quinta-feira, 28 de novembro de 2024

A transcendência do menino

 A TRANSCENDÊNCIA DO MENINO


     Era um pedaço de rua, com alguns postes de iluminação, tão poucos que tudo parecia estar sempre escuro. O cortiço ficava nesse pedaço de rua. Havia rádios nas casas, gente concentrada nas radionovelas. Faz muito tempo tudo isso.  Ali perto do cortiço insalubre, havia os fundos de uma loja maçônica, com uma iconografia que dava medo nas crianças. Mas, durante as festas juninas, acendia-se uma fogueira no terreno baldio das proximidades, onde também se costumava jogar o lixo que era queimado ao final do dia. Ao redor da fogueira, as mandingueiras faziam adivinhações, aproveitando-se da curiosidade da vizinhança que não se contentava com o excessivamente pouco de suas vidas e sonhava com futuros promissores.

     Que promissão pode esperar o povo pobre? Promissão dos céus, o inusitado, o que só pode desvelar-se como acontecimento do Mistério? Ou promissão enganosa das mandingueiras que também precisavam se resignar com a precariedade de viver? Ainda assim, como uma necessidade insuperável de supraterreno, sonhava-se com as coisas que subsistem apenas no instante em que os desesperos dão vez para os doces anseios humanos. A ilusão é uma forma de coragem, porque, às vezes, estender as mãos para o inalcançável produz efeito degradê no escuro, e este bem depressa passa pelo cinza, com gosto de tocar na luminosidade.

     Há os que esperam essas claridades provenientes do escuro. Lá dentro da escuridão sempre há um amanhecer. Era isso que o menino daquele cortiço ordinário na beira do rio conseguia enxergar: o despontar do Sol. Mesmo quando tudo, em seu entorno, se fazia do caótico, ele sabia que, para além do medo das coisas, havia algo que os olhos comuns não captavam, mas ele, sim, ele percebia tudo. E percebia com os mesmos olhos que enxergavam fantasmas. Ele percebia quando a manhã chegava, ainda que fosse demorar para que a noite se desfizesse. Ou se contentava quando havia luar sobre o rio, ou quando se atordoava diante da imensidão dos céus estrelados, com a imaginação fixada em deuses e santos. 

     O tempo levou embora o cortiço e a maioria dos que lá viviam. Até muitas crianças morreram precocemente. Porque a pobreza excessiva mata as crianças com as coisas mais bobas, como febres e disenterias descontroladas. O menino conseguiu sobreviver. Anda pelo mundo. Vai a muitos lugares. Às vezes o escuro daquela rua, uma espécie de fantasma melancólico, se apodera dele e o atordoa. Então ele faz de conta que ali, no meio da avenida ou da multidão, há um vasto rio onde, inevitavelmente, vindo das brumas, desponta o Sol. Ou o luar acalma as águas aturdidas. Ou as estrelas fazem pensar que, em algum ponto no infinito, o Sagrado quer se apossar do mundo com mais poesia e menos crueldade.

   O menino agora sente mais de perto o finito. A sua hora pode chegar subitamente. Ele se amedronta. Mas logo se apruma quando pensa que algum tipo de transcendência pode haver para quem, ainda que de cabelos embranquecidos, guarda em si o menino sonhador e imortal.

    Quem transcende não morre. Vai despontar como Sol em algum lugar. Ou clarear a noite como se fosse estrela ou fogueira de festa junina. Alegre como um saltimbanco.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

TOMÉ MAYRUNA

PARTE I A MEMÓRIA

 (Os pensamentos e as falas derradeiras de Tomé Mayruna, na iminência da morte, conforme este romancista as captou e as reproduziu numa possível transliteração do indizível em palavras, sem chegar ao fundo de sua crueza inimaginável – traslado meramente literário daquilo que não se pode, com facilidade, traduzir em narrativa.)  


