A Carruagem da Morte
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Sobre este e-book
Gustavo Rosseb resgata e moderniza os mitos e causos do folclore brasileiro, entretendo os leitores e provocando reflexões sobre temas como o preconceito, a morte e o poder da amizade e dos laços de família. As aventuras de Tibor estão chegando ao fim, mas a diversão está apenas começando.
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A Carruagem da Morte - Gustavo Rosseb
oca
1 - Além-túmulo
1
ALÉM–TÚMULO
O farfalhar, seco e quebradiço, era ritmado. Os passos, apressados e obstinados, lideravam outros caminhantes, abrindo passagem entre os galhos e folhas que forravam o chão. As copas das árvores atenuavam a escuridão da noite e uma melodia melancólica, vez ou outra, chegava aos ouvidos dos treze caminhantes que seguiam a estranha mulher.
— Por acaso sabe que som maldito é esse? — sussurrou um deles para o mais próximo, buscando quebrar o silêncio. — Até meus ossos tremem quando escuto.
— É o urutau. O pássaro-fantasma — respondeu o outro. — Dizem que canta assim pra anunciar a morte.
O comentário do homem fez com que um arrepio percorresse a espinha de alguns dos outros, que estavam de orelha em pé, atentos aos mínimos sons da floresta, e acabaram ouvindo a conversa. Olharam em torno, desconfiados, tentando adivinhar de onde vinha o canto assombrado do pássaro, mas as sombras abraçavam o cenário por completo.
Mais um tempo caminhando e outro deles expressou a necessidade de todos de romper o silêncio mais uma vez.
— Ei, dona! — chamou, encarando a nuca de cabelos longos e esgrouvinhados que seguia à frente. — Quanto falta para chegar na tumba do ouro?
— Estamos quase lá — respondeu ela, sem olhar para trás ou diminuir o ritmo.
— E é garantido que a pessoa que nos espera sabe mesmo como quebrar a maldição? — quis saber mais o homem. — Espíritos não costumam ser benevolentes com quem fuça suas covas. E os escravos foram enterrados vivos ali pra isso. Pra proteger o antigo ouro dos patrões.
— Ninguém mais sabe quebrar esse tipo de maldição — falou impaciente a mulher morena, de traços fortes e rosto escavado de rugas.
O homem apenas levantou as sobrancelhas, sem acreditar muito.
Depois de alguns minutos de caminhada, a mulher diminuiu o passo e, com ela, todos os outros, homens fortes e destemidos. Caçadores, mercenários, derrubadores de árvores. Todos acostumados com ambientes como aquele. Mas algo lhes parecia diferente. Além do canto que prenunciava a morte, havia uma força malévola naquele lugar. Algo hostil parecia estar prestes a lhes dar as boas-vindas. Um medo incomum começou a se avolumar dentro deles. Fazia-os bater os dentes, as pernas tremerem.
— Chegamos — avisou a única mulher do bando, ignorando todos os questionamentos. Os ditos e os não ditos.
De início não notaram nada de peculiar naquele trecho da floresta, mas então notaram que, logo adiante, uma parte do solo era diferente do entorno. Parecia que a terra era estéril e nada brotava dali.
Aproximaram-se devagar e colocaram seus pertences no chão.
— Comecem a cavar! — ordenou ela. — Logo ela estará entre nós.
Prontamente, seis deles desatrelaram as enxadas e pás das mochilas e começaram a cavar a terra improdutiva. Enquanto isso a mulher desenhava, com um pó vermelho, um grande círculo no chão, ao redor do local que escavavam. Ao longo de duas horas, os homens revezaram pás e enxadas. Até acenderam uma pequena fogueira e assaram alguns animais para comer. E pouco a pouco um enorme buraco foi se abrindo na terra, até um golpe oco denunciar que uma das pás tinha atingido algo sólido. Todos ficaram em alerta.
Um deles foi tirando a terra com as mãos e um tampo de madeira podre ficou visível no fundo do buraco. Mas, antes que alguém ousasse dizer alguma coisa, uma rajada de vento apagou a fogueira, como quem assopra uma vela.
— Ela chegou! Está aqui! — a mulher anunciou, cheia de expectativa.
Na penumbra, notaram um vulto imóvel, mal visível em meio à floresta escura. Se a mulher não avisasse, nem teriam reparado. Pelo que dava para ver, era uma velha coberta dos pés à cabeça com um manto negro e esfarrapado. Do rosto, só podiam ver a boca enrugada, que se remexia frenética, sussurrando coisas incompreensíveis à beira do buraco. E, enquanto a observavam cheios de cautela, algo passou a lhes atormentar os nervos e só encontravam sossego quando desviavam o olhar.
