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Dois Anos de Férias
Dois Anos de Férias
Dois Anos de Férias
E-book454 páginas6 horas

Dois Anos de Férias

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Sobre este e-book

Várias crianças partem da costa a bordo de um navio chamado "Sloughi" sem nenhum adulto a acompanhá-las. São apanhadas por uma tempestade e acabam numa ilha deserta. Nesta ilha elas aprendem muitas técnicas de caça e outras habilidades úteis à sua sobrevivência. Involuntariamente, terão dois anos de férias. No decurso do segundo ano chegam à ilha outros náufragos, temíveis criminosos condenados a penas pesadas que evitam cumprir...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de out. de 2015
ISBN9788893158947
Dois Anos de Férias
Autor

Julio Verne

Julio Verne (Nantes, 1828 - Amiens, 1905). Nuestro autor manifestó desde niño su pasión por los viajes y la aventura: se dice que ya a los 11 años intentó embarcarse rumbo a las Indias solo porque quería comprar un collar para su prima. Y lo cierto es que se dedicó a la literatura desde muy pronto. Sus obras, muchas de las cuales se publicaban por entregas en los periódicos, alcanzaron éxito ense­guida y su popularidad le permitió hacer de su pa­sión, su profesión. Sus títulos más famosos son Viaje al centro de la Tierra (1865), Veinte mil leguas de viaje submarino (1869), La vuelta al mundo en ochenta días (1873) y Viajes extraordinarios (1863-1905). Gracias a personajes como el Capitán Nemo y vehículos futuristas como el submarino Nautilus, también ha sido considerado uno de los padres de la ciencia fic­ción. Verne viajó por los mares del Norte, el Medi­terráneo y las islas del Atlántico, lo que le permitió visitar la mayor parte de los lugares que describían sus libros. Hoy es el segundo autor más traducido del mundo y fue condecorado con la Legión de Honor por sus aportaciones a la educación y a la ciencia.

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    Dois Anos de Férias - Julio Verne

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    PRIMEIRA PARTE — A ESCUNA PERDIDA

    Capítulo 1

    Durante a noite de 9 de março de 1860, as nuvens, confundindo-se com o mar, limitavam a poucas braças o alcance de vista. Nesse mar agitado, cujas vagas rebentavam projetando clarões lívidos, corria quase que em mastreação seca um ligeiro barquito.

    Era um iate de cem toneladas — uma escuna, nome que se dá às galeotas na Inglaterra e na América. Essa escuna chamava-se Sloughi, e debalde se tentaria ler tal nome nos alforges da popa, pois um acidente qualquer — golpe de mar ou algum abalroamento — tinha-o arrancado quase todo com parte das mesas reais.

    Eram onze horas da noite. Debaixo dessa latitude, no começo do mês de março, as noites são ainda curtas. Os primeiros alvores do dia só deviam aparecer por volta das cinco horas da manhã. Mas os perigos que ameaçavam o Sloughi seriam menores quando o Sol iluminasse o espaço? A frágil embarcação não ficaria sempre à mercê das ondas? Com certeza; e a inquietação da mareta, a calmaria do vento eram as únicas coisas que a podiam salvar do mais horrível naufrágio — o que se dá em pleno oceano, longe de toda e qualquer praia sobre a qual os sobreviventes achariam a salvação!

    Na ré do Sloughi, três rapazes, um deles de catorze anos e os outros dois de treze, e com eles um grumete que teria quando muito doze, preto, estavam postados na roda do leme. Aí, empregavam toda a força que tinham para obstar às guinadas que ameaçavam atravessar o iate. Dura tarefa, porque a roda, girando contra vontade deles, podia perfeitamente atirá-los por cima da borda. E mesmo, um pouco antes da meia-noite, caiu uma tal força de mar sobre o costado do iate, que foi puro milagre ele não perder o leme.

    Os pequenos, que haviam sido derrubados com o choque, levantaram-se logo em seguida.

    — Dá governo, Briant? — perguntou um deles.

    — Dá, sim, Gordon — respondeu Briant, que tinha tomado novamente o seu lugar, sem perder um instante o sangue-frio. Depois, dirigindo-se ao terceiro: — Segura-te com força, Doniphan — acrescentou ele —, e não percas a coragem!... Não somos só nós, há mais gente a salvar!

    Estas poucas frases tinham sido pronunciadas em inglês, embora em Briant a acentuação denotasse origem francesa.

    Depois, este, voltando-se para o grumete:

    — Não estás ferido, Moko? — perguntou ele.

    — Não, Sr. Briant — respondeu o grumete. — O que é preciso, sobretudo, é conservar o iate aproado contra as vagas, quando não arriscamo-nos a ir a pique!