Capítulo 1

    Madrugada. Tomé Mayruna, sozinho numa cela fétida da delegacia de Marupiara, uma remota vila na Amazônia brasileira, olha o céu e o casario através das grades. A solidão e a iminência da morte fazem-no pensar e lembrar. “Daqui a pouco vai amanhecer. Sou testemunha solitária de tudo que acontece nesta hora que antecede o clarear do dia de meu santo guerreiro, São Jorge destemido, que matou muitos dragões e, dizem, vive mesmo na lua cheia. Segundo os índios mapanas, esse santo católico, a quem eles conhecem como Sawara Suçuarana, até hoje continua vivendo nos terreiros das malocas e nos oratórios das casas das benzedeiras. Apesar da minha fé nesse santo de guerra, sei que ele não vai aparecer, derrubando tudo com seu cavalo, dizimando os meus inimigos. O meu santo predileto está longe, brigando em outra parte desse céu grande de Deus, e é por isso que me sinto completamente abandonado. Nem os santos da igreja, nem os deuses da mata, nem os amigos do mundo, ninguém pode fazer nada por mim. Estou vendo o relógio de parede da delegacia, o guarda Silvério dormindo, uma luzinha de sol querendo aparecer entre nuvens escuras. Há tanto silêncio em Marupiara, uma espécie de sossego misterioso, um silêncio avassalador de Deus, que me assusto quando um galo canta, em algum quintal, um canto de presságio ruim. Nem os bichos experimentam paz nesta madrugada. Está mesmo amanhecendo e hoje vai ser um dia para ninguém esquecer, porque está marcada a morte de um homem na forca e faz mais de cem anos que aconteceu de alguém morrer assim em Marupiara. 

    Esse acontecimento estremeceu a vila: entre gente eufórica e gente pesarosa, houve quem chegou a encomendar terno de linho, vestido de seda, perfume estrangeiro, roupa de luto e velas roxas, para ver suspenso, no ar da manhã, aquele a quem todos acusam de ser o Mapinguari, o maldito que come carne humana, este humilde servo de Deus que vos fala. É assim, pertinho de clarear, que me desamparo com premonições e temores. O sol está para nascer sobre a mata, sobre a vila e sobre este rio de águas escuras que dá de beber ao povo, o rio Mutum. Os galos de Marupiara, pressentindo o que está para acontecer, se alvoroçam nos quintais, enquanto as mulheres se levantam, praguejando, para requentar o café. As crianças pulam da rede e procuram no guarda-roupa o traje de festa. Os homens, vestindo paletó de linho branco, preparam as garrafas de champanhe distribuídas ao povo por Virgílio Maroaga. O pastor Genevaldo, inimigo declarado do padre, juntou todos os pentecostais da vila e também se prepara para discursar. O padre João Pedro, me disse o delegado Mendes, virá para me confessar, um Santo Sacramento que dispenso sem o mínimo de arrependimento, porque estou desapontado com todos os santos. Talvez venham as mapanas, guiadas por Mayruna e pelo menino peludo chamado Catrimani Lobisomem. Talvez cantem aquela cantiga agoniada dos funerais da tribo. Talvez me auxiliem com encantamentos que desfaçam este imenso pesadelo em que me encontro. Com o sol da manhã, vai chegar o delegado Mendes, primando pela pontualidade, andando igual tartaruga devido à barriga avantajada, os olhos faiscando de ruindade, trajando a roupa domingueira, o crucifixo de ouro saindo da camisa. O gordo desgraçado talvez me olhe e me diga: ‘Tomé Mayruna, amaldiçoado Mapinguari, que cometeu o crime de raptar moça de família e pegar em armas contra gente de bem, chegou a tua hora!’      Ah, meu Deus do céu, me console: estou com medo de morrer, e isto digo porque sinto dor de barriga, vontade de defecar, um enorme pavor. Mas defecar o quê se faz quase três dias que estou em jejum, recusando a comida malcheirosa que o delegado Mendes manda me servir? Isso é pressentimento de morte. Sinto aperreio só de pensar que, daqui a pouco, vou ser enforcado. E eu nem sei o que vão fazer comigo depois de morto, porque ouvi Silvério cochichando que o delegado quer retalhar tudo, salgar e mandar jogar nas encruzilhadas, como um favor prestado a Virgílio Maroaga. É a morte se anunciando. Como dizia o meu pai, Ticá, quando a gente tem um pesadelo de que está morrendo, é porque vai morrer mesmo, e é preciso se acostumar depressa com a fatalidade. Mesmo tremendo todo, afirmo que nunca fui homem de sentir medo e fraquejar. Enfrentei e venci todos os perigos: atocaiei os meus inimigos onde e quando menos esperavam; peguei onça-pintada na ponta do terçado; me criei na mata e nas montanhas caçando, pescando e subindo em árvore; aprendi a urrar igual aos macacos guaribas, esse urro amedrontador que vem do fundo da floresta como fúria que vibra; e, finalmente, afrontei Virgílio Maroaga, o homem mais rico de todas estas terras que meus olhos conseguem enxergar, unicamente por um amor de perdição pela filha dele, Letícia, moça corajosa que abandonou uma vida de bem-aventuranças e comigo fugiu contrariando a vontade do pai. 

