Memórias de um cirurgião-barbeiro
De Heitor Rosa
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Memórias de um cirurgião-barbeiro - Heitor Rosa
Heitor Rosa
Memórias de um cirurgião-barbeiro
2018
minotauroMEMÓRIAS DE UM CIRURGIÃO-BARBEIRO
© Almedina, 2020
AUTOR: Heitor Rosa
EDITOR DE AQUISIÇÃO: Marco Pace
DIAGRAMAÇÃO: Juliana Smeers e Almedina
DESIGN DE CAPA: Zeca Martins
ISBN: 9786587017037
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Rosa, Heitor
Memórias de um cirurgião-barbeiro / Heitor Rosa. -- São Paulo : Almedina, 2020.
ISBN 978-65-87017-03-7
1. Ficção brasileira I. Título..
20-36509 CDD-B869.3
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura brasileira B869.3
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).
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Julho, 2020
EDITORA: Almedina Brasil
Rua José Maria Lisboa, 860, Conj.131 e 132, Jardim Paulista 01423-001 São Paulo | Brasil
www.almedina.com.br
"Esses banhos que sujam, esses ares que asfixiam,
esses suores que destilam as vergonhas..."
Giuliano da Rosa
L’arte medica de Verona
Sumário
Parte I
Giuseppe, meu pai
Tornando-me cirurgião-barbeiro
O filho da luz
Conhecendo o Mal Francês
Naturalia non turpia
Escondendo-se para suar
Syphilis sive morbus gallicus
Os apuros de Clemente
Paixão em Veneza
As alegrias e dores de Fra Gabrielli
Fracastoro no Palácio do Doge
A lição de Fracastoro
Em busca do amor perdido
Parte II
Fracastoro no Concílio de Trento
Fracastoro consulta os astros
Meu avô Francesco
A última lição de Fracastoro
A notícia
Parte III
O fim do poeta
O segredo de Fracastoro
Epílogo
Nota do impressor
Referências e créditos das ilustrações
Parte I
Giuseppe, meu pai
Meu nome é Gioacchino dalla Rosa. Nasci nesta aldeia de San Giovanni Lupatoto, nos arredores de Verona. Jamais pensei em escrever um livro, pois só as pessoas muito letradas e de várias leituras sabem fazê-lo; além disso, nunca me julguei com talento para essa arte. Entretanto, dois períodos de minha infância refletiram-se na minha atual velhice e ajudaram-me a produzir este volume.
O primeiro corresponde às histórias de meu avô, contadas por papai, referindo-se às suas anotações como cirurgião-barbeiro. Não se sabe por que vovô registrava em minúcias os casos atendidos, talvez por ser um homem rigorosamente organizado, que trazia por escrito suas compras, vendas, os empréstimos ou qualquer outra coisa que pudesse ter valor e precisasse de um documento. Aquele tesouro de pergaminhos despertou-me o desejo de decifrá-los, pois nada me parecia mais misterioso do que saber ler e trabalhar com a escritura. Prometi-me imitá-lo.
O segundo período, e mais marcante, foi o tempo que passei, dos dez aos quinze anos, repartido entre ajudar meu pai e frei Bonifácio. Uma vez por semana eu ficava o dia inteiro à disposição do frade, na Igreja de San Zeno Maggiore, onde ele era o encarregado de redigir documentos, cartas e cópias de textos bíblicos. Minha tarefa consistia em escolher e dobrar as grandes folhas de pergaminho, manter os tinteiros cheios com tintas de carvão ou vitríolo, selecionar as penas e aguçar as hastes várias vezes ao dia, à medida que elas perdiam as pontas. Em troca, ensinou-me as letras, tanto a desenhá-las quanto a ler as palavras, e em dois anos eu já o fazia com razoável desenvoltura.
O outro lado da minha infância e da adolescência foi também divertido, e cresci assistindo a meu pai, o velho Giuseppe, aparar barbas e prender cabelos. Eu gostava de vê-lo receber os camponeses que chegavam em turmas, para serem atendidos pelo barbeiro mais famoso de todas as cidades e vilas banhadas pelo rio Ádige.
