Esperança para voar
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Esperança para voar - Rutendo Tavengerwei
Tavengerwei
Parte um
Janeiro de 2008
1
O coração de Shamiso se quebrou em um calafrio. Ela ouvia o percurso jazzístico da mbira¹ em espirais pelo ar. O pai teria amado este som. Ela olhou para a mãe, que estava ao seu lado, abanando o pescoço suado. Ela parecia preocupada. A música continuou tocando, dolorosa e familiar.
Quando Shamiso tinha oito anos, o pai tinha insistido que ela aprendesse a tocar. As teclas de metal machucavam as pontas dos dedos quando ela as pressionava. Uma série de notas confusas que se atropelavam para formar uma discórdia gloriosa. A frustração tinha sido demais para uma criança de oito anos, piorada pelo fato de nenhuma das crianças na escola saber o que era aquele instrumento.
Shamiso escutou a voz da mbira se erguer orgulhosamente. Quem quer que estivesse tocando, sabia o que estava fazendo. Ela conseguia ouvir um zumbido ao fundo, que ia bem com a canção. E neste barulho magnífico flutuavam todas as memórias e todos os sentimentos que ela estava tentando ignorar.
A mãe permanecia ao seu lado, tentando decidir para onde elas deviam ir. Shamiso sentia-se anestesiada, olhando para baixo, para seus sapatos novos e brilhosos, e escutando a música que perturbava o ar.
– Shamiso… – a mãe hesitou. – Você está bem?
– Eu já falei – Shamiso murmurou, prendendo a respiração. – Eu não quero ir para um internato. Especialmente aqui!
Ela assistiu a mãe secar o pescoço molhado como se não tivesse escutado. A blusa dela estava colada na pele, úmida de suor.
– Não há tempo pra chorar – a mãe disse, doce. – Seque suas lágrimas, mwanangu². Você vai ficar bem – disse, indicando o prédio da administração na frente delas.
Shamiso enxergou a exaustão no rosto da mãe quando elas pegaram a bagagem e se dirigiram à recepção. Elas sentaram na sala de espera e olharam ao redor. O jovem atrás da mesa da recepção parecia preso em um tsunami de ligações. As paredes eram forradas de fotos de ex-alunos em diferentes eventos de diferentes anos. Shamiso conseguia escutar partes da conversa de dois homens que estavam parados na porta.
– ... sim, mas nos mantendo afastados... nós... estamos só punindo as crianças – um dos homens disse, de forma bastante lenta. Shamiso manteve a cabeça abaixada, concentrando-se nas notas da mbira.
– Você está começando a parecer aquele jornalista… – o outro homem comentou.
Shamiso levantou a cabeça. Os homens pareciam ser professores, mas ela mal podia escutar o que diziam. Ela se inclinou para o lado deles.
– Claro… nós… temos que ser espertos agora – o primeiro homem continuou, falando mais alto.
Uma bolha de raiva se formou na garganta de Shamiso. Ela tentou se manter calma. Seus ouvidos detectavam a música, que estava lentamente se transformando em uma canção. Ela se perguntou se algum dia ela teria tocado desse jeito.
As notas cutucavam seu cérebro. O pai costumava dizer que, para ele, este som representava o lar; uma guitarra roubada da natureza. Ela fechou os olhos. Memórias apareceram, vívidas, em sua mente. Os dedos dele dançando nas pequenas teclas; os lábios dele contraídos, a música rodopiando. Ela prendeu a respiração, com medo de expirar cedo demais e perdê-lo.
Uma voz inesperada a trouxe de volta para o presente:
– Aaah, é seu primeiro dia, é?
Shamiso abriu os olhos e os secou com as costas da mão. Uma garota estava na sua frente, segurando uma pilha de livros. Seu cabelo encaracolado estava preso firmemente em um coque. Ela parecia estar a caminho da sala dos professores.
– Recém-chegada ou ano inicial? – a garota perguntou.
– Sou nova... – Shamiso murmurou.
– Mas olha só! Parece que temos uma britânica – a garota anunciou.
Shamiso rangeu os dentes. A porta da sala dos professores se abriu de repente. Uma professora estava na entrada, bloqueando a visão como se a sala fosse um destino sagrado que os alunos não podiam ver. Tudo que Shamiso ouvia eram risadas enquanto a professora mandava a garota entrar na sala.
– Bom, não se preocupe, Majestade, com certeza vai ficar pior. Receio que a Rainha não venha aqui tomar chá – a garota disse, tentando imitar o que ela pensava ser um sotaque britânico, antes de seguir a professora para dentro.
Shamiso se segurou para não ir atrás dela. Ela estava há tão pouco tempo no país e já tinha certeza de que não gostava nem um pouco dele.
2
Shamiso estava ao lado da diretora da escola. A mãe tinha ido embora – não que Shamiso quisesse que ela ficasse. A diretora pediu que o resto da turma se sentasse.
Shamiso estava inquieta. Sentia as axilas ardendo e o medo ridicularizando seu rosto. Da última vez em que ela estivera em um lugar novo, o pai estava com ela. As coisas sempre pareciam se ajeitar quando ele estava no comando. Puxou os punhos das mangas do cardigã e segurou-os firmemente.
