Os Melhores Contos de Isaac Asimov
De Isaac Asimov
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Os Melhores Contos de Isaac Asimov - Isaac Asimov
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Isaac Asimov
MELHORES CONTOS
Coleção Melhores Contos
1ª. Edição
img1.jpgISBN: 9788583862321
A LeBooks Editora publica obras clássicas que estejam em domínio público. Não obstante, todos os esforços são feitos para creditar devidamente eventuais detentores de direitos morais sobre tais obras. Eventuais omissões de crédito e copyright não são intencionais e serão devidamente solucionadas, bastando que seus titulares entrem em contato conosco.
Prefácio
Amigo leitor
Isaac Asimov, PhD em bioquímica, conciliou sua carreira científica com a de escritor, utilizando seus livros para divulgar conhecimentos científicos modernos da época e para fazer suas próprias previsões do futuro. Asimov é considerado por muitos como o melhor escritor de ficção científica do século XX e nos legou mais de 500 publicações, entre ficcionais e técnicas, boa parte das quais na forma de geniais e criativos contos.
Este ebook, assim como ocorreu nos outros volumes da Coleção Melhores Contos
, é uma amostra selecionada dos melhores contos de Isaac Asimov, o que o torna definitivamente uma leitura imperdível para apreciadores de ficção científica de contos em geral.
Boa leitura
LeBooks
Suas premissas são as suas janelas para o mundo. Tente limpá-las de vez em quando, ou a luz não entrará.
img2.pngIsaac Asimov
APRESENTAÇÃO:
O autor: Isaac Asimov
img3.png1920 — 1992
Isaac Asimov foi um escritor norte americano, considerado um dos mais importantes escritores de ficção científica do século XX.
Asimov nasceu em Petrovisk, Rússia, no dia 2 de janeiro de 1920. Com três anos de idade, mudou-se com a família para os Estados Unidos onde foi criado no bairro do Brooklin, em Nova Iorque. Em 1928, naturalizou-se cidadão americano. Seu interesse pela ficção científica começou ainda menino. Com 14 anos, publicou sua primeira história em um jornal do colégio. Em 1935, iniciou o curso de Química na Universidade de Colúmbia. Em 1939, concluiu a graduação. Nesse mesmo ano vendeu seu primeiro conto, "Marooned off Vesta", para a revista Amazing Stories.
Durante a Segunda Guerra Mundial, serviu como químico, na Estação Experimental Naval Air na Filadélfia. Em maio de 1945 publicou o primeiro conto da saga Fundação
, na revista Astounding Scienfe Fiction. Em 1948, conclui o doutorado em Bioquímica, pela Universidade de Columbia. No ano seguinte tornou-se professor assistente de Bioquímica na Escola de Medicina da Universidade de Boston.
Em 1950, Isaac Asimov publicou o livro Eu, Robô
, que se tornou um clássico da ficção científica, onde em uma série de nove histórias, o autor narra o desenvolvimento dos robôs, desde o seu começo no estado natural, em meados do século XX, até o estado de extrema perfeição, em que robôs governam o mundo dos homens, no seu próprio interesse. Em 1954, deu início às publicações de divulgação científica com o livro "Chemicals of Life".
Em 1958, Asimov deixou o cargo na universidade, para se dedicar inteiramente à sua atividade de escritor.
Seu legado:
Isaac Asimov publicou mais de 260 livros, sendo cerca de cinquenta romances e mais de duzentos livros de divulgação científica. Seu nome tornou-se familiar tanto para cientistas como para leitores de ficção científica, sua linguagem simples abriu as portas das descobertas científicas para um público leigo.
Dentro da série de livros sobre robôs, iniciada com: Eu, Robô
, Asimov publicou mais quatro romances: As Cavernas de Aço
(1954), Os Robôs
(1957), Os Robôs de Amanhecer
(1983) e Os Robôs e o Império
(1985).
Nessas obras, o autor introduziu as três leis fundamentais da robótica.
1 — um robô não pode causar dano a um ser humano, nem por omissão permitir que um ser humano sofra.
2 — um robô deve obedecer às ordens dadas por seres humanos, exceto quando essas ordens entrarem em conflito com a primeira lei.
3 — um robô deve proteger sua própria existência, desde que essa proteção não se choque com a primeira nem com a segunda lei da robótica.
Em 1976, Asimov escreveu O Homem Bicentenário
, que foi adaptado para o cinema, em 1999, estrelado por Robim Williams, recebendo vários prêmios. Na década de 80, Isaac Asimov dirigiu a Isaac Asimov Magazini, revista semanal voltada para a divulgação de contos de autores de ficção científica.
Isaac Asimov faleceu em Nova Iorque, Estados Unidos, no dia 6 de abril de 1992.
Sumário
UM DIA
AMOR VERDADEIRO
ESTRANHO NO PARAÍSO
O MELHOR AMIGO DE UM GAROTO
PENSE
PONTO DE VISTA
O PEQUENO ROBÔ DESAPARECIDO
SONHOS DE ROBÔ
ROBÔ AL-76 EXTRAVIADO
OS INCUBADORES
A HOSPEDEIRA
SALLY
VERSOS NA LUZ
O FURA—GREVES
VITÓRIA INVOLUNTÁRIA
A MÁQUINA QUE GANHOU A GUERRA
O QUE OS OLHOS VEEM
O ESTILO MARCIANO
DEMOCRACIA ELETRÔNICA
O PIADISTA
A ÚLTIMA PERGUNTA
UMA ABELHA SE IMPORTA?
A SENSAÇÃO DE PODER
MEU NOME SE ESCREVE COM S
O GAROTINHO FEIO
A BOLA DE BILHAR
A ÚLTIMA RESPOSTA
PARA QUE ESQUEÇAMOS
UM DIA
Niccolo Mazetti estava deitado de bruços sobre o tapete, o queixo enterrado na palma da mão pequena e ouvia o Bardo, desconsolado. Percebia-se até o começo de lágrimas em seus olhos escuros, luxo a que só se podia permitir uma criatura com onze anos de idade quando se encontrava sozinha. O Bardo disse:
— Uma vez no meio da floresta enorme, vivia um pobre lenhador com suas duas filhas sem mãe, que eram tão belas quanto o dia é longo. A filha mais velha tinha cabelos pretos e compridos como a pena de asa da graúna, mas a filha mais nova tinha cabelos tão brilhantes e dourados como a luz do sol em tarde de outono.
— Muitas vezes, enquanto as meninas esperavam que o pai voltasse para casa, após trabalhar no mato, a filha mais velha sentava-se diante do espelho e cantava…
O que ela cantava Niccolo não ouvia, porque alguém o chamou de fora do quarto:
— Ei, Nickie.
E Niccolo, o rosto desanuviando-se no mesmo instante, correu até a janela e gritou:
— Ei, Paul.
Paul Loeb acenou com a mão agitada. Era mais magro do que Niccolo e não tão alto, mesmo sendo seis meses mais velho. Tinha o rosto cheio de tensão reprimida, que se mostrava com mais clareza no rápido piscar das pálpebras.