    Nesse momento, uma das escotilhas, que conduzia à coberta da escuna, abriu-se com vivacidade. Apareceram ao nível da tolda duas cabecitas, e ao mesmo tempo que estas o focinho de um cão, cujos ladridos se fizeram ouvir.

    — Briant?... Briant? — perguntou uma criança de nove anos. — Que há de novo?

    — Nada, Iverson, nada! — replicou Briant. — Vê lá se te metes já para dentro com Dole... e quanto antes

    — É porque estamos com muito medo! — acrescentou o segundo pequeno, que era um pouco mais novo.

    — E os outros?... — perguntou Doniphan.

    — Os outros também! — respondeu Dole.

    — Vá, metam-se todos para dentro, já disse! — ordenou Briant. — Agasalhem-se, metam-se debaixo dos lençóis, fechem os olhos, e verão que já não têm medo! Não há perigo nenhum!

    — Cuidado!... Lá vem outra onda! — avisou Moko.

    Sentiu-se um choque violento na proa do iate. Desta vez, o mar não embarcou — felizmente, porque, se a água tivesse penetrado no interior pela escotilha aberta, o iate, muito carregado com ela, não teria podido decerto galgar a onda.

    — Vá tudo para dentro! — mandou Gordon. — Tudo para dentro... ou se não têm de se haver comigo!

    — Vá lá, recolham-se, pequenos! — acrescentou Briant, falando-lhes em tom mais amigável.

    As duas cabeças desapareceram no momento em que outro rapaz, que acabava de se mostrar, dizia:

    — Não precisas de nós, Briant?

    — Não, Baxter — respondeu Briant. — Cross, Webb, Service, Wilcox e tu fiquem com os pequenos!... Nós quatro cá nos arranjamos!

    Baxter fechou a escotilha pelo lado de dentro.

    — Os outros também têm medo! — tinha dito Dole.

    Mas então não havia senão crianças a bordo daquela escuna, levada pela tempestade?

    Sim, não havia lá senão crianças! E quantas estavam a bordo?

    Quinze, contando Gordon, Briant, Doniphan e o grumete.

    Em que circunstâncias tinham eles embarcado?

    Saber-se-á dentro em pouco.

    E nem um homem no iate! Nem um capitão para comandá-lo? Nem um marinheiro para ajudar à manobra? Nem um timoneiro para o governo no meio daquela tempestade?

    Não!... Nem um!

    Assim, ninguém a bordo poderia dizer qual era a posição exata do Sloughi sobre aquele oceano!... E que oceano? O mais vasto de todos! O Pacífico, que se dilata por duas mil léguas de largura, desde as terras da Austrália e da Nova Zelândia até ao litoral da América do Sul.

    Que tinha sucedido? Tinha a equipagem da escuna desaparecido em qualquer catástrofe? Tinham-na levado os piratas da Malásia, não deixando a bordo senão passageiros crianças, entregues a si mesmos, e dos quais o mais velho contava catorze anos apenas? Um iate de cem toneladas exige, pelo menos, um capitão, um mestre, cinco ou seis homens, e desse pessoal, indispensável para o manobrar, não restava senão o grumete?... Finalmente, de onde vinha aquela escuna, de que paragens, australianas, ou de que arquipélagos da Oceânia, e desde quanto tempo e para que destino? A estas perguntas, que todo o capitão teria feito se tivesse encontrado o Sloughi naqueles mares remotos, aquelas crianças teriam sem dúvida podido responder; mas não havia nenhum navio à vista, nem desses transatlânticos cujos itinerários se cruzam sobre os mares oceânicos, nem desses navios de comércio, a vapor ou à vela, que a Europa ou a América enviam às centenas para os portos do Pacífico. E, devemos dizê-lo, mesmo quando um desses navios, tão poderosos pela sua máquina ou pelo seu velame, se tivesse encontrado nessas paragens, inteiramente ocupado a lutar contra a tempestade, não teria podido socorrer o iate que o mar jogava como uma palhinha!

    Entretanto, Briant e os seus camaradas cuidavam o melhor que podiam em que a escuna não guinasse a uma banda ou a outra.

    — Que se há de fazer?... — disse então Doniphan.

    — Tudo o que for possível para nos salvar, com a ajuda de Deus! — respondeu Briant.

    Dizia isto, o pobre rapaz, e as circunstâncias eram tais que o homem mais enérgico em tal caso dificilmente poderia conservar a mínima esperança!

    Efetivamente, a tempestade redobrava de violência. O vento soprava ponteiro, em rajadas tempestuosas e curtas, como raios.

