O pintor debaixo do lava-loiças
De Afonso Cruz
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Sobre este e-book
Ao acompanhar a trajetória de Jozef Sors, Afonso Cruz constrói habilmente um novo romance de formação, investindo com fé e sensibilidade no poder transformador da literatura e possibilitando outros olhares sobre as relações entre o coletivo e o individual em meio ao ambiente de conflito e perseguição que marcou o século XX, com suas duas guerras mundiais.
Para oferecer mais autonomia de leitura, a editora preparou um glossário de palavras e expressões da língua portuguesa que têm uso diferente daquele a que estamos acostumados ou são pouco conhecidas no Brasil, além de alguns dados culturais.
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O pintor debaixo do lava-loiças - Afonso Cruz
O LIVRO DOS OLHOS ACESOS
images/himg-13-1.pngATIRAVAM-NOS AO AR E APANHAVAM-NOS
images/himg-15-1.pngTodos os jardins da nossa infância são o jardim do paraíso. A pele suave desses tempos em que se corria com as pernas arqueadas soltando uma espécie de luz pela respiração. Ríamos a correr para os braços dos adultos numa entrega absoluta. Eles, os adultos, atiravam-nos ao ar e apanhavam-nos com mãos ásperas, e, talvez por isso, quando crescemos nunca mais deixamos de, esporadicamente, sonhar que voamos. E de sonhar com gigantes e anões, pois eram essas as nossas proporções.
Jozef Sors nasceu numa grande casa onde os seus pais trabalhavam. A propriedade pertencia a um coronel do exército chamado Möller. Nas traseiras havia um grande jardim cheio de flores, cercado por um muro alto, todo em pedra.
A mãe de Jozef Sors era engomadeira e o pai era mordomo. Enquanto a mãe era uma figura sem protagonismo, baixa e simpática, com maçãs do rosto salientes, o pai era um homem muito especial. Não havia ninguém tão sincero quanto ele. Ignorava por completo qualquer civilidade e dizia exatamente o que sentia e via. Quando o filho nasceu, mal a parteira lhe havia cortado o cordão umbilical, exclamou: parece um rato! A parteira, que se chamava Marija, olhou-o de lado e mandou-o sair, mas o mordomo quis pegar-lhe ao colo. Estava enternecido e chegou mesmo a passar a mão pelos olhos para os limpar. Os seus braços enormes faziam com que o recém-nascido parecesse ainda mais pequeno. Parece mesmo um rato, dizia ele enquanto lhe acariciava a bochecha com o indicador da mão direita. A senhora Sors sorria de cansaço, com as maçãs do rosto maiores do que era habitual. Marija tirou o bebê das mãos do mordomo e pô-lo nos braços da mãe para que ele mamasse. Quando o bebê adormeceu, Marija comentou que era um belo rapaz, forte como a água do mar e saudável como a água da chuva. O olho esquerdo, que parecia uma lua minguante, revelava que iria ser um artista.
— Como os do circo? — perguntou o mordomo.
— Não, como os outros.
A senhora Sors começou a soluçar quando ouviu isto, pois não há nada mais triste do que ser um artista e olhar para o mundo como se o visse pela primeira vez.
— Quem lhe disse isso? — perguntou a parteira.
— Foi um amigo do coronel. Um escultor que veio um dia cá a casa.
— Parece-me uma grande felicidade que, quando se olhe para o mundo, pareça sempre que é a primeira vez que o fazemos.
— É uma grande tristeza. — disse ela a soluçar. — É a maior infelicidade. Eu, quando olho para as coisas, quero que elas me sejam familiares, como o meu tio e o meu marido, como o pão que se come às refeições. Quero deitar-me sempre com o mesmo homem, com os mesmos lábios. Quero que os lençóis de hoje me pareçam os lençóis de ontem, mesmo que os bordados sejam completamente diferentes. Não quero que os beijos que recebo sejam novos, quero que sejam velhos, quero que sejam os de sempre. Não me quero sobressaltar como quando era jovem. Uma pessoa só pode ter paz quando está ao pé das mesmas coisas, quando nem repara nelas, porque elas já fazem parte de si, como se as tivesse comido e mastigado e engolido e agora fossem carne da sua carne e sangue do seu sangue. Só somos felizes quando já não sentimos os sapatos nos pés.
E ao dizer isso adormeceu.
images/himg-17-1.pngTODOS OS HOMENS TÊM TRÊS ESTÔMAGOS
images/himg-18-1.pngO dono da casa, o coronel Möller, era um homem sensível, capaz de admirar flores, e não raras vezes colhia algumas e punha-as no cabelo, ou atrás da orelha. Era imponente, sem ser alto, com um bigode que lhe chegava ao pescoço e com uma grande quantidade de pelos no nariz. Sabia ser autoritário, e nem outra coisa se poderia esperar de um oficial do exército, mas também sabia ser misericordioso, que era, aliás, o seu estado natural. No dia seguinte ao nascimento de Jozef Sors, o coronel entrou, com o seu filho ao colo, no quarto da engomadeira. Wilhelm, que tinha pouco menos de um ano, agarrava os bigodes do pai. O coronel felicitou a senhora Sors.