— Estamos prontos, senhora! — disse a mulher morena.
O vulto calou-se e, devagar, passou a avaliar cada um dos treze homens, fazendo-lhes o estômago revirar de apreensão e mal-estar. Depois, balançando de leve a cabeça, a velha pareceu dar uma ordem à mulher.
— Larguem o que estão fazendo e fiquem em círculo em volta do buraco! — instruiu a que parecia mais nova, com urgência na voz.
Alguns se entreolharam perplexos, sem entender o que ela pretendia.
— O que está acontecendo aqui, pode explicar? — um deles ousou perguntar.
— Não há muito que explicar além do que já sabem — respondeu com rispidez a mulher. — Vamos expurgar o que vigia esta cova e o tesouro sob sua guarda será dividido entre vocês. É simples. Pagando minha parte, conforme o combinado, estão livres para gastar o resto como quiserem.
Sorrisos gananciosos brotaram dos lábios de alguns.
— Só tem uma condição… — continuou ela, atraindo a atenção de todos.
Os sorrisos desmoronaram.
— Só vai ser recompensado com o ouro desta cova quem se mantiver dentro do círculo — disse ela, apontando o círculo que havia desenhado no chão com o pó vermelho. — Abandonem suas posições e vão perder o seu quinhão. — Dois deles que ainda estavam do lado de fora trataram logo de ocupar seu lugar na circunferência. — Não importa o que saia desta cova, não deixem este círculo!
Olhares preocupados cruzaram-se, como se ponderassem os riscos e possibilidades. Depois de um instante, a mulher sentenciou:
— Se ninguém tem objeção nenhuma, é hora de começar. — Ela se virou para o vulto macabro da velha, que continuava imóvel. — Minha senhora, pode prosseguir!
Uma mão enrugada e de dedos tortos projetou-se do manto e estendeu-se em direção ao buraco. A velha voltou a balbuciar coisas que, para os homens, não fazia sentido algum. Todos se mantiveram de cabeça baixa e às vezes olhavam apreensivos uns para os outros, mas nunca para a velha.
Aos poucos, os murmúrios desconexos começaram a se multiplicar e os homens arregalaram os olhos de assombro. A impressão que tinham é que agora outras vozes se juntavam à da velha! E sussurravam coisas nos seus ouvidos! A inquietação era geral. Não ousavam dizer nada, mas era óbvio que se perguntavam se aquilo estava acontecendo de verdade ou se era fruto da sua imaginação.
Outra rajada de vento sobrenatural varreu a clareira e balançou as árvores ao redor. A velha continuava com sua ladainha incompreensível, enquanto o vento esvoaçava seu manto. A mulher que os conduzira até ali lutava para ficar impassível, mas via-se que a cada segundo parecia mais impaciente e ansiosa para que tudo aquilo logo tivesse fim.
As vozes soprando nos ouvidos dos homens agora pareciam carregadas de ódio. Um ódio havia muito reprimido. Até que, de repente, um deles se sobressaltou ao avistar uma sombra cochichando ao pé do ouvido de um companheiro e em seguida se desvanecendo no ar. Não passou muito tempo e todos tinham a impressão de sentir uma presença funesta ao seu lado. E, cada vez que isso acontecia, levavam as mãos à cabeça como se escutassem algo aterrorizante.
Alguns tentavam resistir às vozes, mas os sussurros eram cada vez mais altos e enlouquecidos em seus ouvidos. Era como se um enxame de almas penadas os emboscasse na escuridão.
— Parem! Parem, demônios! — gritou um deles se ajoelhando no chão, sem mais suportar o tormento.
Em outro ponto do círculo, mais um também sucumbiu ao terror infligido pelas sombras. Neste momento, o vento aumentou e as copas das árvores começaram a balançar violentamente, como se suas raízes estivessem prestes a ser arrancadas da terra.
— É a morte! — gritou um dos homens. — Essas sombras estão invocando a morte.
E, de repente, o mundo parou.
Não havia mais sombras sussurrantes nem rajadas de vento. Nada.
Na floresta voltou reinar um sinistro silêncio.