— Ei, Nickie, quero entrar. Tenho uma ideia e metade. Espere só até ouvir.
Olhou rapidamente em volta, como a verificar a possibilidade de ouvintes furtivos, mas o quintal da frente estava evidentemente vazio. Repetiu, então, em cochicho:
— Espere só até ouvir.
— Muito bem, já abro a porta.
O Bardo continuou suavemente, sem saber da perda de atenção por parte de Niccolo. Quando Paul entrou, o Bardo estava dizendo:
— Com que o leio disse: Se você encontrar para mim o ovo perdido da ave que voa sobre a Montanha de Ébano, uma vez a cada dez anos, eu…
Paul disse:
— Você está ouvindo o Bardo? Eu não sabia que você tinha um.
Niccolo se tornou rubro e a expressão de infelicidade regressou a seu semblante.
— É só uma coisa velha que eu tinha, quando era menino. Não está muito boa.
Desferiu um pontapé no Bardo e acertou, na cobertura de plástico, um tanto arranhada e descolorida, um outro golpe.
O Bardo teve um soluço, como se a ligação do alto-falante fosse tirada do contato por um momento, e depois prosseguiu:
— …por um ano e um dia, até que os sapatos de ferro se gastaram. A princesa parou do lado da estrada…
Paul disse:
— Rapaz, esse é mesmo um modelo antigo — e olhou para aquilo com expressão crítica.
A despeito da própria amargura que Niccolo sentia contra o Bardo, não lhe agradou o tom condescendente do outro. Sentia momentaneamente pesar por ter deixado Paul entrar, pelo menos antes de haver recolocado o Bardo em seu lugar de descanso habitual no porão. Só pelo desespero de um dia monótono e um debate infrutífero com o pai é que ele o fizera ressuscitar. E acabara verificando ser coisa tão estúpida quanto imaginara.
Nickie tinha um pouco de medo de Paul, já que este fizera cursos especiais na escola e todos diziam que ele ia crescer e ser um Engenheiro de Computador.
Não que o próprio Niccolo estivesse a se sair mal na escola. Recebera notas adequadas em lógica, manipulações binárias, computação e circuitos elementares; todas as disciplinas costumeiras da escola primária. Mas era exatamente isso! Não passavam de disciplinas comuns e ele crescia para ser um guarda de painel de controle, como todos os outros.
Paul, todavia, conhecia coisas misteriosas sobre o que chamava de eletrônica e matemática teórica e programação. Principalmente programação. Niccolo nem mesmo procurava compreender quando Paul falava sobre o assunto, parecendo borbulhar.
Paul olhou o Bardo por alguns minutos e disse:
— Você andou usando muito isso aí?
— Não! — retorquiu Niccolo ofendido. — Tenho isso guardado no porão desde que você mudou para cá. Só tirei de lá hoje… — Faltava-lhe uma desculpa que parecesse adequada a si próprio, de modo que ele concluiu: — acabei de tirar.
Paul perguntou:
— É isso o que ele lhe conta: lenhadores e princesas e animais que falam?
Niccolo explicou:
— Uma coisa horrível. Meu pai disse que não podemos comprar um novo. Eu falei com ele, hoje de manhã… — a recordação das súplicas inúteis que fizera de manhã levou Niccolo a aproximar-se muito das lágrimas, que reprimiu tomado de pânico. De algum modo achava que as faces magras de Paul nunca haviam sentido a vergonha das lágrimas e que Paul só poderia desdenhar outra pessoa menos forte que ele próprio. Niccolo prosseguiu: — Por isso achei que devia experimentar outra vez essa coisa velha, mas não vale nada.
Paul desligou o Bardo, apertou o contato que levava para a reorientação e recombinação quase instantâneas do vocabulário, personagens, textos da trama e clímax ali guardados. Depois reativou.
O Bardo começou, devagar:
— Uma vez havia um menino chamado Willikins, cuja mãe morrera e que vivia com o padrasto e o filho do padrasto. Embora o padrasto fosse um homem bem rico, negava ao pobre Willikins a própria cama em que dormia, de modo que Willikins era obrigado a descansar o melhor que podia em um monte de palha no estábulo, perto dos cavalos…
— Cavalos! — gritou Paul.
— São uma espécie de animal — disse Niccolo — acho que são.
— Eu sei disso! Agora imagine só, histórias sobre cavalos.
— Ele fala de cavalos o tempo todo — explicou Niccolo. — Existem também coisas chamadas vacas. Você tira leite delas e o Bardo não diz como.
— Bem, puxa vida, por que você não conserta isso?
— Gostaria de saber como.
O Bardo estava dizendo:
— Muitas vezes Willikins pensava que se fosse rico e poderoso haveria de mostrar ao padrasto e ao filho do padrasto o que significava ser cruel com um menino pequeno, de modo que um dia resolveu sair para o mundo e procurar sua sorte.
Paul, que não ouvia o Bardo, disse:
— É fácil. O Bardo tem cilindros de memória preparados para as palavras da trama e os clímax e as coisas. Não vamos nos preocupar com isso. É só o vocabulário que devemos consertar, de modo que ele vai saber acerca dos computadores, automatização e eletrônica e as coisas reais que temos hoje. Depois pode contar histórias interessantes, você sabe, em vez de falar sobre princesas e essas coisas.
Animado, Niccolo disse:
— Oxalá a gente pudesse fazer isso.
Paul disse:
— Escuta, meu pai diz que se eu entrar na escola especial de computação, no ano que vem, ele vai me dar um Bardo de verdade, um modelo novo. Bem grande, com ligação para histórias de mistérios do espaço. E uma ligação visual também!
— Quer dizer que você vai ver as histórias?
— Claro. O senhor Daugherty, na escola, diz que elas têm coisas assim, agora, mas não são para todos. Só se eu entrar na escola de computação. O Papai pode arranjar umas coisas.
Os olhos de Niccolo transbordavam de inveja.
— Puxa vida. Ver uma história!
— Você pode ir lá em casa e assistir a qualquer momento, Nickie.
— Puxa vida, rapaz. Obrigado.
— De nada. Mas lembre-se de uma coisa, sou eu quem diz que tipo de história vamos ouvir.
— Claro, claro — Niccolo teria concordado prontamente, mesmo sob condições mais severas.
A atenção de Paul se voltou para o Bardo, que dizia:
— Se é assim
, disse o rei, cofiando a barba e fechando a cara até que as nuvens cobriram o céu e o relâmpago riscou o ar, você vai providenciar para que toda a minha terra fique livre das moscas a esta hora, depois de amanhã, ou…
.
— Tudo que temos a fazer — disse Paul — é abrir… — E desligou novamente o Bardo, já procurando tirar o painel da frente enquanto falava.
— Ei — interveio Niccolo, alarmado de súbito. — Não vai quebrar.
