'." (PUCEIRO, 1981, p.125-6)

15.LUHMANN (1983, p.19) assinala, nesta perspectiva, que o conceito de construção jurídica de
Jhering, ao promover a inserção do "sistema" no próprio objeto (Direito) e a fundamentação da
própria "sistemática" científica a partir dele, requer como conseqüência a passagem à concepção
do sistema jurídico como sistema parcial da realidade social (sociedade; ou seja, uma diferenciação
do sistema jurídico como subsistema social.
Os conceitos da Dogmática, elaborados sobre a base de um esquema
lógico de indução-dedução, assumem uma espécie de "expansão lógica"
JHERING que lhes outorga uma força normativa similar àquela da matéria-prima
fornecida pela análise química. Assim, embora JHERING sustente que a
construção deve aplicar-se diretamente ao Direito Positivo, o paradigma
dogmático não se apoia, geneticamente, nas normas jurídicas, entendidas como o
limite da experiência jurídica possível. Pois a tarefa metódica de índole construtiva
se projeta para além dos termos em que se circunscreve o dado positivo,
reenviando o jurista para a descoberta e apreensão de conceitos e princípios
(latentes) a que as normas se referem de modo não exaustivo.
Este é o significado da expressão "conceitualismo genético" a que se
costuma fazer referência para designar a "Jurisprudência dos Conceitos" (1º
Jhering): o dado genético do Direito é o conceito.
Assim,
"O direito é algo mais que uma massa de leis - afirma Jhering em
diversas oportunidades - e as dificuldades mais sérias para sua
assimilação não residem, tanto no número ou quantidade de normas
como na natureza das mesmas, inacessível a uma apreciação
puramente quantitativa." (PUCEIRO, 1981, p.121)

Do exposto sobre as idéias de JHERING podem ser sublinhados três


aspectos fundamentais: a) a consideração da linguagem da Dogmática como uma
linguagem indicativa, pois situa a Ciência Jurídica no plano da descrição,
aproximando os resultados da construção jurídica do ideal moderno de Ciência:
suas proposições descrevem ou indicam situações normativas; b) a
conceitualização das normas como uma lógica do Direito; e, c) o reconhecimento
de uma finalidade prática que se impõe como uma derivação (interna) da própria
estrutura da construção científica: o momento prático fica de certo modo
subsumido no momento teórico.
Nesta perspectiva
"O postulado de sistematicidade, concebido como qualidade inerente ao
objeto com que opera a ciência jurídica, não pode menos que
condicionar, no Jhering do espírito, a idéia de uma ciência jurídica que
ergue sua sistematicidade sobre a base do "fundamento objetivo" que
oferecem os próprios materiais a que tem acesso o jurista. (...) A
'construção' se orienta, precisamente, a um tratamento técnico dos
dados jurídicos que atende tanto à necessidade de rigor lógico que é
característico da ciência como à imprescindível concretização que
exigem os imperativos da prática." (PUCEIRO,1981, p.114-5)

- A Dogmática Jurídica como Ciência Prática

A condição de Ciência "prática" que, marcando a Ciência Jurídica


desde a antigüidade, reaparece aqui condicionando essencialmente o paradigma
dogmático.
Com efeito, tendo pontualizado que o Direito existe para se realizar e
que em tal dimensão prática alcança sua vida e verdade, isto é, o seu próprio ser,
JHERING pontualizou também que uma vez que os diferentes Direitos se
cumprem todos e por toda parte da mesma maneira, seu conteúdo material pouco
importa. O decisivo é que é possível determinar de uma forma geral e absoluta
"como" o Direito se realiza. Por outro lado, sob esta relação existe um "ideal
absoluto" perseguido por todo Direito , qual seja, "que o Direito deva realizar-se
de um modo necessário, seguro e uniforme e, ademais, de uma maneira fácil e
rápida" circunstância esta última que apresenta diferenças notáveis nas várias
legislações. (JHERING citado por PUCEIRO, 1981, p.126).
Sendo assim, todo o problema do tratamento do Direito radica em
como se realiza. Trata-se de uma questão de forma e não de conteúdo, ainda que
este reverta inevitavelmente sobre aquela.
E é em torno ao modo de realizar-se que aparecem

"(...) a técnica de aplicação, que é uma arte, e a teoria correspondente,


que é a ciência. O conhecimento, tema da ciência, recai sobre a
realização, dentro da qual fica compreendida a técnica de aplicação.
Portanto, a teoria vem a ser uma reflexão centrada sobre a prática e a
aplicação do direito." (HERNÁNDEZ GIL, 1981, p. 30-1)

A teoria da técnica jurídica busca então determinar as condições sob


as quais o Direito seria capaz de cumprir aquele ideal de segurança com um
máximo de economia e celeridade, independentemente ou com abstração dos
conteúdos concretos de cada ordenamento jurídico em particular. Sua finalidade
essencial é consolidar o princípio da certeza como base para a segurança do
tráfego jurídico. (PUCEIRO, 1981, p.126)
Neste sentido

" (...) a Dogmática leva em consideração tanto o momento normativo


como o momento aplicativo. Os resultados da operatividade científica
também chegam à aplicação. Mais ainda, esta aparece pressuposta na
própria elaboração da teoria."(HERNÁNDEZ GIL, 1988a, p.45)

E porque impera no Direito uma necessidade tão lógica e imperiosa de


realização, as reflexões elaboradas sobre a base do Direito Romano antigo
puderam ser elevadas à linguagem geral da técnica jurídica, com abstração dos
ordenamentos jurídicos concretamente considerados.
Ser uma Ciência prática não significa, portanto, que a Dogmática
Jurídica se ocupa do conteúdo ou da fenomenologia da prática do Direito, mas
que se trata de uma Ciência intrínseca e imediatamente empenhada numa "função"
prática (DIAS e ANDRADE, 1984, p.99-100) e, como tal, se ocupa da forma
(técnica) de aplicação do Direito que integra o objeto de sua reflexão teórica de
tal modo que, nela, o escopo prático domina o teórico. (NOVOA MONREAL,
1982, p.175).
De qualquer modo, em JHERING, o reconhecimento desta função
prática não descaracteriza a natureza teórica e descritiva da Ciência Jurídica.
Por outro lado, no marco das exigências científicas em que tem lugar
seu contributo metodológico para a Dogmática Jurídica, o distanciamento da
prática deveria ser benéfico para a própria racionalização da prática jurídica, de
modo que se a construção metódica do sistema

"(...) por momentos abandona o que para uma visão superficial poderia
ser a 'prática', não é senão para remontar-se à origem das instituições e
determinar assim a sua inserção sistemática: 'para ser prática, a
jurisprudência não deve se restringir unicamente às questões práticas'."
(PUCEIRO, 1981, p.136)

Assim, como referimos na introdução deste capítulo, se por um lado a


Dogmática Jurídica responde à separação entre teoria e práxis e a conseqüente
afirmação de um modelo de saber jurídico como atividade essencialmente teórica,
presidida por uma atitude axiologicamente neutra e tendencialmente descritiva há
nela, por outro lado, uma evidente funcionalização prática da teoria.

- A redefinição das heranças na tipificação historicista do


paradigma dogmático
Em definitivo, pois, na base de configuração do paradigma dogmático
de Ciência Jurídica encontra-se o deslocamento do objeto do saber jurídico da
razão para a história - o Direito historicamente posto - em função do qual se
redimensiona a tarefa metódica da Ciência Jurídica que, passa a centrar-se na
construção jurídica.
Reaparecem assim redefinidas as heranças jurisprudencial, exegética e
sistemática. No seio do paradigma dogmático, orientado para a realização do
Direito, a interpretação não é senão um capítulo preliminar da construção jurídica
que encontra seu momento culminante no sistema.
A noção de sistema, entendida como ordenação coerente e orgânica das
proposições descritivas de uma dada realidade, é metodologicamente assimilada
pelo paradigma dogmático que desloca, contudo, os axiomas enraizados na
sistemática jusnaturalista. Pois, enquanto estes são proposições relativas a uma
ordem ideal, os axiomas da Dogmática são, a partir do historicismo (e de modo
nítido do juspositivismo, como veremos) proposiciones acerca do ordenamento
jurídico-positivo.
Aquilo que a razão representou para o Jusnaturalismo passou a ser
substituído pelo fenômeno histórico. Surgiu assim a Dogmática moderna desta
exigência de uma fundamentação histórica de suas construções.
Operacionalmente, isto significou, guardadas as devidas proporcões, uma síntese
do material romano com a sistemática do jusnaturalismo e uma vinculação do
historicismo com uma teoria do Direito prático. (FERRAZ JÚNIOR, 1988b, p.74-
5)
Paradoxalmente, contudo, surgida contra o racionalismo a-histórico da
Escola da exegese, a Escola histórica, "contribuiu, mais que nenhum outro
movimento ideológico a introduzir no método jurídico a preocupação pelo rigor
lógico e pelas construções sistemáticas abstratas." de forma que originariamente
vocacionada para um sociologismo jurídico engendrou um dogmatismo e um
formalismo conceitual.( MIR PUIG, 1976, p.210)16
Com efeito, no modelo dogmático, os componentes lógico-sistemáticos
terminariam por sobrepor-se aos históricos. No próprio Savigny já se aprecia esta
inclinação. Se o grito de combate foi o historicismo, o efetivamente conseguido e
legado à Ciência posterior foi uma racionalização do discurso jurídico não
alcançada anteriormente com relação ao Direito Positivo. (HERNÁNDEZ GIL,
1981, p.29)
A Ciência Jurídica é assim,

"(...) ciência formal, que de maneira substancial idêntica à do modelo


racionalista se orientará para a construção do sistema conceitual geral,
embora exercendo o seu novo approach sobre o material de uma
realidade historicamente circunscrita." (PUCEIRO, 1981, p.27)

4. O positivismo jurídico de inspiração liberal e sua recepção pelo


paradigma dogmático de Ciência Jurídica

16.Com efeito, ocorre no interior da Escola histórica ( que se desenvolve ao longo de praticamente
seis décadas) um deslocamento de sua preocupação originária, tal como aparece em seus escritos
fundacionais, de dar ao pensamento jurídico um caráter científico através da incorporação da
História do Direito ao pensamento jurídico, pela ênfase que passa a ser conferida à Dogmática,
como teoria do Direito vigente. A Ciência Jurídica, nos quadros da Escola histórica,
originariamente aspirando a se constituir como Ciência histórica do Direito, passa a se configurar
como Ciência Dogmática e formal. (FERRAZ JR., 1988b, p.74-5 e PUCEIRO, 1981, p.27)
Todavia, este aparente paradoxo, em que uma concepção metodologicamente histórica do Direito
desemboca numa separação entre Ciência e Dogmática, assumindo esta uma posição relevante e
até certo ponto distanciada dos próprios fenômenos históricos, pode ser desfeito ao perquirirmos o
conceito de história que lhe é imanente. É que o Direito passava a ser assumido como fenômeno
histórico não no sentido de que estava na história; ou seja, de que era recolhido na temporalidade
efêmera do acontecer humano, mas no sentido de que era história na sua essencialidade - um
processo feito pelo homem. Todavia, como este processo é análogo ao da fabricação (a história
como um fazer e não como um agir), ele tem começo, meio e fim. E, ao final do processo, o
Direito feito, é o Direito vigente. Desta forma, embora a Escola histórica insistisse na historicidade
do método, ao final da pesquisa, o resultado se tornava mais importante do que a própria
investigação que o precedera. Daí a presença que a Dogmática do Direito vigente assume, no
pensamento jurídico, em relação à sua história. (FERRAZ JR., 1988b, p.74-5)
Se com a Escola histórica ficam configuradas, nesses termos, as
notas típicas do paradigma dogmático tal como se transfere à Ciência Jurídica
posterior (PUCEIRO, 1981, p.25) é com o positivismo jurídico que ele assumirá
uma identidade autônoma e acabada.
4.1. Caracterização do positivismo jurídico17

BOBBIO (1980, p.39-40) alude a uma tríplice raiz do positivismo


jurídico que, portando tradições, conteúdos e elaborações distintas, permite-nos
circunscrevê-lo e situar sua recepção pelo paradigma dogmático.
Distingue, assim, três aspectos de manifestação histórica do positivismo
jurídico, que o caracterizam:
a) O positivismo jurídico como modo de aproximar-se ao estudo do
Direito (approach ao Direito);
b) O positivismo jurídico como determinada teoria ou concepção do
Direito; e
c) O positivismo jurídico como ideologia.

-O juspositivismo como approach ao Direito

17.Aambigüidade presente no signo "positivismo" se expande quando adjetivado de "jurídico", pois o


juspositivismo não corresponde a uma Escola de pensamento, reconhecendo diversas fontes, como
o empirismo inglês desde BENTHAM, o pensamento francês da Escola da exegese e a
Pandectista alemã, que corresponde a uma derivação da Escola histórica a partir de
WINDSCHEID.
A dificuldade em caracterizá-lo a partir de um quadro conceitual monolítico se acentua também
pela inexistência, ao que saibamos - e ao contrário do que sucede com o jusnaturalismo - de uma
história ampla, documentada e exaustiva do juspositivismo.
E tais dificuldades em precisar o sentido e o alcance do positivismo jurídico encontram-se muito
significativamente manifestas nas divergências da teoria jurídica, entre uma caracterização unitária e
uma caracterização multifária desta matriz jurídica.
Da primeira orientação participam autores como UBERTO SCARPELLI e GARCÍA MAYNEZ.
Da segunda, autores como HERBERT HART, MARIO GATTANEO e NORBERTO BOBBIO.
(A respeito ver MAYNEZ, 1977, p.42 et seq).
Seguimos nesta tese, o conceito classificatório de positivismo jurídico oferecido por Bobbio que,
não obstante as críticas experimentadas, consideramos de grande força explicativa para
circunscrever a identidade do paradigma dogmático de Ciência Jurídica. É necessário levar em
conta que, em se tratando de um conceito tripartida a atribuição de juspositivista a uma obra ou
pensador,nela baseada, pode se dar tanto em sentido parcializado - na medida em que
corresponda a algum de seus aspectos - ou global - na medida em que corresponda a todos eles.
A respeito do "formalismo jurídico" e sua relação com o positivismo jurídico e o paradigma
dogmático, ver BOBBIO (1965, p.11-36), MAYNEZ (1977, passim), PUCEIRO (1981, p.28-
31 passim).
Esta acepção não traduz o método (instrumentos e técnicas
empregados na investigação jurídica), a respeito do qual o positivismo jurídico
não apresenta uma caracterização peculiar, mas a delimitação do objeto
investigado - o Direito - a partir de um enfoque específico.
Trata-se de uma forma de aproximação ao estudo do Direito que pode
ser designada de científica precisamente por se inserir no movimento mais geral
das Ciências para uma distinção radical entre fatos e valores; para a exigência de
objetividade e neutralidade valorativa como critérios de cientificidade. (BOBBIO,
1981, p.40-1).
Como approach ao Direito, o positivismo jurídico se caracteriza, pois,
por uma nítida distinção entre Direito Real ou Positivo e Direito Ideal; entre Direito
como fato e Direito como valor; entre o Direito que é e o Direito que deve ser e
pela convicção de que o objeto da Ciência Jurídica deve ser necessariamente o
primeiro, nas dicotomias. (BOBBIO,1981, p.41-3)
Assim

"Se se aceita chamar de direito positivo o direito vigente em uma


determinada sociedade, isto é, aquele complexo de regras emanadas
segundo procedimentos estabelecidos, que são habitualmente
obedecidas pelos cidadãos e aplicadas pelos juízes, pode-se definir
'positivismo jurídico' como teoria do direito que parta do pressuposto
de que o objeto da ciência jurídica é o direito positivo; isto e algo
diferente a afirmar que 'não existe outro direito que o direito positivo'.
O jurista que faz profissão de fé positivista não nega geralmente que
exista um direito ideal natural ou racional, mas simplesmente nega que
seja direito na mesma medida que é o direito positivo, dando a entender
que o mesmo caráter que o distingue do direito positivo, ou seja, o fato
de não ser vigente, é o que exclui o interesse de fazê-lo objeto de
investigação científica." (BOBBIO, 1981, p. 43)18

18.Esta caracterização de BOBBIO foi objeto de crítica de MAYNEZ (1977, p.22) que, desde uma
perspectiva unitária de definição do juspositivismo, sustenta que a distinção entre "Direito real" e
"Direito ideal" protagonizada por BOBBIO - embora proceda de AUSTIN - contradiz a essência
do positivismo jurídico, a saber, "o monismo jurídico positivista, ou a afirmação de que não há
mais Direito que o "positivo" entendendo por tal o que o poder público, através de seus órgãos,
cria, reconhece e aplica."
Este approach do positivismo jurídico se fundamenta no juízo de
conveniência segundo o qual partir do Direito que "é", ao invés do Direito que
"deve ser", serve melhor ao fim principal da Ciência Jurídica: o de proporcionar
esquemas decisórios aos órgãos jurisdicionais e construir o sistema da ordem
vigente, pois, como o demonstra a verificação histórica, é este o Direito que se
aplica nos tribunais e que interessa conhecer. (BOBBIO, 1981, p.49)
Nesta acepção, positivista é, conseqüentemente, aquele que adota frente
ao Direito uma atitude avalorativa ou eticamente neutra prescindindo, na sua
delimitação,de juízos finalistas ou axiológicas, numa clara rejeição aos critérios
jusnaturalistas de validade do Direito. (BOBBIO, 1981, p.42)
Através desta orientação metodológica o positivismo jurídico pretende
pois, fundamentalmente, delimitar a esfera do Direito enquanto objeto da Ciências
Jurídica e seu principal efeito é, a nosso ver, o de conformar a ideologia da
"neutralidade ideológica" da Ciência Jurídica.

-O juspositivismo como teoria

A crítica, contudo, é improcedente. Em primeiro lugar, desconsidera a cautela de BOBBIO no


tratamento da aludida dicotomia, pois ele afirma que o jurista positivista "em geral" não nega um
Direito ideal, o que, como toda regra, admite exceções, mas nega sua legitimidade como objeto da
Ciência Jurídica. E é este o monismo característico do positivismo jurídico como aproximação ao
estudo do Direito.
A autoridade da teoria kelseniana como approach juspositivista confirma a regra. KELSEN não
nega a existência de um Direito ideal, embora postule sua exclusão do objeto da Ciência Jurídica.
E é da dicotomia mesma entre "Direito que é" e "Direito que deve ser", manifesta desde a primeira
página de sua Teoria Pura, que ele parte para delimitar, respectivamente, o âmbito da Ciência
Jurídica e da Política Jurídica, que se ocupa, então, do Direito que "deve ser" (ideal). (KELSEN,
1976)
Na acepção de teoria, o positivismo jurídico designa uma particular
concepção do Direito que vincula o fenômeno jurídico ao Estado, enquanto poder
soberano detentor do monopólio da lei e da coerção, identificando-se então com
uma teoria estatal do Direito que expressa, historicamente, a tomada de
consciência, por parte dos juristas, do complexo fenômeno na formação do
Estado moderno, mediante o qual este assume o monopólio da produção do
Direito e do seu asseguramento coativo. Daí porque este aspecto tem sido
designado de positivismo estatalista-legalista .
BOBBIO (1981, p.44) assinala, neste sentido, que o nexo existente entre
o positivismo como approach e o positivismo como "teoria" não é um nexo
lógico; porém fático ou histórico:19

"Quando os juristas no fim do século XVIII se afastaram pouco a pouco


do direito natural e foram atraídos pelo estudo do direito positivo até
dissolver a teoria do direito natural na filosofia do direito positivo, o
direito positivo que se lhes apresentava como objeto de estudo era o
direito unificado pelo poder estatal das monarquias absolutas.
Historicamente me parece que se pode dizer que positivismo jurídico no
primeiro sentido e positivismo jurídico no segundo, surgem a um mesmo
tempo. Mas este nexo histórico não pode ser modificado, sem uma
grave tergiversação, em um nexo lógico; o estudo do direito como fato
conduzia à concepção estatal do direito porque, de fato, todas as regras
que os juristas elaboravam como direito vigente eram postas direta ou
indiretamente por órgãos do Estado. O positivismo se apresentou como
estadismo por razões históricas." (BOBBIO, 1981, p.4)

Ao positivismo estatalista-legalista encontram-se vinculadas, assim, as


seguintes teorias, geralmente consideradas como características do positivismo
jurídico:

19. Ao que PUCEIRO (1981, p.37) responde: " o que é factual ou histórico, não é a vinculação
existente entre a primeira e a segunda acepção, mas a resposta à questão do conceito de Direito
que vem impicada de modo essencial na segunda acepção."
1) relativamente ao conceito de Direito, a teoria da coatividade, que o
concebe como um sistema de normas jurídicas gerais aplicadas coativamente ou
cujo conteúdo é a regulamentação do uso da força em dada sociedade;
2) relativamente ao conceito de norma jurídica, a teoria imperativa, que a
concebe como mandato (de cumprimento estrito e coercitivo);
3) relativamente às fontes de Direito, a teoria monista, que preconiza a
supremacia da lei escrita sobre outras fontes como o Direito consuetudinário, o
Direito científico, o Direito judicial, o Direito que deriva da natureza das coisas, as
quais são reduzidas à condição de fontes subordinadas;
4) relativamente ao conceito de ordenamento jurídico, a consideração
do complexo das normas como um sistema completo (sem lacunas) , coerente
(sem antinomias), decidível, do qual o proibido e o permitido são logicamente
inferíveis e se pode extrair soluções para todos os casos concretos;
5) relativamente ao método da interpretação científica e judicial, a
consideração da atividade do juiz e do jurista como atividade essencialmente
lógica, dedutiva e não criativa e, portanto, neutra. E, em especial, a consideração
da Ciência Jurídica como hermenêutica (Escola da exegese francesa) ou
Dogmática (Escola pandectista alemã). (BOBBIO, 1981, p.45)
O positivismo como teoria se apóia, então, sobre diversos juízos de
fato que podem ser sintetizados na seguinte fórmula: é faticamente verdadeiro que
o Direito vigente é um conjunto de normas de conduta que direta ou indiretamente
são formuladas e aplicadas pelo Estado. (BOBBIO, 1981, p.50)
Desta forma, insiste BOBBIO (1981, p.45-6), estas características do
Direito não foram descobertas em conseqüência da consideração do Direito como
fato, mas da sua identificação como fato, em determinado momento histórico (que
coincide coma concentração da produção jurídica nos órgãos estatais) com o
complexo de normas produzidas pelo Estado, isto é, com a Lei.
Por isto, o approach juspositivista, embora estreitamente vinculado
com uma teoria do Direito - pela suficiente razão de que a distinção mesma entre o
Direito que é o Direito que deve ser requer uma teoria mais ou menos elaborada
sobre o Direito-não se vincula, necessariamente, a uma teoria estatal do Direito.
Historicamente, contudo, a ela se vinculou. 20

-O juspositivismo como ideologia

O terceiro aspecto do positivismo jurídico especificado por BOBBIO é


de natureza ideológica e, enquanto ideologia, representa a crença em certos
valores,21 em nome dos quais confere ao Direito Positivo, pelo simples fato de
existir, um valor positivo, independentemente de sua correspondência com o
Direito Ideal.
Esta valoração positiva pode derivar de dois tipos de argumentação:
1ª) o Direito que é, pelo mero fato de sua positividade, isto é, de emanar
de uma vontade dominante, é justo. O critério de justiça coincide com o de
validade;

20. PUCEIRO sustenta, contra BOBBIO, que a vinculação entre a primeira e a segunda acepção do
positivismo jurídico é essencial. A sua caracterização como approach oferece as vantagens e
desvantagens de sua excessiva generalização. Se, por um lado, permite um enfoque unitário de
correntes do positivismo jurídico como o positivismo legalista-estatalista e o sociologismo; por
outro lado, não permite delinear com suficiente clareza o modelo do juspositivismo. Por isto,
entendido na primeira acepção é insuficientemente caracterizado. Somente o recurso à segunda
permite contar com uma idéia medianamente clara e precisa do que se deve entender por
positivismo.
O primeiro e segundo sentido são, pois, essencialmente complementares, pois uma "atitude" para o
Direito que partisse de uma valorização do mesmo exclusivamente na sua condição de "dado"
somente poderia configurar uma posição positivista se complementada por uma "teoria" positivista
do dado jurídico. O centro de gravidade de uma conceitualização do positivismo jurídico
verdadeiramente útil e eficaz para a análise da experiência científica recai, em conseqüência, sobre
o positivismo como teoria. (PUCEIRO, 1981, p.35-7 passim)

21.BOBBIO está utilizando o signo ideologia, como se vê, no sentido positivo de um sistema de
representações (idéias, crenças, valores) conexas com a ação.
2ª) o Direito, como conjunto de normas impostas pelo poder que exerce
o monopólio da força em determinada sociedade, serve, com sua mera existência,
independentemente do valor moral de suas normas, para a obtenção de certos fins
desejáveis como a ordem, a paz, a certeza e, em geral, a justiça legal.
De ambas as posições, deduz-se o juízo em que descansa o positivismo
como ideologia: o Direito, pela forma como é estabelecido e aplicado e pelos fins
a que serve, seja qual for seu conteúdo, tem por si mesmo um valor positivo e,
por isso, suas prescrições devem ser incondicionalmente obedecidas. (BOBBIO,
1981, p.46-51 passim)
Este aspecto realiza a passagem da teoria à ideologia do positivismo
jurídico; isto é, a passagem da descrição objetiva à valoração positiva do Direito.
O efeito deste trânsito é a transformação do positivismo jurídico de
teoria do Direito em teoria da justiça; ou seja, em uma teoria que não se limita a
indicar, no plano fático, o que é o Direito, mas a recomendar o que, no plano
axiológico, é o justo. (BOBBIO, 1981, p.48)
Desta forma, observa BOBBIO (1981, p.48), também o nexo entre o
positivismo legal e o positivismo ideológico é factual ou histórico e não lógico ou
essencial. Se a teoria positivista é condicionada pela idéia moderna de Estado
como monopólio da coação e da lei a ideologia positivista implica uma exaltação
do Estado e sua função na vida do Direito.
O positivismo ideológico aparece assim historicamente vinculado ao
positivismo legal , decorrendo daí a identificação do Direito estatal com o Direito
justo. Na identidade positivista Direito-Lei-Justiça, a Justiça se identifica com a
justiça legal.
4.2. A recepção do positivismo jurídico22 pelo paradigma dogmático de
Ciência Jurídica

- A recepção do "approach juspositivista"

Em primeiro lugar, parece claro que o positivismo jurídico como


approach consolida a forma de aproximação ao estudo do Direito conferida pela
Escola histórica à Ciência Jurídica, cujo objeto, desde a orientação juspositivista
será definitiva e propriamente o Direito Positivo estatal.
É que se a Escola Histórica exclui o idealismo metafísico e universalista
do entendimento do Direito, fundando o método dogmático sobre a afirmação
de sua individualidade e positividade, e preparando o terreno quanto ao "dado"
de fato sobre o qual fundar a investigação metodicamente dogmática do Direito,
este "dado" não se identifica ainda, em seu âmbito, com uma normatividade
unitária e estatal. Pois tanto SAVIGNY quanto JHERING têm como objeto

22.Visualizamos duas grandes arenas de manifestação do positivismo jurídico, com trajetórias


paralelas: a Teoria Jurídica e a Dogmática Jurídica.
Por um lado, o juspositivismo apresenta uma trajetória no âmbito da Teoria Jurídica, voltada para a
construção de uma teoria estrutural do Direito que, centrada na idéia de sistema, parte do
estabelecimento de um critério geral de reconhecimento da juridicidade - e de delimitação do
objeto da Ciência Jurídica.
As obras de KELSEN, AUSTIN, HART e ALF ROSS constituem, sem dúvida, das maiores
expressões da Teoria Jurídica juspositivista centrada na análise estrutural do Direito.
Assim, KELSEN (1976, p.267-367 e 1985, p.323-342) constrói sua teoria da norma
fundamental, AUSTIN (apud HART, 1986, p.23-88) recorre ao poder soberano; HART (1986,
p.89-135) elabora a sua regra de reconhecimento e ROSS (1970, p.29-151) apela a um
reconhecimento operacional, do sistema jurídico, a partir da práxis dos tribunais.
Apesar das especificidades dos critérios de reconhecimento da juricidade propostos, que afastam
os modelos internamente, encontramos em todos eles o empenho na caracterização do Direito
como um sistema de normas jurídicas e na delimitação de um critério de validade e unidade para o
sistema, que os aproxima.
Contemporaneamente, acentua-se o deslocamento da análise estrutural para a análise funcional ou
estrutural-funcionalista do Direito, em cujo âmbito destaca-se a obra de LUHMANN. A obra de
BOBBIO, também exponencial da teoria juspositivista, contém uma análise estrutural e funcional
do Direito.
A Dogmática Jurídica, nascida antes do juspositivismo, recebe dele um decisivo acabamento, vindo
neste sentido a se dialetizar com a Teoria Jurídica, sob a racionalidade do Estado moderno.
prioritário de suas teorizações o Direito romano como Direito vigente,
confrontando-se com a ausência de uma codificação estatal e unitária na Alemanha
de seu tempo.
Com efeito, as fontes do Direito Romano não estavam
consubstanciadas, de modo geral, por normas jurídicas, mas principalmente por
opiniões ou soluções jurídicas concretas e princípios gerais. Dadas a sua
diversidade diacrônica, as irregularidades ou dúvidas dos textos e a complexa
casuística o sistema não equivalia à mera integração ordenada das normas já
estabelecidas como tais.
Em seus momentos fundacionais, pois, a dogmática tinha por objeto
um ordenamento que, além de não integrado por normas jurídicas em sentido
estrito era marcado por uma fluência histórica criadora de complicados problemas
de compatibilidade. (HERNÁNDEZ GIL,1988a, p.44)
E carecendo, propriamente, da zona intermediária da articulação
normativa, a investigação dogmática do Direito Romano alcança a uma autêntica
formulação de normas, requerendo a enunciação destas como obra da própria
atividade científica. É o chamado "Direito dos Juristas". (HERNÁNDEZ GIL,
1988b, p.92-3)
É com o juspositivismo, portanto, representado na Alemanha pela
Pandectista em diante, 23 que o objeto da Dogmática Jurídica se identifica com o
Direito Positivo estatal.
A par disto, o approach juspositivista vem essencialmente vinculado
às exigências de autonomia, objetividade e neutralidade científicas, o que, se por

23. Enquanto JHERING afirma que "a construção doutrinária deve aplicar-se diretamente ao Direito
positivo", o Comentário às Pandectas, de WINDSCHEID, uma das obras mais significativas do
espírito científico da Dogmática inicia com uma definição do Direito em termos de lei: "Lei é a
declaração emanada do Estado no sentido de que alguma coisa será Direito". (citados por
PUCEIRO, 1981, p.107)
um lado se insere nas exigências da concepção positivista de Ciência, como o
sublinha BOBBIO (1981,40-1); por outro lado, e simultaneamente, expressa para a
Ciência Jurídica as exigências de neutralização política do Judiciário que
FERRAZ JÚNIOR (1988b, p.77) destaca "como uma das peças importantes no
aparecimento da Dogmática como uma teoria autônoma." De modo que a
recepção do approach juspositivista pelo paradigma dogmático é que gera,
precisamente, o efeito de neutralidade ideológica da Ciência Jurídica.
No paradigma dogmático convivem doravante um método de aplicação
universalista com um objeto espacialmente localizado (o Direito Positivo de
determinado Estado ) e ramificado.
Assim,
"Ainda quando a dogmática consagra uns universais no conhecimento
do direito, este é para ela, como objeto de investigação, um
determinado direito positivo. Enquanto método, é suscetível de
aplicação geral. Um estudo da dogmática mesma, como tema de
metodologia, permite tratá-la como uma operatividade que se reitera
em suas linhas essenciais no que se refere a qualquer ordenamento.
Entretanto, ao não partir de um a a priori encarnado numa idéia do
direito, já que reputa como tal o historicamente vigente dentro de cada
comunidade jurídica, ela mesma tem que se estabelecer o problema da
própria demarcação do direito sobre a que versa. Junto à
universalidade do procedimento discursivo está, pois, a
particularidade ou concretização do objeto. Por isso começa com a
identificação das normas. Este era um tema complexo, e segue sendo,
referido ao direito romano." (1988a, p.51 - grifo nosso)

- A recepção das teorias juspositivistas

Em segundo lugar, a Dogmática Jurídica acolhe, em suas formulações,


o repertório das teorias juspositivistas (WARAT, 1982, p.45), mediante as quais
elabora uma dupla racionalização: do ordenamento jurídico abstratamente
considerado e de sua aplicação.
É que a concepção (estatalista) do Direito que vem implicada, de modo
essencial, na teoria juspositivista, é incorporada pelo paradigma dogmático e a
partir deste axioma fundamental (Direito=Lei) se desenvolvem as suas crenças
teóricas básicas sobre os conceitos de Direito, norma, fontes de Direito,
ordenamento jurídico e atividade científica e judicial (correspondentes, no
essencial, as cinco teorias elencadas por BOBBIO) e, com elas, reafirmado fica
seu compromisso funcional com a "segurança jurídica".
Assim ,
"A suposição de existir um legislador racional e uma ordem jurídica
com os mesmos atributos, a afirmação do caráter neutro da atividade
judicial, a pretensão de uma Ciência do Direito descomprometida dos
atos decisórios e do jogo social são as bases constitutivas desse efeito
de segurança." (WARAT, 1982, p.48)

Com efeito, em primeiro lugar, a racionalização dogmática do


ordenamento jurídico passa, fundamentalmente, pela hipótese do "legislador
racional" que, como mostra SANTIAGO NINO (1974, p.82 et seq.) ao explicitá-
la, opera no paradigma dogmático na condição de um autêntico axioma. Pois é
apenas na medida em que o legislador é dogmaticamente pressuposto como
racional, isto é, como um sujeito singular, omnisciente, coerente, preciso,
operativo, finalista e justo que ao ordenamento jurídico, que ele cria, se pode
atribuir as mesmas propriedades. Tais são as regras ou princípios de que o
ordenamento jurídico é operativo, completo, coerente, dinâmico, finalista e
isonômico que passam a desempenhar, por sua vez, um papel central no
paradigma dogmático, uma vez que tanto a interpretação como a construção
dogmática encontram neles o ponto de partida para as derivações lógicas que
regerão suas operações. A importância destas regras transcendem em muito o
plano da técnica já que constituem critérios axiológicos supremos do
ordenamento.
Neste sentido, se

"Os teoremas que constituem o sistema conceitual do modelo


dogmático são reconduzíveis aos axiomas originários, mediante
procedimentos lógico-formais. Ainda assim, a construção do sistema só
é possível com o concurso de certas hipóteses gerais de valor
originariamente operacional, ainda que posteriormente elevados a
axiomas. A principal delas é, talvez, a da racionalidade do legislador,
entendida como uma presunção apriorística destinada a tornar possível
a idéia do ordenamento jurídico como sistema hermético, completo e
auto-suficiente." (PUCEIRO, 1981, p.38)

Mas não menos importante para a segurança jurídica é a racionalidade


do juiz também pressuposta pela Dogmática Jurídica. Desta forma, basta-lhe
fundamentar a racionalidade do ordenamento jurídico (através da recepção das
teorias juspositivistas das fontes do Direito, da norma e do ordenamento jurídico,
recobertas pelo axioma do legislador racional) e a seguir a racionalidade da sua
aplicação (mediante a teoria da neutralidade da atividade científica e judicial) para
que o Direito, emanado do legislador racional - e, portanto, intrinsecamente justo -
aplicado pelo juiz racional - e, portanto, imparcial - e mediatizado pelo
instrumental conceitual da Ciência Dogmática, esgote logicamente o seu itinerário.
Se o ordenamento jurídico é racional, racionalizada sua aplicação, preservaria sua
qualidade originária.
Reaparece assim na Dogmática Jurídica a morte da subjetividade do
intérprete traduzida nas figuras do cientista e do juiz neutros: dupla neutralização
que é produto, a um só tempo, da epistemologia positivista e das exigências de
neutralização do Judiciário no âmbito da teoria da separação de poderes.

Neste sentido,
"A reflexão sobre o direito e o direito mesmo tornam a se aproximar
graças a uma dupla identificação: norma jurídica equivale
primordialmente à lei e o direito não é senão a aplicação desta à
realidade social. O esclarecimento teórico da norma se realizaria em um
âmbito de assepsia racional, e sua aplicação prática vai fluir por
caminhos de similar 'pureza'.
......................................................................................................
Não havia dúvida, portanto, da viabilidade de uma ciência jurídica que
não tem por que se preocupar de problemas que a excedem;
legitimação da validade formal do direito, da obrigação que dela
emana ou da conseqüente obediência do cidadão. Seus frutos práticos
não seriam menos evidentes, o substituir com uma racionalidade de
base científica as arbitrariedades camufladas atrás da fantasmagórica
'razão prática'."(OLLERO, 1982, p.24-5)

Por último, se é a "racionalidade do legislador", decodificada pela


Ciência Jurídica Dogmática, que outorga racionalidade ao ordenamento jurídico,
num plano latente mais profundo é na

"(...) racionalidade intrínseca ao Estado moderno [que] vê o


paradigma dogmático a fundamentação e justificativa de validade
global do ordenamento jurídico: o direito vale e se impõe moralmente
enquanto é, precisamente porque sua existência é o signo do processo
de racionalização da vida social protagonizado, desde os tempos
modernos, pelo Estado." (PUCEIRO, 1981, p.41)

- A recepção da ideologia juspositivista

A hipótese do "legislador racional" remete, então, à terceira acepção do


positivismo jurídico recebida pelo paradigma dogmático, indicando, precisamente,
que Dogmática não se limita a considerar o ordenamento jurídico como válido
ou objetivo, mas também lhe atribui certas propriedades formais e materiais, das
quais decorre o dever de obediência.
Observamos assim no paradigma dogmático a recepção da ideologia
juspositivista funcionando como um código interno latente de organização do seu
discurso. Comanda a razão dogmática o ponto de vista de que a obediência ao
Direito Positivo é racionalmente justificada. Nele, pois, tem marcada vigência o
slogan Gesetz ist Gesetz ("A lei é a lei").
SANTIAGO NINO (1974, p. 29) reconstrói o conteúdo da "ideologia
básica" da Dogmática Jurídica a partir, precisamente, desta acepção,
reconhecendo a BOBBIO e ROSS o mérito de terem-na explicitado. Discorda,
contudo, de BOBBIO por "confundi-la" com o positivismo jurídico quando se
trata, aduz, de um jusnaturalismo encoberto.
Pois,

"Há uma diferença relevante entre incluir uma norma em um sistema


por se estar de acordo axiologicamente com ela e aceitá-la
valorativamente por tê-la incluído no sistema com base em critérios
objetivos. Nem sempre se percebeu esta distinção que, no entanto, faz
um papel fundamental na ideologia jurídica. Ao lado do jusnaturalismo
aberto, que desqualifica como direito à ordem positiva que não cumpre
com certos cânones valorativos, se encontra o jusnaturalismo
encoberto e conservador que julga toda ordem coativa como portadora
de determinados valores positivos."

Sustenta, nesta perspectiva, que a ideologia dogmática consiste, de fato,


numa atitude de adesão ao Direito Positivo, possuindo características específicas.
Em primeiro lugar, embora respondendo à mesma ideologia
jusnaturalista de adesão à ordem jurídica vigente, dela difere nas premissas
norteadoras pois se trata, contrariamente à aceitação jusnaturalista "aberta e
material", de uma aceitação jusnaturalista encoberta, "dogmática e formal".

É que a forte adesão à ordem jurídica surgida do liberalismo e da


codificação se deveu

"(...) à concordância dessa ordem com o sistema ideal que o


racionalismo tinha defendido. Deste modo, a aceitação pelo
racionalismo e exegese das normas positivas não era dogmática, já que
se baseava em uma prévia confrontação com critérios valorizadores
aceitos na de antemão. Era uma aceitação racional porque se
fundamentava no fato de que o direito positivo cumpria, pelo menos em
seus grandes lineamentos, com os postulados do liberalismo burguês e
com as pautas técnicas recomendadas pela ideologia vigente. Mas o
legado permanente do racionalismo e da exegese não constituiu,
principalmente, em seus critérios valorizadores, na atitude de adesão ao
direito positivo. De tal modo que nessa atitude se separou de suas
motivações para passar a depender, quase que exclusivamente, do
simples fato de estar frente a uma ordem positiva. Assim foi
constituindo a ideologia descrita por BOBBIO e ROSS (..)." (SANTIAGO
NINO, 1974, p.31-2)

Ao concretizar o sistema jurídico idealizado pelo jusnaturalismo, o


movimento de codificação modifica substancialmente a atitude dos juristas para
com o Direito Positivo que, de rejeição à ordem jurídica medieval, passa a uma
atitude de adesão material à nova ordem jurídica liberal (jusnaturalismo aberto)
para se converter numa adesão dogmática e formal (jusnaturalismo encoberto)
que mantendo-se constante deste então constitui uma das características
distintivas da atividade dogmática. (SANTIAGO NINO, 1974, p. 22-28 passim e
85)
Em segundo lugar, a aceitação dogmática e formal consiste em avaliar o
que outro - o legislador - prescreveu. Trata-se de uma "prescrição enfática": uma
recomendação, implícita ou encoberta, para que os juízes apliquem o Direito
Positivo tal como se acha sancionado pelo legislador, acompanhada de uma
recomendação, todavia mais difusa, para que os cidadãos obedeçam a lei. Assim,
" na atividade dogmática está implícita uma adesão formal ao sistema legislado
que se expressa mediante a recomendação de que o Direito seja aplicado e
obedecido tal como é." (SANTIAGO NINO, 1974:30-1)
Neste sentido é importante sobretudo "destacar o papel do dogmático
como guia da atividade judicial", pois sua função central não é descrever e
predizer as decisões judiciais, mas indicar aos órgãos jurisdicionais a solução
para um caso genérico. (SANTIAGO NINO, 1974, p.31)24

- O significado do dogmatismo na Ciência Jurídica

Dogmatismo quer dizer, pois, uma atitude de acatamento e


submetimento do jurista ao estabelecido como Direito Positivo que,
independentemente do seu conteúdo material (mutável), desempenha sempre a
função de dogma, já que "Dogmática é a formulação e não o conteúdo do
formulado."(HERNÁNDEZ GIL, 1988b, p.89-90)
O dogmatismo da Ciência Jurídica figura, portanto, como um ponto de
partida; como uma atitude invariável de acatamento acrítico a um Direito que
temporal e espacialmente varia. E precisamente a esta dogmatização do material
normativo, na medida em que é subtraído à critica, LUHMANN (1983, p.27)
caracterizou por princípio da "proibição da negação" ou da "inegabilidade dos
pontos de partida das cadeias argumentativas".
Neste sentido a maturação do paradigma dogmático é condicionada não
apenas pela generalização dos fenômenos da estatalização e normativização
(realizada pela codificação) do Direito, mas também por um fenômeno mais
complexo de "positivação",25 que traduz tanto a libertação que sofre o Direito de

24. De fato, a análise da ideologia dogmática nestes termos remete diretamente, como veremos a
seguir, para a caracterização de sua atividade como "prescritiva".

25. É LUHMANN (1980, p.119) quem salienta a importância do fenômeno da "positivação" do


Direito para a delimitação do horizonte dentro do qual se moverá a Dogmática Jurídica. Por
positivação ele designa o fenômeno segundo o qual "todos os valores sociais, normas e
expectativas de comportamento têm de ser filtrados através de processos de decisão, antes de
poderem conseguir validade legal."
A principal característica do Direito positivado é que ele se liberta de parâmetros imutáveis ou
longamente duradouros, de premissas materialmente invariáveis e, por assim dizer, institucionaliza a
mudança e a adaptação mediante procedimentos complexos e altamente móveis. "O Direito
parâmetros imutáveis - revelando o homem como responsável pela sua imposição
- quanto o condicionamento de processos decisórios específicos a que fica
doravante submetida sua mutabilidade.
Neste marco esvazia-se, obviamente, a competência que a Dogmática outrora
detinha na própria formulação normativa, passando a limitar-se à preparação de
decisões (judiciais e legislativas).
Assim, aquilo que há na Dogmática de respeito e submetimento ao
Direito estabelecido reflete de certo modo a liberação dos juristas da incumbência
desta formulação normativa. (HERNÁNDEZ GIL, 1988b, p.92-3)

5. O sentido da Dogmática Jurídica como "Ciência Prática"

5.1. Da identidade ideológica à identidade funcional

A análise da ideologia dogmática e do dogmatismo conduz-nos então a


retomar e aprofundar o significado da Dogmática Jurídica como Ciência prática
para além de JHERING e seus momentos fundacionais.
Retomando precisamente o filão jheringueano depois do qual "todos os
juristas sublinham unanimemente que a Dogmática não serve a si mesma mas à
vida ( isto é, à aplicação do Direito)" LUHMANN (1983, p.27) se detém na

positivo passa a ser assim as normas jurídicas que entraram em vigor por decisão e somente por
decisão podem ser revogadas".
Positivação e decisão (em sentido lato, tanto legislativa quanto judicial) são, pois, signos co-
implicados que possibilitam a tomada de decisões vinculantes sobre as questões jurídicas,
assinalando com esta possibilidade um processo de organização e diferenciação do sistema
jurídico como subsistema do sistema social (LUHMANN, 1983:31)
Trata-se, portanto, de um fenômeno típico das sociedades complexas( incompatíveis com um
Direito de parâmetros imutáveis)em que os assuntos jurídicos passam a ser tratados por um
sistema jurídico diferenciado e são submetidos à decisão em caso de conflitos.
análise da identidade funcional da Dogmática Jurídica no marco do fenômeno da
"positivação" do Direito.26
Neste sentido põe de manifesto, em primeiro lugar, que se encontrando
associado à própria diferenciação do sistema jurídico como subsistema social27,
o desenvolvimento da Dogmática Jurídica vincula-se a um "processo de
abstração de dois graus", pois "na mesma medida em que diferencia um sistema
jurídico, a sociedade forma, junto às normas jurídicas, conceitos e regras de
disposição para seu tratamento." (LUHMANN, 1980, p.20)
Ao relacionar normas jurídicas abstratas, de vigência geral (programas
legais de decisão) e decisões judiciais de casos concretos e particulares o sistema
jurídico

"(...) cria a necessidade das dogmáticas jurídicas, à margem de como se


satisfaça depois. Se esta concepção básica está certa, a função da
dogmática haveria de buscar-se na limitação da arbitrariedade de
variações que se fazem possíveis se uma relação se apresenta como
variável por ambos os lados, isto é, se não apenas os casos se hão de
orientar às normas, mas também as aplicações das normas se hão de
orientar aos casos. Mediante a dogmatização do material jurídico - o
que diante de tudo quer dizer por sua elaboração conceitual e
classificadora - se consegue que aquele ir e vir da olhada entre normas
e fatos, tantas vezes descrito, não fique sem processar, que não apenas
se sinta sujeito à situação a decidir, mas também ao sistema jurídico,
que não se aparte o ordenamento jurídico." (LUHMANN, 1980, p.32-3)

26. Trata-se de explicitar aqui a função oficial perseguida pela Dogmática Jurídica e a identidade
funcional que assume em decorrência dela, independentemente de como se resolve esta questão. O
que será contudo objeto específico de análise nos capítulos quarto e quinto, relativamente à
Dogmática Jurídico-Penal.

27. Cuja diferenciação, como aludimos na nota "13", LUHMANN já vê manifesta no contributo de
JHERING.
Relacionando-se portanto com um processo jurídico de decisão, a
diferenciação de competências e a decidibilidade de conflitos aparece para a
Dogmática Jurídica como uma questão central. (LUHMANN,1980, p. 35)
Precisamente configurando-se como um saber conceitual, vinculado ao
Direito posto, é que ela pode instrumentalizar-se a serviço da ação
(decidibilidade), estando interpelada a cumprir uma função central neste
processo, qual seja, o de assegurar um nível de comunicação mínimo entre
as decisões da instância judicial e a programação da instância legislativa, provendo
o instrumental conceitual adequado e necessário para converter as decisões
programáticas do legislador nas decisões programadas do juiz. (LUHMANN,
1980, p.32-3 e BARATTA, 1982b, p.45)
Partindo assim da interpretação das normas jurídicas produzidas pelo
legislador (material normativo) e recolhendo-as individualmente na construção
sistemática do Direito, a Dogmática Jurídica conserva e desenvolve um sistema
de conceitos que, resultando congruente com as normas, teria a função de
garantir a maior uniformização e previsibilidade (certeza) possível das decisões
judiciais e, conseqüentemente, uma aplicação igualitária (decisões iguais para
casos iguais) do Direito que, subtraída à arbitrariedade, garante essencialmente a
segurança jurídica.
Trata-se de programar, orientar, pautar ou preparar as decisões
judiciais e, nesta mesma orientação, racionalizá-las para a gestação da segurança
jurídica; o que significa não apenas possibilitar as condições para a decibilidade
mas para decisões judiciais calculáveis , eqüitativas e seguras.
E na medida em que a Dogmática Jurídica insere-se como uma instância
comunicacional, cientificamente respaldada, entre as normas penais em abstrato
(programação legal) e a sua aplicação (decisões judiciais) deve-se atribuir a ela
uma "função imanente ao sistema jurídico" , uma vez que ocupa uma posição
funcional "dentro" ou no seu "interior". Trata-se de uma Ciência "do" sistema que
medeia o tráfego jurídico (LUHMANN, 1980, p.20) operando como "o código
predominante da comunicação normativa." (WARAT,1982, p.48)
No marco desta função comunicacional programadora (orientadora,
pautadora ou preparadora) das decisões judiciais com vistas ao seu controle
racional28, a Dogmática exerce a tarefa de (re)conhecimento e delimitação das
possibilidades do próprio Direito Positivo.
Trata-se de estabelecer
"(...) as condições do juridicamente possível, em concreto as
possibilidades da construção jurídicas de casos jurídicos. (...) Assim, a
Dogmática jurídica constitui o ponto mais elevado e mais abstrato das
possíveis determinações de sentido do direito dentro do próprio sistema
jurídico." (LUHMANN, 1980, p.34)

Ela desenvolve, portanto, a tarefa de um "serviço para o


reconhecimento da juridicidade" o qual, se pode conformar, relativamente, o
conteúdo das decisões, dirige-se sobretudo à delimitação das fronteiras das
decisões possíveis (LUHMANN, 1980, p.52). Pois, ela prepara a decisão judicial
ao proporcionar, antes que o seu conteúdo a estruturação completa do problema
social regido pelo programa de decisão do legislador. (BARATTA, 1983, p.53)
Marcada por uma concepção de Direito ligada à atividade jurisdicional,
ela compõe, circunscreve, delineia procedimentos que conduzem à tomada de
decisão. (FARIA,1984, p.187)

28. Que se apóia, portanto, exclusivamente em elementos internos ao sistema, excluindo a


consideração funcional das conseqüências das decisões jurídicas na vida social.(BARATTA,1983,
p.51)
Pode-se dizer neste sentido que ela assume em relação ao Direito
(programação legal) não apenas a condição de uma metalinguagem, 29 mas de uma
metaprogramação (ou programação de 2º grau) tida por científica para a sua
racionalização decisória (decisões judiciais).
Mas se a função racionalizadora e estabilizadora da Dogmática Jurídica
depende, nesta perspectiva, do princípio da "proibição da negação" ou da
"inegabilidade dos pontos de partida das cadeias argumentativas" este princípio
não implica o "encadeamento do espírito". Mas, ao contrário , o "aumento das
liberdades no trato com experiências e textos." Pois, na diferença entre material
normativo e interpretação conceitualmente regulada a Dogmática se defronta com
inseguranças que só aparentemente são superadas pela vinculação. Na verdade, as
análises dogmáticas permitem não somente reduzir a indeterminação das normas
jurídicas - como estão convencidos os juristas dogmáticos - mas também
aumentá-las. Elas permitem a "reprodução das dúvidas", em concreto quando a
Dogmática generaliza e problematiza normas para a inclusão de outras
possibilidades de decisão.(LUHMANN, 1983, p.27, 29 e 30)
Ou, como acentua VIEHWEG, 1991, p.101-2) o pensamento dogmático
exige
"(...) por uma parte, um núcleo conceitual estável, indiscutível (dogma
ou dogmas fundamentais) e, por outra, uma suficiente flexibilidade de
pensamento (interpretabilidade, declinabilidade e discutibilidade ) do
núcleo conceitual a fim de poder mantê-lo nas distintas e mutáveis
situações."

29. Por "metalinguagem" designa-se a linguagem (L2) em que se fala de outra, que configura seu
objeto lingüístico, a "linguagem-objeto" (L1) (A respeito ver WARAT, ROCHA e CITTADINO,
1984, p.48 et seq.)
Considerando que o Direito positivo, objeto da Dogmática Jurídica, se exterioriza mediante uma
linguagem (objeto), ela assume em relação a ele a condição de metalinguagem, estando num nível
lingüístico de segundo grau. E considerando que o Direito positivo "prescreve" uma programação
legal a cumprir a Dogmática Jurídica assume em relação a ele, nos termos aqui indicados, a
condição de metaprogramação ou programação de segundo grau, situando-se num plano mais alto
de abstração.
Assim, se a dogmática necessita dogmatizar o "dado" normativo
("princípio da inquestionabilidade dos pontos de partida") enquanto objeto
científico e fundamentar sua racionalidade (axioma do "legislador racional")
enquanto fonte única do Direito, um tal dogmatismo não implica, como já
afirmamos, nem uma adesão ao conteúdo (mutável) das normas jurídicas nem,
acrescentamos agora, o congelamento do seu sentido lingüístico.
No marco desta função a dogmática necessita "neutralizar os
conflitos", isto é, abstraí-los da problemática real e global (social, econômica,
política) na qual se inserem e torná-los conflitos abstratos, interpretáveis,
definíveis e decidíveis "juridicamente". Problemática que ela certamente não
ignora, mas que, conceitualmente, é apenas pressuposta na sua argumentação, já
que suas premissas e conceitos básicos tem que serem tomados, precisamente, de
modo não problemático. Neste proceder, ao mesmo tempo em todos os conflitos
se apresentam como decidíveis, não se revelam em toda a sua extensão, mas na
extensão necessária à sua decidibilidade. (FERRAZ JÚNIOR, 1988b, p.86)
Esta neutralização - que corresponde a uma descontextualização do
Direito operada pela dogmática - implica, de fato, um "corte" em relação à
realidade e daí sua abstração cognoscitiva, pois,

"(...) as Dogmáticas, preocupadas com a decidibilidade de conflitos,


não cuidam de ser logicamente rigorosas no uso dos seus conceitos e
definições, pois para elas o importante não é a relação com os
fenômenos da realidade (descrever os fenômenos) mas sim fazer um
corte na realidade, isolando os problemas que são relevantes para a
tomada de decisão e desviando a atenção dos demais."(FERRAZ
JÚNIOR,1988b, p.87)

E porque as teorias dogmáticas têm sua validade dependente de sua


relevância prática, elas não constituem um sistema de proposições "descritivas"
ou explicativas mas antes um corpo de fórmulas ou complexos argumentativos e
persuasivas, dirigidos a influir o comportamento dos destinatários. Neste sentido
os enunciados das teorias dogmáticas têm, por assim dizer, natureza
criptonormativa e elas se tornam, na prática, aquilo que de fato são chamadas em
seu conjunto, isto é, "doutrina": elas dizem e ensinam como deve ser feito o
Direito. Dogmática é, neste sentido, um corpo de doutrinas, que têm a função
básica de um docere (ensinar). (FERRAZ JÚNIOR, 1988a,p. 44 e 108 e 1988b,
p.85)
Nesta perspectiva,

"(...) a Dogmática não tem como função mais específica o


conhecimento de um objeto dado; a Dogmática não descreve o Direito
Positivo e sim prescreve que há de ser considerado como Direito. A
Dogmática não se limita a repetir e sistematizar as leis vigentes, e sim
que tem como meta mais elevada a formulação de regras jurídicas não
contidas nas leis. (...) [que] são proposições prescritivas, normativas,
que pretendem orientar as decisões judiciais. Daí que a Dogmática
desenvolva uma função criativo-normativa, sequer seja dentro do
marco que permite a letra da lei, que eleva o dogmático em um auxiliar
continuador do legislador."
(MIR PUIG, 1982, p.16-7)

Assim, se a condição de Ciência prática não é nova na história do saber


jurídico ela adquire, referida ao paradigma dogmático, específicos contornos
funcionais.

5.2. Uma promessa funcional no interior da promessa epistemológica:


ressignificando a auto-imagem da Dogmática Jurídica

Tematizada em termos das promessas feitas na modernidade podemos


assinalar que na promessa epistemológica da Dogmática Jurídica de converter-se
"na" Ciência do Direito, está contida uma promessa funcional de racionalização
da práxis do Direito que, condicionando essencialmente a identidade do seu
paradigma, evidencia a importância do "papel exercido no mundo moderno pelos
princípios da certeza e da segurança jurídica". (FARIA, 1984, p.137)
Chegado a este ponto é possível ressignificar a auto-imagem da
Dogmática Jurídica como Ciência "descritiva" e "avalorativa".
Se a análise da ideologia básica da Dogmática Jurídica evidencia que
se trata de uma Ciência comprometida com o cumprimento e a obediência do
Direito vigente, implicitamente valorado como Direito justo ou o melhor Direito,
independentemente do seu conteúdo; a análise funcional evidencia, na esteira desta
ideologia mesma, que a Dogmática Jurídica não se limita a uma atividade de
conhecimento descritiva mas realiza uma atividade prescritiva que tem por
destinatário central o Poder Judiciário e, indiretamente, os cidadãos.
A atividade dogmática reaparece assim funcionalmente como atividade
"prescritiva enfática" (SANTIAGO NINO), "criptonormativa" (FERRAZ
JÚNIOR),"criativo-normativa" (MIR PUIG), ou "preparadora" de
decisões.(LUHMANN)30
Parece-nos então evidenciado que, contrariamente à auto-imagem da
Dogmática Jurídica, não se trata ela de uma Ciência descritiva, nem
ideologicamente neutra , mas que a neutralidade ideológica é, de fato, um efeito
do approach científico juspositivista que lhe permitirá situar-se como instância
orientadora das decisões do Judiciário mas, simultaneamente, como uma Ciência

30. Obviamente que o reconhecimento da natureza "prescritiva" dos enunciados dogmáticos, na


medida em que, pretendendo orientar decisões, a situação neles capturada é expressiva de um
"dever-ser", não implica confundi-los com as normas jurídicas ou com o "dever-ser" nelas
expressado. Pois além de se situarem num nível lingüístico de segundo grau (metaprogramação)
não constituem "mandamentos" ou "comandos imperativos", oponíveis erga omnes (KELSEN,
1976, p.11) pois, embora diretivos, não são ordenadores, isto é, não vinculam, obrigatoriamente,
os seus destinatários.
"neutra" e distanciada dos conflitos reais: é enquanto Ciência enraizada no mundo
do "dever-ser" que promete racionalizar o mundo do "ser".
E na relação funcional que a Dogmática Jurídica guarda com o
Judiciário, na mesma medida em que sua neutralização decorre das exigências de
neutralidade deste Poder, exerce sobre seu processo decisório uma ação de
retorno fundamental.

6. O Estado moderno como matriz política do paradigma dogmático de


Ciência Jurídica

Nesta perspectiva podemos constatar que se em seus momentos


fundacionais, no marco da Escola histórica, o paradigma dogmático não se
encontra geneticamente vinculado ao conceito de Estado, mas à outra matriz
política (como o "Povo") nem ao conceito estrito de Direito Positivo estatal, mas
a outra matriz jurídica (como o Direito Romano), ao longo de sua configuração é
o conceito de Estado moderno e o correlato conceito de Direito Positivo estatal
que passam a ocupar o lugar, respectivamente, daquelas matrizes, condicionando
sua formulação acabada.
E porque o Estado moderno se caracteriza politicamente por deter (ou
pela pretensão de deter) o monopólio da violência física e, por extensão, o
monopólio da criação e aplicação ("estatalização") do Direito, mediante processos
decisórios ("positivação"), sendo o Direito Positivo estatal a forma oficialmente
reconhecida de existência do Direito na modernidade; porque a diferenciação
mesma entre criação e aplicação do Direito - que define a estrutura do moderno
sistema jurídico - é condicionada pela diferenciação de competências entre
Poder Legislativo e Judiciário (separação de poderes); porque o Poder Judiciário,
tornado independente e autônomo, isto é, neutralizado na tarefa de "aplicação" do
Direito torna-se a instituição de proteção de Direitos (interindividuais) e decisão de
conflitos (interindividuais) centralizando a administração da justiça; porque a
ênfase, enfim, sobre a certeza e a segurança jurídica passa a vincular-se à
exigência de uma racionalidade geral e abstrata, decorrente de um Estado
soberano; por estas características fundamentais o Estado moderno converte-se
na matriz histórica de poder que condiciona a maturação do paradigma
dogmático.
Em definitivo, portanto, o paradigma dogmático se configura através de
um processo complexo e multifário ao longo do qual vai consolidando sua
identidade estrutural que , nuclearmente, uma matriz epistemológica positivista
(saber) e uma matriz política estatal (poder) concorrem para modelar.
Neste sentido, se a matriz epistemológica condiciona tanto o approach
genético da Escola Histórica, quanto o posterior e complementar approach
juspositivista para a Ciência Jurídica, a matriz estatal, ao condicionar a própria
especificidade do Direito e do sistema jurídico moderno condicionará, via
tríplice raiz do juspositivismo em seu conjunto e para além dele, a maturação
ideológica e funcional do paradigma dogmático que, produto desta convergência
de fatores, pode ser visto como resultado da práxis jurídica moderna.

7. Problematização da Dogmática Jurídica

Paralelamente à sua secular vigência o paradigma dogmático gerou


resistências e problematizações que, praticamente desde sua gênese31 até nossos

31. Das quais são expressivas a "Jurisprudência dos Interesses" e a tradição anti-formalista dos finais
do seculo XIX e princípios do século XX (Direito vivo de E. ERLICH, Escola do Direito livre).
dias, têm tido lugar a partir de diferentes perspectivas e instrumentais analíticos
não constituindo um quadro crítico monolítico. Sem a pretensão de sumariar aqui
este quadro amplo e rico em sua heterogeneidade, acreditamos que é possível
identificar, em seu âmbito, três grandes eixos de argumentos recorrentes que, sem
prejuízo de outros, dominam o universo da crítica histórica à Dogmática Jurídica:
a) o argumento de sua falta de cientificidade; b) o argumento de seu excessivo
formalismo pela ruptura ou divórcio com a realidade social; e c) o argumento de
seu conservadorismo ou de sua instrumentalização política conservadora do
status quo.
Enquanto o primeiro argumento interpela a problematização de sua
identidade epistemológica, o segundo interpela a problematização de sua
identidade metodológica e o terceiro a de sua identidade político-funcional.
Sendo este tríplice eixo o que nos interessa focalizar nesta tese,
ocupamo-nos na continuação, do primeiro deles, remetendo a abordagem dos
demais para o capítulo terceiro.

7.1. O estatuto teórico da Dogmática Jurídica e o problema de sua


identidade epistemológica: perfil de uma Metadogmática de
controle epistemológico da Dogmática Jurídica

Com efeito, paralelamente à identificação paradigmática da Dogmática


Jurídica com a Ciência do Direito, desenvolveu-se a crítica de sua falta de
cientificidade de modo que o signo "Dogmática" é empregado não apenas para
aludir ao caráter científico da atividade dos juristas mas também para eludi-lo, isto
é, negá-lo. (POZO, 1988, p.13)
Assim a indagação se a Dogmática é ou não uma Ciência e de que
Ciência se trata, que acompanha praticamente a sua gênese , permanece ainda
hoje como objeto de uma discussão não pacificada que pertence, na linguagem de
BOBBIO (1980, p.174), ao domínio de uma "Metajurisprudência" ou, como
preferimos nós, de uma "Metadogmática".
Este debate possui um importante valor histórico e teórico,
contribuindo decisivamente em seu conjunto para uma melhor compreensão dos
dilemas, limites e possibilidades do estatuto teórico da Dogmática Jurídica.
Ao asseverar, precisamente, a legitimidade deste debate SANTIAGO
NINO (1974, p.15)lembra que, dada a vagueza do signo "Ciência", o interrogante
acima mencionado inadmite uma resposta unívoca.
Pois
"(...) se se abandona o dogma da 'essência' ou 'natureza' das ciências
que há que apreender, o angustioso problema sobre se a Dogmática é
ou não uma Ciência se reduz a uma mera questão de palavras que, de
acordo com os usos, não pode resolver-se univocamente dada a
vagueza do termo 'Ciência". Poder-se-ia dar todas as definições
estipulativas que se queira, tanto para incluir como excluir a
Dogmática do âmbito das Ciências."

Se a vagueza do signo Ciência é, todavia, um problema bem


identificado, um tal relativismo epistemológico, conseqüentemente possível em
tese, não parece ter lugar já que

"Observando-se a constituição histórica da epistemologia tradicional,


verifica-se que ela se encontra norteada por uma obsessão
demarcatória (...). Certamente, ao levantar a questão da cientificidade
da Ciência, os epistemólogos tentaram respondê-la instaurando
critérios inflexíveis de demarcação entre o que deve ser considerado ou
não Ciência." (WARAT (1982a, p.98)

Com efeito, a trajetória de uma Metadogmática tem sido relacional no


universo epistemológico; ou seja, ela tem se caracterizado não pelo empenho em
identificar e descrever as condições de cientificidade da Ciência Jurídica como um
saber específico ou quaisquer critérios de cientificidade aleatoriamente eleitos
mas por conceber "sua própria função como estudo, proposta e aplicação à obra
do jurista de modelos de outras disciplinas". (BOBBIO, 1980, p.204-5)
Neste sentido tem representado uma secular confrontação da
Dogmática Jurídica com as matrizes científicas disponíveis, assumindo contornos
de uma Metadogmática tanto descritiva quanto prescritiva conforme se trate,
respectivamente, de descrever e identificar o seu estatuto, qualificando-o ou
desqualificando-o como científico ou de prescrever o modelo que a Dogmática
deveria seguir para adquiri-lo,isto é, para se converter em autêntica Ciência. 32
Representa assim um confronto continuado e ainda aberto onde se entrecruzam
diversificadas posturas de desqualificação científica da Dogmática Jurídica que
tem interpelado por sua vez os juristas 33 a um permanente esforço de sua
(re)qualificação científica.

Deste ângulo, como observa BOBBIO (1980, p.205):


"A história da reflexão crítica sobre a jurisprudência é a história dos
modelos que em cada ocasião têm sido concebidos pelos próprios
juristas para aumentar em dignidade e autoridade sua obra ou para
torná-la mais rigorosa e assim elevá-la à dignidade da Ciência(...)."

Ilustremos, pois, ainda que sumariamente, argumentos e posturas de


desqualificação ou requalificação científica da Dogmática Jurídica com suporte

32. A "Teoria Pura do Direito" de KELSEN (1976) pode ser considerada um marco clássico de uma
Metajurisprudência prescritiva na medida em que representa uma das tentativas mais acabadas do
século XX de construir um modelo de Ciência do Direito em sentido estrito segundo os
pressupostos de universalidade, verdade, objetividade e neutralidade científicas em superação à
por ele denominada "Ciência Jurídica tradicional".

33.Considerando que os juristas que compartilham o paradigma dogmático na sua maciça maioria
consideram sua atividade como científica, suspendendo seu questionamento crítico, inclusive o
epistemológico, tal esforço insere-se sobretudo no âmbito da Filosofia, da Teoria e Epistemologia
jurídicas.
em distintas matrizes de Ciência (racionalista, positivista, neopositiva, neokantiana
e social) e de sua tipificação como técnica ou tecnologia, situando, em suas
grandes linhas, o perfil do que podemos então denominar uma Metadogmática de
controle epistemológico da Dogmática Jurídica.
A conferência pronunciada em Berlim, em 1847, pelo fiscal prussiano
J.V.KIRCHMANN (1986) sob o sugestivo título "A jurisprudência não é Ciência"
ou "Falta de valor da jurisprudência como Ciência" se notabilizou como um
marco clássico exemplar da desqualificação científica da Dogmática Jurídica,
permanecendo ainda hoje como "um espinho no coração da Ciência jurídica."
(BOBBIO, 1980, p.180)
Por detrás do vigor com que KIRCHMANN tornava pública sua
insatisfação com o objeto, o método e a falta de progresso dos resultados da
Dogmática Jurídica residia precisamente, como observa BOBBIO (1980, p.180)
uma confrontação deste paradigma com uma determinada concepção racionalista
de Ciência, pois em realidade

"(...) Kirchmann tem ante os olhos uma determinada concepção da


Ciência, que é a tradicional e convencional de uma Ciência que
descobre com indefectível êxito as eternas e imutáveis verdades
encerradas na natureza. Se compreende que ao medir com tal metro a
jurisprudência, esta não podia deixar de aparecer mais do que como
algo miserável e depreciável."

Desta forma, alguns dos argumentos centrais endereçados por


KIRCHMANN a desqualificar a Dogmática como Ciência, como a contingência
do objeto (o Direito Positivo), expressavam precisamente o resultado desta
confrontação com uma concepção que postulava como critérios de
cientificidade, entre outros, a imutabilidade do objeto: um Direito Natural racional.
É célebre neste sentido sua afirmação de que
"Enquanto a Ciência faz do contingente seu objeto, ela mesma se faz
contingências: três palavras retificadora do legislador convertem
bibliotecas inteiras em lixo."(KIRCHMANN, 1983, p.29)

Mas é sob o império do cientificismo contra o racionalismo, contudo,


que o problema da cientificidade da Dogmática assume sua dimensão mais
dilemática. Por um lado, como procuramos demonstrar ao longo deste capítulo, é
a matriz positivista de Ciência que, passando a exercer uma autêntica ditadura
epistemológica no século XIX - demarcando os critérios admissíveis de
cientificidade e procurando submeter todas as disciplinas aos seus cânones -
condiciona, imediatamente, a configuração da Dogmática Jurídica.
Mas, por este mesmo império ,foi a matriz que mais balizou a
desqualificação científica da Dogmática Jurídica, acusada então como uma, senão
a mais expressiva das "ovelhas negras" do rebanho conformado sob a ditadura
positivista, problematizando-se a sua inadequação à esta antes que a legitimidade
da própria concepção positivista que aparecia, sob esta desqualificação, não
apenas inquestionada, mas implicitamente valorada como o único modelo legítimo
de Ciência.
Com efeito, se a concepção positivista de Ciência só admitia como
científicas, como vimos, àquelas atividades que - excetuadas a Lógica e a
Matemática - se valiam dos métodos das Ciências da natureza e, portanto, da
pesquisa causal baseada na observação, recolhimento e experimentação dos fatos
e comprometida com o conhecimento objetivo de seu objeto factual a Dogmática
Jurídica era acusada de ser incompatível com estes pressupostos
epistemológicos.
Confrontada com esta concepção, os argumentos desqualificadores da
cientificidade da Dogmática Jurídica centram-se, sem prejuízo de outros, em duas
grandes objeções:
a) objeto não factual e ausência de controle empírico ou lógico. A
Dogmática Jurídica não tem por objeto "fatos" e os seus enunciados
(conhecimento) não são controláveis empiricamente como o são os enunciados
das Ciências que se ocupam de fatos, como a Física e a Química. Tampouco são
controláveis logicamente, como o são os da Lógica e das Matemáticas, que tem
por objeto quantidades abstratas e como meio de controle as leis de inferência
(implicação, não contradição). Conseqüentemente, também não são enunciados
refutáveis.
b) O compromisso central da Dogmática Jurídica não é com a
produção de conhecimento de seu objeto (teorético ou cognoscitivo)34 mas um
compromisso prático. Enquanto a Ciência não se propõe, de modo imediato, um
fim prático e o seu compromisso intrínseco é com o incremento incessante do
conhecimento (objetivo e desinteressado) de seu objeto e a validade Ciência
independe, portanto, de sua transformação numa técnica utilizável; a Dogmática
encontra-se intrínseca e imediatamente empenhada numa função prática. Seus
enunciados, conseqüentemente, não são descritivos, como os enunciados
tipicamente científicos, mas prescritivos.
A evidência de que, na Dogmática Jurídica, o "prático" domina o
teórico , isto é, condiciona e submete aos seus desígnios a "produção" de
conhecimento sobre o seu objeto, indicaria, mais do sua debilidade
epistemológica, uma ambigüidade nela não resolvida, na trajetória da modernidade,
entre Ciência e Técnica ou Tecnologia.
Tal desqualificação visibilizou para a Dogmática Jurídica o preciso
dilema traduzido por CARRASQUILLA (1988, p.77) de regozijar-se "em sua

34.Em defesa do contributo cognoscitivo da Dogmática Jurídica ver LARENZ (1983, p.284)
delimitação como Ciência no sentido positivista, sem poder sê-lo nem abandonar
de todo semelhante pretensão."
O primeiro daqueles argumentos encontramos por exemplo em
BOBBIO que traduzindo a confrontação entre Dogmática Jurídica e concepção
positivista de Ciência constata:

"A jurisprudência realiza seu trabalho não sobre fatos experimentais,


mas sobre proposições dadas e intocáveis (as normas jurídicas), que
valem, observe-se, inclusive quando contraditadas pelos fatos. A
doutrina filosófica oficial, proclamará, portanto - e será acreditada por
todos - que a jurisprudência não é uma Ciência verdadeira como todas
as demais (...)." (BOBBIO, 1980, p.179)

Indo além de KIRCHMANN, BOBBIO sustenta então que a Dogmática


Jurídica não se insere, em absoluto, na concepção racionalista e nem tampouco na
concepção positivista de Ciência podendo se inserir, unicamente, na concepção
neopositivista. E é com base nesta que procura então (re)qualificar o estatuto da
Dogmática Jurídica como Ciência do rigor lingüístico35.
HERNÁNDEZ GIL, embora reconheça que a Dogmática Jurídica não
realiza inteiramente a concepção racionalista nem a positivista de Ciência em suas
expressões paradigmáticas sustenta, contrariamente à BOBBIO, uma postura
relativista que situa a cientificidade da Dogmática Jurídica no meio do caminho
entre ambas.
É que sendo marcada, sobretudo em seus momentos fundacionais,
embora também depois, pela epistemologia positivista , pois, não obstante
considerar o Direito como um produto da história o trata como se fosse um
objeto da natureza, nela sobrevivem, também, resquícios racionalistas
(HERNÁNDEZ GIL, 1988a, p.46) de modo que

35.A respeito ver BOBBIO (1980, p.173-200).


"(...) O racionalismo e o positivismo se apresentam no âmbito do saber
jurídico menos diferenciados e contrapostos do que em suas
enunciações gerais. Concorrem e se interferem. A chegada do
positivismo não supôs a eliminação de todos os componentes
racionalistas. À parte da reconhecida influência que exerceu a ideologia
jusnaturalista na gênese do positivismo (os Códigos em que este
haveria de alojar-se se escrevem ao ditado da razão), os universais
éticos e metafísicos do direito natural foram postos em questão pelo
historicismo antes que pelo positivismo, que melhor substituiu por
certos universais lógicos, como os conceitos, as definições e as
classificações, e inclusive por esse universal ontológico que é a natureza
jurídica das instituições e dos próprios conceitos. Evidentemente, a
Dogmática não recai sobre fatos, acontecimentos ou fenômenos da vida
social. Contudo, trata o direito em sua expressão normativa com um
factum no sentido de considerá-lo dado, exterior e contingente. O
exigido pelo positivismo é que o conhecimento parta de um objeto
identificado como existente e real, que seja observável e verificável,
sem constituir uma idéia ou uma essência, e este modo de ser ou de se
mostrar oferece o direito positivo considerado como conjunto de
normas. As normas mesmas não são intrinsecamente fatos. Referem-se
a eles, configurando-os como hipóteses ou supostos para os que
formulam um dever de ser ordenador. Mas para os fins de seu
conhecimento ocupam um lugar equivalente ao que ocupariam os fatos,
desde que são dadas ou estabelecidas historicamente como fenômenos
da realidade suscetíveis constatação empírica. Logo também as
normas têm sua positividade e são, por isso, suscetíveis a um
tratamento positivista, ainda que do ponto de vista do conteúdo difiram
o positivismo dos fatos e o das normas." (HERNÁNDEZ GIL,1988a,
p.83-4)36

Por outro lado, nos quadros do cientificismo, como é sabido, não


apenas a Filosofia foi relegada para o campo da metafísica, mas também a
Técnica foi relegada a uma condição epistemologicamente inferior à da Ciência.
As dificuldades de enquadramento da Dogmática Jurídica no âmbito
dos modelos científicos disponíveis conduziu neste sentido a um aspecto mais

36.Neste sentido entende também BETTIOL (19--, p.104-5) que o método da Dogmática Jurídica
"...é, indubitavelmente, um método positivo, porque parte, exclusivamente, dos dados jurídico-
positivos, da realidade do Direito vigente. Tudo o que supera ou é estranho à consideração desta
realidade, não deve contar para o jurista.Não é possível afirmar que, sob um aspecto especulativo,
exista uma diferença entre o jurista 'classificador' e o positivista à moda antiga, precisamente
porque ambos partem dos resultados da experiência sensível(...). Também o Direito se transforma,
dessa maneira, numa Ciência naturalística, a ordenar segundo os mesmos critérios de que se serve
o naturalista."
recente no âmbito de uma Metadogmática: a distinção entre Ciência e Técnica do
Direito segundo a qual

"(...) de qualquer modo que seja formulada se tende a relegar ao campo


da Técnica o verdadeiro estudo do jurista e a superpor-lhe uma Ciência
verdadeira que se aproxima seja do Direito natural, da Sociologia, da
Lógica pura ou da teoria fenomenológica." (BOBBIO, 1980, p.180)

Por outro lado, há posturas que, também levando em conta aquela


distinção não reduzem a Dogmática Jurídica à técnica mas reconhecem nela uma
dimensão técnica, tratando de precisar a relação Ciência-técnica no seu interior.
Tal postura é ilustrada, por exemplo, por HERNÁNDEZ GIL (1988b,
p.93-4), ao assinalar o significado da técnica e sua relação com o conhecimento
científico do Direito

"Numa situação epistemologicamente inferior e dependente no que se


refere ao conhecimento científico do Direito se encontra, a princípio, o
conhecimento técnico. A técnica do Direito, como todas as técnicas,
consiste no desenvolvimento de uma atividade cognitiva dirigida e
presidida pelas exigências da realização. O saber tem então um caráter
principalmente instrumental enquanto não se torna ciência, embora
critérios ou resultados procedentes desta cooperem no fazer. O processo
do tratamento técnico do Direito costuma se ver centrado em sua
aplicação pelos tribunais. Se esta constitui ainda o momento
predominante da técnica, não é, contudo, o exclusivo."

Para concluir então que, sendo a técnica (de aplicação do Direito)


objeto da reflexão teórica da Dogmática Jurídica, nela convive uma dimensão
científica de conhecimento com uma dimensão técnica:

"A dogmática é (ou pretende ser) uma ciência. A aplicação do direito


(especialmente a judicial) é uma técnica consistente no desenvolvimento
de uma atividade cognitiva e resolutiva dirigida à solução de conflitos.
Mas a dogmática é uma teoria preocupada com a fundamentação e
desenlace das soluções jurídicas. Tende a estabelecer as bases que
tornam possível resolver de modo uniforme um número infinito de
casos. Acho, portanto, que a técnica é objeto da reflexão teórica; mas a
dogmática não fica circunscrita a método de aplicação do direito. (...) O
que se quer dizer é que há um tratamento dogmático do direito que se
da também no seio da técnica enquanto saber específico e auto-
suficiente do mesmo com vistas a sua aplicação." (1988a, p.44-5)

FERRAZ JÚNIOR por sua vez, confrontando o modelo da Dogmática


Jurídica com a matriz positivista de Ciência - e desenvolvendo especialmente o
argumento "b", acima referido - sustenta, na esteira das teorias de Luhmann e
Viehweg, que o estatuto teórico típico da Dogmática Jurídica é o de uma
"tecnologia". 37
Enfim, pode-se referir, sem prejuízo de outros, esforços de
requalificação científica da Dogmática Jurídica segundo uma matriz neokantiana
de Ciência "cultural", a exemplo de LARENZ (1983) e a qual teve sua maior
projeção precisamente no campo da Dogmática Jurídico-Penal.38
Neste sentido comenta POZO (1988, p.38) sobre o intento de manter o
estatuto científico da Dogmática Jurídica para além do reconhecimento de sua
dimensão técnica ou tecnológica que

"Os juristas, ao fazer depender tanto a importância de seus trabalhos


do reconhecimento de seu caráter científico, chegam ao extremo de
redefinir a Ciência para que possa abranger a Dogmática. Assim, por
exemplo, LARENZ, estima que "a Ciência do direito é, com efeito, uma
Ciência ( e não somente uma tecnologia, ainda que também isto)
porque tem desenvolvido métodos que apontam para um conhecimento
racionalmente comprovável."

Quanto à confrontação entre Dogmática Jurídica e Ciência social


podemos observar,no campo penal, a convivência entre posturas de qualificação
científica da Dogmática Jurídica como Ciência social (MIR PUIG, 1982) e

37. Sobre esta argumentação ver FERRAZ JÚNIOR (1980,1988a,1988b)

38. Por isto trataremos especificamente desta questão no capítulo terceiro.


posturas que, mais do rejeitar esta aproximação, (ZAFFARONI, 1991) afirmam
que o divórcio entre ambas assume hoje a proporção de um verdadeiro abismo.
(BARATTA, 1982b e 1991a, p.160-161)

-Um dilema sem saída?

Desta forma, enquanto neste final de século já se discutem as condições


de possibilidade de uma Ciência pós-moderna (SOUSA SANTOS, 1989c), ainda
paira o desacordo sobre a identidade epistemológica e o real estatuto teórico
da(s) Dogmática(s) Jurídica(s) .
Segundo o critério de confrontação epistemológica que tem presidido
uma Metadogmática, aqui sumariamente ilustrada, mesmo idênticas matrizes
tomadas como referente para o enquadramento epistemológico (técnico ou
tecnológico) da Dogmática Jurídica geram respostas diversificadas, sejam
positivas, negativas ou relativas, dependendo da lupa do metadogmático.
Desconcertantemente, a Dogmática Jurídica pode: a) corresponder
integralmente a algum estatuto de Ciência (seja neopositivista, neokantiana ou de
Ciência social); ou b) não corresponder a nenhum dos disponíveis, podendo
neste caso ser reconduzida a uma técnica ou tecnologia; ou c) corresponder
apenas relativamente, caso em que apresentará um estatuto ambíguo entre duas
matrizes de Ciência (como o racionalismo e o positivismo) ou ainda entre Ciência
e técnica ou tecnologia.
Por uma peripécia epistemológica - ao se levar em conta o conjunto
possível das análises Metadogmáticas descritivas - ela conseguiria ser, ao mesmo
tempo, uma Ciência social, neopositivista ou neokantiana; não ser, em absoluto,
uma Ciência, mas apenas uma técnica ou tecnologia; ou ser uma Ciência
relativamente racionalista e positivista, ou ainda ser um misto de Ciência e técnica
ou tecnologia. Assim, mesmo quando uma das posições sobre seu estatuto seja
individualmente aceitável, consideradas em seu conjunto não podem sê-lo,
razoavelmente.
No marco deste critério parece persistir, de fato, aquilo que BOBBIO
(1980, p.175) denominou "a duplicação do saber jurídico": aberto em
determinado período histórico um contraste - que parece irredutível - entre a
concepção de Ciência e a prática do jurista, desenvolve-se, por um lado, uma
Jurisprudência que não é Ciência e, por outro lado, uma Ciência que em si mesma
não tem já nada que ver com a Jurisprudência (e com a qual os juristas geralmente
não sabem o que fazer).
O empenho dos juristas em sustentar a cientificidade da Dogmática
Jurídica não parece ter suprido assim as dificuldades que experimenta desde sua
gênese em reconhecer-se plenamente nas concepções oficiais da Ciência
dominantes em cada momento histórico. Não tem impedido pois, que
experimentem um autêntico "complexo de inferioridade" (BOBBIO,1980, p.174)
em relação aos demais científicos.
Mas o debate metadogmático potencializa, também, uma outra ordem
de conclusões, a nosso ver mais importante e conseqüente. Se inexiste um acordo
sobre o real estatuto da Dogmática Jurídica e o âmbito de uma Metadogmática
caracteriza-se pela convivência contraditória entre atribuições de estatutos de
diferente natureza, é porque ela, parece-nos então demonstrado, não corresponde
inteira e essencialmente a não ser por um artificialismo, nem às matrizes científicas
disponíveis nem a um estatuto técnico ou tecnológico diferenciado da Ciência.
Se a Dogmática Jurídica pode ser tudo é porque se caracteriza,
contrastivamente, pela ausência de uma identidade epistemológica.
E se este critério comparativo tem buscado uma aproximação - e as
identidades - da Dogmática Jurídica com as demais Ciências as diferenças enfim
descobertas, e que pesam, autorizam a afirmar que a Dogmática Jurídica se
caracteriza por uma singular identidade que parece mais distingui-la, do que
aproximá-la, dos demais modelos científicos.
Cremos que mais de um século de debate epistemológico é suficiente
então para demonstrar que é quimera insistir na busca, quase obsessiva, da
cientificidade da Dogmática Jurídica através deste critério. Pois, em seu âmbito,
não parece haver saída para o dilema acima apontado. A Dogmática será sempre
ou uma Ciência artificialmente enquadrada dentro de outras matrizes científicas,
ou uma Ciência de segundo grau (híbrida ou ambígua) ou uma técnica ou
tecnologia.
No fundo, ao admitir este critério, isto é, ao demarcar a função de uma
Metadogmática, "como estudo, proposta e aplicação à obra dos juristas de
modelos de outras disciplinas", os metadogmáticos parecem exteriorizar a priori
seu "complexo de inferioridade", pois, por detrás desta demarcação são as outras
disciplinas - e não a sua - que aparecem, já, implicitamente consideradas como
científicas. O próprio critério, pois é passível de problematização.
Com efeito, além da submissão àqueles critérios epistemológicos
oficializados pela comunidade científica (em sentido amplo) por que razão uma
Metadogmática tem que elegê-lo e a ele se limitar ? Se este critério fosse legítimo
per si, legítimo também não seria a eleição inversa; ou seja, identificar os critérios
de cientificidade da Ciência Jurídica e medir com este metro a cientificidade das
demais Ciências? E para além desta opção extrema, a cientificidade da Dogmática
Jurídica não pode ser aceita com base em outro critério? com base em um outro
enfoque epistemológico?

7.2. A Dogmática Jurídica como paradigma científico


A teoria dos paradigmas de KUHN39 parece oferecer uma resposta
afirmativa à questão e uma via possível pela qual enfrentar o dilema e
reencontrar para a Dogmática Jurídica um lugar epistemológico sem "complexos
de inferioridade".
KUHN sustenta que uma análise histórica demonstra que inexiste "a"
Ciência como atividade unívoca para todas as épocas e sociedades uma vez que
o entendimento sobre o que é fazer Ciência é sempre relativo a um consenso ou
conjunto de compromissos teóricos básicos existentes na comunidade científica.
É sempre definido pela existência de um "paradigma". E a existência de
sucessivas modalidades diferentes de fazer Ciência determinadas pelos
respectivos paradigmas significa que não há uma compreensão ou aplicação
unívocas da maneira científica de proceder , o que torna relativa a definição do
que é científico.
Para KUHN existe, pois, Ciência, na medida em que existe um modelo
compartilhado que define o sentido da pesquisa, seu âmbito e instrumentos. E um
pesquisador é um cientista na medida em que se compromete com aquele modelo.
Desta forma, cada Ciência tem sua tradição específica de pesquisa na qual se
forma o pesquisador que se dedica a cultivá-la . Um paradigma define, portanto,
toda uma maneira de cultivar a Ciência . Além de regras, linguagem, valores, etc.,
o procedimento científico requer todo aquele estilo de pensamento e ação
constituído pelo paradigma.
Contra a univocidade do signo Ciência depõe também, segundo ele, a
existência de duas espécies de prática científica relacionadas com a existência de

39. O que segue é uma explicação sintetizada do próprio conceito kuhneano de paradigma a que
aludimos na nota de nº "1" deste capítulo. A respeito ver KUHN (1975) e também CUPANI
(1985, p.57-74).
um paradigma: a "Ciência normal" e a "Ciência extraordinária", distinção que
remete, por sua vez, à sua teoria das "revoluções científicas."
A primeira, é precisamente a atividade regida por um paradigma bem
consolidado, que não é discutido e é, em geral, irrefletidamente aceito. O cientista
"normal" ocupa-se exclusivamente daquele tipo de problemas que o paradigma
definiu como científicos, aborda-os com aqueles recursos metodológicos
consagrados também pelo paradigma e espera resolvê-los de acordo com a
solução-tipo por ele fornecida .
O cientista normal, por ele definido como "solucionador de quebra-
cabeças", é uma personalidade predominantemente conservadora com relação ao
paradigma que defende e que representa para ele a maneira natural de cultivar a
Ciência.
Já a Ciência extraordinária consiste na atividade que se desenvolve
quando um paradigma começa a dar sinais de crise, isto é, não consegue mais
resolver os problemas conforme as regras vigentes e até que seja substituído por
outro . Para cada problema solucionado vão surgindo outros, de complexidade
crescente e a certa altura o efeito cumulativo deste processo entra num período de
crise em que, não tendo mais condições de fornecer soluções, o paradigma
vigente começa a revelar-se como fonte última dos problemas e das
incongruências. As "revoluções científicas", mais freqüentes, segundo KUHN, do
que se imagina, são precisamente os processos de substituição de um paradigma
por outro.
O cientista extraordinário é assim aquele que rompe com o paradigma
tradicional ao perceber suas falhas ou anomalias e busca um novo instrumental
para resolvê-las, chegando eventualmente a propor e até a impor um novo
paradigma. O cientista extraordinário é tal precisamente por ter questionado o
modelo científico tradicional.
Ele não lida com quebra-cabeças mas com autênticos problemas, para
os quais o paradigma vigente não oferece meios de solução e que exigem um novo
paradigma de acordo com o qual seja possível tratá-las e resolvê-las.
Resgatando a historicidade e o relativismo do signo Ciência a teoria
kuhneana dos paradigmas caracteriza a cientificidade de uma disciplina não pelas
suas opções, pressupostos epistemológicos ou produtos, mas pela sua forma
"paradigmática" de exteriorização.
E muito embora Kuhn também tenha por referente o modelo das
Ciências naturais, vimos na Dogmática Jurídica uma exemplar demonstração de
um paradigma científico concordando com FARIA (1988, p.31) em que "a
Dogmática jurídica certamente constitui o que há de mais paradigmático no âmbito
do pensamento normativo moderno."
Pois, com efeito, mais do que definir objeto, método e função que
caracterizam a identidade da Ciência Jurídica - isto é, seu âmbito, instrumentos e
sentido - o paradigma dogmático define toda uma maneira de cultivá-la; todo um
estilo de pensamento e ação que marca, com efeito, uma tradição específica de
fazer Ciência e na qual se formam, sucessivamente, novos juristas.
E se o que caracteriza a(s) Ciência(s) para KUHN é a sua forma
paradigmática de materialização - independentemente e respeitadas suas diferentes
opções e produtos - a Dogmática Jurídica pode ser concebida, precisamente,
como um paradigma científico peculiar que definido e compartilhado pela
comunidade jurídica configura, há mais de um século, o modelo "normal" e
oficial de fazer Ciência na tradição ocidental-continental e naquela sob sua
influência.
Deslocado o critério balizador de sua cientificidade liberada fica a
caracterização da identidade do paradigma desde o seu próprio interior, isto é,
sem aquela preocupação contrastiva pela sua (des)qualificação científica. E esta
caracterização pode ser feita recorrendo-se à contribuição analítica do próprio
debate metadogmático, liberado do critério contrastivo e recolocado no critério de
tipificação paradigmática da Dogmática Jurídica.
Neste sentido entendemos, coerentemente com o que vimos
sustentando neste capítulo, que a Dogmática Jurídica, embora não corresponda
inteiramente à matriz positivista é marcada, inegavelmente, por alguns
pressupostos dela que adquirem contudo, no seu interior, uma feição muito
especial, sobretudo porque condicionados pela centralidade de sua dimensão
prática e sua prometida função instrumental.
Assim, se na demarcação de seu objeto é norteada por um approach
positivista (que se expressa nas formulações da Escola histórica e se reitera no
juspositivismo), ao levar em conta não apenas a legislação (normatividade
abstrata), mas simultaneamente a aplicação judicial do Direito, situando-se
funcionalmente entre ambas, ela engloba uma dimensão técnica, para além das
normas jurídicas, como objeto de sua reflexão teórica e engendra um método
particular, marcado por elementos tanto racionalistas quanto positivistas.
Nesta perspectiva é necessário insistir, então, que embora produza um
determinado conhecimento sobre seu objeto a Dogmática Jurídica não é uma
Ciência de conhecimento em sentido estrito mas, antes, uma Ciência prática e,
como tal, marcada, sem dúvida, por uma dimensão técnica.

7.3. Do controle epistemológico ao controle epistemológico-funcional da


Dogmática Jurídica.

Por outro lado, desqualificar a Dogmática como Ciência ao nível da


crítica epistemológica, implica obscurecer um dado concreto de sua vigência, que
julgamos de suma importância captar.
É que não obstante um secular questionamento acadêmico da sua
promessa epistemológica, cremos que ela vige com o estatuto e os efeitos de
uma Ciência, pois as crenças dogmáticas são postas em circulação e socialmente
consumidas como científicas, em particular pelo ensino oficial e a práxis do
Direito.
Desta forma, o recurso à teoria dos paradigmas de KUHN não
representa uma tentativa de salvar a cientificidade da Dogmática Jurídica. Mas,
reconhecendo que a sua desqualificação epistemológica não encontra
correspondente na sua vigência efetiva, representa um recurso para melhor
compreender a força que sustenta, na modernidade, a identificação entre Ciência e
Dogmática. A sustentá-la, está também, parece-nos, a força de um "paradigma".
De qualquer modo, na medida em que a Dogmática Jurídica é o modelo
normal de fazer Ciência dos juristas e intrinsecamente empenhada numa função
prática imediata, o problema que deve interpelar uma Metadogmática não é tanto e
unicamente o controle epistemológico desta Ciência (cientificidade),
abstratamente considerada, mas o seu controle epistemológico a partir do seu
controle funcional.
Assim, para além do interrogante se a Dogmática Jurídica é uma
Ciência e de que tipo se trata parece-nos necessário fortalecer e responder ao
interrogante se a Dogmática Jurídica, enquanto Ciência prática, tem cumprido sua
função racionalizadora da práxis do Direito, em nome da qual pretende legitimar o
seu -problemático - modelo científico.
A um excesso de questionamento da promessa epistemológica da
Dogmática Jurídica corresponde um profundo déficit histórico de
questionamento da sua promessa funcional. E compensar este déficit é hoje, a
nosso ver, uma dos desafios mais urgentes que interpela uma Metadogmática que
deve passar então de um controle epistemológico por assim dizer estrutural a um
controle epistemológico-funcional do paradigma dogmático.40

40. Tal é objeto dos capítulos quarto e quinto.


8. Da função racionalizadora de lege ferenda à função pedagógica e
racionalizadora de lege lata

É importante aduzir, finalmente, que se a vigência da Dogmática Jurídica


se estende da comunidade científica à aplicação judicial do Direito ela passa,
fundamentalmente, pelo seu ensino, atingindo também a própria criação legislativa.
O Poder Judiciário, as Escolas de Direito (especialmente a nível do ensino de
graduação) e, subsidiariamente, o Poder Legislativo são, desta forma, as agências
fundamentais que sustentam, no prolongamento da comunidade científica, a sua
reprodução.
A Dogmática Jurídica tem cumprido desta forma uma função pedagógica
fundamental, dando origem a gerações sucessivas de um tipo peculiar de jurista: o
jurista dogmático. (HERNÁNDEZ GIL, 1981, p.23). Com efeito, a partir do
momento em que foi definida pela comunidade científica como uma Ciência
instrumental para a prática do Direito erigindo o Poder Judiciário em seu locus,
por excelência, de materialização, estavam também traçadas as bases de uma
educação jurídica dogmática. Pois era lógico que os potenciais operadores
deveriam aprender a pensar e fazer o Direito na base desta Ciência paradigmática.
Neste sentido pode-se dizer que a "função prática" da Dogmática Jurídica
condicionou e impôs sua função pedagógica: a potencialidade de se converter em
fonte dominante também do ensino jurídico derivou de sua potencialidade para
uma certa prática do Direito que deveria produzir certos operadores.
As Escolas de Direito se constituíram assim em instituições por excelência
de reprodução do saber dogmático sendo, o "lugar nobre da socialização jurídica
e criando as condições para um tipo de alienação específica: a alienação do
jurista." (WARAT, 1978)
Podemos referir, enfim, uma função político-jurídica da Dogmática,
materializada junto ao Poder Legislativo. Pois, ela exerce também uma função
orientadora das decisões políticas de criação legislativa (que podemos denominar
racionalizadora de lege lata) aspirando a converter a política jurídica em política
científica. Comumente, os juristas dogmáticos encontram-se encarregados, por
órgãos oficiais, de constituírem comissões para estudos sobre criação de leis ou
reformas de códigos, fundamentados em construções dogmáticas.
Neste sentido,

"É verdade que no direito moderno e contemporâneo, a legislação, e


em especial os códigos, constituem um ponto de referência obrigatório
para os codigos. Mas, primeiro, cabe destacar que os códigos podem ser
vistos como obras em grande medida produto de grandes juristas (...).
Ainda códigos conhecidos com o nome de um personagem histórico,
como o Napoleão, foram obras de juristas que se basearam nas obras
da Ciência Jurídica da época. (Cf. ARNAUD, 1969) Dito em outras
palavras, a atividade científico-jurídica tem sido e pode ser muito
importante para a preparação da legislação." (PERDOMO, 1984,
p.280)

Na função orientadora e racionalizadora de decisões que está chamada a


desempenhar ela atua assim duplamente junto a legisladores e juízes, preparando,
respectivamente, as decisões de criação e aplicação de normas jurídicas. Em
ambos os casos - orientação da política legislativa ou das decisões judiciais - sua
competência não consiste em "tomar" decisões, mas em prepará-las. (BARATTA,
1980, p.33-38)
As funções pedagógica e político-jurídica não estão inscritas, contudo,
como suas promessas, como a função racionalizadora de lege ferenda o está,
ocupando um lugar central e tipificador do próprio paradigma.
CAPÍTULO II

O MODERNO SABER PENAL: CONSOLIDAÇÃO DA


DOGMÁTICA JURÍDICO-PENAL E SUA RELAÇÃO PRIMÁRIA
COM A CRIMINOLOGIA

1. Introdução

No capítulo anterior procuramos reconstruir a configuração do conceito


da Dogmática Jurídica em perspectiva histórica, situando as matrizes que o
condicionam e a identidade estrutural que, ao longo desta configuração, foi
assumindo. O que correspondeu a produzir uma estilização do paradigma a partir
de suas bases fundacionais até a sua maturidade.
O objetivo deste capítulo é, na continuação, reconstruir a consolidação
do conceito da Dogmática Jurídico-Penal e sua relação (primária)41 com a
Criminologia no marco histórico de configuração do moderno saber penal em
sentido amplo.
Pois, se a Dogmática Penal guarda, por um lado, uma relação de
dependência significativa com o paradigma genérico da Dogmática Jurídica ela
insere-se, por outro lado, na especificidade do campo e do saber penal e este
universo condiciona sua consolidação e remodela sua identidade.

