A Funerária do Sr. Iku
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Sobre este e-book
Em seu terno branco, impecável, com o charuto descansando no cinzeiro, sentado em seu escritório em uma poltrona clássica de couro marrom, Sr. Iku analisava as fichas dos corpos recém-chegados. Cada detalhe sobre a vida e a causa mortis era vital para o preparo e concretização do ritual. Controlar os mortos para benefício próprio exigia um minucioso trabalho de pesquisa e os encantamentos corretos. Qualquer deslize e a fúria dos mortos poderia se voltar contra quem desejava se tornar o senhor deles.
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A Funerária do Sr. Iku - Vitto Graziano
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Onheama - Início
Carolina Mancini[1]
Árvores frondosas tomavam conta de tudo até onde era possível alcançar a visão. A poeira cinza dançava no vento rasteiro, enquanto a trovoada despertava as criaturas, ovacionando a mudança do tempo. Porém, a tão esperada chuva não veio.
O que antes era luz, aos poucos tornou-se o breu. Umidade cheirando a bolor e maresia. Ar pesado e na língua a acidez de ferrugem indicando que os bons tempos teriam fim. Dentre as veias do espaço-tempo, invisíveis às percepções das carapaças de pele e osso, civilizações coexistem sem ao menos desconfiar da proximidade umas das outras. O mundo não é apenas aquele em que o homem acredita viver. Duas almas regem à vida e ao homem, assim como a capacidade única de unir-se a natureza.
A força motriz do Sol que alumiava Onheama era cada vez mais escassa, enquanto, na vida material, ferramentas tornaram-se máquinas, o tempo passou a ter valor material e a vida abdicava de sua relevância perante moedas e papéis. O homem escravizou o próprio homem, tornando-se objeto de si mesmo e adorando, acima de tudo, mentiras. A tecnologia prevaleceu sobre a espiritualidade, e, as almas sem o dom de abandonar suas carapaças em busca de conhecimento, respondiam a ídolos ocos, como barragens que retinham o fluxo da compreensão do ser. Soterrados pelos dogmas que de forma ilusória preenchiam o vazio de uma existência incompreendida, os portais verdadeiros eram fechados e o homem acreditou ser qualquer outra coisa, menos um pedaço do universo.
Os diferentes mundos, as ideias sobre o que é vida e morte, são meros estágios de um ciclo infinito de energia, vibrando de diferentes modos. A energia fluía entre todos os seres e por Onheama, e as mesmas partículas se arranjavam de diferentes modos, possibilitando o equilíbrio da vida. Porém, com o represar do homem à sua essência, barreiras e regras foram criados para preservar o sagrado, desequilibrando a harmonia e fortalecendo a vaidade daqueles que também manipulavam a sabedoria, e que por meio desta, desejavam abrir seus próprios portais, dando sabores de caos à grande catástrofe para a qual seu mundo seguia.
Prólogo
Caesar Charone[2]
Acerca do caos, é certo que ele reina.
Foi numa dessas avenidas da vida, naquelas veredas sinuosas da existência, onde a intenção encontra o acaso, que eles se viram pela primeira vez. Giordano, médico legista e cabalista experimentado, observava a negra Iragavanah exercer o ofício. Ela chegara de New Orleans, depois de um longo período de iniciações nas Conjuras da Lua. Em todos os nichos do planeta onde a Arte se estabelecera, a Conjure3 era conhecida por sua aptidão inata, deflagrada ainda no útero materno e invejada por seus iguais. A diferença é que não havia iguais. Ela era única.
Ali, entre traficantes, gringos curiosos, cães e iniciados, um milagre ascendia: o homem, possuído, contorcia-se no chão, enquanto vociferava em sete idiomas sob o eco feroz de três vozes conflitantes. Uma das línguas era morta — sânscrito ou grego arcaico, Giordano não lembrava mais. Ela então, nua e em transe extático, esfregou em suas partes óleos de aromas pungentes, enlevada pelos eflúvios dos inúmeros incensos.
O ambiente transformou-se imediatamente.