— Não vou quebrar — disse Paul, com impaciência. — Eu sei tudo sobre essas coisas. — E logo, com cautela repentina: — seu pai e sua mãe estão em casa?
— Não.
— Muito bem, então. — Já tirara o painel dianteiro e olhava para o interior. — Rapaz, isto é coisa de um cilindro.
Já trabalhava nas entranhas do Bardo. Niccolo, que observava em suspense penoso, não conseguia enxergar o que o outro fazia.
Paul tirou de lá uma faixa fina e flexível de metal, coberta de pontos.
— Este é o cilindro de memória do Bardo. Aposto que a capacidade de histórias dele tem menos de um trilhão.
— O que você vai fazer, Paul? — perguntou Niccolo, trêmulo.
— Vou dar-lhe vocabulário.
— Como?
— É fácil. Tenho um livro aqui. O Sr. Daugherty me deu na escola.
Paul tirou o livro do bolso e retirou a sua tampa de plástico. Desenrolou a fita um pouco, passou-a pelo vocalizador que abaixou até tornar-se um murmúrio e depois o colocou dentro das entranhas do Bardo. E fez outras ligações.
— O que isso vai fazer?
— O livro vai falar e o Bardo guardará tudo na fita de memória.
— E de que serve?
— Rapaz, você é burro! Meu livro é todo sobre computadores e automatização e o Bardo ficará com toda essa informação. Depois vai poder parar de falar sobre reis que criam relâmpagos quando fecham a cara.
Niccolo disse:
— E o bom sujeito sempre vence, seja lá como for. Não tem graça nenhuma.
— Oh, bem — disse Paul, observando para ver se o seu arranjo estava funcionando corretamente. — É assim que eles fazem os Bardos. Eles precisam fazer os bons camaradas vencerem e os maus camaradas perderem, coisas desse tipo. Uma vez ouvi meu pai falando sobre o assunto. Ele diz que sem a censura não se podia dizer o que a geração mais jovem seria capaz de tornar-se. Ele diz que a coisa já anda muito ruim… Pronto, está funcionando muito bem.
Paul esfregou as mãos uma na outra e afastou-se do Bardo, dizendo:
— Mas escute, ainda não lhe contei como é a minha ideia. É a melhor coisa que você já ouviu, pode crer. Vim falar com você porque achei que você havia de entrar nela comigo.
— Com certeza, Paul, com certeza.
— Muito bem. Você conhece o Sr. Daugherty, na escola? Você sabe que ele é um sujeito gozado. Pois bem, ele gosta de mim, um pouco.
— Eu sei.
— Estive na casa dele depois da escola, hoje.
— Você esteve?
— Claro. Ele diz que eu vou entrar na escola de computadores e quer me animar, coisas assim. Ele diz que o mundo precisa de mais gente que saiba projetar circuitos de computadores avançados e fazer uma programação correta.
— É?
Paul podia perceber parte da vacuidade daquele monossílabo. Disse, com impaciência:
— Programação! Eu já lhe contei mais de cem vezes. É quando você cria problemas para os computadores gigantescos como o Multivac resolverem. O Sr. Daugherty diz que está ficando cada vez mais difícil encontrar pessoas que saibam dirigir bem os computadores. Ele diz que qualquer pessoa pode ficar de olho nos controles e verificar as respostas e processar os problemas de rotina. Diz que o truque é expandir as pesquisas e calcular modos de fazer as perguntas certas, e que isso é difícil.
Ele prosseguiu:
— De qualquer modo, Nickie, ele me levou até a casa dele e me mostrou a coleção de computadores antigos. É uma espécie de passatempo dele colecionar computadores antigos. Tinha computadores tão pequenos que era preciso apertar com a mão, com botõezinhos por cima. E tinha um pedaço de madeira que chamava de régua de calcular, com um pedacinho lá dentro que corria pra lá e pra cá. E alguns fios com bolas. Tinha até um pedaço de papel com uma espécie de coisa que chamava tabela de multiplicação.
Niccolo, que só se interessava moderadamente pelo assunto, perguntou:
— Uma tabela de papel?
— Não era uma tabela de verdade, coisa diferente. Era para ajudar as pessoas a computar. O Sr. Daugherty quis explicar, mas não estava com muito tempo e era um pouco complicado.
— Por que as pessoas não usavam um computador?
— Isso foi antes de terem computadores — bradou Paul.
— Antes?
— Claro. Você acha que as pessoas sempre tiveram computadores? Você nunca ouviu falar nos homens das cavernas?
Niccolo disse:
— E como é que eles se arranjavam sem computadores?
— Não sei. O Sr. Daugherty diz que eles tinham filhos em qualquer hora e faziam tudo que lhes dava na cabeça, fosse ou não fosse bom para todos. Nem sabiam se era bom ou não. E os lavradores plantavam coisas com as mãos e as pessoas tinham de executar o trabalho nas fábricas e dirigir todas as máquinas.
— Não acredito!
— Foi o que o Sr. Daugherty disse. Ele disse que aquilo era uma bagunça desgraçada e todos sofriam… Seja lá como for, quero falar de minha ideia, você deixa?
— Muito bem, pode falar. Quem está impedindo? — contrapôs Niccolo ofendido.
— Pois é. Muito bem, os computadores manuais, aqueles que têm botões, tinham também uns rabiscos em cada botão. E a régua de calcular tinha rabiscos também. E a tabela de multiplicação era cheia de rabiscos. Eu perguntei o que era aquilo. O Sr. Daugherty disse que eram números.
— O quê?
— Cada rabisco diferente representava um número diferente. Para um
você fazia uma espécie de marca, para dois
você fazia outra espécie de marca, para três
, outra, e assim por diante.
— E para quê?
— Para poder computar.
— Mas para quê! É só dizer ao computador…
— Puxa vida! — gritou Paul, o rosto contorcido de raiva. — Você não entende as coisas? Aquelas réguas de calcular e outros negócios não falavam.
— Nesse caso como…
— As respostas apareciam em rabiscos, e você tinha de saber o que os rabiscos significavam. O Sr. Daugherty diz que naqueles dias todos aprendiam a fazer os rabiscos quando eram crianças e como decifrar aquilo, também. Fazer rabiscos era chamado escrever
e decodificar os rabiscos ler
. Ele diz que havia uma espécie diferente de rabisco para cada palavra e eles costumavam escrever livros inteiros em rabiscos. Disse que tinham alguns no museu e que eu podia dar uma espiada se quisesse. Disse que se eu vou ser um calculista e programador de verdade tenho que conhecer a história da computação e por isso estava me mostrando todas aquelas coisas.
Niccolo fechou a cara e disse:
— Você quer dizer que todos tinham de decifrar os rabiscos para cada palavra e lembrar deles?… Isso é verdade ou você está inventando?
— É tudo verdade. Pode crer. Escute, é assim que se faz um um
. — E levou o dedo a atravessar o ar, em talho vertical rápido — assim você faz dois
e assim é três
. Aprendi todos os números até nove
.