41. Nos referimos a uma relação primária entre Dogmática Penal e Criminologia porque, como
veremos no quinto e último capítulo, uma contemporânea mudança de paradigma em Criminologia
está a oportunizar uma outra forma de relação entre ambas as disciplinas, que chamamos então de
secundária.
Daí a importância, para a compreensão do conceito da Dogmática
Penal, de reconstruí-lo não apenas desde suas bases fundacionais, mas das
bases fundacionais do moderno saber penal em sentido amplo.
Com efeito, a consolidação do paradigma dogmático na Ciência Penal
corre paralela, como veremos, ao surgimento e consolidação do paradigma
etiológico42 em Criminologia, no âmbito de uma tematização sobre as relações
entre ambos que se dá no marco do positivismo 43 e na esteira de um processo e
de um saber penal enraizado no ambiente cultural da Ilustração. Ela somente pode
ser compreendida, pois, no âmbito mais profundo da herança iluminista à herança
(jus)positivista, na medida em que a continuidade ideológica que esta
consolidação guarda com a primeira se define sob a égide da segunda.
Nesta perspectiva, no campo penal o paradigma dogmático não dá
começo definitivo até BINDING, na Alemanha, a partir de 1870, como fruto do
mesmo positivismo jurídico que originaria na Itália o tecnicismo jurídico-penal.
(MIR PUIG, 1976, p.197-8)
A Alemanha foi não apenas o berço da Dogmática Jurídica, mas
também da Dogmática Jurídico-Penal, pois considerando-se que o método da
Escola Histórica influiu poderosamente os juristas alemães, não só cultivadores

42. Do grego "aitía"= causa.

43. É importante registrar desde já que no campo penal o positivismo experimenta uma dupla
manifestação. Por um lado, se manifesta através da Escola Positiva italiana, à qual se vincula o
nascimento da Criminologia como Ciência (e que representa uma projeção exemplar da
concepção positivista de Ciência ao estudo da criminalidade). Para designar esta Escola ou o
positivismo nela materializado tem-se usado as adjetivações de positivismo "naturalístico" ou
"criminológico" e ainda "sociológico" ou "científico". Usaremos indistintamente estas
denominações. Por outro lado, o positivismo jurídico (como approach) se manifesta paralela - e
em certos casos, como na Itália, reativamente àquele - estando na base de consolidação da
Dogmática Jurídica no campo penal e do qual são aplicações exemplares neste campo as obras de
K. BINDING na Alemanha e da Escola Técnico-Jurídica na Itália.
V.LISZT talvez represente o empenho mais célebre de conciliação entre o positivismo naturalístico
e o jurídico - entre Criminologia e Dogmática Penal - num "modelo integrado de Ciência Penal".
do Direito privado, se compreenderá até que ponto o juspositivismo encontrou aí
o terreno preparado para a consolidação pioneira da Dogmática no campo penal.
Por outro lado, a Criminologia como Ciência nasce e se consolida no
âmbito da Escola Positiva italiana, no mesmo período.
Desta forma, a consolidação da Dogmática Penal - e a relação que
doravante mantém com a Criminologia - não pode ser situada sem uma ilustração,
ainda que sumária, da trajetória temática e metodológica experimentada pelo
moderno saber penal na Alemanha e Itália.
A trajetória do saber penal em Itália, tomando como marco a obra de
Beccaria até a consolidação da Dogmática Penal, encontra-se marcada por uma
oscilação de método e objeto que não se verifica na Alemanha onde as
oscilações metódicas existentes não foram acompanhadas das mesmas oscilações
de objeto. É que na Alemanha, tradicionalmente, desde Feuerbach, o Direito
Positivo, embora variando a determinação de seu sentido e confins, foi um objeto
mais constante de estudo.
Com efeito, a Escola Clássica (tendo por objeto o Direito natural e por
método o lógico-abstrato ou dedutivo) a Escola Positiva (tendo por objeto o
delito como fato natural e social e por método o científico ou indutivo) e a
Escola Técnico-Jurídica (tendo por objeto o Direito Positivo e por método o
técnico-jurídico) constituem, em Itália, as oscilações extremas neste sentido
entre as quais tem lugar inúmeras posições intermediárias.44
Na Itália, portanto, o universo do saber penal, na centúria que vai da
segunda metade do século XVIII até a segunda metade do século XIX, é
nuclearmente ocupado por duas grandes Escolas penais: a Escola Clássica e a

44. São estas três Escolas, portanto, que examinaremos aqui Sobre as inúmeras Escolas ou tendências
ecléticas ver, entre outros. ASÚA, 1950, p.30 et seq.; SODRÉ, 1977, p.253 et seq.)
Escola Positiva cujo embate travado, desde o advento desta última, marca o
século XIX com a luta entre as Escolas gerando, por esta razão, diversas
tendências ecléticas ou conciliadoras. A Escola Técnico-Jurídica representa, já na
viragem do século XIX para o século XX um autêntico movimento de reação
contra o sincretismo metodológico que, como herança desta luta escolar,
dominava o universo penal.
Na Alemanha, aquelas oscilações metódicas podem ser assim
sumariadas: antes de FEUERBACH, o Direito Natural se encontra entre as fontes
do Direito Positivo; de FEUERBACH até aproximadamente 1840, predomina o
Direito positivo como objeto da Ciência Penal, ainda que moderado pela recurso
ao Direito Natural; desde 1840 até aproximadamente 1870, há um retorno, graças
ao hegelianismo, da prevalência do Direito racional. A partir de então, e desde K.
BINDING, triunfa o positivismo jurídico e a consolidação do Direito positivo
como objeto da Ciência Penal, favorecido por sua vez pelo formalismo que
acabou dominando a Escola Histórica e pelo Código liberal da Alemanha
unificada datado de 1871. (MIR PUIG,1976, p.208-10)
E tendo em conta que o movimento ideológico que fez nascer em toda
Europa a Ciência Penal moderna se remonta, como é sabido, à Ilustração, de
forma imediata por obra de BECCARIA, é dela que partimos aludindo ao saber
penal italiano antes que ao alemão ainda que, cronologicamente, é neste que se
encontram as matrizes fundacionais da Dogmática Penal.

2. A Escola Clássica: do saber filosófico ao saber jurídico-filosófico,


em defesa do indivíduo
A Escola Clássica45 se originou no marco histórico do Iluminismo e
de uma transformação estrutural da sociedade e do Estado, inserindo-se, em seus
45Em um sentido genérico, por Escola Clássica costuma designar-se as teorias sobre o Direito Penal,
o crime e a pena desenvolvidas em diversos países europeus no século XVIII até meados do
século XIX, no âmbito da filosofia política liberal clássica. (BARATTA, 1991, p.24)
Também não é uniforme a fixação de que autores devem ser incluídos na Escola. Para alguns, cuja
orientação aqui subscrevemos, que a concebem iniciada por um primeiro período essencialmente
filosófico, sucedido por um período jurídico, deve-se incluir nela a CESARE BECCARIA e, como
marco inicial do período filosófico sua obra "Dei delitti e delle pene", publicada em 1764,
JEREMIAS BENTHAM (1748-1832), GAETANO FILANGIERI (1752-1788),
GIANDOMENICO ROMAGNOSI (1761-1835) e PABLO ANSELMO VON
FEUERBACH(1775- 1833), entre outros.
E como representantes mais significativos de seu período jurídico a GIOVANNI CARMIGNANI
(1768-1847), PELLEGRINO ROSSI (1781-1848) e, especialmente, FRANCESCO
CARRARA (1805-1848).
Para outros, contudo, aqueles primeiros devem ser situados como seus precursores, devendo-se
reconhecer a estes últimos, apenas, como seus representantes genuínos.
A denominada Escola Clássica não constitui, portanto, um bloco monolítico de concepções,
caracterizando-se por uma grande variedade de tendências divergentes e, em alguns aspectos,
opostos, que na época de seu maior predomío combateram entre si, como as chamadas "teorias
absolutas" da retribuição(Kant, Hegel, Carrara) e as chamadas "teorias relativas" da prevenção.(
Bentham, Feuerbach, Beccaria, Romagnosi)
Além da heterogeneidade de suas concepções, ela também não obedece a um grupo homogêneo
de penalistas que tenham trabalhado juntos ou em estreito contato. Suas tendências se
desenvolveram em diferentes países,por representantes que não se conheciam entre si.
(CANTERO, 1977, p.72)
A denominação de "Clássica" era, inclusive, estranha ao tempo do advento e apogeu deste saber
tendo sido cunhada apenas em 1880, por FERRI (1931, p.34) que dizia tê-lo feito com
"sentimento de admiração".
ASÚA (1950, t.1, p.30-1) contudo, vê aí um sentido pejorativo e atribui aos positivistas, em certo
sentido, terem conferido uma unidade ao classicismo com vistas a direcionar seus ataques a um
grupo compacto de adversários, fundindo as suas diversas tendências (morais, utilitárias e ecléticas,
constitutivas das teorias absolutas, relativas e mistas da pena) em uma única entidade, tipificada
pelo método racionalista. Mas conclui a seguir que assim acabam por se revelar "aos próprios
clássicos uma série de notas comuns que prestam às tendências vulneráveis uma homogeneidade
ausente nos dias pretéritos."
Com efeito, o que permitiu a FERRI conferir uma unidade às diversas tendências da Escola
Clássica foi o método (racionalista, abstrato ou dedutivo) comum por elas empregado, assim
como foi também a sua insistência na unidade do método (experimental, indutivo) adotado pela
Escola positiva que lhe permitiu justificar uma oposição frontal ao classicismo.
MIR PUIG (1976, p.175) observa, nesta perspectiva, que uma adequada precisão do sentido do
método utilizado pelos clássicos impõe identificar também o comum objeto a que este método se
aplica: o Direito Natural. Neste sentido o método cumpre, em primeiro lugar, a função de
descobrimento do próprio objeto de análise.
Além desta unidade metódica entendemos, ainda, que o classicismo também apresenta uma
unidade ideológica e é esta dupla unidade e as concepções comuns dela decorrente que
tratamos de acentuar aqui,não obstante o reconhecimento da heterogeneidade que o classicismo
encerra.
Enfim, nos limitando à abordagem da Escola Clássica em Itália privilegiamos as obras de Beccaria
e Carrara que constituem, também, as mais expressivas e de maior repercussão,
respectivamente, dos seus momentos fundacionais e da sua maturidade.
momentos fundacionais, na transição da ordem feudal e o Estado absolutista (o
"Antigo regime") para a ordem capitalista e o Estado de Direito liberal na Europa,
e se desenvolveu ao longo do processo de consolidação desta nova ordem.
E cobrindo este período de quase cem anos, que vai de meados do
século XVIII a meados do século XIX, há uma especificidade no saber por ela
produzido que deve ser fundamentalmente ressaltada.
É que no próprio interior do classicismo assistimos a

"(...) um processo que vai de uma filosofia do direito penal a uma


fundamentação filosófica da Ciência do Direito Penal, isto é, de uma
concepção filosófica a uma concepção jurídica, mas filosoficamente
fundada, dos conceitos de delito, responsabilidade penal e pena."
(BARATTA, 1991, p.25)

Desta forma, é fundamental distinguir entre as origens da Escola


Clássica, marcada por um saber essencialmente filosófico, no qual conflui,
diretamente, toda filosofia do Iluminismo europeu (especialmente o francês) e
traduz, ao mesmo tempo, o movimento de reforma penal que vem no bojo daquela
transformação, do seu posterior desenvolvimento e culminação, quando é
marcada pela produção de um saber jurídico, embora ainda filosoficamente
fundamentado e herdeiro, então indireto, do Iluminismo.
Ao mesmo tempo, enquanto aquele saber fundacional é marcado por
uma dimensão crítico-negativa (do status quo do Direito e da justiça penal)
convivendo com uma dimensão positiva ou construtiva de projeção (de um novo
Direito e uma nova Justiça Penal), o saber clássico da maturidade abandona a
dimensão combativa e é essencialmente positivo. Entre ambos, saliente-se, medeia
o início do movimento europeu de codificação.
A obra " Dos Delitos e das Penas " de BECCARIA (1764)46 constitui
o marco mais autorizado do início da Escola e a expressão mais fidedigna do seu
primeiro período; da mesma forma que a obra "Programa do Curso de Direito
Criminal" de CARRARA (1859) constitui o marco mais autorizado da culminação
daquele segundo período e do pleno desenvolvimento da própria Escola
Clássica.

2.1. A unidade ideológica da Escola Clássica

De qualquer modo, há uma visível unidade ideológica na Escola


Clássica. Trata-se do seu inequívoco significado político liberal e humanitário pois
a problemática comum e central que preside aos seus momentos fundacionais e
atravessa o seu desenvolvimento é a problemática dos limites - e justificativa - do
poder de punir face à liberdade individual.
Baseando-se no postulado fundamental de que " os direitos do
homem47 tinham que ser protegidos da corrupção e dos excessos das instituições
vigentes, vícios que não estavam ausentes nos regimes jurídicos da Europa do
século XVIII." (TAYLOR, WALTON, YOUNG, 1990, p.19) ela empreenderá
uma vigorosa racionalização do poder punitivo em nome, precisamente, da
necessidade de garantir o indivíduo contra toda intervenção estatal arbitrária. Daí

46. Sobre a vida e condições pessoais de Beccaria na produção desta obra, bem como sua
contextualização histórica ver CANTERO (1977, p.49-56).
47.A rigor, a linguagem da Escola clássica não é a linguagem dos "Direitos humanos", tal como veio
posteriormente a se universalizar. Mas a linguagem do indivíduo, da liberdade individual, dos
direitos subjetivos ou das garantias individuais. De qualquer modo, quando aquela for aqui
utilizada deve ser entendida como abarcando esta esfera dos Direitos humanos excluídos,
portanto sejam os Direitos individuais políticos, sejam os sociais, culturais, etc. E esta
pontualização vale também para o âmbito da Dogmática Penal e o seu emprego, enfim, ao longo
desta tese.
porque a denominação de "garantismo" seja talvez a que melhor espelhe o seu
projeto racionalizador.

2.2. A unidade metodológica da Escola Clássica

Projetando para o campo penal a concepção racionalista de Ciência


dominante em seu tempo histórico e inserindo-se naquela "unidade metodológica"
que, segundo BOBBIO (1980, p.177) caracteriza a corrente moderna do Direito
Natural, a Escola Clássica é tributária do método racionalista, lógico-abstrato ou
dedutivo de análise do seu objeto, o qual condiciona, associado aos seus demais
pressupostos, a sua produção jusfilosófica.
Sendo a matriz racionalista de Ciência orientada por uma
concepção mecanicista do universo (como um conjunto de leis naturais absolutas
e predeterminadas) o seu método cumpre, conseqüentemente, a função de
investigação racional e sistemática daquelas leis ou princípios e, portanto, de
revelação do próprio objeto; ou seja, da origem natural e predeterminada do
Direito Penal.
Consoante esta premissa jusnaturalista, o Direito Penal revelado e
verdadeiramente digno de consideração era apenas o que decorria, por dedução
lógica, seja de um hipotético contrato social (como em BECCARIA), seja da
natureza racional do homem ou da lei divina (com em CARRARA) pois, em
qualquer caso, o Direito não é visto como produto histórico.
Surpreendemos, pois, nos clássicos:

"(...) uma mentalidade anti-historicista que se reflete também naqueles


que partem de premissas contratualistas, porque o contrato está situado
acima e fora da história, transformando-se em mera hipótese de
trabalho, premissa fundamental para toda e qualquer discussão lógica."
(BETTIOL, 1966, p.22)
Nesta Escola, portanto, a teoria penal recebe um caráter demonstrativo
de um sistema fechado, que deve legitimar-se perante a razão mediante a exatidão
matemática e a concatenação lógica de suas proposições. Dá-se a ligação entre
teoria penal e sistema racional sendo o Direito Penal concebido como "um
sistema dogmático, baseado sobre conceitos essencialmente racionalistas"
(ASÚA, 1950, p.32).
Aquela unidade ideológica guarda então com esta unidade
metodológica um estreito nexo histórico.
É que

"(...) os clássicos, desde César BECCARIA, pretendem mediante um


método abstrato, dedutivo (...), atacar o Direito Penal do Antigo
Regime (...) e conseguem que essas idéias penetrem a legislação
inaugurando o Direito penal moderno." (RODRÍGUEZ DEVESA citado
por MIR PUIG, 1976, p.176)

2.3. O movimento reformista e a obra de Beccaria: bases filosóficas e


ideológicas fundacionais do moderno Direito Penal e a promessa
de segurança jurídica

O impacto histórico e a importância da obra de BECCARIA, não se


deve à sua originalidade, mas à sua capacidade de expressar o vigoroso
movimento europeu de reforma penal48 que vem no bojo do Iluminismo,
estabelecendo as bases fundacionais do moderno Direito Penal (e Processual

48. Dentre os reformadores também há que mencionar, entre outros, a Jeremy Bentham, Gaetano
Filangieri, Giandomenico Romagnosi e Jean Paul Marat (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.120-1;
BARATTA, 1991a, p.25 e CANTERO, 1977, p.57-8).
Penal). Neste sentido ela simboliza, a um só tempo, as reivindicações daquele
movimento e as origens da Escola Clássica.
Com efeito, consubstanciando a projeção, para o campo penal, do
conjunto de "ismos" enraizados na Filosofia iluminista - racionalismo,
humanismo, contratualismo, liberalismo - "Dos delitos e das penas" é uma
expressão exemplar daquela dualidade a que acima nos referimos. Pois se trata de
uma obra simultaneamente de combate à Justiça Penal do Antigo Regime e
projeção de uma Justiça Penal liberal, humanitária e utilitária, contratualmente
modelada.
Na sua dimensão crítica (negativa) denuncia o estado da legislação
penal vigente, dominando por uma heterogênea e caótica profusão de leis
obscuras: um "código sem forma, produto monstruoso de séculos mais bárbaros"
(BECCARIA,1983, p.7). E responsabiliza estes vícios da legislação por
possibilitarem a arbitrária e desigual aplicação da lei conforme a condição social
do acusado.
As penas, assentadas no duplo pilar da expiação moral e da intimidação
coletiva, eram excessivamente arbitrárias e bárbaras, prodigando os castigos
corporais e a pena de morte.
Relativamente ao Processo Penal, todas estas características eram mais
acusadas. De caráter inquisitivo, era rigorosamente secreto ignorando as mais
elementares garantias dos direitos de defesa. A tirania da investigação da verdade a
qualquer preço conduzia ao sistema de provas legais, à obrigação do acusado de
prestar juramento e a obtenção por qualquer meio da confissão, considerada a
rainha das provas.
Em síntese, a Justiça Penal vigente atentava, em todos os sentidos,
contra a necessária certeza do Direito e a segurança individual.
Na dimensão reconstrutora (positiva), "Dos Delitos e das Penas"
consiste, em decorrência, na formulação programática dos pressupostos do
Direito Penal e Processual Penal no marco de uma concepção liberal do Estado e
do Direito baseada nas teorias do contrato social, da divisão de poderes, da
humanidade das penas e no princípio utilitarista da máxima felicidade para o
maior número de pessoas. (TAYLOR, WALTON e YOUNG, 1977, p. 19 e
BARATTA, 1991, p.25)
Orienta-se, neste sentido, pela exigência de segurança individual contra a
arbitrariedade do Príncipe (poder punitivo) e sua preocupação central é a
instauração de um regime estrito de legalidade (Penal e Processual Penal) que evite
toda incerteza do poder punitivo, ao mesmo tempo em que promova a sua
humanização e instrumentalização utilitária.
Por isto a obra BECCARIA representa, sem dúvida, um marco
fundacional do moderno Direito Penal e Processual Penal liberal. É sua aportação
para o Direito Penal, contudo, que nos interessa aqui focalizar.
Assim a formulação programática dos princípios da Legalidade dos
delitos e das penas, certeza e igualdade jurídica; humanidade, proporcionalidade e
utilidade (finalidade preventiva da pena) para a fundação de um Direito Penal
Liberal encontram-se, em sua obra, em antítese crítica relativamente aos vícios
mais graves por ele detectados na Justiça Penal vigente em seu tempo, historiada e
imortalizada, em especial, na obra de FOUCAULT (1987).
Partindo de um hipotético estado de natureza, é no contrato social, pois,
que BECCARIA (1983, p.15) encontra um novo fundamento e legitimidade para
as penas e o direito de punir:

"Assim sendo, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma


parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda
em por no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer,
exatamente o necessário para empenhar os outros em mantê-lo na
posse do restante. A reunião de todas essas pequenas parcelas de
liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo exercício de
poder que deste fundamento se afaste constitui abuso e não justiça; é
um poder de fato e não de direito; constitui usurpação e jamais um
poder legítimo. As penas que vão além da necessidade de manter o
depósito da salvação pública são injustas por sua natureza; e tanto
mais justas serão quão mais sagrada e inviolável for a segurança e
maior a liberdade que o soberano propiciar aos súditos."

Como primeira conseqüência do poder punitivo contratualmente


fundado e com base no princípio da divisão de poderes BECCARIA deduz a
exigência de Legalidade, princípio que veio a se consubstanciar na fórmula
nullun crimen nulla poena sine lege que lhe imprimiu FEUERBACH:

"A primeira conseqüência que se tira desses princípios é que apenas as


leis podem indicar as penas de cada delito e que o direito de estabelecer
leis penais não pode ser senão da pessoa do legislador, que representa
toda a a sociedade ligada por um contrato social." (BECCARIA, 1983,
p.16)

Coerentemente com a convicção de que "através de boas leis"


(BECCARIA, 1983, p.11) era possível impedir os abusos da antiga Justiça Penal,
a segunda conseqüência do contrato social (no marco de uma estrita separação
de funções entre o poder Legislativo, Executivo e Judiciário) é que não basta
submeter a punição, em abstrato, à legalidade, mas é necessário que as leis sejam
gerais e escritas em linguagem comum e tão clara que, prescindindo de qualquer
interpretação, submetam rigorosamente o juiz:

"Advém, ainda, dos preceitos firmados precedentemente, que os


julgadores dos crimes não podem ter o direito de interpretar as leis
penais, pela própria razão de não serem legisladores.
......................................................................................................
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A maior deve ser a lei geral; a
menor, a ação conforme ou não à lei; a conseqüência, a liberdade ou a
pena. Se o juiz for obrigado a elaborar um raciocínio a mais, ou se o
fizer por sua conta, tudo se tornará incerto e obscuro. Não há nada
mais perigoso do que o axioma comum de que é necessário consultar o
espírito da lei." (BECCARIA, 1986, p.17)
A Lei geral e assim formalizada (única fonte do Direito Penal), seguida
da sentença como um silogismo perfeito (neutralidade judicial) geram a
necessária igualdade e certeza jurídica que a segurança (da liberdade e
propriedade dos cidadãos) demanda:

"Sendo as leis penais cumpridas à letra, qualquer cidadão pode calcular


exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil,
pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do crime.
Gozará, com segurança, de sua liberdade e de seus bens; e isso é justo,
pois, que esse é o fim que leva os homens a se reunirem em sociedade."
(BECCARIA, 1986, p.18)

Como terceira conseqüência, aparece a exigência de utilidade da pena


que, diretamente vinculada aos princípios da humanidade e da proporcionalidade
aos delitos, não pode ter como finalidade torturar e afligir um ser sensível, nem
desfazer um crime já praticado, mas prevenir o delito:

"Os castigos têm por finalidade única obstar o culpado de tornar-


se futuramente prejudicial à sociedade e afastar os seus patrícios
do caminho do crime. Entre as penalidades e no modo de aplicá-
la proporcionadamente aos crimes, é necessário, portanto,
escolher os meios que devem provocar no espírito público a
impressão mais eficiente e mais perdurável e, igualmente, menos
cruel no organismo do culpado." (BECCARIA, 1986, p.42-3)

Se o critério de medida da pena é, dentro do contrato social e do


princípio utilitarista, o mínimo sacrifício da liberdade individual e da propriedade
que ela necessariamente implica "a exata medida dos crimes é o prejuízo causado
à sociedade" (BECCARIA, 1986, p.63).
Como desfecho sintético "Dos Delitos e das Penas" aparece um
"teorema geral de muita utilidade", embora pouco adaptado ao uso:
"É que, para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve
ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas
aplicáveis nas circunstâncias referidas, proporcionada ao delito e
determinada por Lei." (BECCARIA, 1983, p.97)

Com o saber iluminista-reformista que a obra de Beccaria simboliza


nasce, portanto, um projeto de refundação do Direito e da Justiça Penal e, com
ele, uma promessa de segurança jurídica individual para a modernidade.

2.4. O jusracionalismo e as bases jusfilosóficas do Direito Penal liberal

A obra dos reformadores penais, destacadamente a de BECCARIA,


subministra os pressupostos filosóficos e ideológicos que, paulatinamente
recebidos e positivados pelo movimento codificador europeu49 dá origem ao
moderno Direito Penal liberal. É na codificação, por sua vez, que a Ciência Penal
encontra um princípio de unidade para o seu objeto.
Não se tratava mais, portanto, de combater a antiga Justiça Penal, mas
de consolidar juridicamente os princípios básicos do novo Direito Penal já

49. Em 1767, Catalina II de Russia ordenou a elaboração de um Código Penal. José II da Áustria
promulga em 1787 uma Lei geral sobre o castigo dos delitos. Aparecem, na França, os códigos
revolucionários de 1791 e 1795. Em 1810 era promulgado o Código Penal napoleônico.
(CANTERO,1977, p.60).
"Sobre a base da codificação napoleônica se desenvolve, na França,a poderosa Escola da Exegese
que presidiu o pensamento jurídico francês - e não apenas penal- ao longo do século XIX. Os
códigos, recém-adotados, necessitam ser explicados e comentados. Será necessário mais de meio
século à jurisprudência francesa para precisar o alcance dos novos textos, através de expedientes a
um tempo seguros e rudentes. As preocupações então atuais são portanto de técnica jurídica, e
logo será assim em toda a Europa remodelada política, geográfica e, através da revolução
industrial, economicamente. O princípio das nacionalidades faz surgir novos códigos, que
pretendem superar seus modelos, francês e bávaro, do início do século." (ANCEL, 1979, p.55)
Em Alemanha, contudo, o primeiro código penal unitário data de 1871 e em Itália de 1889.(MIR
PUIG, 1976, p.199-200)
Sobre a codificação na Europa ver ASÚA (1950, t.1, p.276 et seq.); sobre a codificação em
IberoAmérica ver RIVACOBA Y RIVACOBA e ZAFFARONI (1980).
positivados ou em vias de positivação. É compreensível, assim, que no seu
desenvolvimento posterior o classicismo abandone a originária posição crítico-
negativa e produza um saber eminentemente construtivo.
No lugar da crítica à legislação, ao processo e à execução penal do
Antigo Regime, o classicismo passa a edificar a construção conceitual sistemática
do Direito Penal, do crime, da responsabilidade penal e da pena que deverão
sustentar o novo Direito Penal liberal. É possível então, também relativamente a
esta construção, estabelecer um certo senso comum do classicismo em sua fase
jusracionalista ou jusfilosófica.

2.4.1. Postulados fundamentais: o senso comum do classicismo

-- Crime (ente jurídico)

É nesta fase, sem dúvida, que o emprego do método racionalista é


levado pelo classicismo às suas últimas conseqüências, pois é com Carrara - o
maior definidor deste período - que a Ciência Penal atinge seu apogeu como
"construção sistemática da razão".50

50.MIR PUIG (1976, p.198) sustenta que o contexto político e jurídico da França, por um lado, e da
Itália e Alemanha, por outro, constitue uma das bases que explica a distinta atitude intelectual,
nestes países, frente ao Direito Natural.
É que, em Itália e Alemanha, que experimentaram unificações políticas postergadas, não se verifica a
imediata cristalização política e, conseqüentemente legislativa, das idéias liberais, tal como ocorreu
na França graças à Revolução, o que acarreta então uma importante conseqüência no âmbito da
metodologia jurídico-penal destes países. Enquanto na França a concretização das concepções
liberais no Direito Positivo ensejou já desde fins do século XVIII a passagem de uma atitude
metódica jusnaturalista a uma atitude de franca vinculação ao Direito positivo (dando origem ao
paradigma da exegese) na Itália e Alemanha, encontrando-se a legislação penal ainda ancorada no
espírito do Antigo Regime e em contradição, portanto, com a filosofia política do Estado liberal, o
saber penal se manteve vinculado ao Direito natural, único que refletia as aspirações da época.
De BECCARIA a CARRARA, a versão contratualista do Direito Penal
cede lugar à versão católico-tomista, pois sua origem natural não é mais o
contrato, mas as Leis divinas.
De qualquer modo, este deslocamento não altera aquela conexão, já
referida, entre o método racionalista e a ideologia liberal no interior do
classicismo,51 pois ainda que Carrara tenha adotado a versão católico-tomista

"(...) e não o jusnaturalismo racionalista característico da Ilustração, o


recurso ao Direito natural tinha na Escola Clássica um sentido político
liberal inequívoco. O sistema ideal a que o método racional conduziu,
teve o sentido de desideratum dirigido ao legislador, quem havia de
encontrar nele os limites necessários à liberdade do cidadão." (MIR
PUIG, 1976, p.176)

Assim, prossegue MIR PUIG (1976, p.199-200), até o advento do Código Penal italiano
unificado de l889 a Ciência Penal neste país "...preferiu o caminho de preparar o advento do novo
Direito Penal, criando a magnífica construção ideal-racionalista da Escolca Clássica, a limitar-se ao
estudo do insatisfatório e fragmentado Direito positivo.Deste modo se os Códigos franceses foram
o fruto do Direito natural da Ilustracão, o italiano de 1889 o foi do naturalismo da Escola Clássica.
E se o Código Penal francês de 1810 constituiu nesse país a base do positivismo do século XIX,
em Itália deveria esperar-se que o Código de 1889 oferecesse o terreno propício para a aparição
do Tecnicismo jurídico-penal. Em Alemanha a situação legislativa era mais próxima à italiana que
a francesa."
Mas se é convincente esta explicitação contextual e possível admitir a Escola Clássica prepara,
em Itália, o advento de um código penal unitário e liberal é fundamental reconhecer, por outro lado,
que suas construções apresentam um evidente potencial universalista, pois libertando-se de seu
contexto originário e dos seus próprios pressupostos jusnaturalistas exerceram "uma influência
extraordinária nas legislações de todo o mundo" na modulação do Direito Penal liberal e neste
sentido contribuíram decisivamente para a sua consolidação. (TAYLOR, WALTON,
YOUNG,1990, p.25)

51. FERRI (1931, p.35-7) escreve, a este respeito, que a Escola Clássica, em seguida à Revolução
Francesa teve uma orientação político-social em pleno acordo com as reivindicações dos
'Direitos do homem' e, em reação aos excessos medievais da Justiça Penal, estabeleceu a razão e
os limites do Direito de punir por parte do Estado e reivindicou todas as garantias para o indivíduo.
Como sistematização filosófico-jurídica foi inspirada pela doutrina do 'Direito Natural', que foi
um dos confluentes ideais na Revolução Francesa e valeu-se do método dedutivo, então imperante
sem contraste nas Ciências morais e sociais. Como escola jurídica, contudo, bifurcou-se. Pois, ao
lado das doutrinas filosófico-jurídicas desenvolvidas com abstração do Direito positivo,
desenvolveu-se a "corrente crítico-forense" que, seguindo a tradição dos criminalistas práticos,
passou a ocupar-se da interpretação dos códigos penais vigentes.
E é por esta via que CARRARA chega à sua "fórmula sacramental"
do crime como "ente jurídico" que sintetiza, a seu ver, a essência do crime e
traduz a verdade fundante do sistema clássico:

"Uma fórmula devia conter em si o germe de todas as verdades em que


a Ciência do Direito Criminal viria compendiar-se e nos seus
desenvolvimentos e aplicações peculiares. Acreditei ter achado essa
fórmula sacramental; e pareceu-me que dela emanavam, uma a uma,
todas as grandes verdades que o Direito Penal dos povos cultos já
reconheceu e proclamou nas cátedras, nas academias e no foro.
Expressei-a dizendo que o delito não é um ente de fato, mas um ente
jurídico. Com tal asserto, tive a impressão de que se abriam as portas à
espontânea evolução de todo o direito criminal, em virtude de uma
ordem lógica e impreterível. E esse foi o meu programa. O Programa
para mim não era nem o livro, nem o tratado, mas a idéia que devia
vivificá-lo, por inteiro, para o conduzir aos seus fins, por caminhos
múltiplos e variados, mas sempre coerentes, convergentes, entre si
concatenados, e conforme a verdade." (CARRARA, 1956, p.10-1)

Dotada por CARRARA da mais alta transcendência, capaz de servir de


suporte à construção jurídico-penal e de princípio de unidade do qual se
desdobrariam, logicamente, todas as verdades subordinadas, a sua "fórmula
sacramental" foi elevada, pelo classicismo, à condição de um dos axiomas ou
princípios nucleares dos quais partiam no emprego do método dedutivo.
Numa atmosfera política liberal, que se preocupava em fixar claramente
os limites da intervenção estatal; num ambiente especulativo que acentuava a
supremacia, as possibilidades e as exigências da razão humana, o crime acabava
por ser considerado como um "ente jurídico" porque "ente da razão", dada a
fonte racionalista de toda norma jurídica.
O atributo de juridicidade era relacionado ao crime, não porque fosse
considerado uma violação de determinado ordenamento jurídico-positivo, mas do
Direito, compreendido como categoria lógico-abstrata, como elaboração
apriorística de uma noção postulada por uma exigência da razão. (BETTIOL,
1966, p.22)
Assim,

"O delito é um ente jurídico, porque a sua essência deve forçosamente


consistir na violação de um direito. Mas o direito é congênito ao
homem, porque lhe foi dado por Deus, desde o momento de sua criação,
para que possa cumprir os seus deveres nesta vida; deve, pois, o direito
ter existência e critérios anteriores às inclinações dos legisladores
terrenos: critérios absolutos, constantes, e independentes dos seus
caprichos e da utilidade avidamente anelada por eles. Assim, como
primeiro postulado, a Ciência do Direito Criminal vem a ser
reconhecida como uma ordem racional que emana da Lei moral-
jurídica, e preexiste a todas as Leis humanas, tendo autoridade sobre os
próprios legisladores. O direito é a liberdade. Bem entendida, a Ciência
Penal é, pois, o código supremo da liberdade, que tem por escopo
subtrair o homem à tirania dos demais e ajudá-lo a subtrair-se à sua
própria, bem como a de suas paixões."(CARRARA,1956, p.11)

Ao formular sua definição do crime como "a infração da Lei do Estado,


promulgada para proteger a segurança dos cidadãos, resultante de um ato externo
do homem, positivo ou negativo, moralmente imputável e politicamente danoso",
CARRARA (1956, p.48-9) reafirma em sua visão teocêntrica da ordem jurídica e
moral que

"Definindo o delito como violação da Lei promulgada, pressupusemos


que essa Lei tenha sido ditada conforme à suprema Lei do direito
natural. Mas ao dar a definição do delito não pudemos preterir a idéia
de Lei promulgada, porque os princípios da Ciência devem servir de
norma não apenas ao legislador, mas também aos magistrados. Ora, se
da defição for apartada a idéia de Lei promulgada, chegar-se-á,
inevitavelmente, a estas duas conseqüências: ao cidadão faltará a regra
escrita da própria conduta; e o magistrado se converterá em
legislador."

Toda a atenção da Escola Clássica é, assim, polarizada para o crime


considerado como "ente jurídico" e foi a este propósito que os clássicos
procederam, pioneiramente, à análise lógico-formal do conceito de crime,
decompondo, analiticamente, seus elementos construtivos (as "forças físicas e
psíquicas", na linguagem de CARRARA) e situando os pontos de partida para a
doutrina penal posterior.
A Escola Clássica ocupou-se ainda em

"(...) circunscrever, do modo mais claro possível, as diversas figuras de


crime, para que não houvesse a esse respeito incertezas sobre o
significado penal da ação humana. Pode-se, na verdade, afirmar que foi
a própria ação humana (abstratamente considerada) que constituiu o
centro de toda investigação, porque a liberdade individual é garantida
contra os riscos de uma intervenção estatal arbitrária, apenas quando
as características e o significado penal da ação forem claramente
definidos." (BETTIOL, 1966, p.23)

Mas além de ser uma violação o crime é, para o classicismo, uma


violação "consciente e voluntária" da norma penal e, pois, dos seus elementos
constitutivos conferem especial relevância à "vontade culpável" - àquele elemento
subjetivo que, contemporaneamente, é denominado "culpabilidade." É mister que
o crime seja animado por uma vontade culpável entendida mais como vontade de
violar a norma do que como voluntariedade do fato constitutivo do crime. Enfim,
é necessário que a vontade seja livre para que seja culpável. O livre-arbítrio
constitui, assim, o sustentáculo do Direito Penal clássico. (BETTIOL, 1966, p.23-
4)

- Responsabilidade penal (fundada na responsabilidade moral


derivada do livre-arbítrio)

O classicimismo penal elevou uma vez mais à condição de axioma -


embora com algumas exceções, como em Feuerbach - a afirmação livre-arbitrista
e a natureza moral da responsabilidade penal de CARRARA (1956, p.36):

"A teoria da imputação considera o delito nas suas puras relações com
o 'agente', e a este, por sua vez , em suas relações com a 'Lei moral',
conforme os princípios do 'livre arbítrio' e da responsabilidade
humana, princípios que são imutáveis, não se alterando com o decorrer
dos tempos ou o variar do povos e costumes."52

O normativismo abstrato, presente na concepção de crime, se manifesta


uma vez mais: a responsabilidade penal tem por fundamento a responsabilidade
moral e esta tem por pressuposto o livre-arbítrio.
A responsabilidade penal decorre, pois, da violação consciente e
voluntária da norma penal. Para que a vontade seja culpável, deve ser exercida no
domínio do livre-arbítrio, que confere imputabilidade ao sujeito da ação.
Logo, no sistema defendido pelos clássicos, a imputabilidade -
entendida como capacidade de entender o valor ético-social da ação e de
determinar-se para a própria ação, sabendo assim subtrair-se ao influxo imperioso
dos componentes externos e internos da ação - constitui um elemento fundamental
e a distinção entre imputáveis e inimputáveis é decisiva, pois o enfermo mental é
tão irresponsável pelo crime como se não o tivesse cometido. Fora dos limites da
imputabilidade, o classicismo via um campo exclusivamente reservado à medidas
de caráter profilático.

- Pena (retribuição e tutela jurídica)

Como já referimos, a Escola Clássica, globalmente considerada, não


comporta uma concepção unitária de pena, nela convivendo as chamadas teorias
absolutas e relativas.53

52. E acrescenta a seguir respondendo à crítica contra o livre-arbítrio formulada por FERRI: "Não me
ocupo de discussões filosóficas; pressuponho aceita a doutrina do 'livre arbítrio e da
imputabilidade moral do homem', e sobre essa base edificada a Ciência Criminal, que sem ela mal
se construiria." (CARRARA, 1956, p.37)

53. Convém situar, pois, desde já, o marco geral das teorias da pena, que se desenvolvem da Escola
clássica, passando pela Escola positiva à contemporaneidade, seja para melhor situar a
Mas não obstante alguns clássicos, como BECCARA, atribuírem à
pena uma finalidade essencialmente preventiva de impedir o aumento dos crimes
("prevenção geral negativa"), nesta fase jurídica da Escola Clássica a atribuição de
uma finalidade retributiva à pena coroa, essencialmente, o seu sistema, pois ela se
apresenta como decorrência lógica do livre-arbítrio.

Neste âmbito,

contribuição das Escolas na sua formulação, seja pela referência que a elas faremos em distintos
momentos deste trabalho.
Para as teorias absolutas (Kant, Hegel, Carrara) a função da pena é a retribuição. A pena não é
vista como um meio para a realização de fins, uma vez que encontra em si mesma a sua própria
justificação. Neste sentido não se pode dizer que não seja atribuída à pena uma função positiva,
mas sim que esta função é interna ao Direito mesmo pois é essencialmente reparatória, de
reafirmação do Direito.
Para as teorias relativas o fim da pena é a prevenção e ela é vista, ao revés, como um meio para
a realização de fins socialmente úteis. Relativamente a estas é possível diferenciar quatro tipos
ideais de modelos teóricos, observando que freqüentemente encontram-se teorias nas quais se
utiliza mais de um modelo, geralmente em disposição hierárquica de funções (teorias
plurifuncionais).
Segundo um esquema universalmente utilizado nos manuais, as teorias relativas se classificam em
teorias da "prevenção especial" e teorias da "prevenção geral" conforme o seu destinatário
principal seja identificado, respectivamente, no castigo penal ou na sua ameaça.
As teorias da prevenção geral se subdividem em teorias da prevenção geral negativa (Bentham,
Feuerbach, Beccaria) e positiva(Escola funcionalista desde Durkheim e, contemporaneamente,
representada pela "teoria da prevenção-integração"). Nas primeiras, cujos destinatários são os
infratores potenciais, a função da pena é a intimidação ou disuasão neles provocada pela
mensagem contida na lei penal, em especial pela cominação da pena em abstrato, que estaria então
dirigida a criar uma contramotivação ao comportamento contrário à lei. Nas segundas, cujos
destinatários são, ao revés, os cidadãos fiéis à lei, a função da pena é a de declarar e afirmar
valores e regras sociais e de reforçar sua validez, contribuindo desta forma para a integração do
grupo social em torno daqueles e para o reestabelecimento da confiança institucional desprezada
pelas trangressões ao ordenamento jurídico. Embora reconheça antecedentes na formulação
durkheimiana foi objeto de recente reelaboração na Alemanha ,no marco conceitual da teoria
sistêmica pela chamada teoria da "prevenção-integração" que representa, também, o ponto de
chegada do desenvolvimento da Ciência penal alemã dos último decênios.
As teorias da prevenção especial também se subdividem, por sua vez, em teorias da prevenção
especial negativa e positiva. As primeiras afirmam a função de neutralização do
trangressor:custódia em lugares separados, isolamento, aniquilamento físico. As segundas
(particularmente desenvolvidas desde a Escola Positiva italiana e retomadas no pós-guerra pela
teoria da Nova Defesa social representada entre outra por ANCEL (1979) afirmam, ao revés, a
função de tratamento do condenado para sua reeducação e readaptação à normalidade da vida
social.
A respeito do exposto ver BARATTA (1985, p. 82-3).
"As várias teorias formuladas pelos clássicos movem-se entre os extremos da imputabilidade e o da pena
retributiva pelo que, frente a uma concepção que ponha em dúvida a liberdade do querer ou atribua à pena tarefas
que não encontrem seu apoio lógico na teoria da culpa, podemos tranqüilamente afirmar que estamos fora do
campo de ação do classicismo, que, no esforço de salvaguardar a soberania da Lei contra qualquer arbítrio,
restringia os poderes do juiz no campo da legalidade, transformando-o em mero executor do legislador."
(BETTIOL, 1966, p.25)

Com efeito, a responsabilidade moral (ou imputabilidade), sinônimo de


liberdade de vontade, conduz à pena, que é "retribuição" pelo mal realizado,
diretamente proporcionada ao crime e por ele justificada. A pena "é um justo e
proporcionado castigo que a sociedade inflige ao culpado, que o merece, em vista
da falta que livre e conscientemente cometeu." (SODRÉ, 1977, p.332)
A retribuição, portanto, é interpretada mais no sentido lógico-formal do
que substancial. Se o crime é um ente jurídico, a pena é a resposta do próprio
ordenamento jurídico. Negação de uma negação, que reestabelece o equilíbrio
jurídico rompido pelo crime, a retribuição é uma forma de tutela jurídica.
Daí o maior definidor da Escola Clássica, ter dado à pena uma só
justificação:

"A teoria da pena focaliza o delito em sua vida externa, observando-a


em suas relações com a sociedade civil, considerada em sua primária
razão de ser, isto é, como um ministro necessário de tutela jurídica na
Terra." (CARRARA, 1956, p.36)

2.5. O fato-crime no centro do classicismo: a reiteração da promessa de


segurança jurídica no universo do Direito Penal liberal do fato-crime

O classicismo penal não se deteve na análise da pessoa do criminoso,


porque nele não visualizou nenhuma anormalidade em relação aos demais homens.
Ao contrário, partindo da premissa de que todos os homens, graças à sua
racionalidade, são iguais perante a Lei e podem, por isto, atuar responsavelmente,
compreendendo o caráter benéfico do consenso implícito no contrato social
(TAYLOR, WALTON, YOUNG, 1990, p.22) criminoso será quem, na posse do
livre-arbítrio, viola livre e conscientemente a norma penal. A única diferença entre
o criminoso e o que respeita a Lei, é a diferença do fato.
Portanto, no centro das análises da Escola Clássica não está o autor,
mas sim o fato: a objetividade do fato-crime.(LAMNEK, 1980, p.18)
Do crime como ente jurídico, ditado pela razão, à responsabilidade
penal fundada na responsabilidade moral derivada do livre-arbítrio, cuja
conseqüência lógica é a pena, concebida então como retribuição e meio de tutela
jurídica, que, rigorosamente proporcionado ao crime, não deixa nenhum arbítrio
ao intérprete judicial, evidencia-se que a Escola Clássica move-se num universo de
conexão sistemática entre livre-arbítrio-crime-responsabilidade penal-penal que
encontra no fato-crime seu referente de gravitação e na proteção do indivíduo
contra o arbítrio sua inspiração ideológica fundamental.
Do programa clássico emerge, portanto, a delimitação de um "Direito
Penal do fato", baseado na noção (liberal) de livre-arbítrio e responsabilidade
moral, no qual a imputabilidade e a gravidade objetiva do crime constituem a
medida para uma penalidade dosimétrica, vista, então, como retribuição
proporcionada ao crime, com uma rígida vigência do princípio da legalidade dos
delitos e das penas.
O Direito Penal liberal e a promessa de segurança jurídica, cujos
princípios sustentadores vertebrais o programa penal iluminista enunciara e a
codificação se incumbia de positivar, recebem uma primeira decodificação
jurídica sistemática na moldura deste Direito Penal do fato, não obstante
concebida como acabada e definitiva:

"Enquanto os criminalistas teóricos (segundo as abstrações doutrinais)


ou práticos (interpretando as Leis vigentes) consideravam o crime tão
somente como uma infracção e a pena como um castigo a ela
proporcionada, toda a ciência penal se reduzia a uma única disciplina
jurídica. E quando esta esgotou a sua missão de anatomia jurídica do
delito, Carrara recomendou aos novos o entregarem-se ao estudo do
processo penal, pois que o campo do Direito Penal estava já gasto."
(FERRI,1931, p.74)

O domínio dos clássicos por quase cem anos no campo penal e sua
pretensão de plenitude da problemática penal leva ANCEL (1979, p.57) a afirmar
que,

"De Feuerbach a Carrara constituiu-se verdadeiramente a Ciência do


Direito Penal, e acreditou-se que ela seria suficiente para resolver os
problemas do crime, a tal ponto que a política criminal se absorvia na
arte de bem formular as regras repressivas. Entretanto, no momento
mesmo em que a superioridade dos juristas se afirma com mais
magnitude é ela já implicitamente questionada pelos primeiros passos
das Ciências Humanas."

O Direito Penal estava então construído, após três quartos de século de


doutrina,

"como uma técnica jurídica extremamente avançada, vista como uma


espécie de álgebra, em que o raciocínio abstrato se mantinha em
primeiro plano e segundo o qual o delito permanecia, antes de tudo,
uma entidade jurídica, objetivamente considerada como tal. É contra
esse sistema que reagiria o movimento de idéias do final do século
XIX." (MARC ANCEL, 1979, p.59)
3. A Escola Positiva 54: o saber científico-criminológico em defesa da
sociedade

ANCEL refere-se ao advento da Escola Positiva italiana, na década de


setenta do século XIX, com o qual deflagrada estava a célebre luta das Escolas
penais e aberto o espaço para a difusão de Escolas ou tendências conciliadoras.
Tal como a Escola Clássica, a Escola Positiva é fruto de seu tempo e
condicionada por uma confluência de fatores, históricos e teóricos que, de
natureza variada, mas em estreita conexão, imprimem significado ao seu programa.
Inserida no horizonte histórico de transformações nas funções do
Estado que apontam para o intervencionismo na ordem econômica e social, sob a
égide de novas ideologias políticas de cunho social ou socialista; de crise do
programa clássico no combate à criminalidade; de predomínio de uma concepção
positivista de Ciência e declínio do jusnaturalismo ao lado do evoluciosmo de
DARWIN e a obra de SPENCER, a Escola Positiva partirá de pressupostos muito
característicos que, distanciando-se daqueles que condicionaram a Escola
Clássica, explicam, também, o fulcro das críticas a ela dirigidas.

54.
Os italianos CESARE LOMBROSO(1836-1909), ENRICO FERRI(1856-1929) e RAFFAELE
GAROFALO (1851-1934) são considerados como os máximos definidores e divulgadores da
Escola Positiva. O "L'Uomo delinqüente" (publicado em 1879), de LOMBROSO, a "Sociologia
Criminale" (publicada em 1891), de FERRI e a "Criminologia - studio sul delitto e sulla teoria della
represione" (publicada em 1885) de GAROFALO são consideradas as obras básicas (os seus
"evangelhos").
Apesar da especificidade destas obras guias da escola com enfoque, respectivamente,
antropológico, sociológico e jurídico, a Escola Positiva possui, ao contrário da Clássica, um caráter
mais unitário e cosmopolita. Até porque, "interessava aos positivistas italianos manter a unidade por
razões internacionais. A difusão da escola pelo mundo culto foi uma de suas principais
preocupações." (ASÚA, 1950, p.60-1;. CANTERO, 1977, p.79-80 e SOUSA,1982, p.17)
Conforme opinião mais generalizada, é evidente a influência do positivismo comteano, do evoluciosmo
de DARWIN e da obra de SPENCER sobre a Escola Positiva (Cf. ASÚA,1950, p.66; SOUSA,
1982, p.23 e SANTOS, Beleza dos. In prefácio de FERRI,1931, p.IX. Sobre a opinião de
FERRI a respeito: (1931, p.39-42 passim.)
Neste horizonte histórico e sob novos pressupostos ideológicos e
teóricos a crítica do positivismo ao classicismo é centrada, visivelmente, em duas
grandes dicotomias: individual x social e razão x realidade (racionalismo x
empirismo).
FERRI (1931, p.38-9) identificava assim duas razões fundamentais para
o "declínio" da Escola Clássica, após cumprida a missão histórica , segundo ele,
unicamente, de "diminuição das penas".
A primeira razão foi que
"(...) as afirmações do direito individual em face do Estado, como
reação contra os abusos da Justiça Penal antes de BECCARIA,
chegaram - elas mesmas - ao maior excesso, em virtude da Lei do ritmo
histórico, pela qual cada reação ultrapassa os limites da ação que a
provocou. O imputado foi considerado como uma vítima da tirania do
Estado, e a Ciência Criminal atribuía CARRARA a missão de limitar os
abusos do poder: do que resultou uma diminuição dos direitos, outro
tanto legítimos, da sociedade em face do delinqüente."

A defesa dos Direitos Humanos, protagonizada pelo classicismo, era


denunciada como individualismo exarcebado, pelo conseqüente esquecimento da
defesa da sociedade. A Escola Positiva assumia, então, a tarefa de resgatar o
"social" e os direitos da sociedade. 55
Simultaneamente, a abstração do sistema clássico, decorrente do
método empregado, era posta em cheque e a Escola Positiva assumia a simultânea
tarefa de deslocar a problemática penal do plano da razão para o plano da
realidade; de uma orientação filosófica para uma orientação científica, empírico-
positiva, a única apta a resgatar aquele segundo personagem "esquecido" pela
Escola Clássica: o homem delinqüente.
A segunda razão foi, pois,

55. Curiosamente, contudo, FERRI, que originariamente combateu o socialismo, passou a dizer-se
socialista, proclamando a MARX, junto com DARWIN e SPENCER entre seus grandes ídolos,
para posteriormente defender o fascismo. (Cf. OLMO, 1984, p.36; ASÚA, 1947, p.33-5;
LYRAFILHO,197, p. 16)
"(...) que, o método dedutivo ou de lógica abstrata faz perder de vista
o criminoso, enquanto que na Justiça Penal ele é o protagonista vivo e
presente, que se impõem á consciência do juiz primeiramente e mais
acentuadamente que a 'entidade jurídica' do crime e da pena." (FERRI,
1931, p.39)

Precisamente, portanto, FERRI culpava a orientação ideológica (liberal-


individualista) e metódica (racionalista) da Escola Clássica por haver perdido de
vista, respectivamente, as necessidades sociais de prevenção do delito e a
individualidade concreta do homem delinqüente e, por isso mesmo, haver
fracassado frente ao considerável aumento da criminalidade e da reincidência.
De fato,

"(...) em face da excelência teórica reunida pela Escola Clássica tanto


jurídica como penitenciária, advieram (...) como resultados práticos o
contínuo aumento da criminalidade e da recidiva, em evidente e
quotidiano contraste com a necessidade da defesa social contra a
delinqüência, que é a razão de ser da Justiça Penal. Nem podia ser de
outra forma, não obstante o engenho dos grandes criminalistas
clássicos, em vista do método por eles adotado, pois que não se
preocupando em conhecer cientificamente a realidade humana e as
causas da delinqüência, não era possível que delas indicassem os
remédios adequados." (FERRI, 1931, p.39)

Ao diagnosticar no próprio sistema clássico a dupla e relacionada


ordem de fatores responsáveis pelo aumento da criminalidade e responsáveis,
conseqüentemente, pela sua ineficácia e declínio histórico, FERRI justificava, com
os mesmos argumentos, a missão prática encomendada à Escola Positiva: a
diminuição dos delitos e não mais, unicamente, das penas.
Em definitivo, portanto, tratava-se de eliminar sistematicamente a
metafísica do livre-arbítrio e substituí-la por uma Ciência da Sociedade apta a
diagnosticar cientificamente as causas do delito e, por extensão, possibilitar uma
luta científica dirigida à erradicar a criminalidade. (TAYLOR, WALTON,
YOUNG, 1990, p.28)
Tem sido salientado, então, que a Escola Positiva sintetiza, um
significado de reação contra o Direito Penal clássico, assimilável, em sua
significação histórica, ao movimento de reação que exprimia, em 1764, o famoso
tratado "Dos Delitos e das Penas". (ANCEL,1979, p.59)

3.1. Postulados fundamentais: O senso comum do positivismo sobre a


problemática penal

Não obstante os novos matizes que a Escola Positiva adquire no seu


desenvolvimento, também é possível delimitar o seu senso comum sobre o crime,
a responsabilidade penal a pena e o criminoso, que perdura através de suas
polêmicas e trajetória.

- O Método (experimental)

Movendo-se no universo da concepção positivista de Ciência,


dominante em seu tempo histórico, a Escola Positiva fará dela -analogamente à
projeção que a Escola Clássica fizera da concepção racionalista de Ciência - uma
projeção exemplar no campo penal, a começar pela sua própria denominação.
Será tributária, portanto, do método científico, experimental ou empírico-indutivo
de análise de seu objeto, que condiciona, associado aos seus demais
pressupostos, a sua produção científica.
São assim premissas decorrentes do método científico que esta Escola
subscreve: a) medição (quantificação); objetividade (neutralidade) e causalidade
(determinismo) (TAYLOR, WALTON, YOUNG, 1990, p.41)
Sendo a matriz positivista de Ciência condicionada por uma percepção
do universo como um conjunto de fatos, causalmente determinados, a função
daquele método é descobrir, na realidade factual, as Leis gerais através das
quais o determismo se manifesta.
Precisamente, para os partidários da Escola, a essência de seu programa
reside no novo método instaurado :

"A diferença profunda e decisiva entre as duas Escolas está portando


principalmente no 'Método': dedutivo, de lógica abstrata, para a Escola
Clássica, - indutivo e de observação dos fatos para a Escola Positiva: -
aquela tendo por objeto 'o crime' como entidade jurídica, esta ao
contrário o 'delinqüente' como pessoa, revelando-se mais ou menos
socialmente perigosa pelo delito praticado." (FERRI, 1931, p.43)

Deslocando-se da investigação racional para a factual - e do fato para o


homem delinqüente - deslocarão o território classicamente colonizado pelos
juristas, levando às últimas conseqüências o brado de FERRI: "abaixo o
silogismo."

- Crime (fato natural e social)

Contra a fórmula do crime como ente jurídico, que CARRARA


proclamou como "sacramental", o positivismo opõe a fórmula do crime como
fato natural e social, praticado pelo homem e causalmente determinado, que
expressa a conduta anti-social de uma dada personalidade perigosa do
delinqüente.
Assim, ao livre-arbítrio - contra o qual polemizou desde sua origem - o
positivismo opõe o determinismo. A admissão do livre-arbítrio, embora de um
ângulo metodológico, deveria ser considerada acientífica e errônea; como uma
ilusão subjetiva. Pois, um ato livre, rompe com a série causal que necessariamente
conduz ao crime. A vontade não é livre e não pode ser tida como causa do crime
porque é, ela própria, um resultado.
Contudo, se o ponto de partida do positivismo é o crime como fato
causalmente determinado, diferentes foram as respostas dados por LOMBROSO
e FERRI sobre a identificação das suas causas, embora ordenadas, ambas, sob
um prisma naturalístico.
E a significação histórica destas diferentes respostas reside no fato de
que delas se originaram a Antropologia e a Sociologia Criminal56 (posteriormente
agrupadas sob a denominação da Criminologia)57.
A primeira e célebre resposta foi dada pelo médico italiano
LOMBROSO, em seu "O Homem delinqüente" publicada em 1876, em cuja obra
sustenta a tese do criminoso nato. A causa do crime é identificada no próprio
criminoso.
Partindo do determismo orgânico (anatômico-fisiológico) e psíquico do
crime, LOMBROSO, valendo-se do método de investigação e análise próprio das
Ciências naturais (observação e experimentação) procurou comprovar sua
hipótese através da confrontação de grupos não criminosos com criminosos dos
hospitais psiquiátricos e prisões sobretudo do sul da Itália, pesquisa na qual

56.A respeito da importância da obra dos "estatísticos criminais" como antecipação da Sociologia
Criminal, bem como na transição do classicismo para o positivismo ver TAYLOR, WALTON,
YOUNG (1990, p. 55-6)

57.DIAS e ANDRADE (1984, p.5) noticiam que "o termo Criminologia terá sido utilizado pela
primeira vez, há pouco mais de um século (1879), pelo antropólogo francês TOPINARD. Foi, por
outro lado, em 1885 que ele apareceu como título duma obra científica: a Criminologia de
GARÓFALO."
BUSTOS RAMÍREZ (in BERGALLI e BUSTOS RAMÍREZ, 1983a, p.16) também noticia que
o nome de Criminologia foi "inventado" em 1879 por TOPINARD.
ROSA DEL OLMO (1984, p.25) noticia por sua vez, cremos que equivocadamente, que o termo
"Criminologia" para designar a originariamente denominada Antropologia criminal foi cunhado em
1889 por Paul Topinard e que Garófalo foi provavelmente o primeiro a utilizá-la ao assim intitular
seu livo publicado em 1885 na Itália.
De qualquer forma passou a abranger o que originariamente se designou por Antropologia
Criminal e também por Sociologia Criminal designando as diversas perspectivas ( antropológicas,
sociológicas, psicológicas,multifatoriais, etc) de abordagem causal-explicativa (etiológica) do
fenômeno da criminalidade.
contou com o auxílio de FERRI, quem sugeriu, inclusive, a denominação
"criminoso nato".
Procurou desta forma individualizar nos criminosos e doentes
apenados anomalias sobretudo anatômicas e fisiológicas (como pouca capacidade
craniana, frente fugidia, grande desenvolvimento dos arcos zigomático e maxilar,
cabelo crespo e espesso, orelhas grandes, agudeza visual) vistas como constantes
naturalísticas que denunciavam, a seu ver, o tipo antropológico delinqüente, uma
espécie à parte do gênero humano, predestinada, por seu tipo, a cometer crimes.
Sobre a base destas investigações e descrição do criminoso nato,
buscou primeiramente no atavismo (manifestação de traços característicos de uma
etapa de desenvolvimento biológico primitivo na raça humana) uma explicação
para a estrutura corporal e a criminalidade nata. Por regressão atávica, o criminoso
nato se identifica com o selvagem. 58
Posteriormente, diante das críticas suscitadas, reviu sua tese,
acrescentando como causas da criminalidade a epilepsia e, a seguir, a loucura
moral. Atavismo, epilepsia e loucura moral constituem o chamado, por Vonnacke,
de "tríptico lombrosiano".
O que importa ressaltar então, é que sobre estas bases a obra
lombrosiana marca o nascimento da Criminologia como "Ciência causal-
explicativa" que nasce, portanto, como Antropologia Criminal, centrada na
investigação causal do homem delinqüente. Daí sua significação especial para a
história da Criminologia.59

58. A respeito do exposto ver LOMBROSO (1983); SOUSA (1977, p.17-8) e LAMNEK (1980,
p.20).

59. Subscrevemos portanto aqui a posição de que a Criminologia como "Ciência" ou reivindicando um
estatuto científico surge com a Escola Positiva italiana e, concretamente, com a obra de Lombroso
(OLMO, 1982, p.22) e que é este o marco inicial de consolidação do chamado "paradigma
etiológico" de Criminologia.
Foi de Ferri, então, considerado o maior expoente e o mais autêntico
representante da Escola Positiva, que veio a segunda resposta sobre as causas do
crime.
Desenvolvendo a Antropologia lombrosiana e orientando-se por uma
perspectiva sociológica, admitiu uma tríplice série de causas ligadas à etiologia do
crime: individuais (orgânicas e psíquicas), físicas (ambiente telúrico) e sociais
(ambiente social) e, com elas, ampliou a originária tipificação lombrosiana da
delinqüência.
Conectando e investigando esta tríade de causas deu origem, por sua
vez, à Sociologia Criminal que representa, então, o desenvolvimento da
Criminologia etiológica numa perspectiva sociológica
Assim para FERRI (1931, p.40-1)
"todo o crime, do mais leve ao mais terrível, não é o 'fiat'
incondicionado da vontade humana, mas sim a resultante destas três
ordens de causas naturais. E visto que estas diversamente influem, caso
por caso, indivíduo por indivíduo, disso advém a classificação dos
criminosos (criminoso nato - louco - habitual - ocasional - passional)
que fica como pedra angular do novo edifício científico (...)."

O crime (a concreção de uma conduta legalmente definida como tal)


não é, portanto, decorrência do livre arbítrio humano, mas o resultado previsível
determinado por múltiplos fatores (biológicos, psicológicos, físicos e sociais)

DIAS e ANDRADE (1984, p.12-3) afirmam, neste sentido, que "...não é arbitrário identificar o
positivismo italiano com o aparecimento da Criminologia científica" já que "foi o impacto da escola
positiva italiana - devido à volumosa bibliografia dos seus principais vultos, às revistas que
fundaram e em que participaram, ao dinamismo da sua intervenção em congressos e debates - que
converteu o estudo das causas do crime em Ciência de cultivo universal."
Isto não significa, por um lado, que tal Escola esgote o positivismo criminológico, que se estende
ao longo do século XX: e, por outro, que a Criminologia inexistia até o seu advento, questão a que
retornaremos no quinto capítulo. De qualquer modo, como veremos também aí, o estatuto
científico da Criminologia etiológica foi também, tal como o da Dogmática Penal, profundamente
questionado.
que conformam a personalidade de uma minoria de indivíduos como
"socialmente perigososa".

- Criminoso

Contrariamente, pois, ao classicismo, que não visualizou no criminoso


nenhuma anormalidade - e dele não se ocupou - o positivismo reconduziu-o para
o centro de suas análises, apreendendo nele estigmas decisivas da criminalidade
Desta forma, enquanto a "Escola Clássica focalizava o crime e deixava
na sombra o criminoso; a Escola Positiva invertia as posições: o criminoso era
trazido para o palco, enquanto o crime ficava na retrocena." (HUNGRIA e
FRAGOSO, 1980, p.11)
E eis a justificativa de FERRI (1931, p.44-5) para convertê-lo no
protagonista da Ciência Criminal:

"(...) o criminoso, sendo o autor do fato proibido ao qual se deve


aplicar a pena cominada pela Lei e sendo por isso, ele, o protagonista
da Justiça Penal prática, deve sê-lo também da Ciência Criminal. E por
isso ao estudo do crime e da pena, admiravelmente feito pelos
criminalistas clássicos, é necessário propor e acrescentar o estudo do
delinqüente, cujo crime praticado - tendo também um valor próprio de
maior ou menor gravidade moral e jurídica - é sobretudo o sintoma
revelador de uma personalidade mais ou menos perigosa, para a qual se
deve dirigir uma adequada defesa social. É preciso portanto
abandonar, visto não corresponder à realidade, o critério fundamental
da Escola Clássica, que considerava o autor do crime como um 'tipo
médio', igual a quaisquer outros homens, salvo os poucos casos
aparatosos e taxativamente catalogados de menor idade, loucura,
surdez-mudez, embriaguez, ímpeto de cólera e de dor."

Assim enfatiza a "necessidade metódica" de ver o "crime no


criminoso", seja do ângulo do legislador, do juiz ou do cientista penal e condena
o "erro metódico" do classicismo em ignorar que a personalidade anti-social do
delinqüente deve estar na primeira linha porque o crime é sobretudo sintoma
revelador da personalidade perigosa de seu autor. FERRI (1931, p.45, 49 e 80)
O criminoso - na realidade o condenado à pena de prisão ou medida de
segurança - não é mais "o homem isolado, atomizado e racional do classicismo"
(TAYLOR, WALTON, YOUNG, 1990, p.26), mas um homem causalmente
determinado e, como tal, erigido no principal objeto criminológico.
Estabelece-se desta forma uma linha divisória entre o mundo da
criminalidade - composta por uma "minoria" de sujeitos potencialmente perigosos
e anormais - e o mundo da normalidade - representada pela "maioria" na
sociedade.

- Responsabilidade penal (baseada na responsabilidade social,


derivada do determismo e temibilidade do delinqüente)

Na lógica do sistema preconizado pelo positivismo a negação do livre-


arbítrio acarreta a negação da responsabilidade moral como fundamento da
responsabilidade penal. Por outro lado, se qualquer crime é a expressão
sintomática de uma personalidade anti-social, que é sempre mais ou menos
anormal, e, portanto, mais ou menos perigosa, os "imputáveis" ou "moralmente
irresponsáveis", do classicismo, são os que mais correspondem ao tipo de
criminoso
Por isto, é a condição mesma de responsabilidade moral que constitui

"(...) uma verdadeira e própria paralisia da Justiça Penal, com toda a


vantagem para os delinqüentes mais perigosos, que apresentam,
precisamente por isso, as mais evidentes anormalidades e as invocam
por conseguinte como sua desculpa, pelo que fica sem defesa a
sociedade." (FERRI,1931, p.45)
Sendo assim, a Justiça Penal não pode fundar-se numa "pretensa"
normalidade e na responsabilidade moral, porque corre o risco de inocentar
criminosos perigosos em detrimento da defesa social.
Pois de qualquer maneira
"(...) que um homem se torne delinqüente, com vontade e inteligência
aparentemente normais, em virtude de pouca anormalidade, ou com
vontade e inteligência fracas ou anormais ou doentes, incumbe sempre
ao Estado a necessidade - e portanto o direito-dever da defesa
repressiva, somente subordinada, na forma e medida de suas sanções, à
personalidade de cada delinqüente, mais ou menos readaptável à vida
social." (FERRI,1931, p.230)

O fundamento do direito de punir (da Justiça Penal) reside no que


FERRI denominou, no campo teórico, responsabilidade social (para com a
sociedade) e, no campo prático, quando materializada em Lei, responsabilidade
legal.
A responsabilidade penal deriva da responsabilidade social pois

"(...) o homem é sempre responsável de todo seu ato, somente porque e


até que vive em sociedade. Vivendo em sociedade o homem recebe dela
as vantagens da proteção e do auxílio para o desenvolvimento da
própria personalidade física, intelectual e moral. Portanto deve também
suportar-lhe as restrições e respectivas sanções, que asseguram o
mínimo de disciplina social, sem o que não é possível nenhum consórcio
civilizado." (FERRI,1931, p.241)

- Pena: defesa social

Nestas condições, se o homem está fatalmente determinado a cometer


crimes, a sociedade está igualmente determinada - através do Estado - a reagir, em
defesa de sua própria conservação, como qualquer outro organismo vivo, contra
os ataques às suas condições normais de existência. A pena é, pois, um meio de
defesa social. Contudo, na defesa da sociedade contra a criminalidade, a
prevenção deve ocupar o lugar central, porque muito mais eficaz do que a
repressão.60
Daí FERRI ter preconizado os chamados "substitutivos penais", vistos
como um conjunto de providências consistentes em reformas práticas de ordem
educativa, familiar, econômica, administrativa, política e também jurídica (de
Direito Privado e Público), destinadas a atuar na eliminação ou atenuação das suas
causas Porém, como a prevenção (indireta e direta) não pode impedir que os
crimes se cometam, sobrevem a necessidade da repressão. (FERRI, 1931, p.44)
É este o momento, propriamente, que a "pena" entre em cena no sistema
dos positivistas, como também entra em cena GAROFALO (1983) insistindo no
aspecto jurídico das inovações necessárias na Justiça Penal e projetando as
concepções criminológicas (antropológicas e sociológicas) do positivismo para o
Direito Penal. Formula o conceito de "temibilidade do delinqüente" significando a
perversidade constante e ativa do delinqüente e a quantidade do mal previsto que
há que se temer por parte dele, depois substituído pelo termo mais expressivo de
periculosidade. Também CRISPIGNY ocupa um lugar especial nesta projeção
jurídica do positivismo criminológico no âmbito da reforma e do Direito Penal
italiano, desenvolvendo técnico-juridicamente o conceito de valor sintomático do
delito como expressão da periculosidade do autor proveniente, sobretudo, de
FERRI.
E é este potencial de periculosidade social, que os positivistas
identificaram com "anormalidade" e situaram no coração do Direito Penal, que
constitui o critério e a medida da penalidade e justifica a introdução, no sistema,
das medidas de segurança por tempo indeterminado.

60. O que FERRI designa, porém, por repressão, é o que contemporaneamente se designa por
prevenção especial (positiva) baseada na ideologia do tratamento e na ressocialização ou
readaptação social do criminoso através da execução da pena.
Visivelmente contra a medida da penalidade orientada pelo classicismo,
escreve FERRI (1931, p.47) que

"(...) a pena, como a última 'ratio' de defesa social repressiva, não se


deve proporcionar - e em medida fixa - somente à gravidade objetiva e
jurídica do crime, mas deve adaptar-se também e sobretudo à
personalidade, mais ou menos perigosa, do delinqüente, com o
seqüestro por tempo indeterminado, quer dizer, enquanto o condenado
não estiver readaptado à vida livre e honesta, da mesma maneira que o
doente entra no hospital não por um lapso prefixo de tempo - o que
seria absurdo - mas durante o tempo necessário a readaptar-se à vida
ordinária. Daqui resulta que a insuprimível exigência para a hodierna
Justiça Penal é esta: assegurar uma defesa social mais eficaz contra os
criminosos mais perigosos e uma defesa mais humana para os
criminosos menos perigosos, que são o maior número."

Com o positivismo penal, a pena perde, portanto, o seu tradicional e


imanente significado retributivo. Embora GAROFALO (1893, p.191 e 145),
radicalizando posição defenda a eliminação mesma do delinqüente, seja pela
deportação, relegação ou a pena de morte (prevenção especial negativa)

"Trata-se, portanto, de prevenir e não de retribuir. Toda a Escola


Positiva acentua, indistintamente, e de modo exclusivo, o critério da
prevenção especial como critério informador da legislação penal
endereçada à recuperação social do réu (...)." (BETTIOL, 1966, p.39)

Os positivistas deram ao criminoso um passado - de periculosidade - e


um futuro - a recuperação, abrindo a porta das prisões e dos manicômicos, mas
também dos tribunais, para especialistas não jurídicos doravante encarregados do
seu tratamento.

3.2. O autor-criminoso no centro do positivismo: o Direito Penal inter-


vencionista do autor-criminoso
A Escola Positiva move-se, pois, num universo de conexão entre
determismo periculosista-crime-responsabilidade penal-pena que encontra na
subjetividade do autor-delinqüente - e não mais na objetividade do fato-crime -
seu referente de gravitação e na defesa da sociedade sua inspiração ideológica
fundamental. Isto não significa que o fato-crime passe a ser ignorado, mas que ele
passa a ser analisado sob o enfoque do autor.
Do programa positivista emerge, portanto, a delimitação de um "Direito
Penal do autor" baseado no determinismo e na responsabilidade social, no qual o
potencial de periculosidade social constitui a medida da pena (que requer uma
rigorosa "individualização" e indeterminação de limites) e a justifica como
instrumento de defesa social.
O princípio da individualização da pena com suporte na personalidade
do criminoso é, pois, um produto do positivismo ampliando significativamente os
poderes discricionários do juiz na aplicação da pena.
A respeito, escreve BETTIOL (1966, p.40-1), com preocupações
nitidamente liberais que todas estas teorias
"(...) por acentuarem características do agente em lugar de
características da ação, transformam o Direito Penal de um direito que
considera o fato objetivo como único título justificador da pena, num
direito que encara o fato como mero índice de periculosidade. Eles
ampliam indubitavelmente os poderes discricionários do juiz, com
graves danos para a liberdade individual. (...) Nota-se assim, na esfera
de influência das concepções positivistas, uma incerteza indiscutível
acerca dos pressupostos da aplicação da medida de segurança, uma
larga discricionariedade do juiz e uma indeterminação na duração da
medida. A certeza, que, no Direito Penal, postula precisão dos fatos e
subordinação do juiz à vontade da Lei, fica, indubitavelmente,
comprometida."

4. Implicações legislativas das Escolas: da reforma e consolidação do


Direito Penal do fato à reforma para o Direito Penal do autor
Estamos, sem dúvida, diante de duas programações penais
endereçadas, em seus distintos momentos históricos, a fornecer a moldura do
Direito Penal Positivo e do controle do delito. Sua especificidade histórica reside
então no fato de que enquanto a Escola Clássica sentou as bases ideológicas da
reforma e das codificações penais que se seguiram ao longo do século XIX e
modelou o programa para a maturação jurídica do Direito Penal do fato-crime, a
Escola Positiva senta, por sua vez, as bases ideológicas e programáticas para a
reforma do Direito Penal clássico, no sentido intervencionista, e para a sua
maturação.
Desta forma, enquanto o programa clássico (centrado na lógica da
liberdade de vontade, da certeza e segurança jurídicas) é condicionado e
expressa, discursivamente, as exigências de uma sociedade e de um Estado de
Direito liberais, é somente quando esta matriz estatal assume o intervencionismo na
ordem econômica e social e legitima-se, conseqüentemente, para intervir
ativamente no campo penal, que se abre o espaço para um Direito e um controle
intervencionista sobre a criminalidade e o criminoso, como o postulado pelo
programa positivista. A emergência da Escola Positiva - e da Criminologia -
responde, pois, a uma redefinição interna da estratégia do poder punitivo, somente
admissível na ultrapassagem do Estado de Direito liberal para o Estado de Direito
social ou intervencionista.
A respeito escreve BETTIOL (1966, p.42) que liberalismo e medidas
de segurança, termos

"(...) logicamente em antítese entre si, acham-se também no plano


histórico em contraste face à desconfiança dos regimes liberais para
com a introdução das medidas de segurança. Pode-se afirmar que as
medidas de segurança não encontraram acolhida nas legislações penais
endereçadas à repressão dos crimes, isto é, nas legislações tipicamente
liberais, porque uma atividade preventiva do Estado no campo da luta
contra a delinqüência podia embaraçar a livre realização das atividades
individuais. O Estado Liberal é inteiramente permeável ao conceito de
duas esferas de atividades que, ou por direito natural ou pelo contrato
social, cabem uma ao Estado, outra ao cidadão, de modo que o Estado,
somente nos casos expressamente permitidos pela Lei, pode, para fins
repressivos, violar a esfera individual. Admitir uma intervenção,
também para fins preventivos, significa romper aquele diafragma que
separa o indivíduo do Estado e reconhecer a este o direito de regular, a
seu modo, a vida e a atividade dos cidadãos (...). Apenas quando o
Estado passou de formas liberais puras para a formas sócio-liberais,
isto é, para um liberalismo de esquerda, é que apareceram as primeiras
medidas de segurança e vierem à luz as primeiras tentativas de reforma
das legislações penais em sentido positivista."

Com efeito,a "luta" entre as Escolas demarca, pois, um momento de


redefinição do Direito Penal e do controle do delito que passava necessariamente
por uma segunda reforma penal, no sentido intervencionista.
Assim, ao culpar a debilidade do programa clássico pelo aumento da
criminalidade ao longo do século XIX e falar em nome da Ciência, preconizando
uma luta científica contra aquela o positivismo criminológico propiciou o novo
clima intelectual e ideológico

"(...) apto para orientar a atividade dos científicos do direito penal para
uma perspectiva nova: a reforma do Direito penal. Substituída a
liberdade de vontade pelo determinismo causal, resultava possível uma
'luta' científica contra o delito. Mas para levar a cabo estas idéias era
imprescindível a reforma do Direito Penal vigente apoiado na idéia da
liberdade de vontade (...)." (BACIGALUPO, 1982, p.54)

Sob a égide do Estado de Direito intervencionista irá se impor o ponto


de partida determinista e o deslocamento do centro de gravidade do Direito Penal
Positivo do fato ao autor, por império da fundamentação preventivo-especial da
pena.
É fundamental salientar, contudo, que da mesma forma que o Estado
intervencionista não implica o abandono da estrutura institucional e discursiva do
Estado de Direito (e de uma "legitimação pela legalidade") o Direito Penal
intervencionista não implica o abandono discursivo do Direito Penal do fato. Daí
o espaço para um Direito Penal de conciliação que, não podendo abandonar as
garantias penais liberais passa a requerer, não obstante paradoxos encetados a
nível legislativo, uma intervenção sobre a "personalidade perigosa" do delinqüente,
com medidas curativas, em nome da defesa social.
É por isso que as legislações penais do século XX serão, sobretudo,
legislações sob o império da fundamentação preventivo-especial da pena e da
necessidade de individualização da pena mas convivendo com as concepções
herdadas do classicismo, como a Legalidade, o retribucionismo e a
responsabilidade moral. Serão legislações geralmente conciliadoras e de
compromisso (como o Código Penal brasileiro de 1940) e, portanto, cindidas
entre as exigências de objetividade, certeza e segurança jurídica e de valorização
da concreta individualidade perigosa do criminoso.

Daí sua conhecida designação de neo-clássicas já que

"A solução do conflito entre livre arbítrio e determinismo se consegue aceitando o que chamamos neoclassicismo.
Este propõe uma distinção qualitativa entre a maioria, que é concebida como capaz de eleger livremente, e a
minoria de desviantes, cuja conduta está determinada." (TAYLOR, WALTON, YOUNG, 19__ , p.55)

O Direito Penal liberalmente modelado passa a receber uma


complementar justificação social. Daí em diante convivem o discurso de garantia
do indivíduo com o discurso da defesa social; o discurso do homem como limite
do poder punitivo e o discurso do homem como objeto de intervenção positiva
desse mesmo poder, em nome da sociedade.
Se esta convivência é possível é porque o antagonismo escolar é mais
aparente do que real; ou melhor, é porque se dissolve, na "prática" do controle
penal a luta "teórica" entre as Escolas que, conseqüentemente, não se explica nos
limites de seus elementos gnoseológicos internos.61

5. Implicações teóricas das Escolas: da luta entre as Escolas à divisão do


trabalho científico e disputa pela hegemonia entre Dogmática Penal e
Criminologia

5.1. Gênese e hegemonia da Criminologia como Ciência


(paradigma etiológico)

Por um lado, portanto, a produção teórica das Escolas penais


apresentava implicações para o Direito Penal Positivo, modelando o objeto de
que, tipicamente, viria a seu ocupar a Dogmática Penal.
E isto significa, que ainda estamos no âmbito das disputas

"(...) acerca da fisionomia, da estrutura, da orientação que a legislação devia tomar, sem que fosse abordada a
questão principal a respeito da legitimidade de uma Ciência do Direito Penal como Ciência Jurídica. Esta ainda
inexistia." (BETTIOL,19--, p.102)

Nesta perspectiva, seria errôneo supor que se estivesse


"(...) perante uma oposição metodológica, no âmbito de uma Ciência
Jurídica. O Direito Penal ainda não existia como Ciência Jurídica, e
isso devia resultar claramente [de] que os clássicos trabalhavam sobre
dados da razão, a que também podemos chamar apirorísticos, e dessa
maneira colocavam-se fora do âmbito de uma Ciência que pretenda
apoiar-se em dados de fato (estamos no campo filosófico), ao passo que
os positivistas baseiam as suas argumentações sobre dados de fato , que
não são próprios das Ciências Jurídicas (já, pelo contrário, o seriam os
textos legislativos), mas que pertencem às Ciências experimentais
(anatomia, fisiologia, psicologia, etc.)..." (BETTIOL, 19--, p.102)

No universo teórico assistimos, pois, especialmente na Itália do final do


século XIX à convivência, (aparentemente) contraditória, entre um modelo
61. É precisamente à inserção macroestrutural deste discurso escolar que procederemos no capítulo
quinto para explicar, para além de seu antagonismo teórico, a sua "complementariedade" funcional
no âmbito do controle penal.
jusracionalista, liberalmente inspirado de Ciência Penal e um modelo
criminológico-positivista, de inspiração social.
A Escola Clássica, porque condicionada pelo jusracionalismo estava
ainda distante das exigências que o paradigma dogmático impôs no Direito
privado e iria impor no Direito Penal. Mas, por empenhar-se na construção
jurídica (embora com fundamentos extrajurídicos) dos limites do poder punitivo
em face da liberdade individual, constitui a herança mais próxima em cuja linha
sucessória, enraizada no Iluminismo, o paradigma dogmático virá a se consolidar.
Bem diversa é a especificidade da Escola Positiva que modelando o
paradigma "etiológico" segundo o qual a Criminologia, definida como Ciência
causal-explicativa do fenômeno da criminalidade (com emprego do método
experimental e de estatísticas criminais), assume a tarefa de explicar as causas do
crime e de prever os remédios para evitá-lo. (CÕNDE, 1975, p.101 e 1979, p.7)
Na linguagem positivista então dominante, surge a possibilidade de uma
explicação "cientificamente" fundamentada das causas do crime e, por extensão,
de uma luta científica contra a criminalidade, em cujo combate - argumentavam os
positivistas - o classicismo havia fracassado.
Simultaneamente, portanto, o (aparente) conflito de Escolas gerava
implicações para o horizonte científico-penal já que a

"(...) nova delimitação entre Ciência e metafísica transformou a


problemática da Ciência jurídico-penal e gerou novos problemas,
dentre os quais as relações da Ciência penal clássica e os novos
conhecimentos empíricos do Direito Penal mereceram especial atenção.
A partir do momento em que o delito pode explicar-se cientificamente
como fato social surge o problema das relacões desta explicação com
as concepções clássicas que somente o entendiam como um fato
jurídico." (BACIGALUPO, 1982, p.59 e 61)

Surgido assim no bojo do tema da "reforma penal" o problema das


relações entre as concepções jurídicas e criminológicas; isto é, o "tema das
relações dos novos pontos de vista para a transformação do Direito adquiriu
legitimidade com respeito ao Direito vigente." As respostas oferecidas não foram
contudo, com veremos, uniformes. (BACIGALUPO, 1982, p.53).
É neste marco que se coloca então como problema explícito não
apenas a determinação do objeto e confins da Ciência Penal como Ciência dos
juristas mas, simultaneamente, a discussão relativa à sua cientificidade e à sua
relação com a Criminologia.
Percebe-se aí um deslocamento temático no interior do saber penal uma
vez que o objeto de discussão, já não é crime, criminoso, pena etc., mas uma
discussão epistemológica sobre o próprio lugar, estatuto e função das Ciências
Penais. As antagônicas distinções das Escolas vão cedendo lugar a uma
diferenciação de Ciências; a uma divisão do trabalho científico entre Dogmática
Penal e Criminologia.
Num primeiro momento, na medida em que a única atividade que
merecia legitimamente o rótulo de científica era a que se baseava nos fatos que
podiam ser apreendidos com um método puramente causal-explicativo, as única
Ciência possível, dentre deste marco, era a Criminologia.
Passava-se a negar o caráter de Ciência à atividade jurídica, por não
satisfazer às exigências da concepção positivista então imperante. Portanto, a
consideração jurídica do delito deveria ser substituída ou, no máximo, ficar
subordinada à criminológica, a única a garantir resultados seguros e
autenticamente científicos. (COÑDE, 1975, p. 107; 1979, p.8-9; PIMENTEL,
1983, p.36)
Foi assim que
"(...) o nascimento da Criminologia (se tomamos como tal os
delineamentos de Lombroso, Garófalo e Ferri) implicou pensar
que surgia uma Ciência (no sentido positivista do termo, logo, a
única disciplina que podia assinalar a verdade), e que com ela
desaparecia ou era substituído o direito penal, ou melhor, no
máximo (assim FERRI), este ficava reduzido só a uma mera
técnica legislativa a utilizar pela Ciência criminológica."
(RAMÍREZ, 1987, p.523)

Num universo até então dominado pelos juristas e, sob a hegemonia do


racionalismo clássico, pela concepção de crime como ente jurídico, o impacto do
positivismo foi intenso e trouxe para o centro do universo penal a presença de
médicos, antropólogos, sociólogos, psicólogos. Além do jurista penal não estar
mais só, sua atividade perdia hegemonia para a emergente Ciência da
criminalidade.

- O modelo de Sociologia Criminal de E. FERRI e a imersão


sociológica da Ciência Penal 62

É neste contexto de visível hegemonia do positivismo criminológico que


FERRI formula, em resposta ao problema das relações entre o enfoque jurídico e
o criminológico, o seu modelo de "Sociologia Criminal" 63, em obra do mesmo

62. Por opção metodológica, expusemos primeiramente aqui o modelo de ferriano. Mas é importante
ressaltar que os modelos de Ciência Penal de FERRI, BINDING, LISZT e ROCCO são
cronologicamente contemporâneos, desenvolvendos entre a década de 80 do século XIX e a
primeira década do século XX e simbolizando, exemplarmente - embora não fossem os únicos
existentes - a convivência híbrida, para além de Itália, entre o positivismo criminológico e o
positivismo jurídico e a sua disputa pela hegemonia na Ciência Penal. Neste sentido, como
veremos, polemizaram entre si. Se ROCCO já tinha diante de si a obra "Sociologia Criminal"
(1900) de FERRI e a ela responde e polemiza em sua conferência de 1910 como, por outro
lado, subscreve o enfoque dogmático de BINDING e LISZT; em seus "Princípios de Direito
Criminal" (1928) FERRI elabora uma crítica vigorosa ao tecnicismo jurídico alemão e
especialmente italiano, simbolizado, respectivamente, nos delineamentos de LISZT e ROCCO.
Por outro lado, na Alemanha, BINDING e LISZT, apesar de suas convergências na formulação
do modelo dogmático, polemizam entre si.

63. FERRI adverte que seu modelo de "Sociologia Criminal" seria mais adequadamente designado por
"Ciência geral da criminalidade" que, em parte, se exprime com o termo de "Criminologia" de
Garofalo.
nome e por ele confirmado nos seus "Princípios de Direito Criminal" (1928),
onde afirma:

"Era portanto substancialmente exata a minha conclusão final, quando


acabei o livro 'Sociologia criminal' declarando que a Antropologia e a
estatística criminal, como o Direito Criminal e Penal não são mais do
que outros tantos capítulos de uma única Ciência, que é o estudo do
crime - como fenômeno natural e social e por isso jurídico - e dos meios
eficazes para a defesa preventiva e repressiva contra aquele." (FERRI,
1931, p.96)

No quadro sinóptico que segue, podemos visualizar no seu modelo a


"recíproca e inseparável posição dos vários ramos criminológicos."
(FERRI,1931, p.96)

A
SOCIOLOGIA CRIMINAL
é a Ciência da CRIMINALIDADE e da DEFESA SOCIAL contra esta isto é
o estudo científico
do CRIME
como
fato INDIVIDUAL fato SOCIAL
(condições fisio-psíquicas (condições do ambiente
do delinqüente) físico e do social)
ANTROPOLOGIA,PSICOLOGIA ESTATÍSTICA CRIMINAL
PSICOPATOLOGIA CRIMINAL INQUÉRITOS MONOGRÅFICOS
COMPARAÇÕES ETNOGRAFICAS
PARA sistematizar a
DEFESA SOCIAL
PREVENTIVA REPRESSIVA
Indireta ou remota (Direito e Processo Penal
(Substitutivos penais) Técnica carcerária
direta ou próxima Institutos pós-carcerários)
(Polícia de Segurança)

A Sociologia Criminal, como Ciência geral da criminalidade e da defesa


social contra esta deveria abranger a totalidade da problemática social do crime,
sob a direção de um único método: o método "galileano" de observação positiva,
pois o delito é fenômeno possível somente na sociedade humana e, portanto, é
objeto de uma Ciência Social ou Sociologia.
Sendo Direito e Sociedade termos inseparáveis e os fenômenos
jurídicos fenômenos sociais, torna-se evidente, de imediato, a artificialidade da
separação entre uma Ciência que estuda o delito como fenômeno jurídico e outra
que o estuda como fenômeno social. Sendo única a ordem dos fenômenos
criminosos, única será também a Ciência que deve estudar as causas, as
condições e os remédios da criminalidade.
Assim concebida, a Sociologia Criminal se desdobra, cientificamente,
em dois ramos: um ramo bio-sociológico e um ramo jurídico. Abarca, pois, um
campo que se estende à busca das causas individuais e ambientais do crime (ramo
bio-sociológico) e, por isso, à prevenção indireta e direta e destas à repressão
(ramo jurídico) (FERRI, 1931, p.76 e 91)
Aduz então FERRI (1931, p.75) que

"(...) não pode ser criminalista quem, conhecendo às Leis vigentes, não
conhecer os dados da Sociologia Criminal. Por outro lado, pois que a
Justiça Penal é a organização jurídica dos remédios repressivos contra
a criminalidade, é natural que a disciplina jurídica dos crimes e das
penas que foi a missão histórica - para a defesa dos direitos do homem -
e a missão científica - para um conhecimento sistemático - da Escola
Clássica, fique parte integrante dos conhecimentos necessários ao
legislador e a todos quanto (acusadores, defensores, juízes) lidam
praticamente com as normas da Justiça Penal."

Como o estudo bio-sociológico do crime não pode ser separado e


ficar alheio à organização jurídica da defesa preventiva e repressiva contra a
criminalidade, também o estudo jurídico não pode ser separado dos dados bio-
sociológicos sobre o homem delinqüente, que é o protagonista da Justiça Penal.
(FERRI, 1931, p.92)
É por isso um "erro de método, que produz esterilidade de resultados"
considerar o Direito Penal como a Ciência fundamental e a Biologia, a Psicologia,
a Estatística criminal como suas Ciências auxiliares, acessórias e secundárias.
(FERRI, 1931, p.76)
Ao contrário,

"O estudo tecnicamente jurídico do crime, e da pena e do julgamento (direito e processo penal) não é mais do que
um ramo da Ciência Criminal e limita-se precisamente ao estudo das regras jurídicas da repressão que são
expressas pelo nome de Justiça Penal e que são uma parte somente da defesa social contra a criminalidade, como
suprema e imanente função do Estado." (FERRI, 1931, p.76)

Enfim, FERRI(1931, p.94-5) refere-se à técnica legislativa, consistente


na arte de formular as normas penais apresentadas pela Sociologia Criminal e
apurada pela Política Criminal - em organização sistemática e de forma clara e
precisa - e à jurisprudência penal, como a sistematizada e racional aplicação das
normas da Lei aos casos individuais.
O deslocamento do Direito vigente a um segundo plano se justifica
porque as conclusões jurídicas devem obter-se - segundo FERRI - em primeiro
lugar da observação do fenômeno social da delinqüência. A obra com que ele
mesmo diz terminar sua vida científica, os Principii di Diritto Criminale (1928),
responde a esta concepção científica.
Pode-se concluir então que o modelo ferriano postula uma unificação
disciplinar sob os princípios das Ciências causal-explicativas em que a autonomia
metodológica da Ciência Jurídico-Penal se anula e se substitui pelo chamado
método científico. Mais do que procurar uma alternativa não normativa para a
Ciência do Direito Penal postula, em realidade, uma redução sociológica dela.
(BACIGALUPO,1982, p.56 e 59-60)
É que FERRI tem em vista e privilegia, em definitivo, a reforma, em
detrimento da aplicação do Direito Penal de modo que sua Sociologia Criminal
"(...) modifica substancialmente o interesse do conhecimento científico
jurídico-penal: o jurista tem um interesse primário na aplicação do
direito vigente, ainda que não se desinteresse da reforma do mesmo. A
Sociologia Criminal pressupõe, ao revés, um deslocamento do interesse
do jurista à reforma e um notável descuido da aplicação do Direito."
(BACIGALUPO, 1989, p.462)

5.2. Matrizes fundacionais do paradigma dogmático de Ciência Penal

Frente à esta concepção " de que a verdadeira Ciência do Direito Penal


era a Sociologia Criminal (Criminologia) "surge outra tendência, enraizada na
atividade jurídica tradicional, mas paradoxalmente muito influenciada pelo
positivismo". (COÑDE, 1975, p.108-9 e 1979, p.8)
É o momento da entrada em cena e afirmação, no campo penal, do
juspositivismo. Assim, diante deste positivismo criminológico manifestou-se,
concomitantemente, um positivismo jurídico centrado na idéia de resgatar, para a
Ciência Penal, sua identidade propriamente jurídica, postulando a exclusão, do seu
âmbito, dos fatores antropológicos e sociológicos e ainda jusnaturalistas, como
latente herança das Escolas Clássica e Positiva.
Desta forma, se no final do século XIX ainda subsistiam resquícios do
jusracionalismo na Ciência Penal, embora agonizando, face à visível hegemonia
do positivismo criminológico, o positivismo jurídico assumirá em Itália o
significado de uma dupla rejeição preconizando uma Ciência Penal estritamente
jurídica e, pois, o transplante, para seu universo, do paradigma dogmático de
Ciência Jurídica, já dominante no campo do Direito privado.
- A Escola Técnico-Jurídica64 e o modelo de Ciência Penal de A.
ROCCO: a reação tecnicista

64. Sendo polêmicas a origem e significação do chamado "tecnicismo jurídico" situemos os seus
contornos para assumir uma posição .
Quanto à "gênese", discute-se se o tecnicismo jurídico é de origem alemã ou italiana. Parece-nos
que a tendência dominante é atribuir sua paternidade aos alemães, especialmente a KARL
BINDING e FRANZ VON LISZT (Cf. FERRI, 1931, p.58; CANTERO, 1977, p.94-5; ASÚA,
1950.t.1, p.11; ROCCO,1981, p.59; BETTIOL, 19--, p.102 e 1966, p.63-6;
NUVOLONE,1981, p.6-7; BRUNO, 1967, p.40)
FERRI(1931, p.59-60) sustenta, nesta direção, que a orientação do tecnicismo-jurídico afirmado
em Itália em finais do século XIX e que se junta à corrente critico-forense da Escola Clássica é
sobretudo uma derivação e uma imitação da orientação germânica, enquanto entende que o único
argumento de estudo para o criminalista é a Lei penal vigente em cada país.
Nesta perspectiva, também acentua CANTERO (1977, p.95), não se pode dizer que o movimento
propugnado por ROCCO seja original, nem é correto chamá-lo, como faz PETROCELLI ,de
direção jurídica italiana. Pois ROCCO importa à área latina o que já havia tido lugar na dogmática
alemã.
MAGGIORE (1954, p.114) contudo, sustenta que o tecnicismo jurídico, cuja origem comumente
se diz alemã, atribuindo sua paternidade a BINDING e LISZT é, em realidade, italiano,
desenvolvendo as posições de CARRARA (que centralizou em seu sistema o caráter jurídico da
pena e do delito). E destaca que na Itália, de pois de ALESSANDRO STOPPATO (1858-1931)
teve e tem insignes representantes como CIVOLI (1861-1932), ROCCO (1876-1942), CONTI
(1864-1942) MASSARI (1874-1934), MANZINI, BATTAGLINI, DELITALA e outros.
Também a sua "significação" é polêmica, pois enquanto alguns sustentam que se trata de uma
Escola; para outros não passa de uma orientação metodológica para a Ciência Penal.
ASÚA (1950,t.2, p.111) afirma que, embora de raízes alemãs, é apenas na Itália que o tecnicismo
jurídico assume o caráter de Escola, tendo uma formação lenta e trabalhosa, desde MANZINI e
ROCCO a BETTIOL e PETROCELLI, passando por DELITALA, CICALA, MASSARI,
VANINI, DE MARSICO, ANTOLISEI, etc. E que tendo sido classificada por FLORIAN como
clássica, por FERRI como neoclássica e por GRISPIGNI como continuadora da Terceira Escola,
trata-se de uma Escola neoclássica representando, mais estritamente, um deslinde de campos: "o
Direito Penal vigente, com seu conteúdo dogmático e seu método jurídico, separado da
Criminologia, ciencia de conteúdo causal e naturalista e método experimental e sociológico."
(ASÚA, 1950,t.2, p.115)
Entre os que compartilham da significação do tecnicismo jurídico como "orientação metodológica"
encontram-se, entre outros, SODRÉ (1977, p.268); BETTIOL (1966, p.64-5) e CANTERO
(1977, p.94) que entende ser inexata sua qualificação como Escola, seja neoclássica ou eclética.
Pois o "tecnicismo jurídico não é mais que a indicação de um método de interpretação e
elaboração científica do Direito, sem uns postulados filosófico-sociais determinados".
De qualquer modo, parece ser consensual a consideração de ARTURO ROCCO como o seu mais
autorizado representante, mesmo se precedido na Alemanha por BINDING e LISZT e na Itália
por STOPATTO e MANZINI (Cf. ASÚA, 1950, t.1, p.112; FERRI,1931, p.64; CANTERO,
1977, p.91; BETTIOL, 1966, p.64; PIMENTEL, 1983, p.36-7).
A nosso ver, cabe razão à ASÚA quando afirma que é apenas na Itália que o Tecnicismo jurídico
assume a dimensão de uma Escola e, acrescentamos, movimento de reação. E neste sentido
contém, inegavelmente,uma orientação metodológica na medida em que tematiza sistematicamente
as condições de possibilidade para a afirmação da Ciência Penal como Ciência Jurídica
(Dogmática Penal); assim como, de resto, a Escola Clássica estabeleceu as condições de
possibilidade da Ciência Penal como Ciência Jusracionalista e a Escola Positiva como Sociologia
Jurídica. Neste sentido, a Escola Técnico-Jurídica italiana se ocupa, também, tal como as
ARTURO ROCCO produziu a sistematização mais significativa,
acabada e célebre do tecnicismo jurídico, na aula inaugural dos cursos da
Universidade de Sassari, por ele proferida em 15 de janeiro de 1910, que se
converteu na obra "Il problema eil metodo della scienza del diritto penale",
conhecida como "prolusão sassaresa", e que expressa, visivelmente, a origem
reativa do tecnicismo jurídico italiano.

