(cadê você, mulher sobrevivente na memória?)
Parte IPrecisei sempre de uma visão fantástica para viver, por isso fui ao
deserto. Lá onde os olhos humanos são corrompidos pelo reflexo da luz
solar. Não falo propriamente dos desertos convencionais, das longas
extensões de terras inóspitas, calcinadas pelo sol. Nem sempre é preciso ir
ao Saara para colher ilusões sedutoras. Uma cidade pode ser também um
deserto, as multidões transformadas em rostos desconhecidos e
incomunicáveis, o resto convertido em solidão. É neste estar-só inexorável
que surgem terríveis miragens em cada esquina, em cada beco, em cada
avenida, em cada semáforo, em cada bar, em cada cinema.
Miragem, em meu caso, lembra um grande amor, mais pretensão
poética que realidade. A mulher perfeita, a amante, a namorada. Hoje eu
não falo mais seu nome. Digo somente: Miragem. Se penso, eu penso nesta
mulher. Se falo, eu falo desta mulher. Se sonho, eu sonho com esta mulher.
Mas quem é ela que, não existindo mais, insiste em permanecer em mim?
Que mulher pode ser para um homem seu ontem, seu hoje, seu amanhã,
quando não passa de uma simples impregnação poética? Ela existe e não
existe. Ela é miragem. Morre e revive em mim. Sempre. Não é como certas
estrelas que perdem o brilho quando morrem na vastidão do espaço. Ela me
ilumina simplesmente sem cessar. Sou mera sombra sem sua claridade.
Mulher perfeita?
Parte II
Dizem que a mulher perfeita é a que tem os olhos verdes da cor do
mar, ou quem sabe do azul do céu, ou pretos da noite de lua-nova. A que
tem cabelo para esvoaçar no vento da manhã, a que usa vestido negro numa
noite de sábado, a que cruza as pernas em público só para mostrar a
calcinha, a que homem nenhum consegue tocar de verdade. A que passa
indiferente, do outro lado da rua, a que fala na televisão, a que aparece nua
numa revista masculina, a que desnorteia os homens desamparados. Mulher
perfeita ou metáfora da perfeição?
Você nunca quis ser perfeita. Pegava minhas mãos e as enfiava por
dentro de suas roupas, me dizendo que era de carne e osso, “pode tocar,
não se sinta constrangido, meu bem”. De manhã cedo, fazia questão de se
mostrar despenteada, com cara de sono, falando que na vida não se beijava
na boca como se beija nos filmes, porque antes se deve escovar os dentes e,
de preferência, tomar um bom café para não passar mal enquanto se faz
amor. Mas, às vezes, de madrugada, você esquecia essas regras, vinha para
cima de mim, dizia que no escuro o mau hálito adquiria o gosto de hortelã.
Você tinha uma só perfeição: a de ser mulher de verdade.
Você existiu mesmo?
— Como é o seu nome?
— Miragem! – você me disse.
Foi assim que você falou numa esquina de Copacabana, vestida para a
noite. Eu novamente perguntei o seu nome, você outra vez me disse que era
Miragem, e eu ri pensando na metáfora da mulher perfeita.
Parte III
Miragem: minha namorada. Ela retrucava: “Sou sua amante!”. Para
que um homem precisa de uma amante? Eu indagava, ela negava resposta,
dizia que eu pensava em demasia e que deveria me concentrar mais no
amor. “Olhe-me bem, meu amor, sou sua amante!”.
Miragem dizia que as amantes eram as melhores namoradas,
incomparáveis, perfeitas para homens que precisam inexplicavelmente trair.
Inegável a vantagem da amante, incessantemente desejada pelo homem
que vê nela uma mulher feita exclusivamente de qualidades, isto é, uma
miragem em todos os sentidos. Vestida de um jeito de estar sempre pronta
para uma festa, o tempo todo disposta ao amor, raramente reclama de
fadigas, enxaquecas inesperadas, tristezas repentinas. Conversa sem
embaraço sobre todos os assuntos e, de vez em quando, consegue a façanha
de ser poliglota. Longe de ser a coisa comum do cotidiano. Fantasia dos
homens desnorteados.
Mas chega o tempo em que a amante perde o encanto, deixa de ser
novidade, vira mulher comum. Reduz-se, então, a uma pobre criatura,
desorientada no mundo. Nessas horas ela lamenta a condição de intrusa e a
falta de exclusividade que julga merecer. Cansa dos álibis e da
clandestinidade; quer ser a mulher oficial, a matriz e não a filial. Sozinha,
detesta os fins de semana, dias de insuportável solidão. A amante, quando
deixa de ser miragem, racha literalmente.
Mas Miragem nunca escondeu seus defeitos, nunca mostrou duas
caras, nunca quis ser fantasia, mas sim mulher de carne e osso. De sangue,
de suor, de glândulas.
Parte IV
Fui às enciclopédias pesquisar Miragem. Porque Miragem era frenética
em minha cama. Porque gozava alucinadamente, “o meu ponto G, você
encontrou o meu ponto G”.
