sexta-feira, novembro 28, 2008

Fragmentos


Tenho uma fé lúcida. Aceito a dúvida como um sinal da fé. Se a fé fosse o sinal de uma certeza, seria fácil o caminho da eternidade. A fé é um ato radical que não se confina no quotidiano. É fácil se entregar à rotina ou aos rituais. O difícil é cultivar esse abandono ao poder do Espírito.
A escritora Flannery O’Connor disse que “Chega-se a uma razoável certeza a respeito do caminho a trilhar, mas é um percurso no escuro. Não conte que a fé tornará as coisas mais claras. Trata-se de confiança, não de certeza”.
O pensamento é um poderoso e precioso poder, mas é um horizonte não uma fundação. Não possui solidez para alicerçar a alma, mas alarga a visão. Amplia o nosso alcance mais do que o fixa. Amplifica o problema, sem resolvê-lo. Fé não é um asilo para os que tem preguiça de pensar.
Dostoiévski dizia que “Não é como criança que creio em Jesus Cristo e o confesso. Meus hosanas nasceram de uma fornalha de dúvidas”.
Frederick Buechner dizia que as “dúvidas são as formigas nas calças da fé. Mantêm-na acordadas e em movimento”.
Como disse o poeta Rainer Maria Rilke, é melhor viver com uma pergunta embaraçosa do que negar qualquer uma das realidades dentro dela.
Ao contrário de outros livros proféticos, Habacuque é mais uma oração do que uma profecia. O preocupado profeta ousa dialogar com Deus, enfrentando-o com perguntas que parecem desafiar o amor de Deus. Costurando perguntas difíceis e respostas divinas, o método foi denominado “rabínico” ou “socrático”, e foi usado por Jesus com muita eficiência (Mt. 24:42). A fé de Habacuque é tão profunda que ele pode expressar honestamente as suas dúvidas e ficar satisfeito quando o Senhor responde com novos apelos à fé.
Mesmo através da lente grossa do racionalismo e do materialismo, podemos exercitar o olhar da fé. O apóstolo Paulo alertou que o olhar de fé de Abraão foi considerado como justiça. O olhar o justificou.
O discurso de Deus para aquela família estéril é um convite ao abandono. Sair do presumível mundo das normas e segurança. A ordem é concisa e peremptória. Ela não se baseia na lei ou disciplina, mas na promessa. Partir é abandonar a esterilidade. A fé repousa na contradição: ficar em segurança é permanecer estéril, correr o risco é ter esperança. A fé implica em uma jornada rumo ao desconhecido. É preciso dar o primeiro passo, sem saber para onde estavam indo, quando chegariam lá ou como saber que já chegaram. A fé não é a posse do mapa, mas a viagem.
A jornada teve várias etapas. Eu gosto de pensar nisso. A fé como verbo ao invés de substantivo, um processo em vez de uma posse. Eu tenho a fé que meu amigo é meu amigo. É possível o engano. É possível que ele tenha outra intenção além da simples amizade. Mas as nossas conversas, os conselhos, o silêncio sem embaraço, me leva a crer na sua amizade. Eu não posso prová-la, mas a experimento.
Fé inclui dúvida. Paul Tillich dizia que a dúvida não é o oposto da fé, e sim um elemento.
Fé é caminhar, um passo de cada vez. Às vezes parece uma rodovia devidamente sinalizada, em outras, é uma trilha cheia de folhas, galhos e armadilhas. A fé é uma resposta a um convite.
Como filhos da modernidade, esse parece um conceito curioso. Estamos habituados a pensar em nossas próprias realizações, as nossas próprias agendas, os nossos próprios objetivos. A história de fé de Abraão é um lembrete útil de que não somos arquitetos da nossa própria vida ou do mundo. Nós somos herdeiros de uma promessa, e não pode haver promessa sem que haja um autor. A promessa de segurança, bem-estar, prosperidade e proeminência são dons a ser colhidos durante e ao fim da viagem. É o que torna a viagem sagrada e não apenas um vadiar através dos dias.
Crença centra-se em declarações. Fé implica em ação.
Thomas Merton falou da “possibilidade de um diálogo ininterrupto com Deus”. Um diálogo de amor e de escolha. Um diálogo de confiança e esperança. Um diálogo que permita soltar-se como um falcão nas correntes de ar.
O antônimo de fé não é dúvida, mas medo.
(Trecho extraído do livro "A sobrevivência da fé" de Samuel Rezende)