- A crise da Ciência Penal: diagnóstico das causas e correção dos


erros

Apreendendo o contexto teórico do final do século XIX e início do


século XX como um contexto de "crise" da Ciência Penal, inserida no horizonte
mais amplo de crise do pensamento científico e das Ciências Sociais e Humanas,
ROCCO(1982, p.4-5) é incisivo no diagnóstico de sua causa imediata:

"Qual é, em especial, a causa próxima de tal estado de coisas? O diagnóstico não parece difícil. A única Ciência
clássica do direito penal, que no começo ignorava e logo esquecia os ensinamentos da escola histórica do direito,
pretendera estudar um direito penal que estivesse à margem do direito positivo; se iludira com forjar um direito
penal diverso do consagrado nas leis positivas do Estado, um direito penal de caráter absoluto, imutável, universal,
cuja origem remontasse à Divindade, ou à revelação da consciência humana, ou às leis da natureza, ou às leis do
pensamento e da idéia. A mesma obra, monumental e gloriosa de CARRARA, não escapou a este vício dos tempos;
é precisamente no tempo em que tal vício encontra sua razão de ser (...) a orientação positiva moderna, como em
outro tempo a antiga escola histórica, combateu precisamente este erro; mas caiu por sua vez em outro
igualmente manifesto, ao afirmar, contra o princípio da divisão do trabalho científico, que é condição absoluta do
desenvolvimento humano, que a Ciência do direito penal nada mais é que um capítulo e um apêndice da sociologia."

anteriores, da decodificação dos conceitos de crime, pena, responsabilidade penal à luz do


respectivo modelo científico preconizado.
Por outro lado, parece indubitável que, como orientação metodológica encontra suas matrizes na
obra dos alemães, especialmente BINDING e LISZT, como ROCCO, por exemplo, o reconhece
expressamente em sua obra. E, genericamente considerado (em Alemanha e Itália) o tecnicismo
jurídico guarda, com a Escola Clássica, uma continuidade fundamental pois, libertando-a do
abordagem jusnaturalista, leva a abordagem jurídica do crime e do Direito Penal às suas últimas
conseqüências técnicas.
O tecnicismo jurídico não representa, de qualquer modo, uma matriz original mas uma mediação
decisiva para o transplante do paradigma dogmático de Ciência Jurídica, já consolidado em
outros ramos do Direito, para o campo penal, adaptando-o à sua especificidade.
Se a Escola Positiva teve o mérito de liberar a velha Ciência Penal das
"incrustrações metafísicas que a recobriam", logo frustrou a expectativa de uma
nova construção científica, cuja edificação todos esperavam, pois, "destruindo
sem reconstruir" chegou, em última instância, "a um Direito Penal (...) sem
direito!". Daí o "estado de ansiedade, incerteza e permanente perplexidade" que
caracterizava a produção científica do Direito Penal. (ROCCO, 1982, p.3, 5 e 6)
Cabia indagar, assim, se uma Ciência chamada Direito Penal era ou não
uma Ciência Jurídica, pois continha antropologia, psicologia, estatística,
Sociologia, filosofia, política; ou seja, de tudo, menos de Direito. (ROCCO, 1982,
p.3)65
É dupla, pois, a reação tecnicista que sua obra simboliza. Ela dirige-se,
simultaneamente, contra a herança jusracionalista da Escola Clássica e contra a
herança criminológica da Escola Positiva.
Com efeito, identificada a causa do crime num sincretismo
metodológico que oscilante entre o jusracionalismo (CARRARA) e o positivismo
criminológico (LOMBROSO, FERRI) havia esvaziado o conteúdo propriamente

65. ROCCO (1982, p.33-6) dirige assim uma longa critica às construções clássicas e positivistas da
pena, da responsabilidade penal, do delito e do delinqüente por terem ignorado seus aspectos
jurídicos.
Da pena, produziram mil teorias sobre sua origem, missão, fundamento, objetivo, legitimação,
reforma e ainda, "por estranho que pareça", sobre a possibilidade de sua abolição. Mas nem
sequer defiram o que é, juridicamente.
Da responsabilidade penal, do livre-arbítrio ao determismo, não estabeleceram de modo preciso as
condições subjetivas e objetivas requeridas pelo Direito Penal vigente para que alguém seja
penalmente responsável.
Do delito, não trataram como transgressão jurídica, desaparecendo quase completamente sua
noção como "fato juridicamente ilícito" do qual nascem obrigações e Direitos.
Do delinqüente, ignoraram a noção de personalidade jurídica que atribui ao réu, enquanto cidadão,
a garantia de Direitos dos quais não pode ser privado aprioristicamente, antes ou depois da
trangressão e até mesmo da condenação, sendo impossível um diagnóstico seguro de sua
delinqüência potencial e uma prognose segura de sua delinqüência efetiva.
jurídico do Direito e da Ciência Penal, a crise era vista, sobretudo, como crise de
identidade da Ciência Penal.
De acordo, pois, com o

"(...) estado atual da litis, a Ciência jurídica penal se debate hoje na


tormentosa busca de si mesma: entre o antigo cuja vigência
freqüentemente se perdeu e o novo que pouco ou nada produz, podemos
dizer que já não temos princípio jurídico frime algum de direito penal."
(ROCCO, 1982, p.7)

Sob a égide do positivismo jurídico, em que ROCCO se move, o


problema apresentado para a Ciência Penal italiana, na viragem do século XIX
para o século XX era o de não ter delimitado seu horizonte (método, objeto, tarefa
e função) em termos jurídicos , condicionada que se encontrava pela herança -
híbrida - das Escolas penais.
Simultaneamente, sob a égide da "necessidade de especialização
científica, origem de todo progresso humano e da Lei da divisão do trabalho
científico" (ROCCO, 1982, p.14-5), o problema apresentado era o da
autonomização da Ciência Penal, objetivando-se liberá-la, a partir de um duplo
enfrentamento, de toda contaminação jusnaturalista, antropológica ou sociológica.
Tratava-se, pois, em definitivo, de estruturar as bases para a consolidação de um
Ciência Penal que, vista pelo prisma juspositivista de Ciência Jurídica autônoma,
inexistia.
A "crise" da Ciência Penal impunha então (re)indagar qual era, no
pensamento e na vida social, o problema de sua existência; ou seja, sua razão de
ser, sua missão teórica, sua função prática e qual o método deveria seguir para
alcançar sua meta científica e prática. Impunha, pois, a própria discussão da
cientificidade da Ciência Penal.
A resposta de ROCCO (1982, p.9) para a "correção dos erros" e
conseqüente superação da crise, já visível desde o seu diagnóstico crítico, seria
trilhar o caminho do positivismo jurídico e do paradigma dogmático de Ciência
Jurídica, na esteira de BINDING, LISZT, e ainda LOENING, SERGIEWSKY,
MERKEL, MAYER, BELING, FINGER, VARGHA, GARRAUD, CIVOLI,
MANZINI, PESSINA (em seus últimos escritos) cujas posições expressavam,
entre outros, aquela tendência juspositivista na Ciência Penal que ele via como um
"estado geral da consciência jurídica." 66
Partindo do pressuposto da "crise", a preocupação central de ROCCO
é, pois, estabelecer as bases metodológicas e práticas para a constituição de uma
Ciência Penal estritamente jurídica e dogmática, delimitando seu objeto,
especificando seu método, tarefa e funções.

- Objeto e tarefa metódica da Ciência Penal

O objeto da Ciência Penal era inteiramente circunscrito ao Direito Penal


Positivo vigente, como dado de fato do qual deveria partir:

"O que se quer é tão só que a Ciência do direito penal, em harmonia


com sua natureza de Ciência jurídica especial, limite o objeto de suas
investigações ao estudo exclusivo do direito penal e, de acordo com
seus meios do único direito penal que existe como dado da experiência,
ou seja, o direito positivo."(ROCCO, 1982, p. 10 )

66. É importante ressaltar que ROCCO recorre, em sua obra, a extensas notas explicativas buscando
demonstrar o deslocamento, no final do século XIX, de uma concepção de Direito e Ciência Penal
jusnaturalista para uma concepção juspositivista como tendência dominante. Significativamente,
também se apóia em extensa literatura alemã - na qual inclui-se as obras de BINDING e LISZT -
o que confirma a interpretação das raízes alemãs do tecnicismo jurídico.
Delimitado o objeto, a preocupação correlata de ROCCO é fixar a
autonomia e o método da Ciência Penal, tratando-se, ao mesmo tempo de conferir
mais relevância à distinção, o que não significa separação

"(...) da Ciência jurídico-penal com relação à antropologia, à


psicologia, à sociologia e à filosofia do direito e à política criminal, seja
considerando-a como arte ou como Ciência, reduzindo a Ciência
jurídico-penal principalmente, se não em forma exclusiva, como
sucedeu já faz tempo a respeito do direito privado, a um sistema de
'princípios de direito', a uma teoria jurídica, a um conhecimento
científico da disciplina jurídica dos delitos e das penas, em uma
palavra, a um estudo geral e especial do delito e da sanção, desde um
ponto de vista jurídico, com fatos ou fenômenos regulados pelo
ordenamento jurídico positivo. Esta é a orientação técnico-jurídica, que
é a única possível em uma Ciência precisamente jurídica, e de caráter
especial por acréscimo, como o é a que leva o nome de Ciência do
direito penal; é, ainda assim, a única orientação da qual pode se
esperar uma reconstituição orgânica da debilitada estrutura científica
do direito penal."(ROCCO, 1982, p.9)

Baseando-se na constatação de que outras disciplinas jurídicas já tinham


há algum tempo assumido a dignidade de Ciências Jurídicas e atingido uma
notável perfeição técnica e sistemática, em relação às quais a Ciência Penal
encontrava-se num estágio de lamentável inferioridade, ROCCO (1982, p.17-8)
prescreve-lhe, para ser útil à Ciência e à vida,

"(...) seguir a senda segura em que confiaram primeiro os estudiosos do


direito privado e pelo qual logo passaram de forma magistral os
estudiosos do direito administrativo e processual; aquela mesma via
pela qual parecem também já se encaminhar com passo seguro o
direito constitucional e o direito internacional, apoderando-se
simultaneamente dos procedimentos daquelas Ciências antes
mencionadas que, como o direito privado, são evidente exemplo de
perfeição técnica do direito."

É manifesta, pois, sua preocupação em transplantar para a Ciência


Penal, o paradigma dogmático já consolidado no Direito Privado e em
consolidação em outros do Direito Público67 e cujo transplante visualizava como
condição de possibilidade (fonte) do progresso científico no Direito Penal.

-As etapas do método técnico-jurídico: exegese, dogmática e


crítica

E, à luz deste paradigma, a "elaboração técnico-jurídica" do Direito


Penal positivo deveria se conformar em três etapas metódicas de investigação.
Pois

"se observamos mais de perto o modo de proceder próprio do


conhecimento científico do direito positivo, especialmente no campo do
direito privado, mas também no campo do direito administrativo e do
direito processual civil, e na esfera do direito em geral, veremos que os
meios técnicos de que dispõe este conhecimento, se resumem
exclusivamente em três ordens de procedimentos ou de investigações:
1º) uma investigação exegética; 2º) uma investigação dogmática e
sistemática; 3º) uma investigação crítica do direito. É precisamente

67. FERRI (1931, p.64-7 e 81), por sua vez, acusando vigorosamente os neo-clássicos (tecnicistas)
italianos de terem 'copiado' LISZT e os alemães, "esquecendo-se que o Direito Penal é uma
criação original do gênio itálico e deste foi irradiado sempre para os outros países," identifica aí
seu "erro fundamental". Pois, importar a dogmática do Direito Privado e demais disciplinas implica
ignorar a índole própria do Direito Penal, a saber, de ser a única, entre todas as Ciências da
enciclopédia jurídica, que tem como objeto a pessoa do delinqüente. O Direito Privado e também
o processual, admistrativo, constitucional, internacional estuda e regula as relações jurídicas e os
negócios jurídicos como formas de atividades normais, independentemente das pessoas que os
praticam. O erro metódico, pois, é considerar os crimes como relações jurídicas atribuídas a um
homem médio (como os contratos, testa mentos etc.) quando são sempre formas de atividade
anormal e anti-social e, como tais, sua disciplina é inseparável da observação da pessoa do
delinqüente.
Conclui então FERRI (1932, p.67): "Continuar, portanto, a orientação da Escola Clássica, já
apreciada quanto aos seus resultados negativos para a defesa social, e agravá-la ainda com os
processos de dogmática jurídica do Direito Privado transportados ao Direito Penal, pode ser na
verdade uma boa ocasião para utilizar e revender em Itália o stock das numerosas abstracções e
locubrações alemães e também um diversivo para iludir o conflito entre a Escola Clássica e a
Escola Positiva, quer dizer, entre o modelo aprioristico e o metodo galiLeiano no estudo da Justiça
Penal."
nestas três ordens de investigações no que deve consistir o estudo
técnico do direito positivo (...)." (ROCCO, 1982, p.18)

Salientando que se a exegese é uma etapa necessária do estudo


científico do Direito ela é, meramente, a "Ciência da Lei" e, como tal, uma etapa
inferior da Ciência do Direito ou "um produto literário cientificamente inferior"
ROCCO(1982, p.21-2) salientava a necessidade de ultrapassar a atividade dos
penalistas práticos, limitada ao "comentário exegético puro, mesquinho e material
do texto legislativo"68 para chegar ao "sistema" ou à dogmática, a etapa superior
da autêntica "Ciência do Direito".
Desta forma, "de boa gana insisto na necessidade e importância da
chamada investigação dogmática, 69 porque a seu descuido é devida precisamente
a lamentável imperfeição técnica atual do Direito Penal." (ROCCO,1982, p.26)
Quando a interpretação (literal e lógica) cumpriu a sua tarefa, se abre o
caminho, graças à analogia e os princípios gerais do Direito, para o
desenvolvimento dos conceitos contidos nas normas jurídicas e, de conceito em
conceito, mediante progressiva generalização e abstração, ascender ao sistema,
para descer do geral ao particular .(ROCCO, 1982, p.23)
A dogmática constitui assim:

"(...) a investigação dogmaticamente descritiva e expositiva dos


princípios fundamentais do direito positivo em sua coordenação
lógica e sistemática; aquela que, de maneira um pouco bárbara,
chamam os alemães a construção das instituições e das relações
jurídicas, e que segundo outros, é o tratado 'sistemático' do conteúdo do
direito vigente." (ROCCO, 1982, p.22)

68. Que acaba por destruir o espírito diferencial das Ciências Jurídicas já que se o "Direito Penal é
certamente diferente do Direito Privado e este do Direito Público (...) comentar um artigo do
Código Penal em nada difere de comentar um artigo do Código Civil e Comercial."
(ROCCO,1982, p.21-2)

69. Como tem sido observado, ROCCO utiliza impropriamente o termo dogmática para designar
apenas uma etapa do método técnico-jurídico quando designa, por comum acordo na comunidade
científica, o próprio modelo dogmático de Ciência Penal como um todo.
Desta forma, se a exege não proporciona mais do que o conhecimento
empírico do Direito; a dogmática, ao contrário, proporciona o seu conhecimento
científico. "Relativamente à exegese, que é a "Ciência da Lei", a dogmática pode
chamar-se verdadeiramente a "Ciência do Direito". (ROCCO, 1982, p.22-3)
Enfim, se a exegese e a dogmática dão a conhecer o sistema do Direito
vigente - o Direito que é - a crítica, como terceira e última etapa do método
técnico-jurídico investiga o Direito que deve ser ou o Direito ideal adquirindo
legitimidade unicamente após se esgotar aquelas duas etapas metódicas, "já que
não é possível criticar o que pelo menos cientificamente, ainda não se conhece."70

- A função prática da Ciência Penal

A elaboração técnico-jurídica, além de evidentes exigências de ordem


científica, se fundamenta, por outro lado e simultaneamente, em evidentes
exigências de ordem prática , sendo a ela endereçada uma função essencial já
que

70.ROCCO (1982, p.31-3) distingue e propugna dois níveis de crítica. No primeiro, circunscrito ao
âmbito do Direito Penal Positivo, deve o penalista identificar, por dedução lógica do sistema, suas
contradições ou antinomias e, por dedução lógica da aplicação do Direito Penal, sua
impossibilidade de efetivar os objetivos sociais e políticos desejados pelo "legislador". Como parte
"vital" da elaboração jurídica incumbe-lhe "prever o Direito futuro baseando-se nas recônditas
intimidades do Direito atual." Trata-se da "crítica jurídica" em sentido estrito.
No segundo nível, cujo referente é não o sistema, mas as evoluções de ordem social e política,
compete ao penalista a tarefa de ajuizar a crítica e a reforma do Direito Penal vigente indicando,
com base nas necessidades sociais e nas oportudades políticas, quais os melhores meios
repressivos na luta contra a criminalidade. Trata-se aqui da Ciência Penal de "lege ferenda" ou
Ciência ou Arte da Legislação Penal.
É de se observar que este segundo nível corresponde àquela função político-criminal que a
Dogmática Penal passou a desempenhar na preparação de reformas penais, mas não considerada,
efetivamente, como atividade interna ao seu paradigma nem como sua função em sentido estrito,
mas sedundária.
"Qualquer um vê a utilidade de tal organização e sistematização lógica,
não estamos dizendo formal, dos princípios do direito penal vigente; ela
busca proporcionar o conhecimento científico das normas do direito
àqueles que são chamados por sua missão na vida social a interpretar e
aplicar o direito, seja combatendo como advogados, seja decidindo na
qualidade de magistrados; procura dar ao intérprete jurista ou
magistrado o quanto é necessário para a administração prática da
justiça; trata, em outras palavras, de tornar útil a Ciência jurídica no
campo prático da aplicação judicial, assim como manter a vida prática
cotidiana do direito à latura de um conhecimento científico da lei."
(ROCCO, 1982, p.15).

Em definitivo, aparecendo como o único capacitado a superar a


"incerteza" teórica que dominava a Ciência Penal, o paradigma dogmático, a
exemplo do Direito Privado, aparecia também como o único apto a fornecer a
certeza e segurança requeridas pela administração da Justiça Penal, da qual
encontrava-se privada justamente por aquela incerteza. 71
Contrariamente, pois, ao modelo de Sociologia Criminal de FERRI, que
centraliza a função do jurista na reforma do Direito Penal positivo, o modelo de
Rocco, na esteira do paradigma dogmático em geral, o centraliza na aplicação
judicial do Direito.

- A autonomia e as fontes da Ciência Penal: a resposta ao


problema das relações entre Dogmática e Criminologia

O caminho do paradigma dogmático trilhado por ROCCO, que


conduzia à autonomização da Ciência Penal, requeria uma resposta ao problema
latente das relações entre a Dogmática Penal e as demais disciplinas que, como

71. FERRI (1931, p.68), contrariamente, insistia em que as construções jurídicas dogmáticas, "são,
nove sobre dez, inutilizáveis e inaplicáveis, tanto na Justiça Penal cotidiana, como na reforma das
Leis penais. Ora, o Direito, como estudo scientifico das normas de conduta social, deve servir á
vida prática e quotidiana e não ser fim de si mesmo e exercício solitario de dialéctica infecunda."
Assim, prossegue FERRI (1931, p.87) "(...) ao actual excessivo esforço da dogmática juridica, que
não corresponde á função prática do Direito, deverá substituir-se uma orientação, também no
campo jurídico, melhor inspirada na observação dos factos."
herança das Escolas Clássica (Filosofia e Política) e Positiva (Antropologia e
Sociologia Criminais) dividiam o campo penal.
Tal resposta, orientada pela "necessidade de especialização" foi
pontualizada como a necessidade de estabelecer, no âmbito do método jurídico,
uma divisão do trabalho que, requerendo uma rígida fixação do objeto e limites
de cada disciplina não deveria implicar uma "separação" e muito menos um
"divórcio científico".(ROCCO,1982, p.11-14 passim)
Enquanto a Ciência Penal teria por objeto de estudo o crime e a pena
como fatos jurídicos, a Antropologia teria por objeto o crime como fato
"individual" e a pena como fato social; a Sociologia o teria a ambos como fato
social, sendo estas duas Ciências ao lado da História e do Direito comparado as
fontes do "conhecimento científico" do Direito, e não do "Direito" como
"penando de inexatos afirmaram alguns" a respeito da Sociologia. (ROCCO,
1982, p.37-44 passim)
E, sem desfigurar sua essência jurídica, a Ciência Penal deveria recorrer
a tais fontes em caráter "subsidiário" ou "complementar".É que para evitar que o
estudo dogmático, eminentemente lógico-dedutivo, se convertesse em formalismo(
"escolho" em que tropeçavam freqüentemente as Ciências Jurídicas) se mantendo
"rente à vida" era necessário que a dedução lógica se reintegrasse e
complementasse, "dentro de certos limites", com a indução experimental.
(ROCCO, 1982, p.44)
É desta maneira, e somente assim, que a
"(...) a Ciência jurídica, Ciência do raciocínio lógico, pode andar de
braço com a Ciência da observação experimental. Assim, pois, o direito
penal, Ciência das normas jurídicas (...) se quiser ser consciente da
finalidade e da função social das normas que estuda, deve também em
certa medida enriquecer-se com o conhecimento do homem que comete
o delito e ao qual se aplica a sanção, com o conhecimento do ambiente
em que se comete o delito e em cujo meio a sanção desenvolve seus
efeitos; é necessário, em outros termos, que chegue a conhecer, dentro
de certos limites, o delito como fenômeno natural, individual e social, e
a pena como fenômeno social, levando em conta os dados que
atualmente lhe oferece aquelas Ciências novas que são a antropologia
(somatologia e psicologia) e a sociologia criminais." (ROCCO, 1982,
p.38-9)

Desta forma, nada impede que o penalista assuma, "de vez em quando"
o papel do antropólogo ou do sociólogo, ou que se empenhe na investigação
filosófica ou política, mas, para evitar uma intromissão ilícita e perigosa na clareza
da investigação própria e estritamente jurídica não pode esquecer que uma coisa é
Direito, outra Antropologia, Sociologia, Filosofia e Política. E que, nestes
momentos, "se despe de sua toga de jurista e veste o hábito, igualmente rígido" do
antropólogo, do sociólogo, do filósofo do Direito ou do cientista político.
(ROCCO, 1982, p.11-3)
Rocco pensava assim ter dado uma resposta acabada ao tormentoso e
polêmico problema das relações entre a Dogmática Jurídico-Penal e a
Criminologia.

Pois, pontualizado o conceito das "fontes" concluía que,

"(...) o assunto até aqui tão debatido das relações entre a Ciência do
direito penal e a antropologia, a psicologia e a Sociologia criminais se
ilumina com uma luz intensa: a Ciência do direito penal, com respeito
às suas construções jurídicas, utiliza como meio, como dados e como
pressuposto, a indução antropológica, psicológica e sociológica, da
mesma forma em que se vale da indução histórica e comparada; mas
não há nela mais antropologia, psicología ou Sociologia do que historia
ou direito comparado." (ROCCO, 1982, p.44)72

Tratava-se, em definitivo, de um modelo marcado pela hegemonia da


Dogmática Penal e pelo caráter auxiliar da Criminologia em relação a ela.

72.Embora não considerando a Filosofia do Direito e a Ciência Política como fontes da Ciência Penal,
aduz que não sucede de outra maneira no que respeita às relações do Direito Penal com estas
disciplinas.
Em conclusão, portanto, apesar da reação que empreendeu contra o
positivismo criminológico o tecnicismo jurídico não transcendeu o horizonte
positivista, pois não se tratava de superá-lo, mas deslocá-lo, tornando hegemônica
uma determinada versão: a do positivismo jurídico. Na Itália, portanto, não se
produz a afirmação do Direito positivo e a consolidação do paradigma dogmático
na Ciência Penal até o século XX, com a Escola Técnico-Jurídica.

5.2.1. Matrizes do tecnicismo jurídico: K.BINDING e VON LIZST

Na Ciência Penal alemã, contudo, não se produziram os dois


fenômenos italianos culpáveis pelo abandono do Direito Positivo ao longo do
século XIX: nem a eleição do Direito Natural (pela Escola Clássica) nem da
realidade empírica (pela Escola Positiva) como objetos excludentes daquele
.(MIR PUIG, 1976, p.187)
É que na Ciência Penal alemã da primeira metade do século XIX, de
Feuerbach até aproximadamente 1840, é o Direito Positivo, ainda que moderado
pelo apelo ao Direito Natural, que predomina como seu objeto. E após um
retorno da prevalência do Direito Natural, que perdura entre 1840 até
aproximadamente 1870 é o Direito Positivo que, sob o influxo do positivismo
jurídico, se afirma como objeto da Ciência Penal.
E o juspositivismo que triunfou aí desde
"(...) os anos 70 do século passado supôs algo mais que o estudo do
direito positivo: negou a licitude de introduzir juízos de valor ou
referências à realidade meta-jurídica na tarefa dogmática. Isto
diferencia o método positivista do empregado pela Ciência alemã desde
FEUERBACH até BINDING, caracterizada (...) pela apelação a
critérios extrapositivos, sejam racional-ideais, sejam históricos , na
elaboração do direito positivo." (MIR PUIG, 1976, p.209-10)

Assim, se FEUERBACH realizou o transplante, com todas as suas


conseqüências, das concepções políticas do liberalismo individualista para o
Direito Penal é BINDING quem desenvolve primeiramente tais princípios numa
exposição científica do Direito Penal segundo a qual a lei positiva, considerada
como um todo objetivo, era o único objeto e ponto de partida possível
penalista. 73 (MUÑOZ CONDE, 1976, p.109)
Desta forma, enquanto a primeira manifestação do positivismo no
tempo foi, na Itália, o positivismo naturalístico, na Alemanha foi o positivismo
jurídico, cujo principal representante foi BINDING, seguido de MERKEL e
BELING, entre outros. E enquanto este assumiu aí um significado de relativa
continuidade em relação ao estudo do Direito Positivo, associada a uma
superação metódica mais dirigida contra o jusracionalismo (a Filosofia hegeliana)
estimulando, por sua vez, como no Direito privado italiano, a elaboração de uma
específica Ciência Jurídica (MIR PUIG, 1976, p.188); na Itália o positivismo
jurídico assumiu, via Escola Técnico-Jurídica, o significado de uma vigorosa e
dupla reação.
Por outro lado, enquanto na Itália o positivismo naturalístico conduziu
a um deslocamento do objeto da Ciência Penal para a realidade empírica, na
Alemanha ele influiu sobre a "Jovem Escola alemã" traduzindo-se na concepção
eclética de VON LISZT, seu principal representante, que se limitou a aduzir, junto
ao estudo (dogmático) do Direito Positivo, o estudo (criminológico) do delito e
do delinqüente, procurando uma síntese conciliadora de ambos.Não tendo

73. ARMIN KAUFMANN (1976) contudo, num estudo específico sobre a obra de BINDING,
trata de demonstrar, como a seguir pontualizaremos, os limites do positivismo jurídico de
BINDING que todavia lhe é atribuído insistentemente e sem restrições.
experimentado portanto na Alemanha a transcendência experimentada na Itália,
tanto o positivismo jurídico quanto o positivismo naturalístico tiveram uma forte
influência na Ciência Penal germânica manifestando-se nas origens da Dogmática
Jurídico-Penal. 74
Neste sentido enquanto o primeiro constitui a "manifestação última e
mais extrema do liberalismo clássico, o naturalismo foi o primeiro reflexo de uma
nova concepção de Estado: o Estado social" (MIR PUIG, 1976, p.209)
Foi na Alemanha, pois, que o positivismo jurídico deu lugar ao
nascimento da Dogmática Penal e é na matriz alemã (Binding, Von Liszt e Beling)
que se inspira, como já afirmamos, a reação tecnicista em Itália.

- O Modelo de Ciência Penal de K.BINDING

Apontado, pois, como o primeiro grande representante do positivismo


jurídico que se caracterizou pela pretensão de construir uma Ciência do Direito
Penal positivo especificamente jurídica e liberada de influências jusnaturalistas e
sociológicas 75. BINDING pode ser situado como a matriz decisiva para a
consolidação do paradigma dogmático na Ciência Penal.
Neste sentido assinala KAUFMANN (1976,p.345) que EBERHAR
SCHMIDT conferiu à obra de BINDING o devido destaque no quadro da
história dogmática do Direito penal, designando-a como a "expressão mais
grandiosa" dum "positivismo erigido sobre a base duma concepção visceralmente
liberal do direito e do Estado."

74Cfr. MIR PUIG, 1976, p.208 e 1982, p.10; BUSTOS RAMÍREZ, in BERGALLI e
BUSTOS RAMÍREZ, 1983a, p.35)
75. Cf.MUÑOZ CONDE, 1976, p.109; MIR PUIG, 1976, p.208 e 1982, p.10;BUSTOS
RAMÍREZ,in BERGALLI e BUSTOS RAMÍREZ, 1983a, p.35
Em um artigo escrito em 1881, denominado "Strafgesetzgebund,
strafjustiz und Strafrechtswissenschaft in normalen Verhalniss zueinander"
("Legislação Penal, Justiça Penal e Ciência do Direito Penal em uma relação
normal entre elas") na "Zeitschrift für die gesamte strafrechtswissenshaft"
("Revista para um modelo integral de Ciência do Direito Penal") dirigida por VON
LISZT, BINDING, após destacar as falhas da doutrina alemã até então, conclui
que a Ciência Penal, como Ciência Jurídica, tem uma dupla missão: servir de guia
à prática presente e futura, mas, em ambos os casos, de "lege lata" ou de "lege
ferenda", ela deve ser e seguir sendo uma Ciência do Direito Positivo.
Em seu "Handbuch des deutschen Strafrechts" (Manual de Direito Penal
alemão), publicado em 1885, se mantém fiel à tarefa da Ciência Penal como tarefa
da "Ciência do Direito Positivo" e tarefa da "Dogmática do Direito permanente",
fixando de forma incisiva sua delimitação e tarefa e excluindo energicamente a
possibilidade e a legitimidade de uma "Filosofia do Direito Penal", entendida como
Ciência do Direito Penal, que teria por objeto um suposto e inexistente Direito
Penal Natural, Racional ou Ideal. (ROCCO, 1982, p.57-8)
A reação de BINDING (citado por ROCCO, 1982, p.57-8) então é mais
dirigida contra a herança jusnaturalista ainda persistente na tradição jurídica alemã:

"(...) pois bem, não existe nenhum direito eterna e imutável que o
homem possa conhecer, nenhuma filosofia estável do direito que esteja
em condições de oferecer algo diferente das idéias fundamentais do
direito que regeu ou rege ainda, nenhuma filosofia do direito que seja
algo distinto da jurisprudência, nenhuma jurisprudência que seja algo
alheio à Ciência do direito positivo. Toda tentativa de submeter a
Ciência do direito penal aos preceitos do direito natural de qualquer
sistema filosófico é, portanto, um ataque sobremaneira retrógrado a
sua liberdade, concebido como delimitação estreita de sua matéria e
dirigido contra a unidade de seu objeto."

Todavia, como sustenta KAUFMANN, se a adesão de BINDING ao


approach juspositivista no sentido acima ilustrado - delimitação da Ciência Penal
ao estudo do Direito Penal positivo - não comporta a menor dúvida, pois toda sua
obra se exprime numa linguagem inequivocamente reveladora dele, associada a
uma categórica rejeição do Direito Natural, BINDING trai a correlata exigência
juspositivista de excluir juízos de valor ou referências à realidade meta-jurídica na
tarefa dogmática. Pois, não tendo deduzido seus dogmas direta ou indiretamente
da letra da lei, mas da 'natureza das coisas', isto é, do conhecimento - verdadeiro
ou suposto - das estruturas lógico-reais que formam o quadro e o arcabouço da
matéria jurídica, da "lógica" ou das "conquistas da teoria" é precisamente aí que
se situa o limite de seu juspositivismo. (KAUFMANN, 1976,p.347 e 351)
Conclui então que

"(...) assume importância decisiva a constatação de que no terreno dogmático Binding foi tudo menos um
positivista. Baseia-se nas estruturas lógico-reais que antecedem qualquer direito positivo pelas 'formas
apriorísticas do direito', tal qual ele as reconhece ou supõe reconhecidas." (KAUFMANN, 1976, p.352)

Nesta perspectiva pode-se dizer que BINDING representa a


continuidade e a culminação da herança iluminista materializada na Escola
Clássica de forma que

"Se encerra esta etapa com o racionalismo positivo de Karl Binding,


que culmina o trabalho levado a cabo pelo racionalismo herdado do
Iluminismo. (...) Com isso se consuma a configuração da escola clássica
do direito penal e se dá a base de sustentação a todo o pensamento
dogmático penal até nossos dias. (...) Com ele se completa o trabalho
racionalista iniciado por Fuerbach ao interior do Estado de direito."
(BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.124)

- A Escola sociológica alemã e o modelo de Ciência integral


(global, universal, total, ou conjunta) do Direito Penal de V.LISZT
V. LISZT, fundador e maior expoente da "Escola Sociológica" ou
"Jovem Escola" alemã, de postura eclética entre a Escola Clássica e a Positiva, 76
também representa uma das matrizes fundacionais do paradigma dogmático na
Ciência Penal.
Mas o modelo de "Gesamte Strafrechtswissenshaft" ("Ciência Integral
do Direito Penal") por ele formulado em torno de 1886, ao mesmo tempo em que
senta as bases do paradigma dogmático na Ciência Penal é um modelo
nitidamente conciliador das relações entre o positivismo jurídico e o
criminológico; entre a Dogmática Penal e a Criminologia, tratando de fixar o
objeto, o método e os fins de ambas as disciplinas.
Daí sua conhecida polêmica com BINDING na medida em que reclama
a tomada em consideração dos dados naturalísticos e sociológicos na elaboração
dos preceitos jurídicos.
Assim para LIZST77, na Ciência do Direito Penal, as normas são o
objeto, a lógica o método e sua primeira tarefa consiste no puro estudo técnico-
jurídico da legislação penal; na consideração do delito e da sanção como
generalizações conceituais (claro está, jurídicas); em sistematizar totalmente as
prescrições individuais da Lei, chegando até os primeiros conceitos fundamentais
e os princípios básicos; em apresentar, na parte especial do sistema, as diversas
infrações e as diferentes sanções correspondentes e na parte geral, o conceito de
delito e de sanção em geral. Consiste, em síntese, na consideração puramente
técnico-jurídica, apoiada na legislação penal, do delito e da pena como

76.E que correspondeu, na Itália, à "Terza Scuela", com MANUEL CARNEVALE, BERNARDINO
ALIMENA e JUAN B.IMPALLOMENI, que também se preocupava com a "autonomização" da
Ciência Penal

77. Citado por ROCCO, 1982, p.60; BACIGALUPO, 1982, p.56-7; COÑDE,1975, p.107-8 e
168; ROXIN,1972, p.18 e MIR PUIG,1977.
generalizações conceituais. Como Ciência eminentemente prática , que, por estar
sempre ao serviço da administração da justiça, encontra nesta fonte de constante
enriquecimento, a Ciência do Direito Penal deve ser caracteristicamente sistemática
e permanecer como tal. Pois, só a ordenação dos conhecimentos na forma de um
sistema garante aquele domínio seguro e imediato dos casos particulares, sem o
qual a aplicação do Direito é sempre diletantismo, abandonada ao acaso e à
arbitrariedade.
Em 1899, ao pronunciar sua aula inaugural em Berlim, LISZT (citado
por BACIGALUPO, 1982, p.57) reafirmava que "a Ciência do Direito Penal, em
primeiro lugar - e nisto somos da mesma opinião que a Escola Clássica - tem que
transmitir aos jovens juristas, ávidos de aprender, o cúmulo de normas jurídicas
segundo o método lógico-dedutivo."
A construção do sistema conceitual deveria seguir então três etapas
metódicas: a) recopilação do material de análise, ou seja, das normas, no direito
positivo; b)análise precisa das normas jurídicas e dos conceitos que nela se ligam
como sujeito e predicado e síntese dos resultados obtidos, isto é, dedução de
conceitos das normas jurídicas; c) sistematização segundo a classificação dos
conceitos e das proposições que os conectam entre si (SOLANO NAVARRO,
1990, p.181-2).
A Criminologia, ao contrário, não conhece outro método que o comum
a todas as demais Ciências: a observação objetiva e metódica de fatos dados e sua
tarefa é a investigação científica do delito em suas causas e efeitos; ou seja, a
busca das Leis que determinam a criminalidade. A tarefa da Política Criminal, que
passa a ser relevada a partir, precisamente, do seu modelo seria, enfim, a de
elaborar o conjunto sistemático de princípios fundados na investigação científica
das causas do crime e dos efeitos da pena segundo os quais o Estado deve
conduzir a luta contra o crime através da penas e das instituições conexas; ou seja,
elaborar as estratégias mais racionais para a prevenção e repressão do crime. 78
O modelo liszteano, procurando englobar num quadro
fundamentalmente unitário e harmonioso, as Ciências Penais em sentido amplo -
que deveriam guardar autonomia, ainda que relativa, em função daquela unidade -
acentuava que apenas o conjunto destas Ciências poderia lograr o controle e
domínio do inteiro problema do crime. E que sua reunião funcional era necessária
na luta contra a criminalidade. (DIAS e ANDRADE, 1984, p.93)
Assim, a Ciência Integral de VON LISZT entendeu a "integração" entre
Dogmática Penal, Criminologia e Política Criminal em função de fins práticos. É
que para cumprir sua tarefa especificamente dogmática (elaboração sistemática
dos conceitos que servem à aplicação do Direito Penal) a Ciência Penal tem que
recorrer a conhecimentos e experiências criminológicas. Mas ela tem também que
assumir a tarefa de promotora e projetista da reforma penal, sendo a orientadora
do legislador na luta contra o delito. Não se trata, pois, no modelo liszteano, de
uma integracão das Ciências Penais ao nível metodológico mas de uma mera
"reunião funcional" vinculada ao papel social asignado ao penalista como
orientador do juiz e do legislador ("político-criminal"). (BACIGALUPO, 1982,
p.56-8)
Nele, portanto, contrariamente ao modelo ferriano, a Dogmática e a
Criminologia preservam sua autonomia metodológica e a função da Ciência Penal
vincula-se tanto à aplicação judicial quanto à reforma do Direito Penal.
Desta forma, LISZT caracteriza a "Ciência Integral do Direito Penal" , a
um só tempo, como Ciência Social e como Ciência Jurídica . E neste duplo

78Cfr.
ROCCO, 1982, p.60; BACIGALUPO, 1982, p.57 e CÕNDE, 1975, p.107-8 e
ANDRADE, 1983, p.34
caráter, enquanto corresponde à Política Criminal desempenhar a chamada
missão social do Direito Penal, compete à Dogmática Penal desempenhar a função
liberal do Estado de Direito, assegurando a igualdade na aplicação do Direito e a
liberdade individual frente ao ataque do "Leviathan". (ROXIN,1972, p.16)
Nas palavras do próprio LISZT (citado por MIR PUIG, 1976, p.220):

"(...) por muito paradoxo que possa resultar, o Código penal é a Magna
Carta do delinqüente. Não protege a ordem jurídica, nem a
coletividade, mas o indivíduo que se levanta contra ela. Outorga-lhe o
direito de ser castigado apenas sob os pressupostos legais e unicamente
dentro dos limites legais. O duplo aforismo: nullum crimen sine lege,
nuela poena sine lege é o bastão do cidadão frente à onipotência
estatal, frente, ao desconsiderado poder da maioria, frente ao
'Leviathan'. Há anos venho caracterizando o Direito penal como 'o
poder punitivo do Estado juridicamente limitado'. Agora posso
acrescentar: o Direito penal é a infranqueável barreira da Política
criminal."

Especialmente destas afirmações do Direito Penal, por um lado, como


a "Magna Carta do delinqüente" e, por outro, como "a infranqueável barreira da
Política Criminal" imortalizadas nas citações clássicas dos penalistas, ressalta da
conciliação liszteana a centralidade todavia conferida à Dogmática Penal, em
torno do qual a Criminologia e a Política Criminal deveriam gravitar, como suas
Ciências Auxiliares.
FIGUEIREDO DIAS e JORGE ANDRADE (1984, p.94) vão, neste
sentido, aos fundamentos do modelo:

"Esta concepção supunha a possibilidade de uma resposta à questão


das relações e da hierarquia entre as três disciplinas que compunham
aquela Ciência global. Os fundamentos para uma tal resposta
encontravam-se na concepção jurídico-política do Estado de Direito
formal, de cariz liberal, e numa teoria jurídica de cunho estritamente
positivista. Daqui que, no contexto daquelas três disciplinas, o Direito
Penal, como ordem de proteção do indivíduo - em particular dos seus
Direitos subjetivos - perante o poder estatal, e como conseqüente ordem
de limitação desse poder, assumisse o primeiro e indisputado lugar,
enquanto na Criminologia e na Política Criminal nada mais se via que
meras Ciências Auxiliares da Dogmática Jurídico-Penal. "
Em definitivo, portanto, LISZT não renuncia à herança liberal de
maximização da segurança do cidadão, mas fortalece-a, acreditando que ela é
compatível com um Direito Penal que intervenha ativamente na vida social.

5.3. Da luta escolar à disputa científica Criminodogmática

Se o modelo de FERRI expressava a hegemonia do positivismo


criminológico sobre o positivismo jurídico e, pois, da Criminologia sobre a
Dogmática, que era concebida como um ramo daquela; se o modelo de
BINDING expressava uma absoluta hegemonia do juspositivismo e da Dogmática
Penal; se o modelo de LISZT, aparentemente o mais conciliador entre o
positivismo jurídico e o criminológico, acabava expressando também a hegemonia
da Dogmática sobre a Criminologia, vista como Ciência Auxiliar; o modelo de
ROCCO, tal como o de BINDING e LISZT expressava a hegemonia juspositivista
do paradigma dogmático, deixando apenas, tal como neste último, um espaço
apenas auxiliar para a Criminologia.
Pode-se constatar assim que as divergências entre os modelos
propostas não era, substancialmente, sobre a identidade que a Ciência Penal e a
Criminologia deveriam assumir, pois a matriz etiológica e a dogmática é,
guardadas suas diferenças internas, a mesma em todos eles. As divergências
radicavam, fundamentalmente, na abrangência e funções atribuídas a ambas as
disciplinas.
A originária luta entre as Escolas penais (jusracionalismo e positivismo
criminológico), foi, assim, se convertendo em uma divisão do trabalho científico e
numa disputa pela hegemonia entre Dogmática Penal e Criminologia (positivismo
jurídico e criminológico) que demarca, pois, um momento subseqüente de
definição e consolidação de domínios científicos no bojo, mas para além da
reforma penal intervencionista.
Por um lado, a disputa entre positivismo jurídico e positivismo
criminológico, herdeira da luta do positivismo criminológico contra o
jusracionalismo expressava, ainda, o contexto da transição do Estado de Direito
liberal para o Estado de Direito intervencionista e da conseqüente transição, que
ela possibilitava, de um controle Penal liberal para um controle intervencionista,
diretamente simbolizada na exigência instrumental de uma segunda reforma penal.
Nesta perspectiva, se o modelo juspositivista de BINDING pode e tem
sido considerado como o último liberal "puro" (BUSTOS RAMÍREZ, 1984,
p.124) os modelos de FERRI e LISZT aparecem latentemente condicionados por
aquele contexto ao enfatizar, precisamente, a função "político-criminal" então
encomendada ao jurista; ou, mais exatamente, que o jurista estava, naquele
momento, interpelado a desempenhar a qual, de resto, ROCCO também enfatiza
ao nível da "crítica" externa preconizada em seu método.
Não obstante FERRI acaba por subestimar, enquanto LISZT reitera a
abrangência e a função da Dogmática Penal ao nível da aplicação do Direito Penal.
O modelo de LISZT era, portanto, não apenas o que melhor expressava a
passagem do Estado liberal ao social e as exigências de reforma penal que esta
transição demandava, mas ao mesmo tempo as exigências de "conciliação" entre
Dogmática Penal e Criminologia. Por isto mesmo, como veremos a seguir, foi o
modelo decisivo na definição da relação oficial entre Dogmática Penal e
Criminologia.
Por outro lado, contudo, tratando-se da maturação última das linhas
originárias do modelo de controle penal instaurado desde o Iluminismo esta
disputa possuía um alcance que transcendia o contexto reformista.
6. Consolidação do paradigma dogmático de Ciência Penal e sua relação
com o paradigma etiológico de Criminologia: autonomia metodológica
e unidade funcional na luta contra o crime

O modelo de Ciência Penal que se projetava, pois, desde BINDING,


passando por LISZT até Rocco era, precisamente, o paradigma dogmático
configurado desde o historicismo e já consolidado no âmbito científico do Direito
Privado (civil e comercial) e outros ramos do Direito Público, sendo recebido, por
intermédio destas matrizes, no campo penal.
Sendo " a última fazer sua aparição como Ciência Jurídica" a Ciência
Penal consolida-se como Dogmática primeiramente na Alemanha (BETTIOL,19--,
p.102) a partir da década de 70 do século XIX, aproximadamente, encontrando
em BINDING e VON LISZT suas matrizes fundacionais mais destacadas e na
Itália a partir da primeira década do século XX com a Escola Técnico-Jurídica
inspirada nas matrizes alemãs.
E reitera-se, aqui, o potencial universalista que preside ao paradigma
dogmático desde sua gênese, ilustrado precisamente por WELZEL (1974, p.9) ao
destacar a difusão espaço-temporal que o paradigma logo alcançou, isto é, o sua
"transnacionalização":79

"A dogmática, aprimorada na Alemanha, no último século, foi acolhida,


com fundadas razões, em muitos sistemas jurídicos estrangeiros: na
Grécia, Itália, Espanha, Portugal, América do Sul, Japão, Coréia, sem
falar na Áustria e Suíça. E sistemas jurídicos que ignoravam esta

79. O mesmo potencial verifica-se na Criminologia que, conformada segundo o paradigma etiológico
experimentou o mesmo fenômeno de transnacionalização. A respeito ver OLMO (1984,
especialmente p. 81-122) Neste sentido, tal como destacamos relativamente à construção do
saber clássico (no final da nota "10" acima) se, por um lado, a construção dos modelos dogmático
e criminológico encontrava-se condicionada por contextos históricos determinados continha, por
outro lado, um forte potencial universalista que possibilitou, precisamente a sua transnacionalização.
dogmática, empenharam-se em aproximar-se dela, por exemplo, os
Estados Unidos da América do Norte."

Quanto às relações entre Dogmática Penal e Criminologia pode-se


constatar que após uma prévia hegemonia do positivismo criminológico - que
encontrava na "ditadura" do cientificismo e nas exigências de reforma penal um
terreno extremamente fértil, embora transitório, para tal - foi a Dogmática Penal,
centralizada na aplicação do Direito Penal ( mas também, doravante, orientadora
da sua criação legislativa) quem hegemonizou a disputa e o universo das Ciências
Penais.
Com efeito, a Criminologia pode obter hegemonia sobre o saber
jurídico clássico e dogmático, não casualmente, no momento da segunda reforma
penal porque se tratava, precisamente, de deslocar o foco do Direito Penal para o
autor, normativizando os princípios positivistas para maximizar o controle do
crime num contexto de declarado aumento da criminalidade - lembre-se o
discurso de FERRI.
Mas, quando se tratou de pontualizar o quadro das Ciências Penais
para além do contexto reformista não apenas ambas se demonstraram
necessárias para instrumentalizar a aplicação do Direito Penal reformado como a
Criminologia pode passar à condição de Ciência Auxiliar da Dogmática Penal.
É que o emergente Direito Penal intervencionista sobre a criminalidade -
e o indivíduo delinqüente - deveria manter a estrutura normativa e conceitual
garantidora do Direito Penal liberal que, modelada desde o saber iluminista-
reformista encontrava na Dogmática Penal sua última - e científica - expressão.
No modelo oficial que então se consolidou no século XX e perdura até
nossos dias não haverá uma redução sociológica da Dogmática penal nem um
abandono da Criminologia mas uma "relativa" autonomia metodológica de cada
paradigma e uma relação de auxiliariedade da Criminologia em relação à
Dogmática penal.
Enquanto a Dogmática Penal, Ciência normativa, terá por objeto as
normas jurídico-penais e por método o técnico-jurídico (dedutivo) a Criminologia,
Ciência causal-explicativa terá por objeto o fenômeno da criminalidade estudado
segundo o método experimental (indutivo) cabendo-lhe desempenhar uma "função
auxiliar tanto do Direito Penal como da Política Criminal oficial".
(BARATTA,1983b, p.149)
Relativamente à Dogmática Penal lhe incumbirá, pois
"(...) a função auxiliar de subministrar-lhe os conhecimentos
antropológicos e sociológicos necessários para dar um fundamento
ontológico e naturalista à tarefa de construção conceitual e de
sistematização que, partindo da lei penal positiva, leva a cabo essa
dogmática."(BARATTA, 1982[a], p.29)

PABLOS de MOLINA (1988, p.119) sintetiza o perfil oficial que tal


modelo assumiu, ao assinalar que se compartilha (doravante) na comunidade
científica a opinião de que a Criminologia, a Política Criminal e a Direito Penal
dogmático são os

"(...) três pilares do sistema das 'Ciências criminais', reciprocamente interdependentes. A Criminologia está
chamada a aportar o substrato empírico do mesmo, seu fundamento 'científico'. A Política Criminal, a transformar
a experiência criminológica em 'opções' e 'estratégias' concretas assumíveis pelo legislador e os poderes
públicos. O Direito Penal, a converter em proposições jurídicas, gerais e obrigatórias, o saber criminológico
esgrimido pela Política Criminal com estrito respeito das garantias individuais e dos princípios de segurança e
igualdade próprios de um Estado de Direito."

Se a Criminologia e a Dogmática vão doravante "marchar cada uma por


um caminho, sem relação entre si, como dois mundos distintos, inclusive falando
idiomas diferentes" como afirma CÕNDE (1975, p.113 e 1979, p.8) esta
separação só é verossímel ao nível metodológico e cognoscitivo, pois vão
marchar, funcionalmente, num ritmo compassado.
Pode-se caracterizá-lo, neste sentido, como um modelo relativamente
desintegrado a nível metodológico (objeto e método diferenciados) mas
funcionalmente integrado (convergência funcional) na luta, então declara-se,
"cientificamente" racionalizada contra a criminalidade, onde a hegemonia pertence
à Dogmática Penal.
Com efeito, foi - diga-se mais explicitamente - o Direito Penal
Dogmático (Legislação e Ciência Penal Dogmática) que assumiu a centralidade no
quadro das Ciências Penais, em torno do qual a Criminologia e a Política Criminal
gravitarão, como suas Ciências Auxiliares.
Desta forma, se após a luta entre as Escolas e a disputa
criminodogmática se chegou a um modelo relativamente "equilibrado" entre as
Ciências Penais, tal

"(...) equilíbrio assentava no primado absoluto do Direito Penal que


definia o espaço em que operavam tanto a Criminologia como a
Política Criminal. A primeira investigando as causas do crime
(legalmente definido), a segunda elaborando as estratégias mais
racionais para prevenção e repressão do crime." (ANDRADE, 19--,
p.33)

Trata-se de uma centralidade ideologicamente condicionada porque à


Dogmática Penal "como via por excelência para afastar a aplicação do Direito
Penal do acaso e do arbítrio, cabia competência exclusiva para determinar o quê,
o se e o como da pubilidade." (DIAS e ANDRADE, 1984, p.94)
À Dogmática caberá o estatuto de Ciência "stricto sensu" do Direito
Penal enquanto às demais caberá a condição de "Ciências Auxiliares"
precisamente porque é nela que a promessa iluminista de segurança jurídica
encontra sua última - e científica- versão.
Indubitavelmente, a definição deste modelo deve seu maior tributo à
LISZT, pois é precisamente na "Gesamte Strafrechtswissenschaf" que esta
construção conheceu sua formulação mais explícita e acabada.
Conseqüentemente, se define contra FERRI e a favor de LISZT, como
também de ROCCO - a relação Criminodogmática, pois

"(...) o fracasso do modelo de integração de Ferri teve como conseqüência que a Criminologia causal-explicativa,
orientada pela idéia de prevenção especial, reduzira os limites de sua influências aos fixados por V.Liszt."
(BACIGALUPO, 1982, p.63)

7. Do saber filosófico e totalizador à especialização e neutralidade das


Ciências Penais: da fundamentação jusfilosófica à fundamentação
científica da segurança jurídica

O moderno saber penal se constitui e demarca, portanto, na esteira da


herança iluminista à herança positivista em suas diferentes expressões e nesta
trajetória secular, em que se constituem os paradigmas penais fundamentais da
modernidade e as duas grandes linhas que vimos denominando "Direito Penal
do fato" e "Direito Penal do autor", vai mudando de estatuto, ao mesmo tempo
em que resguardando uma certa continuidade.
Assim, da segunda metade do século XVIII a finais do século XIX o
universo do saber penal experimenta uma trajetória que vai de um saber
filosófico, crítico e totalizador, característico da época das luzes e do saber
reformista, a um saber que, dominado pelas exigências epistemológicas do
positivismo, postula a cientificidade, a neutralidade e a especialização de modo
que "a primazia da política no conhecimento criminal própria do Iluminismo é
assim negada." (PAVARINI,1988, p.43)
O saber penal vai perdendo seu caráter globalizante e eminentemente
político, passando a ter lugar uma visão atomizada e compartamentalizada da
questão criminal.
Com efeito, quando

"(...) se fala do período iluminista, não se pode analisar apenas um aspecto do fenômeno penal, mas também há que
os compreender a todos e, em tal medida, os autores iluministas além de penalistas eram também político-
criminais e criminólogos. Assim nasce a Ciência penal do século XIX, mas ela perderá rapidamente o caráter
global e crítico-prático que lhe deram os iluministas; cada uma das direções mencionadas tenderá a
unilateralizar-se. Do que se trata já não é de transformar o Estado, e sim mantê-lo, eliminando as falhas de
disfuncionalidade que o possam afetar. Isto muda totalmente a atitude dos novos pensadores do direito penal, que já
não têm uma visão totalizadora, mas atomizadora do fenômeno penal. Desse modo, uns se dedicam ao direito penal
exclusivamente, outros à Criminologia, e alguns à política criminal, sendo este ramo o que tem menos importância
até que aparece V. Liszt." (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.119)

O linha do "Direito Penal do fato" é precisamente aquela que, enraizada


nas luzes, é originariamente tecida com o fio de uma "Filosofia" crítica e
totalizadora (primeira fase da Escola Clássica) passando por uma "Jusfilosofia
penal" (segunda fase da Escola Clássica) e culminando na "Ciência Jurídico-
Penal" (Dogmática Penal), herdeira última das luzes na bifurcação positivista, e
cujo problema declarado e oficialmente assumido é a racionalização do poder
punitivo (limites e cálculo da violência punitiva) em nome da segurança do
indivíduo. Por isso mesmo, como veremos, será a linha da legitimação do poder
de punir pela legalidade.
Se há, portanto, redefinições no estatuto do saber que a constrói (já que
decodificada desde a Filosofia, passando pelo jusracionalismo e o
juspositivismo) ela mantém um ethos garantidor materializado numa promessa de
segurança jurídica ininterruptamente reiterada: eis aí sua continuidade ideológica.
Por outro lado, a linha do "Direito Penal do autor" que podemos
sinonimizar por "criminológica" é tecida, desde a sua gênese, com o fio do
cientificismo e de uma promessa de defesa da sociedade contra (certos)
indivíduos perigosos, demarcando, como veremos, uma linha parajurídica de
legitimação do poder punitivo.80
Assinalando a passagem de uma Filosofia para uma Jusfilosofia Penal e
abandonando a posição crítico-negativa que marca as suas origens, a segunda
fase da Escola Clássica assinala, já, o início um processo de diferenciação do
saber jurídico-penal no marco daquela Filosofia. Mas é com o positivismo e suas
exigências de cientificidade e divisão do trabalho científico - expressamente
enfatizadas, por exemplo, na obra de Arturo Rocco - que este processo
diferenciador atinge sua maturação, culminando, sob o signo da Ciência, com a
consolidação da Dogmática Jurídico-Penal.
Ao assinalar o trânsito, por sua vez, de uma fundamentação "filosófica"
para uma fundamentação "científica" do saber jurídico-penal, a Dogmática Penal
assinala não apenas a autonomização deste saber mas, simultaneamente, sua
divisão do trabalho com a Criminologia, quando então bifurcam-se as "Ciências
Penais". A ultrapassagem da luta entre as Escolas penais representa então, sob o
domínio positivista, a decisiva hegemonia da(s) Ciência(s) sobre a Filosofia.
Nesta perspectiva, a consolidação da Dogmática Penal é tributária, a um
só tempo, da herança iluminista e da herança juspositivista devendo ser situada no
prolongamento daquela promessa humanista de um Direito Penal de garantias que
reivindicava e sentava as bases, pois, de uma Ciência Penal de garantias em cujo
horizonte ela viria a desembocar.
Pode-se dizer neste sentido que com a Dogmática Penal a promessa de
segurança que chegou à legislação penal e à moldura originária de um Direito
Penal do fato via Filosofia Iluminista e Jusfilosofia penal, chega à aplicação judicial

80. É este saber que vai da Filosofia à Ciência do Direito Penal e da criminalidade, isto é, o saber
clássico, dogmático e criminológico que consideramos, ao longo desta tese, com "saber oficial" do
sistema penal.
do Direito Penal com o respaldo da Ciência incumbindo-lhe assegurar, na práxis
do Direito Penal, o que o saber pré-dogmático consolidou na sua programação
normativa.
Incumbe analisar, pois, a específica identidade que a Ciência Penal
assume no marco geral do paradigma dogmático e como se materializa em seu
âmbito esta promessa, na continuidade da linha de construção do Direito Penal
do fato. Tal é o objetivo do próximo capítulo.
CAPÍTULO III

ESPECÍFICA IDENTIDADE DA DOGMÁTICA JURÍDICO-


PENAL: FUNÇÕES DECLARADAS E METAPROGRAMAÇÃO
PARA O SEU CUMPRIMENTO

1. Introdução

No capítulo anterior procuramos situar o horizonte de consolidação da


Dogmática Penal, mostrando como esta se dá na esteira de um paradigma
dogmático de Ciência Jurídica já constituído e, simultaneamente, na esteira de
constituição do moderno saber penal em sentido amplo, ocorrendo paralela e
relacionadamente à consolidação da Criminologia (paradigma etiológico), no
prolongamento de um universo de questões enraizadas no Iluminismo.
A Dogmática Jurídico-Penal se constitui, portanto, como um
desdobramento disciplinar da Dogmática Jurídica, compartilhando estruturalmente
de sua identidade básica. É marcada, nesta perspectiva, por uma dependência
paradigmática ao mesmo tempo em que por uma relativa autonomia decorrente do
campo e da problemática penal específica em que se inscreve e no interior da qual
adquire seu sentido pleno.
A especificidade da Dogmática Penal em relação ao seu paradigma
geral traduz-se então, a nosso ver, em pelo menos quatro aspectos fundamentais:
a) numa complementar fundamentação epistemológica neokantiana: a
Dogmática Penal, enfrentando a questão de sua relação com a Criminologia
admite, ao final do processo de consolidação de seu próprio paradigma, uma
fundamentação epistemológica neokantiana complementar à juspositivista;
b) numa inspiração ideológica liberal: a Dogmática Penal, pela
específica identidade de seu objeto - normas penais relativas a delitos e penas - é
justamente a Dogmática parcial que circunscreverá, nos limites de sua estrutura
normativista, a problemática do monopólio da violência física pelo Estado
Moderno. E centralizando a função de racionalizá-lo o discurso liberal de limitação
do poder punitivo como garantia da segurança jurídica ocupará nela um lugar
central, condicionando, mais visivelmente, suas teorizações e construções
jurídico-penais;
c) numa específica projeção do método: a Dogmática Penal projeta o
respectivo método para uma específica construção da teoria do delito, que
apresenta uma trajetória particular;
d) numa ideologia especificamente penal: a Dogmática Penal é
constituída, também, por uma ideologia especificamente "penal": a "ideologia da
defesa social", que sintetiza a sua percepção básica sobre a problemática da
criminalidade e da reação penal.
Ao longo deste capítulo prosseguiremos na caracterização da
Dogmática Penal abordando precisamente esta especificidade. Seu objetivo é,
assim reconstituir a específica identidade (epistemológica, metodológica,
funcional e ideológica) da Dogmática Jurídico-Penal a partir de sua própria auto-
imagem situando, ao final, o universo da crítica interna (desenvolvida no âmbito
do próprio paradigma) e da crítica externa (desenvolvida desde o seu exterior) que
tem experimentado historicamente.

2. A recepção do neokantismo de Baden pela Dogmática Penal: em busca


de uma (re)fundamentação científica.
A recepção do paradigma dogmático na Ciência Penal arrasta consigo,
desde as suas matrizes fundacionais, a mesma tentativa de sua adequação à matriz
positivista de Ciência que acompanha o paradigma dogmático desde sua gênese.
É o que assinala BACIGALUPO (1989, p.461) ao situar precisamente
os modelos de Ciência Penal de LISZT, ROCCO e FERRI como as tentativas
fundamentais, embora alinhadas sob diferentes perspectivas, desta adaptação:
Pois se

"Como é sabido, para o positivismo, fora da lógica e das matemáticas


só existem conhecimentos científicos referentes a fatos sensivelmente
perceptíveis. As normas de direito penal, como tais e da forma em que
até então havia ocupado aos dogmáticos, não eram nem formas
lógicas, nem conhecimentos matemáticos, nem fatos perceptíveis pelos
sentidos: portanto, a ciência jurídica tradicional não era tal ciência ou
não podia sê-lo dentro deste marco teórico. Segundo o ideal científico
do positivismo, então, a cientificidade da dogmática penal dependeria
de que o objeto do conhecimento fossem fatos da experiência
sensível(empíricos).(...)
Esta questão não teve resposta uniforme dentro do campo do
positivismo. A cientificidade da dogmática penal ou da ciência do
direito tradicional (já que os positivistas preferiram não usar a
expressão "dogmática") foi defendida, pelo menos, com dois tipos de
argumentações que me permitiria qualificar de "integradoras" (Von
Liszt e Ferri) e de "desintegradoras" ( Rocco). A diferença reside no
tipo de reducionismo utilizado: as argumentações "integradoras"
procuram submergir a ciência jurídico-penal tradicional em uma
ciência empírica das causas do fenômeno criminal; as
"desintegradoras", ao contrario, trataram de reduzir as explicações
jurídico-penais ao esquema das relações causa-efeito."
(BACIGALUPO, 1989, p.460)

Mas, como conlui o mesmo autor(1989, p.462) da análise de cada um


desses modelos 81, globalmente considerados suas respostas geram reparos que
dificilmente podem superar-se no marco do positivismo.
Subsistindo para o paradigma dogmático de Ciência Penal as mesmas
dificuldades de uma fundamentação epistemológica segundo a matriz positivista

81.Desenvolvidamente, ver p. 461-463;


de Ciência, que apontamos no final capítulo primeiro, é na matriz neokantiana (de
Baden)82 que, já no século XX, buscará uma (re)fundamentação científica.
É que, precisamente com a intenção de superar o conceito positivista
de Ciência, o neokantismo tratou de distinguir entre as Ciências da Natureza e as
Ciências da Cultura, possibilitando inserir dentre estas últimas a Ciência Jurídica e
fundamentar seu caráter científico com um arsenal distinto do positivista. Em seu
marco, já não se trata de aproximar a atividade jurídica das Ciências Naturais,
mas de diferenciá-la delas e reencontrar sua especificidade (cultural) (COÑDE,
1975, p.110 e 1979, p.8)

Ao mesmo tempo,
"(...) o retrocesso experimentado a princípios do século XX pelo
positivismo naturalista, em razão do predomínio alcançado pelo
neokantismo valorativo, levou a uma nova consideração das relações
entre Criminologia e Direito Penal." (BUSTOS RAMIREZ, 1987, p.524)

Com efeito, se da concepção positivista de Ciência restavam excluídas


não apenas a Ciência Jurídico-Dogmática, mas todas aquelas que, como ela, não

82 .São
duas as escolas ou correntes filosóficas que, no século XX, marcam um retorno a KANT: a
Escola de Marburgo, que segue basicamente ao KANT da Crítica da Razão Pura (1781) e a
Escola de Baden ou Escola Sudoccidental alemã que segue ao KANT da Crítica da Razão Prática
(1788) ainda que ambas com semelhantes concepções gnoseológicas.
Os principais representantes da Escola de Baden - que aqui nos interessa - são WILHELM
WINDELBAND (1848-1915), HEIRINCH RICKERT (1863-1936), EMIL LASK (1875-
1915) e GUSTAV RADBRUCH (1898-1949), tendo os dois últimos orientado sua obra filosófica
para o jurídico ; isto é, para a metodologia da Ciência do Direito. No neokantismo de Baden, ao
contrário do neokantismo de Marburgo, - que se ocupou basicamente dos temas lógico,
epistemológico e metodológico nas Ciências Físicas e Matemáticas - encontramos uma reflexão
orientada para as Ciências da Cultura, especialmente em relação à história.
A respeito do exposto ver ESPARZA (1982, p.91)
Seus representantes se opõem à concepção puramente naturalista da realidade - típica do
positivismo - porque nega a especificidade das Ciências da Cultura. Assim, ao monismo naturalista
do positivismo, opõem o dualismo entre o mundo do ser naturalístico (a explicar) e o universo
axiológico-cultural (a compreender). Daí as classificações dicotômicas herdadas do neokantismo
de Baden: Ciências da Natureza -Ciências do espírito (DILTHEY); Ciências ideográficas-Ciências
nomotéticas (WINDELBAND) ou Ciências Naturais - Ciências Culturais (RICKERT).
empregavam o seu método e instrumentos, como a lingüística e a história,
colocava-se o interrogante, como disse LARENZ, sobre a possibilidade de
apreender, com os métodos das Ciências Exatas da natureza, o conjunto da
realidade suscetível de experiência. A resposta a esta questão, como tentou
demonstrar RICKERT, era evidentemente negativa.
Assim, continua LARENZ (1989, p.107-8):

"Havendo que responder negativamente a esta questão, estará


demonstrada a legitimidade e a necessidade de uma outra espécie de
ciências, justamente as ciências do espírito, e, com ela, de outros
métodos científicos além dos métodos das ciências da natureza. Foi tal
demonstração que empreendeu o filósofo HEIRINCK RICKERT, na sua
obra "Die Grenzen der naturwissenschaftliche Begriffsbindung" ('Os
limites da construção científico-natural dos conceitos') publicada em 1902.
Aí investiga, reportando-se à idéias que o filósofo WILHELM
WINDELBAND anteriormente exprimira, as bases epistemológicas e
metodológicas, primeiro das ciências históricas, e, depois, das ciências
da cultura em geral, restituindo, dessa forma, a tais ciências a
consciência metodológica de si mesmas, em face das ciências da
natureza."

Com estas indagações, RICKERT se torna o chefe de fila do


neokantismo sudoccidental alemão e suas idéias tiveram na época, na
metodologia da Ciência Penal, uma importância comparável à que teve, na do
Direito Civil, a Jurisprudência dos interesses. (LARENZ, 1989, p.108)
Na obra "Ciência Cultural e Ciência Natural", RICKERT dedica-se
sistematicamente ao dualismo metodológico que mais tarde retomarão LASK e
RADBRUCH, projetando-o para a metodologia da Ciência do Direito.
Divide as ciências particulares em dois grandes grupos: Ciências da
Natureza e Ciências da Cultura. Estas últimas, diferentemente das primeiras,
carecem, segundo RICKERT, de uma terminologia uniforme. E atribui a
diversidade terminológica com que são designadas (Ciências do Espírito, Ciências
Humanas, Ciências Sociais) à ausência de um conceito de Ciência da Cultura
geralmente admitido. Propõe-se, então, à análise dos problemas e métodos
comuns a todas elas, para logo diferenciá-las das outras ciências particulares.
Para RICKERT (1952, p.31-2) não existe um dualismo ontológico entre
natureza e cultura. A realidade é uma, não se cindindo em dois grupos de objeto
distintos. O que ocorre é que parte dos objetos da realidade não são mera
natureza, mas possuem uma especial significação: a possibilidade de sua referência
axiológica. Tais são os objetos culturais.
Assimilando a categoria 'compreensão' como a forma adequada para
conhecer os objetos culturais, RICKERT procura a possibilidade e
individualização das Ciências Culturais no método compreensivo (originado em
Dilthey). Enquanto os objetos naturais se explicam, mediante o emprego do
método causal-explicativo; os objetos culturais se compreendem, ou seja, se
conhece em sua dimensão axiológica.
RICKERT sublinha, portanto, que a distinção entre Ciências Naturais e
Culturais não está dada pelo seu objeto - em ambas, a mesma matéria fenomênica
- mas pelo método; ou seja, pelas categorias a priori mediante as quais o homem
pode conhecê-lo. Nesta concepção, o método determina o objeto.
Por isto, a

"(...) metodologia neokantiana era subjetivista, no sentido de que partia


da premissa de que o conhecimento científico, seja próprio das ciências
da natureza, seja das ciências do espírito, se acha condicionado por
categorias a priori da mente do sujeito. (...) para o neokantismo o
conhecimento científico é uma síntese de 'matéria', fornecida pela
experiência, e 'forma' ocasionada pelas categorias mentais. A realidade
fenomênica desordenada e amorfa constitui a 'matéria' de todo
conhecimento científico, tanto para as ciências naturais como para as
culturais. A diferença entre ambas as classes de ciências radica, pois,
não em seu objeto, mas nas distintas categorias subjetivas a priori que
se aplicam a um mesmo objeto. Neste sentido se diz que, segundo esta
concepção, não é o objeto, e sim o método, o que diferencia as diversas
classes de conhecimento científico. A conseqüência é que os valores não
residem no objeto mesmo (livre ao valor por amorfo), mas constituem o
resultado da aplicação a ele das categorias a priori do sujeito: os
valores não provêm do objeto mas do método, e, o que é mais
importante, não são objetivos, e sim subjetivos. Por esta via, o
subjetivismo epistemológico neokantiano levou ao relativismo
(gnosiológico) valorativo, tão calorosamente defendido antes da
Segunda Guerra Mundial por RADBRUCH." (MIR PUIG,1976, p.246)

Assim, na Ciência Histórica e, em geral, nas Ciências Culturais, não se


estabelecem valores, mas se descreve o objeto levando em consideração os
valores: elas não são "valorativas", mas referidas a valores. (RICKERT,1952,
p.147)
Emil LASK efetuou, pela primeira vez, o transplante destas concepções
para a metodologia da Ciência do Direito, considerando-a como um ramo das
Ciências da Cultura. LASK (citado por RADBRUCH, 1979, p.47-8) fala, por isso,
de um "método da Jurisprudência referido a valores e a fins". Ele põe em relevo
que tudo o que floresce no domínio do Direito perde o seu caráter naturalístico,
de algo liberto da referência a valores. O que vale, por exemplo, tanto para a coisa
em sentido jurídico como para a pessoa. A construção jurídica de conceitos tem
sempre uma "coloração teleológica".
Esta contraposição entre Ciências Naturais e Culturais inserindo no
interior destas últimas a Ciência Jurídica, segundo sua referência ao mundo dos
valores, foi aceita e continuada pelo filósofo e penalista RADBRUCH, que
reconhece expressamente como pano de fundo de sua filosofia jurídica as teorias
filosóficas de WINDELBAND, RICKERT e LASK.
Seu ponto de partida é o dualismo kantiano 83 da impossibilidade de
derivar o dever ser do ser e vice-versa . E tendo a Filosofia kantiana ensinado que
é impossível extrair daquilo que é aquilo que deve ser ( o valor, a legitimidade)
jamais alguma coisa será justa só porque é ou foi, ou mesmo só porque será .
(RADBRUCH,1979, p.48)
83 . Dualismo que, na realidade, provém de D.HUME, tendo sido transplantado por KANT para a
Teoria do conhecimento da mesma forma que por KELSEN para a Teoria Jurídica.
Assim sendo,

"(...)os juízos de valor e os juízos de existência pertencem a dois mundos completamente independentes que vivem
lado-a-lado um do outro, mas sem se penetrarem reciprocamente. E é esta consideração que está na base daquilo a
que chamamos dualismo metodológico." ( RADBRUCH, 1979, p.48)

O dualismo metodológico não afirma, portanto, que as valorações, os


juízos de valor, sejam independentes dos fatos, mas sim que os fatos não podem
servir de fundamento às valorações (RADBRUCH, 1979, p.50). É este dualismo
metodológico que está na base da distinção entre as Ciências Naturais (relativas ao
mundo do ser) e as Ciências Culturais (relativas ao mundo do dever ser), entre as
quais se insere a Ciência Jurídica.
O fato a estudar por ambas as ciências pode ser o mesmo: a energia
atômica, por exemplo; mas enquanto o físico nuclear não tem de enfrentar, ao
estudar a estrutura do átomo, problemas valorativos, o jurista, ao contrário, tem
que conectar este fato com determinadas considerações axiológicas, regulá-lo,
delimitá-lo e estudá-lo em função destas valorações. Toda atitude racional e
sistemática para compreender ou explicar a realidade é, portanto, Ciência. A
diferença reside unicamente no método empregado: axiológico, nas Ciências
Culturais; ontológico, nas Ciências Naturais.

A Ciência do Direito é, pois

"(...) uma ciência cultural compreensiva e como tal tem a caracterizá-la três notas fundamentais. Ela é
simultaneamente: (a) compreensiva, (b) individualizadora, e (c) referencial a certos valores (wertbeziehend)."
(RADBRUCH, 1979, p.240)

O dualismo metodológico neokantiano possibilitava uma delimitação


cientificamente fundamentada de campos: a Criminologia, Ciência da Natureza,
estudaria seu objeto - o crime - do ponto de vista causal explicativo (método
experimental) e a Dogmática Penal, Ciência Cultural, estudaria seu objeto, as
normas penais, do ponto de vista compreensivo-axiológico (método
compreensivo). Na mesma medida em que os objetos naturais se explicam, os
objetos culturais se compreendem. E ambas as atividades são científicas e
legítimas.
Foi assim que o neokantismo se prestou para dar uma fundamentação
científica à Dogmática Penal, ao mesmo tempo em que reiterar a fundamentação
científica da Criminologia obtida desde o positivismo e para consolidar a
separação metodológica entre ambas que está na base do modelo oficial de
Ciências Penais.
De qualquer modo, a Criminologia mantinha sua posição de
auxiliariedade em relação à Dogmática Penal84 ficando então reduzida a

"(...) uma disciplina auxiliar, subordinada, cuja única função é apresentar dados às disquisições conceituais
valorativas do Direito Penal, o que por sua vez podia utilizá-los 'arbitrariamente' já que se tratava sempre
definitivamente de um problema jurídico (valorativo) e não puramente natural(...)." (RAMÍREZ, 1987, p.524)

Mas se a refundamentação neokantiana da Dogmática Penal como


Ciência Normativa e Cultural (ou do espírito) abertamente contraposta ao modelo
das Ciências da Natureza e das dedutivas , como as Matemáticas e a Lógica
prestou-se para legitimar as normas penais como seu objeto e sua atividade
como científica ela soa, contudo, a reminiscências naturalistas e positivistas
((MIR PUIG, 1982, p.11 e BACIGALUPO, 1989, p.463).

84 . Referindo-se ao quadro das Ciências penais latino-americanas ZAFFARONI(1991, p.44) assinala


neste sentido que "(...) a criminologia etiológica latino-americana, sem deixar de ser positivista,
converteu-se logo no complemento ideal do Direito Penal mais ou menos neokantiano. (...) O
discurso jurídico-penal neokantiano não corria risco algum, e até saía fortalecido com o aparente
escoramento dos dados de uma "Ciência Natural".
E isto porque o conceito de realidade da matriz neokantiana coincide, ao
invés de superá-lo, com o conceito de realidade da matriz positivista de ciência
que está na base, por sua vez, do approach juspositivista da Dogmática Penal.
E a coincidência deste conceito

"(...) faz com que o neokantismo limite, como o [jus] positivismo, o objeto da ciência do Direito penal ao Direito
positivo. Só ele constitui um dado da experiência empírica, único modo científico de estar de acordo com a
realidade. Os neokantianos firmavam aqui o delineamento de von Liszt: além da realidade empírica e, portanto,
além do Direito positivo, cabe apenas a 'crença', âmbito da filosofia, mas não da ciência." (MIR PUIG, 1982, p.244-
5)

Cabe razão, pois, à crítica proveniente de WELZEL85 de que a filosofia


do Direito neokantiana não foi uma teoria superadora, mas "complementar" do
positivismo jurídico, na medida em que não modificou o "objetivo", mas tão-
somente aduziu-lhe o "subjetivo".

Neste sentido,

"(...) o neokantismo buscou uma fundamentação epistemológica das ciências do espírito - e do Direito - que
satisfizesse o [jus]positivismo. Pretendeu 'superá-lo' sem o contradizer, para o qual se limitou a 'complementá-lo'
subjetivamente (...). O resultado foi uma solução de compromisso aprisionada em um inevitável dualismo de 'ser' e
'dever ser', de realidade empírica livre de valor e significado valorativo da realidade ou, em terminologia de
RADBRUCH, de Stoff e Idee." (MIR PUIG, 1982, p.240)

Em decorrência desta superposição neokantiana ao positivismo jurídico


originário a identidade epistemológica da Dogmática Jurídico-Penal será mais "sui
gêneris" e híbrida ainda que o paradigma geral da Dogmática Jurídica.

85 . Ao acusar esta complementariedade e ao apelar para uma metodologia ontologicista Welzel


pretende, como veremos neste capítulo, chegar a uma posição além dela, isto é, superá-la.
De qualquer modo parece evidenciado, na perspectiva desta crítica que,
não obstante o discurso neokantiano (re)legitimador da cientificidade dogmática ,
um tal sincretismo metodológico
"(...) não afeta o núcleo da concepção da Ciência Jurídica como Ciência Normativa contraposta às Ciências
Empíricas que se ocupam da realidade social. Se trata de pinceladas realistas que só complementam ou matizam o
caráter normativo da Ciência do Direito" (MIR PUIG (1982, p.14-5)

Até porque, a fundamentação da Dogmática Penal como Ciência


normativa do espírito, teve lugar situando-se o Direito Penal no terreno espiritual
do mundo dos valores mais do que no da realidade social. (MIR PUIG, 1982,
p.11)
A recepção do neokantismo não implicou, portanto, uma mudança na
estrutura do paradigma dogmático de Ciência Penal, que seguiu ancorado num
approach juspositivista e supervalorizando os aspectos lógico-formais e técnicos
na sua tarefa de construção jurídico-penal86, não obstante o complemento, como
veremos, de elementos subjetivo-valorativos na construção da teoria do delito.
Por isto mesmo, a recepção do neokantismo pelo paradigma
dogmático de Ciência Penal só aparentemente pôs fim à discussão de sua
cientificidade e ao problema de sua identidade epistemológica.
Pois, se a nova qualificação epistemológica neokantiana

"(...) parecia ter resolvido definitivamente a questão! Mas não foi


assim. As objeções dirigidas por KIRCHMANN às ciências jurídicas
voltam a aparecer e desta vez se dirigem também às ciências sociais.
(...) As objeções contra o Direito como Ciência seguem sendo hoje as
mesmas que fazia KIRCHMANN: mobilidade do objeto de
conhecimento e falta de progresso." (MUÑOZ COÑDE,1975, p.113-4)

Mas, não obstante também subsistir a problematização (externa) de


sua cientificidade - como, de resto, do paradigma genérico da Dogmática Jurídica
86 . Constatação que, de resto, aparece inteiramente corroborada pelo discurso dos penalistas
dogmáticos que a seguir trazemos à colação.
- é com a identidade de uma "Ciência Normativa" ou "Normativa e Cultural" que
será concebida no interior de seu paradigma e atravessará o século XX, como
veremos a seguir.

3. A auto-imagem da Dogmática Jurídico-Penal

Seguindo nosso argumento da dependência paradigmática e relativa


autonomia, podemos afirmar que a auto-imagem da Dogmática Jurídico-Penal é,
estruturalmente, a mesma de seu paradigma genérico,87 com a especialidade que o
Penal encerra e complementada, às vezes, por uma roupagem neokantiana
culturalista.
A Dogmática Penal é assim concebida, pelos membros da comunidade
científica (penalistas) que protagonizam e compartilham seu paradigma, como
"a" Ciência do Direito Penal, pretendendo-se distingui-la pelo seu objeto, método,
tarefa e função.
No capítulo anterior já antecipamos uma ilustração desta auto-imagem
com os modelos de K. BINDING, V. LISZT e A. ROCCO na condição de
matrizes da Dogmática Penal.
É importante ilustrá-la, contudo, para além de seus momentos
fundacionais, trazendo à colação o discurso de alguns dos mais importantes
penalistas dogmáticos brasileiros, pois, com esta ilustração fica evidenciada a
recepção e a vigência do paradigma dogmático na Ciência Penal brasileira.
Constatando-as afirma, por exemplo, BENEDICTO DE SOUSA (1982,
p.56-7)que o tecnicismo jurídico-penal

"(...)tornou-se tanto aqui como em outros países, por influência principalmente de ARTURO ROCCO e
VINCENZO MANZINI, e, por conseqüência, do Código Penal italiano de 1930, a doutrina dominante. A maior

87 . Conforme a caracterizamos na "Introdução" do primeiro capítulo.


parte dos doutrinadores e expositores brasileiros de Direito Penal, se posicionaram, já nas primeiras décadas
deste século, dentro dessa orientação."

Assim HUNGRIA (HUNGRIA e FRAGOSO, 1980, p.105-7)


despontando entre os penalistas dogmáticos mais clássicos escreve:

"A Ciência do Direito Penal somente pode consistir no estudo da lei penal em sentido lato ou do complexo de
normas jurídicas mediante as quais o Estado manifesta o seu propósito de coibir a delinqüência. (...) Este, o
irrefragável postulado do chamado tecnicismo jurídico-penal.
......................................................................................................
Se não fazemos nítida separação entre ciência penal, que tem por objeto o estudo do direito penal positivo e as
teorias ou hipóteses de trabalho (Arbeithpothese) sob o rótulo genérico de 'criminologia' ou 'ciências
criminológicas', não poderemos evitar uma confusão babélica de idiomas, e tudo resultará na desorientação e na
perplexidade. A autêntica Ciência Jurídico-Penal não pode ter por objeto a indagação experimental em torno ao
problema da criminalidade, mas tão somente a construção do direito penal através de normas legais. Parte de
premissas certas, que são as normas jurídicas, para chegar, logicamente, a conclusões certas.
......................................................................................................
É a Dogmática Jurídico-Penal ou Jurisprudência Penal, tomado o vocábulo jurisprudência no sentido romanístico. (...)
Trata-se de uma ciência normativa, e não causal-explicativa. Tem por objeto, como adverte GRISPIGNI, não o ser, o
Sein, mas o dever ser, o Sein Sollende, que são os mandamentos ou preceitos legais. Seu método, seu único método
possível é o técnico-jurídico ou lógico-abstrato. Seu processus é o mesmo de todas as ciências jurídicas: o estudo
das relações jurídicas (...), construção lógica dos institutos jurídicos (...) e, finalmente, a formulação do sistema, que
é a mais perfeita forma do conhecimento científico.
......................................................................................................
A Ciência penal não se exaure numa pura esquematização rígida de princípios neutros, pois que é a ciência de um
direito eminentemente modelado sobre a vida e para a vida. Não se pode isolar-se desta."

SIQUEIRA (1950, p.22-3) escreve, no mesmo sentido que

"(...) o método próprio do Direito Penal, enquanto ciência prática, é o subjetivo ou de observação interna, com os
subsídios complementares do objetivo ou externo. É o chamado método técnico-jurídico que (...) toma como base (...)
os textos legais ou a legislação repressiva vigente porque, (...) só essa legislação ou direito positivo constitui uma
realidade atual; (...) Dada essa base para a construção da Ciência Jurídica, é de se ver logo que outro método não
pode ser empregado senão o técnico-jurídico. (...) A Ciência, portanto, do direito positivo, isto é, a Dogmática
Jurídica, (...) é, e ficará sempre, uma disciplina de natureza lógico-abstrata."

Relatando como se opera a construção científica do Direito, segundo a


JHERING, o mesmo penalista (1950-24) faz suas, a seguir, as palavras de LISZT
sobre a função oficial da Dogmática Penal:
"Como Ciência eminentemente prática, a trabalhar incessantemente a bem das necessidades da administração da
justiça e dela recebendo sempre a força que vivifica, o Direito Penal é, e deve ser, a Ciência propriamente
sistemática; pois somente a disposição dos conhecimentos em sistema torna possível sujeitar ao império dos
princípios todas as particularidades, e, sem esse pronto e seguro império, a aplicação do Direito, abandonada ao
arbítrio, ao azar, não passará de mero diletantismo."

GARCIA (1959, p.9-10) assevera, por sua vez, que a Ciência do Direito
Penal é

"(...) disciplina eminentemente jurídica, assim pelo seu objeto como pelo seu método de investigação. (...) É graças
a esses dois elementos - objeto e método - que a Ciência do Direito Penal se distingue das outras ciências penais,
não jurídicas, como são geralmente designadas - causal-explicativas: a Antropologia Criminal, a Psicologia
Criminal, a Sociologia Criminal, etc.
......................................................................................................
Adotam aquelas Ciências Naturais ou Causal-Explicativas o método indutivo, que procura descobrir as causas dos
fenômenos, servindo-se da observação e, quanto possível, da experimentação, método esse completamente diverso
do adotado pela Ciência do Direito Penal, disciplina normativa e jurídica por excelência, a ser aprofundada com os
processos lógicos que veiculam o raciocínio. É claro que, embora diversas, essas disciplinas devem estar
estreitamente ligadas, não se justificando que o cientista penal se alheie aos trabalhos e conclusões das outras
ciências penais."

Segundo BRUNO (1967, p.42-3), igualmente,

"A Ciência do Direito Penal em sentido escrito, isto é, a Dogmática do Direito Penal vigente, é (...) Ciência
Normativa. O seu objeto de estudo é uma norma de comportamento, a norma jurídico-penal. Partindo das normas
legais vigentes, para sobre elas construir um corpo de doutrina, descobrindo e formulando conceitos,
classificando-os, dando-lhes unidade, a dogmática só tem um caminho natural, que é o lógico. Este é o método
necessário de toda Ciência Jurídica e, assim, também, do Direito Penal."

Acrescenta, a seguir que o Direito Penal não é, contudo,

"(...) pura ciência de conceitos, mas completa e fecunda os seus conceitos com uma orientação teleológica
inspirada nos dados naturalistas e na realidade social onde a norma tem de atuar; põe-se em contato com a vida,
para que nela o Direito realize seus fins, com a vida, que sugere novos problemas, quando a dogmática já tem
encerrado os seus. Mas a construção da Ciência do Direito Penal é sempre um trabalho de lógica, de técnica
jurídica (...)." (BRUNO, 1967, p.43-4)

Em FRAGOSO (1986, p.11-2) a auto-imagem dogmática já recebe,


visivelmente, a roupagem neokantiana:
"A Ciência do Direito chama-se Dogmática Jurídica, porque se trata de Ciência das normas (...). Trata-se de
Ciência do dever ser, cujo objeto é constituído por normas que estabelecem uma conseqüência jurídica em face de
sua transgressão. A Ciência do Direito, classifica-se entre as chamadas Ciências Culturais , conforme a
classificação que provém da Filosofia dos valores, segundo a qual cumpre distinguir entre realidade e valor, entre e
dever ser, entre natureza e cultura.
......................................................................................................
Não é missão do jurista estudar a realidade social para estabelecimento de conceitos, como pretendem as
chamadas teorias sociológicas.
......................................................................................................
A Ciência do Direito do Penal não se distingue das disciplinas jurídicas que estudam os outros ramos do direito,
senão pela natureza das normas que lhe constitui o objeto (...). A Ciência do Direito Penal é a ciência teórica, no
sentido de visar o escopo cognoscitivo, mas é também Ciência prática, no sentido de fornecer aos juristas os
elementos necessários a aplicação da lei, atendendo-se aos fins da ordem jurídica. (...) O método do estudo é o
chamado técnico-jurídico ou lógico-abstrato. É o único possível no estudo de uma Ciência Jurídica."

NORONHA (1979, p.13) acentuando também a fundamentação


neokantiana da Ciência Penal escreve que na divisão das Ciências em
Naturais e Culturais, ela pertence a esta segunda classe, ou seja, às
ciências do "dever ser" e não do "ser" pois é ciência normativa que por objeto o
estudo da norma, contrapondo-se a outras que são causais-explicativas.
E prossegue:

"Como Ciência Jurídica, tem o Direito Penal caráter Dogmático, não se compadecendo com tendências causal-
explicativas. Não tem por escopo considerações biológicas e sociológicas acerca do delito e do delinqüente, pois,
como já se escreveu, é uma Ciência Normativa, cujo objeto é não o ser, mas o dever ser (...) Seu método é o técnico-
jurídico, cujos meios nos levam ao conhecimento preciso e exato da norma. (...) Tal método é de natureza lógico-
abstrata, o que bem se compreende já que, se a norma jurídica tem por conteúdo deveres, para conhecê-los bastam
sua consideração e estudo, nada havendo para observar ou experimentar. Cumpre, entretanto, evitar excessos de
dogmatismo, pois a verdade é que, como reação ao Positivismo Naturalista, que pretendia reduzir o Direito Penal a
um capítulo da Sociologia Criminal, excessos se têm verificado, entregando-se juristas a deduções silogísticas
infindáveis (...). As reconstruções dogmáticas são formas jurídicas de conteúdo humano e social, donde o jurista
não há de olvidar a realidade da vida (...)." (NORONHA, 1979, p.16-7)

JESUS (1979, p.7) subscreve que:

"O Direito Penal, como Ciência Jurídica, tem natureza dogmática, uma vez que suas manifestações têm por base o
direito positivo. Expõe o seu sistema através de normas, exigindo o seu cumprimento sem reservas. (...) O método
do Direito Penal é o técnico-jurídico, que permite a 'pronta realizabilidade do Direito', no dizer de Hermes Lima.
Segundo assinalou Jhering, o Direito existe para realizar-se, pois a sua realização é a vida e a verdade do Direito.
Chama-se método técnico-jurídico o conjunto de meios que servem à efetivação desse objetivo."
MIRABETE (1985, p.27) compartilha, enfim, a auto-imagem dogmática
com a fundamentação neokantiana nos seguintes termos:

"Diz-se que o Direito Penal é uma Ciência Cultural e Normativa. É uma Ciência Cultural porque indaga o dever
ser, traduzindo-se em regras de conduta que devem ser observadas por todos no respeito aos mais relevantes
interesses sociais. Diferencia-se, assim, das Ciências Naturais, em que o objeto de estudo é o ser, o objeto em si
mesmo. É também uma Ciência Normativa pois o seu objeto é o estudo da lei, da norma, do direito positivo, como
dado fundamental e indiscutível na sua observação obrigatória. Não se preocupa, portanto, com a verificação da
gênese do crime, dos fatos que levaram à criminalidade ou dos aspectos sociais que podem determinar a prática do
ilícito, preocupações próprias das ciências causais explicativas, como a Criminologia, a Sociologia Criminal, etc.
Como Ciência Jurídica, o Direito Penal tem caráter dogmático, já que se fundamenta no direito positivo, e
exigindo-se o cumprimento de todas suas normas pela obrigatoriedade. Por essa razão, seu método de estudo não é
experimental, como na Criminologia, por exemplo, mas técnico-jurídico. Desenvolve esse método na interpretação
das normas, na definição dos princípios, na construção dos institutos próprios e na sistematização final de
normas, princípios e institutos."

Recebendo e compartilhando o modelo dogmático de Ciência Penal


uma tal comunidade de penalistas brasileiros - certamente bem mais ampla -
corrobora e reproduz sua auto-imagem originária.
A auto-imagem (transnacionalizada) da Dogmática Penal é assim, a de
uma Ciência do "dever ser" que tem por objeto o Direito Penal positivo vigente
em dado tempo e espaço e por tarefa metódica (técnico-jurídica, de natureza
lógico-abstrata) a "construção" de um "sistema" de conceitos elaborados a
partir da "interpretação" do material normativo, segundo procedimentos
intelectuais de coerência interna, tem por finalidade ser útil à vida, isto é, à
aplicação do Direito.
Os penalistas dogmáticos definem, portanto, o conhecimento por eles
produzido, como um conhecimento "científico" normativo, autônomo e
sistemático, que encontra explicação em si mesmo através de uma postura
metódica imanente, que não remete a considerações de índole social, econômica,
política ou moral. 88

88 . Fica visível em seu discurso que a (re)fundamentação neokantiana da Dogmática Penal não afeta
sua identidade básica e sua auto-imagem genérica. Em primeiro lugar, porque muitos penalistas
De modo que, efetivamente, como observa CARRASQUILLA (1988,
p.74)

"(...) o direito é tratado como pensamento e a nacionalidade da ciência jurídica, sua cientificidade, depende de que
se observem as regras da lógica formal e, com base nelas, se elabore um discurso racional."