— Os nossos filhos estudarão juntos — disse o coronel. — Já falei com o meu amigo Fischmann, cujo sobrinho, um jovem literato que começou agora a sua carreira de gramático, aceitou ser preceptor de ambos os rapazes.
A senhora Sors agradeceu.
— Havel Kopecky, o sobrinho do meu amigo, é um jovem muito atento ao que se passa no mundo. Ainda hoje me contou que um físico alemão chamado Röntgen descobriu uns raios que permitem ver o interior das coisas. Imagine, senhora Sors, qualquer dia, graças aos raios de Röntgen poderemos ver o interior do homem.
— A alma? — perguntou a senhora Sors.
— Completamente nua. Um dia poderemos imprimir a alma numa chapa de chumbo. Mas acho que, por enquanto, vamos apenas poder ver imagens dos nossos ossos.
— Parece-me horrível, haverá quem queira ver isso?
— Ha, ha, ha — riu o coronel. — Tem toda a razão, senhora Sors. Que imagem mais sinistra essa, de ver o aspecto que teremos depois de sete anos dentro de um caixão. Mas é importante, é assim que a medicina evolui e é por isso que pensamos na vida: porque se contempla a morte. Ver coisas que vulgarmente não vemos tem gradações de repulsa ou fascínio. Há um certo pudor quando se vê o que está debaixo das roupas, e, quando vemos ainda mais fundo, sentimos a vertigem do enjoo, do nojo. Desmaiamos quando vemos sangue. Não há visão mais terrível que a do interior do homem, seja anatomicamente, seja moralmente.
— Então é bom?
— É terrível, mas é útil. Enfim, isto servia apenas para dizer como tenho em grande estima o futuro preceptor dos nossos filhos. Tenho andado na biblioteca a escolher alguns livros que considero imprescindíveis para a educação de uma criança.
— As crianças precisam é de comer — disse o mordomo, que acabara de entrar. — Para crescerem fortes.
Wilhelm agitou-se ao colo do pai. O coronel fê-lo encostar a cabeça ao ombro. Wilhelm ficava sempre ligeiramente agitado quando via o mordomo.
— Há muitos tipos de comida — disse o coronel Möller enquanto abanava o filho. — Um homem possui três estômagos: um na barriga, outro no peito e outro na cabeça. O da barriga, toda a gente sabe para que serve; o do peito mastiga a respiração, que é a nossa comida mais urgente. Uma pessoa morre sem ar muito mais depressa do que sem água e pão. E por fim há o estômago da cabeça, que se alimenta de palavras e de letras. Os primeiros dois estômagos do homem alimentam-se através da boca e do nariz, ao passo que o terceiro estômago se alimenta principalmente através dos olhos e dos ouvidos, apesar de usar tudo o resto de um modo mais sutil.
— Para mim — disse o mordomo —, as palavras são uma grande palermice.
O PONTO, A RETA E A CIRCUNFERÊNCIA
images/himg-21-1.pngQuando Jozef fez quatro anos, Havel Kopecky começou a educar os dois rapazes. Lia-lhes textos clássicos sem se preocupar com a idade deles. Quem é que não entende Sêneca?, interrogava-se Kopecky. Wilhelm, apesar de ser um ano mais velho do que Jozef Sors, demorou mais tempo a aprender a ler. Mas, em compensação, era capaz de cumprimentar o pai em esperanto, em francês e em latim. O coronel Möller ficava comovido e respondia: mi amas vin, que queria dizer isso mesmo, que estava comovido, mas dito na língua de Zamenhof.
Porque a senhora Sors era uma mulher muito pequena, ao contrário do mordomo, que era muito alto, Jozef escreveu a história de amor dos seus pais, uma história que cativou Kopecky, acima de tudo pela expressão dos desenhos:
A minha mãe é tão pequena que, vista de longe, parece um pontinho
images/img-21-1.pnge o meu pai é tão alto que, visto de longe, parece uma linha, um risco de lápis.
images/img-22-1.pngMas vistos de perto são como toda a gente, têm braços, pernas, nariz e chapéu.
images/img-22-2.pngQuando se querem beijar demoram muitos dias, pois o meu pai tem de se baixar desde as nuvens até ao chão e isso demora muito, especialmente para quem sofre das costas. A chuva consegue fazê-lo com rapidez, mas não tem costas.
Porém, quando eu olho para eles, são quase da mesma altura. Para mim é evidente: o amor aproxima as pessoas e ficamos todos do mesmo tamanho.
images/himg-23-1.pngDe fato, a senhora Sors era um