Niccolo observava aquele dedo que fazia curvas, sem entender.
— E de que adianta isso?
— Você pode aprender como fazer palavras. Perguntei ao Sr. Daugherty como se fazia o rabisco para Paul Loeb
mas ele não sabia. Contou que existem pessoas no museu que sabem. Disse que havia pessoas que tinham aprendido a decodificar livros inteiros. Contou também que os computadores podem ser projetados para decodificar livros e costumavam ser usados assim, mas agora não são mais, porque hoje temos livros de verdade, com fitas magnéticas que entram pelo vocalizador e saem falando, você sabe.
— Claro.
— Por isso, se nós formos ao museu, poderemos aprender como fazer palavras em rabiscos. Eles vão deixar porque eu vou para a escola de computadores.
Niccolo estava transfigurado de decepção.
— A sua ideia é essa? Ora bolas, Paul, quem quer fazer isso? Fazer rabiscos estúpidos!
— Você não entendeu? Você não entende? Seu burro! Vai ser um feito de escrever mensagens secretas!
— O quê?
— Pois é. De que adianta falar, quando todo mundo pode entender? Com os rabiscos você pode mandar mensagens secretas, pode fazer os rabiscos no papel e ninguém neste mundo vai saber o que você está dizendo, a não ser que conheça os rabiscos também. E eles não vão conhecer, pode crer, a menos que a gente ensine. Podemos ter um clube de verdade, com iniciação, regras, uma casa. Rapaz…
Uma certa animação começou a se fazer sentir no peito de Niccolo.
— Que tipo de mensagens secretas?
— Qualquer tipo. Vamos dizer que eu quero convidar você para ir a minha casa e assistir ao meu novo Bardo Visual, e não quero que nenhum dos outros camaradas apareça. Eu faço os rabiscos certos no papel e lhe dou e você olha e sabe o que deve fazer. Ninguém mais fica sabendo. Você pode até mostrar a eles e eles não entendem nada.
— Ei, isso é bom — berrou Niccolo, completamente seduzido pela ideia. — Quando vamos aprender a fazer isso?
— Amanhã — disse Paul. — Eu vou pedir ao Sr. Daugherty para explicar no museu que está tudo certo e você arranja licença com seu pai e sua mãe. Podemos ir logo depois da escola e começar a aprender.
— É claro! — gritou Niccolo. — Podemos ser os chefes do clube.
— Eu vou ser o presidente do clube — disse Paul, taxativo. — Você pode ser o vice-presidente.
— Está certo. Ei, isso vai ser muito mais divertido do que o Bardo.
De repente lembrou-se do Bardo e disse, tomado de apreensão repentina:
— Ei, e que tal o meu velho Bardo?
Paul voltou-se para olhar. Estava aceitando silenciosamente o livro que se desenrolava devagar, e o som das vocalizações do livro era um murmúrio que mal se ouvia.
Ele disse:
— Vou desligar.
Trabalhou naquilo enquanto Niccolo observava, aflito. Depois de alguns instantes Paul recolocou o seu livro rebobinado no bolso, recolocou o painel e o ativou.
O Bardo disse:
— Uma vez, em uma cidade grande, havia um pobre menino chamado Fair Johnnie, cujo único amigo no mundo era um pequeno computador. O computador todas as manhãs dizia ao menino se ia chover naquele dia e resolvia qualquer problema que ele tivesse. Nunca errava. Mas aconteceu que um dia o rei dessa terra, tendo ouvido falar no pequeno computador, resolveu que devia ficar com ele. Com esse objetivo chamou seu Grande Vizir e disse…
Niccolo desligou o Bardo com movimento rápido da mão.
— A mesma bobagem de sempre — disse, cheio de emoção — mesmo com um computador enfiado aí.
— Bem — disse Paul — eles têm tanta coisa na fita que o negócio de computador não aparece muito quando se fazem combinações aleatórias. Seja lá como for, qual é a diferença? Você precisa de um modelo novo.
— Nós nunca poderemos comprar um. Só esta coisa velha e chata. — Voltou a dar-lhe um pontapé, acertando-o o com mais força dessa feita. O Bardo move-se para trás, um gemido de rodas dentadas.
— Você sempre vai poder ver o meu, quando eu ganhar — prometeu Paul — além disso, não se esqueça de nosso clube de rabiscos.
Niccolo assentiu.
— Vou lhe dizer uma coisa — prosseguiu Paul. — Vamos até lá em casa. Meu pai tem alguns livros sobre os tempos antigos. Podemos escutar e, talvez, arranjar algumas ideias. Você deixa um recado para seus pais e talvez possa ficar lá em casa para a ceia. Vamos embora.
— Está certo — disse Niccolo, e os dois meninos saíram correndo, juntos. Niccolo, em seu entusiasmo, correu quase diretamente para o Bardo, mas apenas encostou no ponto de sua coxa onde havia feito contato e continuou correndo.
O sinal de ativação do Bardo brilhou. A colisão de Niccolo fechou um circuito e, embora estivesse sozinho no aposento e não houvesse ninguém para ouvir, começou ainda assim a contar uma história.
Mas não era mais em sua voz costumeira; em tom mais baixo, que tinha uma dose de rouquidão. Um adulto que ouvisse, poderia ter julgado que a voz traduzia alguma paixão, um vestígio bem próximo a sentimento.
O Bardo dizia:
— Uma vez havia um pequeno computador chamado Bardo, que vivia sozinho com pessoas cruéis. As pessoas cruéis não paravam de zombar do pequeno computador, dizendo-lhe que não valia nada e que era objeto inútil. Batiam nele e o mantinham sozinho no quarto por meses seguidos.
— No entanto, o pequeno computador continuou a ter coragem. Sempre fazia o melhor que podia, obedecendo alegremente a todas as ordens. Ainda assim as pessoas cruéis com que ele vivia continuavam cruéis e sem coração.
— Um dia o pequeno computador ficou sabendo que no mundo existiam muitos computadores de todos os tipos, em grande número. Alguns eram Bardos como ele próprio, outros dirigiam fábricas e alguns dirigiam fazendas. Alguns organizavam a população e outros analisavam todos os tipos de dados. Muitos eram de grande poder e sabedoria, muito mais poderosos e sábios do que as pessoas cruéis que eram tão cruéis com o pequeno computador.
— E o pequeno computador ficou sabendo então que os computadores iriam tornar-se cada vez mais sábios e mais poderosos até que um dia… um dia… um dia…
Uma válvula devia finalmente ter entrado em colapso nas entranhas idosas e corroídas do Bardo, pois enquanto esperava sozinho no aposento que escurecia, só podia murmurar repetidamente:
— Um dia… um dia… um dia…
AMOR VERDADEIRO
Meu nome é Joe. É assim que meu colega, Milton Davidson, me chama. Ele é um programador e eu sou um programa de computador. Faço parte do complexo Multivac e estou conectado com todas as suas outras partes espalhadas pelo mundo inteiro. Eu sei tudo. Quase tudo.