4. A auto-imagem funcional : as funções declaradas (promessas) da


Dogmática Penal

Tendo demarcado a auto-imagem genérica da Dogmática Penal


fixemo-nos, a seguir, na sua auto-imagem funcional, demarcando sua função
oficialmente declarada e perseguida e sua específica identidade como Ciência
Prática.
Pela sua dependência paradigmática e relativa autonomia, na Dogmática
Penal a promessa de racionalização e segurança jurídica que marca genérica e
geneticamente o paradigma dogmático se traduzirá em promessa de
racionalização do poder punitivo estatal e segurança jurídica na administração da
Justiça Penal.

nem sequer a referem. Em segundo lugar, mesmo os penalistas que procuram tipificá-la como
Ciência Normativa e "Cultural", limitando-se a identificar o "cultural" com o mundo do "dever-ser",
sem qualquer alusão à especificidade do correspondente método compreensivo-axiológico,
acabam por reconduzi-lo ao próprio "normativo" e ao método técnico-jurídico, revelando a
hegemonia que a atividade metódica "lógico-abstrata" goza sobre a "compreensivo-axiológica"
no interior do paradigma.
Assim, a identificação entre Ciência da "Cultura" e Ciência do "Dever-Ser" aparece praticamente
equiparada à indentificação entre Ciência da "Cultura" e Ciência do "Direito Penal Positivo", para
ser claramente contraposta às Ciências Empíricas (identificadas com ciências do "ser") que se
ocupam da realidade social, em especial à Criminologia. Ao distanciar cuidadosamente seu objeto
e atividade metódica das contaminações da "realidade social"- embora para retornar à sua
conexão com a "vida", na imortalizada linguagem de Jhering - os penalistas dogmáticos enfatizam
também que se trata de uma atividade intelectual predominantemente "lógica". O suplemento
neokantiano, quando reconhecido, não implica, igualmente, uma renúncia à exigência de
objetividade científica.
E esta promessa vimos claramente enunciada desde o interior de suas
próprias matrizes fundacionais, de forma exemplar e paradigmática, (porque desde
então reiterada na comunidade jurídico-penal) no modelo liszteano de "Ciência
Integral do Direito Penal".
Com efeito, como já o referimos no capítulo anterior, neste modelo, a
Ciência Penal, como ciência eminentemente prática - ao serviço da administração
da justiça - somente poderia afirmar-se como Ciência sistemática. É precisamente
na ordenação dos conhecimentos na forma de um sistema que LISZT via a
possibilidade de um domínio seguro e imediato dos casos particulares, apto a
libertar a aplicação do direito do acaso e da arbitrariedade89.
Concordamos neste sentido com ROXIN (1972, p.18) quando afirma
que com esta enunciação LISZT proferiu as palavras-chaves que se repetem até
hoje nos tratados e manuais dogmáticos para explicar a importância funcional da
sistemática no Direito Penal.
Assim WELZEL (1987, p.11), um dos mais significativos expoentes da
Dogmática germânica contemporânea reafirma aquela promessa funcional:

"Missão da Ciência Penal é desenvolver e explicar o conteúdo das


regras jurídicas em sua conexão interna, ou seja, 'sistematicamente'.
Como ciência sistemática estabelece a base para uma administração de
justiça igualitária e justa, já que só a compreensão das conexões
internas do Direito liberam a sua aplicação do acaso e a arbitrariedade.
Mas a ciência penal é uma ciência 'prática' não só porque ela serve à
administração de justiça, mas também num sentido mais profundo,
enquanto uma teoria do atuar humano justo e injusto, de modo que
suas últimas raízes tocam os conceitos fundamentais da filosofia
prática."

89 . É de ressalvar que embora no modelo liszteano fosse também atribuída à Dogmática Penal uma
função político-criminal de preparação de reformas legislativas, foi esta função vinculada à
aplicação judicial do Direito Penal que centralizou, como passamos a demonstrar, a auto-imagem
funcional do paradigma ficando aquela reconhecida e exercida num plano secundário.
Em conferência pronunciada em 1966, respondendo especialmente aos
ataques contra a Dogmática alemã, de ter cultivado a disciplina jurídica do Direito
Penal como " a arte pela arte" sustenta que

"(...) a divisão do delito em três diferentes graus de juízo e valoração estruturados uns sobre e, em seguida a
outros (...) proporciona alto grau de racionalidade e segurança na aplicação do direito e ao diferenciar os graus de
valoração, possibilita, além disso, um resultado final justo. (...)
......................................................................................................
Efetivamente, este foi o desejo decisivo da dogmática. Já o havia entendido LISZT quando no prólogo da primeira
edição de seu tratado (1881) exigiu 'conceitos claros e bem delimitados'.(...)
......................................................................................................
A dogmática não foi cultivada 'unicamente' na Alemanha, como a arte pela arte, mas, sim, como firme baluarte
contra invasões ideológicas. Isto aconteceu precisamente no Terceiro Reich. Nessa época a dogmática foi objeto de
ataques severos, por ser ' um pensamento liveral de divisão'. A tempestade foi contida, precisamente, pela
dogmática.(...)
......................................................................................................
É significativo e, em certo sentido lamentável (para nós) , que não tenha sido um alemão mas um espanhol, que
tenha recordado aos ruidosos "críticos da reforma penal", o significado da dogmática (...)." (WELZEL,1974, p.7-9)

O espanhol é precisamente GIMBERNAT ORDEIG (1983, p.27) e o


que recorda, na década de 70, é que

"A dogmática nos deve mostrar o que é devido com base no Direito. A
dogmática jurídico-penal, pois, averigua o conteúdo do Direito penal,
quais são os pressupostos que se darão para que entre em jogo um tipo
penal, o que é que distingue um tipo de outro, onde acaba o
comportamento impune e onde começa o punível. Torna possível, por
conseguinte, ao assinalar limites e definir conceitos, uma aplicação
segura e calculável do Direito Penal, torna possível subtraí-lo à
irracionalidade, à arbitrariedade e à improvisação. Quanto menos
desenvolvida esteja uma dogmática, mais imprevisível será a decisão
dos tribunais, mais dependerão do acaso e de fatores incontroláveis a
condenação ou a absolvição."

Desta forma, prossegue GIMBERNAT (1983, p.30), em um autêntico


Estado de Direito, a Dogmática Penal é um instrumento imprescindível para
manter o Direito Penal sob controle, para que a pena não chegue mais longe do
que o legislador se propôs que chegue.
E nesta função garantidora depositava, na década de 70, a convicção
no futuro da Dogmática Penal:

"(...) Porque a existência do Direito Penal é imprescindível e não depende para nada da possibilidade de
demonstrar a livre decisão humana no caso concreto, porque toda idéia jurídica progressiva necessita de uma
formulação legal que será tanto mais perfeita e eficaz quanto mais alto for o nível científico-jurídico, porque uma
ciência desenvolvida do Direito Penal é a que torna possível controlar os tipos penais, porque a pena é um meio
necessário e terrível de política social, porque temos que viver com o Direito Penal, por tudo isso a dogmática
jurídico-penal tem futuro." (GIMBERNAT, 1982, p.32)

Também da Dogmática alemã reitera JESCHECK (Citado por ROXIN,


1972, p.18) que
(...) sem a articulação sistemática do conceito do delito, a solução de
um caso jurídico permanece 'insegura e dependente de considerações
sentimentais'. As características gerais do conceito do delito, que se
resumem na teoria do delito, possibilitam, aliás, uma jurisprudência
racional e uniforme, e ajudam, de um modo essencial, a garantir a
segurança jurídica."

E da Dogmática espanhola subscreve MUÑOZ CONDE, (1975, p.135-6) que

"A Dogmática jurídico-penal (...) trata de averiguar o conteúdo das normas penais,
seus supostos, suas conseqüências, de delimitar os fatos puníveis dos impunes, de
conhecer, definitivamente, que é o que a vontade geral expressa na lei quer castigar
e como quer fazê-lo. Nesse sentido a Dogmática jurídico-penal cumpre uma das mais
importantes funções que tem encomendada à atividade jurídica em geral em um
Estado de Direito: a de garantir os direitos fundamentais do indivíduo frente ao
poder arbitrário do Estado que, embora se processe dentro de uns limites, necessita
do controle e da segurança desses limites."

CANTERO (1977, p.15-16) por sua vez, afirma que a missão da


Dogmática Penal

"(...) é desenvolver sistematicamente e interpretar, em sua conexão interna, o conteúdo das normas que constituem
o ordenamento jurídico-penal. Ao cumprir esta missão a Ciência do Direito Penal colabora para uma reta
administração de justiça, pois - como observou WELZEL - só o conhecimento do Direito em sua conexão interna
destaca sua aplicação sobre o acaso e a arbitrariedade."

Da Dogmática Penal brasileira essa promessa funcional pode ser


ilustrada na fala de FRAGOSO (1986, p.11) ao afirmar que

"A Dogmática Jurídica é a Ciência da norma jurídica, que visa ao seu conhecimento sistemático, para permitir a
aplicação igualitária e justa do Direito. Mas isto é alcançado, superando-se a simples atividade dos glossadores,
através da reconstrução científica do direito vigente."

Igualmente os analistas da Dogmática Penal, a exemplo dos que seguem,


identificam sua função oficialmente declarada no âmbito de sua auto-imagem.
BATISTA (1990, p.117) comenta neste sentido que a Ciência do
Direito Penal tem

"(...) por finalidade permitir uma aplicação eqüitativa (no sentido de casos semelhantes encontrarem soluções
semelhantes) e justa da lei penal. Tornando, como diz Novoa, 'segura e calculável a aplicação da lei', estabelecendo
limites e definindo conceitos, a dogmática subtrai daquela aplicação a irracionalidade, a arbitrariedade e a
improvisação."

SOLANO NAVARRO (1990, p.183) identifica, igualmente, como


finalidade da Dogmática Penal "a necessária instância racionalizadora que impõe
a interpretação da norma, baseada em requerimentos de segurança jurídica" que,
ligada a uma herança anterior ao positivismo ainda não perdeu vigência.
CARRASQUILLA (1988, p.73-4) constata que a

"(...) dogmática panlogista, fruto decantado do positivismo, considera que a tarefa essencial da Ciência Jurídica
consiste privativamente na interpretação lógico-gramatical (no auge adornada com certos matizes teleológicos)
das normas jurídicas e na construção de um sistema formal coerente de conceitos e princípios que harmonize com
o direito positivo de cada país e permita a prática racional, igualitária, segura e previsível da administração da
justiça penal, sem a menor consideração pelas necessidades e conveniências, pressupostos e efeitos sócio-
políticos da lei ou da ciência, dos que devem ocupar-se, segundo se diz, os especialistas das respectivas disciplinas,
de modo algum o jurista como tal. "
E POZO (1988, p.38) subscreve que a crença implícita na sua auto-
imagem é a de que é possível a partir dos dogmas e mediante o auxílio da lógica,
deduzir soluções para os casos concretos. Desta forma, a sistematização das
normas e dos dogmas, por um lado, e a elaboração de conceitos e teorias - cada
vez mais sutis - por outro, "permitiriam fazer do Direito um sistema cuja aplicação
seria mais precisa e previsível".
Nesta perspectiva, conclui que é

"(...) indispensável aceitar que o método de abstrações se impôs progressivamente com a finalidade de racionalizar
a atividade jurídica. Ou seja, com o intuito de lograr um alto grau de previsibilidade em relação com as decisões
judiciais e a diminuir destas elementos pessoais (arbitrários)." (POZO, 1988 p.39)

Opondo dicotomicamente irracionalidade (arbitrariedade, acaso, azar,


subjetividade, improvisação) e racionalidade (igualdade, uniformização,
previsibilidade, calculabilidade, certeza, segurança) no exercício do poder punitivo
do Estado que se materializa na aplicação judicial do Direito Penal e identificando
racionalidade e justiça, o discurso dogmático aspira exorcizar a primeira pela
mesma via sistemática que promete realizar a segunda.
A Dogmática afirma-se, portanto, desde sua gênese histórica, como uma
Ciência sistemática e eminentemente prática ao serviço de uma administração
racional da justiça penal que teria como subproduto a segurança jurídica e a
justiça das decisões judiciais.
Podemos demarcar, pois, no discurso dogmático, uma função
declarada e oficialmente perseguida que denominaremos função instrumental,
racionalizadora/garantidora. Ela guarda, a rigor, duas dimensões que, embora
umbilicalmente articuladas, podem ser analiticamente distinguidas.
É que a dimensão orientadora, preparadora, pautadora ou programadora
das decisões judiciais penais, nela contida, implica uma contribuição técnica do
paradigma (interpretativa e conceitual) no reconhecimento da juridicidade e na
decisão dos conflitos criminais, isto é, à operacionalidade decisória.
Mas intrinsecamente conectada a esta dimensão técnica encontra-se uma
base humanista que, ideologicamente vinculada à exigência de garantia dos
Direitos Humanos individuais, confere àquela dimensão técnica um compromisso
intrínseco com a gestação de decisões igualitárias, seguras e além disso, justas.

5. Dogmática Penal e Estado de Direito: o discurso racionalizador/


garantidora centrado no pólo "de Direito" do Estado Moderno

Em definitivo, pois, a matéria-prima do discurso dogmático


racionalizador/garantidor é a dicotomia liberal Estado (poder punitivo) x indivíduo
(liberdade individual), sob o signo dos limites, pois a questão central que o
condiciona é como limitar e racionalizar , em concreto, o poder punitivo
(violência física) face aos direitos individuais (segurança); é como punir, em
concreto, com segurança, no marco de uma luta racional contra o delito.
A dicotomia indivíduo-Estado, constitui assim, no dizer de MELOSSI
(1991, p.60) "a matéria-prima das posições garantidoras" e cuja harmonização e
equilíbrio, aduzimos, a Dogmática Penal promete concretizar.
Trata-se de um discurso cujo significado é dependente da idéia de que
o "Direito Penal moderno nasce desde uma perspectiva garantidora", (BUSTOS
RAMÍREZ, 1984, p.67) nucleado no princípio da legalidade que sendo a "base
estrutural do próprio estado de direito, é também a pedra angular de todo direito
penal que aspire a segurança jurídica." (BATISTA, 1990, p.67)
O princípio da legalidade constitui, neste sentido, não apenas um
princípio fundacional do moderno Direito Penal, mas também da sua Dogmática
que

"(...) se apresenta assim como uma conseqüência do princípio de intervenção legalizada do poder punitivo estatal e
igualmente como uma conquista irreversível do pensamento democrático. (...) A idéia do Estado de Direito exige
que as normas que regulam a conveniência sejam conhecidas e aplicadas, além de serem elaboradas por um
determinado procedimento, de um modo racional e seguro, que evite o acaso e a arbitrariedade em sua aplicação e
que as dote de uma força de convicção tal que sejam aceitas pela maioria dos membros da comunidade." (COÑDE,
1975, p.135-6)

É visível, pois, que a promessa funcional da Dogmática é condicionada


e expressa as exigências do Estado de Direito e do Direito Penal liberal e neste
sentido tanto o Direito Penal como programação, quanto a Dogmática como
metaprogramação penal nascem, por um lado, negativamente; ou seja, como
reação contra o arbítrio da antiga Justiça Penal.
São duas, nesta perspectiva, as grandes promessas da Dogmática Penal
na e para a modernidade, estreitamente relacionadas. É que na sua promessa
epistemológica de constituir-se "na" Ciência do Direito Penal está contida uma
promessa funcional que, mais do que condicionar o seu modelo de Ciência
pretende também justificá-lo. Trata-se de uma promessa bifronte que, orientada
por uma matriz liberal, credita à Ciência Penal uma instrumentalização
racionalizadora/garantidora.

6. A promessa de segurança jurídica na trilha do Direito Penal do fato:


a conexão método-sistema-segurança jurídica
Desta forma, a idéia de "segurança jurídica" é o ponto de convergência
que melhor sintetiza a função declarada da Dogmática Penal. E em torno dela há
uma constelação discursiva cujo fio condutor necessita ser reconstituído. Para
fazê-lo é necessário recolocar o interrogante: onde o discurso dogmático enraiza a
promessa de segurança jurídica?
Da auto-imagem do paradigma e em especial das suas funções
declaradas torna-se visível a conexão estabelecida entre a construção sistemática
(sistema), enquanto produto do método e o suposto resultado de sua
instrumentalização: a segurança jurídica.
E o sistema a que o discurso dogmático se refere e no qual enraiza a
promessa de segurança é precisamente o sistema da teoria do crime, cuja
construção centraliza sua atividade metódica ao ponto de se afirmar que o
paradigma dogmático transplantado para o Direito Penal serviu sobretudo para
construí-la. (HERNÁNDEZ GIL, 1981, p.37)
A afirmação de constituir uma Ciência sistemática e prática
corresponde, pois, no discurso dogmático a uma conexão liberalmente modelada
entre método-sistema do delito-segurança jurídica.
Podemos então pontualizar que na sua tarefa de elaboração técnico-
jurídica do Direito (Penal) vigente a Dogmática Penal90, partindo da interpretação
das normas penais produzidas pelo legislador - nuclearmente o princípio da
legalidade - e explicando-as em sua conexão interna, desenvolve um sistema
conceitual do crime que, resultando congruente com tais normas, teria a função
de garantir a maior uniformização e previsibilidade possível das decisões judiciais
e, conseqüentemente, uma aplicação igualitária (decisões iguais para casos iguais)

90 . A respeito do paradigma dogmático genericamente considerado ver item "5.1" do primeiro


capítulo.
do Direito Penal que, subtraída à arbitrariedade, garanta essencialmente a
segurança jurídica e, por extensão, a justiça das decisões penais.
O Direito Penal é assim uma enunciação normativa cujo sentido, alcance e
finalidades são por ela decodificados ao assumir, perante a linguagem da
normatividade penal, não apenas o estatuto de uma metalinguagem, mas igualmente
o estatuto de uma metaprogramação, tida por científica, para uma prática racional
e segura do Direito Penal.
Neste sentido podemos dizer com WARAT (1982, p.48) que

"Em outras palavras, as normas jurídicas não têm um sentido pleno,


independentemente das teorias jurídicas. Sem a teoria do delito (...) não
se pode expressar uma plenitude significativa para nenhum delito. A
teoria do delito nos dá, ademais, o limite das interpretações
legitimáveis. (...) Ora, a dogmática jurídica é o código predominante de
comunicação normativa."

Trata-se de uma Ciência "do" sistema que medeia o tráfego jurídico


entre programação e operacionalização do Direito Penal enunciando, no dizer de
ZAFFARONI (1991, p.18) "a justificativa e o alcance de uma planificação na
forma do 'dever ser', ou seja, como um 'ser' que 'não é' mas que 'deve ser', ou, o
que é o mesmo, como um ser 'que ainda não é'."
A Dogmática do delito insere-se, desta forma, como uma instância
comunicacional, cientificamente respaldada, entre as normas penais em abstrato
(programação penal) e a sua aplicação (decisões judiciais) estando interpelada a
maximizar o processo comunicacional entre ambos os níveis, prescrevendo "à lei,
cuja aplicação está em jogo, um programa ao qual deve se adaptar." (POZO,
1986, p.17)
Ela demarcaria assim o limite das interpretações possíveis ao fornecer
o instrumental conceitual apto para que as decisões judiciais e as punições que
delas derivam se fundamentem e se delimitem em torno da lei penal e da conduta
do autor, objetiva e subjetivamente considerada em relação ao fato-crime e não da
pessoa do autor, submetido à subjetividade do intérprete, exorcizando por esta via
a sua arbitrariedade. A arquitetônica conceitual do crime corresponde assim a um
secular esforço da Dogmática na construção das categorias que demarquem os
parâmetros objetivos e subjetivos para a imputação da responsabilidade no
processo penal.
Ela seguirá, pois, na linha que vai do Iluminismo ao positivismo, a trilha
do Direito Penal do fato (e não do autor), redefinindo a concepção de crime
como "ente jurídico" sob as exigências metódicas de seu paradigma.
Neste sentido o conceito de ação que, enquanto conceito vertebral do
Direito Penal do fato-crime centraliza o saber penal clássico, começando a
desenvolver-se antes da afirmação da Dogmática Penal como paradigma,
numa linha que vai de KANT ao hegelianismo na Alemanha e culmina na
teoria das normas de BINDING ocupará, também, um lugar central em sua
construção técnico-jurídica.

Assim, em grande medida

"(...) todo o desenvolvimento da teoria de delito até mais ou menos nos anos 70 do presente século dominou a
tendência de erguer a ação em base e pedra angular do sistema. Este delineamento vem já do pensamento
globalizador e total dos hegelianos, para os quais o delito era ação e por isso mesmo uniam num só problema os
aspectos objetivos e subjetivos na teoria do delito, enquanto a ação era uma estrutura objetiva-subjetiva, daí que já
neles aparecesse um conceito de ação semelhante ao da teoria finalista. Só que aparecia magoado pela confusão
entre ação e culpabilidade, ao absorver-se todo o subjetivo naquele primeiro conceito. Ora, ainda que os
causalistas, tanto naturalistas como valorativos, tenham atacado o delineamento unitário dos hegelianos e buscado
uma diferenciação clara e terminante dos diferentes problemas que surgiam dentro da teoria do delito, não
atacaram entretanto o delineamento fundamental dos hegelianos, isto é, que delito é ação." (BUSTOS RAMÍREZ,
1984, p.167)

Se o Direito Penal do fato-crime e a promessa de segurança jurídica a


ele vinculada não nascem, pois, como procuramos mostrar ao longo do capítulo
segundo, com a Dogmática Penal, mas com a Filosofia iluminista e a Escola
Clássica é ela, sua herdeira última que, recolocando a teoria do delito no marco
de um "sistema" conceitual e vinculando-o ao princípio da legalidade, procurará
conferir-lhe um estatuto de cientificidade operando o trânsito, por assim dizer, da
legalidade à legalidade cientificamente decodificada.
A Dogmática Penal pode ser lida, nesta perspectiva, como uma longa e
complexa tentativa de conferir à promessa iluminista de segurança, uma
formulação científica, no marco de uma razão prática.
Vejamos, pois, como se materializa a formulação desta promessa no
paradigma da Dogmática Penal, reconstruindo seu fio condutor desde a
construção do sistema da teoria do delito (dimensão hermenêutico-analítica) ao
seu discurso propedêutico,91 evidenciando também como esta promessa subsiste
historicamente através das alterações intra-sistêmicas experimentadas na evolução
daquele sistema.

6.1. Processo formativo do sistema dogmático do crime

Com efeito, a construção e evolução da teoria do crime constitui não


apenas uma demonstração exemplar "da maneira como os penalistas consideram
que desenvolvem um trabalho científico" (POZO, 1986, p.16) mas também de
como se materializa a referida conexão sistema científico-segurança jurídica, que
conecta, em realidade, o discurso científico-conceitual (sistemático) com o
discurso liberal (racionalizador/garantidor). Pois, embora inadmitindo e
neutralizando sua relação com o político, o fio cientificista com o qual a
Dogmática tece a construção sistemática é o mesmo fio liberal com o qual

91 . Conforme dimensões de materialização do paradigma dogmático especificados na nota "7" do


primeiro capítulo.
promete enquadrar juridicamente o exercício da violência física pelo Estado
moderno.
Desta forma, ao acordo paradigmático em considerar a Ciência Penal
eminentemente "sistemática" se seguiu o acordo, consolidado desde há algum
tempo, que a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são as categorias
fundamentais que conformam o sistema dogmático: a chamada estrutura jurídica
do crime. (BACIGALUPO,1989, p.467) Analiticamente, portanto, o crime é uma
conduta (ação ou omissão) típica, antijurídica e culpável.
Nesta definição tripartida, a tipicidade representa, genericamente, a
adequação de um fato determinado à descrição que dela faz um tipo legal; a
antijuridicidade, a contrariedade deste fato com todo o ordenamento jurídico e a
culpabilidade, a reprovação do sujeito que poderia ter atuado de outro modo, ou
seja, conforme ao ordenamento jurídico.
Outros componentes da teoria do crime devem ser vistos como
detalhamentos da conduta típica: autores e partícipes são sujeitos da conduta
típica; tentativa e consumação são etapas do processo de realização típica da
conduta dolosa; unidade e pluralidade de crimes são quantidade ou continuidade
de condutas típicas. (CIRINO SANTOS, 1993, p.16)
Este modelo aparentemente simples é, todavia, fruto de uma longa
elaboração dogmática na qual experimentou diversas variações e redefinições
tanto na forma quanto no conteúdo. Neste sentido, pode ser analisado de
diferentes perspectivas.92 Para os objetivos acima fixados interessa-nos apenas
situar as linhas básicas de seu processo formativo e das suas alterações de
conteúdo.

92 . Quais sejam, gênese ou processo formativo, variações sistemáticas, concepção do modelo,


variações de conteúdo, papel e significação da ação e papel e significação da causalidade. Sobre
uma análise destas diferentes perspectivas ver BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.147-178
Dos componentes assinalados no sistema, o que aparecia claramente
considerado e diferenciado nas primeiras obras sobre a teoria do delito de fins do
século XVIII até meados do século XIX era a culpabilidade, conceito de certo
modo onicompreensivo pois abarcava todos os demais aspectos e seu conteúdo
(BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.149).
Neste sentido,

"(...) as características delituais da antijuridicidade e da culpabilidade se confundiam numa só exigência. Por


conseguinte no delito se distinguiam unicamente o aspecto material (ação humana) e o aspecto moral
(imputabilidade). O termo imputabilidade, que hoje poderíamos traduzir melhor por culpabilidade, envolvia toda a
desvalorizaçãoo da ação perpetrada." (MONREAL, 1982, p.13)

Esta categoria aparece já na idade média com a preocupação dos


canonistas em estabelecer uma relação pessoal (subjetiva) entre o sujeito e o fato
cometido, o que era uma conseqüência lógica do sentido expiatório (e
posteriormente retributivo) conferido à pena: a expiação deveria corresponder a
um comprometimento moral do sujeito e daí a possibilidade de uma graduação da
culpabilidade93. Ela não era, portanto, apenas um pressuposto e fundamento da
pena - tal como é hoje - mas era permissiva de sua própria graduação, isto é, da
medida de sua imposição (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.149).
Esta subjetivação e eticização do conceito de crime impedia considerar,
contudo, que desde o ponto de vista do ordenamento jurídico, poderiam existir
fatos considerados objetivamente lícitos, qualquer que fosse a relação moral do
sujeito com eles.
Atribui-se ao privatista JHERING 94 ter identificado esta questão e
distinguido, em 1867, dentro daquela ampla imputabilidade, dois aspectos do

93 . MONREAL (1982, p.13) registra, neste sentido, que até agora o Código de Direito Canônico
denomina "imputabilidade" à "culpabilidade, conforme seus cánones 2195, 2196 e 2199.
delito: a antijuridicidade (uma contrariedade da ação com as normas jurídicas) e a
culpabilidade (uma censura à disposição anímica do agente).
Com o transplante que V. LISZT faz desta divisão para o campo penal
inicia-se a moderna construção sistemática do crime que, à diferença da anterior,
sintetizadora e global, nasce marcada por um pensamento analítico95.O sistema da
teoria do delito é, tal como aparece no seu "Tratado" "um sistema categorial
classificatório" usando esta expressão no sentido empregado por RADBRUCH.
(COÑDE, 1975, p.168)

"Deste modo surgirão diferentes momentos dentro do conceito de delito, que permitirão uma maior precisão de um
ponto de vista conceitual - categorias a ter em conta para definir o delito - como também de um ponto de vista
garantidora - pressupostos necessários à imposição da pena." (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.150)

Por conseguinte, o crime era uma conduta antijurídica e culpável ou, na


clássica definição de LISZT ( citado por MONREAL, 1982 p.14) um "ato
culpável, contrário ao Direito e sancionado com uma pena."
O binário antijuridicidade-culpabilidade se distinguia por sua
simplicidade e clareza. Enquanto a valoração do ato, concebido de modo causal-
objetivo, constituía a antijuridicidade; a valoração do autor e dos componentes
subjetivos do crime pertencia à esfera da culpabilidade. Mas carecia, por outro
lado, de um elemento que desse consistência a essas valorações e as vinculasse à
normatividade penal. A ação, de cuja valoração se tratava, devia, por imperativo
do princípio da legalidade, enquadrar-se na descrição contida nas normas penais
(COÑDE, 1976, p.170).

94 .Cabe razão contudo à MONREAL (1982, p.13) quando afirma que CARRARA já fazia esta
separação, muitos anos antes em seu monumental "Programa" " . Assim no §8 quando distingue
entre imputação de um delito desde um ponto de vista físico (tu o fizestes voluntariamente) e legal
(tu obrastes contra a lei).
95 . A respeito do exposto ver BUSTOS RAMÍREZ (1984, p.148-50).
É esta

"(...) consideração conceitual e também garantidora, no sentido que nem todo fato que transgride o direito há de
merecer uma pena, a que faz surgir o terceiro elemento do delito, a tipicidade. Só são fatos delituosos aqueles que
aparecem descritos em um tipo legal; tipo legal é aquela parte de uma disposição legal que descreve um
determinado fato. Em outras palavras, só aqueles fatos que transgridem o direito e que guarda um tipo legal podem
merecer uma pena." (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.150)

Embora reconheça antecedentes 96, foi BELING quem, com intenção de


otimizar a definição liszteana de crime até então imperante procede, em 1906, à
formulação do conceito de tipicidade como elemento categorial do crime e do
tipo legal como seu necessário antecedente para aplicá-lo à ação punível e concluir
que não pode haver crime sem tipo. (BUSTOS RAMÍREZ, 1986, p.150; LUISI,
1987, p.15 ;COÑDE, 1975, p.170 e MONREAL, 1982 p.14; MACHADO, 1987,
p.90).
Na concepção originária de BELING, o tipo é a mera descrição dos
elementos materiais do delito, contidos na respectiva norma penal incriminadora,
prescindindo de quaisquer elementos valorativos ou referências à esfera anímica
do sujeito. O tipo belingüiano é, portanto, rigorosamente objetivo, avalorativo e
descritivo (LUISI, 1987, p.16). Nas próprias palavras de BELING (citado por
ASUA, 1950, t.2, p.751): " o tipo não é valorativo, mas descritivo, pertence à lei, e
não à vida real."

96 .BUSTOS RAMÍREZ (1986, p.150) registra que já no próprio Liszt encontramos, em certo
sentido, um conceito sobre tipo e já antes, em Stübel, um discípulo de Feuerbach, porém ligado e
confundido com considerações de caráter processual, que não permitiam separá-lo do conceito de
corpo de delito.
LUISI (1987, p.13-4) escreve neste sentido que, conforme assinalado por diversos autores, a
expressão alemã Tatbestand (literalmente 'estado de fato')que geralmente é traduzida em
português por 'tipo',surge no jargão alemão em fins do século XVIII e princípios do século XIX,
no campo do processo penal, onde é mais sentida a necessidade de dar contornos certos e
precisos ao fato delituoso. Com ela se traduz para o idioma teuto a locução latina corpus delicti,
compreendida esta como a ação punível, isto é, o fato objetivo. Como categoria conceitual do
Direito Penal, no entanto,o vocábulo aparece pela primeira vez na obra de L. Von Feuerbach, "que
põe em relevo a sua origem política vinculada a uma concepção liberal do Estado de Direito". E o
termo é usado, correntemente, na Ciência penal germânica do século XIX, por autores como
Stübel, Berner, Luden, Kasper, Scharper, Merkel e outros.
A tipicidade é, portanto, a mera adequação entre o fato-crime cometido
e o tipo penal. Mas embora não tendo, em si, um significado valorativo, a
subsunção da conduta num tipo penal erigia-se no ponto de referência das
sucessivas valorações. (COÑDE, 1975, p.170).
Assim surgiu o novo sistema "clássico" do crime com sua divisão em
três diferentes graus de juízo e valoração doravante definido como conduta
típica, antijurídica e culpável, sancionada com uma pena.(WELZEl, 1974, p.6)
Daí o que se convencionou chamar sistema "clássico" do delito se
convencionou também identificar por sistema "Liszt-Beling", na medida em que
sentaram as suas bases fundamentais, pois, não obstante a revisão continuada de
que será objeto ao longo do século XX terá preservada, como veremos, sua
estrutura categorial que " vem a constituir-se no denominador comum dos autores
modernos "(MONREAL, 1982, p.15)

6.2. Sistema do crime e princípio da legalidade

Situadas tais bases do sistema do crime é fundamental verificar como


a Dogmática Penal o reconduz ao princípio da legalidade mediante procedimentos
lógico-formais.
Caracterizando a tradicional interpretação dogmática do princípio da
legalidade, CUNHA (1979, p.53) alude à sua interpretação enquanto "norma",
"enunciado doutrinário" e "enunciado "metajurídico".
Enquanto norma, a legalidade é classificada como uma "norma penal
não incriminadora" onde funcionaria como uma norma diretiva, isto é,
disciplinadora dos princípios a serem observados em matéria de interpretação e
aplicação da lei penal.
Enquanto princípio doutrinário, a legalidade cumpriria duas funções
fundamentais, ambas associadas à explicitação do seu valor de garantia : a) uma
função hermenêutica, relacionada com o modo de interpretação da lei penal e b)
uma função metodológica ou sistemática, referida à produção dos conceitos
jurídico-penais.
No marco da função hermenêutica, a dogmática faz derivar do
princípio da legalidade quatro subprincípios relativos à interpretação da lei penal:
a) proibição da retroatividade da lei penal que prejudique os direitos do acusado;
b) proibição de recorrer ao "costume" para a identificação ou alteração de crimes
e penas; c) proibição do emprego da analogia em relação às normas
incriminadoras (in malam partem) e d) exigência de certeza na linguagem em que
são redigidas as normas penais, sendo vedadas leis penais vagas ou ambíguas;
proibição que viabilizaria as anteriores.
Dogmaticamente decodificado o princípio da legalidade implica, assim,
que não há crime nem pena sem lei anterior, escrita, estrita e certa que o defina.
Estes quatro subprincípios garantiriam a assimilação de todo o Direito Penal à
legislação escrita e estrita, à univocidade dos sentidos das palavras da lei e a
submissão do intérprete ao seu diploma. (CUNHA, 1979, p.54-6)
A função metodológica ou sistemática traduz, enfim, a relação que se
estabelece entre o princípio da legalidade e a teoria do tipo.
Sendo claro, desde sua origem, que a tipicidade repousa justamente
sobre o princípio da legalidade (GÓMEZ DE LA TORRE, 1988, p.47), a
doutrina dogmática é unânime em afirmar que a tipicidade é a categoria jurídico-
penal racionalizadora do princípio da legalidade. O nullum crimen, nulla poena
sine lege corresponderia, assim, à fórmula "não há delito sem tipicidade."
(CUNHA, 1979, p.56)
Neste sentido

"(...) a doutrina do Tatbestand representa na dogmática penal 'a versão técnica do apotegma político' 'nullum
crimen sine lege', como quer M. Jiménez Huerta, ou o 'precipitado técnico do princípio da legalidade', para
lembrarmos a expressão de G. Bettiol. Vale dizer que o Tatbestand traduz, em termos técnicos jurídicos, a
exigência de certeza na configuração das figuras delituosas, limitando o arbítrio dos governantes e,
principalmente, daqueles que julgam." (LUISI, 1987, p.13)

Com efeito, ao derivar de suas exigências de segurança e serem a ele


reconduzidas as categorias tipo-tipicidade permitem à Dogmática reconduzir
todo o sistema da teoria do delito ao princípio da legalidade que passa a
fundamentar, assim, indiretamente, toda a sua arquitetônica.
Ora, prossegue, CUNHA (1979, p.56-7)

"(...) o conceito de tipicidade é visto pela maior parte da doutrina como categoria disciplinadora de toda a
arquitetônica relativa à teoria do delito. Assinala a dogmática que a noção de tipo, além de constituir o mandato
proibitivo, concretiza a antijuridicidade, assinala e limita o injusto, demarca o 'iter criminis ' estabelecendo seus
momentos penalmente relevantes, e, afinal, ajusta a culpabilidade à figura considerada. Em conseqüência e nos
termos da conexão feita pelo pensamento dogmático, a regra da legalidade passa a ser um princípio reitor de toda
produção teórica relativa à conceituação do delito. Ela fundamenta os conceitos de tipicidade, antijuridicidade e
culpabilidade, sintetizando o suposto funcionamento, ou o funcionamento ideal destas categorias analíticas. Isto
porque o princípio da legalidade reproduz a exigência fundamental que o conceito de tipicidade encerra:
correspondência entre o fato antijurídico e a descrição legal; reitera o conteúdo da antijuridicidade, vinculando a
existência do crime à violação do direito contido na lei, e reassegura o conceito tradicional de culpabilidade,
relacionando a culpa com a prática de um ato previamente estabelecido em um tipo."

Vê-se assim o movimento pelo qual a Dogmática, ao interpretar o


princípio da legalidade, não apenas enraiza nele o sistema da teoria do delito,
conectando (via categorias tipo-tipicidade) legalidade-sistema do delito-segurança
jurídica mas fundamenta, neste movimento, a própria racionalidade da legislação
penal, reconduzindo-a latentemente ao axioma do "legislador racional".
Com efeito, recordando a PUCEIRO (1981, p.38) pode-se dizer que se
os teoremas que constituem o sistema conceitual do modelo dogmático são
reconduzíveis aos axiomas originários, mediante procedimentos lógico-formais,
ainda assim a construção do sistema requer o apelo à hipótese do "legislador
racional", destinado a possibilitar a idéia do ordenamento jurídico como sistema
hermético, completo, auto-suficiente, etc.
E precisamente através das limitações impostas pelo princípio da
legalidade nos planos hermenêutico e sistemático a Dogmática explica a função de
"garantia jurídica" que ele e conseqüentemente o sistema do delito cumpre.
Enfim, tratando o princípio da legalidade como postulado meta-jurídico
a Dogmática salienta seu valor de "garantia política" de caráter liberal.

E na verdade

"Tal valor sobrepor-se-ia e sobredeterminaria as outras funções exercidas pela regra. Conforme opinião
consensual da doutrina, a regra da legalidade, antes de ser um princípio jurídico é um anteparo da liberdade
individual; uma limitação do juspuniendi dos Estados (...); uma garantia do cidadão em face dos poderes do Estado.
Ele impediria o arbítrio na aplicação da lei penal, assegurando o exercício regular e democrático da Justiça. Ele,
enfim, outorgaria segurança ao cidadão."(CUNHA,1979, p.58)

Com o que fica evidenciado que a regra da legalidade transcende o


plano da técnica, já que constitui critério axiológico supremo do ordenamento
jurídico.

7. Da hermenêutico-analítica à propedêutica

Se é evidente, pois, que no campo penal a Dogmática serviu ao


propósito de construir uma teoria exclusivamente técnico-jurídica do delito
(HERNÁNDEZ GIL, 1981, p.37) o conteúdo do Direito Penal não se esgota com
a dogmática da estrutura do delito (WELZEL, 1974, p.10) e o discurso dogmático
é, portanto, mais abrangente que o discurso do crime.
Com efeito, ele engloba uma dimensão "propedêutica" que na estrutura
dos manuais dogmáticos antecede o discurso analítico do crime, sendo integrada
por um discurso relativo à evolução histórica, conceito do Direito e da Ciência
Penal e sua relação com as demais Ciências; fontes do Direito Penal, norma penal
e sua interpretação, ordenamento jurídico, etc. - que correspondem, em suas
linhas gerais, às teorias juspositivistas indicadas no primeiro capítulo 97 - e onde
situa-se a própria interpretação do princípio da legalidade. O discurso dogmático
é integrado, ainda, por um discurso dos bens jurídicos e da pena98.

8. Da ideologia liberal à ideologia da defesa social

Não bastaria, assim, aludir a uma ideologia liberal para caracterizar a


identidade ideológica da Dogmática Jurídico-Penal, pois é necessário perceber
que o seu discurso racionalizador/ garantidora encontra-se inserido numa visão
mais globalizante do crime e da pena que BARATTA denominou "ideologia da
defesa social".
Esta ideologia, que foi sendo construída pelo saber oficial (desde a
Escola Clássica, passando pela Escola Positiva e chegando à Técnico-Jurídica) e
filtrada através do seu debate escolar99, veio a constituir-se não apenas na

97 . No item "4.2", do primeiro capítulo.


98 . O moderno discurso da pena, desde as teorias retribucionistas às preventivas, em suas diferentes
versões, antecede e se desenvolve paralelamente à Dogmática Penal que o recebe e reproduz na
medida em que integra o seu discurso jurídico oficial, como veremos ao analisar a ideologia da
defesa social. De qualquer modo, do ponto de vista técnico, a pena é tratada, em seu âmbito,
como conseqüência jurídica de um fato típico, ilícito e culpável e, neste sentido, sob a temática da
"aplicação" ou individualização da pena.
99 . Nesta perspectiva há uma linha de continuidade e complementariedade da Escola positiva em
relação à Escola Clássica na conformação desta ideologia. Pois "Ainda quando suas respectivas
concepções do homem e da sociedade sejam profundamente diversas, em ambos os casos nos
ideologia dominante na Ciência Penal, na Criminologia e nos representantes do
sistema penal, mas no saber comum do homem da rua ("every day theories")
sobre a criminalidade e a pena.
Ela foi reconstruída, nestes termos, por BARATTA (1982, p.30-31)100
que define analiticamente o seu núcleo mediante os seguintes princípios:
a) Princípio do bem e do mal. O fato punível representa um dano para
a sociedade e o delinqüente é um elemento negativo e disfuncional do sistema
social. O comportamento criminal desviante é o mal, a sociedade o bem.
b) Princípio de culpabilidade. O fato punível é expressão de uma
atitude interior reprovável, porque seu autor atua conscientemente contra valores e
normas que existem na sociedade previamente à sua sanção pelo legislador.
c) Princípio de legitimidade. O Estado, como expressão da sociedade,
está legitimado para reprimir a criminalidade, da qual são responsáveis
determinados indivíduos. Isto se leva a cabo através das instâncias oficiais de
controle do delito (legislação, polícia, magistratura, instituições penitenciárias).
Todas elas representam a legítima reação da sociedade, dirigida tanto ao rechaço
e condenação do comportamento individual desviante como à reafirmação dos
valores e normas sociais.
d) Princípio de igualdade. O Direito Penal é igual para todos. A reação
penal se aplica de igual maneira todos os autores de delitos. A criminalidade

encontramos, salvo exceções, em presença da afirmação de uma ideologia da defesa social como
no teórico e político fundamental do sistema científico. A ideologia da defesa social (ou do fim)
nasceu ao mesmo tempo que a revolução burguesa e enquanto a ciência e a codificação penal se
impunham como elementos essencial do sistema jurídico burguês, ela tomava o predomínio dentro
do específico setor penal. As escolas positivistas herdaram depois da escola clássica,
transformando-a em algumas de suas premissas, conforme as exigências políticas que assinalam, no
seio da evolução da sociedade burguesa, a passagem do estado liberal clássico ao estado social".
(BARRATA, 1991, p.35-6)
100 .A respeito ver também BARATTA (1991, p.35-7) e BERGALLI (In: BERGALLI & BUSTOS
RAMÍREZ,1983a, p.243-244).
significa a violação do Direito Penal e, como tal, é o comportamento de uma
minoria desviada.
e) Princípio do interesse social e do delito natural. No centro mesmo
das leis penais dos Estados civilizados se encontra a ofensa a interesses
fundamentais para a existência de toda sociedade (delitos naturais). Os interesses
que protege o Direito Penal são interesses comuns a todos os cidadãos. Somente
uma pequena parte dos fatos puníveis representam violações de determinados
ordenamentos políticos e econômicos e restulam sancionados em função da
consolidação dessas estruturas ("delitos artificiais").
f) Princípio do fim ou da prevenção. A pena não tem (ou não tem
unicamente) a função de retribuir o delito, mas de preveni-lo. Como sanção
abstratamente prevista pela lei, tem a função de criar uma justa e adequada contra-
motivação ao comportamento criminal, isto é, intimidá-lo (prevenção geral
negativa).Como sanção concreta tem como função a ressocialização do
delinqüente (prevenção especial positiva)101.
Esta ideologia se mantém constante até nossos dias, não obstante as
alterações intra-sistêmicas da Dogmática penal e consubstancia, especialmente em
seus princípios "d" e "e" o que BARATTA (1978, p.9-10) denomina o "mito do
Direito Penal igualitário" que se expressa, então, em duas proposições:
a) O Direito Penal protege igualmente a todos os cidadãos das ofensas
aos bens essenciais, em relação aos quais todos os cidadãos têm igual interesse;
b) A lei penal é igual para todos, isto é, os autores de comportamentos
anti-sociais e os violadores de normas penalmente sancionadas tem "chances" de
converter-se em sujeitos do processo de criminalização , com as mesmas
conseqüências.

101 .Este princípio articula-se em torno às teorias jurídicas da pena a que aludimos na nota "13" do
segundo capítulo.
A ideologia da defesa social sintetiza, desta forma, o conjunto das
representações sobre o crime, a pena e o Direito Penal construídas pelo saber
oficial e, em especial, sobre as funções socialmente úteis atribuídas ao Direito
Penal ("proteger bens jurídicos" lesados garantindo também uma penalidade
igualitariamente aplicada para os seus infratores) e à pena (controlar a
criminalidade em defesa da sociedade, mediante a prevenção geral (intimidação) e
especial (ressocialização)).
O "princípio da legalidade" representa, por sua vez, o legado vertebral
da ideologia liberal que, se dialetizando com esta ideologia da defesa social
poderia ser inserido especialmente entre o princípio da "legitimidade" e da
"igualdade" nos seguintes termos: o Estado não apenas está legitimado para
controlar a criminalidade, mas é auto-limitado pelo Direito Penal no exercício
desta função punitiva realizando-a no marco de uma estrita legalidade e garantia
dos Direitos Humanos do imputado.
A identidade ideológica102 da Dogmática Penal reside assim na
dialetização do discurso liberal com o discurso da ideologia da defesa social em
cujo universo deve ser inserida e compreendida a sua função declarada.

102 . O signo ideologia é empregado, aqui, com um duplo e simultâneo significado: a) no sentido
positivo (ao qual Bobbio denomina significado "fraco") designando um sistema de representações
(idéias, crenças, valores) conexas com a ação, isto é, que implica um programa para a ação, e b)
no sentido negativo, (denominado por Bobbio de significado "forte") designando falsa consciência,
ocultamento/inversão da realidade. Enquanto discurso ideológico, o discurso dogmático comporta,
pois, uma dimensão positiva, de materialização, que corresponde ao seu discurso declarado, visível
(programa de ação) e uma dimensão negativa, de ocultação e inversão da realidade, traduzida
naquilo que ele oculta (seus silêncios) ou deforma ao se materializar.
Estes dois significados da ideologia, embora remontem a diferentes tradições de pensamento
(weberiana, a primeira; marxiana, a segunda) e experimente uma longa evolução, não são, a
nosso ver, incompatíveis, mas complementares e fundamentais à caracterização do discurso
dogmático . Pois se ele é, por um lado, um discurso eminentemente positivo, configurador de
sentido (ações e consenso, real ou aparente) comporta, simultaneamente, uma construção ilusória
da realidade em função da qual aquele sentido mesmo é produzido. (Por todos ver BOBBIO et al.
1986, p.585-597)
E esta dupla dimensão preside tanto à ideologia "liberal" quanto à ideologia da "defesa social", que
a conformam.
Enquanto ideologia jurídico-penal dominante o discurso dogmático,
traduzido num conjunto de representações, constitui um programa para a ação,
sendo neste sentido eminentemente positivo, configurador de sentido (ações e
consenso, real ou aparente). Mas comporta, simultaneamente, uma representação
ilusória da realidade em função da qual aquele sentido mesmo é produzido.
Contém assim um duplo código: junto à mensagem tecnológica (programadora)
encontra-se uma evidente mensagem legitimadora do Direito e do sistema penal, a
cujo significado retornaremos oportunamente.

9. Segurança Jurídica para quem?

Tratemos de precisar, nessa perspectiva, o alcance do significado e os


destinatários da segurança jurídica por ela prometida nos limites e desde a lógica
de seu próprio discurso, tal como o vimos reconstituindo: segurança jurídica para
quem?
É bem verdade que a ênfase conferida, no discurso dogmático, à
segurança jurídica, não tem sido acompanhada de uma discussão explícita do seu
significado103. Por isto mesmo, pode-se dizer que a segurança jurídica é um signo
dogmatizado no seu interior; uma idéia-força que assume a condição de um
autêntico "topoi" em nome do qual se fala.

Assim a oposição Ciênciaxideologia não tem sustentação no interior do discurso dogmático, no


qual a ideologia é um componente essencial à sua própria significação.
103 .
ZAFFARONI (1987, p.49-50), por exemplo, refere-se à segurança jurídica como um conceito
complexo, já que contém um significado objetivo (consistente no efetivo asseguramento de bens
jurídicos) e subjetivo (consistente no "sentimento" de segurança jurídica; ou seja,na certeza desta
disponibilidade de disposição). Neste sentido, o delito afeta duplamente a segurança jurídica:
como afetação de bens jurídicos, lesiona seu aspecto objetivo; como "alarma social" lesiona seu
aspecto subjetivo.
A Dogmática Penal não parece, contudo, manejar o conceito de segurança jurídica em seu aspecto
subjetivo.
A dúplice proposição aludida por BARATTA, associada ao princípio
da legalidade pode ser traduzida, desde a lógica dogmática, nos seguintes termos:
quando se aplica uma norma penal, se tutela um bem jurídico (interesse ou
valor)104 que interessa indistintamente a todos os cidadãos (princípio do interesse
social). Mas é necessário também tutelar o autor de delitos contra punições
arbitrárias e desiguais garantindo-lhe uma aplicação segura (princípio da
legalidade) e igualitária (princípio da igualdade) da lei penal.
Assim, enquanto a primeira tutela diz respeito à realização do conjunto
dos interesses e valores que o ordenamento penalmente tutela - como bens
jurídicos - para a "universalidade dos cidadãos" aos quais se dirige, isto é, para a
maioria não transgressora; a segunda tutela diz respeito à proteção dos cidadãos
efetivamente sujeitos à Justiça Penal, isto é, à minoria transgressora.
Daí a moderna conexão funcional de um Direito Penal garantidor dos
cidadãos não delinqüentes e dos cidadãos delinqüentes (esta lapidarmente
traduzida por Von Liszt na sua clássica afirmação de que o Direito Penal é "a
Magna Carta do delinqüente") e cujas origens BARATTA (1991, p.54) atribui à
Escola Clássica e à Escola "social" do Direito Penal.
Neste sentido, a tutela de bens jurídicos assume um significado bifronte.
Se o delito, por um lado, lesiona bens jurídicos que a legislação penal objetiva
proteger; a pena (em sentido amplo) implica necessariamente uma lesão de bens
jurídicos do autor do delito (de sua liberdade, no caso de prisão ou medidas de
segurança; de seu patrimônio, no caso de multa; de seus Direitos no caso de
104 .Pode-se dizer neste sentido que se os "bens jurídicos" penalmente tutelados não se identificam,
automaticamente, com os Direitos humanos fundamentais, estes têm constituído um mecanismo de
sua distribuição e proteção.(BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.59 E BASOCO, 1991, p.15). E que
se até a segunda Guerra Mundial prevaleceu a visão liberal e individualista do delito como ofensa a
bens jurídicos e a concepção destes como interesses e direitos subjetivos ( como a vida, a
propriedade, a honra), ao seu término esta concepção estende-se da esfera individual para
abranger bens jurídicos de "amplo alcance", cuja extensão é potencialmente universal (como a
economia e a incolumidade pública, a ecologia, etc.) (BARATTA, 1985[a] p.10-11)
inabilitações etc.). Esta privação de bens jurídicos do autor tem por objeto
garantir os bens jurídicos do resto dos cidadãos. Mas não pode exceder certos
limites (ZAFFARONI, 1987, p.30).
Por isto,
"No fundo, há uma aparente contradição ou paradoxo, que é a de
proteger direitos limitando direitos. Daí que o sistema penal deva
rodear-se de requisitos mínimos, tanto formais quanto materiais, que
constituem os limites do poder punitivo, passados os quais tal poder se
torna repressivo, [no sentido de uma repressividade excedente]."
(ZAFFARONI, 1984, p.27)

A promessa dogmática circunscreve, precisamente, o âmbito da


segunda tutela, isto é, dos Direitos Humanos dos cidadãos delinqüentes,
circunscrevendo o problema dos limites da violência institucional da pena como
resposta à violência individual do delito. Trata-se, portanto, de segurança de não
serem punidos arbitrária e desigualmente; ou, em outras palavras, da maximização
das garantias do imputado e da minimização do arbítrio punitivo.
Guardadas todas as devidas proporções, a Dogmática Penal não deixa
de ser, tal como a Criminologia, uma Ciência voltada para os cidadãos
delinqüentes. Mas, enquanto a Criminologia centra-se no delinqüente mesmo
como "pessoa"-objeto de intervenção do poder punitivo e nas medidas curativas
para a sua anormalidade; a Dogmática Penal reenvia a ele enquanto "homem" ou
"indivíduo" - limite do poder punitivo, isto é, à humanidade como medida do
punitivo.

10. Da racionalidade do legislador à racionalidade do juiz mediada pela


racionalidade do sistema dogmático: onde segurança e justiça se
encontram
Com base no discurso analítico e propedêutico e na ideologia liberal e
da defesa social aqui situados, podemos reconstruir então o fio condutor da
promessa de segurança jurídica observando como ela é tecida por um discurso
mais amplo que o discurso do crime. Pois, em seu trabalho comunicacional, a
Dogmática procura dar consistência à promessa reenviando e vinculando a
construção sistemática do crime à racionalidade do legislador, por um lado, e à
racionalidade do juiz, por outro, levando a cabo aquela dupla racionalização a que
nos referimos no capítulo primeiro.105
Pela interpretação dogmática do princípio da legalidade e pelo
princípio do interesse social, que compõem seu repertório ideológico, torna-se
visível que ela não se limita a considerar a legislação penal como válida ou
objetiva, mas também lhe atribui certas propriedades formais (unívoca, completa
etc.) e materiais (imparcial, justa) das quais decorre o dever de obediência -
ideologia juspositivista. Pelo princípio da igualdade e a crença juspositivista da
neutralidade científica e judicial, que igualmente o compõem, torna-se visível sua
suposição de existir não apenas um legislador racional, que confere à legislação o
mesmo atributo, mas um juiz igualmente racional.
Desta forma, após afirmar sua cientificidade e imparcialidade a
metaprogramação dogmática identifica o Direito Penal com uma legislação escrita,
estrita, unívoca, irretroativa, geral e imparcial e neutraliza a subjetividade do juiz
concebendo-o como um intérprete que decide também imparcialmente com base
na lei penal (única fonte imediata) e no seu instrumental conceitual (código
tecnológico).

105 . A respeito ver item "4.2" do primeiro capítulo.


Se a legislação penal em abstrato é racional, racionalizada sua aplicação,
mediante a neutralidade judicial e científica, preserva-se logicamente a
identificação originária: tais são as bases constitutivas da promessa de segurança.
Com efeito, se a lei penal (escrita, estrita, unívoca, irretroativa) é a única
fonte imediata do Direito Penal, protegendo bens jurídicos que interessam
igualmente a todos os cidadãos e sendo, por isso, intrinsecamente justa, sua
aplicação igualitária, no marco da neutralidade judicial e científica, conduziria não
apenas à segurança jurídica, mas preservaria sua qualidade originária arrastando
logicamente à justiça das decisões 106.

Assim se supõe

"(...) de uma parte, que a lei e sábia e como tal consulta as necessidades reais da população (não o supor seria um
desrespeito à 'majestade da lei') e, de outra, que o desenvolvimento pura e estritamente lógico, formal e conceitual
dos textos normativos e dos princípios em que se inspiram, há de levar direito e forçosamente a conclusões retas
para a lógica racional do discurso, isto é, verdadeiras, que resultam ser ao mesmo tempo as mais adequadas,
saudáveis ou justas para a solução dos correspondentes conflitos sociais, ou seja, para a realização social da
justiça [dura lex, sed lex]. Existiria, portanto, uma espécie de harmonia preestabelecida entre a verdade lógico-
formal do discurso jurídico e a justiça material ou sócio-política das soluções, como se a justiça consistisse em
mera plana (desprestigiosa) verdade lógico-sistemática. Tudo sucede como se a verdade lógico-formal do direito
houvesse que arrastar sem remédio à justiça das decisões (já que as leis, enquanto sobias, se reputam igualmente
justas)." (CARRASQUILLA, 1988, p.74-5)

Os vetores básicos subjacentes à promessa de segurança jurídica são,


pois, a nosso ver, os princípios da legalidade, do interesse geral e da igualdade
jurídica, nos quais vai implícita a idéia de justiça. Teoricamente, é a generalidade
da lei, o respeito à legalidade e à igualdade decisórias, obtida no horizonte
científico das construções dogmáticas que garante a segurança jurídica e, por
extensão, a justiça das decisões: a "práxis penal se recupera assim como tarefa

106 .Neste sentido diz GRONINGEN (1980, p.11) que "a generalidade da lei e sua aplicação
uniforme são apresentadas como garantia da igualdade entre os cidadãos."
racional livre de arbitrariedades. À maior perfeição científica corresponderia
menor possibilidade de conseqüências irracionais." (OLLERO, 1982, p.24-5)
Neste sentido a promessa dogmática de certeza-segurança jurídica
encontra-se vinculada, também, " a uma certa idéia de verdade científica, a partir
da qual a ciência concebe e legitima um conhecimento "objetivo" e "certo",
transubjetivamente válido no seio da comunidade científica dos
juristas."(PUCEIRO, 1987, p.83)
A ideologia da defesa social explicitada por BARATTA evidencia,
enfim, que a Dogmática Penal pressupõe não apenas a racionalidade do legislador
(princípio do interesse social) e do juiz (princípio da igualdade) mas também a
"legitimidade" do poder punitivo do Estado Moderno.
É o que salienta BACIGALUPO (1982, p.70) ao afirmar precisamente
que ela parte de uma determinada idéia de legitimidade do exercício do poder
penal do Estado que se expressa na formulação de princípios jurídico-penais.
O vigoroso esforço racionalizador da Dogmática Penal é, assim, um
vigoroso esforço "neutralizador" do exercício do poder punitivo mediante o qual
a Dogmática Penal não apenas esgota-o no trânsito lógico do legislador ao juiz
mas incide no "pensamento mágico de afirmar que a simples institucionalização
formal realiza o programa, quando simplesmente o enuncia." (ZAFFARONI,
1987, p.39)

11. Problematização da Dogmática Penal no passado e no presente

Como aludimos no capítulo primeiro, é possível identificar três grandes


eixos de argumentos recorrentes no universo da crítica histórica à Dogmática
Jurídica: a) o argumento de sua falta de cientificidade; b) o argumento de sua
ruptura ou divórcio com a realidade social; e, c) o argumento de sua
instrumentalização política legitimadora do status quo.
Desta forma, a crítica externa à Dogmática Penal também tem
acentuado sua debilidade epistemológica, seu formalismo metodológico (incluindo
a incapacidade para dialogar com as Ciências Sociais, especialmente com a nova
Criminologia) e seu conservadorismo político.
Além desta crítica externa a Dogmática Penal tem sido objeto, também,
de uma crítica interna, isto é, desde o seu interior e nos limites do próprio
paradigma, circunscrita ao sistema da teoria do crime.
A crítica epistemológica abordamos no capítulo primeiro e no início
deste capítulo indicamos como a Dogmática Penal responde a ela através da
tentativa de uma fundamentação epistemológica neokantiana. Revisitemos, pois, na
continuação, a crítica interna à Dogmática Penal e, a seguir, a crítica externa nos
níveis metodológico e político-funcional.

11.1. A crítica interna à Dogmática Penal e a reafirmação das promes-


sas: uma peregrinação intrassistêmica pelas categorias do crime

Dado que a construção de uma teoria do crime centraliza os esforços


da Dogmática Penal nesta teoria se centralizou, historicamente, sua crítica interna
que, desenvolvida ao longo do século XX sobretudo pela Dogmática Germânica,
encontra seu aspecto mais marcante na revisão sucessiva do conteúdo do sistema
do delito, implicando alterações internas nas suas categorias constitutivas:
tipicidade, ilicitude e culpabilidade. (BUSTOS RAMÍREZ, 1984; WELZEL,1987;
LUISI, 1987; MIR PUIG, 1976)
Nesta perspectiva, três são as grandes matrizes do sistema do crime: 1)
o positivismo naturalista (teoria causalista naturalista); 2) o neokantismo valorativo
(teoria causalista valorativa); e, 3) o finalismo (teoria finalista). 107
Desta forma, se na base do paradigma dogmático de Ciência Penal
encontra-se um approach juspositivista complementado por uma fundamentação
neokantiana que, de qualquer modo, não o descaracteriza, a construção interna da
teoria do crime recebe uma fundamentação que vai desde o positivismo
naturalista, passando pelo neokantismo valorativo até uma fundamentação
ontologicista chegando às tendências funcionalistas contemporâneas.

- O positivismo naturalista (causalismo naturalista)

O causalismo-naturalista corresponde, precisamente, ao sistema LISZT-


BELING e preside às bases fundacionais do sistema do crime.
Influenciado neste aspecto pela matriz das Ciências naturais, que trata
de aplicar à teoria do crime a intenção de LISZT é

"(...) alcançar um sistema definitório de sucessivas determinações no campo do delito, igual ao usado por Linné no
âmbito das plantas (...). São estas idéias que levam Lizt e Beling a estabelecerem um sistema de características
limitadas e limitantes: tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Se trata, portanto, de um ordenamento
onicompreensivo ao mesmo tempo que vai sendo especificado pelas características seguintes. A ação aparece como
o substantivo, as demais características como simples adjetivações." (BUSTOS RAMÍREZ, 1986, p.159)

Com efeito, no centro do conceito liszteano de crime como "ato


culpável, contrário ao Direito e sancionada com uma pena" encontra-se a ação
entendida como um processo causal, como um movimento corporal que produz

107 .A "teoria da ação social" pode ser considerada, segundo diversos autores, como uma variante da
causalista valorativa.
uma transformação no mundo exterior perceptível pelos sentidos. (COÑDE, 1975,
p.169)
E é a ação assim concebida a que recebe o tipo e conforma a tipicidade.
Interessa exclusivamente constatar o resultado produzido pela ação e a relação de
causalidade. A tipicidade resulta, em decorrência, numa característica meramente
descritiva e objetiva. A antijuridicidade, enquanto segunda adjetivação da ação,
vem a ser sua especificação valorativa , isto é, consiste na valoração de sua
danosidade social ou ataque a bens jurídicos.
Em síntese, o crime, como conceito que engloba a ação típica e
antijurídica tem como caráter fundamental o da objetividade. É o âmbito do
objetivo, seja objetivo-descritivo, quando referido à tipicidade; seja objetivo-
valorativo, quando referido à antijuridicidade. (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.159)
A valoração do ato, contudo, aduzia LISZT a valoração do autor,
traduzida na categoria culpabilidade - o aspecto "subjetivo" do delito - que
estabelece precisamente a relação subjetiva psicológica (dolo ou culpa) com a
ação típica e antijurídica. (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.160)
A culpabilidade é então concebida no sentido meramente psicológico
como a relação subjetiva entre o ato e seu autor, estruturando-se assim as
chamadas formas da culpabilidade, dolo e culpa, precedidas pela constatação da
capacidade psíquica do autor, a chamada imputabilidade. (COÑDE, 1975, p.170)
Neste sistema se materializava perfeitamente a tarefa (técnico-jurídica) e
a função (racionalizadora/garantidora) que LISZT atribuía à Ciência do Direito
Penal.

- O neokantismo valorativo (causalismo neokantiano)


A primeira grande revisão crítica que sofreu o originário sistema
LISZT-BELING foi desenvolvida no interior da matriz neokantiana de BADEN e

"(...) se caracteriza pela intenção de referir a valores as categorias de teoria geral do delito, mostrando assim a
influência manifesta da filosofia neokantiana que nesta época teve seu máximo esplendor e reflexo entre os
penalistas alemães, e pelo afã de substituir o formalismo positivista por um positivismo teleológico" (COÑDE,
1975, p.172)

Desta forma o neokantismo de Baden foi apropriado pela Dogmática


Penal tanto para dar uma fundamentação epistemológica ao seu próprio
paradigma, quanto para redefinir o conteúdo das categorias internas do sistema
do delito. Ele incide na própria fundamentação do paradigma, a nível estrutural, e
na metodologia de análise do sistema da teoria do crime , para resolver concretos
problemas jurídico-penais, a nível intrassistêmico.
A metodologia neokantiana, projetada para a teoria do crime tem início
com o ataque de RADBRUCH (1904) contra a impossibilidade do conceito causal
de ação sustentar todo o edifício da teoria do crime e culmina nos ataques mais
importantes e decisivos contra a distinção causalista entre "objetivo" e
"subjetivo", e, no interior daquele primeiro, entre "descritivo" e "valorativo".
Desta forma, RADBRUCH salientou a impossibilidade de reduzir os
conceitos de ação e omissão a um comum denominador, já que esta última
prescinde de um movimento corporal e é, por essência, a negação da ação. A
omissão não se explicava, portanto, como pretendeu Beling, naturalisticamente.
Daí sua proposta de enraizar na "realização típica" o conceito fundamental do
sistema. (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.160-1)
O entendimento belingüeano do tipo como rigorosamente objetivo,
avalorativo e descritivo suscitou uma avalanche de críticas que provenientes de
M. E. MAYER, A. HEGLER, E. MEZGER e W. SAUER procuraram mostrar a
existência de elementos subjetivos e axiológicos nos tipos penais, tendo MAYER
acentuado a existência de seus elementos normativos - e não unicamente
descritivos. (LUISI, 1987, p.16)
Assim, enquanto seguiu-se concebendo a ação em sentido causal, como
no modelo naturalista, se introduziu os elementos subjetivos do tipo. (MIR PUIG,
1976, p.241)
Enfim, o valorativo se estendeu não apenas da antijuridicidade ao tipo,
mas também atingiu a culpabilidade dando origem à chamada teoria normativa da
culpabilidade (REINHARD FRANK, JAMES GOLDSCHMIDT E BERTHOLD
FREUDENTAL) segundo a qual ela não se esgota, como no sistema Liszt-Beling,
numa relação psicológica subjetiva, mas é antes de tudo uma reprovação ao
sujeito porque não utilizou suas capacidades para atuar conforme ao Direito. A
culpabilidade torna-se, portanto, um problema valorativo. (BUSTOS RAMÍREZ,
1984, p.161)
O dualismo neokantiano de "ser" (realidade empírica livre de valor) e
"dever ser" (significado valorativo da realidade) se manifestou, assim, ao longo de
toda a teoria "neoclássica", produto da metodologia neokantiana(MIR PUIG,
1984, p.242)

E doravante

"(...) o injusto não só é objetivo, como também valorativo e por exceção - inexplicável - contém momentos subjetivos;
por isto, a tipicidade é objetiva, descritiva, valorativa e com elementos subjetivos nas causas de justificação (por
exemplo, o conhecimento da agressão na legítima defesa). A culpabilidade por sua vez é o âmbito próprio do
subjetivo, mas é também valorativa. Definitivamente, o que primou e que recorre agora todo o delito, é o valorativo,
que vai da tipicidade à antijuridicidade e surge como o elemento então essencial e vinculador do delito. O qual
aparece como lógico, pois é a conseqüência da aplicação das teses neokantianas valorativas ao campo do direito
penal. Mas, contudo, a base segue sendo positivista naturalista, pois a ação é concebida só como causalidade."
(BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.162:3)

Em geral, pois, como destacara WELZEL (citado por BUSTOS


RAMÍREZ, 1987, p.524) o neokantismo valorativo superpôs aqui uma estrutura
de valores à estrutura de fatos da natureza legada pelo positivismo que se
manteve como base de apoio do sistema neokantiano.
Neste sentido as contradições acima apontadas, obedecem ao caráter
meramente complementário

"(...) com o qual o neokantismo se apresenta frente ao positivismo. Na dogmática penal isso significou que não se
quis derrubar o edifício do delito construído pelo positivismo naturalista de von LISZT e BELING, mas apenas
introduzir correções no mesmo. É por isso que o conceito neoclássico de delito aparece como uma mistura de dois
componentes dificilmente conciliáveis: origens positivistas e revisão neokantiana, naturalismo e referência e
valores." (MIR PUIG, 1976, p.241-2)

- O finalismo (teoria finalista da ação)

Uma revisão completa do sistema então causalista-valorativo e, com ela,


um novo conteúdo, surge com a chamada teoria da ação final ou teoria finalista
da ação cujo fundador e principal expoente foi HANS WELZEL.108
A teoria finalista empreende a tarefa não só de superar o causalismo
valorativo, mas também as posições críticas (ALEXANDER GRAF ZU DOHNA
e HELLMUTH VON WEBER) deste sistema que, embora tenham preparado o

108 .
Muito embora a plenitude das conseqüências do finalismo para a teoria do delito não tenha lugar
até 1939, com o artigo de WELZEL denominado "Studien zum System des Strafrechts" e só
passe ao primeiro plano da atenção da Dogmática Penal depois da Segunda Guerra Mundial suas
bases metodológicas foram fixadas por WELZEL já em 1930, em seu artigo "Kausalität und
Handlung" e precisadas e desenvolvidas em 1932. (MIR PUIG, 1976, p.245).
WERNER NIESE, REINHART MAURACH, GÜNTER STRATENWERTH e ARMIN
KAUFMANN também são outros nomes importantes no enriquecimento desta concepção.
seu próprio caminho, careciam de um aperfeiçoamento sistemático. (BUSTOS
RAMÍREZ, 1984, 1974, p.162-4)
O subjetivismo metodológico e o relativismo valorativo são os pontos
que centralizam a crítica de WELZEL ao neokantismo desde um prisma
objetivista de modo que

"A passagem do subjetivismo ao objetivismo constitui o fundamento metódico da teoria do delito desenvolvida pelo
finalismo. A substituição do relativismo valorativo pela afirmação de 'verdades eternas' e de 'estruturas lógico-
objetivas' é a chave de abóboda da filosofia jurídica de Welzel. Mas o abandono do subjetivismo gnosiológico
neokantiano é, ao mesmo tempo, um primeiro pressuposto da filosofia antologicista desse autor, pelo qual tal giro
metodológico é, como costuma acontecer, um fator prévio que condiciona sua total construção." (MIR PUIG, 1976,
p.247-8)

Com efeito, para WELZEL (citado por MONREAL, 1982, p.75) existem no
mundo "objetividades lógicas" ou "estruturas lógico-objetivas", representadas por
certos dados ontológicos fundamentais e que assinalam, por isto, limites muito
precisos ao Legislador e à Ciência Penal. De modo que é necessário ao primeiro,
ao normar ações, e à segunda, ao interpretar seu objeto, respeitar aquela estrutura
pré-jurídica, derivada da natureza das coisas, (que ninguém e nenhum poder no
mundo pode modificar) sob pena de, desconsiderando-a, legislar um Direito
ineficaz, falso, contraditório e não objetivo ou deixar a aplicação do Direito Penal
abandonada ao arbítrio, no caso da Ciência Penal. 109
Sustentando que as categorias a priori - que constituem a base do
sistema do delito - não são "subjetivas", no sentido de que podem variar de
acordo com o intérprete, mas "objetivas", WELZEL inverte a metodologia
neokantiana, rechaçando a tese da "função do método de configuração da
matéria": não é o método que determina o objeto, mas o objeto que determina o
método. (MIR PUIG, 1976, p.250 e 252-3)

109 . Sobre a dimensão do jusnaturalismo em Welzel ver MONREAL (1982, p.73-80).


E a estrutura ontológica da ação é a de ser, precisamente, ação final:

"Ação humana é exercício de atividade final.. A ação é, por isso, acontecer 'final', não somente 'causal'. A
'finalidade ou o caráter final da ação se baseia no que o homem, graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de
certos limites, as conseqüências possíveis de sua atividade, pôr-se, portanto, fins diversos e dirigir sua atividade,
conforme seu plano, à obtenção destes fins. Atividade final é um obrar orientado conscientemente desde o fim,
enquanto que o acontecer causal não está dirigido desde o fim, mas é a resultante causal dos componentes causais
existentes em cada caso. Por isso, a finalidade é - dito em forma gráfica - 'vidente'; a causalidade 'cega'."
(WELZEL, 1987, p.54)

Observa-se que sobretudo em seus primeiros momentos a teoria


finalista de WELZEL também busca um conceito onicompreensivo de ação, que
explique todo o sistema de forma homogênea e sem variações. Mas o seu próprio
desenvolvimento levou à superação desta tendência com a bifurcação do sistema
originário, configurando-se um para os crimes dolosos e outro para os crimes
culposos, com o que se recolhia toda uma rica investigação que as teorias
causalistas, por seu formalismo e naturalismo, não puderam assimilar. Esta
tendência recolheu também o legado de Radbruch sobre a diferente especificidade
da ação e da omissão. O finalismo rompia, assim, com a estrutura unitária e
uniforme do crime, levando em consideração o esquema do crimes comissivos e
omissivos e, no seu interior, dos crimes dolosos e culposos. (BUSTOS
RAMÍREZ, 1986, p.166)
Com a teoria da ação final WELZEL ataca, portanto, o fundamento
mesmo do sistema causalista - a ação causal - e a partir daí reordena o conteúdo
do sistema do crime. Se a ação final é sempre ação voluntária que contém uma
finalidade, ela contém os elementos psicológicos dolo e culpa que, presentes na
ação típica, incluem-se no próprio tipo penal.
Em decorrência, WELZEL desloca o dolo (e também a culpa) da
culpabilidade - onde estavam anteriormente sediados - para a tipicidade:
"Agora não só o valorativo transpassa todo o delito, mas também o subjetivo. A ação (final) confere a base subjetiva
ao injusto, o dolo necessariamente pertencerá à tipicidade, pois toma justamente essa estrutura final da ação e
deste modo os elementos subjetivos se engrenam facilmente no tipo ou nas causas de justificação, pois têm por
base essa estrutura final da ação." (BUSTOS RAMÍREZ, 1984, p.165)

A tipicidade tem um caráter valorativo, autônomo em relação à


antijuridicidade, porque a norma penal incriminadora implica uma valoração sobre
a ação do sujeito. A antijuridicidade, em contrapartida, é um juízo valorativo
(objetivo) que relaciona a ação típica realizada com todo o ordenamento jurídico.
Enfim, a culpabilidade fica desprovida de toda relação psicológica e
limita-se a um juízo de caráter valorativo (reprovação) e subjetivo (em relação à
capacidade de motivação e atuação do sujeito). (BUSTOS RAMÍREZ, 1984,
p.165)
Trata-se de um juízo de censura que recai sobre um sujeito imputável,
com possibilidade de conhecimento do injusto e com exigibilidade de conduta
diversa.
Já em começos do século (1907), com o advento da chamada teoria
normativa da culpabilidade de R. FRANK, o juízo de culpabilidade tendia a
desvincular-se dos elementos psicológicos da ação - que, na teoria precedente,
permitiam converter em objetividade o nexo entre autor e fato - e se centralizar na
sua reprovabilidade (BARATTA, 1985, p.6 e 1988, p.6660) o que a teoria finalista
vem relativamente a consolidar mediante o transplante do dolo e da culpa para a
estrutura do tipo penal.
Sobrevive nela, contudo, um último resquício ontológico, consistente na
possibilidade, rechaçada pelo autor de um delito, de comportar-se de outra
maneira (Andershandelnkönen); ou seja, a opção, descartada por ele, de orientar
o próprio comportamento segundo as normas e valores constitutivos do
ordenamento. A estigmatização do comportamento passa a ser entendida então
como um juízo de reprovação à atitude de infidelidade do cidadão relativamente
ao ordenamento jurídico, na pressuposição do conhecimento da norma violada,
de uma disponibilidade real de opções conforme à lei, e da exigibilidade de
comportamento à ela. (BARATTA, 1988, p.6660-1)
Desta forma,

"(...) a doutrina final da ação não é a única manifestação da metodologia finalista. É este um aspecto pouco estudado
no que é preciso insistir. Junto à finalidade da ação, a concepção da essência da culpabilidade como reprovalidade
por ter podido o autor do injusto atuar de outro modo (a célebre fórmula de Anders - handeln - Können) constitui o
segundo pilar da teoria do delito de Welzel. Pois bem: o 'poder atuar de outra forma' constitui para esse autor uma
'estrutura lógico-objetiva' ancorada na essência do homem, como ser responsável caracterizado pela capacidade de
autodeterminação final com arranjo a um sentido. Em outras palavras, se trata, tanto como na ação final, de uma
conseqüência da metodologia ontologiscita de Welzel de importância capital para a teoria do delito. Tanto as 'leis
da estrutura da ação' como os 'princípios de culpabilidade' 'são independentes das mutantes modalidades de ação e
constituem as componentes (die bleibenden Besetandteile) do Direito Penal' (...) 'com isto nos achamos no
autêntico núcleo da teoria da ação final'(...)." (MIR PUIG, 1976, p.248-9)

- A reafirmação das promessas na peregrinação intrassistêmica

Nesta perspectiva é importante observar que a promessa de realização


de um approach juspositivista entendido em sua inteira significação 110 , que
preside à gênese da Dogmática Penal, foi uma promessa nunca inteiramente por
ela realizada, seja no marco do próprio tecnicismo jurídico, seja no marco do
neokantismo ou do finalismo. Pois de BINDING à WELZEL conceitos pré-
jurídicos (ontológicos, metafísicos)foram tidos, tácita ou explicitamente, como
dados genéticos das normas e da Ciência Penal ou suas categorias foram, como
no neokantismo, essencialmente referidas a valores. Neste sentido convivem, na
Dogmática Penal, o normativismo juspositivista que preconiza um sistema do
delito derivado exclusiva e indutivamente da lei (LISZT, ROCCO) e um

110 .Traduzindo não apenas a delimitação do objeto da Ciência Penal ao Direito Penal positivo, mas
a rejeição categórica de interferências extra-normativas no seu estudo
normativismo conceitualista com resquícios jusnaturalistas (BINDING,
WELZEL).111
Para efeitos de nossa análise, contudo, o mais significativo da evolução
da teoria do crime, aqui sumariada no limite de sua compreensão mínima, é, antes
que as revisões ou alterações propostas e as suas diferenças metodológicas
internas,o que esta evolução preserva; antes que suas variações, suas
permanências.
Neste sentido importa-nos primeiramente concluir, com ROXIN (1972,
p.79-80) que "se pode descrever a teoria do delito dos últimos decênios como
uma peregrinação dos elementos do delito pelos diferentes estágios do sistema."
E isto porque, como vimos:

"Quase todas as teorias do delito que se deram até data são sistema de elementos, isto é, desintegram a conduta
delituosa numa pluralidade de características concretas (objetivas, subjetivas, normativas, descritivas, etc.) que se
incluem nos diferentes graus da estrutura do delito e que se reúnem, deste modo, como mosáico para a formação
do fato punível. Este delineamento conduz a aplicar uma grande agudeza à questão de que lugar corresponde a esta
ou àquela característica no sistema do delito..." ROXIN (1972, p.79-80)

BASTOS (1983, 1982, p.83) vê nesta depuração conceitual tão


minuciosa a preservação de um autêntico "folclore", já que dificilmente

"(...) o penalista germânico se libertará da convicção de que se


encontra historicamente destinado a desvendar o falso enigma da
anatomia jurídica do crime e da pena. Dir-se-ía que persistem, nele, as
ilusões de uma vocação filosófica dirigida à perquirição cada vez mais
profunda dos átomos e essências do 'jurídico', temporariamente
escondidos à percepção humana. E ele então vai à luta, dissecando a
seu modo a mosca azul de Machado de Assis, sem que a veja
fragmentada e morta, já que trabalha com a força da fé e o vigor da
clarividência introspectiva. E escreve livros, artigos, conferências,
distinguindo e subdistinguindo; consertando aqui, retocando ali,

111 .Taltestemunha que, mais correto do que falar de exege ou interpretação da lei, como primeira
etapa do método dogmático, é falar de interpretação do material normativo, como propomos na
caracterização da auto-imagem dogmática na introdução do capítulo primeiro.
dinamitando mais abaixo, sob protestos ou aplausos de colegas que
retornam ao tema com novas distinções, acréscimos e adendos."

Desta forma, se por um lado é possível, devido a esta peregrinação


intrassistêmica falar de diferentes dogmáticas do delito, é fundamental salientar,
por outro lado, que a Dogmática Penal não perde, com ela, sua identidade
estrutural (objeto, tarefa metódica e funções declaradas).
Em primeiro lugar, porque nem o causalismo naturalista, nem o
causalismo neokantiano, nem o finalismo afetam o núcleo juspositivista da Ciência
Penal como Ciência normativa, pois a determinação do Direito Positivo como
objeto da Ciência Penal é "o postulado básico a que respondem todas as
concepções metodológicas que tem lugar na história da Dogmática penal." (MIR
PUIG, 1976, p.l96)
Em segundo lugar porque,não obstante as significativas diferenças
metodológicas internas entre o causalismo, o neokantismo e o finalismo é mantida
a tarefa metódica estrutural da Dogmática consistente na construção jurídica
nucleada na exigência do sistema, precedida pela interpretação do material
normativo.

Neste sentido,

"Dita polêmica se desenvolveu dentro dos estreitos limites que apontou à Ciência do Direito penal o positivismo
jurídico de finais do século passado. Segundo esta teoria, a única tarefa do jurista consistia em interpretar o
Direito positivo e desenvolvê-lo num sistema fechado, de acordo com princípios lógicos dedutivos, subindo dos
concretos preceitos da lei até os últimos princípios e conceitos fundamentais. A elaboração do sistema era, por
conseguinte, a missão fundamental da Ciência do Direito penal (...) (COÑDE, 1976, p.179)
Por isto mesmo, a peregrinação causalismo-neokantismo-finalismo se
apresenta como eminentemente sistemática. Como um " uma luta para dentro: uma
espécie de guerra civil entre, por e para juristas(...)." (COÑDE, 1975, p.179-180)
Conseqüentemente, suas respectivas metodologias tem implicações na
forma de apreensão das categorias da teoria do crime; ou seja, o que muda são
os caminhos da construção e seu produto mas não a idéia de construção
sistemática mesma sendo mantida, em decorrência, a estrutura categorial básica
proveniente do originário sistema originário LISZT-BELING.
E uma vez que tanto o causalismo, quanto o neokantismo e o finalismo
mantêm a tripartição clássica da estrutura do delito, limitando-se a mudar o
conteúdo das categorias tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade ampliando ou
restringindo o que originariamente se lhes asignou, o sistema, neste sentido,
avançou muito pouco. (COÑDE,1975, p.177)
Nesta perspectiva, a polêmica entre causalismo e finalismo, na qual veio
a se polarizar o sistema dogmático pode ser situada como uma terceira grande
polêmica no universo do saber penal que, guardadas as especificidades, substitui a
originária luta entre classicismo e positivismo e, a seguir, entre Dogmática e
Criminologia constituindo a nota mais chamativa da último pós-guerra.
Chegamos, assim, ao terceiro e decisivo aspecto que nos interessa aqui
enfatizar. Além de manter seu approach e tarefa metódica a Dogmática Penal não
abandona, ao longo de sua peregrinação intrassistêmica, a promessa
racionalizadora/garantidora com que se constitui na modernidade, que permanece
no centro dos modelos então configurados.
Mesmo que impliquem diferentes relações entre o sistema e a lei penal112
os modelos intrassistêmicos da teoria do delito preservam, significativamente, a

112 . A respeito ver BACIGALUPO (1982, p.69 et seq).


promessa de segurança jurídica, ou seja, a crença de que o sistema dogmático do
crime é capaz de gestar a segurança jurídica na administração da Justiça Penal.
Basta relembrar que na sua base está a matriz de V. LIZST 113 e na sua
última versão institucionalizada a de H. WELZEL114 os quais, embora por
metodologias específicas, atribuem ao sistema a mesma função
racionalizadora/garantidora.
Com efeito, contrariamente à pretensão Liszteana de um sistema do
delito derivado indutivamente da lei, no ontologicismo representado por
WELZEL, a construção do sistema reenvia, tal como em BINDING, a conceitos
que se situam anterior e externamente à lei e que incumbem ao sistema apreender
essencialmente.
Assim WELZEL parte do reconhecimento de que as questões do
sistema jurídico-penal não podem desenvolver-se, como crê o puro juspositivista,
exclusivamente da lei, reconhecendo implicitamente ao sistema uma tarefa
cognoscitiva do Direito positivo mediante a qual, unicamente, se pode desenvolver
o seu conteúdo e estabelecer sua correta aplicação. (BACIGALUPO, 1989,
p.468)
A metodologia ontologicista de WELZEL não supõe o abandono da
segurança jurídica pelo sistema mas, ao contrário, busca outro caminho, a seu ver
mais eficaz, para a sua materialização dela se concluindo

"(...) que o sistema de lei interpretada não pode ser senão sistema das estruturas prévias da lei mesma, ou seja, o
do objeto regulado. Em outras palavras: teoria da ação e teoria do delito não se diferenciam. Assim dizia Welzel já
em 1939: 'A teoria da ação é a mesma teoria do delito'. (...) Precisamente a compreensão das estruturas óticas
prévias à lei mesma seria o que preservaria a aplicação do direito da causalidade e da arbitrariedade."
(BACIBALUPO,1989, p.468)

113 . Conforme item "5.2.1" do segundo capítulo e item "4" deste capítulo
114 . A respeito ver também item "4" deste capítulo.
Com a teoria finalista culmina, portanto, todo um processo dogmático
de revisão da teoria do crime cujo escopo é precisamente superar as contradições
anteriores e obter "uma maior precisão conceitual e garantidora" , muito embora
entreabrindo outros pontos críticos que põem tais resultados em discussão.
(BUSTOS RAMÍREZ,1984, p.167)
Nesta perspectiva podemos concluir que a Dogmática Penal não apenas
transplanta, para o âmbito da aplicação judicial do Direito Penal,a promessa de
segurança jurídica que o saber clássico enraizara na normatividade penal, mas
confere a esta promessa o respaldo da Ciência, incumbindo-lhe assegurar, na
práxis do Direito Penal o que o saber pré-dogmático consolidou na sua
programação normativa. Constitui, assim, a formalização mais acabada do Direito
Penal na modernidade.
Diante do exposto, se não se pode superdimensionar o discurso liberal
na Dogmática Penal e a ele tudo reconduzir, é possível afirmar sua importância e
permanência paradigmática ao longo da peregrinação resenhada.

- Requisitos objetivos e subjetivos da imputação de


responsabilidade penal na construção sistemática do crime para a
maximização da segurança jurídica

O ponto mais avançado da construção dogmática do crime para a


maximização das garantias do imputado (segurança jurídica) consubstancia-se ,
portanto, numa técnica de limitação da intervenção punitiva baseada nos
seguintes princípios (BARATTA,1988, p.6663):
a) princípio da responsabilidade pessoal , que exclui tanto a
responsabilidade objetiva do autor, quanto a responsabilidade penal coletiva e de
pessoas jurídicas;
b)princípio da responsabilidade pelo "fato", diga-se, típico e
antijurídico, que exclui os critérios de responsabilidade baseados nas
características das pessoas;
c)princípio da culpabilidade fundado na possibilidade de conhecimento
do injusto (fato típico e ilícito) e na exigibilidade de conduta diversa e cujo
pressuposto é a imputabilidade penal.
Enquanto a verificação da tipicidade e ilicitude implicam juízos
relacionais da conduta do autor (fato-crime) com os tipos penais de crime e o
ordenamento jurídico; a verificação da culpabilidade implica juízos relacionais da
responsabilidade do autor em relação ao fato-crime.
Desta forma, enquanto a tipicidade e ilicitude da conduta fática
constituem os requisitos objetivos; a imputabilidade e a culpabilidade do agente
constituem os requisitos subjetivos para a imputação de responsabilidade penal
pelo juiz, no que concerne à motivação de "Direito" em que se funda a sentença
penal; ou seja, à valoração jurídico-penal dos fatos e a individualização e
quantificação da pena. É necessário aduzir então que embora tais conceitos sejam
centrais se fazem acompanhar, no âmbito da metaprogramação dogmática, de
toda uma constelação teórica que, pretendendo cobrir desde à interpretação da lei
penal até a graduação da pena, em torno deles gravita.

Neste sentido, como observa BRUM (1980, p.79):

"No Direito Penal, o grande prestígio da teoria dogmática do delito faz com que os juízes justifiquem
invariavelmente a legalidade de suas decisões em termos de tipicidade, culpabilidade e antijuridicidade. Essa teoria
está tão arraigada na mente dos penalistas que não se pode mais conceber o delito sem o seu auxílio. Nesse campo,
quando surge uma inovação é pela mera troca de notas de um elemento pelo outro, como fez Welzel com a sua
teoria finalista da ação, deslocando o dolo e a culpa da culpabilidade para a tipicidade. Teoricamente, nada impede
que se substitua a teoria dogmática do delito pela teoria dos âmbitos de validez Kelsenianos, por exemplo. Isto,
porém, não seria aconselhável em termos de força retórica(...)Além disso, por trás da teoria dogmática do delito,
encontram-se respaldadas posturas políticas muito importantes. Portanto, a legalidade de uma decisão penal
continua sendo otimamente demonstrada através da teoria dogmática do delito."

Por outro lado, há que se observar que enquanto algumas legislações


penais, como Código Penal italiano proíbem, expressamente, a tomada em
consideração da "personalidade" e vida do agente ,no momento da
individualização da pena, outras expressamente a autorizam, como o Código
Penal brasileiro vigente, ao normar, em seu artigo "59" que

"O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às
circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá,conforme seja
necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime:

I - as penas aplicáveis dentre as cominadas;


II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos;
III- o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade;
IV - a substituição da pena privativa de liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível.

11.2. A crítica externa da Dogmática penal

- A crítica política: a ambigüidade político-funcional do paradigma

Se a Dogmática Penal se declara como um paradigma garantidor do


indivíduo numa visível expressão da matriz liberal que a condiciona, a crítica de
matriz marxista mais ortodoxa acusa a sua instrumentalidade na legitimação das
relações de dominação capitalista em que o Direito Penal se insere, reduzindo-a
mero epifenômeno da estrutura sócio-econômica e negando-lhe qualquer
autonomia. A Dogmática Penal é percebida, então, como uma "filosofia da
dominação." (CASTRO, 1987, p.27)
Em qualquer caso, o paradigma é visto como instrumento unilateral:
porque instrumento de garantia individual se o defende; porque instrumento de
dominação classista, se o recusa.
Esta polarização na leitura das funções da Dogmática Penal parece
obstaculizar a percepção da ambigüidade profunda em que está inscrita e tem
como conseqüência a sua apologia (liberal) ou a sua desqualificação (marxista).
Se é certo que, sobretudo depois de Marx e Engels, a análise da realidade
social não pode obscurecer que a realidade das sociedades capitalistas é a
realidade de sociedades divididas em classes sociais antagônicas e que o poder
econômico e político da burguesia se reproduz sobre relações de exploração e
domínio, o poder burguês não explica tudo. Revisitando a crítica política à
Dogmática subscrevemos a importância decisiva de levar em conta sua inserção
num sistema de dominação e sua dimensão legitimadora. Mas numa leitura da
Dogmática Penal que nela não se esgote, senão que revele a ambigüidade com que
esta dimensão se articula com a garantidora, nos espaços de poder do sistema
penal. Que saliente, enfim, a ambigüidade funcional e política do paradigma.

-A crítica metodológica: a ambigüidade metodológica do paradigma

Nenhum argumento crítico parece ter sido tão recorrente, contudo,


quanto o da separação, divórcio ou ruptura da Dogmática com a realidade social,
por seu aprisionamento sistemático e lógico-formal no mundo do "dever-ser";
como nenhum outro parece ter sido também tão pouco aprofundado. Pois a
realidade social, da qual se acusa a Dogmática de ter se divorciado aparece como
uma idéia que, geralmente não explicitada, acaba por se converter numa "fórmula
vazia". (BARCELLONA,1983, p.29)
No campo específico da Dogmática Penal, a exposição que acabamos
de fazer ilustra precisamente o terreno em que esta crítica vem a se enraizar e que
POZO (1988, p.22) sintetiza nos seguintes termos. Se, não obstante as
divergências internas entre as teorias do delito, existe entre elas "semelhanças
quanto ao método e as técnicas utilizadas para sistematizar as noções mediante
abstração, nada surpreende então que sejam criticadas por um abuso de
formalismo e, em conseqüência, por sua rejeição a ter em conta a realidade
social."
Por isto mesmo, o que acaba por reconduzir a crítica metodológica à
epistemológica

"Ao termo dogmática se dá igualmente uma significação pejorativa.


Com este objeto e com base nos progressos realizados pelas ciências
sociais, se nega o caráter científico ao estudo do direito. Se reprova nos
juristas o seu 'dogmatismo', sua incapacidade para elaborarem um
sistema suscetível de ter em conta os fatores sociais e, igualmente, sua
inaptidão para evitarem o formalismo tautológico." (POZO, 1988,
p.12)

Por este caminho, se convertendo em um exercício lógico-conceitual


cada vez mais refinado, complexo e marginalizado das realidades sociais da vida e
dos problemas que esta cria a Ciência Penal passa do teórico ao especulativo ,
sem que importe o aberrante das conseqüências práticas. (CARRASQUILLA,
1988, p.74-5)
De fato, enquanto conjunto de "teorias" ou "doutrinas" relativas à
construção sistemática, a Dogmática alicerçou-se no dualismo metodológico
ser/dever-ser, expressivo de uma separação/incomunicabilidade entre o mundo da
normatividade e o mundo da realidade, optando pela construção de uma Ciência
Penal centrada no mundo do dever-ser e pelo conseqüente "corte" em relação à
realidade, relegada e convertida, por exemplo, em objeto da Criminologia.
Desta forma, no mesmo movimento em que seu approach e método,
expressivos daquele dualismo, excluem do seu horizonte científico a tematização
do Direito Penal em sentido amplo - realidade fenomênica - e sua valoração
crítica, sentam as bases para um conhecimento auto-referente (intrassistemático) e
técnico.
Mas isto pretende justificar-se porque, como também vimos
enfatizando, no paradigma dogmático o fim "prático" domina e condiciona o
"teórico": sendo normativos ou preceptivos em si mesmos, seus enunciados vão
ordenados, antes que ao conhecimento em sentido estrito, à decisão.
Assim sendo, a construção dogmática

"(...) é puramente instrumental, pois há de ser tida tão somente como um meio para a melhor aplicação do Direito
na vida real (...). (...) em tal sentido, o jurista deve limitar-se sempre a tê-la como um puro modelo, que pode facilitar
a compreensão ordenada do conceito correspondente; para isso deve considerá-la como algo esquemático e flexível,
incapaz por si mesma proporcionar a verdade (...)." (MONREAL, 1982, p.183).

Como sua opção, em nome da segurança jurídica, é pelo sistema


conceitual, ela guarda um enorme grau de abstração para poder abarcar a
generalidade dos casos concretos. A opção pelo sistema não se pretende
justificar, desta forma, cognoscitivamente, mas praticamente, traduzindo o modelo
em que o paradigma funcionalmente se expressa e em nome do qual pretende
legitimar o seu ideal de Ciência.
Já vimos como,115 nesta perspectiva, o valor cognoscitivo da Dogmática
foi posto em cheque; seja pela contingência de seu objeto(KIRCHMANN); seja

115 . No item "7.1" do primeiro capítulo.


pela natureza (prescritiva) ou ausência de controle empírico ou lógico de seus
enunciados.
Não se pode, contudo, obscurecer e subestimar o fato de que a
Dogmática Penal não se reduz, como procuramos evidenciar, à dogmática do
delito. E que produz, para além do respectivo sistema, um específico
conhecimento (propedêutico) sobre o Direito Penal, ao mesmo tempo em que
reproduz um específico conhecimento sobre a criminalidade e a pena
(sintetizados na ideologia da defesa social). 116
Se a Dogmática Penal pode ser vista, nesta perspectiva, como "uma
exemplar demonstração de formalismo e idealismo histórico" (FARIA, 1988) pois
tanto suas construções doutrinárias lógico-formais quanto seu discurso sobre o
Direito Penal, a criminalidade e a pena caracterizam-se pela a-historicidade e
abstração; tal idealismo deve ser visto como fundamentalmente ideológico no
sentido que já indicamos.
De qualquer modo, não sendo a Dogmática Penal uma Ciência de
conhecimento em sentido estrito e não tendo força "explicativa" do seu objeto -
daí, entre outros argumentos, a recorrência histórica da discussão sobre a sua
"cientificidade" - mas uma Ciência prática, não é numa função interna de
produção de conhecimento (cognoscitiva) que devemos buscar uma explicação
para sua marcada vigência, mas na funcionalização prática deste conhecimento,
isto é, nas funções que cumpre na realidade social e, já o antecipamos, para além
da funcionalidade declarada pelo próprio paradigma.
Desta forma, sua marcada vigência, não obstante crescentemente
problematizada, impõe refutar parcialmente o argumento de sua falta de conexão

116 . E que o conhecimento dogmático é, em seu conjunto, fonte da socialização jurídica e da práxis
jurídico-penal. Forma e conforma, idelogicamente, a mentalidade jurídica e a perpetuação do
jurista dogmático cumprindo também uma importante função pedagógica.
com a "realidade social". Pois se a Dogmática Penal apresenta uma extraordinária
capacidade de permanência espaço-temporal e uma sobrevivência histórica
secular, não obstante sua "debilidade" epistemológica e divórcio "analítico" com a
realidade social é porque ela mantém uma conexão funcional com a realidade; é
porque potencializa e cumpre certas funções na realidade social117, ao mesmo
tempo em que traz inscrita uma potencialidade universalista que lhe permite
funcionar fora de seu espaço e tempo originários.
Nesta perspectiva, se o argumento da separação entre Dogmática e
realidade social é verossímel relativamente à sua dimensão de conhecimento ou
metodológica ele é insustentável relativamente à sua dimensão prática ou funcional
pois a Dogmática Penal está presente nas Escolas de Direito, nas reformas
legislativas e nos Tribunais e suas teorias, conceitos e princípios
instrumentalizando a educação jurídica, a criação legislativa ou a aplicação
judicial da lei penal, isto é, sendo usadas na argumentação decisória.
Nesta esteira, a crítica do divórcio entre Dogmática Penal e realidade
social necessita ser recolocada no marco da ambigüidade que
metodologicamente separa e funcionalmente insere (e sustenta) a Dogmática Penal
na realidade. Que marca, simultaneamente, sua "debilidade" analítica e a "força"
de sua sobrevivência histórica. E a partir desta percepção faz-se necessário
perquirir as funções "latentes" e "reais" da Dogmática Penal para além de suas
funções "declaradas" 118 e cuja perspectiva permite reconduzir a crítica
metodológica à própria crítica política (ou político-funcional) acima referida, que
assinala precisamente uma função legitimadora "latente" cumprida pela Dogmática
Penal.
117 .Subscrevemos pois aqui uma tese básica do funcionalismo segundo a qual toda instituição - no
caso, um paradigma científico- de marcada vigência satisfaz alguma necessidade e cumpre alguma
função social.
118 . Com o significado pontualizado na nota "7" do primeiro capítulo.
12. Tendências contemporâneas no sistema do delito: abertura para a
realidade social ou refuncionalização da Dogmática Penal?

