A mulher de dois esqueletos
De Julia Dantas
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A mulher de dois esqueletos - Julia Dantas
Sumário
Capa
A selva
Invasões
A selvageria
A boneca
Quarenta
Os Ramis
Japão
Tempos violentos
Runas
Agradecimentos
Texto da orelha
Sobre a autora
Créditos
Pontos de referência
Página de Título
Capa
Corpo Principal da Obra
aselvaEra a minha vez de dormir na cama, mas a Elenita não parava de reclamar de dor nas costas, então cedi minha noite pra ela. A Dolores ficou um pouco incomodada. Eu nunca tinha cedido minha vez pra Dolores, ela era até um pouco mais velha que a Elenita, e as duas, é claro, muito mais velhas do que eu, que acabei de fazer vinte anos e nem sei bem como me meti nessa furada.
Me avisa se eu estiver falando muito rápido, não sei há quanto tempo tu é tradutora de português, mas vou te contar com calma. Fazia dez dias que a gente estava acampado. Eram mais de mil pessoas barradas entre o nada e o lugar nenhum, amontoadas nas margens do rio, sobrevivendo às custas da caridade dos moradores do povoado e de uns voluntários da Unicef que tinham montado o acampamento. A gente tinha passado a parte mais difícil da selva, entre a Colômbia e o Panamá, e a próxima travessia era pra Costa Rica, mas, do dia pra noite, as fronteiras deixaram de ser os lugares onde encontrar os coiotes para se tornarem bloqueios reais que tentavam frear a chegada desse vírus maldito. Nosso objetivo era chegar nos Estados Unidos, bom, disso o delegado aqui já sabe, tá traduzindo tudo pra ele? Mas então, lá, cada um tinha um sonho esperando. Alguns iam se reunir com parentes que tinham ido antes, outros queriam emprego, dinheiro, uma menina até sonhava em ser atriz famosa, coitada. A Elenita e a Dolores tinham expectativas mais humildes. O filho de uma delas, um garçom ilegal em Nova Iorque, tinha casado com a filha da outra, uma cabelereira em Nova Jérsei, e as duas nem que riam ficar pra morar lá, só queriam estar junto no nascimento do primeiro neto e ajudar durante uns meses com a criança. Por isso elas tinham topado viajar aquela quantidade absurda de quilômetros atravessando o inferno da selva, e isso que as duas têm, sei lá, mais idade que a minha mãe. Mas enfim, tudo à toa, porque foi tudo interrompido por esse micróbio do diabo. E eu? Eu tava indo atrás do James. É claro que naquela época eu não sabia que ele era um miserável.
A gente tinha se conhecido numa praia ridiculamente paradisíaca de areia branca e mar turquesa do Caribe colombiano, e essas coisas fazem a gente se apaixonar. Além disso, ele era bonito, muito bonito, e falava um espanhol patético que fazia o meu portunhol parecer menos lamentável, e eu gostava de me sentir mais inteligente do que ele. Ele tinha um PhD em alguma coisa muito difícil, tipo biofísica ou astrofísica ou biomedicina, sei lá, e eu não tinha nem passado no vestibular, mas agora ele dependia totalmente de mim pra pedir a comida certa no restaurante. Eu gostava de ter esse micropoder sobre aquele homem todo musculoso e todo cheio de oh, nos Estados Unidos eu nunca vi nada tão exótico, e, pensando agora, eu já devia ter notado aí que ele era um idiota, porque ele tava falando só de uma pamonha salgada, quem é que chama pamonha de exótico? Mas enfim, ele era bonito, muito bonito, e eu, como tu pode ver, não sou nenhuma capa de revista, né, por isso eu preciso aproveitar agora pra pegar uns caras bonitos, enquanto eu ainda tenho a vantagem de ser jovem. O próprio James, gatíssimo, só me deu bola porque ele tinha trinta e cinco anos e porque na pousada as mulheres mais bonitas não entendiam nada do que ele falava.