    Para mais risco ainda, havia já quarenta e oito horas que a escuna estava meio desamparada, com o mastro grande partido a quatro pés acima da carlinga; nem se lhe podia largar uma vela de capa, que permitiria governá-la com mais alguma segurança. O mastro de traquete, sem o seu mastaréu, resistia bem, mas devia prever-se o momento em que, abandonado das suas enxárcias, cairia sobre a tolda. Na proa, os farrapos da vela de estai estalavam com detonações comparáveis às de uma arma de fogo. Todo o velame se reduzia ao simples traquete ameaçando esfarrapar-se, pois os rapazitos não tinham sido capazes de rizá-lo para lhe diminuírem a superfície. Se isso viesse a suceder, não seria possível manter-se a escuna mais tempo na linha do vento, as ondas apanhá-la-iam de costado, fazendo-a adernar e metendo-a a pique, desaparecendo os seus passageiros com ela no abismo.

    E até então nem uma ilha se tinha assinalado ao largo, nem um continente havia aparecido a leste! Arribar à costa é uma eventualidade terrível, e, apesar disso, aquelas crianças não a teriam temido tanto como os furores desse mar interminável. Um litoral, qualquer que fosse, com os seus recifes, os seus baixos, os seus cachopos, o formidável marulho que o assalta, a ressaca com que as suas rochas são incessantemente batidas, esse litoral, supunham eles, teria sido a sua salvação, teria sido a terra firme, em vez daquele oceano, pronto sempre a entreabrir-se debaixo dos seus pés!

    Por isso procuravam com ânsia ver se avistavam qualquer fogacho em direção ao qual aproassem... Nenhum clarão se divisava no meio daquela profunda noite!

    De repente, pela uma hora da manhã, um horrível estrépito dominou o sibilar das rajadas.

    — Quebrou-se o mastro de traquete!... — exclamou Doniphan.

    — Não foi! — esclareceu o grumete. — Foi a vela que se arrancou da tralha!

    — É preciso livrarmo-nos dela — disse Briant. — Gordon, fica ao leme com Doniphan, e tu, Moko, vem ajudar-me!

    Se Moko, na sua qualidade de grumete, devia ter alguns conhecimentos náuticos, Briant não era absolutamente desprovido deles. Por já ter atravessado o Atlântico e o Pacífico, quando tinha ido da Europa para a Oceânia, havia-se familiarizado um pouco com as manobras de bordo. Isto explica porque os outros rapazitos, que disso nada entendiam, se julgaram na obrigação de confiar a Moko e a ele o encargo de dirigir a escuna.

    Num instante, Briant e o grumete dirigiram-se afoitamente para a proa do iate. Para evitar que este adernasse, era preciso a todo o custo aliviá-lo imediatamente da ação do vento, arriando o traquete, que fazia fole na parte inferior e obrigava o navio a inclinar-se a ponto de ele correr o risco de soçobrar. Podia ainda ser preciso cortar o mastro de traquete pelo pé, depois de lhe ter partido os ovéns metálicos; e como é que umas crianças chegariam a consegui-lo?

    Nestas condições, Briant e Moko deram mostras de uma destreza notável. Bem resolvidos a conservar o mais pano que lhes fosse possível, a fim de manterem o Sloughi de popa ao vento e ao mar enquanto durasse a borrasca, isto é, a fim de correrem com o tempo, conseguiram arriar a adriça da verga, a qual desceu até uns cinco ou seis pés acima da tolda. Os farrapos do traquete foram arrancados à faca, os punhos inferiores, apanhados por dois amarrilhos, foram presos a cavilhas na amurada, não sem que os dois intrépidos rapazes tivessem estado por vinte vezes em risco de serem engolidos pelas ondas.

    Com o velame assim extremamente reduzido, a escuna pôde manter-se na direção que seguia havia já tanto tempo. Bastava-lhe o casco para dar bastante presa ao vento e ela correr com a velocidade de um torpedeiro. O que importava, sobretudo, era furtar-se às vagas, fugindo mais rapidamente do que elas, a fim de não receber por cima da borda alguma onda que lhe varresse a tolda.

    Feito isto, Briant e Moko voltaram para junto de Gordon e de Doniphan, para os ajudarem na manobra do leme.

    Neste momento abriu-se pela segunda vez a escotilha. Saiu por ela uma cabecita de criança. Era Jaime, irmão de Briant, três anos mais novo do que este.

    — Que queres tu, Jaime? — perguntou-lhe o irmão.

    — Vem cá!... vem cá!... — respondeu Jaime. — A água chega à coberta!

    — Pode lá ser? — exclamou Briant.

    E, precipitando-se para a escotilha, desceu a toda a pressa.