Barbas endurecidas e embaraçadas devido à mistura de sopa escorrida, vinho e poeira; cabeleiras volumosas e rebeldes, armadas por uma argamassa de suor, pó e capim — eram assim os clientes de papai. Lavradores rudes, alegres e beberrões. Mas antes de serem cuidados pelo barbeiro, um garoto, muitas vezes eu mesmo, e uma anciã de mais de quarenta anos davam-lhes o primeiro trato: a catação de piolhos. A mulher catava a cabeça e o menino a barba. Esse procedimento era demorado e talvez o mais importante, pois todos sabiam que, se a quantidade de piolhos nas barbas fosse impossível de ser catada, a barba seria inevitavelmente raspada. Nada mais indigno para um lavrador ou fazendeiro.
Depois da catação Giuseppe os preparava para o tratamento, mergulhando aqueles montes de cabelos numa tina contendo água e azeite. Meu pai jamais ligou para os protestos dos contadini contra a obrigatoriedade de lavar os cabelos, pois era o único meio de aquelas vassouras voltarem a suas formas originais. O importante era o resultado. Ao final da sessão, o freguês estava orgulhoso da barba aparada, macia e solta, e dos cabelos brilhantes, cortados ou presos do modo que só Giuseppe sabia fazer.
Ensinou-me ele todos os segredos de como manejar a navalha, a precisão dos cortes com tesoura e as diversas maneiras de prender uma cabeleira.
Mas o momento que mais me fascinava era quando meu pai transformava a sua navalha num instrumento cirúrgico.
Ele foi um barbeiro completo. Praticou todas as artes do bom e competente barbeiro, pois, além de prender cabelos e fazer barbas, realizava sangrias, extraía dentes, aplicava curativos, corrigia fraturas e auxiliava os cirurgiões.
figura1Fig.1. ...cresci vendo meu pai, o velho Giuseppe, a aparar barbas e prender cabelos
.
Tudo isso ele aprendeu com o meu avô.
A sangria sempre foi o tratamento mais valorizado entre os cirurgiões, e é recomendada até hoje em diversas enfermidades e situações como a febre prolongada, as crises de loucura, a hidropisia com inchaço das pernas, os envenenamentos, certos males dos pulmões e muitas outras moléstias. Meu pai fazia-me perceber como as pessoas febris baixavam a temperatura do corpo, tornando-se até frias, após uma sangria adequada. Os possessos ou em crises de loucura exigiam naturalmente maior volume de sangue extraído, e tornavam-se calmos, sonolentos e até com pulsações pouco perceptíveis após o tratamento.
Papai tornou-me seu auxiliar e cabia a mim garrotear o braço do doente para tornar as veias bem salientes. Com golpe certeiro e muito rápido, ele passava a navalha sobre a veia, e o sangue jorrava em uma bacia. O volume a ser retirado ficava a seu critério ou seguia as indicações do cirurgião ou do clínico.
Cheio de orgulho, eu cuidava das navalhas, lavava-as e amolava-as após os cortes de barbas e cabelos, deixando-as prontas para uso numa sangria a qualquer momento. Em pouco tempo, já conhecia os segredos dos cortes a lâmina, e aos dezoito anos fazia minhas primeiras sangrias.
Mais difícil, porém, era arrancar dentes.
Meu pai dizia que o arrancador de dentes precisava de um braço musculoso. Até aprender toda a técnica, minha função limitava-se a levantar os lábios e as bochechas do infeliz cristão, enquanto ele, usando uma estreita e fina faca, fazia um corte na gengiva, acima do dente dolorido. Depois, empregando toda a força, pinçava o dente com dois dedos e o sacudia violentamente, para a frente, para trás e para os lados, até que, solto por completo, fosse removido com facilidade. Quando havia resistência, recorria-se ao alicate, mas em raras ocasiões papai precisava apoiar o joelho no peito do freguês para uma extração mais difícil. Os cirurgiões em Veneza e na França usavam desses instrumentos, uns enormes, chamados de pelicanos, mas meu pai não os recomendava, pois alguns dentes sadios vinham junto com o doente. Melhor mesmo era a força dos dedos.