Pois bem, o problema da "separação" entre Dogmática Penal e realidade


social não apenas subsiste, mas orienta hoje, mais do que nunca, a sua crítica
interna. Pode-se dizer, neste sentido, que o tema da abertura da Dogmática Penal
para a realidade social domina o desenvolvimento da teoria do crime pós-
finalista.
É que desde meados dos anos 60 ganha espaço o questionamento de
um século de debate sistemático, já que, como o traduz ROXIN (1972, p.18-9):

"(...) fica como um mal-estar que aumenta quando se põe pendente a sempre discutida questão, se não estará
caracterizado o trabalho sistemático de filigrana de nossa dogmática, que opera com as mais sutís finezas
conceituais, por uma desproporção entre a força desenvolvida e sem rendimento prático. Se apenas se tratasse de
ordenação, proporção e domínio da matéria, a disputa pelo sistema 'exato' deveria aparecer como pouco frutífera."

A época do finalismo pode assim se estimar superada porque, tendo


imposto o seu sistema , o caminho enfim entreaberto é a saída do mal-estar que
ele próprio contribui para gerar.
De modo que Tratados e Manuais surgidos nos últimos anos
especialmente na Alemanha preconizam o abandono dos exageros sistemáticos e
a substituição do sistema finalista por um sistema teleológico que atenda mais às
conseqüências do delito que à sua análise; que priorize mais as questões
valorativas e problemáticas do que as sistemáticas.(COÑDE (1975, p.176)
Assim, a partir

"(...) do ano 1965, época em que a teoria finalista alcança sua total consagração, surge uma nova etapa na evolução
da teoria do delito, que sobre a base da renovação produzida na Criminologia e na política criminal, analisa o delito
não apenas de uma perspectiva conceitual ou "estritamente" dogmática, mas preferencialmente (...) do sentido e
fundamento da pena. Com isso também se escavavam os alicerces da teoria finalista, que por seu delineamento
ético básico, se sustentava sobre um estrito retribuicionismo e, por tanto, sobre a idéia do livre arbítrio como
princípio fundamentador da imposição da pena a um sujeito." (BUSTOS RAMÍREZ ,1984, p.167)

ANDRADE (1983, p.50) vê na publicação do "Projeto alternativo


alemão", em 1966 e da obra "Kriminalpolitik und Strafrechtssystem" (Política
Criminal e Sistema do Direito Penal) de C. ROXIN, em 1970, dois marcos
decisivos desta nova tendência 119 corroborando que

"(...) ela constitui a saída para um período de evidente perturbação e mal-estar, caracterizado, por um lado, pela
consciência da escassez dos ganhos legados por anos de apaixonado debate doutrinal, polarizado sobretudo em
torno das teses do finalismo, à margem dos ensinamentos da Criminologia e das renovadas aspirações da política
criminal".

E se não seria realista esperar, prossegue, "que esta nova atitude se


comunicasse sem mais ao concreto labor dogmático, induzindo a renovação
mecanicista das suas categorias, princípios e institutos ou mesmo do sistema em
seu conjunto" já são evidentes, não obstante, "os sinais duma dogmática jurídico-
penal, assente na polaridade entre o dogma e o sistema por um lado e os recém-
descobertos referentes criminológicos e político-criminais, por outro"
(ANDRADE, 1983, p.52-3).
Conclui neste contexto MIR PUIG (1976, p.281) que se o pensamento
sistemático se encontra todavia vigente na Dogmática atual isto constitui mais a
continuação de delineamentos passados do que uma nota característica do
presente. Pelo contrário, o diferencial neste é uma aproximação à realidade.
E tal é especialmente referida à análise político-criminal (relativa ao
objeto e à finalidade da pena) e, no seu desdobramento, técnico-jurídica (referente

119 .Desenvolvidamente,
sobre as novas tendências da teoria do delito ver: MIR PUIG, 1976, p.277-
299; ANDRADE, 1983, p49-64; COÑDE, 1975, p.177-187.
ao sistema do delito) que, fundada sobretudo na teoria sistêmica, encontra-se no
centro da Dogmática germânica desde meados da década de 70.
Segundo BARATTA (1985, p.8) a aplicação deste marco teórico em
ambos os níveis representa assim uma tentativa de sair de gravíssimas aporias
teóricas e contradições práticas nas quais a Dogmática Penal e a Política Criminal
oficial se encontram desde anos mergulhadas.
Numa linha que recolhendo as contribuições das obras de K.
AMELUNG, H.J. OTTO e C. ROXIN encontra sua mais sistemática expressão na
obra de G. Jakobs, este novo enfoque pode ser reunido sob a denominação de
"teoria da prevenção-integração". (BARATTA, 1988, p.3-4)
Nesta formulação é muito significativa, por exemplo, a contribuição de
ROXIN quem, a partir de uma enfoque sistêmico-funcional em sentido lato, dá
uma nova sistematização à teoria do delito, particularmente ao conceito de
culpabilidade.
Objeta ROXIN (1972), contra o ontologicismo de WELZEL, que não
são as estruturas prévias do objeto de regulação das normas que legitimam o
sistema do delito na aplicação da lei, mas a coincidência de suas soluções com
determinados fins político-criminais. Desta forma, a pré-estrutura das normas
penais não estaria dada pela ação, mas pelos fins da pena.
Na base de um entendimento do Direito Penal como "a forma em que
as finalidades político-criminais de transformam em módulos de vigência jurídica".
ROXIN (1972, p.77) sustenta ele que o sistema dogmático será o sistema da lei
penal na medida em que garanta resultados conforme aos fins da pena.
Trata então de reconstruir o sistema do delito e as suas categorias
centrais - tipicidade, ilicitude, causas de justificação, culpa, formas do crime, etc.
e, em especial a culpabilidade - procurando identificar o seu conteúdo e limites a
partir da respectiva função político-criminal.
Mas alerta, cuidadosamente, que

"Uma tal penetração da Política criminal no âmbito jurídico da Ciência


do Direito Penal não conduz a um abandono ou a uma relativização do
pensamento sistemático, cujos frutos na clareza e segurança jurídica
são irrenundáveis (...)."(ROXIN, 1972, p.77)

Por isto mesmo ROXIN (1972, p.18) afirma, que a busca de segurança
jurídica "rege independemente das transformações do sistema e de suas
discrepâncias que, como é sabido, formam também hoje objeto de vivas
controvérsias".
Mas na aplicação da teoria sistêmica na sua versão mais acabada, que se
encontra na obra de JAKOBS, a preocupação garantidora ainda presente em
ROXIN não mais parece encontrar respaldo.
Partindo da concepção de LUHMANN do Direito como instrumento
de estabilização social, de orientação das ações e de institucionalização das
expectativas, com independência do conteúdo específico das normas jurídicas, a
teoria da prevenção-integração formulada por Jakobs atribui à pena a função
principal de reestabelecer a confiança e reparar ou prevenir os efeitos negativos
que a violação da norma produz para a estabilidade do sistema e a integração
social. (BARATTA, 1985, p.4-5)
Quando este efeitos,

"(...) em atenção à estabilidade do sistema, deixam de ser tolerados, intervém a reação punitiva. A pena, afirma
Jakobs, não constitui retribuição de um mal com um mal, não é dissuasão, isto é, prevenção negativa. Sua função
primária é, por outro lado, a prevenção positiva. A pena é prevenção-integração no sentido que sua função primária
é 'exercitar' o reconhecimento da norma e a fidelidade frente ao direito por parte dos membros da sociedade. (...) O
delito é uma ameaça à integridade e à estabilidade sociais, enquanto constitui a expressão simbólica oposta à
representada pelo delito. Como instrumento de prevenção positiva, ela tende a restabelecer a confiança e a
consolidar a fidelidade ao ordenamento jurídico, em primeiro lugar em relação com terceiros e, possivelmente,
também com respeito ao autor da violação" (BARATTA, 1985, p.5).
E posto que esta função independe do conteúdo específico das normas
penais, a abstração da validez formal do Direito relativamente aos conteúdos
valorativos, que é um princípio fundamental do juspositivismo é levada, na teoria
sistêmica da integração-prevenção, às suas últimas conseqüências.
Assim para JAKOBS, como para OTTO, o Direito Penal não tem por
função principal ou exclusiva a defesa de bens jurídicos, pois não reprime
primeiramente lesões de interesses, mas o comportamento como manifestação de
uma atitude de infidelidade ao Direito. Daí resulta que a violação da norma é
socialmente disfuncional não tanto porque resultam lesionados determinados
interesses ou bens jurídicos, mas porque a norma mesma é posta em discussão
como orientação da ação e é afetada, em conseqüência, a confiança institucional
dos consorciados. (BARATTA, 1985, p. 4-5 e 13)
Desta forma, a exigência funcionalista de reestabelecer a confiança no
Direito mediante a contraposição simbólica da pena não é somente o fundamento
desta, mas, transladada para o plano dogmático, o fundamento para determinar o
grau de culpabilidade e individualizar a medida punitiva. (BARATTA, 1985, p.7).
Com efeito, chegando por esta via político-criminal ao plano técnico-
jurídico, a teoria da prevenção-integração pretendeu dar uma nova fundamentação
ao sistema dogmático do delito dirigindo-se especialmente a resolver problemas
pendentes sobre o conceito de culpabilidade.
Depois da sistematização dada por WELZEL ao desenvolvimento da
concepção normativa da culpabilidade, restava por resolver o seguinte problema:
se a culpabilidade consiste na reprovação pela determinação subjetiva da conduta,
como escapar ao círculo vicioso segundo o qual o fato de que a determinação
subjetiva da conduta seja negativamente valorada - segundo o disposto numa
norma penal - resulta considerado como o critério mesmo desta valoração? Como
precisar um referente objetivo do juízo de culpabilidade prescindindo do princípio
ontológico e metafísico do livre-arbítrio, baseado na hipótese do sujeito "haver
podido atuar conforme a norma", que constitui uma circunstância real, à qual,
como está atualmente demonstrado, não é empiricamente verificável depois da
realização da conduta ou, de qualquer modo, não é verificável dentro dos limites
heurísticos do processo penal? (BARATTA, 1985, p.8)
Este fundamento ontológico do juízo de culpabilidade há muito vinha
sendo polemizado e centralizou a crítica da teoria do delito pós-finalista que, numa
progressiva normativização do conceito antecipou e preparou o terreno para a
rigorosa "renormativização" proposta por JAKOBS120 segundo a quem não é
possível nem necessário a fixação de um referente objetivo para o juízo de
culpabilidade e este não é um juízo de demonstração de responsabilidade, mas de
atribuição de responsabilidade conforme critérios normativos estabelecidos pelo
Direito (BARATTA, 1985, p.8).
O que importa na valoração negativa do comportamento delitivo e na
atribuição de responsabilidade penal a um indivíduo não é tanto o cometimento
consciente e voluntário de um fato lesivo de bens ou interesses dignos de tutela,
mas o grau de intolerabilidade funcional para a expressão simbólica de infidelidade
em relação aos valores consagrados pelo ordenamento jurídico (BARATTA,
1985, p.5-6).

120 .Assevera neste sentido BARATTA (1988, p.6661 e 1985, p.8-9) que a "radical" normativização
do conceito de culpabilidade, cujos resultados são evidentes na doutrina alemã contemporânea,
especialmente em JAKOBS, um dos mais originais discípulos de Welzel, passou por diversas
fases: a) o reconhecimento da liberdade de atuar como um 'artifício do legislador' e uma 'ficção
necessária' sustentada já em 1903 por E. KOHLRASCH); b) a demonstração da não
judicialidade, ou seja, da impossibilidade de determinar judicialmente o pretendido fundamento
ontológico do juízo de culpabilidade, o 'haver podido atuar diversamente', e de medir o grau de
culpabilidade (G.ELLSCHEID); c) o reconhecimento da independência lógica do juízo
relativamente ao seu pressuposto ontológico (C.ROXIN e G.JAKOBS).
Este desenvolvimento doutrinário culmina, na sua fase mais recente, na tendência a desvincular-se
o juízo de culpabilidade do conteúdo ético da reprovação; na tentativa de construir um conceito de
culpabilidade sem estigmatizacão (G.ELLSCHEID e W.HASSEMER) e até na perspectiva de
uma teoria do delito sem culpabilidade (BAURMANN).
Pontualizando o dilema da culpabilidade numa radical normativização
dos critérios pessoais (subjetivos) nela antes consubstanciados, subtrai-lhe o
critério ontológico e de limite de atribuição de responsabilidade penal com a qual a
teoria do delito pretendeu anteriormente comprovar sua função garantidora e
processual.
Desta forma, conclui BARATTA (1985, p.7) que dois dos

"(...) baluartes erguidos pelo pensamento penal liberal para limitar a atividade punitiva do Estado frente ao
indivíduo: o princípio do delito como lesão de bens jurídicos e o princípio de culpabilidade, parecem cair
definitivamente e são substituídos por elementos de uma teoria sistêmica, na qual o indivíduo deixa de ser o centro
e o fim da sociedade e do direito, para se converter num 'subsistema físico-psíquico' (G. Jakobs), ao qual o direito
valoriza na medida em que desempenhe um papel funcional em relação com a totalidade do sistema social."

O sujeito é transformado, assim, em portador de uma resposta penal


simbólica, de uma função preventiva e integradora, que se "realiza à sua custa"
(segundo a expressão de JAKOBS) ficando excluída tanto sua condição de
destinatário de uma política de reintegração social, quanto de destinatário das
garantias liberais (BARATTA, 1985, p.20). 121
É visível, pois, que a teoria da prevenção-integração rompe o pacto
dogmático com a segurança jurídica entendida como garantia dos Direitos
Humanos, convertendo-a em exigência explícita de estabilização e segurança para
o próprio sistema penal e social. E em nome de uma abertura da Dogmática Penal

121 . Numa crítica das incongruências internas e das funções ideológicas (concernentes à
fundamentação e legitimação do sistema penal) BARATTA (1985, p.15) sustenta que o
"progresso" representado por esta tendência é mais aparente do que real, pois parece evidente
que ela representa uma das diversas tentativas de dar uma nova fundamentação à pena e proteger
o sistema penal ante a profunda crise de legitimidade que o afeta exercendo uma função
conservadora e legitimante relativamente ao atual movimento de expansão e intensificação da
resposta penal face aos conflitos sociais, isto é, face a uma nova fundamentação neoclássica e
retribucionista do sistema penal.(BARATTA, 1985, p.15 e 21)
Assim, a perda do conteúdo ontológico e ético da culpabilidade, as tentativas de subtrair-lhe a
função estigmatizadora não são apenas a expressão de uma crise do conceito de culpabilidade mas
de uma crise mais profunda de legitidade do próprio sistema penal que abarca toda a teoria da
pena e da responsabilidade penal.(BARATTA,1988, p.6661-3)
para a realidade ela opera o trânsito de uma ontologização (WELZEL) para uma
(re)funcionalização e uma (re)legitimação tecnocrática do sistema do delito.
Daí BUSTOS RAMÍREZ (1984:59) ter afirmado que nas teorias
funcionalistas em geral desaparece toda transcendência garantidora e dogmática
da teoria do bem jurídico que passa a ser um simples axioma ou dogma e, a nível
social, passa a ser o mesmo que a posição imanente de BINDING a nível jurídico.
Por outro lado, enquanto modelo tecnocrático, esta tendência
funcionalista pode ser considerada contraposta e alternativa ao modelo crítico em
que atualmente se inspira a Criminologia (Criminologia Crítica) e que estando
igualmente a se interseccionar com a Dogmática Penal, se baseia na radical
reafirmação das garantias dos Direitos Humanos.
Seja como for, a função racionalizadora/garantidora persiste, contudo,
como a promessa paradigmática da Dogmática Penal pois nascida com ela é
reiterada até o último estágio oficialmente aceito do sistema do crime, o finalismo,
estendendo-se ainda expressamente ao sistema preconizado por Roxin.
Em síntese, pois, a situação presente da Dogmática Penal pode ser
sumariada como a de convivência entre a continuidade do pensamento
sistemático, que representa a conexão com o passado e a recepção de tendências
político-criminais funcionalistas e criminológicas críticas, que representa a
característica do presente.
É a recepção dos resultados desta crítica, que a Dogmática Penal
também está a experimentar, que pode possibilitar, efetivamente, a sua abertura
cognoscitiva para a realidade social. Mas, antes que isso, o próprio controle
epistemológico-funcional da Dogmática Penal a que aludimos no capítulo
primeiro e a cuja questão nos dedicamos, especificamente, no capítulo seguinte.
CAPÍTULO IV

O IMPULSO DESESTRUTURADOR DO MODERNO SISTEMA


PENAL E A MUDANÇA DE PARADIGMA EM CRIMINOLOGIA:
O CONTROLE EPISTEMOLÓGICO-FUNCIONAL DA
DOGMÁTICA PENAL
1. Introdução

Até aqui falamos substancialmente do saber dogmático, ainda que em


perspectiva histórica. No primeiro capítulo, indicamos que a Dogmática Jurídica
constitui um campo de saber diretamente implicado com a configuração de
poder (o monopólio da coerção e do Direito e diversos processos a ele relativos)
do Estado moderno, que situamos como a matriz política de sua maturidade.
Aludimos que ela é marcada por uma promessa funcional (racionalizadora) no
interior de uma promessa epistemológica (cientificidade) entreabrindo a
importância da certeza e segurança jurídica no mundo moderno. Assinalamos,
também, a existência de um profundo déficit de controle funcional das
Dogmáticas e a necessidade de compensá-lo.
No segundo capítulo, enfatizamos que a consolidação da Dogmática no
campo penal se dá, por um lado, na esteira de um paradigma genérico de
Dogmática Jurídica mas, simultaneamente, na esteira da constituição do moderno
saber penal em sentido amplo, o que marca sua inserção numa problemática penal
específica e daí sua específica identidade e relativa autonomia que abordamos
no terceiro capítulo, tratando de precisar o sentido e alcance, em seu âmbito,
daquela promessa simultaneamente epistemológica e funcional.
Tendo demarcado, portanto, o campo do saber em cujo universo se
enraiza e consolida a Dogmática penal, demonstrando a sua relação disciplinar
com o moderno saber jurídico (o paradigma genérico da Dogmática Jurídica) e
o moderno saber penal (desde a Escola clássica até o paradigma etiológico de
Criminologia) e assinalado o seu próprio horizonte de projeção e funções
declaradas aduzimos, enfim, que a Dogmática penal encontra-se
cognoscitivamente distanciada da realidade social, mas funcionalmente não. E que
sua sobrevivência histórica somente pode ser explicada a partir das funções
realmente cumpridas na realidade social.
Estamos, pois, em condições de interrogar: Em que medida tem sido
cumpridas as promessas da Dogmática Penal na trajetória da modernidade?
Tem a Dogmática Penal conseguido garantir, com sua metaprogramação, os
direitos humanos individuais contra a violência punitiva? Tem sido possível
controlar o delito com igualdade e segurança jurídica? Encontra congruência na
práxis do sistema penal o discurso garantidor secular em nome do qual a
Dogmática Penal fala e pretende legitimar o seu próprio ideal de Ciência? o
sistema penal opera com base na conduta do autor? E é pelo cumprimento da
função racionalizadora/ garantidora declarada que se explica sua marcada vigência
histórica ou ela potencializa e cumpre funções distintas das prometidas?
Tais indagações nos remetem, diretamente, para o âmbito do que vimos
denominando de controle epistemológico-funcional. Pois elas constituem, como já
assinalado, a questão central e o ponto de partida em torno do qual deve gravitar;
embora este, como veremos, se redimensione na sua própria tematização. E como
a relação da Dogmática Penal é com o sistema da Justiça Penal  uma vez que
elaborou promessas para serem efetivadas em seu âmbito  a resposta àqueles
interrogantes reivindica apelar para a real funcionalidade deste, cuja análise passa a
constituir o referencial básico daquele controle.
Impõe-se, assim, a necessidade de uma análise relacional apta a
contrastar a programação normativa e a metaprogramação dogmática do Direito
Penal com a operacionalidade do sistema penal enquanto conjunto de ações e
decisões. Pois é esta análise constrastiva que possibilita emitir juízos de
(in)congruência entre operacionalidade ("ser") e programação ("dever-ser"); ou
seja, verificar se o sistema opera ou não no marco daquela programação e se o
instrumental dogmático, particularmente o sistema do delito, no qual a Dogmática
enraiza suas promessas, tem conseguido pautar as decisões judiciais em torno da
conduta do autor e, por extensão, gestado decisões igualitárias, seguras e justas.
Seu escopo não é, pois, extrair juízos de verdade ou falsidade, embora
possa sê-lo indiretamente; mas juízos de realização, eficácia, congruência ou
cumprimento, a nível do "ser", do discurso de "dever-ser" (entre o acontecido
socialmente e o postulado jurídica e dogmaticamente) e extrair daí as devidas
conseqüências. 122
Pois, como diz ZAFFARONI (1987, p.51):
"Na medida em que tenhamos claro que uma coisa é a meta
orientadora proposta e outra o grau de realização desta meta o dado da
realidade nunca será uma objeção, senão um dado indispensável para a
permanente dinâmica corretiva."

No caminho desta contrastação faz-se necessário, pois, deslocar a


abordagem do saber dogmático para o sistema da Justiça Penal que ele tem por
referência.
A busca de resposta para aquelas questões remete então,
preliminarmente, a uma indagação fundamental: que saber pode orientar a análise
do sistema penal e esta contrastação e, por extensão, orientar o controle
funcional da Dogmática Penal? Com base em que saber de controle da
funcionalidade do sistema penal se pode controlar a real funcionalidade
dogmática?
Em primeiro lugar há que se ressaltar que não é na Dogmática penal que
podemos buscar uma contribuição para a análise do sistema da Justiça Penal nem
uma contribuição para seu controle funcional. Pois, por sua própria estrutura
122 .Ressaltandoque assimilamos a distinção entre ser e dever- ser a um nível analítico e não fático e
que, como já assinalamos na nota nº "4" do capítulo primeiro, enquanto a análise ao nível do
"dever-ser" deve indicar uma prescrição, no caso, os fins ou funções declaradas da Dogmática
Penal; a análise ao nível do "ser" corresponde à descrição ou explicação, no caso, da real
operacionalidade (ações e decisões) e funções do sistema penal.
(fechada e acrítica), não apenas carece de uma instância interna crítica capaz
de exercer um controle funcional sobre seu próprio paradigma como é incapaz
de fornecer um approach da Justiça Penal sobre o qual este controle possa ser
exercido.
É que é alheia mesmo à Dogmática Penal a própria idéia de sistema
penal; ao revés, ela trabalha, como demonstramos, com o conceito de Direito
Penal abstratamente considerado nos níveis normativo e aplicativo esgotando-o
no trânsito do legislador ao juiz, como se este realizasse, mecanicamente, a
programação penal enunciada pelo legislador e por ela metaprogramada.
Por isso mesmo a Dogmática Penal se concebe como uma Ciência
"do" Direito Penal, ou seja, como uma instância científica sobre ele, servindo à
sua aplicação.
Em segundo lugar, como já o demonstramos no primeiro capítulo, no
âmbito da Teoria Jurídica, o campo de uma Metadogmática está centrado no
controle epistemológico tendo por referente o paradigma dogmático
genericamente considerado123. E um controle funcional da Dogmática Penal
reivindica considerar sua especificidade. E isto porque, se a Dogmática Jurídica
constitui um campo de saber diretamente implicado com a configuração de poder
e do sistema jurídico do Estado moderno, a Dogmática Penal constitui um campo

123 .
De qualquer modo, o deslocamento, no âmbito da Teoria Jurídica, de uma análise estrutural para
uma análise estrutural-funcionalista do Direito tem conduzido a uma análise funcional da própria
Dogmática Jurídica. A teoria de LUHMANN pode ser considerada, neste sentido, um exemplar
Metadogmática funcional, com efeito. Mas uma Metadogmática descritiva e não crítica da
funcionalidade Dogmática; ou seja, como vimos no primeiro capitulo LUHMANN (1980, p.32)
analisa qual a função que as Dogmáticas estão chamadas a desempenhar nas "sociedades complexas",
independentemente de como se cumpre, realmente, esta função fornecendo, como procuramos
mostrar, uma importante contribuição para a compreensão de sua identidade funcional. Por isso
mesmo, não fornece um instrumental específico para o controle da real funcionalidade da Dogmática
Penal.
de saber diretamente implicado com a configuração do poder punitivo do Estado
moderno e do sistema penal em que se institucionaliza. E se este sistema possui
características comuns ao sistema jurídico global, possui também características
específicas na medida em que materializa um específico controle do delito.
Neste sentido, também pode-se dizer, que até a década de sessenta
deste século, o sistema penal não tinha sido convertido em objeto específico e
sistemático de abordagem científica e, portanto, inexistia um saber crítico do
sistema penal que pudesse ser assumido como saber de controle funcional da
Dogmática Penal.
A construção deste saber é, contudo, uma das características mais
salientes do campo penal desde a década de sessenta e, apesar de ser um edifício
inacabado quanto às suas conseqüências, já produziu resultados considerados
irreversíveis quanto à gênese, estrutura e operacionalidade do sistema penal,
aptos a deslocar um controle epistemológico fundado na contrastação da
Dogmática com as Ciências Naturais para um controle epistemológico-funcional
fundado nos resultados das Ciências Sociais. Pois é esta a arena de sua
materialização.
É de situar o universo de construção deste saber e de delimitá-lo que
trataremos na continuação, para fixar, ao final, os próprios termos em que
desenvolveremos, no capítulo seguinte, a análise do sistema penal e o controle
dogmático nele baseados.
Previamente a esta tarefa impõe-se, contudo, anteciparmos uma
caracterização genérica do moderno sistema penal que, legada por este próprio
saber, temos por referente nesta tese e a qual reaparecerá, todavia, tematizada, na
posterior explicitação que dele faremos.
É que - é fundamental que se frise - uma primeira e fundamental
contribuição deste saber, ao elaborar a genealogia e desvendar a lógica de
funcionamento do moderno sistema penal foi ter reconstruído sua própria
identidade estrutural, explicitando os seus modelos fundamentais, sua estrutura
organizacional e estratégias de justificação e legitimação. É sob este tríplice
aspecto que passamos à sua caracterização.

2. Caracterização do moderno sistema penal: modelos fundamentais


e estrutura organizacional

Para tanto vamos tomar por referente o mapeamento pontualizado por


COHEN nas tabelas que seguem.
TABELA 1 - TRANSFORMAÇÕES FUNDAMENTAIS NO CONTRO-
LE DO DESVIO
Fase 1 Fase 2 Fase 3
(Pré-século XIII) (Desde o século XIX) (Desde meados do século XX)
1. Introdução do Débil, descentralizado, Forte, centralizado Ataque ideológico: "Estado
Estado arbitrário racionalizado mínimo", mas intervenção
intensificada e controle estendido

2. Lugar do controle "Aberto": comunidade, Fechado, instituições Ataque ideológico: "desencar-


instituições primárias segregadas: vitória do asilo, ceramento", "alternativas
"Grandes" comunitárias", mas permanece a
velha instituição e novas formas
comunitárias estendem o controle

3. Objeto do Indiferenciado Encarceramentos Disperso e difuso


controle
Público, "espetacular" Concentrado Limites borrosos e o interior
4. Visibilidade do permanece invisível e dissimulado
controle

Sem desenvolver-se Limites claros mas Mais fortalecida e refinada


5. Categorização e invisibilidade no interior,
diferenciação dos "discreto"
desviantes

Ainda sem estabelecer: a lei Estabelecimento do Ataque ideológico: "descrimina-


6. Hegemonia da lei penal é só uma forma de monopólio do sistema de lização", "deslegalização", "deriva-
e do sistema de controle justiça criminal, e ção", etc., mas o sistema de justiça
justiça criminal complementado com penal não se debilita e outros
novos sistemas sistemas se expandem
Inexistente Estabelecida e fortalecida Ataque ideológico: "desprofis-
7. Dominação sionalização", "antipsiquiatria",
profis-sional etc., mas a dominação profissional
se fortalece e se estende

Comportamento exterior: Estado interno: "mente" Ataque ideológico: volta ao


8. Objeto de inter- "corpo" comportamento, conformidade
venção exter-
na, mas permanecem ambas as
formas
Moralista, tradicionais, Influenciadas pelo
9. Teorias da pena logo clássicas, "justo positivismo e o ideal do
preço" tratamento: Ataque ideológico: regresso à
"neopositivismo" justiça, neoclassicismo
Exclusiva e estigmatizante parcialmente obtido, apesar de que
10. Forma de Inclusiva o ideal positivista ainda perdura
controle Acentuação ideológica em inclusão
e integração: permanecem ambas
as formas
Nesta tabela 1 COHEN (1988, p.37-8) nos fornece um quadro
ilustrativo genérico das transformações fundamentais experimentadas no controle
do desvio (conduta desviante)124 nas sociedades ocidentais, desde o pré-século
XVIII até a contemporaneidade.
Na fase I assinala as características deste controle no pré-século
XVIII, com vigência ainda residual na transição do século XVIII para o século
XIX. Na fase 2 assinala as notas típicas do controle moderno e na fase 3 as
transformações em curso no presente.

124 .Énecessário antecipar, pois, que COHEN já se insere no marco da literatura crítica do sistema
penal que, como veremos, desde a matriz do interacionismo simbólico, introduziu uma nova visão
e uma nova linguagem e conceitos relativamente à literatura criminológica tradicional .Assim a
introdução dos conceitos de controle ou reação social e conduta desviante para o centro da
análise criminológica, passando-se a aludir ao controle do desvio, controle sócio-penal, controle
penal ou do delito - designações que usaremos indistintamente - onde antes lia-se combate à
criminalidade e a conceber-se o sistema penal como um (sub)sistema de "controle social",
entendendo-se por este termo, em sentido lato, as formas com que a sociedade responde, formal e
informalmente, institucional e difusamente, a comportamentos e a pessoas que contempla como
desviantes, problemáticos, ameaçantes ou indesejáveis, de uma forma ou de otra e, nesta reação,
demarca (seleciona, classifica, estigmatiza) a próprio desvio e a criminalidade como uma forma
específica dela.
No marco desta literatura é aceita, assim, a distinção entre controle social formal (ou
institucionalizado) e informal (ou difuso) conforme, respectivamente, a inespecificidade ou
especificidade de atribuição normativa: enquanto o primeiro é aquele exercido por agências que
tem a atribuição normativa específica para intervir; o segundo é exercido de forma inespecífica na
sociedade. (A respeito ver: COHEN, 1988, p.15; LEMERT, 1972, GABALDÓN,1989, p.32 e
37 KAISER, 1983, p.82; CAPELLER, 1992b, p.63-79)
TABELA 2 - O IMPULSO DESESTRUTURADOR
__________________________________________________________________
Transformação do século XIX Anos 1960: Contra Ideologias/
Movimentos desestruturadores
__________________________________________________________________
Controle estatal centra- Descentralização, desinformalização,
lizado descriminalização, derivação, despo-
jamento, informalismo, não interven-
ção

Categorização, sistemas de Desprofissionalização, desmedicali-


conhecimento separados, zação, deslegalização, antipsiquia-
expertos, profissionaliza- tria, auto-ajuda, eliminação de es-
ção tigmas e etiquetas

Segregação: vitória do Desencarceramento, desinstituciona-


asilo lização, controle comunitário

Teoria positivista: tras- Regresso à justiça, neoclassicismo,


lado do corpo à mente conductismo.
__________________________________________________________________

Nesta Tabela 2 COHEN (1988, p.57) ilustra, por sua vez, os modelos
fundamentais (centralização, categorização e profissionalização, segregação,
mente) que, resultando da transformação havida na passagem da fase "1" para a
fase "2" conformam o moderno controle do desvio e o ataque que cada um
deles, respectivamente, passa a receber com os movimentos desestruturadores.

- Modelos penais fundamentais

Na passagem do antigo (tabela 1-fase 1) para o moderno (tabela 1-


fase 2 e tabela 2) controle do delito situam-se assim quatro mudanças chaves
que, cumulativamente fornecidas pela literatura crítica fornecem o desenho dos
modelos fundamentais que o caracterizam nas sociedades ocidentais COHEN
(1988, p.34):
a) controle centralizado, racionalizado e burocratizado: a
introdução do Estado no controle do delito e a hegemonia da lei e do sistema da
Justiça Penal conduziu ao desenvolvimento de um aparato centralizado,
racionalizado e burocratizado. (Tabela "1" (itens "1" e "8") e Tabela "2"
(item "1");
b) categorização (classificação dos desviantes) e
profissionalização (especializações): o aumento das classificações e
diferenciações dos desviantes e grupos dependentes em categorias e tipos
separados, cada um com seu próprio corpo de conhecimentos "científicos" e
especialistas reconhecidos e acreditados conduz à captura daquele aparato pela
profissionalização; (Tabela "1", itens "5" e "7" e Tabela "2", item "2");
c) a segregação como resposta penal hegemônica:o incremento da
segregação dos desviantes em asilos, penitenciárias, cárceres, hospitais
psiquiátricos, reformatórios e outras instituições fechadas conduz ao domínio da
segregação e, em especial, à centralidade do cárcere como método dominante de
castigo e lugar do controle (tabela "1", item "2");
d) a mente como objeto do poder de punir: a diminuição do castigo
com inflição pública de sofrimento físico conduz a uma mudança qualitativa: a
mente substitui o corpo como objeto da repressão penal e surgem as teorias
positivistas para justificar a concentração do castigo no delinqüente. (Tabela
"1", itens "8" e "9" e Tabela "2", item "4")
Daí resulta também um controle "concentrado" quanto ao objeto
(Tabela "1", item "3"), "discreto" quanto à visibilidade (Tabela "1", item "4")
e "exclusivo e estigmatizante" quanto à forma. (Tabela "1", item "10")
O moderno controle do delito caracteriza-se como estatalmente
centralizado no sistema da justiça penal, racionalizado, burocraticado e
profissionalizado, tendo a prisão como resposta penal básica e a "mente" como
objeto de controle.
Desta forma,
"o Estado moderno, qualquer que seja, mantém sempre uma ampla
margem, fundamental, para o exercício do controle, para selecionar,
estigmatizar e marginalizar constantemente a grandes setores da
população e para mantê-la, a toda ela , dentro da rede de controle."
(BUSTOS RAMÍREZ, 1983, p.31),

-Estrutura organizacional
Na estrutura organizacional do moderno sistema penal pode-se
distinguir, pois, duas dimensões e níveis de abordagem: a) uma dimensão
definicional ou programadora, que define o objeto do controle, isto é, a
conduta delitiva, as regras do jogo para as suas ações e decisões e os próprios
fins perseguidos; que define, portanto, o seu horizonte de projeção; b) uma
dimensão operacional que deve realizar o controle do delito com base naquela
programação.
O sistema é, pois, um conceito bidimensional que inclui normas e
saberes, (enquanto programas de ação ou decisórios), por um lado, e ações e
decisões, em princípio programadas e racionalizadas, por outro.
O Direito Penal entendido como legislação integra a dimensão
programadora do sistema. Tem, neste sentido, um caráter "programático", já que
a normatividade penal não realiza, por si só, o programa: simplesmente o enuncia,
na forma de um "dever-ser". E embora não a esgote (porque acompanhado de
normas constitucionais, processuais penais, penitenciárias etc.) a ele sem dúvida
foi atribuído um lugar central no sistema.
O poder legislativo é, de qualquer modo, a fonte básica da
programação do sistema, enquanto que as principais agências de sua
operacionalização são a Polícia, a Justiça e o Sistema de execução de penas e
medidas de segurança, no qual a prisão ocupa o lugar central.
Corporificam o sistema penal, portanto, o conjunto das agências
estatais responsáveis pela criação (Parlamento), aplicação e execução das
normas penais (Justiça, Polícia e sistema penitenciário e manicomial) e os
diferenciados funcionários ou agentes que as integram. 125
Assim,
"O sistema penal (como todo sistema) existe como a articulação
funcional de vários elementos sincronizados: a lei penal (criminalização
e ritualização), a justiça criminal (aplicação penal) a polícia e a prisão
(repressão penal) e órgão acessórios. Assim respectivamente: a) a
definição legal de crimes e penas e dos rituais de aplicação (Poder
Legislativo); b) a verificação de fato concretos adequados às matrizes
legais de crimes, com a metodologia conhecida como teoria do crime,
conforme rituais judiciais, com a aplicação (...) de penas, no processo
oficial de criminalização (Poder Judiciário); c) a prisão dos autores de
crimes (anterior ou posterior à criminalização oficial), a realização de
investigações e de exames preliminares informativos da criminalização
oficial (...) e a execução penal, como retribuição equivalente do crime
(Poder Executivo) (CIRINO DOS SANTOS, 1985, p.25-6)

Sendo a burocratização e a profissionalização, isto é, a divisão do


trabalho orientada por uma legislação centralizada uma das notas mais salientes do
sistema penal (DIAS e ANDRADE, 1984, p.374-5; HULSMAN, 1993, p.55) estas
agências não são, em si mesmas, "casadas com a justiça criminal; elas não tem
vida própria (mesmo que, em certa medida, estejam ligadas ao sistema" eis que
tanto a polícia quanto a justiça compartilham da estrutura do sistema jurídico
global, agindo também nos moldes da Justiça Civil ou Administrativa.
(HULSMAN, 1993, p.151)
Enfim, não se pode excluir do sistema penal o público, que, na
condição de denunciante tem o poder de operacionalizar o próprio sistema e, na
condição de opinião pública e "senso comum" interage ativamente com ele.

125 . A respeito do exposto ver BERGALLI, 1989; BERGALLI in BERGALLI & BUSTOS
RAMÍREZ, 1983a, p.147-8; BARATTA,1978, p.9; KAISER, 1983, p.82-86; BATISTA, 1990,
p.24-5; CIRINO DOS SANTOS, 1985, p.25-6 e 1984, p.115; HUERTAS, 1989, p.5-6;
COHEN, 1984, p.64; ZAFFARONI, 1987, p.30-1; GABALDÓN, 1987, p.11-4 e 1989, p.37.
(ZAFFARONI, 1987, p.33) A opinião pública figura na "periferia" do sistema.
(HULSMAN, 1993)126

3. O discurso oficial de autolegitimação do poder e do sistema penal: da


legitimação (negativa) pela legalidade à legitimação (positiva) pela
utilidade

É importante assinalar, nesta perspectiva, que, do ponto de vista do


controle centralizado, racionalizado e burocratizado a matriz do Estado moderno
condiciona, essencialmente, a natureza do sistema penal.
Com efeito, desde que o Estado moderno se caracteriza por deter (ou
pela pretensão de deter) o monopólio da violência física, que constitui o aspecto
especificamente político da dominação numa sociedade territorialmente
delimitada, (WEBER, 1979, p.17) o sistema penal, institucionalização desta
violência, aparece estatalmente centralizado. Desde que a legitimidade desta
violência física se refugia no "reino da lei", isto é, na legalidade, ele aparece,
simultaneamente, como um sistema juridicamente racionalizado.
Assim, ao mesmo tempo em que o Estado moderno encontra no
sistema penal um dos seus instrumentos de violência e poder político, de controle
e domínio, necessitou formalmente desde seu nascimento de discursividades
("saberes" e "ideologias") tão aptas para o exercício efetivo deste controle

126 .Concebendo a justiça criminal como uma "forma específica de cooperação" ou "da organização
cultural e social que produz a criminalização" HULSMAN (1993, p.152) apresenta, segundo uma
matriz abolicionista, uma visão mais ampla da justiça criminal na qual insere, no mesmo plano do
Parlamento, Polícia, Tribunais e Prisão, os Departamentos governamentais (Ministério da Justiça,
Ministério do interior e outros) e a Universidade (Departamentos de Direito Penal e Criminologia).
E, no plano periférico ou circundante relativamente a este, os meios de comunicação de massa,
escolas, romances e literatura em quadrinhos como formadores de opinião pública. No plano
programacional do sistema insere os textos legais (lei) decisões políticas e doutrina dogmática.
quanto para a sua justificação e legitimação. (BUSTOS RAMÍREZ, 1983, p.31 e
CARRASQUILLA, 1988, p.78)
Para além, portanto, de um "monopólio" detido pelo Estado, o sistema
penal é um "exercício" de poder e de funções (FOUCAULT, 1987, p.26-30, 172
e 189 e ZAFFARONI, 1991, p.16) acionando um típico
"(...) controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca
desde que se detecta ou supõe detectar uma suspeita de delito até que se
impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade
normativizadora que gera a lei que institucionaliza o procedimento, a
atuação dos funcionários e assinala os casos e condições para atuar".
(ZAFFARONI, 1986, p.31)127

Com efeito, uma característica do controle social formal é a de


requerer não apenas a definição do objeto do controle mas a justificação dos
meios empregados para fazê-lo, de modo que suas ações (especialmente as
coercitivas) devem receber uma fundamentação racional e esta constitui o seu
marco de legitimação já que supõe "(...) uma aceitação societária destes
instrumentos, que, naturalmente, deve ser trabalhada mediante uma
discursividade." (GABALDÓN, 1987, p.14).
No Estado moderno ocidental o poder de punir e o sistema penal em
que se institucionaliza é marcado por uma dupla via legitimadora. Por um lado,
por uma justificação e legitimação pela legalidade que se conecta com o seu
enquadramento na programação normativa; por outro lado, por uma justificação e
legitimação utilitarista que se conecta com a definição dos fins (funções
declaradas) perseguidos pela pena. 128
127 . O "punitivo" abrange todas as reduções do espaço social que cumprem uma função punitiva,
ainda que o discurso justificador seja terapêutico, educativo, assistencial etc. Abrange, pois, penas
e medidas de segurança e os diferentes meios de sua execução. O "institucionalizado" significa ter
lugar mediante formas ou procedimentos normativamente estabelecidos.(ZAFFARONI, 1984,a,
p.8 e 1987, p.32)
128 .Neste sentido,assinala ZAFFARONI (1991, p.186) que "o discurso jurídico-penal convencional
procura a legitimação através de uma dupla via: pela via positiva, ao tratar de dotar a pena de uma
E esta dupla via legitimadora é construída pelo próprio saber oficial que
vai da Filosofia à Ciência do Direito Penal e da criminalidade, isto é, pelo saber
clássico, dogmático e criminológico e arrasta consigo toda aquela construção a
que nos referimos no segundo capítulo. Trata-se, assim, de um processo da
"autolegitimação" oficial do poder penal.
Enquanto a Dogmática Penal, na esteira do saber penal clássico, se
projeta no horizonte da racionalização garantidora do sistema; a Criminologia se
projeta no universo da racionalização utilitarista, vinculada à concentração da
resposta penal na pessoa ("alma") do criminoso e diretamente relacionada, como
veremos, com a instituição da prisão. Tratam-se de saberes (discursividades)
fundamentais na justificação racional do sistema.

- A legitimação pela legalidade vinculada ao Direito Penal do fato e à


segurança jurídica: programação normativa do sistema penal

Em primeiro lugar, portanto, a legitimação pela legalidade que marca o


moderno poder penal resulta da intervenção do Direito (positivo = lei) na história
do poder de punir. E esta representa uma transformação qualitativa associada por
sua vez ao fenômeno mais profundo e abrangente de monopolização (ou tentativa
de monopolização) do emprego da força física como sanção da ordem social e
das relações privadas que corresponde ao nascimento e desenvolvimento do
Estado central moderno e de uma nova forma de legitimação do poder,
precisamente pela legalidade, mediante a qual o Estado moderno se faz e se

função, deduzindo dela um sistema de pautas decisórias com aparência de soluções; pela negativa,
ao reconhecer como racionais os limites impostos pelo conjunto das demais agências e assim
legitimar o seu exercício de poder."
apresenta como Estado de Direito e o seu poder de punir se afirma como direito
(jus puniendi) de punir. (BARATTA, 1986, p.79-80)
Desta forma, a produção de uma ideologia legitimadora do poder penal,
baseada no princípio da legalidade, acompanha desde o começo a história do
direito penal (BARATTA, 1986, p.82) e a

"(...) autolimitação do uso da repressão física na função punitiva por


parte do poder central, mediante as definições legais dos crimes e das
penas, forma parte da nova ideologia legitimadora que, a partir do
século XVIII, se encontra no centro do pensamento liberal clássico e das
doutrinas liberais do direito penal." (BARATTA, 1986, p.79-80)

Daí RESTA (1986, p.141) falar de um complexo processo de "auto-


referência" que preside ao projeto jurídico moderno, "graças ao qual o Direito
resolve por si mesmo o problema da legitimidade", pois é "a força da legalidade
que demarca e determina cada mecanismo de legitimação": o "direito que
fundamenta o poder de punir sobre a base de regras é o mesmo direito que
fundamenta, em virtude de decisões, as regras fundadoras do direito de punir."
Mediante esta via legitimadora, centrada no subsistema da "Justiça", o
exercício do poder penal do Estado é normativamente programado segundo os
princípios constitucionais do Estado de Direito e do Direito Penal liberal e por
seu intermédio o sistema penal aparece como um exercício de poder
racionalmente planejado: que exercita o controle penal com segurança jurídica
individual.
No limiar deste processo auto-referente é não apenas
"(...) esta concepção da ação jurisdicional como plenamente pré-
programada que empresta à administração da justiça a sua
legitimidade, no contexto da legalidade fundante do Estado-de-Direito.
Como é ela que, por sua vez, converte o subsistema da administração
da justiça criminal num processo de legitimação do sistema político-
social no seu conjunto." (DIAS e ANDRADE, 1984, p.505)
Esta discursividade legitimadora vai, assim, da afirmação e explicitação
do princípio da legalidade pelo saber clássico à sua decodificação pela
Dogmática Penal, em cujo âmbito, como vimos,129 o princípio exerce também
uma função hermenêutica e sistemática na construção da teoria do delito,
apresentada então como uma metodologia garantidora de uma correta Justiça
Penal. Trata-se, portanto, da legitimação vinculada ao retribucionismo, à
construção do Direito penal liberal do fato e à segurança jurídica que gestada pela
Filosofia e chegando à Ciência Dogmática do Direito Penal como ideologia já
consolidada dela recebe uma base científica (legalidade científica ou
cientificamente decodificada).

- A legitimação pela utilidade vinculada ao Direito Penal do autor


e à defesa social: fins da pena

Mas, uma vez que a racionalidade do Direito não pode se


fundamentar unicamente sobre seus caracteres formais, mas requer sobretudo a
instrumentalidade do conteúdo com respeito a fins socialmente úteis (BARATTA,
1986, p.82) a legalidade, representando um limite negativo e formal do poder de
punir, não esgota seu discurso legitimador.
Por isto mesmo, o saber oficial, além de atribuir ao Direito Penal a
função de "proteção de bens jurídicos", o que hoje é praticamente pacífico
(BASOCO, 1991, p.10) trata de atribuir também à pena funções socialmente úteis.
Assim, as chamadas teorias "absolutas", circunscritas ao
retribucionismo, foram logo superpostas pelas diversas teorias chamadas

129 .No item "6.2" do terceiro capítulo.


"relativas" que, atribuindo à pena a função de prevenção geral e especial, 130
representam o complemento legitimador que decorre da positividade e
instrumentalidade do direito moderno.
Desta forma,
"A busca de critérios materiais utilitários para a legitimação do sistema
punitivo legal é uma constante no desenvolvimento do pensamento
moderno desde a escola liberal clássica , passando pela escola positiva,
até chegar a nossos dias. A partir deste momento, as estratégias de
legitimação coincidem com as teorias do fim. O reconhecimento da
legalidade como limite negativo coincide, portanto - desde há mais de
dois séculos, na legitimação do sistema punitivo através das próprias
instâncias científicas - com a elaboração de teorias que se podem
agrupar sob a etiqueta de teorias 'relativas' ou 'utilitárias' da pena."
(BARATTA, 1986, p.82)

Neste sentido, como vimos,131 o repertório da ideologia da defesa


social é integrado, sob o princípio do fim e da prevenção, pelas teorias
absolutas (retribuição), da prevenção geral negativa (intimidação) e da prevenção
especial positiva (ressocialização), numa visão polifuncional da pena que
corresponde, de resto, à opção dominantemente positivada pelas legislações
penais contemporâneas que, sem abandonar a atribuição de funções retributivas e
intimidativas à pena acentuam a função reeducativa ou ressocializadora que se
encontra no centro das estratégias legitimadoras do poder punitivo. Pode-se
constatar, neste sentido, que "o direito penal contemporâneo se autodefine como
direito penal de tratamento" e que a legislação mais recente atribui ao tratamento
a finalidade de reeducar e reincorporar o delinqüente à sociedade. 132 (BARATTA,
1982,b, p.737)

130 .A respeito ver nota "13 " do segundo capítulo.


131 . No item "8" do terceiro capítulo.
132 .Exemplificativamente, podem ser citadas as leis de reforma penitenciária italiana (Lei italiana de 26
de julho de 1975), alemã (Strafvollzugsgesetz, 16 de março de 1976) e brasileira (Lei de
execução penal de 7.210 de 11 de julho de 1984).
Embora, pois, reconheça antecedentes no interior do próprio saber
clássico, com as teorias da prevenção geral negativa, a via da legitimação do
poder pela utilidade encontra seu ponto culminante no discurso criminológico da
prevenção especial positiva, quando o discurso utilitário da pena vincula-se à
idéia de um controle "científico" da criminalidade (o "mal") em defesa da
sociedade (o "bem") e ao Direito Penal do autor. Representa, neste sentido,
também a passagem para a legitimação de um controle penal intervencionista
sobre a pessoa do delinqüente.
Tal contributo legitimador do positivismo criminológico é destacado
por PAVARINI (1980, p.49-54) ao assinalar que

"(...) foi precisamente pela aportação determinante do positivismo


criminológico que o sistema repressivo se legitimou como defesa social.
O conceito de defesa social tem subjacente uma ideologia cuja conceito
função é justificar e racionalizar o sistema de controle social em geral e
o repressivo em particular. (...)
.................................................................................................
A defesa social reivindica o mérito de haver liberado a política criminal
(e em particular a penal) das hipotecas de velhas interpretações
transcendentes e míticas e de havê-la reconduzido a uma prática
científica através da qual a sociedade se defende do crime. A defesa
social é portanto uma ideologia extremamente sedutora, enquanto é
capaz de enriquecer o sistema repressivo (vigente) com os atributos da
necessidade, da legitimidade e da cientificidade."

Nesta dupla linha de legitimação vimos convergir, pois, a ideologia


liberal e a ideologia da defesa social. Pode-se dizer, neste sentido, que a ideologia
da defesa social sintetiza uma visão global legitimante do exercício de poder do
sistema penal, à medida em que sintetiza o conjunto das representações oficiais
sobre sua identidade e fins que, dando sustentáculo às funções utilitárias
atribuídas à pena se dialetiza, por sua vez, com a legitimação liberal pela
legalidade. E que em princípio, há um concurso de discursos na legitimação do
sistema que não obedecem a uma coerência interna.
Desta forma,
"O sistema penal, constituído pelos aparelhos judicial, policial e
prisional, e operacionalizado nos limites das matrizes legais, aparece
como sistema garantidor de uma ordem social justa, protegendo bens
jurídicos gerais, e, assim, promovendo o bem comum. Essa concepção é
legitimada pela teoria jurídica do crime (extraída da lei penal vigente),
que funciona como metodologia garantidora de uma correta justiça, e
pela teoria jurídica da pena, estruturada na dupla finalidade de
retribuição (equivalente) e de prevenção (geral e especial) do crime."
(CIRINO DOS SANTOS, 1985, p.26)

- Legitimidade e (auto)Legitimação

A legitimidade do sistema penal requer, desta forma, uma congruência


da sua dimensão operacional em relação à sua dimensão programadora
(normativa e teleológica) em nome da qual pretende justificá-lo; ou seja, requer
não apenas sua operacionalização no marco da programação normativa (exercício
racionalizado de poder) mas também o cumprimento dos fins socialmente úteis
atribuídos ao Direito Penal e à pena (programação teleológica).
É necessário distinguir assim entre legitimidade e legitimação. Por
legitimidade entendemos uma qualidade que se pode predicar ao sistema pela
relação de congruência entre programação (normativa e teleológica) e
operacionalização. Por legitimação entendemos o processo mediante o qual se
atribui esta qualidade ao sistema. Trata-se do processo de reprodução
ideológica do sistema penal e produção de consenso (real ou fictício)a seu
respeito tanto em relação aos agentes do sistema como ao público em geral133 que

133 . A legitimação traduz-se, assim, numa forma de convalidar, autorizando-o, especialmente através
da promoção de um consenso social (real ou fictício), o sistema penal vigente.
"(...) representa o modo como o sistema punitivo tende a ser concebido
por parte dos indivíduos aos quais incumbe a tarefa de prepará-lo,
administrá-lo, controlá-lo e transmitir dele uma imagem útil ao seu
funcionamento. Mas este esquema ideológico não é um esquema
somente imaginário do sistema punitivo, privado de contato com a
realidade . Antes de tudo, por meio da ideologia dos próprios
organismos oficiais se realiza, de fato, aquela função de
autolegitimação do sistema que Weber chama a 'pretensão de
legitimidade'." (BARATTA, 1991,a, p.178)

Nesta perspectiva, uma crise ou perda de legitimidade do sistema - que


tem lugar na medida em que o sistema não opera no marco da programação ou
não cumpre as funções declaradas - não é necessariamente acompanhada da perda
de sua autolegitimação oficial.

4. Da construção (legitimadora) à desconstrução (deslegitimadora)


do moderno sistema penal: delimitando o marco teórico do controle
dogmático

Desta forma, se dos finais do século XVIII ao longo do século XIX,


assistimos à construção do moderno sistema penal e seus paradigmas
fundamentais de sustentação 134, a partir da década de 60 de nosso século
assistimos a um processo - aparentemente inverso - de desconstrução e
deslegitimação teórica deste mesmo sistema e seus paradigmas que conforma
aquilo que COHEN denominou, com propriedade, de "impulso desestruturador"
ou a "desconstrução dos modelos penais fundamentais" e ZAFFARONI (1991)
de "marcos teóricos fundamentais da deslegitimação do sistema penal". Esta
desconstrução, tal como aquela construção, enraiza-se no marco do capitalismo
central.
Assim COHEN (1988, p.56) designou por "impulso desestruturador" o
134 . Especialmente o tripé Dogmática Penal-Criminologia-Política criminal.
"(...) conjunto de ataques - críticas, demandas, visões, teorias,
movimentos de reforma etc- que constituíram, desde a década de 60
como que um assalto continuado às próprias fundações (ideológicas e
institucionais) do sistema de controle penal da modernidade, cuja
hegemonia perdurava há dois séculos".

É necessário dizer de imediato que este impulso desestruturador não


tem uma manifestação isolada no campo penal, mas insere-se no horizonte da
radicalização social, política e cultural e da intensa explosão de conflituosidade
que dominaram os anos 60 e o contexto histórico que o preside é, agora, o de
crise (fiscal e de legitimação) do Estado providência nas sociedades do
capitalismo avançado.
Se, como diz SOUSA SANTOS (1991) a crise do Estado providência
criou as condições para um questionamento mais profundo do Direito e da Justiça
estatais, no campo penal, aduzimos, este questionamento assumiu talvez sua
expressão mais radicalizada, com significativas implicações criminológicas,
político-criminais e, enfim, dogmáticas.
Nesta perspectiva utilizaremos aqui a expressão impulso desestruturador
distinguindo nela duas dimensões: a dimensão propriamente desconstrutora
consubstanciada pela crítica historiográfica-sociológica e criminológica do
moderno sistema penal e a dimensão das Políticas Criminais alternativas e dos
movimentos de reforma que a ela se seguiram e somente puderam ser pensados a
partir desta desconstrução. (CAPELLER, 1992b, 1992c)
Na primeira dimensão pode-se aludir a pelo menos quatro
desconstruções fundamentais que, embora superpostas e convergentes,
estruturam-se a partir de diferentes perspectivas analíticas: a desconstrução
marxista, a desconstrução foucaultiana, a desconstrução interacionista do
labelling approach 135 e a desconstrução abolicionista.
Tais desconstruções aparecem na forma de
"(...) uma incansável 'escavação arqueológica' que acabou por
desvendar as intenções mais secretas dos modelos penais fundamentais
e permitiu a 'mise en cause' desses modelos hegemônicos. Desenvolvem-
se, neste momento, os estudos sobre a emergência da prisão que
denunciam o sistema penal em seu conjunto." (CAPELLER, 1992b,
p.68)

Com efeito, a crítica historiográfica dos sistemas penais, desenvolvida


a partir da crítica à prisão, ocupa uma importante página do impulso
desestruturador representando, na sugestiva denominação cunhada por COHEN,
autênticas "histórias revisionistas"136 da gênese do moderno sistema penal. Mas
ele atinge seu apogeu com a passagem da crítica à prisão à crítica do sistema
penal, globalmente considerado e convertido em objeto específico de análise
científica, na qual as investigações sobre a prisão passam a ocupar um dos níveis
analíticos.
Nesta conversão transforma-se o próprio estatuto do saber
criminológico, pois ela se dá através da desconstrução e superação do paradigma
etiológico pelo paradigma da reação social, o que tem sido considerado uma

135 .Esta matriz criminológica é designada na literatura, alternativa e sinonimiamente, por enfoque
(perspectiva ou teoria(s)) do interacionismo simbólico, labelling approach, etiquetamento,
rotulação ou ainda por paradigma da "reação social" (social reation approach), do "controle",
ou da "definição"; designações que também usaremos indistintamente.
136 .Segundo COHEN (1988, p.33) as histórias revisionistas chaves são, por ordem de publicação :
a) a obra de DAVID J.ROTHMAN ("The Discovery of the Asylum: Social Order and Disorder in
the New Republic"-1971); b)a obra de MICHEL FOUCAULT ("Surveiller et punir" -1975),
traduzido para o português sob o título "Vigiar e Punir"; c)a obra de DARIO MELOSSI e
MASSIMO PAVARINI ("Carcere e fabbrica: alle origini del sistema penitenziario -1977),
traduzida para o espanhol sob o título " Carcel y Fabrica: los origenes del sistema penitenciário".
A nosso ver é fundamental incluir-se aí a obra de GEORG RUSCHE e OTTO KIRCHEIMER
("Punishment and Social Structure") traduzida para o espanhol sob o título "Pena y Estructura
social", obra que, embora publicada nos Estados Unidos em 1939 passa a receber uma especial
atenção da literatura crítica do sistema penal desde a década de 60/70, exercendo influência sobre
as próprias historiografias de FOUCAULT e MELOSSI e PAVARINI.
"revolução de paradigma" em Criminologia, processo este que culmina na
construção da Criminologia crítica.
Assim a Criminologia contemporânea experimenta uma troca de
paradigmas mediante a qual está a se deslocar e transformar de uma Ciência das
causas da criminalidade (paradigma etiológico), que caracterizou seu estatuto
desde o século XIX, em uma Ciência da crimininalização (paradigma da reação
social), ocupando-se hoje, especialmente, do controle sócio-penal e da análise da
estrutura, operacionalidade e reais funções do sistema de penal, que veio a ocupar
um lugar cada vez mais central no interior do objeto da investigação criminológica.
(BARATTA, 1982; ANDRADE, 1991)
Pode-se dizer então que desde as histórias revisionistas de sua
fundação e elementos caracterizadores estruturais até a análise de sua inteira
dinâmica funcional o desconstrucionismo abala, precisamente, os sustentáculos
daquele duplo eixo legitimador do sistema penal a que nos referimos, expondo
não apenas a violação encoberta e aberta da programação normativa e teleológica
do sistema penal (da qual resulta sua grave crise de legitimidade, não obstante a
convivência com sua autolegitimação) mas também o cumprimento de funções
latentes, distintas das declaradas.
Como desdobramento destas desconstruções e com base nos seus
resultados sobre o sistema penal pode-se dizer que

"(...) uma arqueologia da linguagem do controle social dos anos


posteriores a 1960 revelaria quase um consenso ideológico en favor de
inverter a direção que o sistema havia adotado em finais do século
XVIII." (COHEN, 1988, p.56)

São precisamente estas inversões as consignadas por COHEN na fase


"3" da tabela "1" e pontualizadas na tabela "2", evidenciando quatro grupos de
contra-ideologias ou movimentos desestruradores que se opõem a cada um dos
submodelos do moderno controle do delito :1) opostos ao Estado; 2) opostos à
categorização/profissionalização; 3) opostos à instituição segregadora e 4)
opostos à mente. 137
O impulso desestruturador atinge assim também o domínio da Política
Criminal que, até então reduzida à "Política da Pena" e da reforma do Direito e do
sistema penal oficial, tem seu horizonte pluralizado e aberto para o diálogo sobre
"Políticas Criminais" alternativas. De certo modo, a Política Criminal respondeu
na práxis e desde o seu interior, aos resultados desconstrutores experimentando-
se, no capitalismo central, alternativas político-criminais concretas. (CAPELLER,
1992b, 1993 e DELMAS MARTY, 1992)
Em linhas gerais, os grandes eixos de alternativas Político-Criminais
então em curso, fundamentam-se na necessidade da mínima - e redefinida -
intervenção penal ou na abolição do sistema penal e sua substituição por formas
alternativas de resolução de conflitos como mediação e conciliação. De forma que
se distribuem, centralmente, entre posturas minimalistas (FERRAJOLI, 1986 e
1989) e abolicionistas (HULSMAN, 1984 e 1986) ou posturas que, sem recusar a
utopia abolicionista a longo prazo reivindicam um Direito Penal mínimo baseado
na reconstrução crítica e fortalecimento das garantias liberais a curto e médio
prazo (ZAFFARONI, 1989 e 1991 e BARATTA, 1976, 1983b e 1991a).
Se o "impulso desestruturador" nasceu da crítica à prisão, expandiu-se
para englobar o sistema penal em seu conjunto, conformando um novo paradigma
criminológico; atingiu o horizonte da Política Criminal, entreabrindo para ambas as
disciplinas a busca de uma nova identidade, acaba por atingir também o território
da Dogmática penal, entreabrindo o interrogante sobre uma nova forma de

137 .Desenvolvidamente, ver COHEN (1988, p.33-135). Ver também CAPELLER (1992b, p.66-
68).
relação entre Dogmática penal e Criminologia, dimensão na qual se situa, como
veremos, o controle dogmático aqui preconizado.
O campo penal, tradicionalmente um campo fechado, encontra-se
hoje aberto e perturbado. Aberto pelo diálogo, que o impulso desestruturador
passou a possibilitar, entre o penal e o social, o político e o econômico; e pela
descoberta, que ele co-constituiu, de novos parceiros para o penal. Ao dialogar
com as Ciência Sociais e abrir-se para uma nova parceiragem o penal deixa de
ser,ao menos como experiência, monopólio analítico dos penalistas e monopólio
da prática estatal.
O impulso desestruturador abrange, portanto, um extenso, heterogêneo
e riquíssimo universo teórico/prático que obviamente não pretendemos e
podemos abarcar. Para efeitos de nossos objetivos é na dimensão propriamente
desconstrutora que vamos nos fixar de modo que só ilustrativa e secundariamente
aludiremos aos seus desdobramentos político-criminais, ao nível teórico e
prático.138
E no interior desta dimensão elegemos três marcos que representam, a
nosso ver, os principais eixos de construção de um saber crítico do sistema
penal com uma simultânea e específica contribuição para o controle
epistemológico-funcional da Dogmática: a crítica historiográfica foucaultiana, a
crítica sociológica do labelling approach,139 de base interacionista, da qual

138 .Os desdobramentos político-criminais deste impulso estão em curso e plenos de conseqüências
práticas e teóricas sobretudo nas sociedades do capitalismo central. Sobre a política-criminal
decorrente do labelling approach, da Criminologia crítica e do abolicionismo penal ver
BARATTA (1976, 1983 b e 1991a) HULSMAN (1984 e 1986), DIAS & ANDRADE (1984),
PABLOS DE MOLINA (1984); sobre a mudança de estatuto epistemológico da Política Criminal
como disciplina ver DELMAS-MARTY (1992) CAPELLER (1992b, 1993); sobre uma avaliação
das experiências alternativas ver COHEN(1988); MATHEUS (1987); CAPELLER (1992b,
1993); LARRAURI (1987, 1988), GARLAND (1987).

139 .O labelling approach surge nos Estados Unidos da América em finais da década de 50 e inícios
da década de 60 com os trabalhos de autores como H. GARFINKEL, E. GOFMANN,K.
resulta, diretamente, o paradigma criminológico da reação social e a Criminologia
Crítica140 que, partindo deste paradigma, do reconhecimento da sua eficácia

ERICSON, A. CICOUREL, H.BECKER, E. SCHUR, T. SCHEFF, LEMERT, KITSUSE entre


outros, pertencentes à chamada "Nova Escola de Chicago" que começam a questionar o
paradigma funcional até o momento dominante dentro da Sociologia norte-americana. E como já
referimos genericamente, o contexto histórico que preside a este surgimento é o de crise do
Estado providência e das diversas formas de radicalização social, política e cultural que tiveram
lugar contra estes mesmos Estados. Basta lembrar as lutas estudantis, as lutas dos negros e das
mulheres pela igualdade de direitos, os protestos contra a guerra do Vietnã e a contracultura dos
hippies). Contexto que, confluindo na criação de novas formas de conflitividade social, algumas
delas relacionadas com a criminalização e estigmatização de condutas, requeria, a sua vez, novos
paradigmas de interpretação e ação, engendrando a aparição, assim, de um novo modo de fazer
Criminologia. Com efeito, se o funcionalismo pretendera explicar o que mantém a sociedade unida,
os movimentos contestatórios de então revelavam que a suposta sociedade estável e consensual
de que falavam os funcionalistas inexistia. É neste contexto que surgem as teorias interacionistas
buscando interpretar, entre outras, a "conduta desviante". Instaura-se assim definitivamente o termo
"desvio social" para englobar todas aquelas condutas que não podiam englobar-se dentro de
definições legais ou psiquiátricas: homossexualidade, drogadição, hipismo, prostituicão, rebelião,
feminismo, negrismo etc.; condutas que, em síntese, atentam contra o "status quo". Serão estas,
denominadas a partir de então de desvios "sem vítima" as formas de desviantes estudadas pelos
teóricos do interacionismo. (ALVAREZ G,1990, p.15; PABLOS DE MOLINA, 1988, p.587;
DIAS e ANDRADE, 1984, p.44-8; LARRAURI,1991, p.1; MOLINA,1984, p.587).
Considera-se H. BECKER, sobretudo através de seu já clássico Outsiders, publicado em 1963, o
fundador desta perspectiva criminológica. E na verdade, Outsiders persiste ainda como a obra
central do labelling, a primeira onde esta nova perspectiva aparece consolidada e sistematizada e
onde se encontra definitivamente formulada, como veremos no próximo capítulo, a tese central do
interacinismo.(DIAS e ANDRADE, 1984, p.50)
140 .É freqüente a referência à Criminologia "radical", "nova" ou "crítica" como equivalentes em sua
delimitação externa face a outras Criminologias e, sobretudo, face à Criminologia positivista
tradicional. Seguimos contudo aqui a explicitação de MUÑOZ GONZALEZ sobre a necessidade
de diferenciá-las, não obstante se poder identificar um denominador comum nestas três expressões
criminológicas, composta por três elementos: a) a comum referência a um período histórico
determinado; b) a comum referência a um momento criminológico determinado; e c)uma comum
atitude, vincadamente crítica, frente ao sistema de bem-estar e o controle sócio-penal e de
proposição de alternativas político-criminais.
Relativamente à matriz "a", todas elas surgem entre finais dos anos sessenta até meados dos anos
setenta nos países do capitalismo avançado e sua forma política, o Estado providência e são ainda
condicionadas pelo contexto referido na nota anterior. Deste contexto geral dois aspectos são
especialmente relevantes: o primeiro, relativo ao controle sócio-penal, é a posta em crise da
ideologia do tratamento, própria dos Estados do bem-estar.O segundo, se refere à radicalização e
politização de certos profissionais do desvio e dos desviantes e delinqüentes mesmos. Neste
sentido pode-se dizer "que a maturação política dos criminólogos e sociólogos" 'radicais' "novos" e
"críticos" esteve diretamente relacionada com e influída pela politização dos trabalhadores sociais,
psicólogos, psiquiatras, enfermo mentais, desempregados e, em especial, os pressos." (MUÑOZ
GONZALEZ, 1989, p.268-9 e PLATT, 1980.
Quanto à matriz "b", a comum referência a um momento criminológico determinado é precisamente
o de mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social, que condicionou o
terreno de seu surgimento num duplo sentido. Pois, tanto a inovação representada por este
paradigma face ao etiológico e os seus resultados, considerados um processo irreversível, quanto a
crítica de suas limitações, tiveraram um importante papel no nascimento desta Criminologia radical,
nova e crítica que se desenvolverá por dentro do paradigma da reação social e para além dele,
numa perspectiva majoritariamente macrosociológica.
As razões concretas para manter sua diferenciação se assentam, por sua vez, em dois fatos: a) a
diferente evolução concreta da Criminologia estadonidense( "radical") e da européia ("nova"); b) a
evolução interna para estudos de caráter materialista e marxista. O primeiro aspecto diferencia a
Criminologia "radical" da "nova"; o segundo serve para precisar a referência à Criminologia crítica.
Com efeito, enquanto a Criminologia radical teve como contexto geográfico e histórico de
referência os Estados Unidos da América, a nova Criminologia teve a Europa. Não é de
estranhar, pois, que uma revolução de paradigma em Criminologia fosse gestada e tivesse lugar
num contexto criminológico como o norte-americano que contava com toda uma tradição de
desenvolvimento criminológico de base sociológica. Como também não é de estranhar, devido a
este "continuum" criminológico, que precisamente nos Estados Unidos se desse a passagem,
inicialmente, da Criminologia da reação social, entendida em sentido amplo, para a originariamente
chamada Criminologia radical, que desenvolveu-se sobretudo a partir da Escola de Criminologia
de Berkeley (com os SCHWENDINGER e T. PLATT) na Califórnia, entre os anos de 1968 a
1976. Criou a sua organização, a Union of Radical Criminologists (U:R.C) fundada em 1972 e
a revista Crime and Social Justice, fundada em 1974 e subtitulada até 1976 A Jornal of Radical
Criminology.
Por outro lado, pelo escasso desenvolvimento da Criminologia européia, esta teve que recebê-la
dos Estados Unidos. Em ambos os casos se tratava de uma Criminologia muito especialmente
ligada à recepção do labelling approach e cumpriu um papel fundamental: foi instrumental com
respeito à Criminologia anterior e serviu como veículo de transição com respeito à Criminologia
posterior.
A "Nova Criminologia" européia se organizou, assim, na Inglaterra em torno da National Deviance
Conference (N.D.C.), fundada em 1968 e encabeçada por TAYLOR; WALTON e YOUNG,
autores do já clássico The New Criminology: For a Social Theory of Deviance (1973) e
organizadores da coletânea Critical Criminology (1975).
(Sobre o exposto ver MUÑOZ GONZALEZ,1989, p.267-282 e também DIAS & ANDRADE,
1984, p.56-8).
Enfim, sob a denominação de "Criminologia crítica" designa-se, em sentido lato, um estágio
avançado da evolução da Criminologia "radical" norte-americana e da "nova Criminologia"
européia, englobando um conjunto de obras que desenvolvendo um pouco depois as indicações
metodológicas dos teóricos do paradigma da reação social e do conflito e os resultados a que
haviam chegado os criminológos radicais e novos chegam, por dentro desta trajetória, à superação
deles. E nesta revisão crítica aderem a uma interpretação materialista - e alguns marxista,
certamente não ortodoxa- dos procesos de criminalizacão nos países do capitalismo avançado.
(PAVARINI,1980, p.155-156 e 163-164 e MUÑOZ GONZALEZ, 1989, p.277)
Bem vistas as coisas - diz PAVARINI (1980, p.163-164) - "também esta útlima perspectiva
orientada para uma interpretação marxista da criminalidade e do controle social era, ainda que
implicitamente, uma saída obrigatória e necessária para quem havia passado através das teorização
do labelling e da reação social. Uma vez que o interesse do criminólogo se desloca desde a
fenomenologia criminal para os processos de criminalização, uma das saídas teóricas mais
previsíveis é precisamente o estudo das razões estruturais que sustentam, numa sociedade de
classes, o processo de definição e de enquadramento."
No âmbito da Criminologia crítica podem assim ser situados, entre outros: a) na Alemanha,
especialmente vinculada à recepção do labelling approach: F.SACK, A.BARATTA, LINDA
SMAUS, KARL SCHUMANN, STEFAN QUENSEL, SEBASTIAN SCHERER,
F.WERKENTIN, J.FEEST e, em geral, todos os criminólogos agrupados em torno à organização
Arbeitskreiss Junger Kriminologen (A.J.K) e o respectivo órgão, a revista Kriminologishes
Journal, ambas fundadas em 1969; b) no chamado "Grupo europeu" (Escandinávia e Itália):
MATIESEN,COHEN, TULLIO SPPILLI, M.PAVARINI, D. MELOSSI, MARIO SIMONDÍ,
TAMAR PITCH; c) no Grupo austríaco: HEINZ STEINER E PILGRAM
(Kriminalsoziologische Bibliographie); d) a Escola de Bolonha de Direito Penal e Criminologia,
deslegitimadora e do desenvolvimento crítico dos seus resultados, entre outros,
representa o momento culminante de maturação daquele saber. 141

5. Da história oficial às histórias revisionistas da gênese do moderno


sistema penal

que originariamente destinada à investigação de um modelo integrado sobre a questão criminal


entre Direito Penal e Criminologia, prossegue numa direção mais criminológica. Nela avultam os
nomes de BRICOLA (recentemente falecido) A.BARATTA, D.MELOSSI, M.PAVARINI,
M.SIMONDI e a publicação (desde 1975) da revista La questione criminale:Rivista di ricerca
e dibatito su devianza e controle sociale posteriormente renomeada para Rivista Dei Dellitti e
delle pene, hoje sob a direção de A.BARATTA.
Na América Latina surge em 1974, em Maracaibo, o Grupo latino-americano de Criminologia
Comparada", coordenado pelo Instituto de Criminologia da Universidade de Zulia e pelo Centro
de Criminologia da Universidade de Montreal (Canadá) então dirigidos, respectivamente, por
DENIS SZABO e L. ANYAR DE CASTRO e cujo órgão de divulgação científica é a Revista
Capítulo criminológico. A criação deste grupo foi perspectivada para a investigação
criminológica da realidade norte-americana baseada na premissa de que a Criminologia na América
Latina se convertera em uma mera recepção da Criminologia européia e norte-americana.
(MANZANERA,1990, p.191-2) Assim tem realizado projetos de investigação sobre temas como
violência, criminalidade de colarinho branco e controle social na América Latina em torno dos
quais se agrupam diversos criminólogos da região e do exterior, como R.BERGALLI, R.
ZAFFARONI, E. KOSOUSKI e, em especial A.BARATTA que participou da própria
fundação do grupo. Destaca-se também na Venezuela, embora não vinculada ao grupo, a obra
criminológica crítica de R.DEL OLMO. No Brasil destaca-se a obra de ROBERTO LYRA
FILHO (já falecido) e J.CIRINO DOS SANTOS.
Pontualizadas tais especificidades conceituais, que adotamos aqui, é visível, por outro lado, que se
pode e deve caracterizar o conjunto desta produção científica não homogênea nem constituída por
uma definida comunidade de científicos, como um "movimento" criminológico crítico que, surgido
quase ao mesmo tempo nos Estados Unidos e em Inglaterra, irradia depois para a generalidade
dos países europeus - sobretudo Alemanha, Itália, Holanda, França e Países Nórdicos -, para o
Canadá, etc e América Latina (DIAS & ANDRADE; 56). Enquanto movimento, sua unidade está
dada, precisamente, pela matrizes comuns que aludimos acima.
141 .Em sua investigação específica da deslegitimação dos sistemas penais latino-americanos
ZAFFARONI (1991, p.68-69) sustenta nesta mesma direção, que, "... as contribuições teóricas
deslegitimantes mais significativas para a desqualificação do discurso jurídico-penal em nossa área
foram a criminologia da reação social em suas vertentes interacionistas, femonomenológicas,
marxistas dos autores que trabalham teoricamente a partir do reconhecimento da eficácia
deselegitimante dos anteriores, as de FOUCAULT quanto à "microfísica" do poder e, mas
recentemente, as contribuições da criminologia da economia dependente."
Se a história explicativa da essência e conseqüências das
transformações dinamizadas pelo "impulso desestruturador" está sendo escrita e
ainda inexiste um acordo a respeito,142 pode-se dizer que os seus resultados
analíticos sobre a gênese e operacionalidade do moderno sistema penal já são
tidos por irreversíveis. Situemos, pois, a trajetória de construção deste marco
teórico, iniciando por situar a historiografia de FOUCAULT no marco
revisionista.

- A história oficial: o enfoque idealista ou ideológico

A história oficial da emergência do moderno sistema da justiça penal é


precisamente a representada pelo discurso jurídico declarado que, desde uma
visão linear e idealista da história a contou como produto de uma evolução
progressiva da "barbárie" ao "humanismo", comandada pela evolução das idéias
"pelo" e "para" o "homem".
É quando as idéias se sofisticam e se acentua a visão reformista que as
mudanças ocorrem:

"A força motriz que ocasionou as mudanças se situa no terreno das


idéias: ideais, visões, teorias, intenções. A força motriz que ocasionou
as mudanças se situa no terreno das idéias: ideais, visões, teorias,
intenções, avanços científicos. Toda mudança constitui 'reforma'(uma
palavra sem conotações negativas); toda reforma está motivada pela
benevolência, o altruísmo, a filantropia e o humanitarismo e as
reformas sucessivas devem ler-se como uma incessante história de
progresso."(COHEN, 1988, p.39)

142 .Pois,
é importante que se diga, sendo interpretada no seu própio curso é tida, por alguns, como
um questionamento e uma reversão da transformação inicial dos séculos XVIII e XIX; enquanto
que por outros é interpretada como uma mera continuação e intensificação das linhas originais (A
respeito ver COHEN,1988; COHEN e SCULL, 1983; MATTHEWS, 1987; LARRAURI, 1988
e 1991)
Nesta ótica o que emerge na modernidade - a fase adulta da
humanidade - é um Direito Penal liberal e humanitário por oposição e superação à
arbitrariedade do "Antigo Regime", visto por sua vez como uma realidade
normativa autônoma, cuja concretização é sujeita à suas regulações normativas
internas e suas opções éticas fundamentais. Um eventual fracasso é interpretado
como um desvio na posta em prática deste projeto; ou seja, como uma
conseqüência não desejada do Direito. Deste ponto de vista, a lógica da aplicação
seria uma lógica contrária à da normativização. A história oficial se apóia, assim,
sobre uma negação ou neutralização estrutural do poder e da dominação.

- As histórias revisionistas: a crítica historiográfica materialista

As "histórias revisionistas" são tais precisamente porque, desde um


enfoque materialista-marxista143, materialista político-econômico144, ou
funcionalista145 recontaram a história oficial da ótica do poder, do controle e da
dominação, mostrando, por um lado, o idealismo do discurso jurídico embora às
vezes, em direção oposta, à custa da negação estrutural do homem e do
humanismo.

- Indicações epistemológicas comuns das histórias revisionistas


materialistas

143 .Representado pelas obras de GEORG RUSCHE e OTTO KIRCHEIMER, MELOSSI,


PAVARINI, indicadas na nota "15"
144 . Representado pela obra de FOUCAULT, indicada na nota "15".
145 .Representado pela obra de David J. Rothman indicada na nota "15". A respeito ver COHEN
(1988, p.40-3).
A "trilogia" representada pelas já clássicas historiografias de
RUSCHE e KIRCHEIMER, FOUCAULT, MELOSSI e PAVARINI nos oferece
em seu conjunto -não obstante as diferenças internas que as separam entre si - as
seguintes indicações epistemológicas:
a) O sistema penal não pode ser compreendido como realidade
autônoma, mas como parte do sistema social concreto no qual se insere e a partir
da conexão funcional que guarda com ele; ou seja, de suas funções reais. Daí a
necessidade de fundamentar o estudo das suas funções declaradas na base das
funções latentes e reais;
b) A reforma e a fundação do sistema penal moderno que dela decorreu
não resulta unicamente de transformações das idéias mas de transformações no
sistema social e suas funções declaradas ocultam exigências e funções latentes .
O discurso declarado é ideológico;
c) O desenvolvimento histórico e a situação presente da prisão e do
sistema penal só podem ser compreendidos em relação à fundação do sistema e
da unidade do Direito, isto é, entre a programação normativa e sua aplicação.
Assim, uma tese comum desta historiografia é que a emergência da
pena de prisão e do moderno sistema penal somente pode ser compreendida no
marco das transformações sociais, econômicas e políticas concretas que
presidem à consolidação da sociedade capitalista, pois expressa suas exigências
de dominação classista antes que à humanidade dos indivíduos abstratos. O
processo de industrialização e o impacto racionalizador do mercado, a
necessidade de regular a força de trabalho, o medo ao proletariado nascente, a
necessidade de substituir a autoridade tradicional e os conceitos pré-modernos;
todos estes fatores, em diversificadas combinações, faziam da violência física
aberta um castigo penal anacrônico e ineficaz. Era necessário um novo sistema de
dominação e disciplina para socializar a produção e criar uma força de trabalho
submissa e perfeitamente regulada. Assim, não apenas a prisão, mas todo o
sistema penal forma parte de uma extensa racionalizacão das relações sociais no
capitalismo nascente (COHEN, 1988, p.45)
O discurso jurídico oficial é então reconduzido a um discurso de
justificação ética e cobertura ideológica:

"O sistema de controle novo, serviu às necessidades da ordem


capitalista nascente para assegurar a repressão dos membros
recalcitrantes da classe trabalhadora e ao mesmo tempo continuava
mistificando a todo mundo (incluídos os reformadores) fazendo-os crer
que estas mudanças eram justas, humanas e progressistas.
.................................................................................................
Nem os ideais nem as ideologias podem variar demasiado a história.
(...) as intenções declaradas ocultam os interesses e os motivos
verdadeiros escondidos por detrás do sistema. Constituem uma
fachada para tornar aceitável o exercício de outra forma inaceitável do
poder, da dominação ou dos interesses de classe, que são, por sua vez, o
produto de uns particulares imperativos político-econômicos."
(COHEN, 1988, p.44-5)

Nesta linha, destaca-se inicialmente a historiografia dos autores da


Escola de Frankfurt, que, como seu título "Pena e Estrutura social" está a
indicar, constitui uma abordagem do sistema penal à luz de categorias do
materialismo histórico, segundo o qual

"O sistema penal de uma sociedade determinada não constitui um


fenômeno isolado sujeito somente a suas regulações normativas, senão
que é parte integral da totalidade do sistema social com o qual
compartilha suas aspirações e defeitos." (RUSCHE e KIRCHEIMER,
1984, p.254)

Fazendo referência às teorias jurídicas da pena RUSCHE &


KIRCHEIMER sintetizam a debilidade do enfoque jurídico, na reconstrução
histórica do sistema penal, nos seguintes termos:
"As teorias retribucionistas fracassam desde o início pelo fato de
perceber na relação entre culpabilidade e expiação, um mero problema
de imputação jurídica segundo o qual o indivíduo atua conforme a seu
livre arbítrio. As teorias teleológicas, por sua parte, concentrando-se
sobre necessidades sociais, reais ou fictícias, tendem a considerar os
impedimentos para o cumprimento de seus objetivos como problemas
de índole técnica e não histórica. Conseqüentemente, as teorias
jurídico-penais não só contribuíram escassamente para elucidar a
problemática sócio-histórica dos métodos punitivos, senão que
exerceram uma influência negativa sobre aquela enquanto
consideraram a pena como uma entidade eterna e imutável."(RUSCHE
e KIRCHHEIMER, 1984, p.1-2)

Trata-se então de romper com este enfoque jurídico abstrato, no qual a


pena é concebida como epifenômeno do crime (seja como retribuição
proporcionada a ele ou como sua prevenção) para recolocá-la e explicá-la no
marco da relação histórica entre os diversos sistemas punitivos e os sistemas de
produção em que se efetuam, desde a escravidão, passando pelo feudalismo e, em
especial, a relação entre o modo de produção capitalista e a afirmação da prisão, a
partir do final do século XVIII, como método punitivo por excelência. A pena,
superestrutura punitiva, é vinculada à estrutura econômica da sociedade e a partir
dela é explicada.
Partindo assim da indicação epistemológica básica de que "a pena
como tal não existe; existem somente sistemas punitivos concretos e práticas
determinadas para o tratamento dos criminosos" (RUSCHE &
KIRCHEIMER,1984, p.3) é conhecida a tese central formulada e desenvolvida
nesta historiografia:

"Cada sistema de produção tende ao descobrimento de métodos


punitivos que correspondem a suas relações produtivas. Resulta, por
conseguinte, necessário investigar a origem e o destino dos sistemas
penais, o uso ou a elusão de castigos específicos e a intensidade das
práticas penais em suas determinação por forças sociais, sobretudo no
que diz respeito à influência econômica e fiscal." (RUSCHE e
KIRCHEIMER, 1984, p.3)
Uma segunda tese que se extrai desta investigação é a da seletividade
classista dos modernos sistemas punitivos; ou seja, a de que a população criminal
se recruta predominantemente entre as classes mais baixas da sociedade, tal como
a ilustram, nesta passagem, RUSCHE e KIRCHEIMER (1984, p.92), referindo-se
às promessas iluministas:
"Os processos públicos, a livre eleição do defensor, o juízo por jurados,
a supressão da tortura, normas definidas sobre a prova, a proteção
contra as detenções ilegais; todas demandas em nome da humanidade e
o progresso que deviam beneficiar ao conjunto das classes por igual.
Todavia, a experiência demonstrou que os novos procedimentos
diferiam amplamente nas distintas classes sociais. Apesar de uma certa
tendência para o incremento das garantias gerais, estas serviram para
proteger, entre outros, aos membros deste tipo, amparando-os e
facilitando assim suas atividades pouco respeitáveis. De outra parte, as
classes inferiores raramente podiam utilizar a complexa maquinaria
judicial criada pela lei por falta tanto dos conhecimentos necessários
como dos meios econômicos."

A terceira tese estabelece que se a pena objetiva gerar efeitos realmente


intimidativos sobre os criminosos potenciais "deve ser de uma natureza tal que
possa produzir uma diminuição ainda maior de suas condições atuais de
existência" (RUSCHE & KIRCHEIMER, 1984, p.4).
E dela se deriva, diretamente, a quarta tese (mercado de trabalho) que se
traduz na concreção do enunciado geral contido na primeira. É que tendo por
categoria explicativa central das transformações dos sistemas penais o mercado de
trabalho, esta quarta tese se apóia numa hipótese de dupla via: quando a força de
trabalho excede das necessidades do mercado (excesso de trabalhadores) a
punição - para conservar seu efeito intimidatório - assume a forma de penas
corporais, podendo chegar ao extermínio massivo da mão-de-obra excedente;
quando, ao revés, a força de trabalho é insuficiente para as necessidades do
mercado (déficit de trabalhadores) a punição assume formas de trabalho forçado,
com finalidades de produção e preservação da mão-de-obra.
Embora reconhecendo que a situação do mercado de trabalho não está
determinada exclusivamente pelo déficit ou excesso de mão-de-obra, já que
intervenções da esfera política podem corrigir ou alterar o movimento da oferta e
da demanda, RUSCHE e KIRCHEIMER entendem que, em termos gerais, as
condições do mercado de trabalho constituem um fator determinante dos distintos
tipos e modalidades de execução penal. A prisão então cumpriria a função básica
de regulador coativo do mesmo.146
FOUCAULT, por sua vez, compartilha relativamente da explicação
materialista de "Pena e Estrutura social", conforme o tributo por ele próprio
assinalado:

"Do grande livro de RUSCHE & KIRCHEIMER podemos guardar


algumas referências essenciais. Abandonar em primeiro lugar a ilusão
de que a penalidade é antes de tudo (se não exclusivamente) uma
maneira de reprimir os delitos(...)
.................................................................................................
Analisar antes os 'sistemas punitivos concretos', estudá-los como
fenômenos sociais que não podem ser explicados unicamente pela
armadura jurídica da sociedade nem por suas opções éticas
fundamentais; recolocá-los em seu campo de funcionamento onde a
sanção dos crimes não é o único elemento; mostrar que as medidas
punitivas não são simplesmente mecanismos 'negativos' que permitem
reprimir, impedir, excluir, suprimir; mas que elas estão ligadas a toda
uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar
(e nesse sentido, se os castigos legais são feitos para sancionar as
infrações, pode-se dizer que a definição das infrações e sua repressão
são feitas em compensação para manter os mecanismos punitivos e
suas funções)."

A historiografia de FOUCAULT é assim orientada por uma regra


fundamental, qual seja, a positividade do poder147, na qual poder e saber aparecem
como fenômenos estreitamente ligados.

146 .A respeito ver também CIRINO DOS SANTOS (1981, p.42-3) e GARCÍA MENDEZ (1984,
p.262-3).
147 . A respeito ver também FOUCAULT,1987, p.26 a 30,172 e 189.
Inverte, neste sentido,a idéia de que é o saber que gera poder, para
afirmar que
"(...) o poder produz saber (e não simplesmente favorecendo-o porque o
serve ou aplicando-o porque é útil); que poder e saber estão
diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição
correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não
constitua ao mesmo tempo relações de poder." FOUCAULT (1987,
p.30)

Embora, pois, também tenha a gênese do cárcere como objeto central


de investigação, a historiografia de FOUCAULT alça uma "genealogia do atual
complexo científico-judiciário onde o poder de punir se apóia, recebe suas
justificações e suas regras, estende seus efeitos e máscara sua exorbitante
singularidade." (FOUCAULT, 1987, p.26)
Atacando mais do que o idealismo das teorias da pena, o idealismo do
enfoque jurídico acima assinalado,a genealogia de FOUCAULT se distancia
também relativamente da explicação marxista, ao sustentar que a moderna Justiça
Penal não resulta unicamente das idéias reformistas (enfoque idealista) ou das
transformações econômicas (enfoque marxista) mas da complexa espiral
poder/saber, no marco do capitalismo nascente.
Nesta perspectiva FOUCAULT (1987, p.52) ataca diretamente o
idealismo da oposição "moderna justiça humanitária x antiga justiça bárbara"
demonstrando que no antigo regime, o exercício da punição diretamente sobre o
"corpo" dos condenados e a ostentação pública dos suplícios a que eram
submetidos possuía a sua própria lógica: "não era a conseqüência de uma lei de
talião obscuramente admitida. Era o efeito, nos ritos punitivos, de uma certa
mecânica de poder" .
O poder de punir não conhecia limites porque estava identificado com o
superpoder monárquico. Daí o excesso, o abuso, o desequilíbrio do superpoder
punitivo do antigo regime que a modernidade irá condenar. (FOUCAULT, 1987,
p.33-63)
Desequilíbrio que vinha por sua vez acentuado por outro, relativo ao
povo. Haviam-se gerado uma multiplicidade de condutas ilegais (contrabando,
acumulação de mercadorias com fins especulativos etc.) que, toleradas na prática,
permitiam a acumulação de bens e estes ilegalismos atuavam contra o superpoder
existente.
Com a emergência da sociedade capitalista, onde o arranque econômico
possibilitou a acumulação do capital como um fim, ambos desequilíbrios
passaram a significar um grande desgaste econômico e político. É que a nova
justiça - e o modelo disciplinar que a prisão devia representar - correspondia a
uma economia de poder bastante distinta que a representada pelo governo
violento, direto e arbitrário do soberano. O poder na sociedade capitalista devia
ser exercido com o menor custo possível e seus efeitos deveriam ser intensos e
extensos: transmitidos a todas as partes do corpo social (minimização do custo
econômico e político x maximização da eficácia).
Neste sentido a historiografia de FOUCAULT objetiva caracterizar a
disciplina (incorporada na estrutura panótica das relações sociais) como a
modalidade específica de poder que coloniza a gênese da instituição carcerária,
explicando-a pela produção e reprodução de uma "ilegalidade fechada, separada e
útil" (a delinqüência) e, simultaneamente, de "corpos dóceis", garantindo e
reproduzindo as relações de poder (e a estrutura de classe) da sociedade. Trata-se
de aumentar a eficácia produtiva do homem e diminuir sua força política
(maximização da força econômica e minimização da força política). (CIRINO,
1981, p.44, GONZALO ESCOBAR, 1986, p.271)
O sistema penal é assim "um instrumento para gerir diferencialmente as
ilegalidades, não para suprimi-las a todas" na medida em os castigos universais
das leis vem aplicar-se seletivamente a certos indivíduos e sempre aos mesmos.
(FOUCAULT, 1987, p.82)
A transição histórica que simbolizou a nova ordem foi a passagem do
castigo concebido como tortura - um espetáculo público e teatral - para
condenações a cárceres economicamente produtivos e politicamente discretos. O
castigo se torna razoável e a mente substitui o corpo como objeto da repressão
penal. O sofrimento físico, a dor corporal não são mais os elementos
constitutivos da pena. Doravante, a certeza de ser punido é que deve desviar o
homem do crime e não mais o abominável teatro; a justiça não mais assume
publicamente a parcela da violência vinculada ao seu exercício. (FOUCAULT,
1987, p.15)
Tratava-se, portanto, não apenas de uma redução quantitativa das
punições mas de um deslocamento qualitativo do seu objeto:

"O afrouxamento da severidade penal no decorrer dos últimos séculos é


um fenômeno bem conhecido dos historiadores do direito. Entretanto,
foi visto, durante muito tempo, de forma geral, como se fosse fenômeno
quantitativo: menos crueldade, menos sofrimento, mais suavidade, mais
respeito e 'humanidade'. Na verdade, tais modificações se fazem
concomitantemente ao deslocamento do objeto da ação punitiva.
Redução de intensidade? Talvez. Mudança de objetivo, certamente. Se
não é mais ao corpo que se dirige a punição, em suas formas mais
duras, sobre o que, então se exerce? (...) Pois não é mais o corpo, é a
alma." (FOUCAULT, 1987, p.20)

A transição da antiga para a moderna Justiça Penal que se verifica na


transição do século XVIII para o XIX não significou, portanto, a passagem de
formas indiferenciadas, confusas e bárbara à formas racionais e humanizadas de
castigo, mas a "passagem de uma arte de punir a outra, não menos científica que
ela. Mutação técnica." (FOUCAULT, 1987, p.228)
E este deslocamento qualitativo do ponto de aplicação do poder
punitivo é que engendrará, no seu próprio exercício
"(...) todo um campo de objetos recentes, todo um novo regime de
verdade e uma quantidade de papéis até então inéditos no exercício da
justiça criminal. Um saber, técnicos, discursos 'científicos' se formam e
se entrelaçam com a prática do poder de punir.(FOUCAULT, 1987,
p.26)

Eis aí a materialização da espiral: o poder, como mecanismo, produz o


saber adequado ao seu domínio e o saber reproduz o poder a que
corresponde, nas relações entre classes e grupos sociais. Eis aí ressignificada,
econômica e politicamente, a configuração do moderno saber penal. Pois, em
definitivo, trata-se de um saber "do" sistema penal, gerado no seu horizonte de
projeção - como seu efeito - e tornado instrumento de seu complexo exercício de
poder.
Na esteira da investigação de RUSCHE e KIRCHEIMER e de M.
FOUCAULT, como reconhecem seus próprios autores, situa-se, por se turno, a
historiografia de MELOSSI & PAVARINI (1987) que investiga as origens do
sistema penitenciário em Europa (em especial em Itália) e Estados Unidos dos
séculos XVI a XIX para demonstrar a relação existente entre cárcere e fábrica;
entre internação e adestramento para a disciplina fabril. Para eles a conexão
funcional entre cárcere e sociedade reside no conceito de disciplina. 148

148 .Como a crítica tem anotado (COHEN,1980, GARCíA MENDEZ, 1984, p.262-3, BARATTA,
1991a, p.206) entre outros aspectos que vão do "idealismo de Foucault" ao "determinismo" das
historiografias marxistas, é necessário levar em conta que estas histórias concentram seus recursos
explicativos sobre a gênese e desenvolvimento da pena de prisão enquanto instituição hegemônica
do moderno sistema penal, no marco do surgimento e desenvolvimento do modo de produção
capitalista. Neste sentido, não obstante sua reconhecida contribuição para a reconstrução
científica da história do cárcere e para a análise das funções reais do sistema penal, cada uma
delas é limitada para compreender o sistema de controle atual, ou seja, das sociedades do
capitalismo avançado, porque os sucessos de que fazem a crítica estão hoje sobredefinidos.
De qualquer modo, como afirma BARATTA (1991a, p.204-5) "Tanto Rusche e Kircheimer,
quanto Foucault, estão conscientes de que nos países capitalistas mais avançados, na fase final de
desenvolvimento por eles descrito (a Europa dos anos Trina, no caso de Rusche e Kircheimer; a
Europa dos anos setenta, no caso de Foucault), o cárcere não tem mais aquela função real de
reeducação e de disciplina, que possuía em sua origem. Esta função educativa e disciplinar se
reduz, portanto, agora, a pura ideologia. As estatísticas das últimas décadas nos países capitalistas
Como observa NEPPI MODONA (1987, p.7), MELOSSI e PAVARINI
também invertem a concepção do cárcere como instituição isolada e separada do
contexto social

"O cárcere, e as demais instituições de confinamento, são lugares


fechados, e portanto estão isolados e separados da sociedade livre, mas
esta separação resulta mais aparente que real, já que o cárcere não
faz mais do que levar ao paroxismo modelos sociais ou econômicos de
organização que se tentam impor ou que já existem na sociedade.
FOUCAULT por uma parte, e Melossi e Pavarini por outra, seguindo
métodos e projetos ideológicos muito diferentes, chegam à mesma
conclusão, que se pode considerar já como o ponto de partida da
investigação histórica atual das instituições penitenciárias."