    Estava a coberta confusamente iluminada por uma lâmpada que o balanço agitava com violência. Ao clarão dela podiam ver-se umas dez crianças estendidas pelas bancadas ou deitadas nas macas do Sloughi. Os mais pequenos — havia-os de oito a nove anos —, apertados uns contra os outros, estavam verdadeiramente cheios de pavor.

    — Não há perigo! — garantiu-lhes Briant, que pensou logo em serená-los. — Estamos nós aqui!... Não tenham medo!

    Depois, percorrendo com um archote aceso o solho da coberta, verificou que uma certa quantidade de água corria de uma banda à outra do iate.

    De onde provinha aquela água? Teria penetrado por alguma fenda no forro do casco?

    Eis o que era preciso reconhecer.

    Na coberta, para a banda da popa, havia a câmara do comandante, em seguida a esta o refeitório e depois o posto da equipagem.

    Briant atravessou estes diversos compartimentos e observou que a água não penetrava nem por cima nem por baixo da linha de flutuação. Essa água, que corria toda à popa nas submersões desta, provinha apenas da que a escuna metia em si a cada focinhada da proa, e da qual, pela escotilha mal fechada, tinha corrido alguma para o interior. Portanto, nenhum perigo havia por esse lado.

    Briant tranquilizou os camaradas quando de novo atravessou pelo meio deles e, um pouco menos inquieto, voltou a tomar o seu lugar ao leme. A escuna, solidamente construída, querenada de novo com um bom forro de cobre, não fazia água e devia estar em circunstâncias de resistir às pancadas do mar.

    Era então uma hora da manhã. No meio da noite, mais escurecida ainda pela grossura das nuvens, desencadeava-se a tempestade furiosamente. O iate navegava como se todo ele fosse mergulhado num meio líquido. Rasgavam os ares os gritos agudos das procelárias. Poder-se-ia concluir da sua aparição que a terra estivesse próxima? Não, porque frequentemente se encontram a muitas centenas de léguas das costas. Demais, impotentes para lutarem contra a corrente aérea, essas aves das tempestades seguiam-na como o fazia a escuna, à qual nenhuma força humana seria capaz de quebrar a velocidade.

    Uma hora depois, ouviu-se novo estrépito a bordo. Acabava de se fazer em bocados o resto do traquete que escapara e espalharam-se pelos ares pedaços de lona, semelhantes a gaivotas enormes.

    — Já não temos vela — exclamou Doniphan — e é impossível largar outra!

    — Que importa! — respondeu Briant. — Podes ter a certeza de que não andaremos por isso menos depressa!

    — Boa resposta! — replicou Doniphan. — Se é esse o teu modo de manobrar...

    — Cuidado com o mar que temos pela popa! — recomendou Moko.

    — É bom amarrarmo-nos com força, para não sermos levados por ele...

    Ainda mal o grumete tinha acabado a sua advertência e já estavam emborcadas na escuna umas poucas de toneladas de água por cima da borda. Briant, Doniphan e Gordon foram atirados contra a amurada, à qual conseguiram agarrar-se. Mas o grumete tinha desaparecido no meio da onda que alagou o Sloughi de popa à proa e levou uma parte dos sobresselentes, os dois escaleres e canoa, embora tivesse havido o cuidado de os recolher no interior, muitos paus para a guindola, assim como a bitácula da agulha.

    Todavia, como a força da água foi tanta que abriu os portalós, escoou-se ela facilmente e com rapidez, o que salvou o iate do perigo de soçobrar debaixo daquela enorme sobrecarga.

    — Moko!... Moko!... — tinha gritado Briant, logo que se viu em estado de falar.

    — Talvez tenha sido arremessado ao mar!... — sugeriu Doniphan.

    — Não!... Não se vê... não se ouve! — disse Gordon, que acabava de se debruçar na borda.

    — É preciso salvá-lo... Atirar-lhe uma boia... um cabo! — gritou Briant.

    E, com uma voz que ressoou com força durante alguns segundos de quietação, exclamou de novo:

    — Moko!... Moko!...

    — Acudam-me!... Acudam-me... — respondeu o grumete.

    — Não está no mar — afirmou Gordon. — A voz dele vem do lado da proa!...

    — Vou salvá-lo! — declarou com fogo Briant.

    E ei-lo que principia a correr de rastos a tolda, evitando conforme lhe era possível o choque do polcame a balouçar-se dos cabos, garantindo-se das quedas que o balanço tornava quase Inevitáveis no chão escorregadio.

    A voz do grumete atravessou ainda mais uma vez o espaço. Depois tudo se calou.

    Entretanto, à custa dos maiores esforços, Briant tinha chegado a alcançar o gurupés.

    Chamou...

    Nenhuma resposta.

