31.12.09

mensagem em dezanove palavras

fatias douradas peixinhos dourados anos douro o rio e outros rios do ouro tanto ouro e louros imerecidos também

30.12.09

sonatas e sornas

Adormeci no sofá. Estava a ler as cartas de Virgínia Woolf, uma carta, quando adormeci. Acordei minutos depois - quinze, vinte? - e pareceu-me ouvir uma sonata, pareceu-me ouvir as últimas notas duma sonata para piano, naquela altura em que o pianista abandona os dedos, abandona as teclas, e todos nós fechamos intimamente os olhos. Bom, seja como for, pareceu-me uma sonata. Eu acho que reconheço uma sonata e gosto bastante da palavra sonata.

A sonata estava no fim. As notas a desvanecer-se, eu com a cabeça enterrada entre duas almofadas, um despertar quase perfeito, não fosse o frio que sentia no ombro direito, não, no ombro esquerdo, inadvertidamente destapado. Pormenor do ombro entre parêntesis, o acordar era perfeito, tal como, aliás, o adormecer já o tinha sido: a carta, eu a ver a Nicole Kidman a fazer de Woolf, uma carta do Verão de 1928, ainda tenho a página marcada: "Observo com interesse a instabilidade dos meus sentimentos em relação à França. Leonardo diz que não pode ir. Mas, como anjo que é, acrescenta - mas vai com a Vita. Depois faz de maneira - sem proferir uma única palavra nesse sentido - que eu compreenda quando, sem mim, ele se sente só de um modo insuportável. Chegados aqui eu desisto, até que, de repente, começo a dizer para mim própria que tudo isto é de um sentimentalismo pouco salutar. Mesmo assim, eu irei, depois, imagino-me a dizer-lhe adeus - e já não posso; até ao momento em que vejo um rochedo num vale, Vita numa pousada; e digo, outra vez, que devo ir. E assim por diante."

A dura realidade é que não havia sonata nenhuma. Soube-o mal olhei para a televisão, ecran escuro, escuro; o aparelho estava desligado, nada de mezzo como muitas vezes acontece quando o sono chega, música clássica e vida selvagem são os meus canais preferidos quando o sono chega. Desta vez a música vinha directamente da minha imaginação e na minha imaginação só há sonatas e pouco mais. Foi uma enorme decepção.

29.12.09

palavra do dia

infundice
(infundir + -ice)
s. f.
Barrela feita de urina em que se demolhava a roupa muito suja, para depois se lavar mais facilmente. = infundiça
Confrontar: infundisse.
FLIP

27.12.09

castanhas

Acabei de comer as castanhas mais intragáveis que alguma vez comi na minha vida. Castafiori quis prendar-me, em nome da nossa amizade, com um jantar de Natal, um jantar de Natal à sua maneira, um toque fora do comum. Castafiori adora sair do comum. Foi assim que as castanhas apareceram sobre a mesa, a special touch. Acontece que as castanhas estavam mal cozidas, estavam insonsas, nem sequer sabiam a erva-doce, as castanhas estavam intragáveis.

Castafiori tentou distrair-me e especulou, se tivessem estado mais dez minutos aos lume, se ao menos as tivesse abafado, se o frio não fosse tão intenso, se não tivesse acabado de deitar fora a água onde cozeram, e, já agora, como será o nome latino de erva-doce, deve ter um, não é? Castafiori sabe bem como eu lhe permito certos destemperos e algumas aleivosias, mas castanhas intragáveis são castanhas intragáveis, seja ela, seja a rainha de Inglaterra a fazê-las, sei-o agora, um absurdo em ambas as hipóteses, como absurda é a pergunta sobre o nome latino da erva-doce. Não me contive: "- Mas acha que o nome latino da erva-doce vai alterar alguma coisa?" E ela: "-Ah, pois, eu pus erva-doce mas não se sente, não é?"

Ora acontece que não só não se sentia o sabor da erva-doce, o cheiro da erva-doce, tudo o que a erva-doce provoca na nossa imaginação, como as castanhas estavam intragáveis sob todos os outros aspectos e a pergunta sobre o nome em latim só podia ser uma tentativa grosseira de lançar poeira aos que achavam que as castanhas estavam intragáveis - e que eram todos. Esta parte final corresponde ao que foram os meus pensamentos, silenciosos a partir daquele "eu pus erva-doce mas não se sente." Castafiori, porém, leu o que se passava na minha cabeça como se eu fosse um livro aberto. Disse: "- É que eu gosto muito desse nome, erva-doce." Quase que me comovi. Castafiori conhece-me, sabe levar-me, sabe que eu gosto mais de palavras do que de castanhas.