Mas aí eu acreditei que o James tinha começado a gostar de mim de verdade, o efeito romântico do lugar, coisa e tal, e quando chegou o dia dele voltar pra casa, o James disse que eu devia ir com ele. Fiquei surpresa, mas decidi pagar pra ver. Eu fiquei com vontade de ir, é claro, porque eu não conheço os Estados Unidos e não tinha passado no vestibular mesmo, então não restava nada pra fazer em casa e, enfim, ele era realmente muito bonito. Eu sei que tô me repetindo, mas é que não sai da minha cabeça, tu não quer mesmo ver uma foto? Tá, desculpa, eu sei que tu é só a tradutora, mas tu tá tendo que contar tudo o que eu digo pro delegado, então é melhor saber dos fatos. Tu perguntou pro delegado se ele não quer ver a foto? Tá bom. Enfim, o James foi embora pra Chicago, e eu disse que ia dar um jeito de visitar ele assim que desse. Acontece que eu não tenho sequer passaporte, nunca cheguei nem perto de um visto e até uns dias atrás nem sabia que raios era um green card, foi a Elenita que me ensinou que a filha dela tá tentando conseguir um desses. Meus pais viajam muito, mas eu sempre tive pânico de avião. Pânico real, sabe? Além do mais, sei lá, pra mim essas burocracias aí são uma merda. Eu só queria passar um tempo em Chicago.
Então quando fui ver como chegar lá, o dono da pousada disse que eu podia falar com o Rambo, e eu não tô inventando, ele disse Rambo mesmo, porque o Rambo levava pessoas pro outro lado da fronteira do Panamá, depois pra Costa Rica e aí nos entregava pra alguém que ia nos levar até os Estados Unidos, e tinha um grupo que ia sair dali uns três dias. Aí lá fui eu atrás do Rambo, né, com as lembranças do James na cabeça e os dólares que meu pai tinha me dado no bolso. O Rambo era tipo um anão, mas sem formato de anão, sabe? Um cara normal, mas bem pequeno. Aí o Rambo me expli cou o percurso todo, e era um absurdo, tinha caminhão, barco, floresta, a loucura toda, e é claro que eu devia ter pulado fora quando um anão chamado Rambo disse que a gente tinha que passar quatro dias atravessando a selva tomando cuidado com as cobras e os traficantes, mas sei lá, né, o próximo vestibular ia ser só em novembro, eu tinha quase o ano todo pra espairecer. Espairecer e colocar as ideias no lugar, como diz o meu pai. Eu sei que não era isso que o meu pai tava pensando quando pagou a viagem, mas eu já tô na idade de fazer minhas próprias escolhas, né? Então, beleza, combinei com o Rambo de ir no próximo grupo dele, eram mais de mil pessoas, e a gente saía no sábado.
Olha, moça, desculpa, eu acho que me empolguei e perdi o fio da meada, porque o que eu queria contar era da noite do apagão, quando era meu direito dormir na cama mas eu deixei a Elenita pegar o meu lugar. Quando eu explicar o que aconteceu, tu e o delegado aqui vão entender o meu lado e vão ver que, no fundo, eu não fiz nada de tão errado assim e que não faz sentido me manter aqui ocupando espaço. E, moça, eu sei que quem decide é ele, mas tu podia me ajudar. Eu só quero mesmo chegar em casa, eu juro que desisti totalmente de ir pros Estados Unidos, do James, de tudo, não quero mais nada com aquele desgraçado, com aquele país todo contaminado, quero nada lá, não.
Tá bom, vou continuar contando.
O negócio é que a gente tava súper desamparado lá no acampamento. Não fosse esse coronavírus aí, era pra gente ficar só um dia ali, mas aí apareceram uns carros do governo, o povo lá da Unicef, uns militares tudo armado, e eles disseram que não iam poder deixar a gente continuar o trajeto. Porque essas coisas são uma viagem, né? Claro que ninguém lá tinha pedido visto pra porra nenhuma, mas todo mundo sabe que aquele mar de gente tá indo pros Estados Unidos pra ver se consegue alguma coisa e ninguém se mete. Mas aí com