Eu sou o programa particular de Milton. O seu Joe. Ele entende mais sobre programação do que qualquer outra pessoa no mundo, e eu sou o seu modelo experimental. Ele me fez falar melhor do que qualquer outro computador.
— É só uma questão de emparelhar sons com símbolos, Joe — ele me disse. — É esse o modo como funciona no cérebro humano, embora ainda não saibamos que símbolos existem no cérebro. Mas eu conheço os seus símbolos e posso fazê-los corresponder a palavras, um por um.
Por isso eu falo. Não acho que falo tão bem quanto penso, mas Milton diz que falo muito bem. Milton nunca se casou, embora já tenha quase quarenta anos. Ele nunca encontrou a mulher certa, foi o que me contou. Um dia, ele disse:
— Ainda vou encontrá-la, Joe. Encontrarei a melhor de todas. Vou ter um verdadeiro amor e você vai me ajudar. Estou cansado de aperfeiçoá-lo para resolver os problemas do mundo. Resolva o meu problema. Encontre-me um amor verdadeiro.
— O que é um amor verdadeiro? — disse eu.
— Não importa. Isso é abstrato. Apenas me encontre a garota ideal. Você está conectado com o complexo Multivac, por conseguinte tem acesso aos bancos de dados de cada ser humano no mundo. Vamos eliminar todos eles por grupos e classes até ficarmos com apenas uma pessoa. A pessoa perfeita. E ela será minha.
— Estou pronto — disse eu.
— Elimine todos os homens primeiro — disse ele.
Isto foi fácil. Suas palavras ativaram símbolos em minhas válvulas moleculares. Eu pude amplificar-me para entrar em contato com os dados acumulados sobre cada ser humano no mundo. Conforme suas palavras, afastei-me de 3.784.982.874 homens. Continuei em contato com 3.786.112.090 mulheres.
— Elimine todas as que tiverem menos de vinte e cinco anos — disse ele — e todas as com mais de quarenta. Depois, elimine todas com um QI inferior a 120, todas com uma altura inferior a um metro e cinquenta e superior a um metro e setenta e cinco.
Deu-me medidas exatas, eliminou mulheres com filhos vivos, eliminou mulheres com várias características genéticas.
— Não estou certo quanto à cor dos olhos — disse Milton. — Por enquanto, deixe isso de lado. Mas nada de cabelos ruivos. Não gosto dessa cor de cabelo.
Duas semanas depois tínhamos baixado para 235 mulheres. Todas falavam muito bem o inglês. Milton disse que não queria um problema de linguagem. Ou nos momentos íntimos, até a tradução por computador entraria no meio.
— Não posso entrevistar 235 mulheres — disse ele. — Levaria muito tempo e o pessoal descobriria o que estou fazendo.
— Isso traria problemas — disse eu. Milton tinha me mandado fazer coisas que eu não estava projetado para fazer. Ninguém sabia disso.
— Isso não é da sua conta — disse ele, e a pele do seu rosto ficou vermelha. — Escute aqui, Joe, vou lhe trazer holografias e você vai checar a lista por similaridades.
Ele trouxe holografias de mulheres.
— Essas aí são três vencedoras de um concurso de beleza — disse. — Veja se alguma das 235 corresponde.
Oito eram correspondências muito boas.
— Ótimo — disse Milton. — Você tem os seus bancos de dados. Estude suas exigências e necessidades em termos de mercado de trabalho e providencie para tê-las aqui numa entrevista. Uma de cada vez, é claro. — Ele pensou um pouco, moveu os ombros para cima e para baixo, e completou: — ordem alfabética.
Isto é uma das coisas para que não fui projetado para fazer. Deslocar pessoas de emprego para emprego, por razões pessoais, chama-se manipulação. Só pude fazer isso porque Milton tinha me ajustado para agir assim. No entanto, não poderia fazer isso para ninguém a não ser ele.
A primeira garota chegou uma semana mais tarde. O rosto de Milton ficou vermelho quando a viu. Ele falava como se tivesse dificuldade em fazê-lo. Ficaram juntos muito tempo e ele não prestou atenção em mim. Num certo momento, ele disse:
— Deixe-me levá-la para jantar.
— De certo modo não foi bom — Milton me disse no dia seguinte. — Estava faltando alguma coisa. É uma mulher bonita, mas não senti nenhum toque de verdadeiro amor. Tente a próxima.
Aconteceu o mesmo com todas as oito. Eram muito parecidas. Sorriam muito e tinham vozes agradáveis, mas Milton sempre achava que não estava bem.
— Não consigo entender, Joe — disse ele. — Você e eu selecionamos as oito mulheres que, no mundo inteiro, parecem ser as melhores para mim. Todas ideais. Por que elas não me agradam?
— Você as agrada? — disse eu.
Ele enrugou a testa e esmurrou com força a palma da mão.
— É isso aí, Joe. É uma via de mão dupla. Se não sou o ideal delas, não podem agir de modo a serem o meu ideal. Eu preciso ser, também, o verdadeiro amor delas, mas como fazer isso?
Ele pareceu pensar todo aquele dia.
Na manhã seguinte, se aproximou de mim e disse:
— Vou deixar você cuidar do assunto, Joe. Tudo por sua conta. Você tem meu banco de dados, e vou contar tudo que sei sobre mim mesmo. Você completará meu banco de dados nos mínimos detalhes, mas guarde todos os acréscimos para si mesmo.
— E depois, o que vou fazer com seu banco de dados, Milton?
— Depois você vai fazê-lo corresponder com as 235 mulheres. Não, 227. Esqueça as oito que encontramos. Arranje para que cada uma seja submetida a um exame psiquiátrico. Complete seus bancos de dados e compare-os com o meu. Encontre correlações. (Arranjar exames psiquiátricos é outra coisa contrária às minhas instruções originais.)
Durante semanas, Milton conversou comigo. Ele me falou de seus pais e parentes. Contou-me de sua infância, seu tempo de escola e adolescência. Contou-me das jovens que tinha admirado a uma certa distância. Seu banco de dados aumentou e ele ajustou-me para ampliar e aprofundar minha chave simbólica.
— Veja só, Joe — disse ele. — À medida que você absorve mais e mais de mim, eu vou ajustando-o para corresponder cada vez melhor comigo. Você começa a pensar cada vez mais como eu, por conseguinte, vai me compreendendo melhor. Quando você me compreender suficientemente bem, aquela mulher, cujo banco de dados for uma coisa que você entenda igualmente bem, será meu verdadeiro amor.
Ele continuava conversando comigo e eu passava a compreendê-lo cada vez mais.
Eu conseguia formar frases mais longas e minhas expressões se tornavam mais complicadas. Minha fala começou a ficar muito parecida com a dele, tanto em vocabulário quanto na ordenação das palavras e no estilo.