terça-feira, janeiro 08, 2008

UM 2008 MAIS DO QUE SIGNIFICANTE



Para W. H. Auden, a nossa ordinária existência é chacoalhada na época de Natal: “a festa de Natal transforma a memória”. O interessante no seu poema não é que ele fala dos eventos da natividade mas por prolongar o impacto da encarnação em um mundanismo diário.
Para Auden o Natal é mais do que o ápice de uma comemoração, é um lembrete anual de que Deus agiu e está agindo “para redimir a insignificância”, a lama monótona de nossas rotinas.
Os críticos que bajulavam Auden, criticaram o seu retorno à igreja. Diziam que era um ato de covardia intelectual e desprezaram-no. Os intelectuais liberais que o aplaudiram quando dissecou a passionalidade dos traumas sociais dos anos 30, agora bufavam com seu novo estilo divertido, frívolo e irrelevante.
Um artigo escarnecedor perguntava: “O que terá acontecido com Wystan?”
O certo é que este grande poeta não passou em branco. Neste poema ele descreve o fervor religioso do feriado e a depressão pós-natal:
As ruas são muito mais estreitas do que nós recordamos;
Nós tínhamo-nos esquecido
O escritório era tão comprimido como este.
Àqueles que viram
A criança, de qualquer modo não ofuscante, incredulamente,
Tempo que é, em um sentido, o tempo tentando de tudo.
Para Auden, a encarnação infunde significado a existência histórica. O hoje foi redimido, e a tarefa dos cristãos é participar deste trabalho lento:
Entrementes
Há contas a ser pagas, máquinas para serem consertadas,
Verbos irregulares a aprender, o Tempo redime
A insignificância.
Estava olhando o quadro “A queda de Ícaro” de Pieter Brueghel, a representação mais inesperada deste mito. O mar, a natureza e a cidade dominam a cena. Destaca-se um lavrador indiferente, um pastor a olhar para o céu, mas para o lado errado; atrás dele, na água, mas quase sem se ver, o Ícaro caído. O quadro parece querer ignorar a presença de Ícaro: é um ponto no canto inferior direito (como uma assinatura), caído na água, de pernas para o ar. A insignificância de Ícaro contém um sentido filosófico-moral. As pessoas nem notaram o acontecimento.
Inúmeras estimativas foram feitas, tentando datar o universo. O cristão afirma que em um momento especial, antes do tempo, Deus num rasgo de criatividade, chamou a existência – águas, terra, plantas, animais e seres humanos – não em dias comuns. A Bíblia é pródiga em declarações de que o tempo de Deus não é o nosso tempo. Mil anos não é mais do que um piscar de olhos a luz de Deus.
Quando Deus criou o universo, foi como se uma flor minúscula desabrochasse em grandes nuvens de gás de hidrogênio e galáxias rodopiando. Deus criou os sistemas solares e planetas, e este planeta no qual caminho enquanto a terra faz a sua graciosa dança em torno do sol.
E Deus examinou a sua intrincada criação e considerou-a boa. Cada partícula subatômica da criação foi examinada pelo Criador. De uma partícula destinada a viver alguns segundos a uma galáxia com uma extensão de vida de bilhões de anos.
Houve um momento quando todas as estrelas prenderam a respiração, as galáxias pausaram a sua dança por uma fração de segundos, e a Palavra que as tinha chamado à existência, foi silenciosamente aninhar-se no ventre de uma jovem. E o universo respirou novamente.
Um poder além da imaginação entregou-se a impotência de uma criança em gestação, informe, nadando no grande oceano do líquido amniótico, cego, surdo e mudo. No ritmo lento do crescimento de um embrião humano este poder aguardou nove meses para nascer.
Jesus Cristo, a segunda pessoa da trindade, criador do universo, visitava este pequeno planeta, limitado ao tempo, espaço e ao universo humano.
O Verbo-Criança, a palavra divina fez-se carne. Devemos ser gratos por este presente sagrado. Para Auden a doutrina da encarnação significa que quando a palavra fez estadia entre nós, os pontos fracos e os limites do mundo adquiriram uma cor inesperada. No coração, o cristianismo é uma vigorosa religião materialista, porque afirma que o sagrado entrou no mundano.
A palavra divina introduziu-se furtivamente no mundo, como um bebê em Belém. Depois desse acontecimento surpreendente, devemos permanecer abertos à possibilidades, surpresas e maravilhas.
A principal crise do nosso tempo não é energética ou ecológica, mas uma crise espiritual. A aquiescência da cultura ocidental para o materialismo resultou em uma profunda negligência da vida transcendente que ironiza a adoração, a encarnação e a tentativa de manter um padrão moral.
Não há como ressacralizar o cosmos. Mas podemos procurar pistas nas experiências comuns da vida. Há sinais da transcendência em nosso desejo de ordem, no jogo do amor, no uso do humor e em nossas experiências de esperança e desespero.
