O viajante
De L. H. Zanchi
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O viajante - L. H. Zanchi
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editora Paula Cajaty
arte de capa Cynthia Dias. Palma. 2011.
projeto gráfico e diagramação 54
D
esign
revisão Hanny Saraiva
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Sindicato Nacional dos Editores de Livros,
rj
B732v
Borges, Luiz Henrique Zanchi
O viajante / Luiz Henrique Zanchi Borges. - 1. ed. -
Rio de Janeiro : Jaguatirica, 2016.
isbn
978-85-5662-045-3
1. Romance brasileiro. I. Título.
16-36192
cdd
: 869.3
13/09/2016 16/09/2016
Jaguatirica
rua da Quitanda, 86, 2º andar, Centro
20091-902 Rio de Janeiro
rj
tel. [21] 4141-5145, [21] 3747-1887
editorajaguatirica.com.br
Acreditar em algo e não o viver é desonesto.
Mahatma Gandhi
índice
Créditos
ante mortem
O homem
capítulo i
Graças a Deus
capítulo ii
Além das árvores: o medo e a fuga
capítulo iii
A razão...
capítulo iv
... e Sarah
capítulo v
A morte solve tudo
capítulo vi
O coletor
capítulo vii
O acordo
capítulo viii
Som do vento
capítulo ix
Do outro lado da Via Láctea
capítulo x
Os monges-macaco
capítulo xi
Equilíbrio perfeito
capítulo xii
O formigueiro
capítulo xiii
Templos do mundo
capítulo xiv
O tempo
capítulo xv
A montanha
capítulo xvi
O cabrito e a flor
capítulo xvii
A coruja e os três macacos
capítulo xviii
A voz do vento
capítulo xix
O sultão, o gênio e uma aposta
capítulo xx
Anjos do sul
capítulo xxi
Presente
capítulo xxii
Visão da prisão
capítulo xxiii
A escapada
capítulo xxiv
Prisão nas nuvens
capítulo xxv
O guardião
capítulo xxvi
Uma ilha no fim do mundo
capítulo xxvii
A mãe dos homens
capítulo xxviii
O cheiro dos livros
capítulo xxix
Lembranças
capítulo xxx
Quando realmente
ganham vida
capítulo xxxi
Entre as luzes, as sombras
capítulo xxxii
Umbral
capítulo xxxiii
Samsarah
capítulo xxxiv
De volta à trilha da floresta
capítulo xxxv
Cidade cinza
capítulo xxxvi
Fábrica de pesadelos
capítulo final
Memento mori
post mortem
Mil pétalas
ante mortem
O homem
Observando o arrastar dos ponteiros sobre o relógio provavelmente pela última vez, o homem sabia que não havia mais tempo. A cada dia que passava, suas pernas exigiam mais para mantê-lo em pé. Aquele foi um dia muito ruim e, honestamente, nem um pouco diferente dos anteriores. O cãozinho que esperava saltitante pelo velho dono na porta de casa já não fazia mais sua alegria e há tempos nada mais fazia. Enquanto brilhava o sol, se comportava na frente de outras pessoas com alguma presteza, dedicação e o mesmo sorriso padrão emoldurando-lhe os lábios. Todas as noites, porém, quando a solidão lhe concedia a tão almejada liberdade e quando a luz do dia já não o obrigava mais a olhar para a frente ao invés do chão, se recolhia daquela maneira em seu mausoléu, como um molusco que se esconde na casca. Era deprimente, como se já não houvesse mais o que viver.
Aquele homem, ou o que sobrara dele, vagava pelas esquinas, pontos de ônibus e calçadas até chegar em casa, todos os dias, arrastando correntes silenciosas, presas a seus gastos tornozelos e pesadas bolas de ferro invisíveis. Quando um passante o fitava por mais de alguns segundos, constrangido diante de tamanha morbidez, o velho apenas sorria seu sorriso pálido e magro de volta e continuava sua caminhada. Ao chegar em casa, todos os dias, mal podia ser percebido. Seus passos lentos e senis o faziam flutuar pelo portão do quintal até a porta de entrada, como um fantasma.