Certa vez, eu disse a ele:
— Veja você, Milton, não é apenas um problema de adequar uma moça a um ideal físico. Você precisa de uma moça que seja pessoal, temperamental e emocionalmente adequada. Quando isso acontece, a aparência é secundária. Se não pudermos encontrar uma que sirva nestas 227, devemos procurar entre as outras. Acharemos uma que também não se preocupará com a aparência que você ou qualquer outra pessoa tiverem, desde que a personalidade seja adequada. O que significa a aparência?
— Absolutamente nada — disse ele. — Eu saberia disso se houvesse tido mais contato com mulheres. Evidentemente, pensando bem, tudo parece mais claro agora.
Sempre concordávamos, cada um pensava exatamente como o outro.
— Não vamos ter mais nenhum problema, Milton, se você me deixar fazer-lhe algumas perguntas. Posso ver onde, em seu banco de dados, há espaços brancos e irregulares.
O que veio a seguir, Milton dizia, era o equivalente de uma meticulosa psicanálise. É claro. Eu havia aprendido com os exames psiquiátricos de 227 mulheres, a totalidade das quais eu continuava observando intimamente.
Milton parecia muito feliz.
— Falar com você, Joe, é quase como falar com outro eu. Nossas personalidades chegaram a uma combinação perfeita. O mesmo acontecerá com a personalidade da mulher que escolhermos.
E eu a encontrei. Afinal, era uma das 227. Chamava-se Charity Jones e trabalhava como contadora na Biblioteca de História, em Wichita. Seu extenso banco de dados se ajustava perfeitamente ao nosso. Todas as outras mulheres tinham sido descartadas por um ou outro motivo à medida que seus bancos de dados aumentavam, mas com Charity havia uma crescente e espantosa ressonância.
Não precisei descrevê-la para Milton. Ele tinha coordenado meu simbolismo tão intimamente com o seu, que foi suficiente relatar pura e simplesmente a ressonância. A escolha se adequava.
Em seguida, era o problema de ajustar as folhas de serviço e exigências de trabalho de modo a conseguir que Charity tivesse uma entrevista conosco. Isto devia ser feito muito delicadamente, para que ninguém viesse a saber que estava ocorrendo uma coisa ilegal.
Evidentemente, Milton conhecia a manobra. Foi ele quem arranjou a coisa, foi ele quem cuidou de tudo. Quando vieram prendê-lo, em virtude de mau procedimento em trabalho, foi, felizmente, por algo que tinha acontecido há dez anos. Ele me informara sobre tudo, é claro, mas aquilo foi fácil de arranjar. E ele não comentará nada sobre mim, pois seu delito se tornaria muito mais grave.
Milton foi embora, e amanhã é 14 de fevereiro, Dia dos Namorados. Charity chegará então com suas mãos calmas e sua voz suave. Vou ensiná-la a me manejar e a cuidar de mim. O que importará a aparência quando nossas personalidades ressoarem juntas?
Eu direi a ela:
— Eu sou Joe e você é meu verdadeiro amor.
ESTRANHO NO PARAÍSO
Eram irmãos. Não no sentido de que ambos eram seres humanos ou de que tivessem sido crianças amigas numa creche. De maneira alguma! Eram irmãos no verdadeiro sentido biológico da palavra. Usando um termo que havia se tornado debilmente arcaico mesmo séculos atrás, antes da Catástrofe, eram parentes, isto quando este fenômeno tribal, a família, ainda tinha alguma validade.
Como isso era embaraçoso!
Com o correr dos anos, desde a infância, Anthony tinha quase esquecido. Ocasiões havia em que, durante meses seguidos, nem uma vez sequer ele pensava no assunto. Agora, porém, desde que tinha sido inextricavelmente colocado junto com William, ele se achava vivendo em meio a um tempo de agonia.
Não teria sido tão ruim se as circunstâncias tivessem tornado isto óbvio o tempo todo; se, como nos dias anteriores à Catástrofe (em certa época Anthony tinha sido um grande leitor de História) tivessem partilhado o segundo nome e daquele modo, e só daquele, alardeado o relacionamento.
Hoje, naturalmente, adotava-se o segundo nome de alguém por mera conveniência, mudando-se tantas vezes quanto necessário. Mesmo porque, o que realmente importava era o símbolo da cadeia, símbolo que era codificado e tornado próprio de uma pessoa desde seu nascimento.
William se autodenominava Anti-Aut. Era nisto que ele insistia, com uma espécie de sóbrio profissionalismo. Assunto dele mesmo, seguramente, mas que propaganda de mau gosto! Anthony decidira por Smith ao chegar aos treze anos e nunca tivera impulso de mudar de nome. Era simples, fácil de escrever, fácil de distinguir, uma vez que nunca encontrara alguém mais que tivesse escolhido aquele nome. Outrora fora muito comum, entre os habitantes do planeta anteriores à Catástrofe, os pré-Cats, o que talvez explicasse sua raridade de agora.
Mas a diferença de nomes nada significava quando os dois estavam juntos. Pareciam iguais.
Tivessem sido gêmeos… mas, naqueles tempos, não se permitia que viesse a nascer um dos dois quando um óvulo era fertilizado de modo a dar origem a gêmeos. O que havia, apenas, era que, ocasionalmente, se manifestava uma similaridade física entre não gêmeos, especialmente quando o relacionamento era de ambos os lados. Anthony Smith era cinco anos mais moço, mas ambos possuíam o nariz adunco, as espessas pálpebras, aquela covinha que mal dava para notar no queixo, o raio da loteria genética. Bastava apelar para ela quando, independentemente de alguma paixão pela monotonia, as origens se repetiam.
Agora que estavam juntos, primeiro tiveram aquele olhar sobressaltado, seguido de um longo silêncio. Anthony tentou ignorar o assunto, mas por pura perversidade, ou perversão, William estava mais inclinado do que nunca a dizer:
— Nós somos irmãos.
— Hã? — diria o outro, detendo-se por um momento, como se quisesse indagar se eram autênticos irmãos de sangue. E então a boa educação prevaleceria e ele desprezaria o assunto, como se fosse algo sem interesse. Claro que só raramente isto acontecia. A maioria das pessoas no Projeto sabiam disto e como se poderia impedir que soubessem?! Mas evitavam a situação.
Não que William fosse um mau sujeito. De jeito nenhum. Se ele não fosse irmão de Anthony, ou se fosse, mas parecessem suficientemente diferentes para serem capazes de mascarar o fato, eles teriam chegado à fama.
Mas, do jeito que as coisas eram…
O fato de, quando meninos, terem brincado juntos, e terem compartilhado os primeiros estágios de educação no mesmo local, através de alguma manobra bem-sucedida da mãe, não tornava as coisas fáceis. Tendo dado à luz dois filhos do mesmo pai, e tendo, desta maneira, atingido seu limite (visto que não preenchera os rigorosos requisitos para um terceiro), ela concebeu a noção de ser capaz de visitar os dois numa única viagem. Era uma estranha mulher.