Agora que cheguei a casa posso confirmar que efectivamente o universo está ao lado de Castafiori e das castanhas intragáveis deste mundo. Erva-doce em latim é um nome encantador: pimpinella anisum.

24.12.09

no tempo do sapatinho

A minha grande missão na minha pequena vida era descobrir onde é que a minha mãe escondia os presentes, escassos mas nem por isso menos esperados. Cada qual tem as suas preferências e havia um certo pai Natal de chocolate que eu sabia que só apareceria no dia seguinte.

Sou do tempo em que se deixava o sapatinho na chaminé. E esperava-se pela manhã seguinte, o dia de Natal, para abrir as prendas. Era uma noite muito mal dormida, uma pessoa não podia fazer a mínima cedência. Nunca se sabe. Não que a manhã fosse fácil para os adultos. Claro que a manhã não era fácil para os adultos.

Muito antes do Sol nascer, já eu tinha ido à cozinha, quero dizer, já tinha visto as prendas na chaminé. Era um momento de grande ambiguidade: era uma honra não ter sido esquecida pelo menino Jesus mas, de certo modo, uma derrota em toda a linha. Como é que, não havendo nada na chaminé à hora de deitar e não tendo eu pregado olho durante toda a noite, como é que as prendas tinham ido parar à chaminé e, vamos ao que interessa, dentro do meu sapatinho? Era altura de começar a acordar o resto da casa e a perguntar se podia abrir as prendas.

Verdade se diga que tudo isto levava o seu tempo. Eu não falava fluentemente, falava como podia, falava aos soluços. Arranques súbitos e hesitações injustificadas, idas para trás e para a frente - desde cedo soube que há palavras manhosas, traidoras, palavras sonsas, palavras pomposas, palavras que só existem para nos arreliar. Às vezes mais vale estar calado. Eram momentos de grande solidão.

Raros são os que estão dispostos a ser acordados de madrugada por uma criança. Ninguém está para ser acordado por uma criança gaga, que nunca mais dizia o que queria, como se eles não soubessem o que eu queria quando o dia de Natal começava. Mas não havia em nada disto má vontade, incompreensão ou negligência. Em minha casa só havia adultos e adolescentes, adultos e adolescentes cansados, que trabalhavam nas pedras e para quem os domingos e os feriados eram sempre uma espécie de milagre. Eu era a única criança, alvo de todos os mimos mas também de todas as partidas dos meus irmãos. Os meus irmãos gostavam particularmente de duas coisas: de dormir e de me contrariar. Ora, eu não gostava nada de ser contrariada. Ainda hoje não gosto.

23.12.09

mensagem em dezoito palavras

(pensamento nocturno:) escrever: feliz natal; (desenvolvimento:) feliz natal em várias línguas; (obstáculo:) isto não é papel de embrulho

22.12.09

o sábado antes do Natal

Quando eu era pequena o Natal era uma coisa simples e imensamente misteriosa, pelo menos na minha classe social era. O Natal começava no sábado antes da noite de Natal. Eu ia com a minha mãe à mercearia da vizinha Zefa, que era à entrada do bairro e fazia esquina com a Azinhaga dos Salesianos. A minha mãe ia-se aviar e eu ia com ela. Nunca me aborrecia.

Na mercearia da vizinha Zefa havia uns maravilhosos recipientes, expositores, não sei o nome, umas enormes caixas com leguminosas. Nada se comparava a uma tarde passada de roda desses expositores, com as medidas do feijão e do grão e do milho sempre a trabalhar, que cansaço. Ali, sem abrir a boca - eu era muito gaga -, aviava muitas clientes imaginárias, inclusivamente, às vezes, dava-me para ser um bocado mãos largas e punha no pacote imaginário uma medida mais um bocadinho, mas só cobrava uma medida. Quando me fartava das leguminosas passava para o bacalhau. O bacalhau era o produto mais perigoso de toda a mercearia, o bacalhau e o petróleo. Eu adorava ficar a ver as manobras da vizinha Zefa com a guilhotina, a cortar às postas o bacalhau e a minha mãe sempre a dizer "Maria sai daí, ó Maria saí daí". O sábado antes do Natal era um grande dia. O sábado antes do Natal era um dia bestial.

21.12.09

LA BELLA SIMONETTA

"...Assim o amor despediu o seu fogo
abrasador
de uns olhos tão doces que inflamam
o coração do homem.
Só por milagre não
fiquei, ao vê-la, reduzido a cinzas."