    Moko teria sido arrebatado por algum novo golpe de mar depois de ter soltado o seu último grito? Nesse caso o infeliz rapaz devia estar longe, agora, bem longe, por que a mareta não podia transportá-lo com uma velocidade igual à da escuna.

    E, então, estava perdido...

    Não! Um grito mais fraco chegou até Briant, que se precipitou para avante da abita onde fica a trempe do gurupés. Aí, as suas mãos encontraram um corpo que se debatia...

    Era o grumete, entalado no ângulo que formavam os patarrases do gurupés, no ponto em que amarram ao costado. Uma adriça, que os seus esforços tornavam de cada vez mais intensa, apertava-o pelo pescoço. Depois de ter sido amparado por essa adriça, no momento em que a onda enorme o ia tragar, iria agora morrer por estrangulamento?

    Briant pegou na faca e a muito custo conseguiu cortar o cabo que estrangulava o grumete.

    Moko foi desse modo salvo e, logo que recuperou forças para falar, agradeceu:

    — Obrigado, Sr. Briant, obrigado!

    Daí a pouco retomou o seu lugar ao leme, e todos quatro se amarraram, a fim de resistir às vagas enormes que se levantavam a barlavento do Sloughi.

    Contrariamente ao que tinha suposto Briant, a velocidade do iate tinha diminuído um pouco com a desaparição do resto do traquete — o que constituía um perigo novo. Com efeito, as ondas, correndo mais depressa do que ele, podiam assaltá-lo pela popa e alagá-lo. Mas que fazer? Era totalmente impossível largar o mínimo bocado de vela.

    No hemisfério austral, o mês de março corresponde ao mês de setembro do hemisfério boreal, e as noites têm apenas uma duração média. Ora, como eram proximamente quatro horas da manhã, o horizonte não devia tardar a branquejar-se a leste, isto é, por cima da parte do oceano para onde a tempestade impelia o Sloughi. Talvez com o nascer do dia a borrasca perdesse parte da sua violência! Talvez, também, a terra estivesse à vista, e talvez a sorte daquela equipagem de crianças estivesse para se decidir em alguns minutos! Ver-se-ia isso quando a alvorada tingisse os longes do céu.

    Pelas quatro horas e meia, alguns clarões difusos se estenderam até ao zénite. Por infelicidade as brumas limitavam ainda o raio visual a menos de um quarto de milha. Via-se que as nuvens passavam com uma velocidade espantosa. O furacão não tinha perdido nada da sua força, e, ao largo, o mar desaparecia sob a espuma de uma rebentação. A escuna, ora levantada sobre a crista de uma vaga, ora precipitada no fundo de um abismo, teria soçobrado vinte vezes se de alguma se atravessasse.

    Os quatro rapazes olhavam para esse caos de ondas desenfreadas. Percebiam bem que, se a borrasca tardasse a acalmar-se, a sua situação seria desesperada. Nunca o Sloughi resistiria vinte e quatro horas mais aos golpes de mar, que acabariam por desfazê-lo.

    Foi então que Moko exclamou:

    — Terra!... Terra!...

    Por entre uma clareira das brumas, o grumete julgava ter distinguido os contornos de uma costa para leste. Não se enganava ele? Nada mais difícil de reconhecer do que esses vagos lineamentos que tão facilmente se confundem com volutas de nuvens.

    — Terra?... — tinha perguntado Briant.

    — Sim... — repetiu Moko. — Terra... a leste!

    E indicava um ponto do horizonte agora oculto pela massa do nevoeiro.

    — Estás certo disso?... — Insistiu Doniphan.

    — Sim!... sim!... certíssimo!... — respondeu o grumete. — Se o nevoeiro tornar a abrir, olhem bem... para ali... um pouco à direita do mastro de traquete... Lá está!... Lá está!...

    As brumas, que acabavam de entreabrir-se, principiavam a separar-se do mar para subirem para mais elevadas zonas. Alguns instantes depois, o oceano tornou a aparecer no espaço de muitas milhas pela frente do iate.

    — Sim!... Terra!... É terra!... — exclamou Briant.

    — E terra muito baixa! — acrescentou Gordon, que acabava de observar mais atentamente o litoral designado.

    Desta vez, não havia que duvidar. Terra, continente ou ilha, se desenhava a cinco ou seis milhas num largo segmento do horizonte. Com a direção que seguia e de que o temporal lhe não permitia afastar-se, o Sloughi não podia deixar de ser arremessado sobre ela em menos de uma hora. Era para temer que ele fosse ali despedaçar-se, sobretudo encontrando recifes que o detivessem antes de alcançar a terra franca. Mas os rapazes nem nisso pensavam. Naquela terra, que se apresentava inopinadamente aos seus olhos, não viam, não podiam ver senão a salvação.