O primeiro a deixar a instituição em que estava fora William, por ser o mais velho. Tinha se encaminhado para a ciência: engenharia genética. Anthony ouvira falar disto enquanto ainda estava na creche, através de uma carta de sua mãe. Já então era suficientemente crescido para se manifestar com firmeza junto à diretora, e aquelas cartas cessaram. Mas ele se lembrava da última, pela agoniada vergonha que lhe trouxera.
Posteriormente, Anthony também se encaminhara para a ciência, mostrara talento para isto e fora instado a optar pela ciência. Lembrava-se de ter um verdadeiro e profético pavor, percebia-o agora, de encontrar seu irmão, e de que acabasse fazendo telemetria que bem se pode imaginar o quanto distava da engenharia genética… Ou assim pensaria alguém.
Então, em meio ao cuidadoso desenvolvimento do Projeto Mercúrio, as circunstâncias como que aguardavam.
Foi quando parecia que o Projeto estava num beco sem saída que a ocasião se manifestou, fora feita uma sugestão que salvara a situação, e ao mesmo tempo arrastara Anthony para dentro do dilema que seus pais lhe haviam preparado. E a melhor, a mais irônica parte de tudo, era que fora o próprio Anthony, muito inocentemente, quem fizera a sugestão.
William Anti-Aut conhecia o Projeto Mercúrio, mas só na medida em que ouvira falar da muito prolongada Prova Estelar, que já estava em desenvolvimento bem antes de ele nascer e que continuaria em curso depois de ele morrer, e na medida em que sabia da colônia marciana e das continuadas tentativas para estabelecer colônias similares nos asteroides.
Tais coisas estavam nas regiões mais afastadas de sua mente e não eram de real importância. Nenhum aspecto do esforço parcial jamais penetrara intimamente no centro de seus interesses, tanto quanto pudesse recordar, até o dia em que o jornal computadorizado incluiu fotografias de alguns dos homens empenhados no Projeto Mercúrio.
Inicialmente, a atenção de William foi atraída pelo fato de um deles ter sido identificado como Anthony Smith. Lembrava-se do estranho nome que seu irmão tinha escolhido, e lembrava-se do Anthony. Seguramente não poderia haver dois Anthony Smith.
Olhara então para a fotografia propriamente dita e não havia como se enganar quanto ao rosto. Num súbito gesto extravagante, olhara-se no espelho para tirar a dúvida. Não havia como enganar-se quanto ao rosto.
Sentiu-se bem-humorado, mas, ao mesmo tempo, um pouco inquieto, eis que não deixava de reconhecer o embaraço em potencial. Irmãos consanguíneos, para usar a desagradável frase. Dava para fazer alguma coisa, porém? Como corrigir o fato de que nem o pai nem a mãe deles haviam previsto o ocorrido?…
Sem atinar com a coisa, deve ter posto o jornal no bolso ao se aprontar para ir trabalhar, pois deu com ele na hora do almoço. Olhou fixamente para a foto: Anthony parecia vivido. Era uma reprodução muito boa, naqueles dias, os jornais eram de uma qualidade muitíssimo boa.
Seu companheiro de almoço, Marco Fosse-lá-qual-fosse-o-nome-dele-aquela-semana, disse curiosamente: — Por que está olhando para isso, William?
Sem hesitar, William passou-lhe o jornal, dizendo:
— Este é meu irmão — Era como se estivesse tocando numa urtiga.
Marco examinou a foto, ficou carrancudo e disse:
— Quem? O sujeito ao seu lado?
— Não, o sujeito que é eu. Quer dizer, a pessoa parecida comigo. É meu irmão.
Desta vez, a pausa foi mais longa. Marco devolveu o jornal e disse, com um tom de voz cuidadosamente homogêneo:
— Irmão dos mesmos pais?
— Sim.
— Mesmo pai e mesma mãe?
— Sim.
— Ridículo!
— Acho que sim — suspirou William. — Bem, de acordo com isto, ele está na telemetria, lá no Texas, e eu estou trabalhando em autismo aqui. Que diferença faz, então?
William nem reteve o diálogo na cabeça e, mais tarde, no mesmo dia, desfez-se do jornal. Não queria que sua atual companheira de leito tomasse conhecimento da coisa. Ela tinha um irreverente senso de humor que William achava cada vez mais enfadonho. Ele até que se contentava por ela não estar com disposição de terem um filho, mesmo porque, de qualquer forma, ele já tivera um, ano atrás. Aquela moreninha linda, Laura ou Linda, para tanto havia colaborado.
Passara-se algum tempo depois disto, um ano pelo menos, quando o assunto Randall veio à baila. Não tivesse William pensado mais em seu irmão e não pensara mesmo, antes disso, certamente que depois é que não teria tempo.
Randall tinha dezesseis anos quando William pela primeira vez recebeu notícias dele. Vivera uma vida cada vez mais solitária e a creche de Kentucky em que ele estava sendo criado decidira cancelá-lo. Lógico que foi só uns oito ou dez dias antes do cancelamento que alguém teve a ideia de comunicar-se com o Instituto Nova-iorquino pela Ciência do Homem, conhecido comumente como Instituto Homológico.
William recebeu o informe junto com vários outros e nada havia na descrição de Randall que atraísse particularmente sua atenção. E mais: era a ocasião de mais uma de suas tediosas viagens em transporte coletivo para as creches e havia uma possibilidade na Virgínia Ocidental. Lá se foi ele e ficou desapontado a ponto de jurar, pela quinquagésima vez, que daí por diante faria aquelas visitas por imagem televisionada e agora, tendo se arrastado para cá, bem que poderia comparecer à creche de Kentucky antes de voltar para casa.
Nada esperava.
Mesmo assim, não fazia nem dez minutos que estava estudando o padrão genético de Randall e já estava se comunicando com o Instituto para um cálculo de computador. Sentou-se de novo, depois disso, e transpirou ligeiramente ao pensar que só um impulso de última hora o havia trazido e que, sem esse impulso, tranquilamente Randall teria sido cancelado, dentro de uma semana ou menos. Os detalhes: sem dor, uma droga seria passada através da epiderme de Randall, penetrando em sua corrente sanguínea e ele mergulharia num pacífico sono que gradualmente se converteria em morte. O nome oficial da droga eTa, uma palavra com vinte e três sílabas, mas William a denominava de nirvanamina
, como todas as outras pessoas.
William disse:
— Qual é o nome todo dele, diretora?
— Randall Nowan, estudante — respondeu ela.
William explodiu: — Não pode ser!
— Nowan — soletrou a diretora. — Ele o escolheu no ano passado.
— E não significava nada, para a senhora? Nowan a gente pronuncia como No one
, quer dizer, ninguém. Não lhe ocorreu informar a respeito da existência deste jovem no ano passado?
Aturdida, a diretora começou:
— Não me parecia…
William impôs-lhe silêncio. Que adiantava? Como poderia ela saber? Nada havia no padrão genético que advertisse, mediante quaisquer dos critérios habituais dos livros didáticos. Era uma sutil combinação que William e sua equipe tinham desenvolvido durante um período de vinte anos através de experimentos em crianças autistas, uma combinação que, na verdade, nunca haviam visto na vida.
