Os espaços diminuíram, o mundo se reduziu, o lá-fora ficou longe, a casa se tornou um cárcere. Aprisionado, o homem se move até a janela, enxerga as ruas quase desertas e experimenta toda a impotência humana, a ruína da solidão misturada com medo, o espírito imobilizado por um perigo que vem do invisível. A casa adquiriu uma imensidão que chega a doer. A vida deixou de falar com sua impetuosidade e se pronuncia agora somente no ranger da madeira dos móveis. Às vezes faz sol, às vezes chove, e isso importa pouco, porque o desamparo independe das condições meteorológicas; o desamparo brota da alma, cresce dentro dela, domina todo o ser do homem e o asfixia.
Se olha para os céus e pensa nas divindades, o homem logo cai em si: não há anjos que abram os cadeados e afastem as grades, para que ele seja livre novamente; o milagre ganhou outro formato; a liberdade para a vida, paradoxalmente, só é possível no trancafiamento, por isso é preciso fechar as portas, porque os riscos se encontram nos outros que trazem consigo a morte. Este deve ser provavelmente o pior efeito colateral de uma quarentena: o saber que todos nós nos transformamos nesses outros portadores da morte para cada alguém. O meu espirro mata o outro; o espirro do outro me aniquila.
Ainda é possível ir à farmácia e ao supermercado. Ignora-se por quanto tempo. Tudo depende de não se sabe o quê: o imprevisível regula a vida. Vive-se segundo uma incerteza que, mais depressa do que se suporta, radicaliza e atordoa. O pensamento da Ciência não dá conta das surpresas que a vida apronta. Tampouco suprime o aturdimento do espírito. Por isso é que, em plena pujança da cibernética, o homem solitário insiste em olhar para os céus, saudoso dos deuses. E é assim que, burlando a vigilância das autoridades sanitárias, entra numa igreja deserta no caminho da farmácia. A enorme basílica de Nossa Senhora, monumental e santificada, agora tão silenciosa, tão pequena, tão impotente. Um vírus matou todos os santos.
O homem não reza. Olha em volta de si e lembra. Faz tempo que esteve aqui. Esta lembrança é sua oração possível. Aqui vinha uma devota de Nossa Senhora. Uma mulher forte, alegre, confiante, bela. A própria vida. Não a vida trancafiada, não a vida do medo, não a vida do tédio, não a vida do desespero. Mas a vida de caminhar debaixo do sol e da chuva, a vida dos horizontes possíveis e efetivos, em que a finitude perde toda a sua potência de amedrontar. Nessa basílica de Nossa Senhora o homem já esteve com seu amor. A mulher de quem agora se recorda. O homem ri sozinho: outra vez, a vida.
Cadê a mulher da basílica?
Tão longe, tão perto. Tão humana, tão santa. Tão ausente, tão presença.
Toda a solidão se desfaz. Já não há vazio. Pode o homem voltar para casa e novamente estar no mundo. Imune ao medo. Rezou e foi escutado. Sabe que habita o espírito de uma mulher. E a sente com uma proximidade que supera qualquer ausência. Então, passa na farmácia, compra vitamina C para gripe e retorna ao seu silêncio. Agora, as ruas, as praças, as praias, os céus, os ventos, tudo fala dentro dele. Daqui a algum tempo, quando ambos saírem da quarentena, o homem solitário e a mulher da Basílica vão se reencontrar. Nossa Senhora lhes vai dar uma bênção. E eles, precários e mortais, vão sair de mãos dadas na avenida, movidos pela poética dos enamorados. A própria poesia pós-quarentena. Sobreviventes.