Roupas atiradas ao chão, ele sabia que precisaria mais do que um banho para sentir-se limpo de verdade, mas esta noite era o máximo que iria conseguir. Somente depois de horas, quando olhava para as pontas dos dedos e via sua pele mais enrugada que o normal, se dava conta de que estava sentado ali no chão frio, embaixo da água pesada do chuveiro há tanto tempo. Adoraria chorar, mas a verdade é que simplesmente não conseguia. Insistia ainda em tentar se convencer de que uma ou outra lágrima havia se misturado à água, mas não havia a quem enganar. Tinha que haver um coração ali dentro, lutando para continuar batendo cada batida, por mais fraca que fosse. E havia, sim, senão o que mais lhe doeria tanto?
Naquela noite, ele estava muito cansado e tinha um pouco mais de dificuldade para respirar do que o normal. Depois do banho, enxugou despretensiosamente o corpo com uma toalha desatenta e negligente, que mal era capaz de fazer seu próprio trabalho. Pegou um caderno, uma caneta e sentou-se à beira da cama. Ali, libertou sua mão para que escrevesse qualquer coisa, a princípio nada planejado. Linha após linha, as frases se construíam de maneira titubeada. Lamentos sem muito sentido para um leitor desavisado, mas de profunda intelecção para o vivente e engajado escritor.
Incerto do que deveria fazer daquele momento em diante, deixou o papel de lado por um instante, foi até um outro quarto, que lhe servia de biblioteca e escritório e dentro de uma caixa achou uma antiga fita k7, já quase completamente mofada e corroída pelo tempo, com algumas músicas de sua banda favorita. Pôs para tocar a fita e acomodou-se na poltrona de couro esverdeado tingido, esperando lembrar pelo menos uma estrofe sequer daquelas músicas.
Refletindo os próximos minutos de sua vida, foi fisgado por uma canção em especial. Era uma das melodias que mais gostava de ouvir quando adolescente, mas que por algum motivo não a ouvia há muitos anos. Provavelmente, em face dos últimos acontecimentos, não sentia mais a alegria jovial que constantemente o tomava quando estava acompanhado e que o fazia sentir-se tão vivo. Estranho ainda lembrar desses momentos
, pensou ele. Por mais incrível que parecesse naquela hora tão terminante e dotada de uma indecisão tão definitiva, o refrão, guiado pelo outrora jovem vocalista do grupo, berrava com força e determinação, palavras conscritas em cima de acordes pesados, como se deferisse algo ainda irresoluto: você não tem... você não tem... você não tem nada a perder...
Voltou a escrever e agora sentia-se mais seguro do que pretendia fazer. O que havia escrito já vinha tomando, mesmo sem que houvesse planejado, a forma de uma carta e com endereço definido. Tinha receio de que um dia a mensagem chegasse às mãos do destinatário, então, só conseguiria a liberdade necessária para escrevê-la sem pudores se a compusesse para alguém que jamais fosse lê-la e esse alguém, por que não, deveria ser Deus, afinal.
Escrevia tranquilamente, mas na medida em que revivia seu passado através de cada trecho, sua letra se tornava mais áspera e inconstante e por vezes tinha que se interromper para massagear o pulso já rijo e os ombros tensos. Vez por outra uma gota caía sobre o papel e, ainda esperançoso, corria os dedos sob os olhos na expectativa de encontrar alguma lágrima para enxugar, mas seu cabelo, ainda úmido e pesado do banho, o iludia. Seu ídolo não parava de lembrá-lo do coro da música e, num impulso de raiva, o triste homem arrancou a fita de dentro do aparelho de som sem qualquer cuidado e atirou-a pela janela. O caderno, no entanto, foi atirado apenas até o canto do aposento.
Teve a noite toda para revisitar cada uma das prateleiras e sentir novamente o cheiro dos livros. Dali sacou Júlio Verne, Ernest Hemingway e uma série de outros indivíduos que jamais haviam registrado em suas obras qualquer palavra que pudesse descrever sinceramente o que aquele ávido leitor estava sentindo naquele momento, ou mesmo que fosse capaz de propor uma saída diferente da que já vinha se consumando lentamente em sua mente nos últimos meses.
