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O silêncio dos amantes
O silêncio dos amantes
O silêncio dos amantes
E-book147 páginas2 horas

O silêncio dos amantes

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Sobre este e-book

Com coragem e delicadeza, Lya Luft nos faz olhar o cotidiano a partir de um novo prisma, pressentindo a imprevisibilidade, que o torna mais rico. "Ser humano, com toda a miséria e grandeza que isso significa, não é apenas precisar de amparo e consolo, mas também enxergar, abaixo da superfície e atrás das paredes, novas possibilidades de viver e se relacionar", afirma a autora. Em O silêncio dos amantes, as histórias são pontuadas por conflitosfamiliares, solidão, a busca de um sentido da vida, rancores, incompreensão, mas também magia e amor  nos relacionamentos. A incomunicabilidade entre pessoas que se amam resulta em tragédias e vidas assombradas pela culpa, mas também faz com que se abram os olhos para novos caminhos possíveis. "Aqui sim, é a linha que une as narrativas. A incomunicabilidade, o silêncio quando deveríamos falar e a palavra quando deveríamos ter calado: mas a gente não sabia. É parte do drama humano", explica a autora.
IdiomaPortuguês
EditoraRecord
Data de lançamento15 de mar. de 2011
ISBN9788501093714
O silêncio dos amantes

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    O silêncio dos amantes - Lya Luft

    2008

    1   |   A Pedra da Bruxa

    Quando meu filho tão querido sumiu, quando se transformou, se matou, se jogou ou caiu da Pedra da Bruxa, se perdeu no mato — ou saiu voando e nunca mais voltou —, entendi que nossa cumplicidade só existia na minha imaginação. Essa foi a sua verdadeira morte: nossa relação tão especial era mentira. A boa vida familiar era falsa. Andávamos sobre uma camada fina de normalidade. Por baixo corriam rios de sombra que eu não queria ver. Ele, meu filho tão extraordinariamente amado, era irremediavelmente sozinho — eu, que me considerava a melhor das mães, de nada adiantei.

    Tive a ilusão de que comigo ele se abria, pelo menos me escutava — com aquele olhar distraído. Pensei que nossa ligação fosse excelente, ele sendo um menino difícil. Eu respeitava seu jeito diferente, desculpava suas impaciências, mãe, não me abraça com tanta força, mãe para de me tratar feito bebezinho, não me controla!. Tinha certeza de que em qualquer momento crucial de sua vida era a mim que iria recorrer. E não foi assim.

    Ele não era um bebê tranquilo. Não parecia contente no meu colo, só dormia quando eu o deixava sozinho no berço. Era uma criança quase sombria, comparado ao irmão mais velho, um menino forte e alegre. Criança sombria nem existe, diziam, você se preocupa demais, cada bebê já nasce com uma personalidade! Mas ele preferia contemplar as folhas no vento, os grãos de poeira no raio de sol que entrava pela janela, em lugar de brincar. Na escolinha não fazia amigos, batia nos outros e os mordia, ou era objeto de pancada. O pai não tinha a menor paciência, e se dedicava ao outro. Do mais novo, eu imaginava ser a melhor amiga.

    Ele, porém, só queria ir embora. Não queria nada do que tínhamos para lhe dar. Dizia isso mesmo, sem maldade nem amargura. Quando criança queria aprender a voar feito passarinho para ir bem longe daqui. Crescendo, sonhava morar na montanha, armar uma tenda na Pedra da Bruxa, seu lugar preferido, e ser livre.

    — Livre de quê, bobão? — perguntava bem-humorado o irmão mais velho.

    Aquele meu primeiro filho, perninhas bem firmadas no mundo, um sorriso aberto, gritava de alegria quando a gente o pegava no colo. Cresceu cheio de amigos e projetos, bom na escola, ativo nos esportes, companheiro do pai. Nunca me deu trabalho. Talvez, preocupada com seu irmão menor, eu o tenha deixado um pouco de lado, mas ele nunca parecia precisar de mim. Ao contrário, preocupava-se comigo:

    — Mãe, deixa esse menino viver sua vida, é o jeitão dele! Não fique sempre em cima, não seja tão ansiosa — dizia, como se fosse mais maduro do que eu.