    Daqui a pouco vou me encontrar com Letícia em alguma vereda do céu ou da terra. Enquanto isso, nesta circunstância aflitiva, fico me lembrando daqueles dias em que atravessamos a floresta, perseguidos por homens e cachorros sanguinários, sonhando com uma casinha na beira do rio e uma porção de filhos. Essa moça, dona dos meus mais sublimes sentimentos, eu a vi morrer de uma doença misteriosa sem nome. Eu me lembro bem daquela tarde na mata. Letícia reclamava de umas dores no estômago, delirava de febre. Me sentei com ela na beira do igarapé, rezando, atribulado. Meus olhos se enchem de lágrimas só de me lembrar. Eu rezava com extremo fervor, mas a reza era absorvida pela floresta e não cruzava o topo das árvores, não buscava o céu. Ah, que desespero: não muito longe, vinham os pistoleiros e os cachorros em nosso encalço. 

    O tempo de fugir diminuía, estávamos acuados. E tudo piorou quando caiu a tempestade, enchendo a selva de brumas e melancolia. Letícia, com os olhos opacos, bem abraçada comigo, foi ficando molinha, desfalecendo devagar, sem mais me reconhecer. Eu lhe disse: ‘Sou eu, Tomé. Está me escutando? Diga que está me ouvindo’. Nada me respondeu. Imersos na cerração, ficamos entregues à vontade absoluta de Deus, à inconstância do destino, ao acaso das coisas. Depressa escureceu e depressa perdi, definitivamente, minha maior claridade da vida: foi-se Letícia, tão amolecida nos meus braços, mais parecendo estar dormindo. Olhei para cima, vi um pedacinho de céu da noite precoce através da mata, rezei fervorosamente, mas faltou Deus aparecer. Chorei lastimosamente: ‘Letícia, meu bem, aonde você foi? Tão apressada, nem me esperou. Que vazio vai deixar dentro de mim’. Quando estava para amanhecer, tive pensamentos ruins de morte. Ficar ali para sempre, ir ao encontro do meu amor. Mas, por cima das águas do igarapé, na cerração da manhã por nascer, o vulto de Letícia surgiu, subitamente, me sorrindo e me convencendo a viver. Aturdido, meio dormindo, meio acordado, gritei o nome dela. A aparição se desfez e me deixou amortecido, quase sem força para me levantar. Abri os olhos de vez, criei coragem e me levantei para enterrá-la. Meti o terçado na terra fofa e cavei. Falando deveras: chorei, em cima daquele túmulo improvisado, todas as lágrimas que um homem pode chorar quando perde a mulher do coração.” 

segunda-feira, 3 de julho de 2023

LOUVOR A DANY SAKUGAWA

      Datilógrafo aos onze anos, escritor-menino aos doze, numa pequena cidade do interior da Amazônia. Uma máquina de escrever. De repente, uma súbita vontade de trazer, para a clareza da vida, palavras enclausuradas no silêncio da criança, naquele instante sob a posse de mundos invisíveis. Manhã de temporal, havia goteiras na casa de madeira. Muita chuva e relâmpagos no céu escurecido, mesmo que ainda não fosse meio-dia.