    Nesse instante, recomeçou o vento a soprar com mais furor.

    O Sloughi, levado como uma pena, precipitou-se para a costa, que se recortava com a nitidez de um traço a tinta sobre o fundo esbranquiçado do céu. No segundo plano destacava-se uma penedia, cuja elevação não devia exceder cento e cinquenta a duzentos pés. Adiante estendia-se um areal amarelado, servindo-lhe de moldura, à direita, massas arredondadas que pareciam pertencer a uma floresta do interior.

    Ah! se o Sloughi pudesse alcançar aquela praia areenta sem encontrar um banco de recifes, se a foz de um rio lhe oferecesse refúgio, talvez aqueles jovens passageiros escapassem sãos e salvos!

    Enquanto Doniphan, Gordon e Moko se conservavam à roda do leme, Briant fora colocar-se à proa e olhava a terra, que se aproximava a olhos vistos, de tal modo era considerável a velocidade. Mas em vão procurava ele qualquer ponto onde o iate pudesse acostar em condições mais favoráveis. Não se via nem uma embocadura de rio ou de regato, nem mesmo uma tira de areia sobre a qual teria sido possível encalhar de um só impulso. Efetivamente, para aquém da praia estendia-se uma linha de recifes, cujos cabeços negros emergiam das ondulações da arrebentação, e que eram batidos incessantemente por uma ressaca monstruosa. Ali, aos primeiros choques, o Sloughi seria feito em pedaços.

    Briant lembrou-se então de que mais valia ter todos os seus camaradas na tolda, no momento em que se desse o encalhe; e, abrindo a escotilha, gritou:

    — Para cima, todos!

    O primeiro a subir foi o cão, seguido logo por uns dez rapazes, que se dirigiram para a popa do iate. Os mais pequenos, à vista das ondas que o baixio tornava mais temíveis, soltaram gritos de espanto...

    Um pouco antes das seis horas da manhã, o Sloughi tinha chegado à proximidade do banco.

    — Segurem-se bem!... Segurem-se bem! — recomendou Briant.

    E, tendo despido parte da sua roupa, pôs-se pronto para socorrer aqueles que a ressaca levasse, porque, com toda a probabilidade, o iate ia ser atirado para cima dos recifes.

    De súbito, fez-se sentir um primeiro abalo. O Sloughi acabava de ser açoutado pela popa; mas, embora todo o casco gemesse, a água não conseguiu romper-lhe o costado.

    Erguido por segunda vaga, esta atirou-o uns cinquenta metros para diante, sem mesmo o ter feito aflorar as rochas, cujas pontas se descobriam em mil partes. Depois, inclinado a bombordo, ficou imóvel no meio dos fervores da ressaca.

    Se não estava já em pleno mar, estava ainda a um quarto de milha da praia.

    Capítulo 2

    Neste momento, o espaço, desembaraçado da sua cortina de brumas, permitia que a vista se dilatasse por um vasto raio em torno da escuna. As nuvens corriam sempre com extrema rapidez, e a borrasca ainda nada havia perdido do seu furor. Contudo, talvez fossem esses os últimos golpes com que ela feria aquelas paragens desconhecidas do oceano Pacífico.

    Era de esperar, porque a situação oferecia tantos perigos como durante a noite, em que o Sloughi se debatia contra as violências do mar largo. Reunidos uns perto dos outros, aqueles rapazitos deviam imaginar-se perdidos quando alguma vaga rebentava por cima das trincheiras e os cobria de espuma. Os choques eram rudes, sem a escuna lhes poder fugir. Contudo, se a cada embate estremecia até ao cavername, não parecia que se lhe tivesse desunido qualquer parte do forro ou do cintado, nem quando galgou o pontalete dos recifes, nem no momento em que, por assim dizer, se foi encaixar entre os cabeços das rochas. Briant e Gordon, depois de terem descido à coberta e ao porão, tinham verificado que a água não penetrava no Interior do barco por nenhum lado.

    Tranquilizaram, pois, o melhor que puderam, os seus camaradas — principalmente os pequenos.

    — Não tenham medo!... — repetiu muitas vezes Briant. — O iate é sólido!... A costa não está longe!... É esperar mais algum tempo e havemos de alcançar a praia!

    — E porque é preciso esperar?... — perguntou Doniphan.

    — Sim... porquê?... — interrogou, por sua vez, outro rapaz, de uma dúzia de anos, chamado Wilcox. — Doniphan tem razão... Porque é preciso esperar?

    — Porque o mar está muito grosso ainda e atira-nos para cima das rochas! — explicou Briant.