Angelo Poliziano (1454-1494)

18.12.09

mensagem em dezassete palavras

chove, chove, chove e nos vidros embaciados pode-se escrever coisas, o que parece tentador; mas o quê?

17.12.09

A 2ª lei da termodinâmica

Madame Castafiori foi testemunha num julgamento. Quando me telefonou disse: "Não acredito na juíza."

Como? "É como lhe digo, não acredito na juíza". Sim, já ouvi. Mas não acredita, o que é que isso quer dizer? "Havia de a ver, uma enjoada, muito novinha, cheia de gloss." Mas não acredita que a juíza conheça a lei? Não acredita que seja capaz de discernir um poucochinho? Ou não acredita que a juíza saiba fazer bacalhau à Braz? "Não desconverse, é só o que você sabe fazer, desconversar. Além disso, gosta muito deles, não é, os seus amiguinhos, os dos tribunais". E continuou, continuou.

Eu, pelo meu lado, remeti-me ao silêncio e comecei a pensar na única coisa que valia a pena pensar: no gloss. Comecei a imaginar a juíza lambuzada de gloss, eu embirro um bocado com o gloss, e até pensava que já não se usava gloss, pelo menos tanto gloss, ou que só se usasse na televisão. Estava eu na disposição de dar alguma razão a Castafiori quando recuperei a atenção e ouço a meio do monólogo que continuava imparável do outro lado do telefone: "A minha advogada para aqui, a minha advogada para ali-".

A sua advogada? interrompi imediatamente e sem qualquer ponta de arrependimento, oiça lá, mas você não era testemunha? "Era. Veja lá que nem sequer tinham uns banquinhos para nos sentarmos."

E Castafiori continuou, continuou. Mas algo me dizia que a conclusão (que só ocorreria meia hora depois e que meteu descrição da audiência e uma família ucraniana que ela, Castafiori, encontrou no corredor, mais uns senhores que lá andavam com umas capinhas pretas tipo zorro) seria como a 2ª lei da termodinâmica: há processos que só progridem num sentido, que são irreversíveis. A água não flui encosta acima. Em resumo, Castafiori não acredita na Justiça. E de certa maneira, agora que fui obrigada a pensar bastante sobre o assunto, sobre os banquinhos, os ucranianos e as capinhas, é bem feita: menos gloss e mais bacalhau à Braz e tudo seria diferente. Pelo menos era um princípio para enfrentar a crise da Justiça. Isso e uns banquinhos, claro.

16.12.09

mil

Este é o meu post número mil. Não poderei dizer com toda a segurança que não esperava chegar aqui quando, a 29 de Setembro de 2003, abri esta loja com start. Talvez sim, talvez não. Nessa segunda-feira ainda não tinha almoçado e, como se sabe, a fome aumenta a incerteza. Mas hoje que já almocei, e chove, e verifiquei que cheguei, estou contente e digo ainda bem. Sem a loja não escreveria como escrevo, não me teria deixado encantar pela fotografia, não teria tornado personagens as pessoas com que me cruzo, não teria lido certos poetas, não teria reparado em certos movimentos das sombras, nem em certas provocações, uma atmosfera, como esta travagem súbita que me chega agora mesmo da rua. Tudo isso aconteceu porque não estou sozinha. Não sei quantas pessoas visitam a loja. Tirei o contador há muito tempo. Mas a todas estou grata pela atenção e a amabilidade com que entram e saem. Se outra vida houver para além desta, lembrar-me-ei da loja como uma das belas aventuras que não vivi em vão.

15.12.09

(exactamente)

A natureza, ao que parece, é o jogo popular
para milhares e milhares e milhares
de partículas que jogam o seu jogo infinito
de bilhares e bilhares e bilhares.
Piet Hein