     Disso o escritor-menino jamais se esqueceria. Uma literatura que veio do temporal e de uma potência de espírito que não era possível compreender. O menino se deixou levar pelo êxtase, saltou de si mesmo para o interior da ciranda das palavras. Nunca mais se separaram, ele e as palavras. E viveram, até os dias de hoje, uma história amorosa, ora com força de ventania, ora com gosto de desamparo, ora com reverência ao mistério da escrita, ora com a leviandade narcísica de brilhar diante do mundo. Demorou bastante, até que escritor e literatura se viram, de relance, cara a cara, uma experiência repentina que pôs no horizonte a perspectiva existencial de suas histórias. O escritor, não mais menino, agora homem mais próximo do silêncio infinito, finalmente compreendeu que o extraordinário daquela manhã de temporal, sua literatura, não passava de um engendramento do seu destino. Escrever nada mais era do que seu artifício existencial para suportar as intensidades da vida. Aquietou-se em seu anonimato, ele e suas palavras, entranhados numa espécie de pacto poético em nome da lucidez e do apego ao absolutamente essencial para viver. Apesar de toda essa sensatez, de todo o desapego ao mundano, perdurou certa melancolia decorrente da indiferença dos outros.

     Então, certo dia, o homem feito experimentou outra vez algo próximo daquela centelha criadora da manhã de temporal de sua infância. Das redes sociais, surgiu uma voz em defesa de todos os escritores anônimos, com uma eloquência que encorajava até os mais tímidos e dissipava a solidez dos medos. Uma mulher, com a experiência de longos anos no mercado editorial, desfazia todas as artimanhas mercantilistas que matam a obra literária, revertendo o negativo em ato de criação. Animava as gentes das letras ao enfrentamento dos perigos. Suas palavras entusiasmadas transformavam o marketing literário numa ludicidade de enorme eficácia contra os fracassos e esquecimentos. Ao referir-se aos leitores inconquistáveis, dizia, como quem fala para crianças: "Os leitores são Borboletas! Não corram atrás das borboletas! Cuidem do seu jardim, que as Borboletas virão...". 

    O escritor relutou diante daquelas palavras incisivas. Ele detestava marketing literário. Isso não era problema dele, mas das editoras, das livrarias, da mídia, dos especialistas. Para ele, o marketing destruía a obra de arte literária, transformando-a em simples utensílio, tal qual um martelo exposto numa loja de ferramentas ou qualquer coisa exposta numa vitrine de shopping. Pior ainda: entulhava o mundo com porcarias que em nada contribuíam para o gosto do povo pela boa leitura e pela boa escrita. Toda essa resistência, entretanto, não passava de ressentimento do escritor triste e desconhecido.

    Ela dizia: "O mundo dos livros tem suas regras, o escritor precisa saber como o jogo funciona". Sabe-se que, apesar de milhares de livros publicados, apenas 1% dos autores terá a possibilidade de se tornar um escritor de sucesso. Aliás, mesmo para os consagrados, o ímpeto no jogo precisa ser mantido, se a vontade for ter a companhia permanente das Borboletas.

   "Cuide do seu jardim, escritor! Cuide do seu jardim!".

    Ora, mas o que é cuidar do jardim de escritor? Escrever uma obra-prima? Regar as plantas? Fazer-se jardineiro de si mesmo?

    Que história é essa de livros ruins, alguns até estúpidos, venderem mais do que livros bons, que só alguns poucos leem? A moça respondeu: "O que tiver melhor marketing venderá mais do que seu concorrente."

    O escritor mostrou seu livro premiado, trouxe todas as obras publicadas e inéditas, e indagou: "O que faltou fazer?"

    A moça respondeu: "Faltou estratégia. O escritor precisa ser estrategista. Conhecer e aplicar a Matriz do Autor Estratégico - leia-se: cuidar do seu próprio jardim e atrair as Borboletas - são tarefas tão essenciais quanto escrever o livro. Isso, sim, faltou". 

    Uma fala de mulher revolucionária e criadora: as palavras da Dany. 

   Sim, há no Brasil uma revolução no mundo literário. A comandante dessa guerrilha em favor dos escritores e seus livros se chama Dany Sakugawa. Ignoro se fazia sol ou chuva quando ela, em algum instante de sua vida, teve a ideia de deixar para trás tudo o que fazia, a fim de criar  o seu The Book Business, que é uma espécie de Guia de Alquimista que assinala o pote de ouro no fim do arco-íris, um trajeto de muita luta, uma vereda de muitos perigos. Mas qualquer um pode chegar ao ouro do alquimista. Abriu-se um espaço de grande amplidão para tantos escritores brasileiros que se veem perdidos, contando apenas com o talento literário, nessa guerra sem trégua do mercado.