Tão perto do cancelamento!
Marco, que era o cabeça-dura do grupo, lamentava que as creches estivessem muito ansiosas para abortarem antes do prazo e para cancelar depois do prazo. Ele sustentava que deveria ser permitido que os padrões genéticos se desenvolvessem com a finalidade para se ter, inicialmente, um panorama e que de forma alguma deveria ser feito um cancelamento sem se consultar um homologista.
Tranquilamente, William disse:
— Não há homologistas suficientes.
— Poderíamos pelo menos pôr no computador todos os padrões genéticos — disse Marco.
— Para salvar o que pudermos, para nosso uso?
— Para qualquer uso homológico, aqui ou alhures. Precisamos estudar os padrões genéticos em ação, se quisermos nos entender a nós mesmos adequadamente, e são os padrões anormais e monstruosos que mais informações nos dão. Nossos experimentos com autismo ensinaram-nos mais sobre a homologia do que a soma total de conhecimentos existentes no dia em que começamos.
William, que ainda gostava da cadência da frase a fisiologia genética do homem
mais do que homologia
, sacudiu a cabeça.
— É a mesma coisa, temos de agir com cuidado. Por mais úteis que proclamemos serem nossos experimentos, vivemos com uma escassa permissão social, relutantemente dada. Estamos jogando com vidas.
— Vidas inúteis, próprias para serem canceladas.
— Um cancelamento rápido e agradável é uma coisa. Nossos experimentos, geralmente planejados com vagar, e às vezes inevitavelmente desagradáveis, são outra coisa.
— Às vezes nós os ajudamos.
— E outras vezes não os ajudamos.
Era um argumento inútil, na verdade, pois não havia como chegar a um acordo. O que importava, isto sim, é que havia muito poucas anormalidades disponíveis para os homologistas e não havia maneira de urgir a humanidade a encorajar uma produção maior. Uma dúzia de maneiras, incluindo esta, não seria suficiente para apagar o trauma da Catástrofe.
O apaixonado impulso em direção da exploração espacial poderia ser percorrido às avessas (e alguns sociólogos o haviam percorrido) para se conhecer a fragilidade da meada da vida, no planeta, graças à Catástrofe.
Bem, não importa…
Nunca tinha havido algo como Randall Nowan. Não para William. A lenta evolução da característica autista daquele padrão genético totalmente raro significava que se conhecia mais a respeito de Randall do que sobre qualquer paciente semelhante antes dele. Chegaram mesmo a captar alguns últimos reflexos indistintos de sua maneira de pensar, no laboratório, antes de ele se encerrar completamente e, finalmente, encolher-se dentro da parede de sua pele, não preocupado, não atingível.
Começaram então o lento processo mediante o qual Randall, sujeito em crescentes intervalos de tempo a estímulos artificiais, cedeu às últimas atividades de seu cérebro, nisto incluindo a parte chamada de normal e a que era como a dele mesmo.
Tão abundantes eram os dados que estavam reunindo, que William começou a sentir que seu sonho de fazer o autismo reverter era mais do que um mero sonho. Sentiu uma cálida alegria por ter escolhido o nome de Anti-Aut.
E foi quase no auge da euforia derivada do trabalho em Randall que ele recebeu o chamado de Dallas, que começou a pesada pressão agora, de todos os tempos, para abandonar seu trabalho e assumir um novo problema.
Posteriormente, lançando um olhar retrospectivo, ele jamais poderia vir a compreender o que é que o levara a concordar em visitar Dallas. Naturalmente que, ao final, ele bem poderia ver quão bom isto tinha sido, mas o que é que o persuadira a proceder assim? Poderia ele, mesmo de início, ter tido uma pálida e incompleta noção daquilo em que a coisa desembocaria? Impossível, com toda a certeza.
Seria a recordação, incompleta, do jornal, daquela fotografia de seu irmão? Impossível, com toda a certeza.
Mas ele se deixou persuadir a fazer a visita, e foi somente quando a micro pilha mudou o tom de seu zumbido e a unidade agrav assumiu o comando para a descida final que ele se lembrou daquela fotografia ou, pelo menos, foi que ela se deslocou para seu consciente, em sua memória.
Anthony trabalhava em Dallas e, lembrava-se William agora, no Projeto Mercúrio. Era a isso que se referia o título do jornal. Ele engoliu em seco quando uma fraca vibração o fez aperceber-se de que a viagem terminara. Isto seria desagradável.
Anthony estava aguardando na área da cobertura de recepção para saudar o perito recém-chegado. Não o saudava em seu próprio nome, por certo, pois fazia parte de uma considerável delegação, cujo tamanho já denotava, em si mesmo, o sombrio desespero ao qual tinha sido reduzida, e ele estava nos escalões inferiores. Que ele lá estivesse, de qualquer forma, se devia unicamente ao fato de ter ele sido quem fizera a sugestão original.
Sentia uma leve, mas contínua inquietação ao pensar que dele é que partira a sugestão. Ele próprio se pusera em evidência. Para tanto, fora firmemente apoiado, mas sempre tinha havido uma surda insistência quanto ao fato de que a sugestão fora dele, e se ela redundasse num fiasco, todos sairiam da linha de fogo deixando-o completamente exposto.
Houve ocasiões, posteriormente, em que ele remoeu a possibilidade de que a vaga memória de um irmão homólogo lhe sugerira o pensamento. Podia ter sido assim, mas não foi. A sugestão era tão sensivelmente inevitável, na verdade, que seguramente ele teria o mesmo pensamento se seu irmão fosse algo tão inócuo como um escritor de histórias de fantasia ou como se simplesmente não tivesse nenhum irmão.
O problema eram os planetas interiores…
Lua e Marte estavam colonizados. Tinham sido atingidos os asteroides maiores e os satélites de Júpiter, e progrediam os planos para uma viagem tripulada até o maior satélite de Saturno, Titã, mediante uma acelerada rotação em torno de Júpiter. Mas, mesmo com planos em andamento no sentido de se enviarem homens numa viagem de sete anos de duração para fora do Sistema Solar, não havia ainda nenhuma possibilidade de viagens tripuladas aos planetas interiores, por receio do Sol.
O próprio planeta Vênus era o menos atraente dos dois mundos dentro da órbita da Terra. Mercúrio, por outro lado…
Anthony ainda não se integrara à equipe quando Dmitri Grandão (que na verdade era um bocado pequeno) fizera a palestra que comovera o suficiente o Congresso Mundial para conceder as verbas que tornaram possível o Projeto Mercúrio.
Anthony ouvira as fitas com as gravações, e tinha ouvido a alocução de Dmitri. A tradição parecia indicar que ele falara de improviso, e talvez assim fosse, mas sua argumentação fora muito bem elaborada e era coerente, dentro das linhas seguidas até então pelo Projeto Mercúrio.
E o