Na sala, próximo à porta de entrada, um telefone tão antigo quanto tudo o mais que existia entre o chão e o teto daquela casa repousava sobre uma pequenina mesa, ao lado de um igualmente pequenino banco de couro e madeira maciça. Sentou-se ali e, naquela noite, durante horas ele esperou. Esperou até quase pegar no sono e ninguém bateu à sua porta, tocou seu telefone ou mesmo seu coração. Em pé, junto à parede, o relógio de pêndulo ressoava alto, para alguém que naquele momento só precisava de silêncio: tic-tac. Decidiu tomar a iniciativa e girou o disco do telefone lentamente, enquanto tentava lembrar dos números. Ao sexto toque, a ligação foi atendida, mas permanecia em silêncio do outro lado da linha.
– Por favor, fale comigo – pede o velho, após chamar algumas vezes, sem resposta.
– Olá, pai. Me desculpe, estou um pouco cansada – responde uma voz jovem.
– Tudo bem. Só pensei que poderíamos conversar um pouco – fala o homem ao telefone. – Não temos nos falado muito desde que… bem… está sendo difícil pra mim também e...
– Escute – interrompe a mulher do outro lado da linha – sei que está preocupado, mas, está tudo bem. Acredite – diz, sem mesmo crer em suas próprias palavras. – Realmente não é um bom momento...
A linha permaneceu em silêncio até que o homem percebesse que não havia mais ninguém lá.
No centro da biblioteca havia uma mesa escura, com apenas uma máquina de escrever sobre o tampo. As gavetas, no entanto, estavam bastante desorganizadas, repletas de papéis, canetas e outras coisas que o velho escritor usava para trabalhar. Ali encontrou um estilete. Pegou o objeto e foi até o grande espelho do banheiro. Ao acionar o botão com o polegar direito, trouxe para fora uma parte da lâmina. Em seguida, levou a manga esquerda da camisa além do pulso, enquanto admirava em transe o brilho do metal refletido sobre sua pele. Olhando bem dentro de seus próprios olhos, sereno, perguntou-se pela última vez se era possível ter certeza que não iria desistir quando já não pudesse mais fazê-lo.
TIC-TAC, TIC-TAC. O tempo continuava sua marcha e nada nem ninguém até agora havia tentado detê-lo. Tomou alguns comprimidos tranquilizantes com um punhado de água da torneira, na esperança de tornar tudo um pouco mais fácil. Esperou mais alguns minutos até que a medicação começasse a surtir efeito.
Com as mãos trêmulas e, de per se, relutantes, ele o fez. O cãozinho deitou ao seu lado no chão da biblioteca e antes que percebesse, já estava sendo acariciado pela desmotivada mão daquele homem, que também sem notar o fazia. O pêndulo insistia em balançar cada vez mais lentamente, enquanto seus olhos ficavam mais e mais pesados e sutilmente... fechavam-se...
Ao calar da noite, ele foi, quase sem perceber... morrendo.
capítulo i
Graças a Deus
É o fim de tudo. Fim de todo o sofrimento, toda a angústia, a dor e o desconforto. Nada mais existe. Graças a Deus é o fim das inigualáveis tristezas e insuperáveis derrotas que o impediam de viver. Agora nosso protagonista não tem mais de lidar com isso, pois não tem mais que abrir os olhos e se levantar para encarar o mundo. A vida acabou e ponto final, graças a Deus… Graças a Deus.
Parado ali na escuridão profunda, dentro do confinamento de seus pensamentos, ele relaxa. A escuridão não é tão terrível quanto imaginava ou quanto as histórias dos filmes e dos livros lhe contavam, contudo, é sufocante demais. Algo que para alguns poderia ser a morte, para ele, a despeito do contexto no qual se encontra nesse momento, poderia mesmo ser a morte, mas ainda assim deveria ser bem melhor do que viver. "Sim, deve ser", ele pensa.
Então, assim é a pós-vida. Quente, abafada, escura, e claustrofobicamente densa. No entanto, aquela luz brilhante – sim, exatamente aquela a qual muitos já se referiram em seus relatos e contos – surge repentinamente numa explosão de energia no horizonte morto, trazendo-lhe à vida. Envolto em um clima de intraduzível paz e completude, o homem se surpreende com sensações que jamais pensou que pudesse voltar a sentir desde que deixara de ser criança. Ele sente perfeitamente levitar sobre o chão que nem mesmo consegue ver com clareza. A sensação é como se nenhuma de suas tantas perguntas sobre a vida e a morte estivessem sendo respondidas, mas que isso não mais fosse necessário.