    — E se o iate se despedaçar? — insistiu outro rapaz, chamado Webb, que era aproximadamente da mesma idade que Wilcox.

    — Não creio que haja a temer isso — respondeu Briant —, pelo menos enquanto a maré baixar. Quando ela se tiver afastado, tanto quanto o permitir o vento, trataremos de nos salvar!

    Briant tinha razão. Ainda que as marés sejam relativamente pouco consideráveis no oceano Pacífico, podem contudo produzir uma diferença de nível bastante importante entre as preia-mares e as baixa-mares. Haveria, portanto, vantagens em esperar algumas horas, sobretudo se o vento viesse a abrandar. Talvez a vazante pusesse a seco uma parte do banco de recifes. Seria menos perigoso então deixar a escuna e mais fácil transpor o quarto de milha que a separava da praia.

    No entanto, apesar de ser tão razoável o conselho, Doniphan e mais dois ou três não se mostravam dispostos a segui-lo. Formaram um grupo à proa e conversaram em voz baixa. O que se mostrava claramente já é que Doniphan, Wilcox, Webb e outro rapaz, chamado Cross, não mostravam boas disposições para se entenderem com Briant. Durante a longa travessia do Sloughi, se tinham consentido em obedecer-lhe, era porque Briant, como dissemos, tinha alguma prática de navegação. Mas tinham conservado sempre o seu pensamento reservado de retomarem a liberdade de ação logo que se vissem em terra — principalmente Doniphan, que, quanto a instrução e inteligência, se julgava superior a Briant, bem como a todos os seus camaradas.

    Demais, o ciúme de Doniphan para com Briant datava já de longe e, pelo facto mesmo de este ser francês, os moços ingleses deviam ser pouco propensos a suportarem a sua preponderância.

    Era, pois, de recear que semelhantes disposições aumentassem a gravidade de uma situação tão inquietante.

    Entretanto, Doniphan, Wilcox, Cross e Webb olhavam para aquela toalha de espuma, semeada de redemoinhos, cortada por correntes diversas, que parecia perigosíssima de atravessar. O mais hábil nadador não teria resistido à ressaca da maré vazante, que o vento batia de revés. Era, pois, mais que justificado o conselho de esperar algumas horas. Foi preciso que Doniphan e os seus camaradas se rendessem à evidência e, finalmente, voltaram para a popa, onde estavam os mais novos.

    Briant estava então dizendo a Gordon e a alguns dos que o rodeavam:

    — Sobretudo, não nos separemos!... Conservemo-nos juntos, ou estamos perdidos!...

    — Tu queres dar-nos leis? — exclamou Doniphan, que acabava de ouvi-lo.

    — Eu não quero nada — retorquiu-lhe Briant —, a não ser que trabalhemos unidos e de acordo para a salvação de todos!

    — Briant tem razão! — afirmou Gordon, rapaz frio e sério, que nunca falava sem ter refletido bem.

    — Sim!... sim!... — exclamaram dois ou três dos mais pequenos, a quem um instinto secreto aconselhava a aproximarem-se de Briant.

    Doniphan não replicou; mas os seus camaradas e ele persistiram em se conservar afastados, enquanto esperavam a ocasião de se proceder ao salvamento.

    E, agora, que terra era aquela? Pertencia a uma das ilhas do oceano Pacífico ou a qualquer continente? Essa questão não podia ser resolvida, visto o Sloughi estar muito perto do litoral, de modo que não era permitido observar este num perímetro suficiente. A sua concavidade, formando uma ampla baía, terminava por dois promontórios, um bastante elevado e cortado a pique do lado do norte, o outro aguçado em ponta para o sul. Mas, para além desses dois cabos, o mar arredondar-se-ia de maneira a banhar os contornos de uma ilha? Eis o que Briant tentou debalde reconhecer empregando um dos óculos de bordo.

    Efetivamente, no caso em que aquela terra fosse uma ilha, como se conseguiria sair dela, se fosse impossível desencalhar a escuna, que a maré alta não tardaria a despedaçar, arrastando-a para cima dos recifes? E se essa ilha fosse deserta — como há muitas nos mares do Pacífico — como é que essas crianças, reduzidas aos seus próprios recursos, não tendo para se sustentar senão as provisões que pudessem salvar do iate, haviam de ocorrer às necessidades da existência?

    Num continente, pelo contrário, as possibilidades de salvação teriam aumentado de modo notável, pois que esse continente não teria podido ser senão o da América do Sul. Aí, através dos territórios do Chile ou da Bolívia, achar-se-ia auxílio, senão imediatamente, pelo menos alguns dias depois de se ter posto pé em terra. É verdade que, neste litoral vizinho dos Pampas, havia a recear um grande número de maus encontros. Mas, nesse momento, do que se tratava era de alcançar a terra.