Aos vinte anos eu dominava todas as habilidades e funções do cirurgião-barbeiro, e meu pai já repartia comigo a volumosa clientela. Quando ele morreu, eu tinha vinte e quatro anos e me sentia maduro o suficiente para concluir que deveria aprender mais em outros centros, além da sábia Verona.
Na condição de cirurgião-barbeiro meu maior desejo era servir e trabalhar ao lado do mais arguto clínico dos reinos de Veneza e Lombardia, o senhor de Verona, Girólamo Fracastoro. O seu gigantesco conhecimento de medicina e outras ciências, o sucesso entre o povo e os sábios, e a notável elegância ao vestir, que não escondia a simplicidade, compunham os meus exemplos para o futuro.
A meu favor contava a capacidade de ler e escrever.
Para chegar até ele, entretanto, era necessário tornar-me um operador de respeito, e para isso eu tinha de aprender os segredos da anatomia. Talvez não fosse muito tarde para isso.
Quando confessei essas intenções a frei Tommaso, ele não só aconselhou-me a perseguir meu objetivo, como também a usar minha rara virtude de poder registrar na escrita toda a utilidade desse conhecimento para os outros. Lembrei-me da promessa de imitar meu avô.
Assim, este livro é apenas a transcrição da vida extraordinária que levei ao lado do grande Fracastoro, do nosso trabalho conjunto e dos seus ensinamentos e aventuras. Tudo anotei, tal e qual faria meu avô. Mas provavelmente eu não traria a público estas notas, se meu futuro mestre não houvesse deixado importante legado, sob a forma de um documento destinado a médicos e universidades, o qual, por si só, pouco seria entendido por quem o lesse. Estas memórias servirão de guia à sua compreensão.
Recolhi-me à minha velhice e tenho por companhia as folhas, os vidros de tintas, penas e o imenso esforço de memória para não faltar com a verdade. Tudo isso faço depressa antes que meus olhos fiquem totalmente cegos e eu não possa terminar esta obra dedicada ao meu amigo.
Tornando-me cirurgião-barbeiro
Giuseppe deixou-me uma fazenda nos arredores de Verona, alugada a duas famílias, e os coloni garantiam para a minha despensa vinho, carne e ovos durante todo o ano, além de lã para o meu vestuário. Eu mesmo administrava o negócio e mantinha com os fazendeiros um relacionamento amistoso e agradável.
A decisão de dedicar-me inteiramente à arte de cirurgião-barbeiro não foi fácil, pois me tirava de situação cômoda e poderia enviar-me para lugares estranhos. Mas a tradição familiar de barbeiro era mais forte do que a do campo, e isso pesou quando resolvi aprimorar o meu talento para tornar-me um dos melhores na arte da tesoura e da navalha.
Reuni todo o dinheiro que guardara nos últimos cinco anos, além de vender um quinto da propriedade, e, com uma razoável quantia, aprontei-me para uma nova vida.
O local que me pareceu mais conveniente para o meu aperfeiçoamento ficava bem perto de Verona: Pádua. Apesar da proximidade, eu só a visitara uma única vez. Lá havia bons cirurgiões-barbeiros, conhecedores das entranhas do corpo, pois era uma das poucas cidades onde se permitia a dissecção de cadáveres humanos para fins de estudo.
Levando carta de apresentação do padre Tommaso, meu amigo e freguês, e antigo pároco de Pádua, cheguei até mestre Luchiano, cirurgião-barbeiro. Na velha Universidade de Pádua estudava-se anatomia por dissecção dos corpos de criminosos executados, feita por barbeiro ou cirurgião-barbeiro, sob a supervisão do clínico. Mestre Luchiano se ocupava desse importante ofício.
figura2Fig.2- ...resolvi aprimorar o meu talento para tornar-me um dos melhores na arte da navalha
.
Graças ao padre Tommaso, mestre Luchiano acolheu-me e permitiu-me trabalhar a seu lado durante seis meses. Nesse período eu buscava os cadáveres nas prisões ou cemitérios, limpava-os e os mantinha em condições de serem dissecados. Mestre Luchi, como era chamado, movimentava-se com desenvoltura na sala dos mortos, e