O silêncio soa serenamente em seus ouvidos que se abrem para a música mais bela já tocada, a canção da liberdade. Ele olha suas mãos, tentado reconhecer-se e aos poucos o brilho ganha o contorno dos dedos e dos pulsos, mas como por obra de milagre, não há ferimento algum ali. Tudo está na mais perfeita ordem e assim continuará para sempre, graças a Deus.
Seguindo para o olho da energia, ele se distrai por um único instante quando ouve duas vozes, quase guturais, sussurrarem uma para a outra.
– Vamos trazê-lo para cá!
– Sim... não há dúvida.
Em silêncio, olhando fixamente para a luz, que apesar de forte e vívida não fere seus olhos, ele entende que nada mais pode detê-lo e que com nada deve se preocupar, deste modo, segue sem medo em seu caminho para o além.
– Como ele consegue?
– Sim, também quero entender. O mais estranho é que parece que nos ouve. Viste como reagiu quando falamos?
O homem olha em volta para conhecer os donos das vozes e nada descobre. Pouco a pouco, começa a sentir o chão novamente sob seus pés e acelera o passo em direção à luz, mas parece que o horizonte nunca se aproxima o suficiente. Uma sombra, então, cruza a luz rapidamente, como se fosse um flash fotográfico invertido: uma explosão de escuridão, logo seguida de outra igual cruzando na direção oposta.
Nosso personagem se dirige o mais rápido que pode para a energia branca, mas sente como se tivesse sido pego pelos tornozelos.
– Acho que consegui!
– Então vamos levá-lo, sem demora! – diz a outra voz.
O homem escorrega e cai. "Meu Deus! eu preciso de ajuda...", pensa ele.
– O coletor certamente vai gostar deste aqui. Sim, disso não há quem duvide – sussurra uma das criaturas.
– Pegue-o pelos braços, que eu fico com as pernas.
Nosso protagonista, então, vê tudo escurecer novamente, enquanto é arrastado para longe da luz, por duas criaturas sem corpo, formadas unicamente de sombras e maldade.
capítulo ii
Além das árvores: o medo e a fuga
Com uma pancada na nuca ele desperta. A visão embaçada e distorcida o deixa tonto, confuso, mas mesmo assim ele consegue ver – e sentir – o que provavelmente está acontecendo. "Não, não é um sonho", ele se certifica. O homem está sendo arrastado pelo chão de terra, repleto de minúsculas pedras e pedaços de rocha esmigalhados, através de uma pequena estrada escondida entre as lúgubres árvores de um bosque sombrio, em plena madrugada.
Seus braços esticados deixam um longo rastro de poeira no chão e seus pés, atados por uma corda frágil, prendem-se de maneira improvisada a uma saliência na base de uma carroça que segue lentamente à sua frente, puxando grosseiramente o suicida por todo o caminho. Sobre o veículo estão vários corpos empilhados e deles, braços e pernas pendurados para o lado de fora escorrem fios de sangue, desenhando também sua trajetória pela estrada.
"O que está acontecendo?, ele se pergunta. É como se estivesse dopado. Ao menos, só o que pode lembrar é do efeito da ingestão de quase um vidro inteiro de comprimidos.
Então... como não morri?"
Atrás das árvores e por todos os lados, sombras cruzam furtivamente os feixes de luz que a lua se esforça para fazer atravessar a escuridão massificada da noite sem vida. A adrenalina aumenta gradativamente em seu corpo fazendo com que a tontura comece a sumir simultaneamente, dando lugar a uma lucidez um tanto quanto indesejada. Com o olhar mais atento, ele enxerga uma dessas sombras parada atrás de um arbusto, à espreita. Contudo, não consegue ver mais do que apenas sua silhueta grotesca e o brilho cintilante de seus olhos avermelhados.
A carroça balança quando suas rodas passam por cima de uma pedra e com o chacoalhar da madeira velha, um dos corpos desliza e vai direto ao chão. O suicida o fita quase empalhado de tão duro, enquanto passa ao lado do cadáver de olhos empedrados e boca repleta de sangue, de fisionomia rija e pálida. Cada vez mais, este pobre homem teme.
Ele procura discretamente àquele que guia o veículo e vê um homem sentado logo à frente dos mortos, com alguns trapos cobrindo seu corpo, a redear uma senil mula cinzenta que mal conseguiria se mexer se não estivesse à sombra de um chicote. Ao seu lado, um rapaz bem mais jovem, mas de face também