PARTE I
A MEMÓRIA
(Os pensamentos e as falas derradeiras de Tomé Mayruna, na
iminência da morte, conforme este romancista as captou e as
reproduziu numa possível transliteração do indizível em palavras,
sem chegar ao fundo de sua crueza inimaginável – traslado
meramente literário daquilo que não se pode, com facilidade,
traduzir em narrativa.)
Capítulo 1
Madrugada. Tomé Mayruna, sozinho numa cela fétida da
delegacia de Marupiara, uma remota vila na Amazônia
brasileira, olha o céu e o casario através das grades. A solidão
e a iminência da morte fazem-no pensar e lembrar.
“Daqui a pouco vai amanhecer. Sou testemunha solitária de tudo
que acontece nesta hora que antecede o clarear do dia de meu santo
guerreiro, São Jorge destemido, que matou muitos dragões e, dizem, vive
mesmo na lua cheia. Segundo os índios mapanas, esse santo católico, a
quem eles conhecem como Sawara Suçuarana, até hoje continua vivendo
nos terreiros das malocas e nos oratórios das casas das benzedeiras.
Apesar da minha fé nesse santo de guerra, sei que ele não vai aparecer,
derrubando tudo com seu cavalo, dizimando os meus inimigos. O meu
santo predileto está longe, brigando em outra parte desse céu grande de
Deus, e é por isso que me sinto completamente abandonado. Nem os
santos da igreja, nem os deuses da mata, nem os amigos do mundo,
ninguém pode fazer nada por mim.
Estou vendo o relógio de parede da delegacia, o guarda Silvério
dormindo, uma luzinha de sol querendo aparecer entre nuvens escuras.
Há tanto silêncio em Marupiara, uma espécie de sossego misterioso, um
silêncio avassalador de Deus, que me assusto quando um galo canta, em
algum quintal, um canto de presságio ruim. Nem os bichos experimentam
paz nesta madrugada.
Está mesmo amanhecendo e hoje vai ser um dia para ninguém
esquecer, porque está marcada a morte de um homem na forca e faz mais
de cem anos que aconteceu de alguém morrer assim em Marupiara.
Esse acontecimento estremeceu a vila: entre gente eufórica e gente pesarosa,
houve quem chegou a encomendar terno de linho, vestido de seda,
perfume estrangeiro, roupa de luto e velas roxas, para ver suspenso, no
ar da manhã, aquele a quem todos acusam de ser o Mapinguari, o maldito
que come carne humana, este humilde servo de Deus que vos fala.
É assim, pertinho de clarear, que me desamparo com premonições e
temores. O sol está para nascer sobre a mata, sobre a vila e sobre este
rio de águas escuras que dá de beber ao povo, o rio Mutum. Os galos de
Marupiara, pressentindo o que está para acontecer, se alvoroçam nos
quintais, enquanto as mulheres se levantam, praguejando, para requentar
o café. As crianças pulam da rede e procuram no guarda-roupa o traje de
festa. Os homens, vestindo paletó de linho branco, preparam as garrafas
de champanhe distribuídas ao povo por Virgílio Maroaga. O pastor
Genevaldo, inimigo declarado do padre, juntou todos os pentecostais da
vila e também se prepara para discursar. O padre João Pedro, me disse o
delegado Mendes, virá para me confessar, um Santo Sacramento que
dispenso sem o mínimo de arrependimento, porque estou desapontado
com todos os santos.
Talvez venham as mapanas, guiadas por Mayruna e pelo menino
peludo chamado Catrimani Lobisomem. Talvez cantem aquela cantiga
agoniada dos funerais da tribo. Talvez me auxiliem com encantamentos
que desfaçam este imenso pesadelo em que me encontro.
Com o sol da manhã, vai chegar o delegado Mendes, primando pela
pontualidade, andando igual tartaruga devido à barriga avantajada, os
olhos faiscando de ruindade, trajando a roupa domingueira, o crucifixo de
ouro saindo da camisa. O gordo desgraçado talvez me olhe e me diga:
‘Tomé Mayruna, amaldiçoado Mapinguari, que cometeu o crime de raptar
moça de família e pegar em armas contra gente de bem, chegou a tua
hora!’ Ah, meu Deus do céu, me console: estou com medo de morrer, e
isto digo porque sinto dor de barriga, vontade de defecar, um enorme
pavor. Mas defecar o quê se faz quase três dias que estou em jejum,
recusando a comida malcheirosa que o delegado Mendes manda me
servir?