– Bom dia, turma – a voz de hadeda³ da diretora ecoou. Ela examinava a classe como uma deusa, com as mãos pregadas aos lados do corpo e os óculos balançando na ponta do nariz. Vestia um terninho azul marinho impecável, que enfatizava seu rosto severo. O cabelo grisalho, crespo e escasso parecia cansado, como se ela só tivesse mais um ou dois anos antes de ficar careca.
– Escutem; a senhorita Muloy está aqui comigo. Ela é nova e vai se juntar a nós neste semestre. Quero deixar claro que aqui na Oakwood nós nos orgulhamos muito da nossa hospitalidade – ela pausou, provavelmente para causar um efeito. Os óculos dela tinham escorregado até a pontinha do nariz e ela colocou uma mão no ombro de Shamiso. – Tem uma mesa vaga no fundo. Você pode ir até lá.
Era óbvio que Shamiso não queria estar ali. Seus punhos estavam grudados ao quadril e sua respiração estava pesada. Ela olhou para os alunos, cada um com algum tipo de livro em sua frente e colocados perfeitamente em suas mesas, como se alguém tivesse alinhado todos cuidadosamente. Suas camisas eram de um branco chocante, as meninas vestiam cardigãs verdes, e os meninos, marrons.
A sala, por outro lado, estava velha, com a tinta descascando e Post-its antigos colados às paredes, janelas com molduras enferrujadas e piso de madeira. Ela olhou para o piso. Ela se identificava com a aparência cansada e malcuidada.
– Você pode sentar – a diretora disse, mas era como se Shamiso não estivesse em seu corpo. Ela continuou de pé, quase atordoada, os pés formando um tipo de conexão com o piso.
– Sentar ou não sentar, eis a questão – um dos alunos brincou. O resto da turma caiu na gargalhada e Shamiso voltou para a realidade.
– Quietos! – a diretora disse e então dirigiu-se a uma das meninas sentadas na primeira fileira. – Paida, você não deveria estar mantendo a turma sob controle até o professor chegar? – os olhos de Shamiso se arregalaram. A garota! Era a garota da recepção! Ela se virou para a diretora.
– Senhora, por causa da greve a srta. Ndlovu não tem vindo dar aula. Nós temos lido peças de Shakespeare. Acho que o Tinotenda está se referindo a isso – a menina disse, com um sorriso irônico.
A diretora parou na porta.
– As coisas não têm estado fáceis para a equipe, mas eu vou falar com a srta. Ndlovu – ela pausou. Três linhas se formaram em sua testa. – Paida, posso confiar que você vai ajudar na adaptação da senhorita Muloy?
– Sim, senhora! – a menina respondeu, confiante.
Assim que a diretora se afastou o bastante, a turma irrompeu em conversas. Só uma coisa agradava Shamiso nesta situação: ela podia ficar sentada no fundo, escondendo-se e fingindo ser parte da parede. Ela abriu a mesa, lutando contra o caroço em sua garganta. Precisava se acalmar. A mãe tinha insistido nessa escola. Ela estava convencida de que só uma escola missionária garantiria uma educação de qualidade, e gastou tudo que tinha para pagar as taxas.
Oakwood High era uma das poucas escolas missionárias restantes no país, construída pelos missionários durante a guerra de libertação dos tempos coloniais. Ela ficava perto de Chinhoyi, a apenas alguns quilômetros da capital, Harare. A escola estava lá há anos, prosperando devido a sua taxa de aprovação excepcional e aos seus bons princípios.
Viajar até a Oakwood tinha sido, praticamente, um pesadelo. Como a gasolina estava escassa, só alguns ônibus iam até Chinhoyi todos os dias. O ônibus estava lotado além da capacidade máxima, apesar do calor. Shamiso se apoiou na janela da sala de aula, sentindo-se grudenta e sedenta por ar fresco. Ela secou o suor da testa e observou o enorme carvalho no pátio da escola. Ele a fazia pensar em sua casa.
– Sabe, é sempre uma boa ideia chegar um dia antes. Evita o estresse e a frustração – disse a aluna sentada na mesa da frente, virando-se para encará-la. Ela tinha uma voz delicada, suave como ondulações na água, e um sorriso que se acendia como gasolina. Ela estendeu a mão.
Shamiso fechou a tampa da mesa, os olhou passando do rosto da menina para a mão estendida. Ela tinha olheiras que pareciam carregar um universo de cansaço. Shamiso a encarou por mais um segundo e desviou o olhar. Viu uma mbira debaixo da cadeira da menina. Piscou rapidamente, pegou a mochila e encontrou um livro.
– Você vai precisar de amigos por aqui – a menina disse, dando uma risadinha. – Quando você perceber isso, meu nome é Tanyaradzwa.
3
A mãe de Shamiso estava no ônibus a caminho de casa. Ela sabia que a filha odiava o novo lar. Honestamente, ela também odiava. Mas precisava se manter firme para que elas pudessem superar isso tudo. Olhou pela janela, assistindo as árvores que ficavam para trás. As mensalidades da escola de Shamiso iam mutilar as suas economias. Mas ao menos o novo ambiente distrairia a filha por algum tempo. Ela se abanou com a