   Eu não gosto do mercado. Mas, ainda que sinta horror a esse capitalismo destrutivo de todas as formas humanas criadoras, ainda que me doa a vitória dessa teoria de tudo vender, consumir e descartar, ainda assim não é do meu direito esquecer o mundo tal qual este é. Desconhecer as regras do jogo é o mesmo que perder a guerra antes do primeiro disparo. Ou desistir do poema e se render à aridez do corriqueiro. 

   Este texto não é uma peça de propaganda. Mas sim o meu louvor a Dany Sakugawa, que está lançando claridades sobre a Literatura Brasileira. É possível conhecê-la no Instagram, todas as terças-feiras, às 20h. Lá vocês vão ver uma mulher que, embora tendo nascido em lar humilde, desde pequena esteve entre os livros. Por isso se dá tão bem com eles, que são seus cúmplices nessa luta civilizatória.

    Ela tem muito a dizer. Escutem essa comandante de nossa guerrilha literária!

   Dany Sakugawa faz bem para o mundo só com o simples fato de existir.

   Louvada seja a Dany!   

domingo, 25 de dezembro de 2022

Por que escrever Tomé Mayruna?

 




    Fiz do meu particular universo mítico um poético e abstrato refúgio chamado Literatura. Nessa espécie de lugar sagrado, convergem para um ponto impreciso de mim sonhos e memórias, que somente subsistem graças à arte das palavras - uns poucos substantivos, alguns sóbrios adjetivos e dois verbos prediletos, desejar e lembrar, que eu conjugo como quem decifra a metáfora do tempo e a substância da vida: nunca estou em lugar algum, vivo no fluxo apressado dos acontecimentos.

        Dependo de reminiscências ou da imaginação para viver. Em outras palavras, só enxergo manhãs clareadas quando já vi e memorizei o sol. Escrevo textos aturdidos e urgentes, imitações do canto das cigarras de minha rua, que cantam com frenesi porque pressentem a perturbadora transitoriedade das coisas - cantam para a vida e secam para a morte. Todos somos simulacros de cigarras, chegamos e vamos embora na vertigem do tempo, aparecemos com o sol e sumimos na escuridão, brotamos na saudade alheia e murchamos no esquecimento do mundo. Existir e perecer formam a mesma metáfora das horas perdidas e dos milagres ansiados.

        Algumas vezes, risco traços alegres ou não às variadas lembranças de minha existência e construo memórias fingidas dentro de memórias verídicas - mergulho, por assim dizer, em um labirinto de reminiscências superpostas. Esse é um privilégio dos poetas e dos loucos, dispor do atributo de lembrar o fato que existiu e o fato ainda por inventar - afinal, toda literatura tem um resíduo indelével da loucura criativa e da fecunda fragilidade humana. Escrever Tomé Mayruna resulta desse incompreensível fato: se não o escrevo, me transformo em cigarra com morte anunciada.  Trata-se de uma tentativa de testemunho romanceado de muitos dramas individuais e coletivos que presenciei e/ou vivi na Amazônia brasileira. Perdoem-me por meus exageros, por algumas inverossimilhanças e pela tendência de enxergar o sobrenatural onde só há coisas simplesmente humanas.

                                                                       Humberto B. Leal


        

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Será que o céu fala da alma humana?

    Diz a astrologia que os céus têm muito a ver com nosso modo de ser: se somos alegres, se somos tristes, se pensamos demais, se gostamos mais de poesia ou de prosa, se nos predispomos a amar mais do que odiar. Certa vez, uma astróloga esboçou meu mapa astral e me disse tantas coisas que chegou a me atordoar. Nunca mais nos encontramos para falar das constelações e das casas astrais, porque eu perdi o gosto de perscrutar futuros e deixei de crer na suposta transcendência proveniente dos astros no universo. 

    Ainda assim, quando me enxergo em meu trajeto na vida, de vez em quando sou tomado pelas palavras daquela astróloga, que muito provavelmente jamais imaginou o surgimento desse vírus letal que já levou tantos entes queridos. Disse a ela, em nosso último encontro, que não quero mais saber de futuro. O futuro é a finitude, e quem deseja saber daquilo que se esgota inexoravelmente? Para que se preocupar com os ventos fortes que derrubam as árvores? Não é melhor ser somente árvore e cumprir o destino de árvore? Ou ser apenas ente mortal e aceitar que nossa historicidade, feita dos nossos gestos mais autênticos, terá por fim o esquecimento, na maioria das vezes, e muito pouco seremos lembrados pela historiografia?