O sofrimento pode ser uma ferramenta para avançar a um nível mais profundo de fé, consciência e introspecção. A vida contemplativa pode começar em uma experiência de dor. Para Evelyn Underhill, o primeiro estágio é a conversão. O teólogo Paul Tilich dizia que estamos estagnados até que em um esforço crítico confrontamos o vazio e o silêncio. Somente abraçando a própria inadequação experimentamos o crescimento e uma nova vida.
Gosto de Kierkegaard. Conheci os seus textos no período em que li J. D. Salinger e seu cultuado personagem rebelde Holden Caufield. As arremetidas espirituais e intelectuais de Kierkegaard carregam o cheiro da rebelião da juventude, um noivado com a recusa radical de encarar o mundo como ele é.
O salto da fé de Kierkegaard introduz a transcendência do amor divino. Ele não traz apenas a lei moral para a terra, mas, paradoxalmente, introduz uma demanda para amar além da possibilidade humana. Nós somos incapazes de satisfazer a exigência da lei moral. Mas somos incapazes de viver sem ela. Se optarmos pela esfera ética da existência, vivendo como um asceta, experimentamos o sabor do desespero.
No cristianismo o indivíduo atinge a intensa e profunda reflexão: “ser cristão é uma determinação dialética, pois o Indivíduo se torna cristão pela conversão. A fé é enraizada na infinita dialética da incerteza”.
O mundo moderno tenta isolar a dor, anestesiar o sentimento e finda provocando mais sofrimento.
A vida é cheia de um sol radiante, de tempestades incríveis e o que vemos pela rua é gente correndo, gente com pressa porque é sempre ali na frente que está a nossa solução. O que precisamos é morar, comer e consumir. E para isso temos que estudar e trabalhar. Uma equação bastante simples e lógica. Um bebê não exporia melhor. Temos simplesmente que resolver o rumo que desejamos. Desejamos estar nesse mercado competitivo? Desejamos estar de gravata e com o cartão de crédito sempre na iminência de estourar?
Vejamos uma outra pessoa que vá na contramão de tudo, que resolva, por exemplo, recolher-se a um mosteiro e dedicar sua vida a Deus. Não me parece que duvidemos da sanidade de um frade ou de um pastor. Parece que está tudo certo, tecnicamente com ele, esse homem igual aos outros apenas escolheu um caminho que não é o da maioria, mas é perfeitamente aceito.
William James, norte-americano que foi um dos grandes fundadores da moderna psicologia científica, afirmava, e cito de memória, que “não é psicologicamente possível ao homem viver sem acreditar na sua própria imortalidade”.
“No fundo, o que se oculta sob toda esta problemática é o problema da existência da alma: nós temos ou não temos uma alma? Mas não é apenas o problema da existência da alma: é também o problema das relações entre a consciência, a mente e o cérebro/corpo”.
“Desenvolvendo uma comparação sugerida por Rupert Sheldrake... ninguém se lembraria de supor que a rádio e os seus mecanismos internos são a fonte das vozes e das músicas que dele saem; ninguém se lembraria de supor que a televisão e os seus mecanismos internos são a fonte das imagens e dos filmes que dela saem; mas é curioso verificar como tão facilmente cremos que o cérebro e os seus mecanismos internos são a fonte da consciência! Mas a verdade é que a rádio, a televisão e o cérebro são apenas aparelhos de recepção e de emissão: de sons, de imagens e sons, e da consciência”.
Muitas vezes nos fechamos em nosso viver hedonista, circunscritos que aos nossos desejos, à vida que levamos, e que para nós, por ser tudo o que temos, em parte limita o mais que poderíamos ser, ou mesmo ter, no que diz respeito às experiências que viríamos a acumular. Quando nada interfere, também pouca coisa muda. Quando só há ruídos, o silêncio não é um dado de realidade, porque já está tão internalizado em nós, que apenas o barulho aparenta ter força de verdade.
Por que os salmos são os livros mais lidos da Bíblia? Creio que uma das pistas é que eles contêm toda a experiência humana, do desespero à alegria, da gratidão à raiva, da celebração a beleza da natureza a perguntas sem respostas sobre a violência. As pessoas gostam de saber que há três mil anos alguém estava sentindo a mesma coisa e orando. A vulnerabilidade é exposta e permite afastar a cortina e vislumbrar que Deus está ali.
Curiosamente, os salmos me levam a aturar a igreja, esse amontoado de cantores ruins que fazem um ruído maior do que a soma de suas vozes débeis. Em um culto de adoração eu posso sentir – a despeito desse aspecto – a presença de Deus.
Apesar do abismo, como diria Emily Dickinson, da solidão, dos momentos de isolamento e desespero, e da desafinação vocal, há o sentimento comum e a memória universal. Então acrescento a lista inicial, o calafrio a percorrer meu corpo, as lágrimas a brotar nos olhos e a estranha sensação de invadir um lugar sagrado.

(Trecho do livro “Relíquias de uma terra estranha” de Samuel Rezende)