Os homens aproveitaram a calmaria para se recompor. A velha por um instante parou de sussurrar e estendeu os braços pálidos e raquíticos para o buraco. Então abriu a boca e o som que dela saiu demorou a ser assimilado como uma voz. Para aqueles homens de sentidos atordoados o que saía dali era o mal traduzido em palavras.
— Levante-se! — sussurrou ela com autoridade.
Todos se sobressaltaram ao ouvir um baque surdo no fundo do buraco.
— Aceite a minha oferenda e em troca me dê o que peço. — A velha parecia falar com o que havia por baixo do tampo, dentro do buraco.
Mais uma batida na madeira. Desta vez, mais forte. Os olhos de todos se fixaram no fundo do buraco, imaginando que criatura de pesadelo poderia sair daquela cova.
— O qu-que tem ali? — gaguejou um dos homens.
— Aceite minha oferenda e em troca me dê o que peço! — repetiu mais alto a voz rouca e enregelante da velha.
— De que oferenda ela está falando? Não trouxemos nada de valor — falou outro à mulher.
Algo golpeou a tampa com força, fazendo terra e lascas da madeira podre voarem para todos os lados. Com um grito de horror, um dos homens deixou o círculo e correu para a mata; os outros mantiveram suas posições, movidos pela ganância, pela curiosidade, mas principalmente paralisados pelo medo.
— Tome posse do que é seu e me dê o que lhe peço! — gritou a velha para a criatura no buraco.
E então o pesadelo tomou forma e o medo retorceu as entranhas dos homens.
O tampo arrebentou pelos ares num estouro oco. E todos viram um focinho triangular, do tamanho do capô de um carro, se projetar da cova. Um corpo enorme e viscoso saiu deslizando de dentro do buraco. Era uma cobra imensa. Sua boca tinha o formato de uma boca de baleia. Seu corpo era translúcido. Era possível enxergar através da cobra!
Os doze homens fortes que ainda restavam abandonaram suas posições no círculo e puseram-se a correr pela floresta. Em pânico, deixaram seus pertences para trás. Pelo visto, nem todo o ouro do mundo os obrigaria a ficar ali, diante daquela aparição.
Mas um deles não foi rápido o suficiente. A cobra deu o bote e, apesar da distância, não teve dificuldade para alcançá-lo.
A visão do ataque foi chocante.
Não havia limites para aquela assombração. Seu corpo parecia feito de algo não material. Não físico. Deslizava através das árvores como se não existissem. Atravessava qualquer coisa como um fantasma atravessa uma parede.
E, quando a criatura alcançou o primeiro homem em disparada, algo muito estranho aconteceu. Ao toque da cobra, o corpo do homem caiu no chão sem vida, enquanto uma névoa azulada e opaca desprendeu-se dele e aderiu ao corpo do réptil. O homem não fazia mais parte deste mundo. A cobra semitransparente tinha se alimentado da sua alma.
A cabeçorra triangular observou o escuro da mata como se identificasse o paradeiro de todas as suas outras presas. Suavemente deslizou pela floresta, e as árvores não eram obstáculo. Rápida e silenciosa, ultrapassava livremente qualquer coisa que barrasse seu caminho.
Dentro do círculo apenas restou a velha do manto negro e a mulher que conduzira aqueles homens para uma armadilha brutal, da qual sabia que nunca sairiam vivos. Dali ela via lampejos azuis e opacos se acendendo em diferentes pontos, na escuridão da mata. Era a cobra recolhendo sua oferenda.
Pouco depois, a cabeçorra da criatura translúcida deslizou de volta, até parar na frente da velha. Sua pele viscosa tinha um leve brilho azulado.
— Agora me dê o que lhe peço! — ordenou a velha, autoritária.
A cobra abriu a bocarra como se fosse expelir alguma coisa. Seu corpo todo se retesou e começou a se contorcer em espasmos. Algo escuro percorreu toda a extensão do corpo vítreo, até sua enorme boca de jubarte. De uma só vez, a cobra regurgitou algo aos pés da velha.
Algo grande, do tamanho de um ser humano. E que se mexia.
A velha não se espantou. Adiantou-se, estreitando os olhos para ver melhor o ser regurgitado. Era definitivamente humanoide.
Por um momento, apenas observou a coisa, que parecia estar de cócoras.
— Irmã? — chamou a velha.
Devagar, o ser foi se levantando. A primeira coisa que se destacou foram os pés, três a quatro vezes maiores que os de qualquer humano. Aos poucos foi se identificando uma corcunda e então ficou claro que era uma velha tão encarquilhada quanto a que presidia o ritual. A diferença é que seu corpo também era translúcido, assim como o da grande serpente que a vomitara.