Isso é pressentimento de morte. Sinto aperreio só de pensar que,
daqui a pouco, vou ser enforcado. E eu nem sei o que vão fazer comigo
depois de morto, porque ouvi Silvério cochichando que o delegado quer
retalhar tudo, salgar e mandar jogar nas encruzilhadas, como um favor
prestado a Virgílio Maroaga.
É a morte se anunciando. Como dizia o meu pai, Ticá, quando a
gente tem um pesadelo de que está morrendo, é porque vai morrer
mesmo, e é preciso se acostumar depressa com a fatalidade.
Mesmo tremendo todo, afirmo que nunca fui homem de sentir medo
e fraquejar. Enfrentei e venci todos os perigos: atocaiei os meus inimigos
onde e quando menos esperavam; peguei onça-pintada na ponta do
terçado; me criei na mata e nas montanhas caçando, pescando e subindo
em árvore; aprendi a urrar igual aos macacos guaribas, esse urro
amedrontador que vem do fundo da floresta como fúria que vibra; e,
finalmente, afrontei Virgílio Maroaga, o homem mais rico de todas estas
terras que meus olhos conseguem enxergar, unicamente por um amor de
perdição pela filha dele, Letícia, moça corajosa que abandonou uma vida
de bem-aventuranças e comigo fugiu contrariando a vontade do pai.
Daqui a pouco vou me encontrar com Letícia em alguma vereda do
céu ou da terra. Enquanto isso, nesta circunstância aflitiva, fico me
lembrando daqueles dias em que atravessamos a floresta, perseguidos
por homens e cachorros sanguinários, sonhando com uma casinha na
beira do rio e uma porção de filhos. Essa moça, dona dos meus mais sublimes sentimentos, eu a vi morrer de uma doença misteriosa sem
nome.
Eu me lembro bem daquela tarde na mata. Letícia reclamava de
umas dores no estômago, delirava de febre. Me sentei com ela na beira do
igarapé, rezando, atribulado. Meus olhos se enchem de lágrimas só de me
lembrar. Eu rezava com extremo fervor, mas a reza era absorvida pela
floresta e não cruzava o topo das árvores, não buscava o céu. Ah, que
desespero: não muito longe, vinham os pistoleiros e os cachorros em
nosso encalço.
O tempo de fugir diminuía, estávamos acuados. E tudo
piorou quando caiu a tempestade, enchendo a selva de brumas e
melancolia. Letícia, com os olhos opacos, bem abraçada comigo, foi
ficando molinha, desfalecendo devagar, sem mais me reconhecer. Eu lhe
disse: ‘Sou eu, Tomé. Está me escutando? Diga que está me ouvindo’.
Nada me respondeu. Imersos na cerração, ficamos entregues à vontade
absoluta de Deus, à inconstância do destino, ao acaso das coisas.
Depressa escureceu e depressa perdi, definitivamente, minha maior
claridade da vida: foi-se Letícia, tão amolecida nos meus braços, mais
parecendo estar dormindo. Olhei para cima, vi um pedacinho de céu da
noite precoce através da mata, rezei fervorosamente, mas faltou Deus
aparecer. Chorei lastimosamente: ‘Letícia, meu bem, aonde você foi? Tão
apressada, nem me esperou. Que vazio vai deixar dentro de mim’.
Quando estava para amanhecer, tive pensamentos ruins de morte.
Ficar ali para sempre, ir ao encontro do meu amor. Mas, por cima das
águas do igarapé, na cerração da manhã por nascer, o vulto de Letícia
surgiu, subitamente, me sorrindo e me convencendo a viver. Aturdido,
meio dormindo, meio acordado, gritei o nome dela. A aparição se desfez e
me deixou amortecido, quase sem força para me levantar. Abri os olhos
de vez, criei coragem e me levantei para enterrá-la. Meti o terçado na
terra fofa e cavei. Falando deveras: chorei, em cima daquele túmulo improvisado, todas as lágrimas que um homem pode chorar quando perde
a mulher do coração.”