     Escrevi este breve texto apenas pelo prazer de fazer a inutilidade necessária. Escrever para nada. Sem esperar nada. Talvez para tirar o nó da garganta, a opressão do peito. Talvez para conquistar a oportunidade de esboçar um sorriso e sonhar com o mato e o rio de minha infância. Lá não havia tanto pensamento, tanta lógica; havia só a vida em sua naturalidade; a vida sendo...A vida que me bastava.

    Talvez para isso sirva também  a literatura. Para desencobrir a vida que vai se escondendo com o passar do tempo.

sábado, 29 de agosto de 2020

A última criança camponesa tem um amor no coração

      Crianças. Não sei quantas. O avô está sentado na varanda. Cadeira de embalo, o homem fala coisas aos pequenos para encher-lhes a imaginação de luzes fantásticas. O céu profundamente estrelado. A noite é mais escura no campo. Não há prédios, janelas e ruas iluminadas. Apenas um escuro que, paradoxalmente, reluz no céu. Que brilha mais. Que clareia mais. Que invade a alma das crianças.

     Crianças camponesas. Meninos e meninas. Todos acostumados aos pernilongos e bem atentos ao coaxar das rãs que moram nos alagados. Andam descalços e, vez por outra, precisam arrancar de entre os dedos as larvas que fazem coçar demais – bichos de pé não lhes metem medo. Movimentam-se o dia inteiro pelas plantações. Entram no curral e metem os pés na bosta de vaca. Bebem leite fresquinho quando o dia ainda não despontou. Correm quando surpreendidas por abelhas furiosas. Livram-se dos carrapatos, tomam banho de rio, trocam de roupa, comem arroz e feijão, aipim e torresmo, sossegam para escutar as fábulas do avô. E também da avó quando esta chega trazendo um pouco de café e se senta na varanda da casa.

     Lâmpadas incandescentes, fraquinhas, foscas, alimentadas por um gerador. De repente, a escuridão total, alguma coisa aconteceu na casa do dínamo. O avô cessa de contar estórias de fantasmas e diz às crianças que resolvam o problema. Elas sabem o que fazer. Basta corrigir o curso de água e fazê-lo correr na direção certa. Rio desobediente: no meio da noite, resolve fluir pelo meio das pedras, mudar o rumo da correnteza. Que rio nada, apenas um córrego bravo que vem lá do alto da montanha. As crianças então se assustam. “Mas, vovô, tá tudo escuro!”. E o avô se abre numa gargalhada com o medo que as crianças sentem dos fantasmas à espreita nas trilhas. “Vão andando! Vão andando!”. E as crianças driblam o terror e inventam travessuras para enganar as almas penadas. Sapecas, atravessam a escuridão, endireitam o rego feito de pedaços de telhas e pedras. Subitamente, a luz reaparece nas lâmpadas embaciadas, o gerador voltou a funcionar. As crianças retornam quase correndo e dão o pronto para o avô. A avó lhes dá café e um pouco de mingau.

     Assim era. Até que, por causa de outro tipo de rio desobediente, tudo foi se apagando. O vovô foi embora, a vovó foi embora, todos os mais velhos foram embora. Levados para repousar no cemitério do povoado. Apagaram-se e não foi possível às crianças sapecas reverter a escuridão. Neste caso, o rio deixara de correr dentro da casa do dínamo.

     Até as crianças foram embora também. Ficaram adultas. Quando a fazenda começou a ficar em ruínas e se precisou construir a vida noutro lugar, todos migraram para a cidade. Exilaram-se no mundo de concreto. E as crianças camponesas, precisando acompanhar os pais, se tornaram urbanas quase arbitrariamente. Muitas, então, deixaram de gostar do campo depois que conheceram o conforto da cidade. Outras, todavia, ainda voltam lá até hoje, mesmo que doa olhar e sentir a decadência. A estranheza: tudo diferente. O povoado cresceu e foi tomando conta de tudo. Ninguém mais quer ser camponês. Até as revoluções românticas por reforma agrária se transferiram para os grandes centros urbanos, para suas passeatas, para suas ruas tumultuadas.