— Vou precisar de você, irmã — falou a velha de manto preto. — E em sua melhor forma.
No instante em que um urutau entoou seu canto depressivo em alguma parte da floresta, a velha de pés compridos e enrugados se desmanchou no ar como se feita de fumaça, com um sorriso cheio de malícia.
2
ALVORADA NO VILAREJO MURADO
Um par de olhos verde-folha se abriu. A primeira coisa que viu foi o teto de uma barraca de poliéster azul e amarela. O dono dos olhos continuou deitado por algum tempo. Fragmentos de uma memória antiga o confundiram e, por alguns instantes, ele se esqueceu de onde estava. Lembrou-se de quando era pequeno e acampava com os pais e a irmã, em meio aos ciganos. Já fazia bastante tempo que não acordava sob o tecido impermeável de uma barraca.
Aquela era uma época boa. Se investisse um pouco mais naquela lembrança, seria quase capaz de sentir o aroma de mirra e laranja que inundava suas narinas todas as manhãs. Sua mãe adorava o cheiro de incenso e esses dois, em particular, eram seus preferidos. Ela dizia que o de mirra limpava o ambiente, afastando energias negativas, e o de laranja trazia paz e tranquilidade. Que melhor maneira de acordar? Aonde quer que ela fosse, seus cabelos carregavam aquela mescla do aroma apimentado com o cítrico.
Mais um pouco e ele seria capaz de ouvir a voz do pai. Era incrível como nunca conseguira acordar antes dele. Sempre que abria os olhos, seu pai já estava de pé. Tinha adoração pelo alvorecer. Amava contar aos filhos, logo cedo, como o sol tinha dado as caras aquela manhã e como sua luz pintara todo o acampamento. A história era sempre diferente, já que o acampamento mudava de lugar de tempos em tempos e a criatividade do pai também.
Era interessante ouvir as suas descrições sempre tão variadas. Cada detalhe, cada pormenor. Era quase como presenciar o nascer do sol por si só. Às vezes até melhor do que isso!
Quando era bem criança, foram muitas as vezes em que abriu os olhos e deu de cara com o teto da barraca. Então desistia de se levantar e concedia a si mesmo uns dez ou quinze minutinhos a mais de sono. Só se virava de lado e se aninhava no corpo quentinho da irmã, quase dois anos mais velha, que também sempre aproveitava para dormir mais uns quinze minutinhos. Aquele calor protetor era um convite irrecusável para deixar o mundo lá fora esperando um pouco mais.
Tibor respirou fundo para dissipar o devaneio matutino, esfregou os olhos para afastar o sono e observou novamente a abóbada de poliéster amarela e azul da barraca. Desta vez não havia ninguém dormindo ao seu lado, nem a voz grave do pai, muito menos o cheiro de mirra e laranja da mãe. Ambos haviam morrido no misterioso incêndio no acampamento, muitos anos antes.
Deitado ainda, um pensamento afastou a lembrança dos pais. Um pesadelo.
Por pouco não lhe escapava a imagem de uma cobra translúcida se alimentando de seres humanos numa floresta escura. Lembrava também de um ser, um tanto quanto familiar, sendo regurgitado. E ainda que tudo o que vira nesse sonho desagradável lhe trouxesse motivos para não querer mais voltar a dormir, o que mais lhe causava aversão era a imagem da velha que comandava o ritual. Algo nela era nocivo e perigoso.
Queria que sua mente tivesse esquecido essas visões. Estaria melhor sem elas. Mas algo dentro dele sentia que era importante lembrar.
Um arrepio sacudiu seu corpo. Resolveu se levantar.
Saiu da barraca e quase se arrependeu. Um vento frio o recebeu do lado de fora, gelando seus ossos. O céu ainda estava bem escuro. Sabia que era de manhã, mas o próprio sol ainda não tivera coragem de vencer o frio.
De repente teve uma sensação de déjà-vu. Como se já tivesse visto a mesma cena num passado distante.
Estava em meio a um agrupamento de várias barracas, como aquele em que costumavam morar quando seus pais eram vivos.
Do alto das imensas araucárias que cercavam o acampamento, ele era só um pontinho escuro caminhando entre as barracas. Tibor seguia em frente, escolhendo onde pisar. Desviava das pinhas caídas no chão, rumo a uma luz laranja mais adiante. Era de onde provinha o calor e também um vozerio.
