Poemas tardios
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Sobre este e-book
Tarde, muito tarde.
Tarde demais para dançar.
Ainda assim, cante o que puder.
Acenda a luz: cante,
Vá: encante.
Comoventes, lúdicos e sábios, os poemas aqui reunidos falam de ausências e finais, envelhecimento e retrospecção, mas também de presentes e renovações. Eles exploram corpos e mentes em transição, bem como os objetos e rituais cotidianos que nos inserem no presente. Lobisomens, sereias e sonhos surgem ao lado de diferentes formas de vida animal e fragmentos de nosso ambiente danificado.
Poemas tardios reúne muitos dos temas mais reconhecidos e celebrados de Margaret Atwood, permeados por descrições minuciosas do mundo natural, passando por encontros espirituosos com alienígenas, situações triviais e divertidas (como guardar passaportes velhos), questões políticas urgentes, lendas, mitos e a sempre obstinada defesa da mulher.
Mestre da escrita, Atwood nos lembra de viver o momento e não apenas estar vivos. O mais importante, segundo a autora, é aproveitar todos os dias, seja esculpindo lanternas de Halloween em abóboras, fazendo sexo ou simplesmente lembrando-nos de ver os cogumelos de setembro brotarem.
Margaret Atwood
Margaret Atwood, whose work has been published in more than forty-five countries, is the author of over fifty books, including fiction, poetry, critical essays, and graphic novels. In addition to The Handmaid’s Tale, now an award-winning television series, her works include Cat’s Eye, short-listed for the 1989 Booker Prize; Alias Grace, which won the Giller Prize in Canada and the Premio Mondello in Italy; The Blind Assassin, winner of the 2000 Booker Prize; The MaddAddam Trilogy; The Heart Goes Last; Hag-Seed; The Testaments, which won the Booker Prize and was long-listed for the Giller Prize; and the poetry collection Dearly. She is the recipient of numerous awards, including the Peace Prize of the German Book Trade, the Franz Kafka International Literary Prize, the PEN Center USA Lifetime Achievement Award, and the Los Angeles Times Innovator’s Award. In 2019 she was made a member of the Order of the Companions of Honour in Great Britain for her services to literature. She lives in Toronto.
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Poemas tardios - Margaret Atwood
i.
poemas tardios
Estes são os poemas tardios.
A maioria dos poemas está atrasada
é claro: tarde demais,
como uma carta enviada por um marinheiro
que chega depois de ele ter se afogado.
Tarde demais para serem úteis, tais cartas
e poemas tardios são semelhantes.
Chegam como se atravessassem as águas.
Seja lá o que for, já aconteceu:
a batalha, o dia de sol, o luar
atiçando o desejo, o beijo de despedida. O poema
chega à costa como destroços flutuantes.
Ou vagaroso, como atrasado para o jantar:
todas as palavras frias ou comidas.
Patife, deplorável e aniquilado,
ou demorar, aguardar, um pouco,
abandonado, pranteado, aflito.
Até o amor e a alegria: canções roídas três vezes.
Feitiços enferrujados. Refrões batidos.
É tarde, muito tarde
Tarde demais para dançar.
Ainda assim, cante o que puder.
Acenda a luz: cante,
vá: encante.
gato fantasma
Gatos também sofrem de demência. Você sabia?
Aconteceu com a nossa. Não o preto, esperto o bastante
para ser neurótico e fugir do veterinário.
A outra, toda peluda, pedaço de pelúcia.
Ela se contorcia na calçada
para pedestres ocasionais, esfregava os bigodes
nas calças deles, mas não quando começou a perder
o que poderia ser sua memória. Ela vagava à noite
pela cozinha, dando uma mordida
num tomate aqui, num pêssego maduro lá,
num pão, numa pera passando do ponto.
É isso que eu deveria comer?
Acho que não. Mas o quê? Onde?
Então subia as escadas, com pés de mariposa,
olhos de coruja, choramingando
como um pequeno e felpudo trem a vapor: ah-uoo! ah-uoo!
Tão tonta e esquecida. Ah, quem?
Arranhando a porta do quarto
bem fechada diante dela. Me deixa entrar,
Me dê colo, me diga quem eu era.
Nada estava bom. Nenhum ronronar. Só insatisfação. Lá fora
na caverna obscura da sala de jantar,
entrava e saía, aflita.
E quando eu ia naquela direção, eriçava o pelo, começava a uivar
a arranhar as ondas de frequência no ar:
não importava quem eu dizia ser
ou o quanto te amo,
feche a porta. Ponha tela na janela.
sal
As coisas eram boas, então?
Sim. Eram boas.
Você sabia que eram boas?
Naquele momento? Na sua época?
Não, porque eu estava preocupada
ou talvez com fome
ou insone, metade do tempo.
De vez em quando tinha uma pera ou ameixa
ou uma xícara com algo dentro,
ou uma cortina branca, ondulando,
ou até mesmo uma ajuda.
Talvez a luz suave da lamparina
naquela tenda antiga,
sabotando a beleza, a plenitude,
corpos entrelaçados e chamegando,
se inflamam e então acaba.
Miragens, você decide:
tudo era nunca.
Embora sobre seu ombro lá esteja,
seu tempo repousando como piquenique
sob o sol, ainda reluzindo
embora seja noite.
Não olhe para trás, eles dizem:
você será transformada em sal.
E, no entanto, por que não? Por que não olhar?
Não é brilhante?
Não é bonito, lá atrás?
passaportes
Nós os guardamos, como guardamos os cachos
colhidos nos primeiros cortes de cabelo dos filhos, ou de amantes
que se foram cedo demais. Aqui estão
todos os meus, protegidos numa pasta, suas pontas
cortadas, cada página gravada
com viagens das quais mal me lembro.
Por que eu zanzava daqui pr’ali
ou pra lá? Só Deus sabe.
E a procissão de fotos fantasmagóricas
tentando provar que eu era eu:
o rosto um disco cinzento, olhos de peixe
capturados pelo flash intenso do meio-dia
com o olhar emburrado e luminoso
de uma mulher que acabou de ser presa.
Em ordem, essas fotos são como um gráfico
de fases da lua desvanecendo na treva; ou
como uma sereia condenada a aparecer na costa
a cada cinco anos, cada vez mais transformada
em algo um pouco mais morto:
a pele murchando no ar ressequido,
o cabelo castanho afinando ao secar,
amaldiçoada se ela sorrir ou chorar.
nevasca
Minha mãe dorme.