Os ossos da sacerdotisa, como numa ilusão lisérgica, começaram a dilatar-se sob a pele, lançando, ao mesmo tempo, ondas de calor em todas as direções da sala. A maleabilidade reptiliana dos movimentos era tamanha que Giordano cogitou um incrível caso de histeria coletiva.
E ela prosseguia.
Agora, os estertores da possessão do homem ao chão acompanhavam o ritmo da dança psicótica da mulher: músculos, ossos, gorduras e cartilagens em absoluto desacato às leis da anatomia produziam uma coreografia única. Eram ambas serpentes feitas de serpentes. Assim dançaram juntos num crescendo infatigável, febril, vulcânico.
Então, acabou.
Iragavanah, estancou, baixou os braços e abriu os olhos. O homem, aos seus pés, estava em absoluta inércia. Ele parecia aspirar um sepultamento urgente. Foi quando, num breve sinal de vida, esboçou um muxoxo.
Das carnes da face incolor e coberta de acnes, pequenos vermes pálidos começaram a fluir. No início, acanhados, brotavam aqui e acolá, mas depois tomaram todo o rosto do homem numa alva insurreição. Um semblante feito de centenas de vidas rastejantes em movimento branco.
A Conjure desfaleceu, sendo imediatamente amparada por Giordano enquanto um grupo de acólitos limpava os vermes da face do homem que agora voltava a si.
O exorcismo enfim se cumprira.
***
Quando Iragavanah abriu novamente os olhos, estava já vestida, prostrada no acalanto simplório da favela carioca. Ao seu lado estava duas moças, sua cadela Circe e aquele desconhecido. Ele era negro como ela, mas de feições finas, piedosas. Seus olhos castanhos deram com os verdes dele, e isso foi o começo do abismo.
— Qu… Quem é…
— Se acalme, moça, descanse. Está tudo sob controle. Foi um serviço de rainha mambo aquele, parabéns. — Tranquilizou-a.
Depois, foi o tempo.
Entre praias abarrotadas, Cristo Redentor, restaurantes suspeitos e rituais de ayahuasca, um romance surgia. A princípio motivado pelo sexo bestial e inconsequências pagãs; mas, depois, quando o mundano se fez sagrado, o afeto entre os dois tornou-se incontornável. Negar o poder daquele sentimento era tão inócuo quanto negar a realidade das inúmeras inteligências que se revezavam no corpo da Conjure nos terreiros de Umbanda.
— Quer água? — Giordano perguntou.
— Não, ela ainda está em mim. Champanhe, por favor — disse a mulher, ungida pelo suor sacerdotal.
Foi Cipriano, aquele ex-padre irresolvido, quem recomendara a sacerdotisa Hoodoo para Giordano. Cipriano sabia que Iragavanah era especial, Giordano jurou agradecê-lo pela recomendação até o final dos tempos, que, segundo um pastor batista, seria dali a dois dias.
***
— Ele está próximo, Vanah, posso sentir em cada cicatriz do meu corpo — o cabalista confessou em voz trêmula à amante. — Nenhum dos rabinos deu conta deles, bebê, fomos humilhados. Os caoístas caíram fora com a Goetia entre as pernas. Os budistas Drukpa nem retornaram do Himalaia e os magos sufistas enlouqueceram no giro. Alguns sofreram combustão espontânea, amor. Não é só ele, Vanah. Há algo maior e mais antigo por trás disso.
— Mas não te pegaram — afirmou a Conjure. — Certeza que não tiveste culpa no cartório, Giordano? Isso é importante para que a Lei da Justiça nos guarde e ampare.