Do seu lado esquerdo se erguia, imponente, um muro alto de madeira maciça, que dividia a floresta em dois. Por um momento, quase se esqueceu da noite anterior, quando tinham festejado o fim da construção do muro. A ideia de construir o muro tinha sido proposta no ano anterior e apoiada pelos moradores do vilarejo. Com tantos boatos de que uma bruxa estava reunindo uma espécie de exército de assombrações, ninguém queria esperar a chegada da quaresma — uma época em que coisas estranhas aconteciam e seres fantásticos, como a Mula Sem Cabeça e os Trasgos da Floresta, vinham assombrar as pessoas — para ter certeza.
Resolveram murar a vila toda, isolando-a da mata fechada e, consequentemente, de todas as outras vilas. Os portões ao longo do muro eram vigiados 24 horas por dia. Quem queria entrar no vilarejo tinha que se identificar para conseguir permissão de seguir adiante.
Tibor achava aquilo tudo um pouco exagerado, mas sabia que não podia julgá-los. E foi festejar o término da construção do muro com Antenor e seus companheiros — homens e mulheres que tinham se voluntariado para ajudar na empreitada.
O menino se lembrou de quando conhecera Antenor. A primeira impressão do homem não tinha sido boa. Também, pudera. Ele havia mandado prender, injustamente, seu falecido amigo Málabu. Na ocasião, Tibor e seus amigos tinham conseguido encontrar os verdadeiros culpados dos roubos frequentes em Vila Serena e do sumiço da sua irmã Sátir. Eram a fera Gorjala e o tal do boto Humbertolomeu. E ambos já tinham recebido a sentença que mereciam.
Ele percebeu, tempos depois, que as intenções de Antenor eram louváveis. E que, assim como todo mundo, aquele homem careca só tinha cometido um grande engano. No ano anterior, ele juntara um grupo de doze pessoas para invadir um lugar que supunha ser os domínios de uma bruxa. E, de fato, era. Mas ele e seus homens foram vítimas de uma armadilha tramada pela Pisadeira. O próprio Tibor, sua irmã e seus amigos tinham sido vítimas da bruxa também. Naquela empreitada, Tibor havia perdido dois amigos, o primeiro para a morte e o segundo para a Cuca — o que, para muitos, apesar de o segundo estar vivo, poderia significar a mesma coisa.
Todos os dias, desde então, o menino Lobato se remoía por dentro. Aquelas perdas o mudaram para sempre. Embora só tivesse 15 anos, não era mais o menino ingênuo que um dia fora. E o fato de aquele muro existir, mostrava que o mundo lá fora também havia passado por drásticas mudanças. Não havia mais um lugar considerado seguro na região.
Cada um se virava como podia para se preparar para a quaresma. Muitos somavam forças com aqueles que se propunham a fazer alguma coisa. E Antenor se propunha! Ele havia se tornado um símbolo de esperança e resistência. Não era à toa que seu grupo de seguidores, que já fora de apenas alguns homens, agora era composto de centenas de moradores.
E suas iniciativas não se restringiam à Vila Serena, mas englobavam todos os outros vilarejos. Como era o caso do muro ao redor do Vilarejo Membira.
Não eram apenas os boatos que causavam medo na população dos sete vilarejos. Desde a última quaresma, corriam boatos de ataques de uma misteriosa criatura que aparecia toda vez que a lua cheia despontava no céu. Tibor odiava saber que o amigo Rurique talvez desempenhasse um papel importante nisso. O menino, antes de ser levado pela Cuca, fora mordido por um lobisomem e era quase certo que tinha se transformado em um e assumido seu legado.
O que Tibor sabia é que um dos únicos seres que apareciam, não só na quaresma, mas o ano inteiro, era o lobisomem. Sendo assim, mesmo sendo difícil de acreditar, era bem provável que seu próprio melhor amigo era quem assolava as vilas com investidas violentas, causando pânico geral. O que Tibor ainda não sabia era como encontrar e salvar o amigo, dando cabo da sua maldição.
Se é que isso era possível.
Era por esse motivo que Tibor tinha se aproximado de Antenor e seu exército. Ele sabia que, toda época de lua cheia, o homem reunia um grupo grande de pessoas para caçar a fera. E Tibor precisava evitar que o amigo fosse morto. Precisava, de algum jeito, encontrá-lo antes, para cumprir a promessa que tinha feito de livrá-lo da maldição. E não descansaria até conseguir. O problema é que ainda faltava muito para a próxima lua cheia. Ainda estavam na minguante.