6. O labelling approach e o paradigma da reação social: uma revolu-


ção de paradigma em Criminologia.

Mas o eixo nuclear do impulso desestruturador reside na


desconstrução do Labelling approach que ocasionando uma mudança de
paradigma, desemboca no surgimento da Criminologia crítica. Antes de abordá-la
é importante, contudo, indicar as principais teorias que representando o
desenvolvimento da Criminologia pós positivista não apenas prepararam o
caminho para esta troca de paradigmas mas, ao fazê-lo, anteciparam já uma
negação da "ideologia da defesa social".

6.1. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: a nega-

avançados, demonstram uma diminuição relativa da população carcerária, em relação ao impacto


conjunto do sistema penal, e indicam um aumento das formas de controle diversos da reclusão,
como, por exemplo, o probation e o livramente condicional."
Neste mesmo sentido PAVARINI (1980, p.87-8) fala da perda das funções reeducativas reais da
prisão moderna, para adquirir uma função ideológica de terror repressivo de modo que parece
orientada a sobreviver, unicamente, como cárcere de segurança máxima para um universo "cada
vez mais fechado" precisamente no momento em que o controle social se projeta para o exterior
de seus muros,isto é, para um universo social "cada vez mais dilatado."
ção da ideologia da defesa social

Como temos visto, na base do paradigma etiológico, modelado


segundo uma matriz positivista derivada das Ciências Naturais, a Criminologia é
definida como uma Ciência causal-explicativa da criminalidade. Seu objeto seria o
fenômeno da criminalidade analisado através do paradigma etiológico; ou seja, a
investigação das causas da criminalidade segundo o método experimental.
Aceitando acriticamente o Direito Penal Positivo como marco
definicional da criminalidade esta é concebida, no paradigma etiológico, como
uma realidade ontológica preconstituída ao Direito Penal (delitos "naturais") que,
com exceção dos chamados delitos "artificiais",149 não faz mais do que
reconhecê-la e positivá-la.
Desta forma,
"O pressuposto de que parte a Criminologia etiológica (...) é que existe
um meio natural de comportamentos e indivíduos que possuem uma
qualidade que os distingue de todos os outros comportamentos e de
todos os outros indivíduos: esse meio natural seria a criminalidade.Este
modo de considerar a criminalidade está tão profundamente enraizado
no senso comum que uma concepção que dele se afaste corre o risco de,
a todo momento,passar por uma renúncia a combater situações e ações
socialmente negativas." (BARATTA, 1983b, p.154)

Daí a tese fundamental de que ser delinqüente constitui uma


propriedade da pessoa que a distingue por completo dos indivíduos normais.
Sendo a criminalidade uma entidade ontológica, seria possível descobrir as suas
causas e colocar a Ciência destas ao serviço da prática que a deve combater.
Neste sentido,

149 . A respeito desta distinção entre delitos "naturais" e "artificiais", que ficou a dever-se a
GARÓFALO, ver item "e" (Principio do interesse social e do delito natural) da ideologia da
defesa social citada no capítulo terceiro, segundo o qual se considera que apenas os delitos
"artificiais" representam, excepcionalmente, violações de determinados ordenamentos políticos e
econômicos e resultam sancionados em função da consolidação dessas estruturas.
"Um de seus ganhos mais destacados foi que os criminólogos
positivistas puderam fazer o que parecia impossível. Desvincularam o
estudo do delito do funcionamento e da teoria do Estado. Uma vez feito
isto e quando o mesmo resultado se obteve a respeito da conduta
desviada em geral, o programa de investigação e estudo para os
próximos anos ficou relativamente esclarecido, em especial a respeito
do que não se estudaria."(MATZA, citado por WALTON, TAYLOR e
YOUNG,1990, p.46)

Com efeito, este paradigma, com o qual nasceu a Criminologia no final


do século XIX permanece também na base de seus posteriores
desenvolvimentos, inclusive os mais modernos que à indagação sobre as causas
da criminalidade, forneceram respostas diferentes das antropológicas e
patológicas do positivismo originário e que, em parte, nasceram da polêmica com
ele (teorias explicativas de ordem psicológica, psicanalítica, psiquiátrica e pela
atenção dedicada às leis da hereditariedade, combinação de cromossomos, teorias
multifatoriais). (BARATTA, 1982b, p.29)
Sendo uma criação européia, este paradigma permanece ainda hoje na
Europa como o modelo tradicional e de Criminologia que seja nas perspectivas
de ordem bio-psicológica, sociológica ou multifatorial se encontra comprometida,
como vimos, com a ideologia dominante na Dogmática Penal: a ideologia da
defesa social.
Por outro lado, como é sabido, no século XX a Criminologia muda de
cenário, deslocando-se do continente europeu para o americano. E enquanto a
Criminologia européia permanece relativamente estanque, do ponto de vista
epistemológico, é no mundo anglo-saxão, em particular na América do Norte que
experimentará um posterior desenvolvimento, sobretudo como Sociologia
Criminal. (BARATTA, 19828b, p.33 e MUNÕNZ GONZALEZ, 1989, p.273)
Ao longo do século XX desenvolve-se, pois, nos Estados Unidos
"(...) novas formas de conhecimento criminológico dirigidas a
compreender, explicar e atuar sobre os problemas sociais de uma
comunidade culturalmente tão diversa como aquela. A partir de então,
a produção criminológica norte-americana começou a distanciar-se da
européia e a tomar a dianteira teórica da disciplina." (MUÑOZ
GONZÁLES, 1989, p.273)

É justamente este desenvolvimento da Criminologia desde os anos 30


que BARATTA (1991a, p.35 et seq. e 1982b, p.33-36) reconstrói para demonstrar
que, não obstante demarcado num sistema jurídico e numa Ciência do Direito
Penal muito diversos dos característicos da Europa Ocidental, não apenas
preparou o terreno para uma mudança de paradigma em Criminologia, mas, ao
fazê-lo, promoveu a negação da ideologia da defesa social150; enquanto a
Dogmática Penal européia mantém constante, por outro lado, sua estrutura
conceitual e ideológica e sua incomunicabilidade com outras disciplinas.
Confrontando criticamente os resultados e argumentos extraídos da
Criminologia estadonidense151 - e auxiliarmente da européia - com os postulados
desta ideologia, segundo o método da crítica externa, BARATTA (1991a, p.36-37
e 1982b, p.33-38) chega então às seguintes conclusões indicadas abaixo.
O princípio do bem e do mal é questionado pela teoria funcionalista da
anomia e do desvio ao acentuar que as causas do desvio criminal não se
localizam nem na patologia individual nem na patologia social, mas que, ao
contrário, a criminalidade é um fenômeno "normal" de toda estrutura social.
Segundo esta teoria, somente quando se superam os limites fisiológicos do
150 . Descrita no item "8" do terceiro capítulo.
151 .As teorias criminológicas objeto desta confrontação são: as teorias psicanalíticas da criminalidade
e da sociedade punitiva (FREUD, THEODOR REIK, FRANZ ALEXANDER E HUGO
STAUB, PAUL REIWALD, HELMUT OSTERMEYER e EDWARD NAEGELI, 1991a, p.44-
55); a teoria estrutural-funcionalista da desviante e da anomia (ÉMILE DURKHEIM, ROBERT
K. MERTON) (1991a, p.56-65);a teoria das subculturas criminais (EDWIN H. SUTHERLAND,
ALBERT K. COHEN) e das técnicas de neutralização (GRESHAM M. SYKES E DAVID
MATZA) (1991a, p.66-78); as teorias do labbeling approach e sua recepção alemã (1991a,
p.83-119); A Sociologia do conflito e sua aplicação criminológica (RALF DAHRENDORF,
LEWIS A. COSER, GEROG SIMMEL, GEORG D. VOLD) (1991a, p.120-134) e AUSTIN
T. TURK (1991a, p.135-151).
desvio, esta se converte num fator negativo para a estabilidade e evolução do
sistema social; enquanto que, mantidos estes limites, este desvio é considerada
como um fator parcialmente positivo devido a seu caráter inovador.
O princípio da culpabilidade é posto em cheque pelas teorias das
subculturas criminais, segundo as quais o comportamento delitivo não pode ser
interpretado como a expressão de uma atitude interior reprovável porque dirigida
conscientemente contra valores e normas existentes na sociedade antes de sua
sanção legislativa (como sustenta a teoria normativa da culpabilidade). E isto
porque estas teorias demonstram que inexiste um único sistema oficial de
valores, mas uma série de subsistemas que se transmitem aos indivíduos mediante
mecanismos de socialização e aprendizagem específicos dos ambientes e grupos
sociais particulares nos quais se inserem. Por outro lado, transcende o poder de
decisão do indivíduo - e, conseqüentemente, sua responsabilidade moral - o fato
de participar ou não em uma determinada subcultura e, em conseqüência, de
aprender um determinado sistema de valores ou ainda determinados
comportamentos desviantes ou "técnicas de neutralização" alternativas aos
critérios oficiais de comportamento e de valoração.
O princípio da legitimidade resulta controvertido pelas teorias
psicoanalíticas da criminalidade e do Direito Penal pois os mecanismos
psicossociais da pena por elas ressaltados, como, por exemplo, a projeção do
mal e da culpa no "bode expiatório", substituem as funções preventivas e éticas
nas quais se baseia a ideologia penal tradicional.
O princípio da igualdade é convincentemente refutado pelo "labelling
approach", em cujo âmbito se demonstra que o desvio e a criminalidade não são
entidades ontológicas preconstituídas, identificáveis pela ação das distintas
instâncias do sistema penal, mas sim uma qualidade atribuída a determinados
sujeitos, por meio de mecanismos oficiais e não oficiais de definição e seleção.
Em conseqüência, não é possível estudar a criminalidade independentemente
destes processos. Desde o ponto de vista das definições legais, a criminalidade se
manifesta como o comportamento da maioria, antes que de uma minoria desviada
da população (neste sentido o labbeling approach tem em conta os estudos
sobre as infrações não perseguidas, sofre a cifra obscura da criminalidade e sobre
a delinqüência de colarinho branco). Segundo a definição sociológica, a
criminalidade, como em geral do desvio, é um status social que caracteriza ao
indivíduo somente quando lhe é adjudicada com êxito uma etiqueta de desviante
ou criminoso pelas instâncias que detém o poder de definição. As possibilidades
de resultar etiquetado, com as graves conseqüências que isto implica, se
encontram desigualmente distribuídas. Isto implica que o princípio da igualdade,
ou seja, a base mesma da ideologia do direito penal, seja posta em séria dúvida,
posto que a minoria criminal a que se refere a definição sociológica aparece, na
perspectiva do labelling approach, como o resultado de um processo altamente
seletivo e desigual dentro da população total; enquanto que o comportamento
efetivo dos indivíduos não é, por si mesmo, condição suficiente deste processo.
(BARATTA, 1982b, p.35)
O princípio do interesse social e do delito natural é questionado pelas
teorias do conflito que, desenvolvidas sobre a base do labelling approach,
tratam de localizar as verdadeiras variáveis do processo de definição nas relações
de poder e nos grupos sociais, tomando em conta a estratificação social e os
conflitos de interesse. Estas teorias puderam determinar em ditas relações a base
não só da desigual distribuição do status de criminoso, mas também a desigual
distribuição entre os grupos sociais de poder de definição, do qual aquele status
e as mesmas definições legais da criminalidade dependem. Puseram assim em
evidência que, na origem do processo de criminalização primária (gênese da lei
penal) e secundária (aplicação da lei penal) não residem interesses fundamentais
para uma determinada sociedade ou diretamente para toda sociedade civilizada,
mas interesses dos quais são portadores os grupos que detém o poder. Afirmam,
portanto, que o caráter político (relativo a violação de determinadas ordens
econômico-políticos contingentes) não é prerrogativa de um pequeno número de
delitos "artificiais", mas do fenômeno total da criminalidade como realidade social
criada através de processos de criminalização.
Finalmente, o princípio do fim e da prevenção resulta questionado
pelos resultados das múltiplas investigações acerca da efetividade do Direito Penal
e suas sanções, as quais partem das diferentes correntes da Sociologia Criminal
acima mencionadas. O princípio da ressocialização tem sido particularmente
questionado pela Sociologia do cárcere e de outras instituições totais, assim como
pelas investigações acerca da influências das sanções estigmatizantes sobre o
desvio "secundária" e a reincidência. Estas investigações demonstraram que a
ressocialização do delinqüente como um fim alcançável através de medidas
privativas de liberdade e função real do cárcere é definitivamente uma ilusão 152.
Contesta-se ainda de maneira crescente tanto a função reeducativa da pena como
o conceito mesmo de reeducação e ressocialização, convertendo-os em objeto de
profundas dúvidas.
Ilustrada esta negação dos princípios que conformam a ideologia da
defesa social situemos a desconstrução que, partindo do labelling approach e
passando pelas teorias do conflito culmina na consolidação da Criminologia
Crítica. Pois é no marco desta trajetória e da "revolução de paradigma" que ela
arrasta consigo que o sistema penal se converte em objeto específico do saber
criminológico.

152 A
respeito ver: OLIVEIRA, 1984, THOMPSON, 1988, BERGALLI, 1976 e
MIRPUIG, 1989.
6.2. Matrizes teóricas, pressupostos metodológicos, quadro explicativo
e teses fundamentais do labelling approach: a troca de paradig-
mas

Em 1960, sintetizando as linhas fundamentais da história da


Criminologia, escrevia MANNHEIM (citado por DIAS e ANDRADE, 1984, p.41-
2):

"É interessante notar, dum ponto de vista cronológico, que dois dos
mais momentosos eventos da história da Criminologia ocorreram nos
anos sessenta e setenta dos séculos XVIII e XIX: 'a publicação de Dei
delitti e delle pene (1764) de BECCARIA e de L'Umo delinquente (1876)
de LOMBROSO. Serão de esperar rebentamentos tão explosivos nas
duas décadas que se avizinham?'"

Respondem DIAS e ANDRADE (1984, p.42) que


"Os acontecimentos deram uma resposta definitiva e inequivocamente
afirmativa à interrogação de MANNHEIM. A década de sessenta de
nosso século assistiu, com efeito, a uma das viragens mais significativas
da história da Criminologia."

E esta viragem, embora relativamente preparada, como referimos, pelo


desenvolvimento da própria Criminologia norte-americana, representando neste
sentido um processo sem solução de continuidade, encontra na introdução das
teorias do labbeling approach no estudo do desvio e da criminalidade seu
momento decisivo.

- Interacionismo simbólico e construtivismo social modelando o para-


digma epistemológico do labelling approach

Com efeito, o horizonte dentro do qual o labelling approach se situa é


dominado, em grande medida, por duas correntes da Sociologia norte-americana,
estreitamente ligadas entre si. Em primeiro lugar, ele remonta àquela direção da
Psicologia Social e da Sociolingüística denominada de "interacionismo simbólico"
e inspirada em Charles COOLEY e George H. MEAD. 153 Em segundo lugar, a
etnometodologia, inspirada na sociologia fenomenológica de Alfred SHUTZ,
concorre para modelar o paradigma epistemológico do labelling.
O interacionismo simbólico representa uma certa superação da
antinomia rígida das concepções antropológicas e sociológicas do
comportamento humano, ao evidenciar que não é possível considerar a natureza
humana ou a sociedade como dados estanques ou estruturas imutáveis. O mesmo
vale para a identidade pessoal, que necessita ser encarada como o resultado
dinâmico do processo de envolvimento, comunicação e interação social. (DIAS e
ANDRADE, 1984, p.344-5)
A sociedade, ou seja, a realidade social, é constituída por uma
infinidade de interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de
tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e continua
a estender-se através da linguagem. O comportamento do homem é assim
inseparável da "interação social" e sua interpretação não pode prescindir desta
mediação simbólica. 154
Influenciado pelo interacionismo simbólico
"(...) o labelling mantém com ele extensas áreas de contacto e
superposição. Assim sucede, por exemplo, com o recurso ao modelo e

153 .Desta forma, ainda que a perpectiva labelling não adquira o estatuto de um modelo teórico até
os anos sessenta, cabe assinalar já nos escritos de MEAD (1917-1918), THOMAS (1923) e
TANNEUBAUM (1938) valiosos e significativos antecedentes da mesma. A respeito PABLOS
DE MOLINA, 1988, p.586.
154 .Do interacionismo desenvolvido por MEAD, cuja tese central pode ser resumida em que a
sociedade é interação e que a dinâmica das instituições sociais somente pode ser analisada em
termos de processos de interação entre seus membros, se derivaram diversas escolas dentro das
quais a "Escola de Chicago" à que pertencem LEMERT e BECKER, a escola dramatúrgica de
GOFFMAN e a etnometodologia. (ALVAREZ G,1990, p.19)
ao vocabulário da dramaturgia e com a utilização de técnicas de
investigação próprias da microsociologia. Por outro lado, tal como o
interacionismo simbólico, também o labelling approach rejeita o
pensamento determinista e os modelos estruturais e estáticos, tanto no
que respeita à abordagem do comportamento como no que toca à
compreensão da própria identidade individual." (DIAS & ANDRADE,
1984, p.50)

Segundo a etnometodologia também, a sociedade não é uma realidade


que se possa conhecer objetivamente, mas o produto de uma "construção social"
obtida mediante um processo de definição e de tipificação por parte dos
indivíduos e grupos diversos. Conseqüentemente, para o interacionismo e a
etnometodologia, estudar a "realidade social" (por exemplo, a conduta desviada)
significa, essencialmente, estudar esses processos, partindo dos que são aplicados
a simples comportamentos para chegar às construções mais complexas, como a
própria ordem social. (BARATTA,1991a, p.85-6; DIAS e ANDRADE, 1984,
p.54)
Também deve se acrescentar que além de mergulhar suas raízes no
interacionismo simbólico, os fundamentos teóricos e postulados metodológicos
do labelling são tributários de três outros campos de investigação: das
aquisições da teoria jurídica, relativamente à tese do papel criador do juiz e, em
especial, da distinção entre conceitos (ou linguagem) "descritivos" e "adscritivos"
ou "atributivos", devida sobretudo ao jusfilósofo inglês H.L.A.HART e das
aquisições da Sociologia Criminal dos últimos decênios, relativas a dois novos
campos de investigação: a)criminalidade de colarinho branco; b) a cifra negra da
criminalidade e a crítica das estatísticas criminais. (BARATTA,1991a, p.101;
DIAS e ANDRADE, 1984, p.344-6)

- O crime e a criminalidade como construção social: o papel cons-


titutivo do controle social na construção seletiva da criminalidade
Modelado pelo interacionismo simbólico e o construtivismo social
como esquema explicativo da conduta humana, o labelling parte dos conceitos
de "conduta desviada" e "reação social", como termos reciprocamente
interdependentes, para formular sua tese central: a de que o desvio - e a
criminalidade - não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade
ontológica preconstituída à reação (ou controle) social, mas uma qualidade
(etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de
interação social; isto é, de processos formais e informais de definição e seleção.
Conseqüentemente, não é possível estudar a criminalidade independentemente
destes processos. Por isso, mais apropriado que falar da criminalidade (e do
criminoso) é falar da criminalização (e do criminalizado) e esta é uma das várias
maneiras de construir a realidade social. (BARATTA,1982b, p.35; PABLOS DE
MOLINA, 1988, p.581-583; HASSEMER,1984, p.81-2; HULSMAN, 1986, p.127-
8; ALVAREZ, 1990, p.15-6 e 21)
Esta tese, da qual provém a própria denominação do labelling
("etiquetamento", "rotulação") se encontra definitivamente formulada na obra de
BECKER (1971, p.19) nos seguintes termos:

"(...) os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração


constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e
qualificá-las de marginais (estranhos). Desde este ponto de vista, o
desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma
conseqüência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções
para um "ofensor". O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar
com êxito dita qualificação (etiqueta); a conduta desviante é a conduta
assim chamada pela gente."

Uma conduta não é criminal "em si" ou "per si" (qualidade negativa ou
nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua
personalidade (patologia). O caráter criminal de uma conduta e a atribuição de
criminoso a seu autor depende de certos processos sociais de "definição", que
atribuem à mesma um tal caráter, e de "seleção", que etiquetam um autor como
delinqüente.
Pois, no dizer de BECKER (1971, p.14):

"(...) devemos reconhecer que não podemos saber se um certo ato vai
ser catalogado como desviante até que seja dada a resposta dos
demais. O desvio não é uma qualidade presente na conduta mesma,
senão que surge da interação entre a pessoa que comete o ato e aqueles
que reagem perante o mesmo."

Ao acentuar que o crime (e a criminalidade) não é o objeto, mas o


produto da reação social e, portanto, não tem natureza ontológica, mas social e
definitorial, o labelling acentua o papel constitutivo do controle social na
construção social da criminalidade de forma que as agências controladoras não
'detectam' ou 'declaram' a natureza criminal de uma conduta, mas a 'geram' ou
'produzem' ao etiquetá-la assim 155. (PABLOS DE MOLINA, 1988, p.585)

155 .Mas,
como acentua VETTER (citado por PABLOS de MOLINA,1988, p.593), uma vez que
não é da etiologia do delito que se ocupam os teóricos do labelling, não se pode extrair dele
diagnóstico algum sobre as causas (fatores e variáveis) da criminalidade. De tal forma que o valor
"constitutivo" que asignam aos agentes do controle social deve ser interpretado em sua acepção
simbólica, de acordo com as premissas do interacionismo. O etiquetamento não 'causa' a
criminalidade, mas os modelos ou pautas sociais de comportamento derivados da reação social
condicionam a natureza e o significado atribuídos àquela, bem como suas conseqüências.
Por outro lado, é importante observar que nem todos os teóricos do etiquetamento atribuem um
peso absoluto à reação social na criação do desvio, salientando neste sentido que deverá existir
uma conduta prévia, perante a qual a sociedade reage.
BECKER (1971, p.13) assinala , neste sentido "...que um ato dado seja desviante ou não depende
em parte da natureza do ato (ou seja, se quebranta ou não alguma regra), e em parte do que outras
pessoas fazem a respeito."
Além disso trata-se, a "criminalidade", não apenas de uma de uma
realidade social construída, mas construída de forma altamente seletiva e desigual
pelo controle social156.
A tese da seletividade, que já se encontra nas historiografias de
RUSCHE/KIRCHEIMER e FOUCAULT recebe aqui uma investigação
sistemática e é levada às suas últimas conseqüências a partir de outra das
revelações fundamentais do labelling: a das correlativas "regularidades" a que
obedecem a criminalização e o etiquetamento dos estratos sociais mais pobres,
visibilizada pela clientela da população carcerária.

- O quadro e os níveis explicativos do labelling approach : da


dimensão da definição à dimensão do poder ( de definir, selecionar e
estigmatizar) e de um modelo consensual a um modelo pluralista

Relativizando e problematizando a definição da criminalidade do


paradigma etiológico o labelling desloca, portanto, o interesse cognoscitivo e a
investigação das "causas" do crime e, pois, da pessoa do autor (delinqüente) e seu
meio e mesmo do fato-crime, para a reação social da conduta desviada, em
especial para o sistema penal, como conjunto articulado de processos de
definição (criminalização primária) e de seleção (criminalização secundária) e para
o impacto que produz o etiquetamento na identidade do desviante. (KAISER,
1983, p.85; PABLOS DE MOLINA, 1988, p.584-592; DIAS e ANDRADE, 1984,
p.43)

156 .E são as já referidas investigações sobre a criminalidade de colarinho branco, a cifra negra da
criminalidade e o papel criador do juiz e demais agentes do controle penal que constituem, como
veremos no capítulo seguinte, a base do instrumental argumentativo do labbeling na
fundamentação desta tese.
Desta forma, ao invés de indagar, como a Criminologia tradicional,
"quem é criminoso?", "por que é que o criminoso comete crime?" o labelling
passa a indagar "quem é definido como desviante?" "por que determinados
indivíduos são definidos como tais?", "em que condições um indivíduo pode
se tornar objeto de uma definição?", "que efeito decorre desta definição sobre o
indivíduo?", "quem define quem?" e, enfim, com base em que leis sociais se
distribui e concentra o poder de definição? (BARATTA, 1991a, p.87; DIAS e
ANDRADE, 1984, p.43).
É assim que a pergunta relativa à natureza do objeto e do sujeito na
definição dos comportamentos desviantes, orientou o desenvolvimento de três
níveis explicativos do labelling approach, cuja ordem lógica procede aqui
inverter:
a) um nível orientado para a investigação do impacto da atribuição do
status de criminoso na identidade do desviante (é o que se define como "desvio
secundário"157);
157 .Estenível prevalece entre os autores que se ocuparam particularmente da identidade e das
carreiras desviadas, como HOWARD BECKER, EDWIN M. SCHUR e EDWIN M.LEMERT a
quem se deve o conceito de "desvio secundário" (secondary deviance) que teorizado pela
primeira vez em seu "Social Pathology" em 1951, foi por ele retomado e aprofundado em
"Human Deviance. social problems and social control" (1972) tendo se convertido num dos
tópicos centrais do labelling.
BECKER, por exemplo, apesar de ter contribuído de modo decisivo ao desenvolvimento da
segunda direção de pesquisa, particularmente no que concerne à definição, se deteve
principalmente sobre os efeitos da estigmatização na formação do status social de desviante.
Não aludiremos posteriormente ao desenvolvimento experimentado pelo labelling neste nível.
Para os fins de nossa análise importa-nos reafirmar, com BARATTA (1991a, p.89), conforme já o
antecipamos no tópico "6.1" que, se relacionando com um mais vasto pensamento penalógico e
criminológico crítico sobre os fins da pena este nível de investigação põs em evidência que a
intervenção do sistema penal, em especial as penas privativas de liberdade, ao invés de exercer um
efeito reeducativo sobre o delinqüente, determinam, na maior parte dos casos, uma consolidação
de uma verdadeira e própria carreira criminal, lançando luz sobre os efeitos criminógenos do
tratamento penal e sobre o problema não resolvido da reincidência. De modo que seus resultados
sobre a "desvio secundário" e sobre as carreiras criminosas representam a negação do princípio
do fim e da prevenção e, em particular, da concepção reeducativa da pena e da ideologia do
tratamento. (BARATTA, 1991a, p.116)
Representa assim uma contribuição fundamental na demonstração do descumprimento das funções
declaradas da pena e para a passagem ao debate sobre as funções instrumentais e simbólicas da
pena, hoje no centro da Criminologia crítica.
b) um nível orientado para a investigação do processo de atribuição do
status criminal (processo de seleção ou "criminalização secundária" 158 ); e
c) um nível orientado para a investigação do processo de definição da
conduta desviada (processo de definição ou criminalização primária 159) que
conduz por sua vez, ao problema da distribuição do poder social desta definição,
isto é, para o estudo de quem detém, em maior ou menor medida, este poder na
sociedade. E tal é o problema que conecta a investigação do labelling com as
teorias do conflito. (BARATTA, 1991a, p.87; PABLOS DE MOLINA, 1988,
p.588, 592-3)160
A investigação se desloca dos controlados para os controladores e,
remetendo a uma dimensão macrosociológica, para o poder de controlar.
BECKER (1971, p.26) sintetiza esta dimensão do poder nos seguintes
termos:

"As diferenças na habilidade para fazer regras e aplicá-las a outras


pessoas são essencialmente diferenças de poder (tanto legal como
extralegal). Esses grupos cuja posição social lhes dá armas e poder
estão em melhor capacidade para implantar suas regras. Distinções em
idade, sexo, étnicas e de classe estão todas relacionadas com diferenças

158 .Tal é o processo de aplicação das normas penais pela Polícia e a Justiça. É o importante momento
da atribuição da etiqueta de desviante (etiquetamento ou rotulação) que pode ir desde a simples
rejeição social até a reclusão do indivíduo em uma prisão ou internação em um manicômio. Para os
teóricos do labelling a atribuição desta etiqueta é um momento fundamental não apenas na
construção seletiva da criminalidade mas pelo seus efeitos na identidade do sujeito etiquetado.
159 .Correspondente ao processo de criação (gênese) das normas penais, em que se decide quais
condutas vão ser legalmente definidas como crimes e quais não em determinada sociedade. Não
obstante, não se limitam a análise das definições legais, levando também em consideração ( com
maior ou menor ênfase) as definições informais dadas pelo público em geral (definições do "senso
comum").

160 .Podemos agora pontualizar, relativamente à negação da ideologia da defesa social anteriormente
referida, que são os resultados do nível analítico do impacto (a) que negam os princípios do fim
e da prevenção; os resultados do nível da atribuição do status criminal (b) que se contrapõem ao
princípio da igualdade e os relativos ao nível da definição (c) , conectados com as teorias do
conflito, que se opõem ao princípio do interesse social e do delito natural.
de poder. Além de reconhecer que o desvio é criada pelas respostas da
gente perante um particular tipo de conduta e por etiquetar esta
conduta como desviante, nós devemos também ter em mente que as
regras criadas e mantidas por esta etiqueta não são universalmente
aceitas. Ao contrário, estas são objeto de conflito e desacordo, parte do
processo político da sociedade."

Ao chamar a atenção para a importância do processo interativo (de


definição e seleção) para a construção e a compreensão da realidade social da
criminalidade, o labelling demonstrou também como as diferenças nas relações
de poder influenciam esta construção. ((HULSMAN, 1986, p.127)
Assenta, pois, na recusa do monismo cultural e do modelo do consenso
como teoria explicativa da gênese das normas penais, que constituía um
pressuposto fundamental da Criminologia positivista. Desde BECKER, as normas
penais passam a ser vistas numa perspectiva de pluralismo axiológico coincidindo
seus partidários em que o processo de criação (modificação ou derrogação) das
normas penais não procede de um amplo consenso social nem se orientam para a
efetiva e necessária tutela de interesses gerais. Em uma sociedade plural as
verdadeiras variáveis de todo processo de definição devem localizar-se nas
relações de poder existentes entre os diversos grupos sociais. (PAVARINI, 1990,
p.127-8; DIAS e ANDRADE, 1984, p.43; ALVAREZ, 1990, p.22 e PABLOS DE
MOLINA, 1988, p.602)

Assim

"A legitimação tradicional do sistema penal como sistema necessário à


tutela das condições essenciais de vida de toda a sociedade civil, além
da proteção de bens jurídicos e de valores igualmente relevantes para
todos os consórcios, é fortemente problematizada no momento em que
se passa - como é lógico em uma perspectiva baseada na reação social
- da pesquisa sobre a aplicação seletiva das leis penais à pesquisa sobre
a formação mesma das leis penais e das instituições penitenciárias."
(BARATTA, 1991a, p.115)
- O sistema penal (processo de criminalização) numa perspectiva
dinâmica e no continuum do controle social: relatividade do
controle penal em relação ao controle social e do Direito Penal
em relação ao sistema penal

Em decorrência, pois, de sua rejeição ao determinismo e aos modelos


estáticos de comportamento, o labelling supera uma visão e abordagem
estática e descontínua por uma visão e abordagem dinâmica e contínua do
sistema penal, conduzindo ao reconhecimento de que, do ponto de vista do
processo de criminalização seletiva, a investigação das agências formais de
controle não pode considerá-las como agências isoladas umas das outras, auto-
suficientes e auto-reguladas mas requer, no mais alto grau, um approach
integrado que permita dar uma maior consistência ao 'funcionamento' do sistema
como um todo.161 (DIAS e ANDRADE, 1984, p.373-4).
É que, precisamente desde o ponto de vista do processo de
criminalização seletiva "o sistema penal se apresenta como um continuum no qual
é possível individualizar segmentos constituídos pelas ações das diferentes
instâncias oficiais" que vão desde o legislador até os órgãos encarregados do
controle e assistência dos liberados e os sujeitos sob o regime de liberdade
condicional. (BARATTA, 1982b, p.47-8)

161 . Neste sentido, o emprego do termo "sistema penal" já se consagrou na literatura, para além da
questão de saber se as diferentes agências da Justiça penal constituem um autêntico 'sistema' na
acepção que a este termo é conferida pela moderna teoria do sistema social ou antes uma mera
justaposição ou conjunto de subsistemas relativamente desintegrados. A respeito ver, por exemplo:
ZAFFARONI (1991, p.144); HULSMAN(1993, p.58-60); DIAS & ANDRADE (1984, p.373-
384)
Nesta perspectiva não apenas a criminalização secundária insere-se no
continuum da criminalização primária, mas o processo de criminalização acionado
pelo sistema penal se integra na mecânica do controle social global da conduta
desviada162 de tal modo que para compreender seus efeitos é necessário apreendê-
lo como um subsistema encravado dentro de um sistema de controle e de seleção
de maior amplitude.
O sistema penal não realiza o processo de criminalização e
estigmatização à margem ou inclusive contra os processos gerais de etiquetamento
que tem lugar no seio do controle social informal, como a família e a escola (por
exemplo, o filho estigmatizado como "ovelha negra" pela família, o aluno como "
difícil" pelo professor etc.) conforme salienta o interacionismo simbólico
(HASSEMER, 1984, p.82; COÑDE, 1985, p.37) e o mercado de trabalho, entre
outros, como salientará a Criminologia crítica.
Por outro lado, considerada a amplitude e pluridimensio-nalidade do
controle social163 relativizado fica, em seu âmbito, o controle exercido pelo
sistema penal de forma que

"(...) dentro do controle social a norma penal, o sistema jurídico-penal,


ocupa um lugar secundário, puramente confirmador e assegurador de
outras instâncias muito mais sutis e eficazes." (...)
162 .É necessário assinalar, contudo, que nem todos os representantes do labelling compartilham desta
percepção. É que em seu âmbito coexistem duas tendências: uma moderada e uma radical.
Enquanto a posição moderada reconhece que os mecanismos de seleção e estigmatização se dão,
também, ao nível do controle social informal e que o sistema penal insere-se nesta mecânica, uma
orientação mais radical atribui a função 'constitutiva' ou 'criadora' ao desviante com independência
de sua conduta ou merecimentos objetivos.(HASSEMER, 1984, p.82 e PABLOS DE MOLINA,
1988, p.587)

163 .Pois, de fato, o âmbito do controle social é amplíssimo e, dada sua proteica configuração nem
sempre é evidente, pois se exerce informalmente através de meios mais ou menos difusos e
encobertos (como a família, a educação escolar, a religião,os meios de comunicação de massa, e
muitos outros aspectos que tecem o complexo tecido social) até meios formalizados e explícitos
como o sistema penal que é, como já afirmamos, um exemplo típico de a social formal.
(ZAFFARONI, 1987, p.24-5)
.................................................................................................
As diferenças existentes entre o sistema jurídico-penal e outros sistemas
de controle social são mais bem de tipo quantitativo: o Direito penal
constitui um 'plus' adicional em intensidade e gravidade das sanções e
no grau de formalização que sua imposição exige." (COÑDE, 1985,
p.37)

E relativizado fica o lugar do Direito e da Dogmática Penal e da própria


"Justiça" no âmbito do sistema penal, de forma que

"(...) dentro do sistema penal (...) o direito penal ocupa só um lugar


limitado, de modo que sua importância, em que pese a ser inegável, não
é tão absoluta como às vezes se pretende, especialmente quando
dimensionamos o enorme campo do controle social que cai fora de seus
estreitos limites". (ZAFFARONI, 1987, p.30-31)

Com a transposição do conceito de reação ou controle social para o


centro da investigação criminológica, nestes termos, o labelling introduz na
literatura a visão e a linguagem do controle sócio-penal, controle penal ou do
delito e, pois, do sistema penal como subsistema de controle social. 164

- Mudança de paradigma

Manifesta é, pois, a ruptura epistemológica e metodológica operada


com a Criminologia tradicional, traduzida no abandono do paradigma etiológico-
determinista (sobretudo na perspectiva individual) e na substituição de um modelo

164 .Conforme já o antecipamos no item "3" e, em especial, na nota "2" deste capítulo. Neste sentido
merecem referência as importantes - e entre si polemizadas - construções de uma "Sociologia do
controle penal" e de uma "Teoria Crítica do controle social" que, na esteira do labelling e do
paradigma da reação social, são protagonizadas, respectivamente, por Bergalli e Anyar de Castro,
em especial para a América Latina.
Enquanto BERGALLI (1970, 1983,1987, 1989, 1990, BERGALLI et. al.1983, p.147-8) propõe
substituir a própria denominação "Criminologia" por "Sociologia do controle penal", cujo objeto
seria o controle penal concebido como espécie ou tipo particular do gênero controle social
realizado através do sistema penal; ANYIAR DE CASTRO (1986, 1987, 1990) entende que a
criminologia deve converter-se em teoria crítica da totalidade do controle social. Ambas as
formulações foram por sua vez polemizadas por MONREAL (1985)
estático e descontínuo de abordagem do comportamento desviante por um
modelo dinâmico e contínuo que o conduz a reclamar a redefinição do próprio
objeto criminológico. Ruptura que se traduz, por outro lado, na desqualificação
das estatísticas oficiais como instrumento fundamental de acesso à 'realidade'
criminal, devido às insuperáveis aporias a que conduziam, como veremos, do
ponto de vista gnoseológico. (DIAS e ANDRADE, 1984, p.43)
Produz assim, como se autoatribuem seus representantes e a literatura
em geral subscreve, um verdadeiro salto qualitativo - uma "revolução" de
paradigma no sentido kuhneano - consubstanciado na passagem de um paradigma
baseado na investigação das causas da criminalidade a um paradigma baseado na
investigação da criminalização. (BERGALLI, 1983, p.146-7; BARATTA, 1991a,
1982b; ALVAREZ, 1990, p.15-6 e 31; MUÑOZ GONZALEZ, 1989;
HASSEMER, 1984, p.84; LARRAURI, 1991, p.1; PAVARINI, 1987, p.127)
Foi assim que:
"A introdução do labelling approach, sobretudo devido à influência de
correntes de origem fenomenológica (como o interacionismo simbólico
e a etnometodologia), na sociologia da desviância e do controle social,
e de outros desenvolvimentos da reflexão sociológica e histórica sobre o
fenômeno criminal e sobre o direito penal, determinaram, no seio da
Criminologia contemporânea, uma troca de paradigmas mediante a
qual esses mecanismos de definição e de reação social vieram ocupar
um lugar cada vez mais central no interior do objeto da investigação
criminológica. Constitui-se, assim, um paradigma alternativo
relativamente ao paradigma etiológico, que se chama justamente, o
paradigma da 'reação social' ou 'paradigma da definição'." (BARATTA,
1983b, p.147 e 1991a, p.225)

Com o então denominado paradigma da "reação social", do "controle"


ou da "definição" e a polarização da análise criminológica em torno da natureza,
estrutura e funções do controle social e suas diversas instâncias, considera-se
inaugurada a terceira grande fase no desenvolvimento do conhecimento
criminológico, depois da ruptura que um século antes a Escola Positiva realizou
relativamente ao pensamento criminológico clássico. (BERGALLI in BERGALLI
e BUSTOS RAMÍREZ, 1983a, p.146-7)

7. De um modelo pluralista a um modelo conflitivo: o desenvolvi-


mento da dimensão do político no paradigma do reação social

São as teorias conflituais (COSER, SIMMEL, TURK, QUINNEY),


contudo, que irão desenvolver a dimensão do político no interior do paradigma da
reação social, reconduzindo-a das estruturas paritárias dos pequenos grupos e
dos processos informais de interações que se desenvolvem no seu interior às
estruturas gerais da sociedade e aos seus conflitos de interesse e hegemonia que
aparecem como princípio explicativo fundamental dos processos de
criminalização.165 (BARATTA, 1991a, p.122)
São assim elementos peculiares das teorias conflitivas baseadas no
paradigma da reação social:

"a] a antecipação lógica do processo de criminalização relativamente


ao comportamento criminal; b] a dependência funcional do processo
de criminalização (e, em conseqüência do comportamento criminal)
das dinâmicas conflitivas presentes na sociedade; c] a natureza
política de todo o fenômeno criminal." (PAVARINI, 1988, p.140)

165 . A respeito, tanto PAVARINI (1988, p.139-40) quanto BARATTA(1991a, p.123) assinalam
que as teorias conflituais da criminalidade não são teorias de medio alcance, pois partem de uma
teoria geral da sociedade na qual o modelo do conflito é fundamental. O horizonte
macrosociológico dentro do qual estudam a criminalidade e os processos de criminalização lhes é
proporcionado pela sociologia do conflito que, polemizando contra o estrutural-funcionalismo
(TALCOTT PARSONS e ROBERT MERTON) e seu modelo consensual de sociedade, se
afirma nos Estados Unidos e na Europa na metade dos anos cinqüenta, especialmente por obra de
LEWIS COSER e RALF DARENDORT."
Se criminal é o comportamento criminalizado e se a criminalização não é
mais do que um aspecto do conflito que se resolve através da instrumentalização
do Direito, e portanto do Estado, por parte de quem é politicamente mais forte,
os interesses que estão na base da formação e aplicação do Direito Penal não são
interesses comuns a todos os cidadãos, mas interesses dos grupos que tem o
poder de influir sobre os processos de criminalização. Conseqüentemente, a
questão criminal como um todo - e não apenas um determinado número de delitos
"artificiais" - é uma questão eminentemente política. (PAVARINI, 1988, p.140)
Mediante a relação instaurada entre conflito social e processo de
criminalização, a inserção do Direito Penal numa perspectiva política e uma
explicação mais articulada da natureza seletiva daquele processo as teorias
conflituais representam, por sua vez, uma pontual contraposição àquele elemento
da ideologia da defesa social chamado de princípio do interesse social e do
delito natural (BARATTA, 1991a, p.123)166

8. Do labelling approach à Criminologia crítica

Por isto mesmo, com o labelling approach e com as teorias


sociológicas do conflito,
"(...) tem lugar, no âmbito da sociologia criminal contemporânea, a
passagem da Criminologia liberal à Criminologia crítica. Uma
passagem (...) que acontece sem uma verdadeira e própria solução de
continuidade. A recepção alemã do labelling approach, em particular, é
um momento importante desta passagem." (BARATTA, 1991a, p.165 e
1982b, p.39-40)

8.1. Marco teórico-metodológico, quadro explicativo e teses


fundamentais da Criminologia crítica

166 . Conforme já o antecipamos no tópico "6.1."


- Recepção crítica do paradigma da reação social: irreversibilidade
e limites analíticos do labelling approach (de um modelo pluralista a
um modelo materialista)

Numerosos são assim os aportes teóricos recebidos pela Criminologia


crítica que indo por dentro do paradigma da reação social e para além dele
desenvolve a dimensão do poder - considerada deficitária no labelling - numa
perspectiva materialista cujo nível de abstração macrosociológica alça as relações
de poder e propriedade em que se estrutura conflitivamente a sociedade
capitalista.
Nesta perspectiva, se a utilização do paradigma da reação social é uma
condição necessária, não é condição suficiente para qualificar como crítica uma
Criminologia (BARATTA, 1991b, p.53) pois

"Mesmo na sua estrutura mais elementar, o novo paradigma implica


uma análise dos processos de definição e de reação social, que se
estende à distribuição do poder de definição e da reação numa
sociedade, à desigual distribuição desse poder e aos conflitos de
interesses que estão na origem desses processos." (BARATTA, 1983b,
p.147)167

Assim,
"Quando, ao lado da 'dimensão da definição' esta 'dimensão do poder' é
suficientemente realizada na construção de uma teoria, estamos em
presença do mais pequeno denominador comum de todo esse
pensamento que podemos alinhar sob a denominação de 'Criminologia
crítica'." (BARATTA, 1983b, p.147)168

167 . A respeito ver também BARATTA (1991a, p.225)

168 . Tal critério demarcador da Criminologia crítica, que adotamos aqui requer, portanto, um aporte
interacionista + uma aporte materialista das relações de poder que se inclui seu desenvolvimento a
partir de categorias do materialismo histórico, a ele não se reduz, conforme nota 18, in fine.
Embora seja extremamente válido, em especial para a América Latina, o critério postulado, por
exemplo por ZAFFARONI ( 1984:142)que acentuando a diversidade dos critérios críticos que
imperam na Criminologia não positivista, propõe considerar como crítica toda Criminologia, em
Para melhor situar o seu alcance explicativo da Criminologia crítica é
necessário referir que parte tanto do reconhecimento da irreversibilidade dos
resultados do paradigma da reação social e das teorias do conflito nele baseadas
sobre a operacionalidade do sistema penal e a ideologia da defesa social169 quanto
de suas limitações analíticas macrosociológicas e mesmo causais (BARATTA,
1991a, p.114; PAVARINI, 1988, p.187; MUÑOZ GONZALEZ, 1989, p.270)
Relativamente a tais limites170 dois aspectos tem sido especialmente
destacados. Em primeiro lugar, a abstração do enfoque político em relação ao
enfoque econômico do poder.

Neste sentido na teoria do labelling o privilégio concedido

"(...) às relações de hegemonia desloca a análise para um terreno


abstrato , no qual o momento político é definido de maneira
independente da estrutura econômica das relações de produção e de
distribuição. Daí resulta uma teoria que está em condições de descrever
mecanismos de criminalização e de estigmatização, de referir estes
mecanismos ao poder de definição e à esfera política em que este se
insere, sem poder explicar, independentemente do exercício deste poder,
a realidade social e o significado do desvio, dos comportamentos
socialmente negativos e da criminalização." (BARATTA, 1991a, p.118)

Por sua vez, o desenvolvimento do paradigma da reação social no


marco do conflito, ainda que alce uma dimensão macrosociológica, o faz com

sentido amplo, que não pressuponha uma assepsia da reação social,já que o uso generalizado da
expressão permitiria uma certa univocidade científica.
Sobre a explicitação da relação que subsiste entre Criminologia e marxismo e o problema de uma
teoria materialista, dado que a obra de MARX e do marxismo em geral carece de uma teoria
explicativa do controle penal em si ver BARATTA, 1991a, p.165 et.seq. e PAVARINI,1988,
p.148 et seq.
169 .Quanto aos princípios da igualdade, do fim e da prevenção e do interesse social e do delito
natural.
170 . Desenvolvidamente ver BARATTA (1991a, p.119-121) e PAVARINI (1988, p.130-137).
insuficiente grau de abstração em relação à estrutura econômica. Pois, uma vez
que a atenção se fixa no processo de criminalização em si, sem perquirir seus
condicionantes estruturais, a interpretação pluralista acaba por reduzir-se a uma
interpretação "atomista" da sociedade, vista como um conjunto de pequenos
grupos, cujas relações não remetem nunca às relações mais gerais de classe, isto
é, a uma desigual distribuição das oportunidades sociais. (PAVARINI, 1990,
p.131)

Nesta perspectiva, o objeto do conflito não são:


"(...) as relações estruturais sobre as quais se funda o poder senão a
simples relação política de domínio de alguns indivíduos sobre outros.
O que, em palavras simples, equivale a afirmar que a única saída
possível para os conflitos é a mediação política dentro da esfera
institucional." (PAVARINI, 1990, p.141)

O segundo aspecto, correlato ao primeiro, refere-se à radicalização do


antideterminismo do labelling contra o paradigma etiológico que PAVARINI
traduziu por ceticismo qualunquista.
É que - escreve - ao negar taxativamente a existência de uma realidade
fenomênica do desvio que não seja efeito do processo de etiquetamento,

"(...) chega com o tempo a negar também toda realidade estrutural


(social, política e econômica) na explicação do comportamento
desviante. A criminalidade como fenômeno se transformou assim em
pura aparência de um jogo formal de recíprocas interações. Dizendo
que o louco é tal porque socialmente é considerado assim, se esquece
que o sofrimento mental desgraçadamente existe prescindindo também
da reação social que suscita; afirmando que o criminoso é só quem
sofreu um processo de criminalização se acaba por perder de vista que
a ação desviante é em primeiro lugar expressão de um mal-estar social,
de um conflito social. Se não se explicam pois as razões políticas de
porque um certo comportamento é enquadrado como desviante ou de
porque um certo sujeito é criminalizado, a criminalidade, ademais de
ser uma aparência, chega a ser também um inexplicável acidente.
Céticos respeito de toda interpretação da criminalidade, os
interacionistas muito pronto se alogam no mar de qualunquismo."
(PAVARINI, 1988, p.130)
Também BARATTA (1983b, p.147) sintetizando a crítica de esquerda
ao labelling destaca que
"(...) avaliar a criminalidade e o desvio como o resultado do processo
de definição pode provocar, num tal contexto, o escamotear de
situações socialmente negativas e de sofrimentos reais que, em
numerosos casos, podem ser considerados como o ponto de referência
objetiva das definições."

O reconhecimento dos limites das teorias do labelling em traduzir-se


numa crítica macrosociológica do sistema penal, das teorias do conflito em alçar
o nível da estrutura de classe e de ambas em apreender os condicionamentos
estruturais da criminalidade não conduz, assim, à negação, mas a reafirmação dos
seus resultados, e à sua complementação na direção deficitária apontada.171
BARATTA (1991a, p.166-7)172 assinala, neste sentido, que através do
desenvolvimento da Criminologia dos anos quarenta em diante são duas as etapas
principais que conduziram aos umbrais da Criminologia crítica:

"Em primeiro lugar, o deslocamento do enfoque teórico do autor às


condições objetivas, estruturais e funcionais, que se encontram na
origem dos fenômenos do desvio. Em segundo lugar, o deslocamento do
interesse cognoscitivo desde as causas do desvio criminal até os
mecanismos sociais e institucionais mediante os quais se elabora a
'realidade social' do desvio (...). Opondo ao enfoque biopsicológico o
enfoque macrosociológico,a Criminologia crítica historia a realidade do
comportamento desviante e põe em evidência sua relação funcional ou
disfuncional com as estruturas sociais, com o desenvolvimento das
relações de produção e distribuição. O salto qualitativo que separa a
nova da velha Criminologia consiste, todavia, sobretudo na superação
do paradigma etiológico, que era o paradigma fundamental de uma
ciência entendida naturalisticamente como teoria das 'causas' da
criminalidade. A superação deste paradigma comporta também a de
suas implicações ideológicas: a concepção da desvio e da criminalidade
como realidade social e institucional e a aceitação acríticas das
definições legais como princípio de individualização daquela
pretendida realidade ontológica; duas atitudes, além de tudo,
contraditórias entre si."
171 .A respeito do labelling como uma teoria de "médio alcance" ver BARATTA (1991a, p.149-
150) e ZAFFARONI (1991, p.60-61).
172 . Ver também BARATTA (1976, p.8-9).
A Criminologia crítica recupera, portanto, a análise das condições
objetivas, estruturais e funcionais que, na sociedade capitalista, originam os
fenômenos de desvio, interpretando-os separadamente conforme se tratem de
condutas das classes subalternas ou condutas das classes dominantes (a chamada
criminalidade de colarinho branco, dos detentores do poder econômico e político,
a criminalidade organizada etc.)173
De qualquer modo, é quando o enfoque macrosociológico se desloca
do comportamento desviante para os mecanismos de controle social dele, em
especial para o processo de criminalização, que o momento crítico atinge sua
maturação na Criminologia e ela tende a transformar-se de uma teoria da
criminalidade em uma teoria crítica e sociológica do sistema penal. De modo que
deixando de lado possíveis diferenciações no seu interior ela se ocupa hoje em
dia, fundamentalmente, da análise dos sistemas penais vigentes.(BARATTA,
1991a, p.167 e BARATTA, 1982b, p.40-1)
Como objeto desta abordagem

"(...) o sistema penal não é unicamente o complexo estático de normas,


senão mais bem um complexo dinâmico de funções (processo de
criminalização) ao qual concorre a atividade das diversas instâncias
oficiais, desde o legislador até os órgãos de execução penal e dos
mecanismos informais da reação social." (BARATTA,1982b, p.40-1)

A "criminalidade" se revela, principalmente, como um status atribuído


a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, pela

173 .As primeiras são vistas como expressões específicas das contradições que caracterizam a
dinâmica das relações de produção e de distribuição, numa determinada fase do desenvolvimento
da formação econômico-social; na maior parte dos casos uma resposta inadequada, individual e
irracional, àquelas contradições, por parte dos indivíduos socialmente em desvantagem. As
segunda são estudadas à luz da relação funcional entre processos legais e ilegais da acumulação e
da circulação do capital e entre esses processos e a esfera política.(BARATTA,1978, p.14-5;
CIRINO DOS SANTOS,1984,p.100-124).
seleção dos bens jurídicos penalmente protegidos e dos comportamentos
ofensivos a estes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, pela seleção
dos indivíduos estigmatizados entre todos aqueles que praticam tais
comportamentos. (BARATTA, 1991a, p.167)

- Da descrição da fenomenologia da desigualdade (seletividade) à


sua interpretação estrutural: a relação funcional entre sistema
penal e sistema social capitalista

Contudo,

"O progresso na análise do sistema penal como sistema de direito


desigual está constituído pelo trânsito da descrição da fenomenologia
da desigualdade à interpretação dela, isto é, ao aprofundamento da
lógica desta desigualdade. Este aprofundamento evidencia o nexo
funcional que existe entre os mecanismos seletivos do processo de
criminalização e a lei de desenvolvimento da formação econômica em
que vivemos (e também as condições estruturais próprias da fase atual
deste desenvolvimento em determinadas áreas ou sociedades
nacionais). (BARATTA, 1991a, p.171)

Nesta perspectiva, a realidade social "está constituída pelas relações de


produção , de propriedade e poder e pela moral dominante". E legitimá-la significa
reproduzir ideologicamente estas relações e a moral dominante." (BARATTA,
1986, p.90)
De modo que em um nível mais alto de abstração o sistema penal se
apresenta

"(...) como um subsistema funcional da produção material e ideológica


(legitimação) do sistema social global, isto é , das relações de poder e
de propriedade existentes, mais que como instrumento de tutela de
interesses e direitos particulares dos indivíduos."(BARATTA,1987a,
p.625)
No trânsito da análise da operacionalidade do sistema penal - descrição
da desigualdade - para a sua interpretação estrutural a Criminologia crítica chega,
assim, à investigação das funções simbólicas e reais do sistema penal e a uma
desconstrução unitária e mais elaborada da ideologia da defesa social.

9. A desconstrução epistemológica do paradigma etiológico: depen-


dência metodológica e aporia criminológica

É importante pontualizar, então, como esta "revolução de paradigma"


em Criminologia permitiu evidenciar o déficit causal do paradigma etiológico e
desconstruir seus fundamentos epistemológicos, explicitando a relação de
dependência na qual se encontra em relação ao Direito e ao sistema penal oficial
na própria definição de seu objeto de investigação.
Com efeito, reindagando sobre que marco definicional e distribuição da
criminalidade se apóia o substrato ontológico conferido pelo paradigma etiológico
à criminalidade, a crítica criminológica pôde concluir que não se apóia, em
absoluto, sobre a criminalidade como fenômeno ou fato social.
É que a Criminologia positivista tem como referente, para a
individualização do seu objeto, a própria lei penal e os resultados finais do
processo de criminalização investigando assim um objeto resultante de uma dupla
seleção.
Em primeiro lugar, resultante das definições legais da criminalidade. Ao
aceitá-las acriticamente já não pode investigar a criminalidade como fenômeno
social, mas apenas enquanto definida normativamente. Na própria delimitação de
seu objeto já se realiza, pois, uma subordinação da Criminologia ao Direito Penal.
(PLATT, 1980; ZAFFARONI, 1991, p.44; DIAS e ANDRADE, 1984, p.66)
Em segundo lugar, seu objeto é resultante da seleção da criminalidade
operada pelas agências do controle sócio-penal. Ao identificar os criminosos
com os autores das condutas legalmente definidas como tais e, mais do que isso,
com os condenados e clientes do cárcere e dos manicômios judiciais (ou mesmo
controlados pela polícia) identifica a população criminal com a população reclusa
e internada (ou mesmo policialmente perseguida). Neste nível, a subordinação da
Criminologia estende-se da normatividade ao resultado da própria
operacionalidade seletiva do sistema penal. Seu interesse originário pela
investigação dos delinqüentes converte-se em investigação dos delinqüentes
selecionados pelo sistema e seu laboratório de experimentação que deveria ser a
sociedade converte-se, na prática, no cárcere, no manicômio, na delegacia de
policia. (PAVARINI, 1988, p.53-4; PABLOS DE MOLINA, 1988, p.583)
Assim,
"(...) o criminólogo não conhecerá nunca o fenômeno da prostituição;
poderá conhecer só algumas mulheres que cometeram ações contrárias
aos bons costumes ou que tiveram a desgraça de serem condenadas por
um juiz à pena de prisão. E isto vale independentemente para todas as
formas de criminalidade. Uma conclusão verdadeiramente paradoxal: o
positivismo criminológico que havia se dirigido para a busca de um
fundamento natural, ontológica, da criminalidade, contra toda sua boa
intenção é a demonstração inequívoca do contrário; ou seja, de que a
criminalidade é um fenômeno normativo. Certamente impossível de
ser conhecido desde um ponto de vista fenomenológico." (PAVARINI,
1988, p.54)

E é justamente sobre o objeto criminalidade assim delimitado que a


Criminologia confere um substrato ontológico centrando-se na investigação de
suas causas; ou seja, na identificação das variáveis independentes (predisposição
individual, meio ou entorno etc.) para o fator ("variável dependente")
criminalidade. (PABLOS DE MOLINA, 1988, p.583)
Mas, uma vez que seu objeto já é o resultado da definição e seleção do
sistema penal

"(...) a Criminologia etiológica em sua versão clínico-criminológica,(...)


confundiu como "causas do delito" o que nada mais era do que uma
classificação ou tipologia dos diferentes modos de deterioração
provocados pela prisonização." (ZAFFARONI, 1991, p.136-7)

Em síntese, pois, a aporia desta Criminologia consiste em que ela


declara-se como uma Ciência causal-explicativa da criminalidade, exclui a reação
social de seu objeto, quando é dela inteiramente dependente; ao mesmo tempo em
que se apoia, aprioristicamente, numa noção ontológica da criminalidade. Assim,
ao invés de investigar, fenomenicamente, o objeto criminalidade, este aparece já
dado pela clientela das prisões e dos manicômios que constitui então a matéria-
prima para a elaboração de suas teorias criminológicas. Afirmando que este
atributo criminalidade, sendo uma realidade ontológica, diferencia tais sujeitos dos
que estão fora do muros do cárcere e dos manicômios, pode passar à
investigação de suas causas e ao seu combate científico em defesa da sociedade.
É precisamente esta situação de dependência da Criminologia positivista
na definição de seu próprio objeto de investigação da "normatividade" e dos
resultados resultados contingentes de todo o processo de criminalização bem
como as aporias daí resultantes que dão lugar ao profundo questionamento de
seu status científico (BARATTA, 1982a, p.29) levando à concluir que "a
pretensão da Criminologia tradicional, de proporcionar uma teoria das condições
(causas) da criminalidade não tem justificação do ponto de vista epistemológico"
(BARATTA, 1983b, p.146)
E isto porque
"(...) uma investigação das causas não é aplicável a objetos definidos
por normas, convenções ou avaliações sociais ou institucionais.(...)
Aplicando a objetos deste tipo um saber causal-naturalista produz-se
uma 'coisificação' dos resultados dessas definições normativas
tomando-os por 'coisas' que existem independentemente destas. A
'criminalidade', os 'criminosos' são, sem dúvida, objetos deste tipo. E
são impensáveis sem a intervenção dos processos institucionais e sociais
de definição, a lei penal, a sua aplicação por parte das instâncias
oficiais, as definições e as reações não institucionais." (BARATTA,
1983, p.146)

A coisificação da criminalidade produzida pelo paradigma etiológico


comporta, como reverso da medalha, uma grave conseqüência: a matéria-prima
para a construção de suas teorias criminológicas é obtida e coincide,
precisamente, com o produto da reação social e penal a qual, segundo a hipótese
de que parte este paradigma deveria ser indiferentes para a existência do seu
objeto de investigação, porque de existência ontológica.
Assim,
"Não é possível, com efeito, determinar em virtude de que harmonia
preestabelecida, a 'criminalidade' e os 'criminosos', considerados como
realidade ontológica pela Criminologia positivista, devam coincidir
necessariamente com o produto da ação (altamente seletiva) do
legislador e das demais instâncias que formam o sistema penal
positivo." (BARATTA,1982a, p.29)

Neste mesmo sentido escrevem também WALTON, TAYLOR e


YOUNG (1990, p.46 e 47) que a Criminologia positivista, por não tomar em
consideração e problematizar a reação social numa teoria plenamente social do
desvio, "carece de alcance e simetria." Por outro lado a estrutura de poder,
riqueza e moralidade que condiciona a reação perante a conduta desviada e serve
de apoio à organização social existente recebe a aprovação da Ciência.
Da mesma forma, pois, como sucedeu há quase um século com o
paradigma dogmático de Ciência Penal174 o estatuto epistemológico do paradigma
etiológico de Criminologia encontra-se hoje colocado em cheque. E ambos o
foram por argumentos derivados, em linhas gerais, de uma mesma matriz: a
impossibilidade genética da Dogmática Penal realizar inteiramente o modelo
174 . Conforme item "7.1." do primeiro capítulo.
positivista de Ciência; a traição da Criminologia à promessa de realização deste
modelo, isto é, de uma Ciência causal-explicativa da criminalidade, segundo o
método experimental.
Por outro lado a dependência metodológica que está na base desta
crítica epistemológica é que conduziu a Criminologia positivista a uma
dependência da ideologia dominante na Ciência do Direito Penal e esta dupla
dependência (metodológica e ideológica) é que tornou possível o modelo oficial
integrado de ciência penal. (PAVARINI, 1980, p.53)
Neste sentido, o modelo integrado assenta não apenas na função
auxiliar da Criminologia em relação à Dogmática Penal175, mas na sua função
instrumental (auxiliar e legitimadora) do sistema penal e da Política Criminal oficial.
(BARATTA,1982b, p.29 e 1983b, p.154)

Pois,
"A Criminologia tradicional etiológica, mesmo nas suas versões mais
atualizadas (através da aproximação 'multifatorial') tem, por natureza,
uma função imediata e diretamente auxiliar, relativamente ao sistema
penal existente e à política criminal oficial. O seu universo de
referências e o seu horizonte de ação são quase sempre impostos pelo
mesmo sistema. É por isso que ela é obrigada a pedir a este a definição
do seu próprio objeto de investigação: a 'criminalidade' tal como é
definida pelas normas e estatísticas, os 'criminosos' como indivíduos
selecionados e estigmatizados (e deste modo tornados disponíveis para
a observação clínica) através da instituição da prisão".
(BARATTA,1983a, p.152)

10. A reinterpretação da Escola clássica e da Criminologia positivista


como saberes do controle sócio-penal

175 . Como assinalamos no final do item "5" do segundo capítulo.


Chegamos, assim, a um ponto fundamental. A partir desta
desconstrução epistemológica, a Criminologia passa a ser concebida como uma
instância interna e funcional à operacionalização e legitimação do sistema penal,
pois

"Estudando a criminalidade como aquilo que o sistema penal declara


querer combater e não a maneira como este define aquela, a
Criminologia tradicional opera como uma instância do sistema , não
como uma teoria científica sobre este (...) A sua contribuição para a
racionalização do sistema é também e sobretudo uma contribuição para
a sua legitimação. Com efeito, colocando seu próprio saber causal (a
teoria das causas da 'criminalidade') e o seu saber tecnológico (teoria
das medidas penais e alternativas) ao serviço dos objetivos declarados
do sistema, a Criminologia tradicional avaliza, do ponto de vista da
ciência, uma imagem do sistema que é dominada por esses objetivos."
(BARATTA, 1983a, p.152)

E nesta mesma perspectiva passa a ser concebida como Ciência do


controle social". 176
Assim, ao definir-se como "Ciência causal-explicativa" a Criminologia
positivista oculta que na verdade "foi sempre controle social" e, como tal, "é
poder". (ANYAR DE CASTRO, 1987, p.30 e 35)
Ela nasce, portanto,
"(...) como um ramo específico da ciência positiva para aplicar e
legitimar o controle. A teoria da defesa social, como uma teoria com
pretensões científicas e sociológicas, é a nova ideologia do controle do
intervencionismo, justamente para submeter a toda outra ideologia.
Com mais nitidez que nunca o Estado aparece ligado intrinsecamente a
uma ideologia do controle para o controle da ideologia e sob o manto
da neutralidade e objetividade científica, que lhe permite abjurar de
toda ideologia, salvo a própria.(...)
.................................................................................................
Não é de estranhar, pois, que com o positivismo se radicalize o controle,
sobre as bases da divisão científica e sociológica da existência de
homens não perigosos (normais) e perigosos (anormais); logo se trata
de defender a sociedade destes seres perigosos - aos que há que

176 .A
respeito ver (OLMO,1984; CASTRO, 1987; PAVARINI, 1988; TAYLOR, WALTON e
YOUNG, 1990; BERGALY e BUSTOS RAMÍREZ, 1983a).
ressocializar ou inocuizar -, que são os que se apartam do normal; mais
ainda, que apresentam características potenciais de separar-se do
normal - prognóstico científico de periculosidade. No fundo, o controle
se inicia com o nascimento do indivíduo e ainda mais atrás, com o
controle das características dos futuros pais. " (BUSTOS RAMÍREZ in
BERGALLI e BUSTOS RAMÍREZ, 1983b, p.17)

E na esteira desta interpretação passa a ser reavaliado o próprio lugar


que corresponde à Escola Clássica na história da Criminologia, discutindo-se se
ela representa apenas uma "pré-Criminologia" ou se constitui, já, uma primeira
Criminologia e um capítulo, não menos importante, da sua história. Passa a falar-
se de Escola Clássica de Criminologia e não mais unicamente de Escola Clássica
do Direito Penal.
Assim TAYLOR, WALTON & YOUNG (1990, p.25), observam que
"A teoria clássica é, antes de tudo, uma teoria do controle social (na
qual as teorias sobre a motivação humana, etc. estão implícitas e não
explícitas): Fixa, em primeiro lugar, a forma em que o Estado deve
reagir perante o delinqüente; em segundo termo, as desviantes que
permitem qualificar de delinqüentes a determinadas pessoas; e, terceiro,
a base social do direito penal."

E por ter se concentrado nas condições do contrato social e nas


questões relativas ao ordenamento jurídico e ao destino que se deveria dar aos
delinqüentes; ou seja, unicamente nos problemas da administração do controle,
julgam acertado caracterizá-la como uma "Criminologia administrativa e legal".
Enfim, precisamente por ter estipulado "as condições do contrato social e do
controle social é que exerceu uma influência extraordinária nas legislações de todo
o mundo." (TAYLOR, WALTON, YOUNG, 1990, p.20,23, 25)
Neste sentido, afirma ANYAR DE CASTRO (1984, p.22-3 e 1982,
p.72) que a Criminologia não nasce, como se afirma repetidamente, com a Escola
Positiva. Pois sendo controle social
"(...) deveremos reconhecê-la já na chamada Escola Clássica do direito
penal, a qual fez a maior sistematização controladora da ordem que se
recorde no campo repressivo. Com razão Taylor, Walton & Young, a
definem como 'uma Criminologia administrativa e legal'. Isto o
reconheceram alguns positivistas. O faz, por exemplo, Quintiliano
Saldanha, em um livro que, coincidentemente se denomina, como o dos
autores nomeados, 'A Nova Criminologia', só que aparecido em 1936,
onde proclama à Criminologia positivista como uma 'nova
Criminologia' que ele opunha à velha Criminologia da Escola
Clássica.(...) Reconhece assim este autor que a filosofia da repressão
representada pela Escola Clássica, baseada sobre o livre arbítrio, o
acento na pulcritude processual, nas garantias legais e na medida da
pena, era já uma Criminologia." (ANYAR DE CASTRO, 1987, p.22-3 e
1982, p.72)

Independentemente de se aceitar ou não a reinterpretação da Escola


Clássica como primeira Criminologia a importância desta linha interpretativa está
em situar o saber oficial, tanto o clássico como o criminológico positivista,
como saber do controle sócio-penal, inserção que, presidindo também à
genealogia foucaultiana da moderna Justiça Penal interpela, igualmente, a
Dogmática Penal. É nesta direção que seguimos.

11. Do controle epistemológico-funcional do paradigma etiológico


de Criminologia ao controle epistemológico-funcional do paradigma
dogmático de Ciência Penal

Situada a trajetória desconstrutora no horizonte da qual se constitui um


saber crítico do sistema penal que pode orientar o controle epistemológico-
funcional da Dogmática Penal importa-nos então, com vistas a pontualizar os seus
próprios termos, abordar previamente duas ordens de implicações decorrentes,
em particular, do paradigma da reação social à Criminologia crítica a) uma
nova relação entre Criminologia e Direito Penal como uma relação ciência-objeto
; b) uma nova relação entre Criminologia e Dogmática Penal.
No modelo oficial das Ciências Penais, conformado pelo paradigma
dogmático de Ciência Penal e pelo paradigma etiológico de Criminologia, aquela
era definida como ciência normativa do Direito Penal e esta como Ciência causal
explicativa do fenômeno da criminalidade, concebido como realidade
ontológica, pré-existente à reação social e penal.
Neste modelo, enquanto
"(...) o direito penal ocupava-se apenas do "dever-ser", com o qual o
poder assinalava os limites do saber criminológico, a Criminologia
ocupava-se da 'etiologia' das ações das pessoas selecionadas pelo poder
do sistema penal; no entanto, nem o direito penal, nem a Criminologia
ocupavam-se da realidade operacional do sistema penal, cuja
legitimidade não era questionada." (ZAFFARONI, 1989, p.44)

Ao conectar, como signos reciprocamente inseparáveis, a conduta


desviada (a criminalidade) e a reação social (Direito e sistema penal) tomando a
ambos numa unidade analítica, como seu objeto - cujo elo é representado pelo
"processo de criminalização" - o paradigma da reação social demonstra e supera o
artificialismo desta separação, fazendo convergir, numa unidade analítica, a
separação temática que ao longo da modernidade dividia em termos contrapostos
o objeto da Criminologia e da Dogmática Penal positivistas.

- Uma nova relação entre Criminologia e Direito Penal como uma


relação Ciência-objeto

Nesta redefinição temática em relação ao objeto de ambas as disciplinas


o Direito Penal converte-se, diretamente, em objeto criminológico e "a relação
Criminologia-direito penal, se faz, pois, uma relação de ciência-objeto."
(ANYIAR DE CASTRO, 1987, p.88)
E, à diferença de objeto da Dogmática, pela qual é definido como
normatividade abstrata, protetora de bens jurídicos universais (princípio do
interesse social) e, com a sua mediação científica, igualitária e mecanicamente
aplicada (princípio da igualdade); na condição de objeto criminológico é
criticamente recolocado e funcionalmente redimensionado no marco e na
dinâmica do sistema penal. Na mesma medida em que a explicação da
criminalidade passa a ser referenciada e explicada a partir da reação social, vista
como constitutiva da sua "construção seletiva" o Direito Penal também passa a ser
explicado como instrumento do controle sócio-penal.
Neste sentido o novo paradigma comporta não apenas uma superação
da concepção ontológica da criminalidade mas, simultaneamente, uma superação
da concepção normativista e despolitizada do Direito Penal, própria dos
paradigmas etiológico e dogmático e da ideologia da defesa social que os
conforma. Desde sua redefinição criminológica é no marco do sistema penal e
do processo de criminalização seletiva por ele acionado que o Direito Penal
adquire sua significação plena.

- Uma nova relação (secundária) entre Criminologia e Dogmática


Penal

Passando do plano da relação entre Criminologia e Direito Penal, para o


plano de uma nova relação entre Criminologia e Dogmática Penal estamos,
também, em presença de uma relação Ciência-objeto?
Em primeiro lugar impõe-se constatar que enquanto a Criminologia
tinha seu objeto de estudo, delimitado pelas definições legais de crime, a lei
penal, acriticamente aceita por ela e a Dogmática Penal, representava um ponto
de encontro ideal para uma integração entre ambas as disciplinas. No momento
em que a lei penal (Direito Penal) é diretamente convertida em objeto
criminológico, nos termos acima aludidos, desaparece aquela dupla dependência
em que a Criminologia se encontrava face à Dogmática Penal, a convergência
ideológica de ambas e, por extensão, a função auxiliar daquela em relação a esta.
(BARATTA, 1982b, p.45; ANYIAR DE CASTRO, 1987, p.88)
Contrariamente à Criminologia tradicional que, na condição de instância
interna do sistema penal desempenha uma função, auxiliar e legitimadora
relativamente a este e à Política Criminal Oficial, a Criminologia contemporânea,
ao resgatar sua autonomia científica, situa-se como uma instância crítica externa
do Direito e do sistema penal.
Neste sentido,

"(...) a Criminologia crítica coloca-se numa relação radicalmente


diferente com a prática. Para a Criminologia tradicional o sistema
positivo e a prática oficial são os destinatários, os beneficiários do seu
saber, o príncipe que ela é chamada a aconselhar. Para a Criminologia
crítica o sistema positivo e a prática oficial são, antes de mais, o objeto
do seu saber. A relação com o sistema é crítica: a sua tarefa imediata
não consiste em fornecer receitas de política criminal mas sim em
examinar de maneira científica a gênese do sistema, a sua estrutura, os
seu mecanismos de seleção, as funções que ele realmente exerce, os seus
custos económicos e sociais.." (BARATTA, 1983b, p.153)

Resgatada a autonomia do saber criminológico, conseqüentemente, uma


discussão contemporânea sobre as relações entre Dogmática Penal e Criminologia
somente pode dar-se sobre novas bases. (ANYIAR DE CASTRO, 1987, p.87-88)
Retornamos assim a uma clássica e delicada questão. Pois se, como o
ilustramos no capítulo segundo, as relações entre ambas tem sido historicamente
pouco cordiais e sujeitas a fortes tensões (RAMÍREZ, 1987, p.523) estas
aparecem revigoradas ao se indagar sobre a possibilidade de uma nova relação, ao
ponto de ZAFFARONI (1982, p.46) ter afirmado, há certo tempo, que "no fundo
parecem coincidir e de fato coincidem numa incomunicabilidade absoluta".
Para logo aduzir, contudo, que
"(...) há tanto irracionalismo na atitude dos penalistas que rechaçam
indiscriminadamente toda a Criminologia chamada crítica e inclusive
toda a Criminologia atual, como na dos criminólogos radicais que
negam em bloco toda a legitimidade do direito penal." (ZAFFARONI,
1982, p.46)

Por outro lado, como observa OLMO (1987, p.38-9), hoje podemos
constatar que esta incomunicabilidade não é mais absoluta, na medida em que

"Estão surgindo uma série de penalistas que tem iniciado uma


interessante reflexão crítica não apenas sobre o direito penal e o direito
em geral, mas também sobre a Criminologia crítica, que pode resultar
muito útil para a concreção desta Criminologia. Incumbe ao
criminólogo sua reflexão crítica da Criminologia crítica e do direito
penal (...)." (OLMO, 1987, p.38-9)

Nesta perspectiva, como também pondera BUSTOS RAMÍREZ (1987,


p.538), "o criminólogo crítico será um penalista crítico e o penalista também um
criminólogo crítico."
Com efeito, a quebra desta incomunicabilidade está hoje instaurada por
obra de criminólogos e penalistas críticos que colocando em suspensão seja o
radicalismo criminológico (que desqualifica inteiramente o Direito Penal) seja o
radicalismo dogmático (que ignora ou repudia em bloco a Criminologia crítica)
tem protagonizado uma nova relação e na qual visualizamos, sem prejuízo de
outros enfoques, duas faces. Uma, relativa à recepção (desde o interior do próprio
penalismo) ou à projeção (por criminólogos críticos) dos dados sobre o sistema
penal para a análise da Dogmática cujos resultados obtidos tem remetido para (e
esta é a segunda e correlata face) o debate relativo à sua reconstrução/
transformação que acaba retomando, sob um novo prisma, o clássico debate do
final do século XIX sobre as (im)possibilidades de um novo modelo integrado de
Ciência Penal. 177
Neste sentido pode-se dizer que independentemente da transformação
dogmática e de um novo modelo disciplinar que esta nova interação possa
protagonizar, esta hoje aberta e explorada a recepção da crítica historiográfica e
criminológica do sistema penal também desde o interior da própria Dogmática
Penal, por segmentos, embora minoritários, de penalistas críticos que, atuando
como "sujeitos" desta recepção, podem inclusive ser considerados como
"cientistas extraordinários" no sentido kuhneano.178
Não visualizamos, portanto, aqui, uma nova relação Ciência-objeto, na
qual a Dogmática Penal seja convertida em objeto da Criminologia Crítica (objeto
criminológico) vista como um saber externo, alheio e de confrontação à ela.
Visualizamos uma interação teórico-prática que se situa, pois, no momento de
interregno entre um modelo oficial integrado de Ciência Penal epistemológica e,
como veremos, funcionalmente deslegitimado (ainda que oficialmente vigente) e a
busca de uma nova integração superadora e cujo pressuposto é a perda de
legitimidade do sistema penal ao qual este modelo se vincula.
Ponto fundamental então a destacar é que neste interregno um dos elos
fundamentais da referida interação tem sido, ao que nos parece, o

177 . Nesta interação entre Criminologia e Penalismo críticos, da qual a Escola de Bolonha italiana
pode ser considerada uma expressão exemplar podem situar-se, sem pretensões de exaustividade:
BARATTA, 1982b e 1991a; ZAFFARONI, 1989 e 1981; BUSTOS RAMÍREZ, 1987;
BERGALLI, 1984a; BACIGALUPO, 1982; ANYAR DE CASTRO,1987; GARCÍA MENDEZ
(19--); CARRASQUILLA, 1984; CONORADO FRANCO, 1990; NAVARRO SOLANO,
1990; TOSCA HERNANDEZ, 1991; CLEMENTE, 1991, SOLA DUEÑAS, 1982;
FERRAJOLI, 1986 e 1989; PERFECTO IBANÊZ (1988); CIRINO DOS SANTOS, 1985;
NILO BATISTA,1991.
É importante aduzir também que esta interação não tem se limitado ao nível da produção teórica
mas abrange o engajamento em movimentos de reforma da Justiça e de defesa dos direitos
humanos (em especial dos menores) em países europeus e latino-americanos.
178 . Conforme item "7.2" do primeiro capítulo.
desenvolvimento do aspecto crítico da Criminologia ao encontro do aspecto
garantidor do Direito Penal dogmático e vice-versa; ou seja, um "garantismo
crítico" entendido como vigilância sobre o (des)respeito aos direitos individuais
no marco do funcionamento efetivo ( e não idealizado) do sistema penal e sua
crise de legitimidade.
Em decorrência, sejam os movimentos político-criminais sejam as
postulações de reconstrução/transformação da Dogmática Penal orientados pela
Criminologia crítica se baseiam na mais radical afirmação das garantias dos
direitos humanos.
Assim, se o projeto de transformação do controle penal da
Criminologia crítica não se limita ao garantismo, é necessário insistir com
ANYAR DE CASTRO (1987, p.88-9), que apesar do que pensam alguns juristas,
ela não trata de negar o Direito: interessa-se antes por dotá-lo de novos conteúdos
e resgatar sua vertente garantidora. Salvo, aduzimos, em suas vertentes mais
radicalizadas.
Referindo-se, por exemplo, à investigação sobre sistemas penais e
Direitos Humanos dirigida por ZAFFARONI (1984a e b) na América Latina
ANYIAR DE CASTRO (1987, p.93-4) visualiza nela, precisamente, as
potencialidades de um aprofundamento daquele elo (garantismo crítico) ao
asseverar que

"(...) a primeira conseqüência relevante de um projeto como este está,


nos parece, em um refrescamento das possibilidades de colaboração,
senão de integração, entre a Criminologia - que não pode ser senão a
crítica -, e um direito penal (ou se quer ser mais preciso, uma ciência
penal), também crítico. O 'garantismo', ou respeito, vigilância e
garantia dos Direitos Humanos, se converteria assim na zona
coincidente de ambos os círculos e em objetivo de alto nível na escala
de prioridades de ambas as disciplinas."

12. Marco teórico e bases do controle dogmático: inserção da


Dogmática Penal no âmbito do sistema penal

Em definitivo, portanto, com seu novo e autônomo estatuto e objeto a


Criminologia fundada no paradigma da reação social, desde o seu momento
genético, com a matriz interacionista até seu desenvolvimento com a Criminologia
crítica, em cujo marco chega-se ao direto questionamento de uma nova forma de
relação com a Dogmática Penal, é o saber que potencializa e assumimos, sob a
indicada ótica do garantismo, para o seu controle epistemológico-funcional. Neste
sentido consideramos fundamental e recebemos tanto a contribuição dos
criminólogos quanto a dos penalistas críticos, nos termos já aludidos. Por sua
vez, a historiografia foucaultiana, apresentando fortes pontos de intersecção e
convergência com a crítica criminológica que dela recebe, inclusive, algumas
indicações epistemológicas fundamentais, concorre com uma contribuição
fundamental para este controle. 179
Situemos, pois, as bases do controle postulado iniciando por retomar o
ponto de partida. Como afirmamos ao início deste capítulo a questão central em
torno da qual ele deve gravitar - e que traduzimos num conjunto de interrogantes -
é se a Dogmática Penal, enquanto ciência prática, tem cumprido sua função
racionalizadora/ garantidora em nome da qual pretende legitimar o seu modelo de
Ciência; e se é o cumprimento desta função que explica sua marcada vigência
histórica. Interrogante que nos conduziu a postular uma análise contrastiva entre
as promessas dogmáticas e a operacionalidade do sistema penal. Mas, como
também afirmamos, este ponto de partida redimensiona-se na sua própria
tematização, nos conduzindo agora a recolocar esta análise metodologicamente

179 .Para designar este saber de controle aludiremos, alternativamente, à "Ciência social" à "crítica
historiográfica, sociológica e criminológica" ou à crítica social. E utilizaremos, complementarmente
argumentos de outras matrizes na medida de sua convergência com o marco assinalado.
contrastiva no marco de uma reinterpretação mais ampla, apta a dar conta das
duas grandes questões também deixadas pendentes e a retomar180: a) a da relação
funcional entre Dogmática e realidade social, que permite explicar sua
sobrevivência histórica e b) a da separação cognoscitiva entre Dogmática e
realidade social. A partir do marco teórico acima situado, podemos agora
pontualizar tais questões entreabertas.
É que um controle epistemológico-funcional não pode se limitar à
contrastação direta entre funções declaradas da Dogmática Penal e
operacionalidade do sistema penal, partindo dos próprios pressupostos
dogmáticos. Mas deve partir de uma reinterpretação global do paradigma que,
acorde com as indicações do saber eleito, chegue ao controle de sua auto-
imagem funcional (funções declaradas) desde o controle de sua auto-imagem
genérica.
Nesta perspectiva, a primeira indicação fundamental que retemos é a
necessidade de inserção analítica da Dogmática no âmbito do sistema penal, o
que conduz a ressignificar sua auto-imagem como Ciência (neutra) do Direito
Penal. Pois, para além de uma instância científica externa, isto é, sobre o
Direito Penal, trata-se de uma instância funcional interna181 ao sistema penal.
Operando como instância do sistema penal ela ocupa uma posição no
seu interior, situando-se, precisamente, como código de comunicação entre os
seus níveis definicional ou programacional (legislação penal-criminalização
primária) e operacional (Justiça- criminalização secundária).

180 . conforme item "11.2." do terceiro capítulo.


181 .Indicação que, como assinalamos no primeiro capítulo, se encontra também diretamente em
LUHMANN, ao situar a Dogmática como instância interna do sistema jurídico. Mas aqui se trate,
mais do que uma inserção específica da Dogmática no sistema penal, de sua caracterização como
Ciência do controle sócio-penal.
Recolocando neste marco a função instrumental
racionalizadora/garantidora declarada da Dogmática Penal182 ela significa então
uma função instrumental do exercício de poder do sistema penal, isto é, do
controle penal, ao nível judicial da criminalização secundária (vocação técnica) e,
ao mesmo tempo, de racionalização garantidora desta mesma criminalização por
ela instrumentalizada (vocação humanista).
Esta duplicidade funcional indica assim que o instrumental dogmático
deve possibilitar o exercício do controle penal com segurança jurídica individual,
ao proporcionar às decisões judiciais uma fundamentação técnica de base
científica.
Trata-se, pois, de uma Ciência do controle sócio-penal, com um duplo
código: tecnológico e legitimador.
Em segundo lugar , enquanto instância do sistema penal, a Dogmática
co-participa, conseqüentemente, de seu real funcionamento. Por isto mesmo, ao
explicitá-lo, a crítica social fornece dados decisivos para responder não apenas
às indagações sobre o (des)cumprimento das funções declaradas do paradigma
mas para a constatação do cumprimento de outras funções que, embora não
declaradas e assumidas, tem latentemente potencializado, como a já afirmada, de
legitimação do sistema penal. Permite assim perquirir sua real funcionalidade para
além da sua auto-imagem funcional.
Em terceiro lugar, inserir a Dogmática Penal no âmbito do sistema de
controle e criminalização é inseri-la como instância do poder concreto que ele
representa no Estado moderno: ser instância do sistema é ser instância do poder.
Nesta perspectiva a pretensão apolítica e objetiva da Dogmática Penal
carece inteiramente de fundamentação (BUSTOS RAMÍREZ,1987, p.16). E "o

182 . Conforme expusemos ao final do item "4" do terceiro capítulo.


lugar da Política, na Ciência, não deixa de ser, principalmente, um lugar
ideológico." (WARAT,1983, p.43)
Com efeito, sendo a ideologia uma forma de expressão (e ocultação)
do político no discurso da Ciência, o discurso dogmático é, como já
assinalamos, um discurso fundamentalmente ideológico. 183
O discurso dogmático declarado, visível, ao operar com o complexo
de representações e símbolos do Estado de direito, consubstancia,
positivamente, um programa ou um metaprograma decisório para a prática penal
contendo, neste sentido, potenciais garantidores do indivíduo. Mas, ao centrar-se
discursivamente na simbologia jurídico-garantidora ("de direito") do Estado
moderno oculta, ideologicamente, a dimensão do poder e da dominação
("capitalista") que com ela se dialetiza, materializando uma visão ideologizada do
seu funcionamento.
Ocultando/invertendo a realidade, ao se materializar, o discurso
dogmático é configurador de sentido pois não apenas contribui, decisivamente,
para a formação da mentalidade dos operadores jurídicos (através da educação
jurídica) mas para a formação do próprio senso comum da generalidade dos
cidadãos isto é, da opinião pública, que interage ativamente com o sistema penal.
Nesta dupla e simultânea dimensão ideológica de seu discurso é que
potencializa uma função legitimadora pela legalidade, não apenas das decisões da
agência judicial, mas de todo o sistema penal (ZAFFARONI, 1991, p.182).
Pois concorre, de maneira não desprezível, para socializar a crença e
produzir um consenso (real ou aparente), dentro e fora do circuito profissional
do sistema penal, em torno a uma imagem ideal e mistificadora de seu
funcionamento; em especial um consenso em torno a um modelo liberal de

183 . Sobre o acordo semântico para o emprego do signo ideologia nesta tese ver nota "21" do
terceiro capítulo.
funcionamento "dentro" da legalidade, igualdade e segurança jurídica e, portanto,
em torno ao monopólio da força assumido pelo Estado moderno. Concorre, desta
forma, para conformar um tipo de imaginário social sobre o sistema penal, ao
mesmo tempo em que oculta a sua real funcionalidade.
Não se trata de afirmar, contudo, que o discurso dogmático sobre o
Direito Penal (assim como o discurso criminológico) haja assumido
conscientemente uma função legitimadora mas que tem produzido , como
conseqüência de seu discurso, efeitos de legitimação. Do mesmo modo, em
momento algum este discurso assumiu-se como discurso do "controle penal".
Em quarto lugar, a inserção da Dogmática Penal como instância do
sistema penal - ponto de partida do seu controle - conduz a retomar a relação
funcional entre Dogmática e realidade social para além da relação funcional,
dogmaticamente imaginada, entre seu modelo científico e a aplicação judicial do
Direito Penal, abstratamente considerada.
É que nesta perspectiva a relação Dogmática Penal-realidade social
passa a ser concebida como relação Dogmática Penal-sistema de controle sócio-
penal-sistema social.
Seu lugar de materialização na realidade social é, portanto, o locus
contraditório, conflitivo e violento do sistema penal, que expressa contradições
inscritas na Sociedade e no Estado e não o locus apolítico por ela idealizado
(aplicação científica e neutra da lei penal pelo Judiciário).
Por último, os dados historiográficos, sociológicos e criminológicos
críticos sobre o sistema penal e sobre a ideologia da defesa social permitem
refundamentar o atraso teórico da Dogmática Penal (BARATTA, 1982) e o seu
déficit cognoscitivo. Pois, se a fundamentação deste atraso não é nova, tendo
vindo a se materializar no interior de disciplinas como a Semiologia, a Sociologia
Jurídica, as Teorias críticas do Direito e outras, com estes dados acumulam-se as
perspectivas para se concluir que a Dogmática Penal se apóia em crenças e
fundamentos teóricos totalmente desacreditados pelo conhecimento
contemporâneo.
A partir deste marco teórico é possível então oferecer uma resposta às
duas grandes questões pendentes sobre a relação funcional e a separação
cognoscitiva entre Dogmática Penal e realidade social.
Nesta perspectiva, entendemos que a crítica do sistema penal,
possibilita, embora indiretamente, não apenas uma interpretação da sobrevivência
dogmática, mas gera um "quadro desconcertante" (ZAFFARONI, 1989, p.431)
para a sua vigência, hoje, ao mesmo tempo em que cria as condições para um
questionamento mais profundo de sua crise, diante das quais buscamos identificar
sua especificidade e a partir das quais hoje se prediz, acrescente-se, as bases de
sua (re)construção/transformação, no horizonte de um novo modelo (integrado?)
de Ciência Penal.
É neste marco analítico que recolocamos e a partir dele pretendemos
responder àquelas indagações originárias.
CAPÍTULO V

CONFIGURAÇÃO, OPERACIONALIDADE E FUNÇÕES DO


MODERNO SISTEMA PENAL: DAS FUNÇÕES DECLARADAS
ÀS FUNÇÕES REAIS DA DOGMÁTICA COMO CIÊNCIA DO
SISTEMA PENAL

1. Introdução

Tendo delimitado o marco teórico vertebral para a análise do sistema


penal e pontualizado os termos de realização do controle dogmático nele
baseado, este capítulo será desenvolvido em três momentos.
Em primeiro lugar situaremos a configuração do moderno sistema penal
centralmente orientada pela historiografia de FOUCAULT. Pois, ao explicitá-la
desde a relação poder-saber no marco do sistema social capitalista, possibilita
operar o trânsito para a análise mais estrita do funcionamento do sistema penal a
partir de uma perspectiva histórica que, remetendo às bases fundacionais daquela
relação nos permite: a) situar a configuração dos modelos penais fundamentais 184
e a especificidade então assumida pelo moderno sistema penal (enquanto
subsistema jurídico e subsistema social); b) assinalar a ambigüidade que está na
base de sua fundação entre exigências latentes de dominação e promessas de
garantismo; e c) ressignificar, no marco do sistema penal e a partir destas
exigências latentes, a configuração do saber penal clássico, criminológico e
dogmático que descrevemos no segundo capítulo sob a ótica de seu discurso
declarado185; e, em especial, a auto-imagem da Dogmática Penal e sua relação com
a Criminologia positivista.
Não se trata, pois, de reconstruir historicamente a emergência do
moderno sistema penal mas de situar sua configuração em perspectiva histórica,
assinalando a ambivalência que o marca desde sua fundação para recolocar a
Dogmática Penal no marco deste sistema ambivalente, ressignificando sua auto-
imagem e, enfim, sua convergência funcional com a Criminologia no interior do
sistema penal para além da relação funcional entre ambas oficialmente declarada
no modelo integrado de Ciência Penal.
De modo que o conceito da Dogmática Penal, reconstruído até aqui
desde as bases fundacionais do paradigma dogmático de Ciência Jurídica
(capítulo primeiro), do moderno saber penal (capítulo segundo) e de sua própria

184 . A que aludimos no item "2" do capítulo anterior.


185 Situando-o aqui como saber do sistema de controle sócio-penal, na linha interpretativa que
assinalamos no item "10" do quarto capítulo.
auto-imagem (capítulo terceiro) reassume sua significação plena desde as bases
fundacionais do moderno sistema penal em cujo horizonte, em definitivo, se
constitui e demarca e, ao mesmo tempo, se torna constitutivo dele. A Dogmática
Penal reaparece assim, a partir de uma reinterpretação global do moderno saber
penal, como Ciência "funcionalmente ambígua" do sistema penal.
A seguir procedemos à análise da operacionalidade e funções reais do
moderno sistema penal centralmente orientada186 pela Criminologia da reação
social à Criminologia e o Penalismo críticos pela própria via entreaberta pela
genealogia de FOUCAULT. Pois dela se depreende, também, que a lógica de
funcionamento do sistema penal descrita pela crítica criminológica está inscrita na
própria fundação do sistema.
Chegamos por esta via à análise comparativa direta entre programação
(normativa e teleológica) e operacionalidade e, a seguir, entre metaprogramação
dogmática e operacionalidade do sistema penal, pontualizando as funções
cumpridas e descumpridas pela Dogmática Penal enquanto Ciência
funcionalmente ambígua do sistema de controle ao mesmo tempo em que os
termos de sua relação funcional e separação cognoscitiva com a realidade social.

2. Configuração do moderno sistema penal e seu campo correlato de


saber no marco do sistema social capitalista: poder e saber penal

O viés da genealogia foucaultiana que nos interessa então focalizar, é


precisamente o de relação poder-saber penal sob o fio condutor da tese já situada
no capítulo anterior: a de que a transição da antiga para a moderna Justiça Penal

186 . O "centralmente orientada" significa que, tanto neste quanto no momento anterior apesar da
exposição destas matrizes ser nuclear e obedecer a uma seqüência utilizamos às vezes
intercaladamente os argumentos de uma em relação à outra e ainda, eventualmente, contribuições
que, embora externas a ambas , são convergentes com seus resultados.
não significou a passagem da barbárie ao humanismo, mas de uma estratégia de
punir a outra, mediante um deslocamento qualitativo do seu objeto (do corpo
para a mente), e objetivos (minimização dos custos econômico e político e
maximização da eficácia).
Neste revisionismo, embora não se ocupando diretamente da
Dogmática Penal, FOUCAULT percorre a trajetória de constituição do moderno
saber penal que vai do saber clássico (desde o discurso reformista, simbolizado
especialmente na obra de BECCARIA) ao criminológico evidenciando sua
conexão com a constituição do moderno poder penal e suas exigências latentes e
reais de dominação e ressignificando, desta ótica, a reforma penal iluminista, a
linha jurídica de formulação do "Direito Penal do fato" e a criminológica do
"Direito Penal do autor". Por esta via, possibilitar ressignificar também a
chamada "luta" entre as Escolas Clássica e Positiva e a disputa pela hegemonia
entre Dogmática penal e Criminologia que a ela se seguiu bem como a
convergência funcional latente e real de ambas no marco do sistema penal.

- Ressignificando a reforma e o saber penal iluminista: dos objetivos


declarados aos objetivos latentes e reais

É assim que FOUCAULT (1987, p.70) irá revisitar a ambiência da


reforma penal Iluminista, iniciando por questionar o binômio "humanidade-
medida" em que assenta:

"(...) como esse homem-limite serviu de objeção à prática tradicional


dos castigos? De que maneira ele se tornou a grande justificação moral
do movimento de reforma? Por que esse horror tão unânime pelos
suplícios e tal insistência lírica por castigos que fossem 'humanos'? ou, o
que dá no mesmo, como se articulam um sobre o outro, numa única
estratégia, esses dois elementos sempre presentes na reivindicação de
uma penalidade suavizada: 'medida' e 'humanidade'?"