— Giovanni a seduziu. Ele sabia que Zola era perigoso, mas nem desconfiava de feitiçaria. Ao chegarmos à África, ele se apaixonou por Ayana, mas eu conhecia meu irmão, sabia que era só fogo de palha. E quando Zola descobriu que a esposa, o tesouro de sua vida, o estava traindo, imediatamente acendeu o inferno. Seus ajudantes se espalharam como lacraias pelo continente, e quando souberam que Ayana andava conosco, a caçada começou. Partimos às pressas de Maputo, onde um médico amigo nos deu guarida, e fomos ziguezagueando de Moçambique para mais sete países. Menos de seis horas depois, meu amigo foi encontrado decapitado, sem os membros e emasculado. A cabeça nunca foi encontrada. Mas a partir desse dia, seus parentes adoeceram, definharam e caíram como moscas envenenadas. Foi em Quebec que Zola os pegou. Ayana morreu primeiro, o que deu a Giovanni a oportunidade de suplicar pela vida e confessar
que era eu o amante de Ayana, e o quanto ele tinha me aconselhado a acabar com aquele romance. Não adiantou. Os corpos nunca foram encontrados. E isso é tudo o que sei. A pessoa que me confidenciou isso também desapareceu antes de eu chegar ao Brasil, mas Zola acreditou na farsa do meu irmão e aqui estamos nós. Ele não vai parar até que eu esteja morto… ou coisa pior.
— Teu irmão é um Caim filho da puta. Perdão, mas é isso — disse Iragavanah, sentada em posição de lótus, sem tirar os olhos do arranjo à sua frente.
— O que é exatamente isso? — perguntou Giordano.
— Algo que nos levará além… — respondeu a Conjure.
— Nunca ouvi falar em nada parecido. E além dessas ervas, Dimetiltriptamina, Salvinorina, Ibogaína, Mescalina4 e vinho? Até onde sei, o álcool inibe o princípio ativ…
— Não subestime uma Raizeira5 — ela interrompeu — e não quero te chamar de mané, Dr. Cabalista. Tua sorte é que és uma foda e tanto. Agora cala a boca — disse ela, agachada sobre um montículo de ossos e ervas enquanto gotejava, delicadamente, o conteúdo de um frasco em uma garrafa de líquido rubro. À frente da mulher, mais três minúsculas botelhas de diferentes tons de verde.
— Onde aprendeu isso — exigiu o homem. Circe, a imensa rottweiler, olhava aquele rompante com indiferença.
— Confraria Iridescente, a mais secreta loja da Alemanha. A fórmula original foi desenvolvida por um mago russo excepcional. Infelizmente ele acabou morrendo lobotomizado e sozinho num hospício no início do século XX. Mas seu filho aperfeiçoou a receita. Agora são quatro espíritos. E o segredo da nova química é que o álcool os libera em vez delimitar. Ciência e metafísica a serviço dos Mistérios, tesão meu.
— Esse vinho é realmente um vinho do gelo de 17946, Vanah? Tem ideia do valor disso?
— Claro. Em 1794 o Haiti se rebelou, tesão. Os Djabs7 blindaram meus ancestrais das balas do escravizador francês, e derrubaram ao fogo amarelo os homens do general cruel. O valor
a que te referes não importa aqui, doutor. Há outros valores na vida e na morte, agora, pela última vez, cala a boca.
***
Naquela quarta-feira, a noite deflorava as nuvens densas e se abria obscena à lua gorda; a luz impudica perolava os horizontes da Floresta da Tijuca, ultrajando o temporal vindouro.
— Confio inteiramente a minha vida a ti, Vanah. Cipriano disse que não existe, na Terra, mais ninguém em quem confiar — falou Giordano sincero, quase suplicante —, eles querem meu paradeiro. Isso vai além do assassinato.
Um trovão reclamou ao longe.
— Confia, meu amor. — Mulher de pele azeviche encarava-o com os olhos amendoados em mel e fogo. A placidez na voz ocultava tempestades. — Ninguém te fará mal, nem te ferirá, nem maculará teus descendentes. Ogoun Badagris, meu Loa8, vai abrir as veredas da vida. Confia. O futuro não existe. O passado é imutável. Só existe poder no agora!
Sob a lua cheia na constelação de Escorpião a mulher dança.
Ao som dos céus ribombantes, homem e cadela observavam sua dona, nua, conspirar com o ar em movimentos de absoluta perfeição. Espirais de pequenos espelhos dardejavam gotículas prateadas em todas as direções, resplandecendo o corpo da sacerdotisa. A borrasca chegara. A lua, ressentida, desaparecera. Não havia mais luzes agora, a não ser as dos relâmpagos que eventualmente rasgavam o firmamento negro. Mas nem precisava. A mulher em cinestesia era uma estrela em si mesma.