— Bom dia! — cumprimentou Tibor, dirigindo-se aos poucos que já estavam de pé e se esquentavam ao redor da fogueira. Percebeu sua própria voz pastosa, como se suas cordas vocais também não tivessem acordado direito.
Todos responderam. Alguns de um jeito sucinto, outros apenas com um aceno de cabeça, mas todos parecendo muito satisfeitos com o feito que se estendia às suas costas: o muro.
Antenor veio por entre árvores até a fogueira. Em seus braços, um fardo de galhos secos de araucária. Ao chegar perto do fogo, alimentou-o com alguns gravetos, avivando as chamas para aquecer a todos.
— Bom dia, menino Lobato! — disse — Sirva-se do café da manhã dos vitoriosos! — e estendeu para o menino um punhado de pinhões assados na fogueira. À primeira vista, Tibor pensou que Antenor estava lhe oferecendo um punhado de baratas. Mas observou que todos ali se serviam e descascavam a semente da araucária, para comer a polpa branca deliciosa. Logo quis comer também algumas baratinhas como aquela.
— Ah, já acordou, é? — perguntou um garoto às suas costas.
Era Pedro. Um amigo que Tibor fizera alguns meses atrás. Ao vê-lo, lembrou-se de um assunto urgente.
— Minha nossa! — exclamou, arregalando os olhos verde-folha — Esqueci completamente. Precisamos ir, não é? Sua mãe vai matar a gente!
— Pois é. Eu quis deixar você dormir um pouco mais — falou o menino, colocando mais galhos e pinhas secas de araucária na fogueira. — Fiquei sem jeito de te acordar quando levantei. Pensei: Pô, o Tibor fica com esse lance de que não consegue dormir, diz que está com insônia. Já que conseguiu pregar os olhos, vou deixar ele dormir mais um pouco
.
— Valeu! — agradeceu Tibor. — Mas tive um sonho tão ruim que, sinceramente, preferia que você tivesse me acordado — Ele deu uma risadinha sem jeito e olhou para o amigo.
— Tá bom. Vou me lembrar disso da próxima vez, hein? Termina logo essas baratas do seu café da manhã e depois vem ajudar a desmontar nossa barraca.
— Arrã — concordou Tibor, com a boca cheia de pinhões torrados, e sabendo agora que não era o único que os via com aparência de inseto.
— Ora, mas vão embora assim tão cedo? — quis saber Antenor.
— A mãe do Pedro não sabe que ele está aqui. Saímos escondidos — contou Tibor.
— E se ela descobre, a gente está numa baita encrenca! — falou Pedro, já desaparecendo entre as barracas.
— E parece que a Dona Lívia costuma acordar bem cedo. É bom a gente voltar antes que ela perceba que não tem ninguém nas camas lá da casa dela — concluiu Tibor.
Minutos depois, os dois jovens já juntavam seus pertences, desmontavam a barraca e guardavam tudo em suas mochilas.
Pedro tinha quase a mesma altura de Tibor, mas umas gordurinhas a mais, aqui e ali. Diferentes dos cabelos lisos e grossos de Tibor, os dele eram um emaranhado de rolinhos castanhos.
Na saída, os dois garotos parabenizaram mais uma vez Antenor e os outros pelo término da construção do muro, se despediram e partiram.
Num dado momento, Tibor olhou para trás e viu o sol nascente tremeluzindo por trás do muro. Ficou imaginando como o pai descreveria aquela cena.
— Cara, acho bom a gente apertar o passo — aconselhou Pedro. — Se minha mãe me pega mentindo, ela me mata. — Pensou um pouco antes de prosseguir. — Ela vive dizendo que não criou o filho pra acabar igual ao pai e blá blá blá...
Passavam agora na frente de um cemitério decrépito, o único da Vila Membira. Lápides de diferentes tamanhos e formatos pontilhavam o terreno, como uma plantação que nunca germinaria nem daria frutos. Tibor observou o lugar e concluiu que não gostava de cemitérios; ficaria longe de lugares assim quanto pudesse.
— Pensando melhor... — continuou Pedro, olhando para o cemitério —, meu pai acabou como todo mundo acaba um dia. Bença, pai! — falou a esmo, dirigindo o cumprimento às lápides. — Meu pai tinha mania de querer tirar proveito das coisas. Uma mentirinha aqui, outra mentirinha ali... Mas tudo inofensivo. Ele sempre dizia uma frase que gosto muito. Que, pra fazer o que ele fazia, responsa muita habilidade!