     Não sei aonde as crianças foram. As cidades as engoliram.

     Mas sei que uma delas ainda se lembra da casa do dínamo. Ela jamais abandonou sua gênese. Vive na cidade, mas gosta de voltar às cachoeiras, às serras, às trilhas poeirentas no verão, às veredas transformadas em lamaçais sob as chuvas impetuosas. Abre suas janelas quando vem a noite e suas estrelas; escuta os sinos da catedral e se transporta para o outrora que sobrevive em seu espírito.


LEAL, Humberto B. A última criança camponesa tem um amor no coração. In: _______. Águas mornas. São Paulo: Novo Século, 2016, p.13-14

sábado, 22 de agosto de 2020

O EXILADO

     O Estado exila seus oponentes quando distorce a divergência política, tornando-a crime institucional, e transforma o divergente em inimigo interno. E os manda para longe, onde os sabiás gorjeiam roucamente em suas palmeiras, tão diferentemente dos cantos melodiosos dos pássaros da Pátria deixada para trás. Lá, para além dos horizontes, noutros lugares em que serão estrangeiros saudosos da terra natal, os exilados protestam contra seus governos autoritários e sonham em retornar. 

     Há outro tipo de exilado. O que escolhe se autoexilar, por conta própria e por antecipação, às vezes até para adquirir visibilidade política, quando se sente incompatibilizado com um governo específico que chega ao poder. É um exílio com gosto de viagem de turismo, nem por isso menos sofrido quando verdadeira a incompatibilidade com os governantes de turno, porém hipócrita quando a motivação da ausência permanece implícita, encoberta, dissimulada. 

     Talvez o tipo mais doloroso de exílio seja o da estranheza em relação à vida e ao mundo. Porque não adianta correr para cá e para lá quando se perde a condição de ser-no-mundo e já não se vislumbra o sentido da existência. Não há mais mundo e não há mais porquês. Tudo é um niilismo insuperável. Faça sol ou faça chuva, o que perdura no espírito é a sensação dolorosa de vazio existencial. Dói tanto que é preciso chorar para se tornar essa dor possível de ser absorvida. Hora terrível essa em que o desalento se apropria de tudo que é nosso. Somem de vista as linhas de fuga, as vias de escape, os lugares clareados pelo Sol, a terra fertilizada pelas chuvas. Resta-nos somente a aspereza. Este é o exílio experimentado nos labirintos das perdas, dos lutos, da melancolia, do absurdo.

     A Vida chama de volta o exilado: vem para cá; abandona os vales da morte; espia o mundo do alto das montanhas; retorna à fonte originária dos seus rios, no fundo da grota, dentro da floresta; foge dessas cidades hostis; vem, Exilado, vem para a Pátria reencontrar os sabiás e os pintassilgos, novamente andar por ruas familiares e escutar palavras inteligíveis; vem, Exilado, trazendo toda a sua humanidade, para, enfim, descobrir o que há por trás do absurdo, do sem sentido das coisas, da densidade da melancolia, do pensamento obscuro. A Vida chama: vem ao meu encontro, Exilado!

     O Exilado se entrega ao apelo da Vida. Já não tenta decifrar enigmas. Desiste das suas utopias: sabe ele, o Exilado, que, enquanto homem, nada mais é do que um pássaro de passagem pelo mundo, e o que lhe importa essencialmente é sua ação de voar, nada mais que isso. 

     O Exilado voa no seu retorno à Pátria. Uma águia pensante é o homem. Mortal, precário, finito, voa e contempla a ampulheta. Transcende nesse tempo que se dilui nos dias clareados ou chuvosos. Em certo instante, toda a transcendência se dissipa, e o Exilado, agora como reminiscência, se mantém vivo na substância da memória dos amigos, dos vizinhos, dos amores. O enigma de viver se desvela em todo o seu Mistério: toda a inquietação da vida era simplesmente a saudade de uma gênese que a gente não sabe bem o que é e nunca vai saber. 

     Cessou o fluxo de areia na ampulheta. Tudo silenciou. Eis o reencontro com a Pátria. Agora tudo faz sentido.