É preciso então, prossegue FOUCAULT (1987, p.70-71), contar o


nascimento e a primeira história desta "enigmática suavidade" recolocando essa
reforma no processo que os historiadores isolaram recentemente ao estudar os
arquivos judiciários: no decorrer do século XVIII registra-se uma diminuição
considerável dos crimes de sangue e, de um modo geral, das agressões físicas,
passando a prevalecer os delitos contra a propriedade; ao mesmo tempo a
delinqüência difusa, ocasional, mas freqüente das classes mais pobres é
substituída por uma delinqüência limitada e hábil.
A mitigação da violência das penas, à custa de múltiplas intervenções,
acompanha, pois, a mitigação da violência dos crimes e uma transformação da
própria organização interna da delinqüência.
E este processo de dupla via significa que com o desenvolvimento da
sociedade capitalista um movimento global faz derivar a "ilegalidade", do ataque
aos corpos para desvio mais ou menos direto dos bens:
"(...) com as novas formas de acumulação de capital, de relações de
produção e de estatuto jurídico da propriedade, todas as práticas
populares que se classificavam, seja numa forma silenciosa, cotidiana,
tolerada, seja numa forma violenta, na ilegalidade dos direitos, são
desviadas à força para a ilegalidades dos bens. O roubo tende a tornar-
se a primeira das grandes escapatórias à legalidade, nesse movimento
que vai de uma sociedade da apropriação jurídico-política a uma
sociedade de apropriação dos meios e produtos do trabalho."
(FOUCAULT, 1987, p.80)

Desta forma, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma


criminalidade de fraude faz parte de todo um mecanismo complexo onde figuram
a acumulação do capital, o desenvolvimento da produção, uma modificação do
jogo das pressões econômicas, um forte crescimento demográfico, uma
multiplicação da riqueza e da propriedade, uma valorização jurídica e moral das
relações de propriedade, uma elevação geral do nível de vida, e a "necessidade de
segurança jurídica", como sua conseqüência .Por outro lado constata-se, no
decorrer do século XVIII, que a justiça se torna de certo modo mais pesada, e sua
legislação agrava, em vários pontos, a severidade punitiva. (FOUCAULT, 1987, p.
71-72)
Na sociedade capitalista dá-se, assim, uma reestruturação da "economia
das ilegalidades"; a "ilegalidade dos direitos" que muitas vezes assegurava a
sobrevivência dos mais despojados é separada da "ilegalidade dos bens".187
Divisão que corresponde a uma oposição de classe, pois, enquanto a ilegalidade
mais acessível às classes baixas será a dos bens (transferência violenta das
propriedades), a burguesia proprietária se reservará a "ilegalidade dos direitos."
(FOUCAULT, 1987, p.80)
E ao mesmo tempo em que esta separação se realiza, afirma-se a
necessidade de uma vigilância constante, mas que se faça essencialmente sobre a
ilegalidade dos bens; de uma minuciosa coerção para manter seu ajustamento. É
portanto necessário controlar e codificar tais práticas ilícitas. É preciso que as
infrações sejam bem definidas e punidas com "segurança" de modo que se impõe

"(...) desfazer a antiga economia do poder de punir que tinha como


princípios a multiplicidade confusa e lacunosa das instâncias, uma
repartição e uma concentração de poder correlatas com uma inércia de
fato e uma inevitável tolerância, castigos ostensivos em suas
manifestações e incertos em sua aplicação. Afirma-se a necessidade de
definir uma estratégia e técnicas de punição em que uma economia da
continuidade e da permanência substituirá a da despesa e do excesso."
(FOUCAULT, 1987, p.80-1)

187 Por "ilegalidade de bens" FOUCAULT designa a criminalização ou tipificação das condutas
contrárias à propriedade privada que passa a assumir o primeiro posto em relação às condutas
contrárias à pessoa, como a vida, a liberdade etc., designadas por "ilegalidade dos direitos".
Foi assim que a reforma penal nasceu do ponto de interseção entre a
luta contra o superpoder do soberano e a luta contra o infra-poder das ilegalidades
conquistadas e toleradas. E sob o influxo desta dupla exigência é que vimos
formar-se, durante todo o século XVIII, dentro e fora do sistema judiciário, na
prática penal cotidiana como na crítica das instituições, uma nova estratégia para o
exercício do poder de punir que assumiu a forma de um projeto global para a sua
redistribuição. (FOUCAULT, 1987, p.75-6 e 80-1)
A conjuntura que viu nascer a reforma não é, portanto, a de uma nova
sensibilidade e respeito pela "humanidade" dos condenados - os suplícios são
ainda freqüentes - mas a de uma outra política em relação às ilegalidades e à
punição cujo verdadeiro objetivo

"(...) não é tanto fundar um novo direito de punir a partir de princípios


mais equitativos; mas estabelecer uma nova 'economia' do poder de
castigar, assegurar uma melhor distribuição dele, fazer com que não
fique concentrado demais entre instâncias que se opõem; que seja
repartido em circuitos homogêneos que possam ser exercidos em toda
parte, de maneira contínua e até o mais fino grão do corpo social."
(FOUCAULT, 1987, p.75)

Desde suas formulações mais gerais, pois, a reforma deve ser lida
como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir, que objetiva
fundamentalmente diminuir seu custo econômico (dissociando-o do sistema de
propriedade, de compra e vendas, da venalidade tanto dos ofícios quanto das
próprias decisões) e seu custo político (dissociando-o do arbitrário poder
monárquico) aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos, de acordo
com modalidades que o tornam mais regular, mais constante e mais bem detalhado
em seus efeitos. Em suma, "constituir uma nova economia e uma nova tecnologia
do poder de punir; tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da reforma
penal no século XVIII." (FOUCAULT, 1987, p.81-2)
Não tendo sido protagonizada pelo discurso dos ideólogos iluministas
ressalta dele, todavia, uma "notável coincidência" com esta estratégia reformista
global (FOUCAULT, 1987, p.75-6). Pois o que os ideólogos criticam não é tanto
ou apenas os privilégios, a arbitrariedade, a arrogância arcaica ou os direitos
incontroláveis da justiça; mas antes a mistura entre suas lacunas e seus excessos -
a distribuição mal regulada do poder - e sobretudo o princípio do qual provém
esta disfunção: o superpoder monárquico que identifica o direito de punir com o
poder pessoal do soberano.
Assim é a

"(...) má economia do poder e não tanto a fraqueza ou a crueldade o


que ressalta da crítica dos reformadores. Poder excessivo nas
jurisdicões inferiores que podem - ajudadas pela pobreza e pela
ignorância dos condenados - negligenciar as apelações de direito e
mandar executar sem controle sentenças arbitrárias; poder excessivo
do lado de uma acusação à qual são dados quase sem limite meios de
prosseguir, enquanto que o acusado está desarmado diante dela, o que
leva os juízes a ser, às vezes severos demais, às vezes, por reação,
indulgentes demais; poder excessivo para os juízes que podem se
contentar com provas fúteis se são 'legais' e que dispõem de uma
liberdade bastante grande na escolha da pena; poder excessivo dado à
'Erro! A origem da referência não foi encontrada.gente do rei', não só
em relação aos acusados, mas também aos outros magistrados; poder
excessivo enfim exercido pelo rei, pois ele pode suspender o curso da
justiça, modificar suas decisões, cassar os magistrados, revogá-los ou
exilá-los, substituí-los por juízes por comissão real." (FOUCAULT,
1987, p.74)

Neste sentido, a "reforma propriamente dita", tal como formulada pelas


teorias clássicas e materializada em projetos não é mais do que a

"(...) retomada política ou filosófica dessa estratégia, com seus


objetivos primeiros: fazer da punição e da repressão das ilegalidades
uma função regular, coextensiva à sociedade; não punir menos, mas
punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para
punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais
profundamente no corpo social o poder de punir." (FOUCAULT, 1987,
p.76)
Engloba, pois, antes que um projeto humanitário, uma "semio-técnica"
geral da punição , isto é, uma receita geral para esta nova "economia política" do
poder de punir (FOUCAULT, 1987, p.226) que responde às exigências de uma
nova estratégia de dominação.
A crítica dos suplícios teve assim uma importância decisiva na
reforma penal porque se tratava da figura que reunia o poder ilimitado do
soberano com a ilegalidade sempre desperta do povo. A humanidade das penas é
a regra declarada de um regime de punições que deve fixar limites a um e à outra;
assim como o 'homem' que se pretende fazer respeitar na pena é a forma jurídica
e moral que se dá a essa dupla delimitação. Contudo, se a reforma, como teoria
penal e como estratégia do poder de punir, foi ideada no ponto de coincidência
desses dois objetivos, sua estabilidade futura - a passagem de um projeto à de
instituição prática - se deveu ao fato de que o segundo ocupou, por muito tempo,
um lugar prioritário. (FOUCAULT, 1987, p.81-2)
Ou seja,

"(...) se, aparentemente, a nova legislação criminal se caracteriza por


uma suavização das penas, uma codificação mais nítida, uma
considerável diminuição do arbítrio, um consenso mais bem
estabelecido a respeito do poder de punir (na falta de uma partilha mais
real do seu exercício) ela é apoiada basicamente por uma profunda
alteração na economia tradicional das ilegalidades e uma rigorosa
coerção para manter seu novo ajustamento." (FOUCAULT, 1987,
p.82)

Desta forma, o "homem" redescoberto pelos reformadores "contra o


despotismo do cadafalso é também um homem-medida: não das coisas, mas do
poder." (FOUCAULT, 1987, p.70)
Ao nível dos princípios esta estratégia é facilmente formulada na teoria
geral do contrato:
"Supõe-se que o cidadão tenha aceito de uma vez por todas, com as leis
da sociedade, também aquela que poderá puni-lo. O criminoso aparece
então como um ser juridicamente paradoxal. Ele rompeu o pacto, é
portanto inimigo da sociedade inteira,mas participa da punição que se
exerce sobre ele. O menor crime ataca toda a sociedade; e toda a
sociedade- inclusive o criminoso - está presente na menor punição. O
castigo penal é então uma função generalizada, coextensiva do corpo
social e a cada um de seus elementos." (FOUCAULT, 1987, p.82-3)

O contrato social originaria a solidariedade de todos os cidadãos em


torno dos valores fundamentais; o consenso assim criado determinaria uma
"igualdade de deveres", assente na (pressuposta) "igualdade de interesses" mas a
que corresponderia uma "desigualdade real de oportunidades". (TAYLOR,
WALTON, YOUNG, 1990, p. 23-4)
A relação de poder que fundamenta o exercício da punição se apóia sobre
um duplo eixo:

"De um lado, o criminoso designado como inimigo de todos, que têm


interesse em perseguir, sai do pacto, desqualifica-se como cidadão e
surge trazendo em si como que um fragmento selvagem de natureza;
aparece o 'anormal'. É a esse título que ele se encontrará um dia sob
uma objetivação científica, o 'tratamento' que lhe é correlato. De outro
lado, a necessidade de medir, de dentro, os efeitos do poder punitivo
prescreve táticas de intervenção sobre todos os criminosos, atuais ou
eventuais: a organização de um campo de prevenção, o cálculo dos
interesses, a entrada em circulação de representações e sinais, a
constituição de um horizonte de certeza e verdade, o ajustamento das
penas e variáveis cada vez mais sutis, tudo isso leva igualmente a uma
objetivação dos crimes e dos criminosos." (FOUCAULT, 1987, p.92)

Nos dois casos, a relação de poder que fundamenta o exercício da


punição arrasta consigo uma relação de objeto na qual se encontram incluídos não
só o crime como fato a estabelecer segundo normas precisas, mas o criminoso
como indivíduo a conhecer segundo critérios específicos. (FOUCAULT (1987,
p.92)
Daí se definem duas linhas de objetivação (do crime e do criminoso)
que nascendo das próprias táticas do poder e na distribuição do seu exercício,
demarcam o campo do saber, respectivamente jurídico-penal e criminológico; ao
mesmo tempo em que neste saber passa a se apoiar o exercício do poder penal,
dele recebendo suas regras e justificações.
O poder, enquanto mecanismo, relação, exercício, produz novos
objetos de saber e de papéis de forma que

"Sobre esta microfísica do poder punitivo, sobre essa realidade-


referência vários conceitos foram construídos e campos de análise
foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência,
etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir
dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo."
(FOUCAULT, 1987, p.31)

- Ressignificando a linha de objetivação do crime (Direito Penal do fato)


da Escola Clássica à Dogmática Penal

Assim, a linha de objetivação do crime (que vimos denominando


"Direito Penal do fato") é precisamente aquela desenvolvida desde o saber
clássico até o dogmático sob o binômio humanidade-medida, situando o homem
como limite negativo do poder. Trata-se da linha inaugural que está na base da
nova economia punitiva e primeiro se impõe, tendo efeitos muito mais rápidos e
decisivos que a linha criminológica na medida em que

"(...) estava mais diretamente ligada à reorganização do poder de


punir: codificação, definição dos papéis, tarifação de penas, regras de
procedimento, definição do papel dos magistrados. E também porque se
apoiava sobre o discurso já constituído dos ideólogos. Este fornecia
com efeito, pela teoria dos interesses, das representações e dos sinais,
pelas séries e gêneses que reconstituía, uma espécie de receita geral
para o exercício de poder sobre os homens (...)" (FOUCAULT, 1987,
p.93)

No ponto de partida da nova estratégia punitiva radica então o projeto


político de classificar exatamente as ilegalidades, de generalizar a função punitiva,
e de delimitar, para controlá-lo, o poder de punir. Enquanto isso a objetivação
(criminológica) do criminoso não passa ainda de uma virtualidade, de uma linha
de fuga em suspenso (FOUCAULT, 1987, p.93) e o homem criminoso, embora
objeto de uma latente objetivação, ainda não coincide com o anormal, mas
simplesmente com o violador consciente do pacto.
Importa fundamentalmente a constituição daquele campo de certeza e
verdade em que o crime é objetivado como fato a estabelecer segundo normas
gerais precisas.
Coloca-se "positiva" e não mais reativamente, o problema da medida e
cálculo do poder de punir. Eis aí a passagem de um saber filosófico, político e
totalizador que havia projetado as bases ideológicas (ideologia reformista) da
nova estratégia punitiva para um saber jurídico-penal que deveria, na
continuidade, sustentá-lo. A Filosofia, embora legando uma herança decisiva, já
havia cumprido o seu papel.
Assim diz PAVARINI (1980, p.40)

"Com a consolidação do domínio capitalista na Europa da Restauração, a


interpretação política da criminalidade que havia caracterizado a época da
conquista do poder por parte da nova classe burguesa, incluídas as
contradições do pensamento iluminista, sempre indeciso entre o momento
crítico e as exigências de racionalização, parece resolver-se definitivamente
numa leitura apologética da ordem social existente. A ambigüidade que
caracterizava as primeiras formas de conhecimento criminológico estava
realmente ditada pela dupla exigência de criticar as formas hostis de poder (o
feudal) e ao mesmo tempo projetar as formas de um novo poder (o burguês);
mas uma vez que o poder político foi definitivamente conquistado, os interesses
da classe hegemônica se limitaram a inventar a estratégia para conservá-lo."

Vimos aqui ressignificado o problema da racionalização do poder


punitivo e da promessa de certeza e segurança jurídica tal como aparece desde o
saber jurídico clássico chegando ao saber dogmático.
A racionalização do poder penal, declarada em nome do indivíduo,
traduz uma exigência latente mais profunda de cálculo e eficácia punitiva e de
retorno de seus efeitos matemáticos para o próprio poder que pune de forma que

"O que se precisa moderar e calcular, são os efeitos de retorno do


castigo sobre a instância que pune e o poder que ela pretende exercer.
Aí está a raiz do princípio de que se deve aplicar só punições 'humanas',
sempre, a um criminoso que pode muito bem ser um traidor e um
monstro, entretanto. (...) A razão não se encontra numa humanidade
profunda que o criminoso esconda em si, mas no controle necessário
dos efeitos de poder. Essa racionalidade 'econômica' é que deve medir
a pena e prescrever as técnicas ajustadas. 'Humanidade' é o nome
respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos. 'Em
matéria de pena o mínimo é ordenado pela humanidade e aconselhado
pela política.'" (FOUCAULT, 1987, p.84)

É assim que a regra da "certeza perfeita", como a denomina


FOUCAULT (1987, p.87), torna-se um dos princípios básicos da nova estratégia
punitiva.
E esse princípio geral de certeza

"(...) que deve dar eficácia ao sistema punitivo implica num certo
número de medidas precisas. Que as leis que definem crimes e
prescrevem as penas sejam perfeitamente claras 'a fim de que cada
membro da sociedade possa distinguir as ações criminosas das ações
virtuosas'. Que essas leis sejam publicadas, e cada qual possa ter acesso
a elas; que se acabem as tradições orais e os costumes, mas se elabore
uma legislação escrita, que seja 'o monumento estável do pacto social',
que se imprimam textos para conhecimento de todos (...)"
(FOUCAULT, 1987, p.87)

E tal corresponde, precisamente, à decodificação clássica e dogmática


da legalidade: não existe crime nem pena sem lei penal escrita, estrita, anterior e
certa que o defina.
Como derivação daquela regra da certeza vem a "regra da
especificação ideal" (FOUCAULT, 1987, p.89-90) e ela significa que:
"Para que a semiótica penal recubra bem todo o campo das
ilegalidades que se quer reduzir, todas as infrações têm que ser
qualificadas; têm que ser classificadas e reunidas em espécies que não
deixem escapar nenhuma ilegalidade. É então necessário um código, e
que seja suficientemente preciso para que cada tipo de infração possa
estar claramente presente nele. A esperança da impunidade não pode
ser precipitar no silêncio da lei. É necessário um código exaustivo e
explícito, que defina os crimes, fixando as penas."

Vimos assim que este projeto econômico-político de objetivação do


crime que o poder punitivo necessitava para a sua eficácia coincide precisamente
com o projeto jurídico do "Direito Penal do fato" empreendido desde a Escola
Clássica à Dogmática Penal.
Não é difícil ver aqui como a Dogmática Penal herda e confere às
regras da "certeza perfeita" e da "especificação ideal" - que a própria Criminologia
entreabrirá na individualização - a sua formulação mais acabada. Para maximizar
a certeza (declarada na legalidade) faz-se necessário sua "especificação ideal"
(codificação e tipificação) e para maximizar a ambas é necessário um saber
metacódigos, metaprogramacional; é necessário uma Dogmática que reconstrua
com a arquitetônica de um sistema - classificatorial - as particularidades que cada
delito encerra e encerre neste sistema as condições precisas da imputabilidade
penal que a legalidade requer. Enquanto o saber clássico demarca os contornos
legais desta economia de cálculos precisos a Dogmática Penal se encarregará de
transportá-los para o ato de sentenciar.
Efeito desta economia política e instrumento do seu próprio exercício,
ao se comprometer em exorcizar todo aquele arbitrário que o superpoder
monárquico potencializava no ato judicial de sentenciar, ela instrumentalizará as
suas exigências (ambíguas) de certeza, previsibilidade e segurança.
Reaparecem aqui razões latentes de uma Dogmática tão preocupada
pela sorte da "minoria transgressora" antes que da "maioria obediente"; de tanto
esforço teórico depositado nos tribunais onde sentam os acusados ao invés das
ruas por onde transitam suas vítimas; de tamanha ênfase no binômio indivíduo
(garantia) x poder (arbítrio) e no discurso matemático das punições. Reaparecem
aqui funções latentes que a Dogmática Penal irá potencializar.

- Ambigüidade genética do moderno poder e saber penal: dominação e


garantismo

Ao desnudar os objetivos latentes do discurso humanista-garantidor


declarado e da refundação da penalidade que ele expressa e co-constitui em seus
próprios termos, o revisionismo foulcaultiano desnuda a lógica de dominação que
o(s) preside.
Mas, contrariamente ao discurso jurídico declarado que só exalta o
lado humanitário e garantidor da moderna Justiça Penal, ocultando sua relação
com o poder e a dominação - negação estrutural do poder - FOUCAULT, ao
explicitá-la, se aproxima, contrariamente, de uma negação estrutural do próprio
homem, pois não parece reconhecer o discurso humanista como "constitutivo" da
nova Justiça e, portanto, a ambigüidade que está na base desta refundação e
deste saber, como o reconhecem outros criminólogos e penalistas críticos.
Se a refundação e racionalização do poder de punir responde, como
FOUCAULT o demonstra vigorosamente, a uma nova estratégia de dominação
que requer um controle penal política e economicamente mais eficaz fundado num
princípio estrutural de cálculo, certeza e previsibilidade, cujas exigências de
segurança jurídica (da propriedade) estão ao serviço do poder (burguês) que
pune; nesta mesma estratégia a humanidade do indivíduo é, de qualquer modo,
declarada como um domínio inviolável e um novo referencial na história do poder
de punir e a segurança jurídica (individual) coloca-se igualmente para ele como
uma exigência a satisfazer.
Assim PAVARINI (1980, p.28), embora revertendo o ângulo do
discurso humanista e se aproximando da interpretação de FOUCAULT
reconhece o discurso humanista como constitutivo da nova Justiça:

"Somente o esforço para ler a questão criminal dentro da mais ampla


reflexão política do período permite evitar a interpretação ainda hoje
dominante que vê ou quer ver do pensamento político-jurídico da época
apenas o aspecto, igualmente presente, da 'afirmação da liberdade civil' com
relação às arbitrariedade do Poder, da defesa do cidadão contra o Príncipe.
Uma interpretação, esta, que quer privilegiar somente o momento negativo
da crítica dos horrores da justiça penal ainda impregnada de heranças
feudais, que tende a enfatizar entre outras medidas a pretensão voluntarista e
ideológica de fazer da legislação criminal a 'magna carta' da liberdade do
cidadão-imputado mais que o instrumento da repressão do Estado.
Obscurece-se, deste modo, uma realidade cultural muito mais complexa que
não deixa nunca de acompanhar o momento destrutivo de 'a crítica à velha
ordem' sócio-política, uma reflexão por outra parte profunda sobre os modos
de preservar a concordância e de garantir o 'controle social na nova ordem'.
A nova geografia sócio-econômica que se determina com a progressiva
ruptura dos vínculos feudais e com a emergência de uma economia capitalista
impõe a necessidade de elaborar um novo atlas sobre o qual ordenar a
prática política."

DIAS e ANDRADE (1984, p.9-10) também assinalam, neste sentido,


que reconduzida a obra de BECCARIA e dos reformadores iluministas, na linha
de FOUCAULT, ao seu enquadramento histórico e ao plano da Escola Clássica
geral

"(...) correspondente à ideologia da burguesia em ascensão, simultaneamente


em conflito com o soberano e com os não-possidentes, nunca a escola
clássica poderia ser susceptível de uma interpretação unilateral. Viu-se, por
isso, compelida a reforçar as garantias face ao perigo de arbítrio e a definir,
ao mesmo tempo, uma nova estratégia do poder punitivo, reforçando a luta
contra o crime e cobrindo as lacunas deixadas pelo velho poder punitivo -
tanto mais quanto a criminalidade se convertia progressivamente em
criminalidade patrimonial."

E RESTA (1991, p.79-80) na esteira da matriz foucaultiana, pontualiza


os termos desta genética ambigüidade ao assinalar que
"(...) todo o esforço da cultura própria do Iluminismo penal do século XVIII é
reconstruível à luz [da] tentativa de 'legalização' da penalidade, não somente
no sentido de positivização normativa, mas também (quando não
basicamente) no sentido de sua economização dirigida por critérios de
'utilidade' científica. O texto de Beccaria continua sendo exemplar acerca
deste propósito. Sua resposta pontual à atrocidade 'dos suplícios' e à
inutilidade de seus 'esplendores' se dirige a uma refundação da penalidade,
depurada finalmente do arbítrio de uma punição imprevisível e violenta
demais - e por isso exposta demais à mimesis da violência transgressiva.
Princípios modernos como a proporcionalidade da pena com respeito ao
delito, a proibição da pena de morte, a rigidez da prevenção da lei, ainda
mais a justificação do caráter preventivo da ameaça que observa o delito
para se autoconfirmar como punição, nascem ao mesmo tempo de modo
ambivalente, como exigências de 'humanização', mas também de
relegitimação de funções perdidas, de reconquista de economicidade. A
brandura das penas significa ao mesmo tempo uma redução do bônus de
espetacularidade inútil e de reconquista científica de 'medida'; é, portanto,
uma questão de dose de violência ameaçada."

Contra a negação estrutural do homem e do poder assumimos uma


interpretação da fundação da moderna Justiça Penal em termos essencialmente
ambíguos entre exigências de dominação (e legitimação) e exigências
humanitárias que se traduzem, no marco de uma legitimação pela legalidade, na
exigência de um controle penal com certeza/segurança jurídica.
E expressando, a um só tempo, a necessidade de segurança da
propriedade e da liberdade individual (BECCARIA), tal exigência genética de
"segurança jurídica" no moderno controle penal, com a qual se compromete a
Dogmática, é a que melhor simboliza aquela ambigüidade e seus destinatários: o
poder burguês (dominação capitalista concreta) e o homem abstrato (garantismo
potencial). E porque ambíguo é o significado da certeza/segurança por ela
prometida, ambíguo será, como já sugerimos acima e pontualizaremos adiante, seu
significado e potencialidades funcionais no controle penal.
A racionalização da Justiça Penal insere-se nesta bifurcação e ela não
se exercerá, historicamente, não obstante esta contradição, mas através dela.

- Ressignificando a linha de objetivação do criminoso (Direito Penal do


autor): a complementariedade criminológica

Mas se num primeiro momento o exercício do poder punitivo


engendrou e se apoiava unicamente na linha de objetivação do crime, no saber e
no profissional jurídico, materializando um controle "segundo, preferentemente,
as vias legitimadoras que WEBER denominou de dominação legal "(ANYIAR DE
CASTRO, 1987, p.24),

"(...) o mesmo imperativo de cobertura integral pelos efeitos-sinais da


punição obriga ir mais longe. A idéia de um mesmo castigo não tem a
mesma força para todo mundo: a multa não é temível para o rico, nem
a infâmia a quem já está exposto. A nocividade de um delito e seu valor
de indução não são os mesmos, de acordo com o status do infrator; (...)
Enfim, já que o castigo quer impedir a reincidência, ele tem que levar
bem em conta o que é o criminoso em sua natureza profunda, o grau
presumível de sua maldade, a qualidade intrínseca de sua vontade."
(FOUCAULT, 1987, p.89-90)

O que começa a se esboçar doravante é uma modulação que se refere


ao próprio infrator, à sua natureza, ao seu modo de vida e de pensar, ao seu
passado e não mais à intenção de sua vontade. Desenha-se a necessidade de uma
classificação paralela dos crimes e das penas e a necessidade de individualizá-las,
de acordo com as características singulares de cada criminoso. Trata-se agora de
fundamentar a ligação código-individualização segundo os modelos científicos da
época. (FOUCAULT, 1987, p.90)
Sem dúvida, como acentua FOUCAULT (1987, p.90), em termos de
teoria do Direito e de acordo com as exigências da prática cotidiana, a
individualização se encontra em oposição radical com o princípio da
codificação.188

188 . A respeito ver também TAYLOR, WALTON, YOUNG (1990, p.54).


Mas, do ponto de vista de uma economia do poder de punir
"(...) e das técnicas através das quais se pretende pôr em circulação,
em todo o corpo social, sinais de punição exatamente ajustados, sem
excessos nem lacunas, sem 'gasto' inútil de poder mas sem timidez, vê-se
bem que a codificação do sistema delitos-castigos e a modulação do par
criminoso-punição vão a par e se chamam um ao outro. A
individualização aparece como o objetivo derradeiro de um código bem
adaptado." (FOUCAULT, 1987, p.90)

E é neste processo agora em curso de objetivação do criminoso que o


exercício do poder penal produz um novo campo de saber: a Criminologia
"científica". E, com ela, se estabelece progressivamente um conhecimento
positivo dos delinqüentes e de suas espécies, muito diferente da qualificação
jurídico-dogmática dos delitos e de suas circunstâncias. Ao lado da qualificação
e classificação cientifica do delito como realidade normativa pelo saber
dogmático compete a este novo saber qualificar e classificar cientificamente o
delito enquanto ato, mas principalmente o "delinqüente" enquanto pessoa.
Desta forma, junto a um saber fundado na racionalidade das ações
criminais (livre-arbítrio) e do controle igualitário, sobre o qual se edificaram as
codificações penais desenvolve-se um saber do criminoso como homem privado
de vontade, desigual e perigoso; desenvolve-se um saber do controle diferencial.
É precisamente aqui que o discurso dos fins da pena passa a ser
hegemonizado pelo discurso cientificista da prevenção especial positiva (ideologia
do tratamento e recuperação do delinqüente) baseado na defesa social.
A Criminologia se converterá, assim, com o princípio da
"individualização da pena", os conceitos de periculosidade e as classificações dos
delinqüentes etc., em Ciência auxiliar da aplicação judicial do Direito Penal
(individualização da pena) e a partir de então

"(...) a sentença que condena ou absolve não é simplesmente um


julgamento de culpa, uma decisão legal que sanciona; ela implica uma
apreciação de normalidade e uma prescrição técnica para uma
normalização possível. O juiz de nossos dias - magistrado ou jurado -
faz outra coisa, bem diferente de 'julgar'. E ele não julga mais sozinho.
Ao longo do processo penal, e da execução da pena, prolifera toda uma
série de instâncias anexas." (FOUCAULT, 1987, p.24)

Doravante, a observação do delinqüente deve remontar não só às


circunstâncias, mas às causas do seu crime; procurá-lo na história de sua vida,
sob o triplo ponto de vista da organização, da posição social e da educação, para
conhecer e constatar as inclinações perigosas da primeira, as predisposições
nocivas da segunda e os maus antecedentes da terceira. Esse inquérito biográfico,
antes de converter-se em condição do sistema penitenciário, é parte essencial da
instrução judiciária, para a aplicação da pena. Deve, portanto, acompanhar o
detento do tribunal à prisão, mas igualmente completar, controlar e retificar seus
elementos no decorrer do cumprimento da pena. (LUCAS, citado por
FOUCAULT, 1987, p.223-4)
Tanto na aplicação quanto na execução da pena o infrator não é mais
considerado unicamente como o autor de seu ato (responsável em razão de
certos critérios da vontade livre e consciente), mas é amarrado a ele por um
feixe de fios complexos (instintos, pulsões, tendências, temperamento). Ambas se
exercem não apenas sobre a relação de autoria, mas sobre a relação de afinidade
do criminoso com seu crime.
De qualquer modo, se a sentença passa a se inscrever entre os
discursos do saber esta exigência do saber criminológico não se insere, em
primeira instância, no aparelho judicial, para melhor fundamentar a sentença e
determinar a medida da culpa mas, sobretudo, no aparelho penitenciário, pois "é
como condenado, e a título de ponto de aplicação de mecanismos punitivos que o
infrator se constitui como objeto de saber possível."189 (FOUCAULT, 1987,
p.223 e 227).
Nesta perspectiva é a colonização do controle penal pelo poder
disciplinar que conduz à hegemonia da prisão como método punitivo e à
constituição do saber criminológico, no qual passa a se apoiar.
Ao mesmo tempo em que a prisão se impõe como a resposta penal por
excelência do moderno sistema penal e logo justifica-se a sua utilidade, o
condenado torna-se um indivíduo a conhecer - e modificar - no laboratório
prisional; um objeto criminológico demarcado desde o seu interior e o seu
exercício de poder.
É que a prisão

"(...) não tem só que conhecer a decisão dos juízes e aplicá-la em


função dos ordenamentos estabelecidos: ela tem que coletar
permanentemente do detento um saber que permitirá transformar a
medida penal em uma operação penitenciária; que fará da pena
189 .FOUCAULT (1987, p.226-7) lembra que não sendo a prisão um elemento endógeno no sistema
penal definido entre os séculos XVIII e XIX, já que uma semio-técnica geral da punição que
sustentou os códigos 'ideológicos' - becccarianos ou benthamianos - não fazia apelo ao seu uso
universal, a moderna justiça penal "adota" portanto uma filha que não vem do seu ideário, mas de
outro lugar: dos mecanismos próprios de um poder disciplinar que, no seu próprio exercicio,
"fabrica" o "delinqüente" ( com o concurso de Ciências - Criminologia, Psiquiatria etc.) como um
sujeito distinto do "condenado" que a Justiça lhe entrega.
Assim "a técnica penitenciária e o homem delinqüente são de algum modo irmãos gêmeos.(...) Elas
aparecem as duas juntas e no prolongamento uma da outra como um conjunto tecnológico que
forma e recorta o objeto a que aplica seus instrumentos.É então que os criminologistas se impõem."
(FOUCAULT, 1987, p.226)
Desta forma, ao mesmo tempo em que a prisão marca para a história da Justiça Penal seu acesso à
'humanidade', marca simultaneamente "um momento importante na história desses mecanismos
disciplinares que o novo poder de classe estava desenvolvendo: o momento em que aqueles
colonizam a instituição carcerária. (FOUCAULT, 1987, p.207)
E as "disciplinas" constituem uma espécie de infradireito e contradireito, cujo papel preciso é
introduzir assimetrias insuperáveis e excluir reciprocidades de forma que, "na passagem dos dois
séculos, uma nova legislação define o poder de punir como uma função geral da sociedade que é
exercida da mesma maneira sobre todos os seu membros, e na qual cada um deles é igualmente
representado; mas ao fazer da detenção a pena por excelência, ela introduz processos de
dominação característicos de um tipo particular de poder. Uma justiça que se diz 'igual', um
aparelho judiciário que se pretende 'autônomo', mas que é investido pelas assimetrias das sujeições
disciplinares, tal é a conjunção do nascimento da prisão, 'pena das sociedades civilizadas'."
(FOUCAULT, 1987, p.207)
Assim, "Todo aquele 'arbitrário' que, no antigo regime penal, permitia aos juízes modular a pena e
aos príncipes eventualmente dar fim a ela, todo aquele arbitrário que os códigos modernos
retiraram do poder judiciário, vemo-lo se reconstituir, progressivamente, do lado do poder que
gere e controla a punição. Soberania sábia do guardião."(FOUCAULT, 1987, p.220)
tornada necessária pela infração uma modificação do detento, útil para
a sociedade. A autonomia do regime carcerário e do saber que ele torna
possível permitem multiplicar essa utilidade da pena que o código
colocara no princípio de sua filosofia punitiva." (FOUCAULT, 1987,
p.223)

A linha de objetivação do criminoso arrasta consigo, portanto, a


multiplicação das instâncias da decisão judiciária, prolongando-a muito além da
sentença;o fracionamento do poder legal de punir por pequenas justiças e juízes
paralelos que se multiplicaram em torno do julgamento principal. (FOUCAULT,
1987, p.24)
E o poder e autonomia doravante conferidos aos agentes da execução
penal na sobre individualização da pena retirou do poder penal (judicial) a
autoridade imediata que detinha sobre sua aplicação. É o julgamento daqueles
(entendido como constatação, diagnóstico, caracterização, precisão, classificação
diferencial) e não mais um veredito em forma de determinação da culpa, que deve
servir de suporte a essa modulação interna da pena - à sua atenuação ou mesmo à
sua interrupção. (FOUCAULT, 1987, p.21)
Resumindo, diz FOUCAULT (1987, p.25):

"(...) desde que funciona o novo sistema penal - o definido pelos grandes
códigos dos séculos XVIII e XIX - um processo global levou os juízes a julgar
coisa bem diversa do que crimes; foram levados em suas sentenças a fazer
coisa diferente de julgar; e o poder de julgar foi, em parte, transferido a
instâncias que não são as dos juízes de infração. A operação penal inteira
encarregou-se de elementos e personagens extrajurídicos."

Se a técnica jurídica se exerce até o limite da sentença, com a


Criminologia e a técnica penitenciária um "exército inteiro de técnicos veio
substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento."(FOUCAULT, 1987,
p.16)
Junto com os criminólogos, guardas, médicos, assistentes sociais,
psiquiatras, psicólogos, educadores vem disputar o monopólio do poder penal
detido pelos juristas e os juízes. É então que o sistema penal é dominado pela
especialização científica e a profissionalização.
É chegado pois o dia, no século XIX, em que o 'homem' (re)descoberto
no criminoso, se tornou o alvo da intervenção penal, o objeto que ela pretende
corrigir e transformar, o domínio de Ciências e práticas "penitenciárias" e
"criminológicas". Diferentemente da época das luzes em que o homem foi posto
como objeção contra a barbárie dos suplícios , como limite do Direito e fronteira
legítima do poder de punir, agora o homem é posto como objeto de um saber
positivo. Não mais está em questão o que se deve deixar intacto para respeitá-lo,
mas o que se deve atingir para modificá-lo. (FOUCAULT, 1987, p.70)
A objetivação do criminoso, originariamente colocada sob suspensão,
corresponde agora a uma ressignificação do homem sob o domínio, a um só
tempo, da prisão e do cientificismo.
Assim, enquanto a trajetória que vai do saber clássico ao dogmático -
objetivação do crime - é demarcada em torno e contributo essencial de uma
"semiotécnica punitiva" (estratégia de justificação e legitimação do sistema penal
pela legalidade) a chegada ao saber criminológico é demarcada em torno e
contributo essencial de uma "anatomia política do corpo" (estratégia de
legitimação utilitarista do sistema penal pela defesa social).
E é este trânsito que permitirá recruzar, na figura do "delinqüente" e
com a caução das Ciências as duas linhas divergentes de objetivação formadas
no século XVIII: a que rejeita o criminoso para o outro lado - o lado de uma
natureza contra a natureza; e a que procura controlar a delinqüência por uma
anatomia calculada das punições. Neste entrecruzamente, o infrator da lei e o
objeto de uma técnica científica se superpõem aproximativamente. (FOUCAULT,
1987, p.93 e 226)
E esta transição corresponde, precisamente, à segunda grande reforma
penal intervencionista no sentido da subjetivação 190 do poder de punir no marco
da qual se coloca, inicialmente, o problema da "luta" entre as Escolas penais
convertido, a seguir, no problema da relação "científica" entre a Dogmática Penal
e a Criminologia, quando o discurso da Ciência passa a dominar o estatuto do
saber penal chegando-se à consolidação do modelo integrado das Ciências Penais
que perdura oficialmente até nossos dias.

- O princípio da seleção: do fracasso (das funções declaradas) ao sucesso


(das funções latentes e reais) da prisão

Pela via da distinção entre objetivos oficialmente declarados e


objetivos latentes e reais do sistema penal FOUCAULT chega ao tema da
seleção e a uma conclusão fundamental:

"Não há uma justiça penal destinada a punir todas as práticas ilegais e que,
para isso, utilizasse a polícia como auxiliar, e a prisão como instrumento
punitivo, deixando no rastro de sua sombra o resíduo inassimilável da
'delinqüência'. Deve-se ver nessa justiça um instrumento para o controle
diferencial das ilegalidades.
...............................................................................................................
Os juízes são os empregados, que quase não se rebelam, desse mecanismo.
Ajudam na medida de suas possibilidades a constituição da delinqüência, ou
seja, a diferenciação das ilegalidades, o controle, a colonização e a utilização
de algumas delas pela ilegalidade da classe dominante."(FOUCAULT, 1987,
p.248)

Numa economia-política o sistema penal deve ser visto "como um


instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las a
todas" de forma que a prisão deve ser recolocada, com toda a tecnologia
corretiva de que se acompanha, no ponto em que se faz a torsão do poder

190 . No pós-guerra passou a falar-se, contudo, na re-objetivação do poder punitivo.


codificado de punir, em um poder disciplinar de vigiar; no ponto que os castigos
universais das leis vêm aplicar-se seletivamente a certos indivíduos e sempre aos
mesmos. (FOUCAULT, 1987, p.82 e 196 )
Assim a prisão, ao aparentemente fracassar no seu objetivo declarado
de combater a criminalidade, não erra seu objetivo, ao contrário, ela o atinge na
medida em que

"(...) contribui para estabelecer uma ilegalidade visível, marcada, irredutível


a um certo nível e secretamente útil - rebelde e dócil ao mesmo tempo; ela
desenha, isola e sublinha uma forma de ilegalidade que parece resumir
simbolicamente todas as outras, mas que permite deixar na sombra as que se
quer ou se deve tolerar. Essa forma é a delinqüência propriamente dita."
(FOUCAULT, 1987, p.243)

O atestado de que a prisão fracassa em reduzir a criminalidade pode


assim ser substituído pela hipótese de que a prisão produziu exitosamente a
delinqüência e de que seu sucesso consistiu, nas lutas em torno da lei e das
ilegalidades, em especificar uma delinqüência, a qual, na condição de
"ilegalidade dominada, é um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes."
(FOUCAULT, p.244 e 246)
A lógica que desde a fundação do sistema penal orienta o seu
funcionamento é a da diferenciação ou seleção de pessoas ( delinqüentes -
delinqüência ) e neste sentido, como aduz COHEN (1988, p.134-5) na esteira do
próprio FOUCAULT,

"Desde a fundação do sistema de controle, um princípio único tem governado


cada forma de classificação, eleição, seleção, diagnóstico, tipologia e política.
É o princípio estrutural da oposição binária: como separar os bons dos maus,
os escolhidos (predestinados) dos condenados, as ovelhas das cabras, os
rebeldes dos dóceis, os tratáveis dos intratáveis, os de alto risco dos de baixo,
os que valem a pena dos que não valem; como saber quem pertence ao
extremo profundo, quem ao extremo superficial, quem é duro e quem é mole.
Cada decisão individual no sistema - quem será escolhido? representa e cria
este princípio fundamental de bifurcação. Os julgamentos binários
particulares que chegaram a dominar o sistema presente - quem deve ser
mandado para fora da instituição de custódia e quem deve permanecer, quem
deve ser derivado e quem inserido - são só exemplos desta estrutura profunda
em funcionamento. E se ignorarmos as decisões individuais e olharmos o
sistema como um todo - como se estende e propaga - veremos como esta
mesma bifurcação preside todos seus movimentos."

3. O saber oficial como saber do sistema de controle sócio-penal:


ressignificando a "luta" entre as Escolas clássica e positiva e a disputa
Criminodogmática (contradição teórica interna e convergência
funcional)

Vimos assim como a genealogia foucaultiana reconstrói os modelos


penais fundamentais (centralização, racionalização e burocratização;
especialização, categorização, encarceramento e mente)191 que caracterizam o
moderno sistema de controle penal demonstrando como se configuram através de
um complexo e cumulativo processo de objetivação do crime e do criminoso
dinamizado pela espiral poder-saber e cuja trajetória, aduzimos, vai da
consolidação de um controle penal liberal à transição para um controle
intervencionista na Europa.
E, ao fazê-lo, evidencia que é no horizonte de projeção deste sistema
que o moderno saber penal (clássico, dogmático e criminológico) adquire sua
significação plena, na medida em que é não apenas por ele condicionado e co-
constitutivo de sua identidade mas co-participa, decisivamente, de seu complexo
exercício de poder. O poder produz o saber adequado ao seu domínio e o
saber reproduz o poder a que corresponde, nas relações entre classes e grupos
sociais.
Na esteira de FOUCAULT, portanto, ressignificada fica, desde seus
objetivos latentes e reais, isto é, econômica e politicamente, aquela trajetória do
191 . Explicitados no item "2" do quarto capítulo.
saber penal filosófico e totalizador a um modelo integrado de Ciências Penais
baseado na especialização e neutralidade científicas,192 ao mesmo tempo em que
evidenciada a profunda complementariedade funcional do saber criminológico
em relação ao saber clássico e dogmático e do Direito Penal do autor em relação
ao Direito Penal do fato. Pois aquela segunda reforma penal (intervencionista) não
representa uma negação, mas um continuum em relação às bases fundacionais
do sistema.
Na medida em que se trata, no sistema penal de gerir diferencialmente a
criminalidade e de por em circulação social sinais de punição perfeitamente
ajustados, sem excessos nem lacunas, esta gerência requer o diferencial no
marco do universal, fazendo com que a codificação do sistema delitos-punições
e a individualização do par criminoso-punição caminhem juntos e se chamam um
ao outro. A universalidade e igualdade postulada pelo "jurídico" requer o
diferencial que o "criminológico" inscreve no seu interior.
Assim, enquanto a Dogmática penal estabelece o universo do Direito
Penal do fato como referente para a ação do sistema penal e garanta do indivíduo
sem distinções; a Criminologia se assenta na defesa da sociedade contra o
indivíduo diferente, o indivíduo perigoso, sentando as bases para um (contra)
Direito Penal do autor e a estigmatização de certos indivíduos. Enquanto do saber
jurídico o sistema recebe o instrumental conceitual para delimitar as decisões
judiciais em torno da conduta do autor em relação ao fato-crime e o discurso de
legitimação pela legalidade ; do saber criminológico recebe o instrumental
conceitual para decisões judiciais e penitenciárias fundadas na pessoa do autor e o
discurso de legitimação científico-utilitarista, isto e, da defesa social contra a
delinqüência. O exercício de poder do sistema - a seleção de pessoas - não se

192 . A respeito ver item "10" do segundo capítulo.


desenvolve, portanto, não obstante esta contradição, mas desde o seu interior, isto
é, através dela.
Desta forma, se o conflito escolar opunha a constelação da codificação
(fato) à constelação da individualização (autor) que a segunda reforma penal
intervencionista veio a resolver a favor da complementariedade código-
individualização, se define, para além dela, o lugar dos saberes "do" e "no"
sistema penal. Enquanto incumbirá à Dogmática Penal mediar, na aplicação da lei
penal, entre codificação e individualização, a Criminologia estará interpelada a
auxiliar na individualização e, fundamentalmente, a orientar a execução penal.
É por isso que, aduzimos, a Criminologia pode se tornar uma Ciência
apenas "auxiliar " da Dogmática Penal na aplicação do Direito Penal pois se
seu saber tecnológico auxilia "juízos de prognose" no ato de sentenciar o seu
locus prioritário é o da execução penal, onde também se engendrará o chamado
"Direito penitenciário".
Se teoricamente existiu, de fato, uma "luta" escolar, da perspectiva
funcional do exercício e legitimação do poder penal tanto a "luta" originária entre
a Escolas Clássica e Positiva, quanto a sucessiva disputa Criminodogmática
seriam uma falsa questão. A Criminologia e a Dogmática Penal foram, pois, os
paradigmas oficiais que deram continuidade, instrumentalizando/legitimando o
controle penal - àquela contradição-complementariedade originária entre fato e
autor, demarcada no universo de luta entre as escolas.

- A convergência tecnológica e legitimadora da Dogmática Penal e da


Criminologia como Ciências do controle
Nesta perspectiva fundamentada fica uma reinterpretação geral do
moderno saber penal como saber do sistema de controle sócio-penal e, mais
estritamente, podemos pontualizar agora que a Dogmática Penal e a Criminologia
constituem, para além de duas instâncias científicas externas "sobre",
respectivamente, o Direito Penal e a Criminalidade, duas instâncias internas e
funcionais ao sistema, com um duplo código (tecnológico e legitimador). E
ambas não apenas colocam seu saber tecnológico ao serviço dos objetivos
declarados do sistema mas produzem (e reproduzem) o próprio discurso interno
que os declara, consubstanciando uma imagem do sistema dominada por tal
racionalidade. Neste sentido, a sua contribuição para a racionalização do sistema
é, sobretudo, uma contribuição legitimadora (auto-legitimação oficial).
Assim, embora da instrumentalização e legitimação jurídica à
parajurídica convivam discursos internamente incompatíveis entre si esta
incompatibilidade teórica nunca se traduziu em prática. Ao contrário, trata-se de
uma de uma divisão do trabalho "científico" funcional ao exercício e legitimação
do poder punitivo.

- Ressignificando a consolidação da Dogmática Penal

Definitivamente podemos dizer agora que a consolidação da Dogmática


Penal somente adquire sua significação plena quando se relaciona o campo do
moderno saber penal em que se projeta - da herança iluminista à juspositivista -
com o campo do moderno poder penal e do sistema em que se institucionaliza.
Nesta perspectiva, as potencialidades ambíguas das promessas
dogmáticas estão inscritas em sua própria gênese pois o mesmo discurso e
instrumental dogmático declarado ao serviço de uma função instrumental
racionalizadora/garantidora potencializa, contraditoriamente, uma função
instrumental de outra lógica de funcionamento do sistema e a sua própria
legitimação. Vale dizer que a função instrumental declarada da Dogmática Penal
bifurca-se nesta ambigüidade em que reingressam precisamente as exigências de
dominação capitalista neutralizadas em seu discurso, ao centrar-se no pólo "de
Direito" do Estado moderno. Estamos, portanto, diante de uma função
instrumental e legitimadora latente da Dogmática Penal.
Conseqüentemente, se o Direito Penal moderno e sua Dogmática
nascem reativamente contra os excessos de violência punitiva e déficit de
garantismo da antiga Justiça Penal e, neste sentido, contém potenciais
garantidores do indivíduo para a moderna Justiça Penal; 193 ao mesmo tempo
conformam, positivamente, um novo modelo de controle penal inserido numa
nova lógica de dominação.
Desta forma, como pondera BUSTOS RAMÍREZ (1987, p.538) se não
se pode subestimar, por um lado, o legado da Dogmática Penal traduzido na
"construção de uma rede de garantias e restrições à intervenção do Estado nos
direitos do indivíduo, em sua liberdade e dignidade pessoal ", por outro lado é
necessário reconhecer que

"(...) tal conjunto de garantias carecem de conteúdo e significação se não se


pensa ao mesmo tempo que o Direito Penal está inserido no exercício de
controle de um Estado determinado e, portanto, não pode ser concebido
prescindindo da realidade em que se movem os cidadãos aos quais se aplica.
De outro modo, o melhor Direito Penal garantidor concebido não passa de
uma pura ficção ou bons pensamentos de uns bons juristas."

Trata-se, a Dogmática Penal, não apenas de um saber visceralmente


político mas politicamente inscrito na contradição básica do controle penal:

193 . Como afirmamos no item "5" do terceiro capítulo.


exigências de dominação e legitimação e exigências de segurança jurídica
individual e neste sentido é que se trata de uma Ciência funcionalmente ambígua
do controle penal. 194
Importa avaliar, pois, como esta ambigüidade tem se resolvido, ao
longo de sua vigência na trajetória da modernidade. Pois a indagação
fundamental a que nos propomos responder, agora redimensionada, continua
sendo se a Dogmática Penal tem possibilitado exercer o controle penal com
segurança. (KAISER, 1983, p.85)
Para tanto, incumbe aprofundar a análise sobre a operacionalidade e a
lógica de funcionamento do sistema penal pela própria via entreaberta por
FOUCAULT: a do controle diferencial da criminalidade.

4. Operacionalidade do sistema penal: da seletividade quantitativa à sele-


tividade-qualitativa como lógica de funcionamento do sistema penal

Guardadas suas especificidades analíticas internas há assim um ponto


de aproximação fundamental entre a genealogia foucaultiana e a Criminologia da
reação social: a tese da produção (diferencial ou seletiva) da criminalidade pelo
sistema penal, então caracterizado como instrumento de gerência diferencial das
ilegalidades pela primeira ou como instrumento de criminalização seletiva pela
segunda. 195

194 .Neste mesmo sentido pondera BUSTOS RAMÍREZ (1983, p.31), que a contradição da
Dogmática Penal consiste em que se por um lado nasce como um limite do Estado e uma garantia
do indivíduo, por outro pode ser utilizada como mera técnica de dominação.

195 . Neste particular, FOUCAULT, opondo igualdade jurídica universal e disciplina, poder jurídico
(Justiça) como produtor da condenação e poder disciplinar-normalizador (Prisão) como produtor
da delinqüência atribui à prisão e ao poder disciplinar nela exercido uma função central na
produção de uma "ilegalidade separada e útil" e daí a idéia do sistema penal como controle seletivo
da criminalidade.
E é precisamente esta lógica seletiva de operar radicada na
construção do universo da criminalidade mediante a diferenciação ou seleção de
pessoas, que FOUCAULT põe em evidência desde a fundação do sistema penal
que ocupará, da Criminologia da reação social à Criminologia crítica, por isso
mesmo chamada em seu conjunto de "Criminologia da seleção"196 (DIAS e
ANDRADE, 1984, p.386-7) a atenção central e receberá neste marco teórico uma
fundamentação decisiva e hoje considerada irreversível.
São seus resultados a este respeito que circunscrevem especialmente o
nível de investigação da "criminalização secundária" 197 - que nos interessa num
primeiro momento focalizar para o que iniciamos retomando os principais
argumentos, também já indicados, em que se fundam : a) o papel criador do juiz,
b) a cifra negra da criminalidade e c) a criminalidade de colarinho branco.

4.1. Fundamentos básicos

A Criminologia da reação social, por sua vez, cuja orientação subscrevemos aqui, trata de
demonstrar que a criminalidade é seletivamente construída pela inteira dinâmica do controle sócio-
penal e que o conjunto das agências formais de controle - e não apenas a prisão - concorrem
nesta construção. E neste sentido, tanto relativiza a centralidade que FOUCAULT atribui à prisão
na produção da delinqüência quanto demonstra que inexiste a oposição condenação igualitária x
execução penal disciplinar e assimétrica, totalizadora da vida do criminoso. Pois, a construção
seletiva da criminalidade antecede e atravessa inteiramente à Justiça. E neste sentido as variáveis
relativas ao autor criminoso têm um peso muito maior na sentença penal do que FOUCAULT lhe
atribui.
Obviamente que há que se levar em conta aqui o que já salientamos na nota nº "28" do capítulo
quarto: a genealogia de Foucault se ocupa de explicar a função da prisão na gênese do moderno
sistema penal. Daí sua ênfase na sua função educativa e disciplinar que hoje se reduz a pura
ideologia.
As teorias do labelling approach são explicativas do funcionamento atual do sistema penal e neste
contexto também se explicam suas teorias sobre as "carreiras criminosas" (desvio secundário) e
todas as demais hoje voltadas para as funções simbólicas da pena.

196 .Expressão que utilizaremos ocasionalmente para designar ambas as Criminologias ao mesmo
tempo.
197 . Conforme indicamos no item "6.2" do capítulo anterior.
- O papel criador do juiz e dos demais agentes do controle social

A teoria do papel do juiz como criador do Direito há muito está no


centro do interesse das correntes antiformalistas e realistas da Jurisprudência.
Nela se expressa a idéia de que a lei não pode assegurar por completo e com toda
a clareza sua própria aplicação, dando margem à incidência de regras, princípios e
atitudes subjetivas do intérprete quanto então, e somente então, adquire seus
precisos contornos. A lei é vista, nesta perspectiva, como um "projeto de
Direito". (BASTOS, 1991, p.58-9)
Aplicando esta teoria para os operadores da criminalização secundária
(polícia, ministério público, juízes) os teóricos da reação social sustentam que a
definição da conduta desviada não se resolve definitivamente no momento
normativo. Nem a aplicação das definições à realidade - ao caso concreto - é um
problema secundário, de lógica formal (subsunção). Ao contrário, a lei penal
configura tão só um marco abstrato de decisão, no qual os agentes do controle
social formal desfrutam ampla margem de discricionariedade na seleção que
efetuam desenvolvendo uma atividade criadora proporcionada pelo caráter
"definitorial" da criminalidade Nada mais errôneo que supor - como faz a
Dogmática Penal - que detectando um comportamento delitivo seu autor resultará
automática e invitavelmente etiquetado. Pois, entre a seleção abstrata, potencial e
provisória operada pela lei penal e a seleção efetiva e definitiva operada pela
instâncias de criminalização secundária, medeia um complexo e dinâmico
processo de refração.
Assim a polícia, o ministério público e os juízes, que devem se ater à
programação legal nas suas tarefas de investigação, acusação e sentenciamento
operam com ela de um modo dispositivo, pois não tomam (e nem podem tomar)
as definições legais de crime independentemente deles, mas desde suas
particulares concepções acerca da fronteira entre a conduta delitiva e a não
delitiva. (HASSEMER, 1984, p.83 e PABLOS DE MOLINA, 1988, p.596; DIAS
e ANDRADE, 1984, p.366)

- A criminalidade de colarinho branco

Já em seu clássico artigo White-Collar Criminality SUTHERLAND


(1940) mostrava, com apoio de dados extraídos das estatísticas de vários órgãos
americanos competentes em matéria de economia e comércio, a impressionante
proporção das infrações a normas gerais praticadas neste setor por pessoas
colocadas em posição de alto prestígio social, bem como analisava as causas do
fenômeno, sua ligação funcional com a estrutura social e os fatores que
explicavam a sua impunidade. Posteriormente, em um artigo sugestivamente
intitulado Is 'White-Collar Crime' Crime? SUTHERLAND (1945), mostrando
uma visão mais sofisticada da criminalidade do que a do paradigma etiológico -
que antecipava até a visão do labelling - indagava precisamente se, devido àquela
impunidade, eram crimes, os crimes de colarinho branco?.
Instaurada assim ficava a sua investigação. Por outro lado, as
proporções da criminalidade de colarinho branco ilustradas por SUTHERLAND e
que remontavam aos decênios precedentes, provavelmente aumentaram desde que
ele escreveu seu artigo. Elas correspondem a um fenômeno criminoso
característico não só dos Estados Unidos da América do Norte, mas de todas as
sociedades de capitalismo avançado. (BARATTA, 1991a, p.101)

- A cifra negra da criminalidade:desqualificação das estatísticas criminais


para a quantificação da criminalidade real e reapropriação para a
quantificação da criminalização e análise da lógica do controle penal
Também há várias décadas, a atenção dos criminólogos se viu atraída
para um fenômeno que, num enfoque ainda não especificamente crítico do sistema
penal, foi chamado de "cifra negra", "cifra obscura" ou "zona obscura" (dark
number) da criminalidade, designando a defasagem que medeia entre a
criminalidade real - isto é, as condutas criminalizáveis efetivamente praticadas - e a
criminalidade estatística (oficialmente registrada). (HULSMAN, 1993, p.64-5,
HASSEMER e COÑDE,1989, p.46-7).
Pois,
"Entre o acontecer do crime e o seu registro estatístico, aquele é submetido à
ação erosiva e transformadora de múltiplas vicissitudes, que tornam a
conversão do 'crime real' em ' crime estatístico' altamente contingente."
(DIAS e ANDRADE, 1984, p.132-3)

As estatísticas criminais oficiais 198, que tem representado desde sempre


e sobretudo depois da chamada Escola franco-belga, um instrumento básico da
investigação criminológica versam sobre a atividade da polícia, do Ministério
Público, dos Tribunais ou da Administração penitenciária. E tradicionalmente têm
servido de base: a) para a quantificação da criminalidade real (manifestações,
volume, flutuações); b) para cálculos ajustados acerca dos custos morais e
materiais do crime (índices de criminalidade); e c) para a construção e
comprovação de teorias científicas.
A revelação da criminalidade de colarinho branco e da cifra negra que a
inclui, mas a transcende, conduziu à desqualificação do valor das estatísticas
oficiais na quantificação da "criminalidade real" pelo reconhecimento de que

198 .Isto é, os registros relativos à atividade das agências do sistema penal, nos limites de uma dada
circunscrição e publicadas por regularidade.
"(...) o certo é que a estatística criminal não informa quase nada a respeito da
chamada 'criminalidade real', mas proporciona dados bem precisos sobre a
magnitude e qualidade da criminalização (Pilgram), aspecto que de modo
algum pode descuidar-se." (ZAFFARONI, 1984)199

Inversamente, então, e na seqüência do labelling approach, as


estatísticas criminais adquiriram uma nova dimensão científica, como instrumento
privilegiado para o estudo da lógica do controle social, isto é, dos modelos de
comportamento das instâncias de controle e das suas específicas 'clientelas.'
(QUINNEY, 1973, p.118 et seq.)
Reapropriadas doravante como informativas dos resultados da
criminalização, as estatísticas criminais possibitaram também a conclusão de que
a cifra negra varia em razão da classe de estatística (policial,judicial ou
penitenciária): nem todo delito cometido é perseguido, nem todo delito perseguido
é registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela polícia; nem todo delito
averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento
termina em condenação.

4.2. A seletividade quantitativa: a imunidade e não a criminalização é a


regra no funcionamento do sistema penal

199 .Ainda consoante ZAFFARONI (1984a, p.144) "Nos países do capitalismo central a estatística
criminal assume o valor de dado bastante preciso acerca da criminalização, mas nos países do
capitalismo periférico a informação estatística só proporciona o conhecimento de um setor da
criminalização e da reação social, dado que outro fica à margem dela, como são as sanções não
institucionalizadas, isto é, desaparições forçosas e involuntárias (ONU I), execuções extralegais
(ONU II), torturas e tratos desumanos (ONU III e IV), o que é bastante freqüente na América
Latina (...) e no mundo, onde aumentam as violações aos Direitos Humanos, apesar das
manifestações declarativas [João Paulo II (I), Puebla]. Com esta última observação fica dito que as
estatísticas não registram os crimes do poder político e econômico, os que não só se 'filtram' no
sistema penal, mas que freqüentemente ficam fora do primeiro filtro, quer dizer, do primeiro nível
de seleção normativa abstrata."
- A criminalidade oculta e a redefinição do conceito corrente de
criminalidade: a criminalidade como conduta majoritária e ubícua e não
de uma minoria criminal

Os delitos não perseguidos, que não atingindo o limiar conhecido pela


polícia (pois não se realizam nas ruas por onde ela passa) nem chegam a nascer
como fato estatístico constituem a propriamente chamada criminalidade oculta,
latente ou não oficial. E embora se reconheça a dificuldade de fornecer números
precisos a seu respeito, e, por extensão, da criminalidade real, as diversas
investigações empíricas a respeito, ainda que parciais, são suficientemente
representativas para concluir que esta cifra negra "é considerável" (HULSMAN,
1993, p.65; BARATTA, 1991a, p.103) e que "a criminalidade real é muito maior
que a oficialmente registrada".200
Foi assim que as pesquisas sobre a criminalidade de colarinho branco e
a cifra negra201 que, incluem a primeira mas se referem, num plano generalizado, à
real freqüência e distribuição da criminalidade numa dada sociedade conduziram a
uma correção fundamental do conceito corrente de criminalidade
Desde o ponto de vista das definições legais de crime, a conduta
criminal é "majoritária" e "ubícua" (Sack) e portanto

200 . HASSEMER e COÑDE (1989, p.47) assinalam neste sentido que os dados mais importantes
sobre a cifra negra se resumem assim:
- a criminalidade real é muito maior que a oficialmente registrada;
- no âmbito da criminalidade menos grave a cifra obscura é maior que no âmbito da criminalidade
mais grave;
- a magnitude da cifra obscura varia consideravelmente segundo o tipo de delito;
- na delinqüência juvenil é onde se dá uma maior porcentagem de delinqüência com uma
relativamente menor quota sancionatória;
- a quota sancionatória é responsável também pelo fortalecimento de carreiras criminais;
- a impossibilidade de ficar na cifra obscura depende da classe social a que pertence o delinqüente.
201 . Entre as quais se incluem as pesquisas de 'autodenuncia' (self-reporter survey).
"(...) a criminalidade não é um comportamento de uma minoria restringida,
como quer uma difundida concepção (e a ideologia da defesa social ligada a
ela), mas, ao contrário, o comportamento de amplos estratos ou até da
maioria dos membros de nossas sociedades." (BARATTA, 1991a, p.103)

Tais revelações foram decisivas, por sua vez, para a conclusão de que
a "imunidade e não a criminalização é a regra no funcionamento do sistema penal"
(HULSMAN, 1986, p.127) pois há uma seletividade estrutural traduzida na
enorme distância que medeia entre a magnitude da abrangência da programação
penal e a capacidade operacional do sistema penal.
Neste sentido,

"O discurso jurídico-penal programa um número incrível de hipóteses e que,


segundo o "dever-ser", o sistema penal intervém repressivamente de modo
"natural"(ou mecânico). No entanto, as agências do sistema penal dispõem
apenas de uma capacidade operacional ridiculamente pequena se comparada
à magnitude do planificado. A disparidade entre o exercício de poder
programado e a capacidade operativa dos órgãos é abissal, mas se por uma
circunstância inconcebível este poder fosse incrementado a ponto de chegar a
corresponder a todo o exercício programado legislativamente, produzir-se-ia
o indesejável efeito de se criminalizar várias vezes toda a população.Se todos
os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as defraudações, todas
as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas as ameaças, etc.
fossem concretamente criminalizados, praticamente não haveria habitante
que não fosse, por diversas vezes, criminalizado." (ZAFFARONI, 1991, p.26)

Se o sistema penal concretizasse o poder criminalizante programado


"provocaria uma catástrofe social". E diante da absurda suposição -
absolutamente indesejável - de criminalizar reiteradamente toda a população, torna-
se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade
processual não opere em toda sua extensão. (ZAFFARONI, 1991, p.26-7)
Assim, tanto a maneira como a violência é "construída" como
problema social pelo sistema é parcial" (BARATTA, 1993, p.49) quanto

"O modo como o sistema da justiça criminal intervém sobre este limitado
setor da violência 'construído' através do conceito de crime é estruturalmente
seletivo. Esta é uma característica de todos os sistemas penais. Há uma
enorme disparidade entre o número de situações em que o sistema é chamado
a intervir e aquelas em que este tem possibilidades de intervir e efetivamente
intervém. O sistema de justiça penal está integralmente dedicado a
administrar uma reduzidíssima porcentagem da infrações, seguramente
inferior a 10%. Esta seletividade depende da própria estrutura do sistema,
isto é, da discrepância entre os programas de ação previstos nas leis penais e
as possibilidades reais de intervenção. A imunidade , e não a criminalização ,
é a regra no modo de funcionamento do sistema." (BARATTA, 1993, p.49)

As pesquisas sobre a cifra negra se voltam, pois, pondera HULSMAN


(1993, p.65), "contra o sistema: pode haver algo mais absurdo do que uma
máquina que se deva programar com vistas a um mau rendimento, para evitar que
ela deixe de funcionar?"

E tal descoberta constitui

"(...) um ponto de partida extraordinariamente importante, dentro de uma


reflexão global sobre o sistema penal.(...) Todos os princípios ou valores
sobre os quais o sistema se apóia (a igualdade dos cidadãos, a segurança, o
direito à justiça etc...) são radicalmente deturpados, na medida em que só se
aplicam àquele número ínfimo de situações que são os casos registrados."
(HULSMAN, 1993, p.66)

Concluem então no mesmo sentido HASSEMER e COÑDE (1989, p. 47-8)


que "quiçás o mais importante da 'cifra obscura' seja o mal-estar que produz numa
Administração de Justiça que, teoricamente, está obrigada a atuar de um modo
justo, tratando a todos por igual e impondo, acima de tudo, a legalidade."

4.3. A seletividade quantitativa-qualitativa

Mas além desta seletividade estrutural "quantitativa" há uma seletividade


"quantitativa-qualitativa" que é recriadora de cifras negras ao longo do processo
de criminalização.
É que o funcionamento seletivo do sistema penal não depende somente
da defasagem entre programas de ação (normas penais) e recursos disponíveis
do sistema para sua implementação, mas também de outra variável estrutural: a
especificidade da infração e as conotações sociais dos autores.

- As cifras negras internas ao processo de criminalização e a redefinição


do conceito corrente sobre a distribuição (estatística) e a explicação
(etiológica) da criminalidade

Desta forma, embora nascendo e acessado pela polícia, o delito nem


sempre é objeto de denúncia, julgamento e condenação. A elaboração social e
judicial do delito vai tornando-se cada vez mais precisa em cada nível, até chegar à
condenação de uma pessoa; mas também vai aumentando, em cada nível, a cifra
obscura. (HASSEMER e COÑDE,1989, p.47; DIAS e ANDRADE, 1984, p.133)
Assim também

"A passagem do crime de instância a instância (polícia-acusação-tribunal-


administração penitenciária) é inevitavelmente feita à custa da intervenção
de margens maiores ou menores de cifras negras.É nisto que se traduz o que
VAN VECHTEN designa por criminal case mortality." (DIAS e ANDRADE,
1984, p.133)

A criminalidade estatística não é, portanto, uma cópia da criminalidade


real, mas o resultado de um complexo "processo de refração" existindo entre
ambas um profundo defasamento não apenas quantitativo mas também aqui
qualitativo. Pois o "efeito-de-funil" ou a "mortalidade de casos criminais"
operada ao longo do corredor da delinqüência, isto é, no interior do sistema penal,
resulta da ampla margem de discricionariedade "seletiva" dos agentes do controle.
(DIAS e ANDRADE, 1984, p.132 e nota 97)
Neste sentido o processo de criminalização é, em todas as suas fases,
criador de cifras negras e, por isso, redutor dos contingentes de criminalidade.
Uma segunda conseqüência das pesquisas sobre a criminalidade de
colarinho branco e a cifra negra foi assim a desqualificação do valor
interpretativo das estatísticas criminais para a análise da distribuição da
criminalidade nos vários estratos sociais e fundamentação das teorias
criminológicas a esta vinculadas, conduzindo a uma segunda correção no conceito
corrente ("senso comum") sobre a distribuição (estatisticamente fundada) e
explicação (etiológica) da criminalidade.
É que sendo baseadas sobre e ilustrando apenas a criminalidade
identificada e perseguida (os resultados da criminalização) as estatísticas
criminais, nas quais a criminalidade de colarinho branco é representada de modo
enormemente inferior à sua calculável "cifra negra", sugeriram até agora um
quadro falso da distribuição da criminalidade nos grupos sociais ao mesmo
tempo em que distorceram as teorias da criminalidade baseadas nesta
distribuição. (BARATTA, 1991a, p.102)
Ao fundamentar um conceito corrente da criminalidade como
fenômeno pouco representado nos estratos superiores e concentrado sobretudo
nos estratos inferiores da sociedade as estatísticas criminais fornecem o substrato
para uma explicação da criminalidade vinculada

"(...) a fatores pessoais e sociais correlativos da pobreza, entre os que se


incluem, observa Sutherland, 'a doença mental, os desvios psicopáticos, a
habitação em slums, e a 'má' situação familiar da classe. Estas conotações da
criminalidade recaem não apenas sobre os estereótipos de criminalidade, os
quais, como indagações recentes demonstraram, influenciam e guiam a ação
dos órgãos oficiais, tornando-a desse modo socialmente 'seletiva', mas
também sobre a definição corrente que o homem da rua partilha, ignorante
das estatísticas criminais." (BARATTA, 1991a, p.108)

A correção fundamental desta distribuição estatística e explicação


etiológica da criminalidade circunscreve três pontos correlacionados.

- A criminalidade como conduta majoritária e ubicua mas desigualmente


distribuída: imunidade e criminalização orientadas pela seleção de
pessoas e não pela incriminação igualitária de condutas

Em primeiro lugar indica que se a conduta criminal é majoritário e


ubícua e a clientela do sistema penal é composta, regularmente, por pessoas
pertencentes aos estratos sociais mais baixos, a minoria criminal a que se refere
esta explicação etiológica (e a ideologia da defesa social a ela conecta) é o
resultado de um processo de criminalização altamente seletivo e desigual de
"pessoas" dentro da população total, enquanto que a conduta criminal não é, por
si só, condição suficiente deste processo. Pois os grupos poderosos na
sociedade possuem a capacidade de impor ao sistema uma quase que total
impunidade das próprias condutas criminosas. (BARATTA, 1982b, p.35 e 1993,
p.49)
Enquanto a intervenção do sistema geralmente subestima e imuniza as
condutas às quais se relaciona a produção dos mais altos, embora mais difusos
danos sociais (delitos econômicos, ecológicos, ações da criminalidade
organizada, graves desviantes dos órgãos estatais) superestima infrações de
relativamente menor danosidade social, embora de maior visibilidade, como
delitos contra o patrimônio, especialmente os que tem como autor indivíduos
pertencentes aos estratos sociais mais débeis e marginalizados. (BARATTA,
1991b, p.61)
Assim, se é bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo
estão povoadas por pobres, isto indica que há um processo de seleção de
pessoas às quais se qualifica como delinqüentes, e não, como se pretende, um
mero processo de seleção de condutas qualificadas como tais. (ZAFFARONI,
1987, p.22)
O sistema penal se dirige quase sempre contra certas pessoas, mais que
contra certas ações legalmente definidas como crime. (ZAFFARONI, 1987, p.32 e
BARATTA, 1991a, p.172)

- A seletividade como grandeza sistematicamente produzida: variáveis não


legalmente reconhecidas e mecanismos de seleção

Isto significa que imunidade e criminalização (recriadoras de cifras


negras internas ao longo do corredor da delinqüência) são condicionadas por
fatores e variáveis latentes relativas à "pessoa" do autor (e da vítima) que
transcendem o catálogo de elementos legais e oficiais que formalmente vinculam
a tomada de decisões das agências de controle.
Numerosas são assim as investigações desenvolvidas nos últimos anos,
em sua maioria associadas ao paradigma da reação social com o propósito de
demonstrar como tais variáveis (etnia, condição familiar, status social etc.) obtém
sua influência e condicionam a seletividade decisória dos agentes do sistema
penal: Polícia, ministério público,juízes 202.
Tratam-se de variáveis não legalmente reconhecidas e nem sequer
refletidas pelas agências de controle de profunda eficácia seletiva pois tem

202 .Uma expressiva resenha bibliográfica encontra-se em BARATTA, (1982b, p.43, nota 28,"c","d"
e "e" e p.50, nota 40).
"(...) um efeito sobre os resultados seletivos do sistema jurídico-penal que não
é em absoluto menor do que tem as variáveis oficialmente reconhecidas, ou
seja, aquelas que estão submetidas à obrigação de justificação e aos critérios
das ações profissionais." (BARATTA, 1982b, p.51)

Em segundo lugar e correlativamente a regularidade a que obedece a


distribuição seletiva da criminalidade (imunização das classes altas e
criminalização das baixas) conduziu à conclusão de que o

"(...) predomínio desproporcionado das classes inferiores nas instâncias de


controlo e nas estatísticas oficiais da criminalidade, não pode imputar-se ao
acaso, antes devem encarar-se como grandezas sistematicamente
produzidas." (DIAS e ANDRADE, 1984, p.385)

Daí a refutação do caráter fortuito desta seletividade pela atribuição de


sua constância às leis de um código social (second code, basic rules203 ) latente
integrado por mecanismos de seleção 204 dentre os quais têm se destacado a
importância central dos "estereótipos"205 de autores (e vítimas)206, associados às

203 .Conceitos que na seqüência, respectivamente, de McNAUGHTON-SMITH e CICOUREL


designam a totalidade do complexo de regras e mecanismos reguladores latentes e não oficiais que
determinam efetivamente a aplicação da lei penal pelos agentes do controle penal (A.TURK,
1969, p.39 et. seq.; BARATTA, 1982b, p.52).
204 .Com o conceito de mecanismos de seleção "designam-se os operadores genéricos que imprimem
sentido ao exercício da discricionariedade real das instancias formais de controle e permitem
explicar as regularidades da presença desproporcionada de membros dos estratos mais
desfavorecidos nas estatísticas oficiais da delinqüência, ou - como outros autores preferem - entre
os clientes das instâncias formais de controlo." (DIAS e ANDRADE, 1984, p.386-7)

205 . Os estereótipos, designados por KAR-DIETER OPP e A. PEUKERT por


"Handlungsleitenden Theorien" (teorias diretivas da ação) e por W.LIPPMAN por pictures in
our minds (imagens em nossa mente) são construções mentais, parcialmente inconscientes que,
nas representações coletivas ou individuais ligam determinados fenômenos entre si e orientam as
pessoas na sua atividade quotidiana, influenciando também a conduta dos juízes.
WALTER LIPPMAN, considerado o primeiro a refletir de forma sistemática sobre os
estereótipos, sublinha que o estereótipo perfeito precede o uso da razão, organizando os dados
dos nossos sentidos antes de atingirem a inteligência. Assim, os estereótipos ensinam-nos a
conhecer o mundo antes de o vermos. Não vemos antes de definir, mas definimos primeiro e só
depois é que vemos Imaginamos coisas antes de as experimentarmos. E estes prejuízos, se a
educação não nos proporcionar uma aguda consciência, comandam profundamente todo o
processo de percepção. Os estereótipos, indispensáveis à convivência humana como instrumentos
"teorias de todos os dias" (every days theories), isto é, do senso comum sobre a
criminalidade. (BARATTA, 1991a, p.188; DIAS e ANDRADE,1984, p. 388 e
553)
A heterogeneidade de variáveis decisórias extra-legais que se têm
procurado pôr em relevo em investigações globalizantes ou contextualizadas tem
recebido assim uma recondução unitária a uma imagem estereotipada e
preconceituosa da criminalidade que, pertencente ao second code da Polícia, do
Ministério Público e dos juízes condiciona suas subseleções que tem, por outro
lado, um caráter conservador e reprodutivo das assimetrias de que, afinal, se
alimentam os estereótipos. (DIAS e ANDRADE, 1984, p.546)
Pois,

de organização das expectativas que medeiam a interação, desempenham um papel determinante


na resposta à delinqüência, funcionando como um dos mais decisivos mecanismos de seleção.
Apesar de incoerentes nos seus elementos integradores e nas conexões que estabelecem entre os
fatos , como por exemplo, entre determinados estigmas e papéis sociais ou profissões, atitudes,
etc., os estereótipos mantêm grande coesão e isto verifica-se particularmente na reação social à
conduta desviada (deliqüência, doença mental, drogadismo, embriaguez, homossexualismo,
prostituição, etc) as quais surgem, nas representações coletivas, indissoluvelmente ligadas a um
certo número de estigmas exteriores que vão desde os locais freqüentados e horários de
freqüência, estilo de vestuário, cor da pele, origem étnica, situação familiar, condição social, etc.
até atitudes simbólicas próprias de um delinqüente, de um doente mental, drogado,ébrio,
homossexual ou de uma prostituta.
(A respeito ver DIAS & ANDRADE, 1984, p.347-8 (e nota 181), p.388-9 e 553; SCHUR,
1971, p.40 et seq.).
206 .De fato, "a intervenção estereotipada do sistema penal age tanto sobre a 'vítima',como sobre o
'delinqüente'. Todos são tratados da mesma maneira." (HULSMAN, 1993, p.83)
Assim como a imagem da delinqüência está associada a certos estigmas que indicam quem fica
dentro e quem fica fora do seu universo, a imagem da vitimização também o está.
Ilustrativamente, uma pesquisa documental levada a cabo no Brasil pelo Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher evidencia esta dupla esteriotipação na análise de sentenças penais relativas a
crimes de estupro. Reconstruindo desde o teor das sentenças penais as variáveis mediantes as
quais o juiz constrói o estereótipo do estuprador e da vítima que condicionam a decisão, esta
pesquisa demonstra que enquanto as mulheres cuja condição pessoal, familiar e social permite
estereotipá-las como "honestas" do ponto de vista sexual são consideradas vítimas; as que,pelas
mesmas variáveis, são estereotipadas como "desonestas", em especial as prostitutas não apenas
não são consideradas vítimas, mas podem passar da condição de vítimas à provocadoras ou
autoras do crime, especialmente se o autor não corresponder ao estereótipo de estuprador. Pois,
correspondê-lo, é condição fundamental para a condenação. (ARDAILLON e DEBERT, 1987)
De qualquer modo é o estereótipo do autor que tem sido mais enfatizado e considerado
determinante, nas investigações a respeito.
"(...) do que não se pode duvidar é da força persuasiva dos estereótipos e da
sua eficácia seletiva: eles operam claramente em benefício das pessoas que
exibem os estigmas da respeitabilidade dominante e em desvalor dos que
exibem os estigmas da associabilidade e do crime." (DIAS e ANDRADE,
1984, p.541)

E uma vez que os estereótipos de criminosos são tecidos por variáveis


(cor, condição familiar, posição na escala social) majoritariamente associadas a
atributos pertencentes a pessoas dos baixos estratos sociais, torna-os
extremamente vulneráveis, além de outros fatores concorrentes, a uma maior
criminalização.
Desta forma

"(...) a coerência intrínseca dos estereótipos ajuda a explicar que as


instâncias formais de respostas - de controle e de tratamento - recrutem
preferencialmente os seus 'clientes' entre os que exibem os respectivos
estigmas. Como ajuda outrossim a explicar o caráter reprodutivo de todos os
processos formais de resposta à desconformidade." (DIAS e ANDRADE,
1984, p.389)

- Da tendência (etiológica) de delinqüir à tendência (maiores chances) de


ser criminalizado

Foi assim que a descoberta deste código social extra-legal conduziu a


uma explicação da regularidade da seleção ( e das cifras negras) superadora da
etiológica: da tendência à delinqüir às maiores "chances" (tendência) de ser
criminalizado.
A clientela do sistema penal é constituída de pobres não porque
tenham uma maior tendência para delinqüir mas precisamente porque tem
maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinqüentes. As
possibilidades (chances) de resultar etiquetado, com as graves conseqüências que
isto implica, se encontram desigualmente distribuídas: é "o mesmo estereótipo
epidemiológico do crime que aponta a um delinqüente as celas da prisão e poupa
a outro os seus custos." (DIAS e ANDRADE, 1984, p.552)

- Funções reais da Criminologia positivista como Ciência do controle


penal: contributo tecnológico e legitimador

Neste explicação desconstrutora mais nítido também fica como opera


o código legitimador das teorias criminológicas etiológicas no universo de uma
legitimação utilitarista da pena (prevenção especial positiva) vinculada à idéia de
um controle científico da criminalidade em nome da sociedade (defesa social).
Na medida em que a Criminologia positivista encontra-se
metodologicamente dependente, na delimitação do seu objeto (a criminalidade),
das definições de crime e da seleção de criminosos pelo sistema penal (e das
estatísticas criminais) suas teorias etiológicas somente podem concluir por causas
indissociável e exclusivamente ligadas ao tipo de pessoas que integram a clientela
do sistema, buscando nelas todas as variáveis que expliquem sua diversidade
com respeito aos sujeitos normais, com exclusão, todavia, do próprio processo
criminalização, que aparece como o fundamento da diversidade. Com este
proceder, a Criminologia positivista contribui para ocultar com um véu
mistificador os mecanismos de seleção e estigmatização ao mesmo tempo em
que lhes confere uma justificação ontológica de base científica (ANDRADE, 1983,
p.36 e BARATTA,1982b, p.30)
Uma tal explicação da criminalidade mediante a qual pretendeu - contra
as justificações transcendentes e míticas do Antigo Regime - controlá-la e reduzi-
la, erigindo o delinqüente em destinatário de uma política criminal de base
científica (prevenção especial positiva) permitia assim
"(...) oferecer uma base de marginalização científica aos estratos inferiores.
Deste modo se dava uma aparência de racionalidade aos mesmos processos
de estigmatização que no Antigo Regime tiveram lugar sobre a base de
crenças ou adesões de fé. A verdade da ciência substituía a verdade da fé em
sua justificação da discriminação e desigualdade perante a lei penal. Não é
necessário acudir aos planteamentos da mais-valia para concluir que a
questão criminal não é congênita a um determinado grupo social." (BUSTOS
RAMÍREZ, 1987, p.18)207

Desta forma, ao mesmo tempo em que o código tecnológico da


Criminologia positivista opera nas decisões judiciais relativas à individualização
(juízos de prognose-periculosidade) e, sobretudo, nas decisões penitenciárias
relativas à execução da pena seu código ideológico legitima a seleção e
estigmatização que delas resultam.
Enfim, parece ser conseqüente ver nesta Criminoloigia uma matriz
significativa para a conformação de uma imagem estereotipada da criminalidade e
do criminoso (a qual condiciona a própria seleção) mediante as seguintes
representações que, de resto, imprimiu à ideologia da defesa social: a)
criminalidade ontológica; b) determinismo/periculosidade: distinção entre homens
normais e anormais/perigosos e identificação da delinqüência com a
anormalidade e periculosidade (o "mal"); c) identificação da violência com a
violência individual, que se encontra por sua vez no centro do conceito jurídico-
dogmático de crime, imunizando a violência institucional e estrutural.

- Seleção judicial

207 De fato, não é necessário porque bastaria, por exemplo, recorrer ao próprio SUTHERLAND e a
linha de investigação da criminalidade de colarinho branco por ele entreaberta.
Embora explicativa, nos termos antes aludidos, do conjunto das
decisões dos operadores do controle penal, uma teoria da criação judicial no
marco do paradigma da reação social se projetou, especialmente , como uma
Sociolocia (teórica e empírica) da seleção operada pelos juízes e tribunais em
cujo centro se encontram e assumem importância explicativa fundamental os
conceitos já aludidos.
Assim, se a teoria da criação judicial desde há muito colocou em
evidência que o espaço pelo qual a discricionariedade judicial ingressa é,
preliminarmente, pelo da vagueza e/ou ambigüidade da linguagem da lei208; se
projetada para o Direito Penal209 já permitiu evidenciar, por isto mesmo, a
debilidade do princípio da legalidade para cumprir uma função de garantia
(segurança jurídica); no marco da reação social ensejará a conclusão de que

"(...) não é possível preencher o 'programa' do legislador sem o contributo


dos concorrentes 'programas' do julgador, dos seus second codes que prestam
homenagem a estereótipos, ideologias e 'teorias'." (DIAS e ANDRADE, 1984,
p.509)

Mas tem se demonstrado que, para além de uma eficácia seletiva


conformadora do conteúdo normativo da lei (cabendo-lhe suprir suas vaguezas e
ambigüidades), o second code judicial tem uma eficácia seletiva conformadora,
reelaboradora e recriadora dos próprios fatos a processar e a sancionar como
crimes. (DIAS e ANDRADE,1984, p.366-370)
Isto significa que a eficácia dos mecanismos de seleção se manifesta na
atividade jurisdicional ao longo da multiplicidade de decisões que incumbem aos
208 .No
Brasil destaca-se nesta linha hermenêutica a formulação de uma "Semiologia do Poder" por
WARAT, ROCHA e CITTADINO (1984). Ver também WARAT (1982b)
209 .No
Brasil merecem referência neste sentido os trabalhos, entre outros, de CUNHA (1979),
BASTOS(1984, 1990, 1991 e 1993),WARAT (1982b), ANDREUCCI (1989), BRUM (1980).
juízes e tribunais: seja na fixação dos fatos, na sua valoração e qualificação
jurídico-criminal ou na escolha e quantificação da pena. (DIAS e ANDRADE,
1984, p.308)
Igualmente se tem colocado em relevo que em todos estes momentos
decisórios intervêm muitas assimetrias relativas não apenas às desigualdades
ancoradas nas estruturas sociais (de que se alimentam os estereótipos), mas
também relativas ao poder de interação, comunicação e expressividade e aos
níveis de credibilidade dos diferentes participantes. Neste sentido "não podem
subsistir dúvidas de que os indivíduos e os grupos sociais interagem em tribunal
em condições de insuperável desigualdade". (DIAS e ANDRADE, 1984, p.538 e
542 e 546)
Assim, seja na discricionariedade para fixação da verdade processual
dos fatos; seja na discricionaridade permitida pela vagueza ou ambigüidade da
linguagem da lei penal (especialmente verticalizada no caso dos chamados
elementos normativos do tipo, como "honestidade", "obscenidade" etc.); pela
ausência de parâmetros precisos na definição dos tipos penais (especialmente nos
chamados tipos abertos como os crimes culposos, omissivos impróprios etc.) e
para a individualização e fixação da pena em geral (especialmente nas hipóteses
de perdão judicial, tentativa, concurso formal e continuado etc.); seja pelas
lacunas ou antinomias do ordenamento jurídico; a interpretação judicial "postula
necessariamente a mediação das normas derivadas dos second codes dos juízes,
normas de natureza e impacto reconhecidamente seletivo." (DIAS e ANDRADE,
1984, p.548)
É de aduzir, neste sentido, que não apenas as normas penais se
ressentem de linguagem vaga e/ou ambígua e fluidez de limites incriminadores e o
ordenamento jurídico de contradições internas, mas também o instrumental
dogmático que a elas se superpõe se ressente das mesmas características
(conceitos igualmente imprecisos na fixação de parâmetros decisórios, teorias e
métodos internamente contraditórias) permitindo aumentar e não reduzir a
indeterminação normativa e a elasticidade decisória dando lugar a soluções
diferentes para casos iguais.210 Não obstante, tal circunstância é ocultada
precisamente pela afirmação de que a Dogmática possibilita maximizar a
uniformização e certeza das decisões judiciais. (BASTOS, 1990, p.52-9;
WARAT, 1989, p.102-3; POZO, 1988, p.40)
É importante assinalar ainda que a indeterminação do conteúdo dos
conceitos de imputabilidade e culpabilidade, erigidos pela Dogmática em
requisitos subjetivos para a responsabilidade penal211 tem, neste sentido,
centralizado a atenção da crítica pela constatação de que

"(...) não se vê como a culpabilidade, da qual não se pode medir


objetivamente o grau no processo, possa ser um limite da responsabilidade
penal e cumprir uma função de garantia a favor do processado com relação a
formas subjetivas, intuitivas e presuntivas de determinação dela."(BARATTA,
1988, p.6661-2)

No mesmo sentido HULSMAN (1993, p.67) observa que a


culpabilidade é uma noção grave e complexa que ninguém domina e com a qual
o sistema penal joga perigosamente. Por isso mesmo " o sistema penal fabrica
culpados".
Nesta perspectiva se tem negado o caráter ontológico dos conceitos
de imputabilidade e culpabilidade e reconhecido o seu caráter normativo ao
mesmo tempo em que se tem negado aos juízos de responsabilidade penal
neles fundados a qualidade de juízos "descritivos", para reconhecê-los como
juízos "atributivos", segundo a distinção de H.L.A HART. Tal reconhecimento

210 . Desenvolvidamente sobre tais contradições e abertura de soluções decisórias ver BASTOS
(1990, p.52-9) e WARAT (1989, p.102-3)
211 . A respeito deste conceitos ver item "6.1" do terceiro capítulo.
indica que com estes juízos não se "descrevem" qualidades existentes no
sujeito,212 mas que são atribuídas a ele as correspondentes qualidades.A
determinação da responsabilidade é, portanto, uma atribuição de responsabilidade
e os pressupostos de tal determinação são critérios normativos construídos pelo
Direito que correspondem não a fatos mas a tipos de fatos (tipos penais) que
condicionam "normativamente" e não "ontologicamente" a imputação de
responsabilidade. (BARATTA, 1988, p.6660)
Além disso,

"Dentro de uma sociologia do processo que utiliza o paradigma


interpretativo, a 'normativização dos critérios de determinação e valoração
da responsabilidade, se estendeu não só à culpabilidade e imputabilidade, mas
também a outras características do comportamento do sujeito como os
móveis e a atitude moral (Gesinnug). Todas as características sobre as quais
se baseia a motivação da sentença de condenação se revelam então como
qualidades atribuídas ao sujeito; enquanto as variáveis latentes da decisão
judicial que não acham correspondência na sentença e sua motivação, são
reportadas, na mais rigorosa investigação sociológica sobre o processo penal,
ao status social do processado e aos estereótipos de criminosos e
criminalidade dos quais são portadores os órgãos da justiça penal, como
também a opinião pública." (BARATTA, 1988, p. 6660)

Esclarecedoras neste sentido são as considerações de LUHMANN


(1980, p.53-9). Não obstante acentuar a dependência da decisão jurisdicional em
relação à programação previamente estabelecida pelo legislador, aponta a
incerteza ou indeterminação quanto ao resultado final do processo (em matéria
de fato e de direito) como uma nota essencial do processo moderno,
imprescindível à sua função legitimadora. Incertezas que, como vimos no capítulo
primeiro e reafirmamos aqui a própria Dogmática não faz reduzir, mas aumentar.
213

212 . Como a "possibilidade de conhecimento do injusto" e a "exigibilidade de conduta diversa",


elementos da concepção normativa da culpabilidade.
E simplesmente
"Num sistema que, pela sua diferenciação, se torna tão aberto a alternativas,
têm que desenvolver as técnicas eficazes correspondentes de selecão- ou
então chegam a utilizar-se, de forma latente, simplificações ilegais de forma
no sentido de que o juiz se deixa influenciar pela classe social diferente dos
restantes participantes, ou que ele se serve das suas experiências, que lhe
aparecem como modelo, que não apresenta para debate esses fundamentos
da sentença e que não os deixa aparecer na argumentação da opção."
(LUHMANN, 1980, p.58)

E estas razões (reais) das decisões, " fixam a apresentação dos


resultados, do trabalho e, simultaneamente, dirigem, num segundo plano, aquilo
que tem de ser feito para o estabelecimento da apresentação" mas não aparecem
na fundamentação formal da sentença, pois se

"(...) cada procedimento tem que principiar sob condição prévia de que
qualquer coisa pode, dentro do vasto quadro dos fatos gerais e conhecidos ser
outra coisa ( por fatos gerais e conhecidos entende-se: conhecidos do juiz
através de sua atividade oficial). A sentença não pode já ser tão facilmente
obtida a partir de preconceitos. No lugar de preconceitos têm que entre pré-
conceitos." (LUHMANN, 1980, p.58)

Nas decisões judiciais, pois, "os processos conscientes e legalmente


reconhecidos aparecem como um microcosmos, inscrito num macrocosmos só
parcialmente explorado." (BARATTA, 1982b, p.51)
Reencontramos aqui uma continuidade fundamental da Criminologia da
reação social em relação à genealogia foucaultiana, podendo-se constatar que
aquela levas às últimas conseqüências a radiografia interna do fenômeno mais
profundo que esta pôs em evidência.

213 . É, de resto, esta indeterminação (que permite a possibilidade de qualquer dos contendores
acreditar no triunfo de sua causa) que, a par da autonomia sistêmica e da diferenciação, distinguem
o processo moderno face àquele das sociedades arcaicas e pré-modernas.
É que, como demonstrou FOUCAULT, a inscrição oficial de um
(contra) Direito Penal do autor no interior de um Direito Penal do fato, via
individualização judicial (e penitenciária) da pena integrava necessariamente a
lógica de controle diferencial do moderno sistema penal e que o seu exercício de
poder - a seleção de pessoas - se desenvolve por dentro desta aparente
contradição. Assim sendo, o moderno sistema penal interpelou oficialmente os
juízes a ultrapassar o universo do Direito Penal do fato e fazer da sentença muito
mais do que um julgamento de culpa do autor pelo seu ato (responsável em
função de certos critérios da vontade livre e consciente) para buscar na biografia
do autor, um juízo de (a)normalidade e uma prescrição técnica para uma
normalização possível.
Ao radiografar o curso deste desenvolvimento a Criminologia da reação
social demonstra que da abertura (oficial) do sistema para o (contra) Direito Penal
do autor à sua colonização pelo criminoso estereotipado foi apenas um passo e,
se acrescente, amplamente preparado pela Criminologia positivista.