— contou Pedro, dando risada do jeito engraçado de falar do pai. — Dizem até que era capaz de enganar a própria morte. Que sempre batia à porta dela e saía correndo antes que ela abrisse e visse quem bateu. Mas acho que um dia essa estratégia não deu muito certo. — Pedro pensou um pouco antes de continuar. — Depois que ele se foi, minha mãe virou um urubu em cima de mim. Sempre tentando evitar que eu fique igual a ele.
Tibor olhou-o, intrigado, enquanto tentava acompanhar o passo apressado do amigo.
— Vai saber o que se passa na cabeça das nossas mães, né? — emendou Pedro, mas logo percebendo ter falado besteira. — Desculpe!
— Pelo quê?
— Ah, você não tem…
— Mãe? — cortou Tibor. — Tenho sim! Ela só não está por aqui. Mas carrego ela sempre comigo no coração. Ela e meu pai. Acredito que você também, não? — O amigo assentiu. — Aliás, eu tenho também a minha avó. Dona Gailde também gosta de pegar no meu pé às vezes.
Um leve sorriso brotou no rosto de Tibor, já suado por causa do sol que esquentava sua nuca.
— Pensando bem, eu sei, sim.
— Sabe o quê? — quis saber Tibor.
— O que se passa na cabeça da minha mãe. Assim como o que passa na cabeça de todo mundo — falou Pedro. — É essa coisa da quaresma. É essa bruxa. Esses ataques… — Tibor apenas escutava. — Minha mãe anda preocupada. Já passou por muita coisa, a coitada. Não quero dificultar ainda mais a vida dela, sabe?
Tibor balançou a cabeça, concordando.
— E, quanto menos eu der motivo, melhor — completou.
— Sei bem como é. — Tibor teve um vislumbre do ano anterior, de como as coisas ficaram tensas entre ele e a avó quando a irmã desapareceu.
A estradinha de terra tinha se transformado numa rua de paralelepípedos e começaram a surgir algumas casinhas dos dois lados. Apesar de ser de manhã cedo, já havia pessoas nas ruas. Um senhor passou por eles, de bicicleta, carregando um saco de pão, e disse bom-dia. Uma senhora varria a porta da frente de sua casa e acenou quando eles cruzaram por ela. Mesmo que as pessoas tentassem levar a vida normalmente, como se nada estivesse acontecendo, notava-se uma certa apreensão em cada sorriso e em cada cumprimento. Era como se uma sombra cobrisse o semblante das pessoas. E era difícil se manter valente quando todos os olhares pareciam tão temerosos.
— Vamos, Tibor! — incentivou Pedro. — Já estamos pertinho.
O menino, apesar de mais rechonchudo, caminhava bem depressa. Tibor estava até ofegante por tentar acompanhá-lo.
Passado um tempo, atravessaram um portão preto de ferro, com um brasão com a letra M
em destaque, e subiram as escadas de uma imponente casa da época colonial. Portas e janelas altas, em madeira de lei e com molduras largas, pintadas na cor preta, rodeavam toda a casa, caiada de branco.
Pedro abriu a porta da frente com cautela e fez sinal para que Tibor o seguisse pelo amplo saguão de entrada, até as escadas que levavam ao piso superior.
Enquanto subiam, Tibor reparou no gigantesco lustre de metal que pendia do teto. Adorava visitar a casa do amigo. Os detalhes da casa eram muito peculiares. O tal lustre tinha várias lâmpadas elétricas, mas parecia ter sido adaptado, pois nada mais era que um grande candelabro suspenso usado um dia para inserir velas.
Um quadro sempre chamava a atenção do menino quando visitava o amigo. Era uma pintura misteriosa que parecia o desenho de uma lua cheia ou um sol. Era, basicamente, um círculo esquisito. Olhando de frente, lembrava uma lua. De ponta-cabeça, parecia um sol. Por algum motivo, aquela pintura não combinava com o lugar. Quando Tibor comentou isso com Pedro, o amigo explicou:
— Meu pai dizia que esse quadro não era dele e que, um dia, o antigo dono viria buscá-lo. O dono nunca veio buscar, mas acho que minha mãe deixa o quadro aí porque, de alguma forma, lembra o meu pai.