Antigamente me diziam que toda mulher tem um grande mistério entre
as pernas e que conhecê-lo era tarefa primordial do homem. Eu indagava
aos mais velhos se por acaso eles se referiam à vagina. Eles, que pareciam
conhecer tudo da vida, riam de mim e frisavam que seria preciso viver pelo
menos sete vezes mais para decifrar todos os enigmas femininos. Depois de
muita conversa e risada, me revelavam: “Todo homem precisa dominar o
funcionamento do clitóris, que é o centro da lascívia feminina”.
Eu perguntava: “Miragem, que mistério é este no seu grelo?”
Miragem respondia: “Mistério nenhum. Apenas é sensível ao seu dedo
e à sua língua!”
Pois bem, um dia desses, lendo um tratado de Medicina, fiquei sabendo
do ponto G, uma glândula extremamente sensível – ou algo parecido – que
existe no interior e na parede frontal da vagina, a uns cinco centímetros de
sua abertura. Foi batizada de ponto de Gräfenberg, em homenagem a um
certo doutor Ernst Gräfenberg, um médico alemão que se notabilizou por
essa descoberta inusitada da genitália feminina.
Miragem nunca se perdeu em detalhes técnicos, ia direto ao assunto:
“Quero ficar sentada sobre você, assim você atinge intensamente o meu
ponto G...”. Minha amada jamais se interessou por pesquisas científicas. “E
precisa discutir, meu amor?”.
Dizem os cientistas que se trata de um pequeno ponto no corpo
feminino, não tão visível quanto o clitóris, menor ainda, mais úmido e mais
oculto. Decifrar seu código é o que precisa o homem para levar uma mulher
ao orgasmo impensável. Quero conhecer bem todos esses pontos, essas
glândulas secretas, mas sei que preciso ir além dos gráficos dos anatomistas
para atingir o lugar mais fecundo e doce da alma feminina. Lá onde a mulher
guarda, diligentemente, os seus mais preciosos favos de mel.
Nessas horas, Miragem me capturava: “Você pensa demais, que tal me
amar agora? Quero ficar por cima de você, bem sentada, que é assim que
você atinge intensamente o meu ponto G...”. E, depois, contente, ela dizia:
“Agora vamos sair, ver as vitrines, bater pernas...”
Parte V
Miragem na butique de lingerie. Um instante inusitado. Preciso mesmo
escolher?, ela me perguntava várias vezes, eu dizia que sim. Apontava
adiante, trêmulo, renda e seda, cor e um pedaço de pele, pequena ou maior
que o desejável. Lingerie, meu bem, é meu fetiche, você bem sabe. Miragem
abria a bolsa, tirava um comprimido de tarja preta, “toma, toma, senão vai
ser aqui mesmo, na cabine de experimentar roupa”. Safada, Miragem era
safada, me encabulava de propósito na frente das senhoras e adolescentes.
Eu era o único homem na butique refinada. Enquanto Miragem escolhia
lingerie, eu olhava as outras mulheres. Em algumas, eu notava a
desesperança, a trivialidade da escolha. Noutras, havia o brilho do olhar de
felina, a imaginação solta entre se verem mais ou menos vestidas, tudo
dependendo do tamanho ou da transparência da calcinha escolhida.
Miragem me beliscava, “está olhando o quê? nunca viu?”. Então me
mostrava suas escolhas: eu escolhia a calcinha de renda negra, quase
transparente, e o sutiã cor de sangue. “Vem me ver, então, vem na cabine,
vem dizer se o conjunto cai bem”.
Na cabine, Miragem se desvestia primeiro para pôr o sutiã cor de
sangue e a calcinha de renda negra. “Que tal?” Linda, eu só dizia: linda,
muito linda, vamos embora. Rápido, passávamos pela caixa registradora,
pela seção de embrulhos, eu arrastava Miragem comigo, ela amava os meus
impulsos desse tipo. Íamos apressados, sem respeitar semáforos.
Dessas coisas me lembro, tanto quanto do sutiã cor de sangue e da
calcinha de renda negra, ah eu me lembro da umidade e do furor de
Miragem. Da mulher que, depois de fazer amor e dormir, se levantava cedo
e fazia café para nós dois. Da mulher que gostava de poesia e, por isso,
recolhia os versos dispersos que eu escrevia pela casa.
Parte VI
Miragem, que aconteceu? Você perdeu o gosto de se sentar sobre mim
para que eu lhe atingisse intensamente no ponto G? Ou você simplesmente
cansou de ser uma romântica irresponsável?
Penso no que você terá feito dos versos que escrevi no espelho de sua
cômoda.
Penso em tantas coisas. Penso e não penso. Não é possível pensar
quando você dança, em meu pensamento, com um vestido negro decotado.
Minha mente é uma tela de cinema: as imagens substituíram os
pensamentos, você agora me atordoa, de sutiã cor de sangue e calcinha de
renda negra, no meio de sombras. Cadê você, Miragem?
Meus remédios de tarja preta.
Aturdido, não sei mais o que fazer.
Deus do céu, cadê esta mulher?