14.12.09

Ora aí está

A menina quer saber mais alguma coisa? Eu nasci em Celorico da Beira, concelho de Celorico da Beira, mas estou aqui há muitos, muito anos, tantos que podíamos dizer como se dizia quando eu andava na escola - o tempo pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem e o tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem. A menina quando eu vim para aqui ouvia-me dizer isso e queria dizer como eu dizia mas enganava-se sempre quando chegava à segunda parte do tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem. Enquanto estava na pergunta a coisa vai que não vai mas quando chegava à resposta espalhava-se ao comprido, com licença da menina. Não percebia que a pergunta era a mesma que a resposta ou que a resposta era a pergunta, mas a menina nessa altura era ainda muito pequena e não tomava muita atenção no que dizia, ou tomava de mais porque se a gente se põe a pensar espalha-se, a arte do artista está em seguir o ritmo e a partir daí não há coisa mais fácil de dizer que essa do tempo pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem e o tempo responde ao tempo que o tempo tem tanto tempo quanto tempo o tempo tem. Mas isso já foi há que tempos e nem eu sei bem porque é que vim agora com esta conversa sobre uma coisa tão antiga como esta do tempo em que andava na escola e até parece que estou a ouvir a voz da minha professora, já lhe falei dela, não falei? Era a Dona Arlete dos olhos azuis, a minha professora chamava-se Arlete, eu acho que já nem há esse nome, que isto dos nomes é como as modas das saias compridas e das saias curtas, não sei se me explico, para depois andarem de toda a maneira e feitio. Até em Celorico da Beira é assim, que eu bem as vejo na televisão. Ora aí tem uma grande coisa - a televisão! Estava-me a perguntar que grandes coisas é que tinham aparecido durante a minha vida e eu digo-lhe mais essa, ora aí está. A menina quer saber mais?

11.12.09

bens e males

Pensar nos proprietários de coisas. Quem o disse? Só ter bens, só ter males.
BREVES NOTAS SOBRE AS LIGAÇÕES
Gonçalo M. Tavares

10.12.09

inícios (23)

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus; e a tarefa do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante humildade o único imodificável evento cuja incontroversa verdade se pode asseverar.

O NOME DA ROSA
Umberto Eco

9.12.09

inícios (22)

Foi no Domingo de Páscoa que se soube em Leiria que o Pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia.

O CRIME DO PADRE AMARO
cenas da vida devota
Eça de Queirós

8.12.09

utilidades

Hoje de manhã, ao acordar, tive o seguinte pensamento: as janelas embaciadas estão cheias de poesia e de impressões digitais. Mal sabia eu que uma constipação me impediria de produzir outro que fosse. Comi sopa e arroz branco, feijão com atum e salsa picada; ao lanche, pão com pesto. Também bebi chá e dois cafés para ver um filme e vários episódios armazenados na zonbox. Os dias inúteis têm a sua utilidade.

7.12.09

às vezes

Às vezes na biblioteca pego em livros de que não percebo nada, népia, zero. Isso não me pára. Zero. Não devemos recear os livros. Às vezes gosto apenas de lhes tocar, de passar os dedos pela capa. Às vezes é só por causa duma palavra e, às vezes, nem é preciso ser uma palavra, basta-me a forma da letra. O de hoje tinha no título a palavra "mimésis". Chamava-se "Mimésis e Negação". Via-se logo que não era coisa para mim. Peguei-lhe.

À terceira ou quarta folha encontrei uma dedicatória: "Em memória de José Marinho, Mestre de Verdade, que conversava à noite com os anjos e de manhã não acreditava neles". Este livro estava-me destinado, embora não o consiga ler. Sei lá eu o que é a Negação. Anjos e caixas de fósforos, estrelas e neblinas.

4.12.09

sennep

Parti hoje um pequeno vaso em porcelana que tenho há anos e que nunca utilizei a não ser para guardar as pilhas descarregadas. Era um recipiente peculiar, uma espécie de chávena de café sem pega. Nunca soube o que significava a palavra que ressaltava no branco sujo, impressa a azul, em letras largas: sennep. Hoje não resistiu a uma arrumação mais temperamental e caiu no soalho sem apelo nem agravo, como diria o Gabriel Alves. E quando apanhei os fragmentos tive uma sobressalto antes de despejar a pá em que os recolhi. Parei, voltei a fechar do balde do lixo e não resisti a juntar os restos, e formei quase letra a letra a palavra que remediava estava: sennep. Sennep quer dizer mostarda em dinamarquês. Só o soube esta tarde.

3.12.09

distinção

No seu círculo de amigos discutia-se se ele era ou não gay . Ninguém se admirou quando o distinguiram com o grau de gay honoris causa.

2.12.09

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
Carlos Drummond de Andrade

1.12.09

le rouge absolu

Quem pensa que um pacote de açúcar só de açúcar é feito engana-se. Temos o acúcar, temos o pacote, temos sabedoria popular e por pouco não temos Nara Leão. "Para limpar nódoas de batôn passar um algodão embebido em éter"- chave d'ouro dixit. Que aventuras estas ao balcão do Lido, que saudades que eu já tinha de ler pacotes de açúcar. Amanhã volto outra vez.