No final do corredor do primeiro andar, havia uma tapeçaria emoldurada, imensa, onde se viam três pessoas. Era na verdade um retrato de família bordado numa talagarça. Nele via-se a mãe de Pedro com um meio sorriso no rosto, sentada com o filho no colo, ainda bebê, ao lado do marido, que era uma versão mais velha e mais rechonchuda do Pedro atual.
Passaram na frente de onde Tibor sabia que era o quarto da mãe do amigo e viram luz debaixo da porta. Aquilo era sinal de que a mulher estava acordada. Pedro devia ter pensado a mesma coisa porque começou a andar mais rápido, mas no seu passo silencioso de ninja, sem deixar que nenhuma tábua do assoalho rangesse. Mesmo de tênis, parecia que ele estava só usando meias.
Meias grossas, felpudas e imperceptíveis.
Tibor o seguiu, mas antes resolveu tirar os sapatos. Nem as patas almofadadas de uma onça eram tão silenciosas quanto o amigo.
Pedro entrou no seu quarto de pé-direito alto, e segurou a porta para Tibor entrar em seguida. Fechou a porta atrás de si e suspirou aliviado:
— Puxa! Chegamos bem na hora!
E mesmo conhecendo a mãe do menino e sabendo que ela não era a fera que Pedro dizia, o amigo conseguiu deixá-lo tão nervoso que também se sentiu aliviado por chegar são e salvo ao quarto do seu amigo, Pedro Malasartes Júnior.
3
SUBSTITUTOS
O café da manhã foi digno de um príncipe. Mesmo com o bucho cheio de pinhões, Tibor encontrou espaço para as tapiocas que Dona Lívia tinha preparado, de manteiga e também de queijo branco com goiabada.
Ela fungou, cheia de suspeita, no cangote do filho umas duas vezes, dizendo que o menino fedia à fumaça.
— Não sei de onde a senhora tirou isso. Já pensou que seu nariz pode estar estragado? — disse Pedro, dando risada, tentando distrair a mãe com uma piada sem graça.
— Estragado, é? — retrucou ela, trazendo mais um prato cheio de tapiocas. — Deixa só eu descobrir que anda saindo por aí às vésperas da quaresma! — Tibor e Pedro se entreolharam, com um ar cheio de segredo. — Ainda mais numa quaresma dessas — continuou ela. — Este ano é bissexto!
— O que tem isso? — resmungou Pedro com a boca cheia de tapioca.
— O que tem é que este ano tem um dia a mais — explicou ela, nervosa. — Ora, não ensinam isso na escola, não? — O menino deu de ombros. — De quatro em quatro anos, temos um ano bissexto. Um ano com um dia a mais. E esse dia a mais é em fevereiro. Justamente na quaresma! Ou seja, vem aí uma looonga quaresma... Portanto, estou de olho em você, seu moço!
O sol já subia no céu e invadia os janelões da sala de jantar da casa dos Malasartes.
— O rapazinho vai até o sítio da Dona Gailde, mas volta para cá hoje mesmo, ouviu bem? — avisou ela, apontando para Pedro com a faca suja de manteiga.
— Ah, mãe! — protestou Pedro.
— E nada de Ah, mãe
! Não quero saber de você dormindo fora de casa hoje.
Pedro já abria a boca para resmungar, mas a mãe emendou:
— E nada de cortar caminho pelo cemitério pra chegar na Vila do Meio! Entendeu bem?
Ele por fim balançou a cabeça, concordando.
— Desculpa, viu, Tibor? — disse ela, agora olhando para Tibor. — Tenho que botar as rédeas aqui, senão esse menino me deixa louca. Igualzinho ao pai dele.
— Ué! Aonde estamos indo?
— Para a sua casa, ué — respondeu Pedro, entrando pelos portões do cemitério.
— Tenho cara de quem mora numa tumba? — perguntou Tibor, parando no portão e percebendo que estava prestes a quebrar a promessa que fizera a si mesmo de ficar longe de cemitérios.
— É pra cortar caminho. Você não ouviu minha mãe dizendo, não?
— Ouvi ela dizendo justamente o contrário. Para você não cortar caminho pelo cemitério.
— Quantos anos você tem, Tibor? Porque eu já tenho 16 e não tenho medo de andar em cemitério. Além disso, quero cortar caminho porque estou cansado de andar, você não está, não?
Tibor concordou com a cabeça e seguiu adiante.
— Este é o maior cemitério de todos os vilarejos — disse Pedro, bancando o guia turístico, enquanto