    O mais moço, filho das minhas aflições, parecia não ter amigos. Na escola olhava de longe a algazarra dos outros. Não fazia questão alguma de ser como o resto da turma: ele não tinha uma turma. Mesmo bem pequeno, de vez em quando deitava na cama, até embaixo da mesa da sala, e chorava longo tempo, um pranto sem soluços, de cortar o coração.

    O pai se aborrecia:

    — Levanta daí, deixa de choramingar feito uma velha, vai jogar bola com seu irmão!

    Eu pedia que tivesse paciência, era uma fase. Ia passar. Depois, com jeito, me aproximava:

    — Filho, mas o que foi? Vem, conta pra sua mãe.

    — Nada, mãe, eu só tenho vontade de chorar.

    Uma das professoras chamou minha atenção para seus desenhos: enquanto o irmão plantava casas, árvores, bichos e carros em solo firme, os dele pairavam no ar, miúdos e perdidos na página branca. As pessoas, até a si mesmo, desenhava sem rosto.

    — Sem rosto? O que significa isso? — perguntou o pai fechando a cara, e me arrependi de ter comentado.

    Criança difícil faz terapia, aconselharam, e meu filho fez. Ia às sessões, já um meninão magro e bonito, mas a psicóloga também se queixou:

    — Ele fica ali, quieto, me olhando com aquele ar de quem está pensando em outra coisa.

    Depois de muita conversa com a psicóloga e comigo, por um breve tempo o pai tentou se aproximar, levar pra casa da montanha, nadar no rio, ou pescar. O menino ia, sorria debilmente, segurava a vara de pescar sem nenhum interesse, não emburrado ou malcriado, apenas, como em geral, ausente. E nunca aprendeu a nadar.

    O pai acabou furioso:

    — Esse menino é muito esquisito.

    — Não diga isso, é nosso filho.

    — É nosso filho mas é esquisito. Nenhum outro rapaz é assim. Ele parece sempre à margem de tudo. Eu desisto.

    Para surpresa nossa, algum tempo depois, o menino, que nunca pedia nada, não participava, na hora do café da manhã disse:

    — Pai, domingo me leva no jogo?

    — Ué, agora você se interessa por futebol? — o pai duvidava.

    — Claro, meus colegas vão com os pais deles, você me leva?

    O pai o encarou meio incrédulo, quem sabe participar de atividades mais masculinas dava um jeito naquele filho? Num impulso de seu coração paterno, decidiu não convidar o outro: entendeu que aquele poderia ser um momento só dos dois, o pai e o filho complicado. Comprei camiseta do clube, animei, expliquei, o menino saiu pela mão do pai, entrou no carro e acenou para mim, quase feliz. Na volta, fim de tarde, entraram em casa um pai carrancudo e um menino com rosto inchado de chorar.

    — Nos primeiros gritos da torcida, no primeiro gol, começou a chorar feito uma menininha. Ficou assustado, imagine só. Passei vergonha — disse o pai, e foi se fechar no quarto.

    Os dois irmãos davam-se bem, mas sem intimidade. Eu raramente os via juntos. Um parecia achar graça do outro. Ele chamava o maior de troglodita, naquele tom de afetuosa implicância que acontece entre irmãos; o mais velho o chamava de queridinho da mamãe, no mesmo tom sem maldade. Quando já era um adolescente alto, magro, um pouco desajeitado, naquela manhã fatal em nossa casa na montanha, ele chegou perto do pai quando este pegava a chave do carro, e, num esforço para vencer a barreira da timidez, pediu:

    — Pai, a gente pode conversar um pouco?

    O pai, desacostumado, espantou-se. Homem racional e direto, disse algo direto e racional:

    — Filho, estou atrasado, preciso estar na cidade em uma hora. Na minha volta a gente fala, está bom? — E partiu sem nenhum remorso porque não imaginava o que estava por vir.

    O rapaz não insistiu nem pareceu aborrecido. Virou-se e seguiu pelo caminho que entrava no mato, como tantas vezes fazia. Subiu até o lugar que todos chamavam a Pedra da Bruxa: uma saliência de rocha, pequeno platô, bem no alto, de onde se avistavam os morros, o vale, o telhado de nossa casa ao longe. Era o lugar preferido dele. Eu me preocupava, achava perigoso ficar tão na beiradinha, mas ele ria:

    — Mãe, não se preocupa, se cair de lá abro as asas e saio voando! — dizia, aludindo ao seu desejo de criança, de ser pássaro.