5. Da descrição da fenomenologia da seletividade à sua interpretação


estrutural: da desigualdade penal à desigualdade social

No marco da Criminologia crítica a descrição da fenomenologia da


seletividade pela Criminologia da reação social receberá uma interpretação
macrosociológica que, aprofundando a sua lógica, evidencia o seu nexo funcional
com a desigualdade social estrutural das sociedades capitalistas.
A Criminologia crítica irá sustentar, pois
"(...) que a seleção operada pelas instâncias de controle não reflete apenas a
dissonância organizacional daquelas instâncias antes reproduz, no plano da
justiça criminal, as linhas de fratura e conflito que, a nível macroscópico,
dominam cada formação social." (DIAS e ANDRADE, 1984, p.385-6)

É assim que SACK, 214 numa formulação auto-designada de


interacionista-marxista, explica o fenômeno da criminalidade oculta e da
regularidade do processo de seleção da população criminosa em relação à
estrutura macrosociológica.
Sustenta ele que embora os mecanismos reguladores da seleção da
população criminosa sejam complexos e também reconduzíveis às peculiaridades
de algumas infrações penais e das reações a elas correspondentes, desde uma
perspectiva macrosociológica mais geral da interação e das relações de poder
entre os grupos sociais, é possível reencontrar, por detrás deles, os mesmos
mecanismos de interação, de antagonismo e de poder que dão conta, em uma
dada estrutura social, da desigual distribuição de bens e de oportunidades entre
os indivíduos.
Por um lado, o poder de atribuir a qualidade de criminoso é detida por
um grupo específico de funcionários que, pelos critérios segundo os quais são
recrutados e pelo tipo de especialização a que são submetidos, exprimem certos
estratos sociais e determinadas constelações de interesses. Por outro lado, como
documentam as pesquisas relativas à cifra negra, a inserção em um papel criminal
depende, essencialmente, da condição social de que provém ou da situação
familiar a que pertence o desviante.
Isto não demonstra, como sustentado pela Criminologia positivista, que
a pertinência a um estrato social ou a uma situação familiar produzam no indivíduo
uma maior motivação para o comportamento desviante (por supostas anomalias
214 .Sobre o abaixo exposto sobre Sack nos baseamos em BARATTA, 1991a, p.104-9) e PABLOS
DE MOLINA, 1988, p.585 e 601-2.
ou carências) mas que uma pessoa que provém destas situações sociais deve ter
consciência do fato de que seu comportamento acarreta uma maior probabilidade
de ser definido e etiquetado como desviante ou criminoso pelos outros e
especialmente pelos detentores do controle penal, do que outra pessoa que se
comporta da mesma maneira, mas pertence a outra classe social ou a um milieu
familiar íntegro.De modo que as chances e riscos do etiquetamento criminal não
dependem tanto da conduta executada como da posição do indivíduo na
pirâmide social (status social).
Para SACK, portanto, seguindo as linhas gerais do paradigma da reação
social a criminalidade, como realidade social, não é uma entidade pré-constituída
em relação à atividade judicial, mas uma qualidade (etiqueta) por ela atribuída a
determinados indivíduos. E não apenas pela subsunção de sua conduta num tipo
penal de crime mas também, e sobretudo, conforme as meta-regras básicas (basic
rules)215 de que são portadores.
Em conseqüência, o processo de seleção tende a assegurar a
atribuição do status criminal de acordo com imagens e esteriótipos que, deste
modo, se perpetuam (modelo do círculo vicioso). 216 Os processos de
215 .Partindo da distinção entre "regras" e "meta-regras"; ou seja, entre as regras gerais e as regras (ou
práticas) sobre interpretação e aplicação das regras gerais SACK considera, na esteira de
CICOUREL, que as primeiras correspondem às "regras superficiais " e as segundas às "regras
básicas" (basic rules).
Se no âmbito da teoria da criação do Direito através do intérprete as meta-regras foram
concebidas principalmente como regras ou princípios metodológicos conscientemente aplicados
pelo intérprete SACK, juntamente com CICOUREL, deslocou-as do plano preceptivo da
metodologia jurídica para o plano objetivo sociológico As meta-regras básicas (basic rules) são
assim concebidas como regras objetivas do sistema social que, correspondendo às regras que
determinam a definição de desvio e de criminalidade no senso comum e seguidas conscientemente
ou não pelos aplicadores da lei, estão ligadas a leis, mecanismos e estruturas objetivas da
sociedade , baseadas sobre as relações de poder. Entre grupos e sobre as relações sociais de
produção. (BARATTA, 1991a, p.108)
216 .O recurso ao estereótipo desencadeia assim "(...) um efeito de feed-back sobre a realidade,
racionalizando e potenciando as 'razões' que geram os estereótipos e as diferenças de
oportunidades que eles exprimem. Deste modo o estereótipo surge simultaneamente como
mecanismo de selecção e reprodução, funcionando como estabilizador entre a sociedade e os seus
criminosos." (ANDRADE, 1980, p.85)
criminalização respondem, ademais, ao estímulo da visibilidade diferencial da
conduta desviada em uma sociedade concreta; ou seja, são mais guiados pela
sintomatologia do conflito que pela etiologia do mesmo (visibilidade versus
latência).
Basta pensar, neste sentido,

"(...) na 'reatividade' que caracteriza a ação da polícia,a qual tem uma


tendência generalizada a intervir ali onde é chamada; ou na 'visibilidade'
variável dos comportamentos contrários à lei que conduz a atividade
controladora dos órgãos a se concentrar nos comportamentos publicamente
visíveis e imunizar aqueles que tem lugar em recintos fechados." (BARATTA,
1982a, p.50-1)

Assim SACK217 considera os juízos mediantes os quais se atribui um


fato punível a uma pessoa como "juízos atributivos", que produzem a qualidade
criminal desta pessoa, com as conseqüências jurídicas (responsabilidade penal) e
sociais (estigmatização, mudança de status e de identidade social etc.)
decorrentes. Pois a sentença cria uma nova qualidade para o imputado,
introduzindo-o em um status que, sem ela não possuiria.
A criminalidade em suma (a etiqueta de criminoso) é considerada como
um "bem negativo" que a sociedade (controle social) reparte com o mesmo
critério de distribuição de outros bens positivos (o status social e o papel das
pessoas: fama, patrimônio, privilégios etc.) mas em relação inversa e em prejuízo
das classes sociais menos favorecidas. A criminalidade é o exato oposto dos bens
positivos (do privilégio). E, como tal, é submetida a mecanismos de distribuição
análogos, porém em sentido inverso, à distribuição destes.
Na formulação de BARATTA, uma das mais representativas da
Criminologia crítica, a criminalidade se revela, principalmente, como um status

217 .Seguindo a distinção operada por H.L.A. Hart entre juízos descritivos e juízos atributivos
atribuído a determinados indivíduos mediante uma dupla seleção: em primeiro
lugar, pela seleção dos bens jurídicos penalmente protegidos e dos
comportamentos ofensivos a estes bens, descritos nos tipos penais; em segundo
lugar, pela seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos aqueles que
praticam tais comportamentos. (BARATTA, 1991a, p.167)
A interpretação estrutural da fenomenologia da seletividade como
fenomenologia da desigualdade social parte assim da análise da criminalização
primária para a criminalização secundária resgatando o fenômeno da distribuição
seletiva dos "bens jurídicos" e chegando, por esta via, a uma desconstrução
unitária e acabada da ideologia da defesa social.
Assim, o processo de criação de leis penais (criminalização primária)
que define os bens jurídicos protegidos, as condutas tipificadas como crime e a
intensidade da pena (que freqüentemente está em relação inversa com a
danosidade social dos comportamentos), obedece a uma primeira lógica da
desigualdade que, mistificada pelo chamado "caráter fragmentário" do Direito
Penal, pré-seleciona, até certo ponto, os indivíduos criminalizáveis. E tal diz
respeito, simultaneamente, aos "conteúdos" e aos "não-conteúdos" da lei penal.
Quanto aos "conteúdos" do Direito Penal abstrato, esta lógica se revela
no direcionamento predominante da criminalização primária para atingir as formas
de desvio típicas das classes e grupos socialmente mais débeis e marginalizados.
Enquanto é dada a máxima ênfase à criminalização das condutas contrárias às
relações de produção (crimes contra o patrimônio individual) e políticas (crimes
contra o Estado) dominantes e a elas dirigida mais intensamente a ameaça penal; a
criminalização de condutas contrárias a bens e valores gerais como a vida, a
saúde, a liberdade pessoal e outros tantos não guarda a mesma ênfase e
intensidade da ameaça penal dirigida à criminalidade patrimonial e política.
Simultaneamente são preservadas, seja pela omissão ou criminalização simbólica,
as condutas desviantes típicas das classes sociais hegemônicas (detentoras do
poder econômico e político) cuja gravidade, embora difusa, é muitas vezes
superior à chamada criminalidade "tradicional". Criam-se, assim, zonas de
imunização para comportamentos cuja danosidade se volta particularmente contra
as classes subalternas.
E a seleção criminalizadora é visível desde a diversa formulação
técnica dos tipos penais e a espécie de conexão que eles determinam, por
exemplo, com o mecanismo das agravantes e das atenuantes. (é difícil que se
realize um furto não "agravado"). Enquanto as redes dos tipos são, em geral,
muito finas quando se dirigem às condutas típicas contra o patrimônio e o Estado
são freqüentemente mais largas quando os tipos penais têm por objeto a
criminalidade econômica e outras formas de criminalidade típicas dos indivíduos
pertencentes às classes no poder. Por todos estes mecanismos, estes crimes têm
também, desde sua previsão abstrata, uma maior probabilidade de permanecerem
impunes.
Quanto aos "não-conteúdos", o chamado "caráter fragmentário" do
Direito Penal que os juristas geralmente justificam como um dado da natureza das
coisas ou pela pretensa relevância penal e idoneidade técnica de certas matérias
em detrimento de outras se revela como uma lei de tendência. Pois tais
justificações constituem uma ideologia que encobre o fato de que o Direito Penal
tende a privilegiar os interesses das classes dominantes e a imunizar do processo
de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a
elas pertencentes, e ligados funcionalmente à exigência da acumulação capitalista,
e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de
desvio típicas das classes subalternas.
Nesta perspectiva, o processo de criminalização secundária não faz
mais do que acentuar o caráter seletivo do Direito Penal abstrato. Pois as
maiores chances de ser selecionado para fazer parte da população criminosa e ser
sujeito de sanções, especialmente as estigmatizantes, como a prisão, aparecem,
de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariado e
grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho (desocupação,
subocupação, falta de qualificação profissional) e defeitos de socialização familiar
e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais
baixos, e que na Criminologia positivista e em boa parte da Criminologia liberal
contemporânea são apontados como as causas da criminalidade, revelam ser,
antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é
atribuído.(BARATTA, 1991a, p.171-2)218
Considera assim que "A variável principal da distribuição desigual do
status de delinqüente parece indubitavelmente ser, à luz das investigações recentes,
a posição ocupada pelo autor potencial na escala social." (BARATTA, 1982b,
p.43, nota 30)
A corroborar tal constatação BARATTA (1991a, p.186-188) sumaria os
resultados das investigações empíricas 219 sobre os second code (estereótipos,
preconceitos, teorias de todos os dias) que guiam as decisões judiciais.
Com base nestes resultados conclui ser possível afirmar que, em geral,
existe uma tendência por parte dos juízes de esperar um comportamento
conforme à lei dos indivíduos pertencentes aos estratos médios e superiores; o
inverso ocorre com os indivíduos provenientes dos estratos inferiores. Orientados
por uma imagem estereotipada da criminalidade os juízes tendem, como ocorre
no caso do professor e dos erros nas tarefas escolares, a procurar a verdadeira

218 . No mesmo sentido do exposto ver também CIRINO DOS SANTOS, 1984, p.102-110.
219 .Refere
em especial as investigações de K.D.OPP e A.PEUCKERT, J.FEEST e
J.BLANKENGURG,J HOGAR, R.L.HENSEL e R.A.SILVERMANN e D.PETERS.
criminalidade principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal esperá-
la.
Assim, tais investigações empíricas tem colocado em relevo as
diferenças de atitude emotiva e valorativa dos juízes, em face de indivíduos
pertencentes a diversas classes sociais que os conduzem, inconscientemente, a
tendência de juízos diversificados conforme a posição social dos acusados, e
relacionadas tanto à apreciação do elemento subjetivo do crime (dolo, culpa)
quanto ao caráter sintomático do delito em face da personalidade (prognose sobre
a conduta futura do acusado) e, pois, à individualização e à mensuração da pena
deste ponto de vista. A distribuição das definições criminais se ressente, de modo
particular, da diferenciação social.
Especialmente significativa a respeito da individualização da pena é
que nas hipóteses de cominação alternativa de sanções pecuniárias e detentivas
os critérios de escolha funcionam nitidamente em desfavor dos marginalizados e
do subproletariado, no sentido de que prevalece a tendência a considerar a pena
detentiva como mais adequada, no seu caso, porque é menos comprometedora
para o seu status social já baixo. Assim, as sanções que mais indicam sobre o
status social são usadas, preferencialmente, contra aqueles que já o tem debilitado.
Também tem sido demonstrado que o insuficiente conhecimento e
capacidade de penetração por parte do juiz no mundo do acusado é desfavorável
aos indivíduos provenientes dos estratos inferiores da população. E isto não
somente pela ação exercida por estereótipos e preconceitos, mas também pelas
chamadas teorias de todos os dias, que o juiz tende a aplicar na reconstrução da
verdade judicial.
Por sua vez, a dupla seleção (criminalização primária e secundária)
operada pelo sistema penal não atua isoladamente, mas se insere no âmbito de
um controle social informal e de seleção de maior amplitude220 que com aquela
se dialetiza de forma que
"Desde o ângulo dos processos funcionais e integradores do sistema penal
oficial, podemos assinalar dentro desse complexo:a) os processos informais
de reacão social que correm paralelos aos processos de criminalização
oficiais (definicões comuns da criminalidade), 'a distância social' a respeito
de quem é submetido a sanções, a 'proibição de coalizão' e a 'obrigação de
coalizão', assim como os que constituem um início para processos oficiais de
criminalização ( a disposição de apresentar uma denúncia, ou de depor como
testemunha); b) deve ser considerada, ainda, uma série de processos que
transcorrem em instituições cuja relação com o processo oficial de
criminalização é mais bem indireta e quicás não foram ainda investigados
em toda sua complexidade pela análise sociológica contemporânea. Pense-se,
por exemplo, na importância dos processos sociais de marginalização
pertencentes ao mecanismo do mercado de trabalho e à seleção escolar.
Estes fatores, junto com o sistema de direito penal e os controles sociais
informais, conduzem à formação de setores entre os quais com
preponderância se recruta, para falar em termos de FOUCAULT, a
'população criminal', isto é, a maioria daqueles sobre os quais se concentra a
ação do sistema penal." (BARATTA, 1982b, p.49-50)221

Reconduzido ao controle social global o sistema penal aparece, por um


lado, como filtro último e uma fase avançada de um processo de seleção que tem
lugar no controle informal (família, escola, mercado de trabalho) mas os
mecanismos deste atuam também paralelamente e por dentro do controle penal
formal.

- Da negação da ideologia da defesa social à desconstrução do mito do


Direito Penal igualitário

220 .A respeito da inserção do sistema penal como um todo e do cárcere em particular no continnum
da seleção operada pelo controle social informal , em especial pelo sistema escolar e o mercado de
trabalho ver BARATTA (1991a, p. 179 et.seq).
221 . Sobre os conceitos utilizados pelo autor nesta citação ver nota nº 38 da mesma referência
bibliográfica.
Conclui então BARATTA (1976, p.10; 1982b, p.42-3 e 1991a, p.168)
que os resultados da análise teórica e de uma série inumerável de pesquisas
empíricas sobre os mecanismos de criminalização tomados em particular e em seu
conjunto podem ser condensados em três proposições que constituem a negação
radical do "mito do Direito Penal como direito igualitário"222 que está na base da
ideologia da defesa social.
Tais são:
a) O Direito Penal não defende todos e somente os bens essenciais nos
quais todos os cidadãos estão igualmente interessados e quanto castiga as ofensas
aos bens essenciais ,o faz com intensidade desigual e de modo parcial
("fragmentário");
b) A lei penal não é igual para todos. O status de criminal é
desigualmente distribuído entre os indivíduos;
c) O grau efetivo de tutela e da distribuição do status de criminal é
independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei,
pois estas não constituem as principais variáveis da reação criminalizadora e de
sua intensidade.
Eis aí evidenciada a "contradição fundamental de todo o Direito
burguês entre igualdade formal dos sujeitos de direito e desigualdade substancial
dos indivíduos, que, neste caso, se manifesta em relação às chances de serem
definidos como criminosos" (BARATTA, 1991a, p.168). Pois "o desigual
tratamento de situações e de sujeitos iguais no processo social de definição da
"criminalidade", responde a uma lógica de relações assimétricas de distribuição do
poder e dos recursos da sociedade." (BARATTA, 1983b, p.146)
Mas BARATTA (1986, p.80-1) insiste também na debilidade da
legalidade face às exigências do poder, já que cada vez que a lógica do conflito
222 . O qual circunscrevemos no item "8" do terceiro capítulo.
ultrapassa as previsões legais de intervenção punitiva esta também ultrapassa e
inclusive transborda os limites da legalidade.
Assim,
"Em inúmeras situações locais, estudos e controles realizados por instituições
e comissões de defesa dos direitos humanos, nacionais e internacionais, tem
colocado em evidência as graves e até gravíssimas violações apresentadas
pelo funcionamento da justiça criminal com relação a quase todas as normas
previstas para a defesa dos direitos humanos neste campo na legislação local
e nas convenções internacionais. Trata-se de graves e gravíssimas
ilegalidades cometidas por parte de órgãos de polícia, no processo penal e na
execução das penas. Em não poucos casos se trata de desvios de leis e
ordenamentos nacionais frente a princípios de direito penal liberal nacional e
internacional." (BARATTA, 1989d, p.13)

Nesta perspectiva pode-se constatar que a violação encoberta da


igualdade jurídica e da legalidade pela seletividade estrutural convive no sistema
penal com a violação aberta da legalidade que, amplamente documentada, se
verifica, em maior ou menor grau, na totalidade dos sistemas penais vigentes.

- Função real do sistema penal na reprodução material e ideológica da


desigualdade social

O aprofundamento da relação entre Direito/sistema penal e


desigualdade conduz, em certo sentido, a inverter os termos em que esta relação
aparece na superfície do fenômeno descrito. Não apenas as normas penais se
criam e se aplicam seletivamente e a distribuição desigual da criminalidade
(imunidade e criminalização) obedece geralmente à desigual distribuição da
propriedade e do poder e a conseqüente hierarquia dos interesses em jogo
(estrutura vertical da sociedade) mas o Direito e o sistema penal exercem,
também, uma função ativa de conservação e reprodução das relações sociais
de desigualdade. São, também, uma parte integrante do mecanismo através do
qual se opera a legitimação dessas relações, isto é, a produção do consenso real
ou artificial. 223 (BARATTA, 1991a, p. 173; 1993, p.49-50; 1983b, p.151, 157 e
160)
A Criminologia crítica se intersecciona, aqui, com a indicação
fundamental da crítica historiográfica marxista e foucaultiana: a conexão funcional
que subsiste entre o sistema penal e o sistema social.
Pois, enuncia BARATTA (1987,a, p.625) com um de seus resultados
globais,

"(...) em um nível mais alto de abstração o sistema punitivo se apresenta


como um subsistema funcional da produção material e ideológica
(legitimação) do sistema social global; ou seja, das relações de poder e
propriedade existentes, mais do que como instrumento de tutela de interesses
e direitos particulares dos indivíduos."

6. Operacionalidade do sistema penal na América Latina: da seletividade


encoberta à radicalização da arbitrariedade aberta

Em sua investigação específica sobre a operacionalidade do sistema


penal na América Latina, ZAFFARONI (1984a, 1984b, 1990, 1991)224 conclui pela
aceitação da validade e irreversibilidade dos resultados da Criminologia da

223 .Para HULSMAN (1993, p.75) também o sistema penal reforça, visivelmente, as desigualdades
sociais.

224 .A Pesquisa empírica dirigida por ZAFFARONI junto ao Instituto Interamericano de Direitos
Humanos e cujo informe final de sua autoria foi publicado em 1984 (ZAFFARONI, 1984a e
1984b) pode ser considerada o mais completo documento crítico sobre a realidade dos sistemas
penais latino-americanos. E sobre os resultados empíricos obtidos nesta pesquisa, associados à
recepção crítica dos marcos teóricos descontrutores/deslegitimadores do sistema penal oriundos
do capitalismo central é que se baseia seu posterior "Em busca das penas perdidas" (1991) e
outros artigos (1989) que, por consubstanciar suas conclusões mais atualizadas de base teórico-
empírica aludimos aqui.
reação social sobre a operacionalidade do sistema penal também para a região, ao
atribuir-lhe "a inquestionável vantagem de descrever detalhadamente - com um
arsenal ao qual não se pode imputar nenhum enfeite teórico - o processo de
produção e reprodução da delinqüência." (ZAFFARONI, 1991, p.60)
É que, como coloca em evidência, todos os sistemas penais
apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que,
cancelando o discurso jurídico-penal, se materializam no centro e na periferia do
capitalismo mundial e que, por constituírem marcas de sua essência, não podem
por sua vez ser eliminadas sem a supressão dos próprios sistemas penais.
(ZAFFARONI, 1991, p.15)
Assim,

"A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para


maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de
poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou
comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do
exercício de poder de todos os sistemas penais." (ZAFFARONI, 1991, p.15)

Por outro lado, contudo, tais aspectos estruturais convivem com


modalidades operacionais concretas diferentes que se traduzem, na América
Latina, numa radicalização da sua violência operacional (muito maior violência
operativa na região marginal). (ZAFFARONI, 1991, p.173)
Sustenta assim que o máximo e o mais importante exercício de poder
do sistema penal não é o poder repressivo legal enraizado na agência legislativa e
centralizado na agência judicial, mas o poder repressivo positivo, configurador,
constitutivo da função não manifesta de verticalização militarizada da sociedade
que fica a cargo das agências executivas do sistema, especialmente a policial.
(ZAFFARONI, 1989, p.435)
E é precisamente para a "gravidade dos resultados práticos da
violentíssima operacionalidade dos sistemas penais" latino-americanos que chama
a atenção, uma vez que na região a violação encoberta da legalidade e da
igualdade pelo exercício de poder (discricionário) estruturalmente seletivo do
sistema penal é agravada pela violação aberta e extrema da legalidade penal e
processual penal e pelo altíssimo número de fatos violentos e de corrupção
praticados pelos próprios órgãos do sistema penal. (arbitrariedade).
(ZAFFARONI, 1991, p.27, 29 e 35)
Em primeiro lugar "a base indispensável para que possa operar o
verdadeiro exercício de poder do sistema penal, ou seja, para que opere o poder
configurador dos órgãos do sistema penal" é, paradoxalmente, o âmbito de uma
renúncia (planificada) da própria lei à legalidade. (ZAFFARONI, 1991, p.23)
Se o princípio da legalidade penal tal como decodificado pela
Dogmática, impõe rigorosos limites à punibilidade, com especial ênfase nos limites
garantidores da tipicidade e o princípio da legalidade processual penal requer a
incriminação de todos os autores de condutas típicas, antijurídicas e culpáveis
de acordo com requisitos também detalhadamente explicitados isto significa uma
dupla exigência: que o sistema penal não apenas exerça seu poder no estrito
horizonte da programação normativa, mas que deva exercê-lo igualmente sempre e
em todos os casos. (ZAFFARONI, 1991, p.21)
No entanto,
"(...) uma leitura atenta das leis penais permite comprovar que a própria lei
renuncia à legalidade e que o discurso jurídico-penal (saber penal) parece não
perceber tal fato. Através da minimização jurídica reserva-se ao discurso
jurídico-penal, supostamente, os 'injustos mais graves'; através da
'administrativização', consideram-se fora do discurso jurídico-penal as
institucionalizações manicomiais (...), as instituciona-lizações de menores(...),
as institucionalizações dos anciões.(...)
...............................................................................................................
O discurso jurídico-penal exclui de seus requisitos de legalidade o exercício de
poder de seqüestro e estigmatização que, sob pretexto de identificação,
controle migratório, contravenção,etc.., fica a cargo de órgãos executivos,
sem intervenção efetiva dos órgãos judiciais.A lei permite, deste modo,
enormes esferas de exercício arbitrário do poder de seqüestro e
estigmatização, de inspeção, controle, buscas irregulares etc., que se exercem
cotidiana e amplamente, à margem de qualquer 'legalidade' punitiva
contemplada no discurso jurídico-penal." (ZAFFARONI, 1991, p.22)

Mediante esta expressa renúncia à legalidade penal, os órgãos do


sistema penal são encarregados de um controle social militarizado e verticalizado,
que exercido cotidianamente sobre a grande maioria da população é
substancialmente configurador da vida social. (ZAFFARONI, 1991, p.23)
Mas também no exercício do poder repressivo "formal" a agência
executiva exerce um poder seletivo fundamental de modo a minimizar a
incidência seletiva dos órgãos legislativo e judicial
Pois

"A análise do poder do sistema penal nos mostra hoje claramente que o poder
seletivo do sistema penal - inegável a estas alturas em qualquer país - não o
tem primeiro o legislador, logo o juiz, por último as agências executivas, mas
tudo ao contrário: exerce o poder do sistema o conjunto de agências
executivas, com poder configurador, e seletivo, haja vista que seleciona uns
poucos casos que submete à agência judicial. A agência legislativa se limita a
conceber âmbitos de seletividade que são exercidos pelas agências
executivas, ficando a judicial no meio de ambas, com poder muito limitado."
(ZAFFARONI, 1989, p.435-6)

Observada a incapacidade estrutural do sistema penal para


operacionalizar toda a programação penal são os órgãos executivos que,
primeiramente, tem "espaço legal" para exercer seu poder sobre qualquer pessoa.
Não obstante, operam quando e contra quem decidem : sobre os setores mais
carentes da população e sobre alguns dissidentes (ou "diferentes") mais
incômodos ou significativos. (ZAFFARONI, 1991, p.23-4 e 27)
Nesta perspectiva, o sistema penal se encontra estruturalmente montado
para que a legalidade processual não opere em sua plenitude, mas para que exerça
seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos
setores vulneráveis.
Verifica-se assim
"(...) na operacionalidade social dos sistemas penais latino-americanos um
violentíssimo exercício de poder à margem de qualquer legalidade. Neste
sentido, basta rever qualquer informe sério de organismos regionais ou
mundiais de direitos humanos para comprovar o incrível número de
sequestros, homicídios, torturas e corrupção cometidos por agências
executivas do sistema penal ou por seus funcionários. A estas violações
devem ser acrescentadas a corrupção, as atividades extorsivas e a
participação nos benefícios decorrentes de atividades como o jogo, a
prostituição, o contrabando, o tráfico de drogas proibidas, dados geralmente
não registrados nos informes dos organismos de direitos humanos, apesar de
pertencerem à inquestionável realidade de nossos sistemas penais marginais."
(ZAFFARONI, 1991, p.29)

A conclusão fundamental de ZAFFARONI neste sentido é que na


América Latina a deslegitimação do sistema penal é resultante da evidência dos
próprios fatos225 e que a "ética deslegitimante" é, num plano mais profundo, a
própria morte humana; ou, mais explicitamente, a magnitude e notoriedade do fato
morte que caracteriza seu exercício de poder de forma que implica "um
genocídico em marcha, em ato". (ZAFFARONI, 1989, p.434 e 1991, p. 38 e 67)
Com efeito,

"Há mortes em confrontos armados (alguns reais e a maioria simulada, ou


seja, fuzilamentos sem processo). Há mortes por grupos parapoliciais de
extermínio em várias regiões. Há mortes por grupos policiais ou
parapoliciais que implicam a eliminação dos competidores em atividades
ilícitas (disputa por monopólio de distribuição de tóxicos, jogo, prostituição,
áreas de furtos, roubos domiciliares etc.). Há 'mortes anunciadas' de
testemunhas, juízes, fiscais, advogados, jornalistas, etc. Há mortes de
torturados que 'não agüentaram' e de outros que os torturadores 'passaram
do ponto'. Há mortes 'exemplares' nas quais se exibe o cadáver, às vezes
mutilado, ou se enviam partes do cadáver aos familiares, praticadas por
grupos de extermínio pertencentes ao pessoal dos órgãos dos sistemas
penais. Há mortes por erro ou negligência, de pessoas alheias a qualquer
conflito. Há mortes do pessoal dos próprios órgãos do sistema penal. Há alta
freqüência de mortes nos grupos familiares desse pessoal cometidas com as
mesmas armas cedidas pelos órgãos estatais. Há mortes pelo uso de armas,
225 .A respeito da violência do aparelho policial em geral e no Brasil ver CIRINO DOS SANTOS
(1984, p.123 et. seq.). Uma investigação especialmente importante a respeito, que denuncia a
existência de um "esquadrão da morte oficial" na Polícia militar de São Paulo é a de
BARCELLOS (1992), explicitamente intitulada " Rota 66 - a história da política que mata."
cuja posse e aquisição é encontrada permanentemente em circunstâncias que
nada têm a ver com motivos dessa instigação pública. Há mortes em
represália ao descumprimento de palavras dadas em atividades ilícitas
cometidas pelo pessoal desses órgãos do sistema penal. Há mortes violentas
em motins carcerários, de presos e de pessoal penitenciário. Há mortes por
violência exercida contra presos nas prisões. Há mortes por doenças não
tratadas nas prisões. Há mortes por taxa altíssima de suicídios entre os
criminalizados e entre o pessoal de todos os órgãos do sistema penal, sejam
suicídios manifestos ou inconscientes. Há mortes (...)." (ZAFFARONI, 1991,
p.125)

Chama a atenção então ZAFFARONI (1991, p.143-4) para o fato de


que o sistema penal não viola unicamente os direitos humanos dos
criminalizados mas de seus próprios operadores, deteriorando regressivamente
os que o manejam ou assim o crêem.
Se FOUCAULT já insistira em que as garantias liberais se detêm,
geralmente, antes das portas da prisão, que constitui uma zona franca de arbítrio
em relação aos detidos; se a Criminologia da seleção desnuda sua suspensão
seletiva desde o Legislativo, passando pela Polícia e o Judiciário e chegando à
prisão ZAFFARONI insiste em que, na América Latina elas se detém, sobretudo,
entre as portas do Legislativo e do Judiciário entreabertas pela Polícia.
Por sua vez a investigação também específica de ANYAR DE
CASTRO (1987, p.96) sobre o sistema penal na América Latina chega a duas
conclusões globais. A de que há na região "um sistema penal subterrâneo"
funcionando sob "um sistema penal aparente" pelo primeiro designando,
precisamente, o funcionamento global e real dos mecanismos do controle
informal e formal em contrariedade ao funcionamento oficial previsto pelo
segundo. E que a articulação da instâncias judicial com os níveis de maior
discricionariedade, como a policial, operam sistematicamente na região em função
da seletividade classista do controle social.

7. Contrastação entre operacionalidade e programação (normativa e


teleológica) do sistema penal: uma funcionalidade de eficácia
instrumental invertida

Em suma,

"Na Criminologia de nossos dias , tornou-se comum a descrição da


operacionalidade real dos sistemas penais, em termos que nada têm a ver
com a forma pela qual os discursos jurídico-penais supõem que eles atuam.
Em outros termos, a programação normativa baseia-se em uma 'realidade'
que não existe e o conjunto de órgãos que deveria levar a termo esta
programação atua de forma completamente diferente." (ZAFFARONI, 1991,
p.12)

- Violação da programação normativa: da proteção à violação encoberta


e aberta dos Direitos Humanos

Comparando-se a programação normativa do sistema penal, isto é,


como deveria ser, de acordo com os princípios constitucionais do Estado de
Direito e do Direito Penal e Processual Penal liberal com seu real funcionamento,
pode-se concluir que na maior parte dos casos é um sistema de violação ao invés
de proteção deles. (BARATTA,1989d, p.13)
Pois,

"(...) é necessário repeti-lo - depois do advento do Estado de direito, a


história do sistema punitivo segue ainda desenvolvendo-se parcialmente
à margem da história do direito penal. O princípio de legalidade - bem
como os demais princípios do direito penal liberal - se manifesta
especialmente como uma instância ideológica de legitimação e nem
sempre como um princípio real de funcionamento enquanto não
corresponde, senão parcialmente e de forma contingente, ao
funcionamento efetivo do sistema penal. Estas afirmações podem
verificar-se não apenas considerando o sistema em toda a sua extensão,
mas também centrando nossa atenção no subsistema institucional
'Legal'." (BARATTA, 1986, p.80-1)
A realização de todos os princípios garantidores do Direito Penal
(legalidade, culpabilidade, humanidade e, especialmente o de igualdade) é, em
definitivo, uma ilusão, porque a operacionalidade do sistema penal está
estruturalmente preparada para violar a todos. (ZAFFARONI, 1991, p.237 e 1989,
p.439)
Mais do que uma violação trata-se, pois, de uma contradição
estrutural entre a lógica do sistema penal e a ideologia dos Direitos Humanos,
pois 226

"Enquanto os direitos humanos assinalam um programa realizador de


igualdades de direitos de longo alcance, os sistemas penais são instrumentos
de consagração ou cristalização da desigualdade de direitos em todas as
sociedade." (ZAFFARONI,1991, p.149)

E na medida em que o sistema penal moderno se transforma, graças a


suas contaminações policialescas e rupturas relativamente excepcionais com suas
formas garantidoras em um sistema de controle crescentemente informal
(FERRAJOLI, 1978, p.44) é a própria caracterização do sistema penal como
"controle social punitivo institucionalizado", que é colocada em cheque pela sua
fenomenologia. (ZAFFARONI, 1984, p.8 e 1986, p.32)
Guardadas todas as proporções que separam o antigo do moderno
sistema penal, pela mudança qualitativa da estratégia punitiva que este instaura em
relação àquele, o problema da sua justificação normativa retorna,
paradoxalmente, à posição fetal.
Pois

"(...) o verdadeiro problema penal de nosso tempo é a crise do direito penal,


ou seja, desse conjunto de formas e garantias que o distingue de outra forma
de controle social mais ou menos selvagem e disciplinário. Talvez o que hoje é
226 . A respeito ver também ZAFFARONI, 1984, 1989, p.439-40 e 1991, p.33, 147-152.
utopia não são as alternativas ao direito penal, e sim o próprio direito penal e
suas garantias; a utopia não é o abolicionismo, é o garantismo,
inevitavelmente parcial e imperfeito. Se tudo é verdade, então o problema
normativo da justificação do direito penal volta a adquirir hoje o sentido
originário que teve na idade do iluminismo, quando foram postos em questão
os ordenamentos despóticos do antigo regime." (FERRAJOLI, 1978, p.44-5)

- Descumprimento da programação teleológica: das funções declaradas


às funções reais da pena

Da mesma forma, comparando-se a programação teleológica do sistema


penal, isto é, as funções instrumentais e socialmente úteis declaradas com as
funções reais da pena e do sistema pode-se concluir que estas não apenas tem
descumprido mas sido opostas às declaradas.
Enquanto a função de proteção de bens jurídicos universais atribuída ao
Direito Penal revela-se como proteção seletiva de bens jurídicos; a pretensão de
que a pena possa cumprir uma função instrumental de efetivo controle (e
redução) da criminalidade e de defesa social na qual se baseiam as teorias da
pena, deve, através de pesquisas empíricas nas quais a reincidência é uma
constante, considerar-se como promessas falsificadas ou, na melhor das
hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente. (BARATTA, 1991b, p.
49 e 1993, p.51)
Em geral está demonstrado, neste sentido, que a intervenção penal
estigmatizante (como a prisão), ao invés de reduzir a criminalidade ressocializando
o condenado produz efeitos contrários a uma tal ressocialização, isto é, a
consolidação de verdadeiras carreiras criminosas cunhadas pelo conceito de
"desvio secundário". (BARATTA, 1993, p.50-1; ZAFFARONI, 1987, p.38;
HULSMAN, 1993, p.72)
Num sentido mais profundo, contudo, a crítica indica que a prisão
não pode "reduzir" precisamente porque sua função real é "fabricar" a
criminalidade e condicionar a reincidência.
Se as funções declaradas da pena se resumem numa dupla meta: a
repressão da criminalidade e o controle (e redução do crime); as funções reais da
prisão aparecem em uma dupla reprodução: reprodução da criminalidade
(recortando formas de criminalidade das classes dominadas e excluindo a
criminalidade das classes dominantes) e reprodução das relações sociais.
(CIRINO DOS SANTOS, 1981, p.56)
O fracasso das funções declaradas da pena abriga a história de um
sucesso correlato: o das funções reais da prisão que, opostas às declaradas,
explicam sua sobrevivência e permitem compreender o insucesso que acompanha
todas as tentativas reformistas de fazer do sistema carcerário um sistema de
reinserção social. (FOUCAULT, 1987, p.209).
A história do projeto "técnico-corretivo" do sistema carcerário é a
história de seu fracasso porque

"O 'poder penitenciário' se caracteriza por uma 'eficácia invertida' (produção


da recorrência criminal) e por um 'isomorfismo reformista' (reproposição do
mesmo projeto, em cada constatação histórica do seu fracasso). Um século e
meio de fracasso do aparelho penal (...) coexiste com um século e meio de
manutenção do mesmo projeto fracassado." (CIRINO DOS SANTOS, 1981,
p.56)

- A violência institucional como expressão e reprodução da violência


estrutural

Se a violência institucional é "consubstancial a todo sistema de


controle social" (MUÑOZ CONDE, 1985, p.16) ou "intrínseca à ação de
controle social" (CIRINO, 1984, p.123) a violência institucional como expressão e
reprodução da violência estrutural das relações sociais, isto é, da injustiça social,
sintetiza o modus vivendi experimentado pelo sistema de controle penal da
modernidade.
Por todos estes motivos e porque o Estado expropriou uma das partes
envolvidas - a vítima - da sua gestão, o modelo penal não pode ser considerado,
diferentemente de outros campos do Direito, como um modelo de "solução de
conflitos" gerando, ao revés, mais problemas e conflitos dos que aqueles que se
propõe a resolver com a agravante dos seus altos custos sociais. (HULSMAN,
1993, p.91)227

8. Das funções instrumentais às funções simbólicas do Direito Penal

Diante deste quadro uma constatação que se impôs foi a de que a


eficácia das funções declaradas do Direito Penal é sobretudo "simbólica" e
legitimadora, ao invés de instrumental. ((BARATTA, 1993, p.50-1; BASOCO,
1991; ANYIAR DE CASTRO, 1987, p.84).
A identificação do fenômeno do Direito Penal simbólico e da relação
entre funções instrumentais e simbólicas do Direito Penal se converteu assim em
ponto central de discussão sobre os sistemas penais e as Políticas Criminais.228
Conforme observa HASSEMER (1991, p.28, 30 e 36) embora o
próprio conceito de simbólico não tenha sido objeto de estudo sistemático e não

227 .A respeito ver também ZAFFARONI, 1989, p.437; 1991, p.197, 203-204 e 212-3 e
BARATTA, 1988, p.6659.

228 .A respeito ver HASSEMER, 19-- e 1991; TERRADILLOS BASOCO, 1991; BARATTA,
1991b; MELOSSI, 1991; MUÑOZ G., 1991; EDWARDS, 1991; GÓMEZ DE LA TORRE,
1991; BUSTOS RAMÍREZ, 1991; KERCHOVE, 1984 e 1992; ANYIAR DE CASTRO,1987,
p.93-4; SANGUINÉ, 1992; PAUL, 1991.
se encontre na respectiva literatura um significado preciso, existe um acordo
global a respeito da direção na qual se busca o fenômeno do Direito simbólico.
Trata-se precisamente de uma oposição entre o "manifesto" (declarado) e o
"latente"; entre o verdadeiramente desejado e o diversamente acontecido; e se
trata sempre dos efeitos e conseqüências reais do Direito Penal. Simbólico no
sentido crítico é por conseguinte um Direito Penal no qual se pode esperar que
realize através da norma e sua aplicação outras funções instrumentais diversas das
declaradas, associando-se neste sentido com engano.
Afirmar assim que o Direito Penal é simbólico não significa afirmar que
ele não produza efeitos e que não cumpra funções reais, mas que as funções
latentes predominam sobre as declaradas não obstante a confirmação simbólica -
e não empírica - destas. A função simbólica é assim inseparável da instrumental à
qual serve de complemento 229 e sua eficácia reside na aptidão para produzir um
certo número de representações individuais ou coletivas, valorizantes ou
desvalorizantes, com função de "engano".

9. Crise de legitimidade, autolegitimação e demanda relegitimadora:


o funcionamento ideológico do sistema penal

Promessas vitais descumpridas, excessivas desigualdades, injustiças e


mortes não prometidas. Mais do que uma trajetória de ineficácia, o que acaba por
se desenhar é uma trajetória de eficácia invertida, na qual se inscreve não apenas o

229 . E foi DURKHEIM, em cuja obra culmina a dimensão social do simbolismo, já que foi o primeiro
a manejar complexos íntegros de crenças, frente a seus predecessores que manejavam simbolos
isolados, quem fixou em caráter definitivo que esta função instrumental esta unida, no Direito
Penal, à função simbólica. (TERRADILLOS BASOCO, 1991, p.10)
fracasso do projeto penal declarado mas, por dentro dele, o êxito do não
projetado; do projeto penal latente da modernidade.
Reencontramos novamente aqui outra indicação fundamental da crítica
historiográfica230 que se intersecciona com as grandes linhas da Criminologia
crítica: a explicação do fenômeno reside na distinção entre funções declaradas
(ideológicas) e exigências e funções latentes e na unidade do Direito, isto é, entre
programação normativa e sua aplicação.
Partindo desta distinção/unidade funcional é possível compreender que
o desenvolvimento contraditório do sistema penal não decorre de uma lógica da
aplicação contrária à lógica da normativização mas da unidade entre ambas, o
que significa "atribuir a todo o sistema, e não somente à aplicação, a sua função
real, controlável com os dados da experiência e interpretar como ideologia
legitimante as finalidades do legislador que, até agora, permanecem um programa
irrealizado." (BARATTA, 1991a, p.213-4)
Neste sentido, a discursividade da programação normativa e teleológica
do sistema penal contém, como vimos afirmando, um código ideológico
legitimador que integra e é fundamental ao funcionamento do sistema penal.
Em definitivo, pois,

"Se chegarmos à conclusão de que os princípios estruturais e funcionais


necessários para organizar cientificamente o conhecimento do sistema penal
são opostos aos que por ele mesmo são declarados, então, partindo de um
conceito dialético de racionalidade, excluiremos que esta contradição entre
princípios declarados e o funcionamento real do sistema seja um caso devido
ao azar, um acidente da sua realização, imperfeita como tudo o que é
humano. Não consideramos a imagem ideal proposta pelo próprio sistema
unicamente como um erro da parte dos operadores e do público, mas
atribuímos-lhe o estatuto de uma ideologia. Esta ideologia penal devem uma
parte integrante do objeto de uma análise científica do sistema penal. O
funcionamento do sistema não se realiza não obstante mas através desta
contradição. Ela é um elemento importante , como outros elementos do
sistema, para assegurar a realização das funções que tem no interior do
230 Referida no item "5" do capítulo anterior.
conjunto da estrutura social. O elemento ideológico não é contingente mas
sim inerente à estrutura e ao modo de funcionar o sistema penal, tal como
este, mais em geral, é inerente à estrutura e ao funcionamento do direito
abstrato moderno.(...) Ele concorre para assegurar, reproduzir e mesmo
legitimar (sendo esta última uma função essencial para o mecanismo de
reprodução da realidade social) as relações de desigualdade que caracterizam
a nossa sociedade, em particular a escala social vertical, o mesmo é dizer a
diversa distribuição dos recursos e do poder, a conseqüência visível do modo
de produção capitalista." (BARATTA, 1983b, p.150-1)

Desta perspectiva as potencialidades do desenvolvimento contraditório


do sistema penal, aparecem inscritas em sua própria gênese.
Uma tal interpretação do funcionamento ideológico do sistema penal
contribui para compreender, por outro lado, o quadro apresentado neste final de
século: não obstante teórica e faticamente exposta a grave crise de legitimidade do
moderno sistema penal subsiste o processo de sua autolegitimação oficial
convivendo ainda com uma forte e contraditória demanda relegitimadora de sua
intervenção.
Assim, não obstante a falsificação empírica dos princípios liberais e das
teorias da prevenção geral negativa (intimidação) e da prevenção especial positiva
(ressocialização) no moderno Estado de Direito o poder punitivo segue
encontrando no princípio da legalidade e no discurso da instrumentalidade utilitária
o fundamento ideológico de sua autolegitimação, pois a própria idéia de
ressocialização ainda não foi abandonada.
Por outro lado e simultaneamente se o correlato da desconstrução
deslegitimadora do sistema penal tem sido, como vimos231, um movimento de
inversão dos seus modelos fundamentais e propostas político-criminais que
demandam desde a minimização da sua violência mediante o fortalecimento das
garantias individuais à sua abolição e substituição por políticas alternativas de

231 No item "2" do capítulo anterior.


resolução de conflitos a contra-face deste processo aparece de forma
multifacetada e complexa.
De um lado, o sistema penal experimenta uma demanda relegitimadora
de sua intervenção proveniente da ascensão dos chamados "Movimentos de Lei e
Ordem" 232 (contra-reforma ressocializadora) que respondem ao problema da
criminalidade violenta, seja individual ou organizada e da "segurança pública"
("alarma da criminalidade"), especialmente nos grandes centros urbanos, com a
demanda pela radicalização repressiva. Que vai, se acrescente, desde um
incremento do discurso da retribuição e prevenção geral negativa (aumento do
quantum da penas, restrição de garantias processuais, maximização do aparelho
policial etc.) até o apelo à prevenção especial negativa (neutralização e
incapacitação dos criminosos mediante prisão de segurança máxima, prisão
perpétua e pena de morte, onde inexistem).
Ao mesmo tempo, verifica-se uma demanda de intervenção do sistema
penal contra a criminalidade de colarinho branco em geral e uma demanda de
movimentos sociais (ecológicos, feministas, étnicos, de defesa de menores etc.)
baseada na possibilidade de utilizar o Direito Penal para a tutela de interesses
fundamentais não protegidos ou para a tutela dos sujeitos e grupos mais débeis e
violentados na sociedade, sob pena de, recusando-o, se abandonar o instrumento
disponível para tal. (LARRAURI, 1991, p.192)
E tais demandas, que circunscrevem diversificados e complexos
problemas que vão desde a chamada criminalidade tradicional violenta, passando
pelas organizações do tráfico de drogas, mafiosas e terroristas, corrupção
política, administrativa e econômico-financeira, relações de consumo, depredação

232 Sobrea caracterização deste movimento e do papel dos meios de comunicação de massa
ver FRANCO, 1991, p.22-27.
ecológica, relações de gênero (homem x mulher) racismo, menores abandonados e
outros tantos, não apenas geram retornos inesperados para um sistema penal em
crise de legitimidade mas também novos desafios para a própria estrutura
(normativa, teórica e institucional) individualista em que assenta. Pois remetem, no
marco de sua lógica, tanto para o problema da responsabilidade penal coletiva e
de pessoas jurídicas quanto para a proteção de interesses difusos e coletivos
como por exemplo, o bem jurídico "patrimônio ecológico".
O horizonte do final de século aparece assim marcado por
reivindicações político-criminais contraditórias para o sistema penal. A
reivindicação de sua redução e abandono convive com a de sua expansão; e se
aquela primeira se faz acompanhar de um fortalecimento das garantias inexistentes,
esta preconiza o próprio abandono de seu reconhecimento formal. Enquanto está
demonstrada a debilidade dos potenciais garantidores do Direito Penal, continua
se apostando neles.
Seja como for, na convivência entre desregulação e (neo)regulação,
longe do Estado e perto do Estado tal horizonte, aqui apenas indicado, parece
testemunhar, mais do que nunca, a ambigüidade do Direito Penal, reatualizando, a
um só tempo, seu potencial técnico repressivo e seu potencial humanista-
garantidor.
O resultado, como a própria crítica também tem indicado, resgata
uma lição fundamental do funcionalismo: persiste a "história da legitimação"apesar
do fracasso. As críticas profundas não alteraram a natureza do sistema, que
sobrevive devido ao seu funcionalismo e a enorme força da retórica benevolente e
neste sentido pode sobreviver indefinidamente. (COHEN, 1985, p.41-2;
FOUCAULT, 1987; HULSMAN, 1993, p.161-2)233

233 Arespeito ver "tabela 1", "fase 3" de COHEN no item "2" e nota "21"do capítulo
anterior.
10. Contrastação entre operacionalidade e metaprogramação dogmáti-
ca do sistema penal

As Ciências Sociais evidenciam, portanto, que para além das


intervenções contingentes há uma lógica estrutural de operacionalização do
sistema penal nas sociedades capitalistas que implicando na violação encoberta
(seletividade) e aberta (arbitrariedade) dos direitos humanos não apenas viola a
sua programação normativa e teleológica mas é, num plano mais profundo,
oposta a ambas, caracterizando-se por uma eficácia instrumental invertida à qual
uma eficácia simbólica (legitimadora) confere sustentação. A potencialidade deste
desenvolvimento contraditório está, todavia, inscrito nas bases fundacionais do
próprio sistema.
Globalmente considerada, pois, esta lógica se traduz numa
subprodução (déficit) de garantia dos direitos humanos e numa sobreprodução
(excesso) de seletividade/arbítrio e legitimação, cuja violência institucional mantém
um nexo funcional mais profundo com a reprodução das relações sociais
desiguais de poder e riqueza; isto é com a violência estrutural. E deste
desequilíbrio resulta a grave crise de legitimidade experimentada pelo moderno
sistema penal, não obstante a sobrevivência de sua auto-legitimação oficial e
demandas relegitimadora de sua intervenção.
Ora, visibilizado que tal lógica, inserindo-se no continuum do controle
social global, radica na criminalização seletiva de pessoas/ arbitrariedade e não
na incriminação igualitária de condutas objetiva e subjetivamente consideradas em
relação ao fato-crime, como o atesta inequivocamente a clientela do cárcere; e
que, como produto desta lógica é a des-igualdade, a in-segurança jurídica e a in-
justiça que estão sob nossos olhos visibilizado fica, diretamente, que a lógica de
operacionalidade do sistema não apena viola, mas também é inversa à lógica
prometida pela metaprogramação dogmática. E indiciado fica, indiretamente, que
esta também se caracteriza por uma eficácia instrumental invertida acompanhada
de uma eficácia simbólica.
Os juízos obtidos a partir da contrastação entre programação e
metaprogramação dogmática e operacionalidade do sistema penal são não apenas
de incongruência e irrealização, mas de realização invertida.
10.1. A relação funcional entre Dogmática Penal e realidade social: das
funções declaradas às funções latentes e reais da Dogmática Penal
como Ciência do sistema penal

- Déficit ou subprodução de garantismo e limites estruturais na


racionalização da violência punitiva e garantia dos Direitos Humanos: da
onipotência à ilusão de poder

Em primeiro lugar, pois, a radiografia interna dos sistemas penais é,


também, uma radiografia direta e um testemunho definitivo do profundo déficit
histórico de cumprimento da função instrumental racionalizadora/ garantidora
prometida pela Dogmática Penal e de que não tendo assegurado o exercício do
controle penal com igualdade e segurança jurídica não é pelo cumprimento desta
função que se explica sua vigência na modernidade.
Pari passu, ao visibilizar a abrangência e complexidade do fenômeno
do controle sócio-penal, evidencia também que, em definitivo, o campo de
intervenção vital e o poder racionalizador/garantidor da Dogmática Penal nesta
fenomenologia é muito menor do que o dogmaticamente idealizado e prometido,
potencializando argumentos explicativos de seu déficit funcional de garantismo
também por limitações estruturais do próprio paradigma que remetem, por sua
vez, para seus déficit epistemológico-cognoscitivos.
Se toda a argumentação aqui desenvolvida demonstra que o limite do
sistema penal é o limite da própria sociedade e, conseqüentemente, não pode ser
atribuído unicamente a limitações dogmáticas; por outro lado é fundamental
pontualizar tais limitações porque a Dogmática Penal assumiu a onipotente função
de racionalizar o sistema. E, fazendo-o, estaremos desvelando sua "ilusão" de
poder neste sentido.
O espaço dentro do qual a Dogmática Penal poderia fazer surtir seus
efeitos garantidores está assim duplamente limitado.
Em primeiro lugar porque, excluída a "criminalidade oculta" que não é
sequer acessada pelo sistema penal (seletividade quantitativa estrutural), os casos
que são submetidos à decisão dos Juízes e Tribunais representam o resultado de
um processo de seleção sumamente avançado no qual já interviram todos os
poderosos filtros específicos do sistema penal (Legislador, Polícia, Ministério
Público; ou seja, criminalização primária, detecção, denúncia, acusação), cada um
deles recriadores de cifras negras , além dos filtros anteriores do controle social
global. (BARATTA, 1982b, 51-2; ANYIAR DE CASTRO, 1987, p.94)
A incidência da agência judicial - e da Dogmática Penal - dá-se assim
numa fase parcial e já avançada do processo de seleção formal e informal, cuja
intervenção sucessiva de filtros anteriores determinam uma seletividade estrutural
que lhe é submetida à decisão. No interior do sistema penal, o poder judicial
aparece relativizado em face do poder legislativo, naturalmente, mas em especial
do poder policial, que pré-seleciona o seu universo decisório como também em
face do poder penitenciário que, fracionando o poder de punir, decide a
posteriori sobre suas decisões.
Intervindo unicamente sobre o exercício de poder jurisdicional a
Dogmática Penal intervém assim sobre a agência do sistema mais abrigada da
arbitrariedade. Pois, sendo as decisões judiciais relativamente pré-programadas
pelo Legislador seu poder discricionário é menor do que o poder das agências
policial e penitenciária e mesmo que o de outros segmentos da agência judicial,
como o Ministério Público. Desta forma fica fora da intervenção dogmática,
embora seja por ela legitimido, o exercício do poder policial que, juntamente com
o poder penitenciário (execução penal) são responsáveis, como se tem
demonstrado, pela maior arbitrariedade e violação dos direitos humanos; seja pelo
poder repressivo configurador, seja pela repressão aberta (ZAFFARONI) seja
pelo poder disciplinar (FOUCAULT) estigmatizador ou deteriorador (paradigma
da reação social). De qualquer modo, também está demonstrado que se a agência
judicial está mais abrigada da arbitrariedade aberta está, por outro lado,
plenamente inserida na lógica da seletividade encoberta à qual não tem revertido,
mas integrado, convalidado e racionalizado.
Neste sentido, embora

"(...) o principal exercício de poder do sistema penal tenha lugar sem a


intervenção do órgão judicial (ao qual se limita o poder dos juristas)
quando,neste âmbito, devem ser defendidos os direitos humanos, seus
defensores acabam considerando verdadeiros os pressupostos do
discurso jurídico-penal que devem esgrimir e, com isso, admitem, quase
sem percebê-los, a racionalização justificadora de todo o exercício de
poder do sistema penal."(ZAFFARONI, 1991, p.30)

Em segundo lugar, pois, o campo de intervenção vital da Dogmática


Penal está limitado pelo fato de que o seu código tecnológico, isto é, o
instrumental construído para a racionalização garantidora das decisões judiciais
não cobre o second code judicial e os processos de influência que, excluídos e
predominando sobre aquele, condicionam, latententemente, a seletividade das
decisões judiciais.

Assim
"Se nos referindo a CICOUREL e a outros introduzimos conceitos como
basic rules ou second code e aludimos com eles à totalidade do
complexo de regras (e dos mecanismos reguladores) que determinam
efetivamente a aplicação que faz o juiz da lei, podemos dizer que as
regras administradas pela metodologia e a dogmática do Direito Penal
e processual penal, cobrem somente parte do processo decisório. A
maioria das regras derivadas de fatores como o comportamento e a
socialização do juiz penal, regras que encontram expressão em seus
prejuízos e esterótipos, escapam da competência da ciência jurídico-
penal. Igualmente escapam a ela outras condições de aplicação da lei
que não dependem da consciência individual dos juízes, mas que
influem de maneira não menos intensa em sua atividade decisória,
como por exemplo os processos de influência derivados da estrutura
organizativa e comunicativa do aparato judicial." (BARATTA, 1982b,
p.51-2)

Os conceitos de second code e basic rules conectam precisamente a


seleção operada pelo controle penal formal com o controle social informal,
mostrando como os mecanismos seletivos presentes na sociedade colonizam as
decisões judiciais num processo interativo de poder entre controladores e
controlados (público), perante o qual a assepsia da Ciência e da Técnica jurídica
para exorcizá-los, assumem toda a extensão do seu artificialismo.
Assim, enquanto a Dogmática Penal centraliza a construção do sistema
garantidor na conduta do autor edificando uma técnica de imputação de
responsabilidade penal pautada por requisitos objetivos (conduta típica e
antijurídica) e subjetivos (culpabilidade do agente imputável) e demarcando um
horizonte decisório vinculado à legalidade e ao fato-crime cometido, em que a a
subjetividade do autor apenas ingressa como vontade (dolosa ou culposa) e
culpabilidade em relação ao fato; são precisamente as variáveis relativas à
pessoa do autor e outras, exorcizadas pela Dogmática pela porta da frente de sua
construção conceitual que ingressam pela porta dos fundos e preponderam nas
decisões judiciais.
A sentença penal é, efetivamente, muito mais complexa que uma
exclusão/imputação de responsabilidade penal baseada nos Códigos legais e no
Código tecnológico dogmático.
E se os mecanismos de seleção tem uma eficácia conformadora latente
de todo o processo decisório (interpretação da lei, do fato, qualificação jurídico-
penal, individualização e quantificação da pena) levando em consideração a
pessoa do autor mesmo ali onde a legislação penal proibiu de fazê-lo é importante
observar que nas legislações penais, como a brasileira, em que, ao revés, a
individualização da pena reenvia, por expressa disposição legal, para a
consideração de características relativas ao autor, como os "antecedentes", a
"conduta social" e a "personalidade" 234 a porta para o ingresso dos estereótipos
fica "legalmente" aberta.
Quando esta herança visível do instrumental criminológico positivista se
faz legalmente presente o potencial estereotipador se faz explícito e não apenas
latente facilitando, por exemplo a caracterização da "personalidade perigosa" do
criminoso para fundamentar juízos de prognose.
Trata-se, em definitivo, de um (contra)Direito Penal do autor operando
latentemente por dentro de um Direito Penal do fato e submetendo-o até deixá-lo
imerso nele, sendo condicionante da seletividade que a Dogmática Penal não
consegue exorcizar acabando, paradoxalmente, por racionalizar.
Parece então demonstrado que a centralidade e o superpoder garantidor
assumidos pelo Direito Penal e sua metaprogramação dogmática (em detrimento,
também, do próprio Processo Penal) no marco de um modelo integrado de
Ciência Penal235 foi um poder excessivamente superior à sua intrínseca
capacidade.

- Excesso ou sobreprodução de seletividade e legitimação: a eficácia


instrumental invertida e a eficácia simbólica da funções declaradas

234 . Conforme assinalamos no item "11.1", in fine, do terceiro capítulo.


235 . Conforme assinalamos no final do segundo capítulo.
Por outro lado é necessário reconhecer que, paradoxalmente, a atividade
dogmática "(...) para a racionalização e gestação da igualdade exclui por decisão
própria uma série de mecanismos que, vistos em seu conjunto, resultam mais
adequados para a produção do efeito contrário, ou seja, para gestar a
desigualdade." (BARATTA, 1982a, 539)
E que o instrumental conceitual da Dogmática Penal não apenas "frustra
em sua aplicação prática a realização dos princípios dos quais depende a
legitimidade da reação penal em um Estado democrático" mas acaba exercendo
"um papel significativo na atividade seletiva da administração da justiça."
(BACIGALUPO, in MIR PUIG, 1982, p.68-9)
Com efeito, na medida em que a Dogmática Penal é uma instância
interna e não externa do sistema penal ela não apenas tem sido incapaz de
controlá-lo externamente mas tem sido capturada pela sua lógica de
funcionamento, integrando-a e co-participando dela. Assim, o desequilíbrio global
do exercício de poder do sistema penal deixa a Dogmática prisioneira da própria
fantasia que cria definindo seus próprios limites e possibilidades; isto é, não
apenas seus déficit mas também seus excessos funcionais. Por sua vez, a própria
funcionalidade Dogmática não é controlada.
São seis, neste sentido, os resultados das Ciências Sociais até aqui
expostos a reunir e pontualizar:
1) Se os casos que chegam à agência judicial são o produto de uma
seletividade estrutural (controle social informal, criminalização primária,
incapacidade operacionalizadora estrutural do sistema penal, criminalização
secundária) que lhe é submetida à decisão e à qual ela tem regularmente
convalidado e consolidado, como o evidencia inequivocamente a clientela do
sistema penal, tornando o juiz um funcionário, que geralmente não se rebela, do
controle diferencial ou da construção seletiva da criminalidade;
2) Se a regularidade das decisões judiciais seletivas é explicada pela
influência de estereótipos de criminosos e criminalidade, e teorias de todos os
dias dos quais são portadores os juízes (second code) e a opinião pública além de
processos derivados da estrutura organizacional e comunicativa do sistema penal
que reenviam ao status social do processado em detrimento do instrumental
dogmático construído para a imputação da responsabilidade penal e
administradas através da técnica jurídico-penal que deveria reenviar à sua
conduta;
3) Se a uniformização e previsibilidade das decisões judiciais aparece,
conseqüentemente, como probabilidade de que alguns serão selecionados pelo
sistema e outros não, dependendo de seu status social e/ou das exigências do
poder constituído; a igualdade formal aparece como des-igualdade real, a
segurança como insegurança que beneficia determinados grupos e classes sociais
em detrimento de outros, isto é, como injustiça;
4) Se o second code judicial é o que geralmente pauta e condiciona,
efetivamente, o horizonte das decisões mas não se submete à obrigação de
motivação fática e jurídica da sentença permanecendo, por isto, invisível e fora do
controle público ("macrocosmos invisível");
5) Se, ao revés, o código dogmático do Direito Penal do fato, com seu
poder pautador esvaziado, é o que aparece regularmente junto com os Códigos
legais na motivação formal e na justificação da legalidade das decisões seletivas
("microcosmos visível"), permitindo recolocar normas e "conceitos" no lugar
daqueles preconceitos, operando como uma cobertura decisória do (contra)
Direito Penal do autor;
6) Se, enfim, tal colonização do código tecnológico dogmático pelo
second code judicial autoriza a considerar as características nas quais se baseia a
motivação formal da sentença de condenação (como os conceitos de
imputabilidade e culpabilidade) como qualidades atribuídas ao sujeito, os juízos
de imputação de responsabilidade penal nele baseados como juízos atributivos e
a sentença penal como atribuição de responsabilidade penal.
Todos estes argumentos concorrem para uma conclusão genérica
fundamental236: entre a evidência empírica de que o código tecnológico da
Dogmática tem sido utilizado para fundamentar juridicamente e justificar a
legalidade das decisões judiciais e a evidencia empírica de sua incapacidade
racionalizadora para a gestação de decisões igualitárias (soluções iguais para casos
iguais) seguras e justas somente resta a hipótese de que tem concorrido para
instrumentalizar e racionalizar as decisões seletivas acabando por fornecer a elas
uma justificação técnica de base científica, legitimando-as e, na sua esteira a
totalidade do exercício de poder do sistema penal. Pois é em virtude mesmo da
pré-programação legislativa e dogmática da ação jurisdicional que o sistema
penal se legitima pela legalidade.
Por isto, o discurso dogmático cai na onipotência e
"Esta omnipotência nos ensina até hoje que o discurso jurídico-penal
deve legitimar o poder de todo o sistema penal para poder planificar o
exercício de poder decisório da agência judicial nos poucos casos que
as outras agências (executivas) selecionam para submetê-los a seu
conhecimento. (...)"(ZAFFARONI, 1989, p.135-6)

Se a promessa Dogmática de converter-se em Ciência "instrumental" da


justiça penal tem, portanto, sido cumprida, o tem com uma eficácia invertida.

236 .Embora o horizonte teórico e globalizante no qual se insere nossa investigação não nos permita
verticalizar a análise teórica e empírica sobre a seleção operada pela agência judicial (o que
demandaria uma outra tese) na qual infindáveis estudos estão empenhados, os resultados trazidos
à colação permitem obter apenas conclusões igualmente genéricas mas todavia fundamentais sobre
a passagem da impotência garantidora da Dogmática Penal ao seu poder seletivo e legitimador.
Uma explicitação pontual do uso e da elusão do instrumental dogmático nas decisões judiciais
concretas, remete, todavia, à verticalização assinalada.
Ao invés de uma racionalização decisória para a gestação da igualdade e
segurança jurídica ela tem concorrido para a racionalização da seletividade
decisória e da violação dos direitos humanos consumada pela operatividade do
sistema penal, ao mesmo tempo em que colocado em circulação social sinais de
punição perfeitamente ajustados: o simbolismo da segurança jurídica, que cumpre
efeitos fundamentais de legitimação do sistema penal.
Ao mesmo tempo em que a segurança jurídica aparece empiricamente
falsificada, aparece simbolicamente reafirmada. De modo que "compramos a
suposta segurança que o sistema penal nos vende, que é a empresa de mais
notória insolvência estrutural de nossa civilização." (ZAFFARONI, 1991, p.27)
Conseqüentemente, não é pela efetividade da segurança jurídica , mas
pela instrumentalidade real de eficácia invertida e pela eficácia simbólica de suas
funções declaradas - a "ilusão" da segurança jurídica - que dá sustentação aquela
instrumentalidade que pode ser explicada a conexão funcional da Dogmática
Penal com a realidade social e sua marcada vigência histórica.
Não parecem restar dúvidas, pois, de que na lógica global de
funcionamento do sistema penal a ambigüidade dogmática tem sido
excessivamente apropriada pelas exigências de dominação e legitimação. A
segurança do homem tem sido colonizada e hegemonizada pela exigência de
segurança do próprio sistema social que o sistema penal contribui a reproduzir,
exercendo seu poder contra alguns homens - os mesmos expropriados na partilha
real do poder - em benefício de outros - os seus detentores.
Se os espaços de garantismo que o sistema penal possibilita são, por
sua intrínseca "violência institucional", muito vulneráveis - e uma Justiça Penal
recoberta de garantias formais parece ser um reconhecimento inequívoco disto -
hoje está evidenciado que a apropriação dos potenciais garantidores da Dogmática
Penal - que subsistem, todavia, no simbolismo de suas promessas - para uma ação
rigorosamente correta da Justiça Penal somente pode se dar em situações
contingentes e excepcionais. Mas não tem o poder de reverter a lógica da
seletividade e a arbitrariedade do sistema.

- Da Convergência funcional declarada à convergência funcional real e


deslegitimição da Dogmática Penal e da Criminologia e do modelo
integrado de Ciência Penal

Reaparece aqui a convergência funcional latente e real da Dogmática


Penal e da Criminologia positivistas como instâncias do sistema penal
caracterizada, igualmente, por uma eficácia invertida. Pois no lugar de uma "luta"
racional, cientificamente respaldada contra a criminalidade, reaparece uma
convergência tecnológica na criminalização seletiva ou no controle diferencial da
criminalidade e na sua legitimação.237
E tal convergência, possibilitada pela dependência metodológica e
ideológica da segunda em relação à primeira é que pode explicar, por funções
reais e inversas às oficialmente declaradas, o êxito do modelo integral de Ciência
Penal, a denominada Strafrechtswissenschft.

237 .
Se hoje está evidenciado o potencial seletivo desta Criminologia, questão importante entreaberta
é o questionamento do próprio conteúdo seletivo velado ou encoberto da Dogmática Penal. Tal é
precisamente o que sugere BACIGALUPO (1982:68) ao assinalar que "o descobrimento dos
critérios cotidianos de seleção com que operam os órgãos do controle social incidem na vigência
real do princípio constitucional de igualdade perante a lei e sugerem a necessidade de revisar o
conteúdo seletivo implícito das teorias da Dogmática Penal (...)"
Neste sentido, se no marco da Criminologia da seleção tem sido relevada a investigação do second
code de que são portadores os juízes e a opinião pública, não parece ter sido relevada a
interferência do second code do próprio dogmata na sua atividade científica (isto é, na
interpretação e construção teórica da programação penal) e analisado o potencial seletivo do
(seu)código tecnológico que, daí resultante, se interpõe entre a programação penal e as decisões
judiciais.
É é para este que BASTOS (1990, p.53) chama, todavia, a atenção ao constatar que o esforço
dogmático de depuração do sistema legislado deixa entrever, tantas vezes, a "interferência abusiva
de um outro sistema, o do próprio dogmata."
A desconstrução deslegitimadora do moderno sistema penal arrasta
consigo a desconstrução deslegitimadora dos seus paradigmas fundamentais de
sustentação - a Dogmática Penal238 e a Criminologia positivistas - e o próprio
modelo integrado de Ciência Penal que aparece hoje como um modelo
epistemológica e funcionalmente deslegitimado.

Desde a descrição da Criminologia da reação social

"(...) o discurso jurídico-penal ficou irremediavelmente desqualificado


pela demonstração incontestável de sua falácia e a Criminologia
etiológica, complemento teórico sustentador desse discurso, viu-se
irremediavelmente desmentida.
......................................................................................................
[Pois] as investigações interacionistas e fenomenológicas constituem o
golpe deslegitimador mais forte recebido pelo exercício de poder do
sistema penal, do qual o discurso jurídico-penal não mais poderá
recuperar-se, a não ser fechando-se hermeticamente a qualquer dado
da realidade, por menor que seja, isto é, estruturando-se como um
delírio social."(ZAFFARONI,1991, p.60-61)

É assim que tanto ZAFFARONI (1991, p.13 e 19) acentua a


falsificação empírica do discurso dogmático pela operacionalidade do sistema
penal239 e a sua perversão, já que "torce-se e retorce-se, tornando alucinado um
exercício de poder que oculta ou perturba a percepção do verdadeiro exercício de
poder"; quanto BARATTA (1991,p.158-164) acentua a irreversibilidade do seu
atraso teórico face à desconstrução criminológica (liberal e crítica) da ideologia

238 . Reafirmos aqui o ponto de vista, evidenciado ao longo deste e do capítulo anterior, de que a
deslegitimação do sistema penal e do discurso dogmático-penal opera num continnum de correntes
da Criminologia liberal culminando e atingindo um caráter irreversível com o interacionismo
simbólico que fundamentou a Criminologia da reação social, A respeito ver ZAFFARONI, 1991,
p.60,61,67,69 e 172; BARATTA, 1991a e nota "20" do capítulo anterior.

239 .E a tal vincula a sua crise, caracterizando-a como o "momento em que a falsidade do discurso
jurídico-penal alcança tal magnitude de evidência que este desaba, desconcertando o penalismo
da região. " latino-americana. ( ZAFFARONI,1991,p.14)
da defesa social240 e o abismo que hoje separa o conhecimento dogmático do
conhecimento produzido pelas Ciências Sociais.

10.2. Da relação funcional à separação cognoscitiva entre Dogmática


Penal e realidade social

- Recondução do déficit funcional de garantismo ao déficit epistemológico-


cognoscitivo que condiciona os limites racionalizadores da Dogmática
Penal

Com efeito, com o conhecimento produzido pelas Ciências Sociais


sobre o Direito Penal, a criminalidade e a pena relacionadamente à
fenomenologia do controle sócio-penal e demonstrada a abrangência e
complexidade desta, refundamentada fica a separação cognoscitiva entre
Dogmática Penal e realidade social e seu profundo déficit epistemológico-
cognoscitivo.
Da desconstrução teórica e falsificação empírica dos princípios liberais
e da ideologia da defesa social que conformam o seu repertório ideológico241 à
desconstrução de suas promessas são as bases teóricas e ideológicas mesmo da
metaprogramação dogmática para a racionalização garantidora das decisões
judiciais,242 que reassumem aqui, em seu conjunto, todo o seu idealismo.

240 E a tal vincula a crise da Ciência Penal dogmática (BARATTA, 1991, P.162).
241 . Princípios da legalidade, da igualdade jurídica, do bem e do mal, da culpabilidade, da
legitimidade, da igualdade, do interesse social e do delito natural, do fim e da prevenção.
242 . Que descrevemos no terceiro capítulo, em especial nos itens "8 a 10"
É que, em definitivo, há uma distância abissal entre a abrangência e
complexidade da fenomenologia do sistema penal revelada pela Ciência social e
a apreensão reducionista e idealizada que dela faz a Dogmática Penal.
O milagre da abstração normativa e descontextualização que ela
continua a cumprir até hoje consiste na superposição à imagem do sistema penal
como ele é pela imagem do Direito Penal como ele deveria ser.243
Esta superposição idealista resulta de um reducionismo analítico
mediante o qual a Dogmática Penal:
a) captando o Direito Penal como realidade normativa abstraída ao
invés de inserida na totalidade e unidade funcional do controle sócio-penal e
consubstanciada pela separação estática entre norma e aplicação judicial esgota a
complexa fenomenologia deste controle no trânsito da norma à aplicação judicial,
mediante a qual se interpõe, aproximativamente; b) idealizando a racionalidade do
legislador, do juiz e a sua própria, idealiza aquele trânsito como se o juiz realizasse,
neutra e mecanicamente, a programação penal enunciada pelo legislador e por ela
metaprogramada; c) centrando sua atividade comunicacional racionalizadora onde
apreende, esgota e idealiza a materialização do poder punitivo exclui dela,
conseqüentemente, todo o complexo poder do controle social informal e formal
que não reconhece como constitutivo daquele. Ao mesmo tempo, tendo uma
visão idealizada da atividade jurisdicional exclui dela todas as variáveis que não
reconhece como constitutivas das decisões judiciais.
Por não reconhecer as variáveis relativas ao autor, mas unicamente a
variável conduta/fato-crime como constitutiva das decisões judiciais ela
racionaliza esta num preciso esforço, aliás, de exorcização daquelas. E totalmente

243 . A respeito desta idealização ver especialmente o item "10" do terceiro capítulo.
abstraído, acrescente-se, da Dogmática Processual Penal (que igualmente não as
considera constitutivas do processo penal).
Ao mesmo tempo, por não reconhecer a subjetividade do juiz como
constitutiva das decisões judiciais supõe uma recepção mecanicista por ele da lei e
do seu instrumental decisório; isto é, uma incidência direta sobre a decisão.
Por não ter, enfim, uma visão totalizadora e crítica do próprio sistema
ela também não tem, conseqüentemente, uma consciência crítica de sua própria
relação funcional que vá além de uma relação funcional com a aplicação judicial
do Direito Penal, abstratamente considerada, com o que ratifica, também, a idéia
de neutralidade do Judiciário e da Ciência. Por isso mesmo a Dogmática Penal se
concebe como uma ciência "do" Direito Penal ; ou seja, como uma instância
científica sobre ele, servindo à sua aplicação.
Inserida, pois, numa visão liberal de autonomia do jurídico, em especial
do Judiciário, em relação ao político, que a conduz a exaltar o pilar "de Direito"
do Estado moderno e na ideologia da defesa social, a Dogmática Penal
"neutraliza" o próprio poder punitivo demonstrando uma visceral incapacidade
analítica para apreender seu pólo "capitalista" e a relação entre o penal e o poder.
Neste sentido é fundamental reconduzir o déficit funcional de
garantismo ao déficit epistemológico-cosgnoscitivo, pois, sob um argumento
geral pode-se concluir que a incapacidade estrutural da Dogmática Penal para a
racionalização garantidora deriva de sua própria debilidade analítica e idealismo
cognoscitivo.
Tal como argumenta W. PAUL (citado por BASOCO, 1991, p.14)
"(...) o fato de que o controle jurídico-penal na realidade empírica não
funciona, radica em que a concepção teórica de um direito penal
orientado para fins parte de uma ilusão, ou seja, de pressupostos
idealistas, e esquece que da perspectiva pragmática da práxis do direito
penal este não e mais que um direito instrumental (...)"
O problema, portanto, não está na tentativa de racionalização do "ser"
(operacionalização) a partir do "dever-ser" (programação) mas nos
pressupostos idealizados em que esta tentativa se apóia que, embora a
converta numa tentativa análoga à do legendário "Sísifo", convive com uma
onipotência e uma ilusão racionalizadora.
Desta forma, enquanto a Dogmática Penal racionaliza cada vez menos a
violência punitiva, "por esgotamento de seu arsenal de ficções gastas
"(ZAFFARONI, 1991, p.13) e segue ancorada numa visão idealizada do
funcionamento do Direito Penal, na premissa de sua legitimidade e no discurso da
segurança jurídica, os sistemas penais prosseguem na "desmesura" (RESTA,
1991) de sua violência seletiva e, na América Latina, genocida.

- A funcionalidade do déficit epistemológico-cognoscitivo: o código


ideológico-legitimador do discurso dogmático

Mas a complexidade desta espiral nos conduz a ir além. Pois ao se


reconduzir seus déficit de garantismo aos seus déficit epistemológico-
cognoscitivos e concluir que o discurso dogmático é hoje mais do que nunca
contestável como cognoscitivamente atrasado e empiricamente falsificado e que
seu idealismo condiciona, até certo ponto, sua incapacidade estrutural para a
racionalização garantidora, constata-se ao mesmo tempo que o idealismo e a
falsidade do discurso dogmático integra seu código ideológico (ideologia liberal +
ideologia da defesa social) que tem sido fundamental à legitimação e à eficácia
simbólica (reprodução ideológica) do sistema penal.
É precisamente por sobrepor (e socializar) à imagem real do sistema
penal uma imagem ideal do Direito Penal que o discurso dogmático tem
cumprido, exitosamente, uma função legitimadora e que suas funções declaradas
tem tido, uma eficácia simbólica.
Até certo ponto, pois, esta falsidade é duplamente funcional:
condiciona, relativamente, tanto a subprodução de garantismo quanto a
sobreprodução de legitimação; tanto os déficit quanto os excessos funcionais da
Dogmática Penal. Pois condiciona, em proporção diametralmente oposta, seus
limites garantidores e seus potenciais legitimadores.
No marco de uma fenomenologia totalizadora do processo de
criminalização, pois, o déficit e o fracasso do poder racionalizador/garantidor da
Dogmática Penal só encontra contrapartida no excesso e no sucesso do seu
poder racionalizador/justificador e legitimador da totalidade do sistema penal. Até
aqui tem se desenvolvido, exitosamente, como Ciência da legitimação.
Parafraseando o que FOUCAULT conclui sobre a prisão, o sucesso
da Dogmática Penal por dentro de seu aparente fracasso é tamanho que ela se
mantém intacta contra mais de um século de problematizações e críticas.
CONCLUSÃO

"A dogmática jurídica permite a legitimação do poder no direito,


garante o seu funcionamento,sempre irrestrito, com a ficção de um
limite racional. Garante uma fantasia de segurança jurídica para um
poder ambivalentemente limitado e irrestrito." (WARAT,1994, p.87)

Se as promessas da modernidade eram as de generalização e


igualdade no exercício da função punitiva, a Dogmática Penal e a técnica jurídica
correspondente não conseguiriam até agora assegurar esta promessa.
As Ciências Sociais contemporâneas evidenciam que há, para além das
intervenções contingentes, uma lógica estrutural de operacionalização do sistema
penal nas sociedades capitalistas que implicando na violação encoberta
(seletividade) e aberta (arbitrariedade) dos direitos humanos não apenas viola a
sua programação normativa (os princípios constitucionais do Estado de Direito e
do Direito Penal e Processual Penal liberais) e teleológica (fins atribuídos ao
Direito Penal e à pena) mas é, num plano mais profundo, oposta a ambas,
caracterizando-se por uma eficácia instrumental invertida à qual uma eficácia
simbólica (legitimadora) confere sustentação. A potencialidade deste
desenvolvimento contraditório está, todavia, inscrito nas bases fundacionais do
próprio sistema expressando a tensão entre um projeto jurídico-penal
tendencialmente igualitário e um sistema social fundado na desigualdade real de
acesso à riqueza e ao poder; entre a igualdade formal e a desigualdade substancial.
O limite do sistema é, neste sentido, o limite da própria sociedade.
Globalmente considerada, pois, esta lógica se traduz numa
subprodução (déficit) de garantismo e numa sobreprodução (excesso) de
seletividade/arbítrio e legitimação, cuja violência institucional expressa e mantém
um nexo funcional mais profundo com a reprodução das desigualdades sociais,
isto é, com a violência estrutural. E deste desequilíbrio resulta a grave crise de
legitimidade experimentada pelo moderno sistema penal, não obstante a
sobrevivência de sua auto-legitimação oficial associada a demandas Político-
criminais e sociais relegitimadoras de sua intervenção.
Parece suficientemente demonstrado, por outro lado, o caráter
irreversível desta lógica e a impossibilidade da operacionalidade dos sistemas
penais adequar-se à sua programação, já que constitui uma marca estrutural do
seu exercício de poder que não pode ser eliminada sem a própria supressão dos
sistemas penais.
Na medida em que a Dogmática Penal é uma instância interna do
sistema penal ela tem sido capturada pela sua lógica de funcionamento,
integrando-a e co-participando dela ao invés de controlá-la . Assim, o
desequilíbrio global do exercício de poder do sistema penal acaba deixando a
Dogmática prisioneira da própria fantasia que cria condicionando seus próprios
limites e possibilidades; isto é, seus déficit e excessos funcionais. A real
funcionalidade dogmática não se encontra, por outro lado, controlada.
Visibilizado que tal lógica, inserindo-se no continuum do controle social
global, radica na criminalização seletiva de pessoas de acordo com seu status
social e não na incriminação igualitária de condutas, objetiva e subjetivamente
consideradas em relação ao fato-crime, conforme o evidencia a clientela do
sistema penal; que regras e mecanismos de seleção latentes (second code) e
processos de influência colonizam a agência judicial, condicionam e explicam a
regularidade das decisões seletivas às quais o código tecnológico da Dogmática
Penal, embora impotente para pautar, acaba fornecendo uma justificação técnica
de base científica, legitimando-as (pela legalidade) e, na sua esteira, a
operacionalidade global do sistema; e que, como produto desta lógica, é a des-
igualdade, a in-segurança jurídica e a in-justiça que estão sob nossos olhos
visibilizado fica, diretamente, que a lógica de operacionalidade do sistema não
apena viola, mas também é inversa à lógica prometida pela Dogmática Penal. E,
indiretamente, que sua real funcionalidade tem se traduzido numa eficácia
instrumental invertida acompanhada de uma eficácia simbólica.
Pois, ao invés de uma racionalização decisória para a gestação da
igualdade e segurança jurídica ela tem concorrido para a racionalização da
seletividade decisória, ao mesmo tempo em que posto em circulação social
"sinais" de punição perfeitamente ajustados: a "ilusão" de segurança jurídica, cuja
eficácia simbólica tem cumprido efeitos fundamentais de legitimação do sistema
penal.
O controle penal capitalista, que a Dogmática se propõe a racionalizar,
em nome dos direitos humanos e da segurança jurídica exigidos pelo Estado de
direito e o Direito Penal liberal, é o mesmo controle que ela contribui para
operacionalizar e legitimar, mesmo quando opere seletivamente e viole,
sistematicamente, os direitos humanos, configurando um suporte importante na
manutenção da desigual distribuição da riqueza e do poder.
Nesta perspectiva, a radiografia interna dos sistemas penais vigentes é,
também, uma radiografia direta e um testemunho definitivo do profundo déficit
histórico de cumprimento da função instrumental racionalizadora/ garantidora
prometida pela Dogmática Penal (subprodução de segurança jurídica) ao mesmo
tempo em que uma radiografia indireta do cumprimento excessivo de uma função
instrumental racionalizadora da criminalização seletiva e de uma função
legitimadora do funcionamento global do sistema penal (sobreprodução de
seletividade e legitimação) que seu próprio paradigma, latente e ambiguamente tem
potencializado.
Enquanto sua eficácia instrumental tem sido excessivamente inversa à
declarada sua eficácia garantidora tem sido simbólica, devido a aptidão do
código ideológico do discurso dogmático para (re)produzir um certo número de
representações; ou seja, para confirmar a instrumentalidade declarada
subproduzida, ocultando a instrumentalidade sobreproduzida. Pois concorre, de
maneira não desprezível, para socializar a crença e produzir um consenso (real ou
aparente) em torno a uma imagem ideal e mistificadora do funcionamento do
sistema "dentro" da legalidade e da igualdade jurídica, ao mesmo tempo em que
oculta sua real funcionalidade.
O déficit de tutela real dos direitos humanos é assim compensado pela
criação, no público, de uma ilusão de segurança jurídica e de um sentimento de
confiança no Direito Penal e nas instituições de controle que tem uma base real
cada vez mais escassa.
Ao mesmo tempo em que a segurança jurídica aparece empiricamente
falsificada pelo império da in-segurança jurídica, aparece simbolicamente
reafirmada e este simbolismo tem gerado efeitos legitimadores não apenas do
subsistema da justiça mas de todo o sistema penal, acompanhando e sustentando
aquela eficácia instrumental invertida (reprodução ideológica do sistema).
Parafraseando o diagnóstico de SOUSA SANTOS sobre a Ciência
moderna (citado na introdução desta tese) o diagnóstico da Dogmática Penal
como problema reside, conseqüentemente, na dupla verificação de que os
excessos (de violência punitiva) que prometeu minimizar não só não o foram
como não cessam de se reproduzir e de que os déficit (de garantia individual)
que prometeu superar não só não foram superados, como se multiplicaram.
Acresce, que ao longo de sua vigência, a Dogmática Penal não apenas tem sido
incapaz de administrar o desenvolvimento contraditório do projeto da
modernidade que se materializa no sistema penal (maximização da violência e
minimização das garantias) mas ao que tudo indica tem, paradoxalmente, co-
participado do desequilíbrio havido, via técnica jurídica.
A "perversão matriarcal" e o paradoxo da Dogmática Penal na
trajetória da modernidade consiste assim em que ela transita da promessa de
controle da violência à captura e co-participação na violência do controle penal e
sua vocação pautadora humanista aparece colonizada e submersa por sua
vocação técnica e legitimadora.
Se apreendemos a modernidade, o sistema penal e sua Dogmática
desde a ótica da contradição básica entre exigências de dominação e legitimação
(pilar da regulação) e exigências humanistas (pilar da emancipação) não parecem
restar dúvidas de que na lógica global de funcionamento do sistema penal a
ambigüidade dogmática tem sido excessivamente apropriada pelas exigências do
primeiro pilar. A segurança do homem tem sido colonizada e hegemonizada pela
exigência de segurança do próprio sistema social que o sistema penal contribui a
reproduzir, exercendo seu poder contra alguns homens - os mesmos
expropriados na partilha real do poder - em benefício de outros - os seus
detentores.
Se os espaços de garantismo que o sistema penal possibilita são, por
sua intrínseca "violência institucional", muito vulneráveis - e uma Justiça Penal
recoberta de garantias formais parece ser um reconhecimento inequívoco disto -
hoje está evidenciado que a apropriação dos potenciais garantidores da
Dogmática Penal - que subsistem, todavia, no simbolismo de suas promessas -
para uma ação rigorosamente correta da Justiça Penal somente pode ser dar em
situações contingentes e excepcionais. Mas não tem o poder de reverter a lógica
da seletividade e a arbitrariedade do sistema. Não pode modificar sua natureza e
resolver a crise de legitimidade que o afeta, ainda que por estas contradições.
Conseqüentemente, a relação funcional da Dogmática com a realidade
social e sua marcada vigência histórica se explica pelo cumprimento excessivo de
uma função instrumental latente e oposta à declarada (instrumentalidade de
eficácia invertida) e de uma função simbólica confirmadora desta (declaração de
eficácia simbólica) não obstante seu déficit empírico. Até aqui tem se
desenvolvido, exitosamente, como Ciência da legitimação.
E o sucesso no cumprimento de tais funções instrumentais e
simbólicas por dentro do fracasso de suas funções declaradas tem sido tamanho
que ela se mantém vigente contra mais de um século de problematizações e
críticas.
Por outro lado, se o desequilíbrio do sistema penal, do qual a
Dogmática Penal acaba prisioneira, encontra seu limite na própria sociedade, não
podendo ser atribuído unicamente às suas limitações, a incapacidade até aqui
demonstrada para controlar a violência e garantir os direitos humanos, isto é, seu
déficit funcional de segurança jurídica remonta, de qualquer modo, à sua própria
debilidade analítica e idealismo; ou seja, à profunda separação cognoscitiva entre
Dogmática e realidade social e aos seus déficit epistemológico-cognoscitivos.
É que, em definitivo, há uma distância abissal entre a abrangência e
complexidade da fenomenologia do sistema de controle penal, revelada pelas
Ciências Sociais, e a apreensão reducionista e idealizada que dela faz a
Dogmática Penal e na qual a esgota. E seu campo de intervenção vital e poder
garantidor nesta fenomenologia é muito menor do que o dogmaticamente
idealizado e prometido.
Ela capta e pretende racionalizar o Direito Penal mediante sua abstração
normativa e descontextualização do sistema penal, superpondo à imagem do
sistema como ele é e funciona, a imagem do Direito Penal como ele deveria ser e
tratando-o como se de fato fosse.
O problema, portanto, não aparece na tentativa de racionalização do
"ser" (operacionalização) a partir do "dever-ser" (programação) mas nos
pressupostos idealizados em que esta tentativa se apóia, que conduzem a
Dogmática a excluir dela, conseqüentemente, os elementos e fatores reais que
integram e condicionam a fenomenologia do sistema.
Do pilar do garantismo, o grande problema que subsiste, pois, é que
a Dogmática Penal ainda não renunciou à sua onipotência quando aparece hoje
demonstrado que a centralidade e o superpoder garantidor por ela assumido no
marco de um modelo integrado de Ciência Penal foi um poder excessivamente
superior à sua intrínseca capacidade.
Desta forma, enquanto os sistemas penais seguem a marcha de sua
violência aberta e encoberta contra os sujeitos que vivem em simbiose com ele e
vivemos o império da insegurança jurídica "com" uma Dogmática Penal simbólica,
esta segue ancorada numa visão idealizada (ideologizada) do funcionamento do
Direito Penal, na premissa de sua legitimidade e na ilusão de segurança jurídica e
as Escolas de Direito e os Tribunais seguem sustentando, no prolongamento da
comunidade científica, a sua reprodução. Pois, no fundo, a fantasia da segurança
jurídica não deixa de ser também a fantasia de poder que alimenta a onipotência
dogmática e dos próprios operadores jurídicos formados na sua tradição.
Mas se o conhecimento produzido pelas Ciências Sociais sobre o
sistema penal (incluindo o Direito Penal, a criminalidade e a pena) permite hoje
refundamentar a profunda separação cognoscitiva da Dogmática Penal com a
realidade social, o atraso teórico e a falsificação empírica de seu discurso e
afirmar que tais déficits cognoscitivos condicionam, até certo ponto, seu déficit
funcional; constata-se ao mesmo tempo que tal idealismo e falsidade integram
seu código ideológico (ideologia liberal e da defesa social) que tem sido
fundamental à legitimação (reprodução ideológica) do sistema penal.
É precisamente por sobrepor à imagem real do sistema penal uma
imagem ideal do funcionamento do Direito Penal que o discurso dogmático tem
tido uma eficácia simbólica legitimadora.
Até certo ponto, pois, tal idealismo e falsidade tem sido duplamente
funcional, condicionando, relativamente, tanto a subprodução de garantismo
quanto a sobreprodução de legitimação; tanto os déficit quanto os excessos
funcionais da Dogmática Penal. Pois condiciona, em proporção diametralmente
oposta, seus limites garantidores e seus potenciais legitimadores.
Se a complexidade da vigência dogmática como instância do sistema
penal radica, pois, em que seu fracasso desde o pilar do garantismo é
acompanhado do seu sucesso desde o pilar da regulação, esta mesma
complexidade se transporta inteiramente do plano de sua vigência para o de sua
crise.
A Dogmática Penal aparece, desta perspectiva, igualmente prisioneira
do processo de dupla via a que desenvolvimento contraditório do sistema penal
conduziu: uma grave crise de legitimidade que não afeta, todavia, sua
sobrevivência histórica e a continuidade de sua auto-legitimação oficial na qual a
Dogmática continua sendo uma discursividade fundamental.
Desta forma, se desde o pilar da regulação a Dogmática continua se
mostrando funcional à reprodução do sistema , desde o pilar do garantismo e de
suas funções declaradas ela experimenta, contudo, uma profunda crise de
legitimidade que, exposta pelos seus déficit e excessos funcionais, decorre da
própria crise de legitimidade do sistema penal: a deslegitimação do sistema arrasta
consigo a deslegitimação da Dogmática e do próprio modelo integrado de Ciência
Penal a que se vincula na modernidade e o problema de sua justificação retorna,
paradoxalmente, à posição fetal: como conter os excessos de violência e
superar os déficit de garantismo já não da antiga, mas da moderna Justiça Penal?
Reconduzida, contudo, da dimensão funcional à epistemológico-
cognoscitiva, tal crise de legitimidade pode ser vista, num plano mais profundo,
como sinalizadora de uma crise de paradigma. Pois o efeito cumulativo gerado
pela dificuldade histórica da Dogmática Penal resolver os problemas práticos a
que se propôs - cumprir as promessas - do interior de seus pressupostos e
conhecimento aponta para o esgotamento e bloqueio destes para a
funcionalização prática declarada e o próprio paradigma é que passa a se revelar
como fonte última de problemas e incongruências.
Pois, não apenas aparece demonstrada a incapacidade da Dogmática
Penal manter o equilíbrio do sistema como aparecem com maior razão esgotadas
as possibilidades dela conter o seu desequilíbrio e reverter a sua crise de
legitimidade, que aparecem como irreversíveis. Neste sentido, nem o déficit de
garantismo do sistema nem o seu déficit cognoscitivo parecem recuperáveis
desde o seu interior.
A crise da Dogmática Penal é, assim, uma crise complexa que está em
curso mas não parece consumada, pois, num sentido amplo, podemos
acompanhar GRAMSCI (1971, p.25-6) afirmando que "a crise consiste
precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer;
neste interregno, surge uma grande variedade de sintomas mórbidos".
Ao tempo em que finalizamos esta conclusão ela parece reencontrar
seu verdadeiro início. Pois o pretendido balanço do presente mediante o retorno
ao passado entreabre necessariamente o interrogante sobre o desdobramento da
crise e o futuro da Dogmática Penal.
Se este não é um interrogante a que nos propomos e podemos
responder, é de todo conseqüente com as linhas orientadoras desta tese afirmar
que o desdobramento desta crise e o futuro da Dogmática Penal não pode ser
pensado no marco da lógica problema-solução pontual, mas somente pode sê-lo
como processo, tão dinâmico e contraditório como o tem sido a vigência histórica
do sistema e da Dogmática Penal. E situar, como seu desfecho conclusivo, os
caminhos que visualizamos neste processo; caminhos que confrontam, a um só
tempo, a conservação e a transformação da Dogmática Penal.
Na medida em que o tempo presente é um tempo de tensão entre a
sobrevivência, a relegitimação político-criminal, desde a teoria da prevenção-
integração, passando pelos movimentos de lei e ordem e outras demandas sociais,
do velho sistema penal em aguda crise de legitimidade e a demanda criminológica
e político-criminal crítica pela sua transformação e superação; a sobrevivência da
Dogmática encontra-se também inscrita nesta tensão entre a permanência e
relegitimação do velho e os sinais do novo.
Pois, se de um lado assistimos à sobrevivência da Dogmática Penal e a
continuidade do pensamento sistemático, que representa a conexão com o
passado; de outro lado assistimos, em meio à sua atual crise de legitimidade, à
recepção de tendências político-criminais funcionalistas, relegitimantes e
conservadoras, e de tendências criminológicas críticas transformadoras.
Na medida em que a Dogmática Penal mantém intacto seu discurso ou
tende para uma refuncionalização político-criminal segundo um modelo
tecnocrático relegitimador, como é o da prevenção-integração, que além de não
problematizar suas premissas e as do próprio poder punitivo rompe com o
próprio pacto dogmático com a segurança jurídica, subsiste a relação funcional
da Dogmática com o sistema de controle penal e sua posição no modelo
integrado de Ciência Penal, não havendo como libertar-se da captura pelo
sistema. E a velha convergência funcional entre Dogmática Penal e Criminologia,
também deslegitimada, pode sobrevevir indefinidamente com o próprio sistema e
inclusive sair fortalecida da crise.
A possibilidade, por outro lado, de que no desdobramento desta crise
se realize uma transformação da Dogmática Penal e de sua relação funcional com
o sistema penal tendente a compensar o pilar dos Direitos Humanos e a interagir
com o próprio sistema depende do deslocamento de sua separação à sua
aproximação e abertura cognoscitiva para a realidade social; de seu monólogo e
isolamento acadêmico à busca do diálogo interdisciplinar; da reprodução à
auto-crítica e suspensão do dogmatismo na Ciência Penal e da dogmatização à
problematização de suas próprias premissas.
E como a relação da Dogmática com a realidade social é uma relação
mediada pelo sistema penal no qual se insere, é apenas a recepção dos resultados
das Ciências sociais, em especial da crítica criminológica, sobre o real
funcionamento do sistema, que pode conduzir a este deslocamento. A
possibilidade desta transformação depende assim, de maneira relevante, da
relação que se estabeleça entre Dogmática Penal e Criminologia crítica no marco
de um novo modelo integrado de Ciência Penal.
O ponto da mutação já se encontra, desta perspectiva, instaurado. Ele
radica no aprofundamento e radicalização do caminho aberto pela parceria
Criminologia-Penalismo crítico, cujo elo reside no desenvolvimento do aspecto
crítico da Criminologia ao encontro do aspecto garantidor do Direito Penal
dogmático e vice-versa; ou seja, no caminho de um garantismo crítico a curto e
médio prazo inserido no horizonte utópico de superação do velho sistema de
controle penal.
Pois é ela que tem protagonizado, em toda sua extensão, o aludido
deslocamento e, a partir dele, as bases da reconstrução/transformação da
Dogmática Penal e do modelo oficial integrado de Ciência Penal, partindo de
uma inversão das próprias premissas sobre as quais assenta a Dogmática Penal :
da assunção da legitimidade à assunção da perda de legitimidade do sistema e da
Dogmática Penal e do esgotamento do seu discurso e poder para bloquear a
violência ascencional do sistema.
Não parece ser desprovido de sentido ver então no conhecimento
produzido no marco desta parceria uma "Ciência extraordinária" no sentido
kuhneano. Pois tal é precisamente a atividade que se desenvolve quando um
paradigma - o dogmático - começa a dar sinais de crise e até que seja substituído
por outro. O cientista extraordinário é tal precisamente por ter problematizado o
modelo cientifico tradicional e rompido com ele ao perceber suas falhas e
anomalias buscando um novo instrumental para resolvê-las e chegando
eventualmente a propor e até a impor um novo paradigma. Ele não lida com
quebra-cabeças mas com autênticos problemas para os quais o paradigma vigente
não oferece meios de solução e exigem um novo paradigma de acordo com o qual
seja possível tratá-los e resolvê-las.
Delineia-se assim o deslocamento de um garantismo abstrato, que
segue orientando a Dogmática Penal , enquanto "Ciência normal", para um
garantismo crítico e criminologicamente fundado, que orienta a tematização da
"Ciência extraordinária" a qual resgata e reatualiza, por sua vez, as próprias
promessas da Dogmática Penal para a modernidade, repensando-as sobre as
contradições do tempo presente.
A declaração dos Direitos Humanos e de um homem recoberto de
garantias pela Justiça Penal que dela decorre não é, portanto, um "nada"
jurídico, pois ela se encontra nesta virada de milênio e quiçás de modernidade tão
viva no horizonte do futuro quanto se encontrou no horizonte pretérito da Ciência
Penal.
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