    O tempo estava bastante claro e deixava-lhe ver todos os pormenores. Distinguia-se nitidamente o primeiro plano da praia, a penedia que a emoldurava pela retaguarda, assim como os maciços de árvores agrupadas na sua base. Briant assinalou mesmo a embocadura de um rio à direita da praia.

    Em suma, se o aspeto dessa costa se não podia chamar bastante atraente, a cortina de verdura indicava uma certa fertilidade, comparável à das zonas de latitude média. Sem dúvida, para lá da terra escarpada, ao abrigo dos ventos do largo, a vegetação, encontrando um solo mais favorável, devia desenvolver-se com algum proveito.

    Quanto a ser habitada, não parecia que essa parte da costa o fosse. Não se via ali sinal de casa ou de cabana, nem mesmo na foz do rio. Talvez que os indígenas, se lá os havia, residissem de preferência no interior do país, onde estavam menos expostos aos ataques brutais dos ventos de oeste.

    — Não noto o mínimo fumo! — disse Briant, abaixando o óculo.

    — E não há nem uma embarcação na praia! — fez observar Moko.

    — Como era possível havê-la, se não há porto?... — replicou Doniphan.

    — Não é preciso para isso haver porto — retorquiu Gordon. — Barcos de pesca podem encontrar refúgio na entrada de um rio, e seria possível que a tempestade os tivesse obrigado a recolherem-se para o interior.

    A observação de Gordon era acertada. Como quer que fosse, ou por uma razão ou por outra, não se descobriu nenhuma embarcação, e, na realidade, essa parte do litoral parecia ser absolutamente desprovida de habitantes. Seria ela habitável, no caso em que os jovens náufragos aí tivessem de persistir algumas semanas? Eis aquilo de que eles tinham que se preocupar principalmente.

    Entretanto, a maré retirava-se a pouco e pouco — muito lentamente, é verdade, porque o vento do largo lhe fazia obstáculo, embora começasse a abrandar, infletindo-se para noroeste. Importava, pois, estarem prontos para o momento em que o banco de recifes oferecesse uma passagem praticável.

    Eram perto de sete horas. Cada um tratou de trazer para a tolda do iate os objetos de primeira necessidade, reservando-se o recolher os outros quando o mar os arrojasse à costa.

    Tanto os mais pequenos como os maiores meteram ombros a esse trabalho. Havia a bordo uma grande provisão de conservas, bolacha, carnes salgadas e de fumeiro. Fizeram-se fardos com essas provisões, destinados a serem repartidos pelos maiores, aos quais incumbiria o cuidado de os transportar para terra.

    Mas, para que esse transporte se pudesse efetuar, era preciso que o banco de recifes se pusesse a enxuto. Sucederia isso na maré baixa, e o refluxo bastaria para descobrir as rochas até à praia?

    Briant e Gordon aplicaram-se a observar cuidadosamente o mar. Com a modificação na direção do vento, a calma fazia-se sentir e os fervores da ressaca principiavam a serenar. Tornava-se pois fácil notar o decrescimento das águas ao longo das pontas emergentes. E, demais, a escuna ressentia os efeitos desse decrescimento, descaindo de modo mais acentuado para bombordo. Era mesmo para recear, se a sua inclinação aumentasse, que ela se deitasse de flanco, porque era muito fina de formas, tendo as cavernas aprumadas e uma grande altura de quilha, como os iates de grande andamento. Neste caso, se a água lhe invadisse o convés antes de o poderem abandonar, a situação seria extremamente grave.

    Como todos lastimavam agora que os escaleres tivessem sido levados durante a tempestade! Com aquelas embarcações, capazes de os conter a todos, Briant e os seus camaradas teriam podido desde a escuna tentar alcançar a costa. Depois, que facilidade para estabelecer uma comunicação entre o litoral e a escuna, para transportar tantos objetos úteis que seria preciso momentaneamente deixar a bordo!

    E, na noite próxima, se o Sloughi se despedaçasse, para que serviriam os seus restos, quando a ressaca os tivesse arrastado através dos recifes? Poder-se-ia utilizá-los ainda? Não estariam absolutamente avariadas as provisões que sobrassem? Os pobres náufragos não se veriam em breve reduzidos apenas aos recursos que aquela terra lhes fornecesse?

    Era uma circunstância bem desagradável não haver uma embarcação para operar o salvamento!

    De repente, soltaram-se exclamações à proa. Baxter acabava de fazer uma descoberta que tinha a sua importância.

    A pequena canoa da escuna, que se julgava perdida, encontrava-se engasgada entre os cabrestos do gurupés. É verdade

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