    Meu menino não voltou. Alguém o viu sentado na beira da pedra e o chamou, mas ele pareceu não escutar. Nunca voltou. Nunca mais apareceu, ninguém nunca mais soube dele. Entardeceu, anoiteceu, começamos a nos desesperar. Era dado àqueles passeios solitários, mas não se perdia: seu instinto o guiava como a melhor das bússolas. Conhecia a região desde criança, ali a gente passava férias, feriados, fins de semana.

    Na mesma noite, e no dia seguinte e em vários outros, muita gente, o pai e o irmão, às vezes comigo, com polícia e amigos, procurou no mato. No rio mergulharam atrás dele, mas nada apareceu. Nem uma roupa, um farrapinho que fosse, rasgado nos galhos ou pedras; corpo algum foi lançado pela torrente que passava no fundo da garganta; nada nas trilhas, nas casas dos colonos, na região inteira. Helicópteros, grupos de busca, cachorros... nada. Depois do que me pareceu um tempo irreal, arrastou-se interminavelmente a complicada burocracia da morte, uma interminável alternância entre otimismo e exaustão. Por fim foi declarado morto. Sem velório, um luto bizarro. Nesse período o pai dele uma só vez se abriu:

    — Ele pediu para conversar, e eu recusei. Naquela manhã mesmo. Como pude fazer isso, como não percebi que ele estava pedindo socorro?

    Fechada na minha amargura, nem tentei consolar. Ou fiz um gesto qualquer, mas ele se encolheu:

    — Eu era pai dele. E na única vez em que precisou de minha ajuda, eu não atendi. Estava atrasado para um compromisso qualquer. Penso nisso cada dia, quando acordo, antes mesmo de abrir os olhos. Eu matei meu filho. Ou pelo menos lhe dei um empurrãozinho.

    Eu não soube o que dizer. Ele se debatia com a culpa, eu tentava entender alguma coisa de minha vida feita em pedaços. Nosso filho morto era uma barreira entre nós, e fomos nos afastando. Muito me doía o rapaz não ter procurado por mim. Eu, a sempre atenta, disponível, eu, que me achava tão boa mãe... e na hora fatal ele tinha querido o pai.

    O irmão me disse:

    — Mãe, acho que naquele dia antes de sair ele quis me pedir conselho. Nunca vou me perdoar. Tentou dizer alguma coisa e eu fiz uma das minhas piadas bestas, falei que ia sair com a minha turma.

    Também a ele não procurei consolar.

    Devagar, muito devagar, com os anos a vida foi se recompondo. A gente falava, vivia, comia, andava, vinha para fins de semana à casa da montanha — cada vez menos, pois meu marido e meu filho não gostavam mais dali. Parece que ele vai aparecer a qualquer momento, diziam. Para eles a casa tinha encerrado seu ciclo no enterro simbólico de alguns de seus objetos no cemitério ali mesmo na cidadezinha da montanha: o livro predileto, a camiseta mais bonita, os tênis, a lápide por cima. O nome dele na pedra.

    Mas para mim não tinha acabado. Subia sozinha de carro até a montanha, com a desculpa de que precisava abrir a casa, cuidar do jardim. Lá fui construindo uma realidade suportável: meu filho simplesmente tinha alçado voo. Podia ser loucura, mas me dava força. Aquele não tinha sido seu sonho desde menino? Queria voar, queria ser pássaro assim como o irmão queria ser bombeiro e os colegas queriam ser médico, mergulhador, jogador de futebol. Comecei a acreditar nisso para além de qualquer critério lógico. Não comentei com ninguém, para que não achassem que a dor estava me enlouquecendo. Passei a olhar a Pedra da Bruxa como o trampolim de meu filho para uma vida escolhida. Subia até lá e ficava, como ele costumava fazer, sentada na pedra morna, ao sol, até na chuva quando a agonia era insuportável. Quase esqueci que era casada, quase esqueci meu filho mais velho, que parecia recuperado, mas certa vez me disse:

    — Mãe, você

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