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2.1.08

Melhores de 2007 (João Ricardo Branco)


1 -INLAND EMPIRE, de David Lynch
2 -The Fountain, de Darren Aronofsky
3 -Death Proof, de Quentin Tarantino
4 -Eastern Promises, de David Cronenberg
5 -Das Leben der Anderen, de Florian von Donnersmarck
6 -Letters From Iwo Jima, de Clint Eastwood
7 -Control, de Anton Corbijn
8 -Paranoid Park, de Gus Van Sant
9 -Zodiac, de David Fincher
10 -Die Grosse Stille, de Philip Gröning

Num ano de Cinema não especialmente forte, «INLAND EMPIRE» afirma-se como obra capital. Trata-se não apenas do melhor filme de David Lynch – um dos cineastas fundamentais dos últimos 30 anos – mas também de um dos rasgos de génio mais profundos e radicais do cinema das últimas décadas. «INLAND EMPIRE» estará para a obra de Lynch como «Persona» está para a obra de Bergman: ambos partem de uma necessidade de interrogar os limites formais do Cinema na representação de uma abstracção absoluta e ensaiam um duplo movimento oposto que tudo estremece: por um lado, penetram as imagens até ao limite em busca do que elas escondem no seu interior; por outro, distanciam-se o mais possível delas em busca do Todo que as une. Em qualquer dos casos o resultado é vertiginoso e abala-nos irreversivelmente: deixamos de saber onde termina e onde começa o olhar, onde existem imagens e onde existem meros reflexos de outras imagens, onde está a câmara que filma todas as outras câmaras e onde está a verdadeira identidade das personagens que se mascaram ou se projectam noutras. É cinema total e absoluto, mera sucessão de imagens que tudo dizem e nada dizem. De tal modo que o que verdadeiramente importa em «INLAND EMPIRE» não é aquilo que as imagens nos mostram: é aquilo que elas nos escondem.

A uma distância considerável encontram-se os restantes nove filmes. «The Fountain», obra-prima absoluta e injustamente maltratada, também ela a uma distância considerável dos restantes oito filmes, é uma história de amor intemporal (literalmente!), radical, desmedida, transcendente e desesperada, que desafia permanentemente as nossas certezas e nos atinge emocionalmente por completo.

Os restantes oito filmes marcaram-me de forma diversificada e a sua inclusão neste TOP10 justifica-se por inúmeras razões. Em «Death Proof» vejo novas e vibrantes possibilidades cinematográficas e a certeza de que a imensa paixão de Tarantino pelo Cinema encontrou aqui um corpo perfeito. De «Eastern Promises» guardo sobretudo o olhar de Cronenberg sobre a religiosidade implícita no espaço que separa a morte da vida. «Das Leben der Anderen» foi uma das mais desarmantes surpresas de 2007, pequeno filme inspirador e comovente que nos devolve a possibilidade de acreditar no poder transformador da Arte. Em «Letters From Iwo Jima» volto a encontrar a envergadura do cinema de Eastwood na encenação de um intimismo dramático sempre em fricção com a irreversibilidade da morte. «Control» acertou-me em cheio com a sua capacidade estética para construir uma personagem enorme, que contorna em absoluto o ícone e a reprodução e que se assume como uma verdadeira personagem trágica e, nesse sentido, eminentemente cinematográfica. De «Paranoid Park» guardo essencialmente a forma como as imagens construídas por Van Sant conseguem rimar numa verdadeira poesia sobre a angústia de crescer. «Zodiac» é um exemplar thriller policial e merece o meu destaque em razão da sua enorme riqueza dramática e do virtuosismo adulto de Fincher. «Die Grosse Stille» conquistou-me, enfim, pela radicalidade da sua proposta e pelo muito Cinema que esconde.

Que 2008 seja um grande ano de Cinema!

30.12.07

2007 - Os Melhores

Se foi difícil elaborar uma lista dos piores filmes do ano (devido ao elevado número de candidatos), a tarefa de eleger os melhores tambén foi complicada, mas no presente casa, devido ao escasso número de elegíveis...

Eis os escolhidos, do melhor para o menos bom:


Eastern Promises
De longe... de muito longe, o melhor filme do ano, e indo mais longe ainda, um dos melhores filmes da década. talvez eu há um ano atrás tenha dito o mesmo de A History of Violence. E fui verdadeira. Mas Eastern Promises é ainda melhor que o último filme de Cronenberg. Viggo Mortensen tem aqui o papel da sua vida, e a galeria de secundários que o rodeia é irerpreensível. O argumento é fortíssimo, duro, violento, e a espaços comovente, e está filmado com uma crueza que reflecte todos esses estados de espírito. A rever, várias vezes.

Letters from Iwo Jima
Clint Eastwood está em grande forma, e a forma como Letters from Iwo Jima está filmado reflecte isso. Todas as cenas do filme respiram cinema, e não nos é difícil acreditar que aquelas pessoas existiram na realidade, já que o argumento criou boas situações e personagens, e os actores encarnaram-nas de forma irrepreensível.

Das Leben der Anderen
Tomara todos os realizadores escreverem e realizarem uma primeira obra do gabarito deste Das Leben der Anderen. Von Donnersmarck faz um retrato (que eu acredito ser fiel) de uma sociedade extinta e que me é desconhecida, povoando-a de personagens complexas, e por isso, completas. O clímax final, que poderia tão naturalmente cair no lugar-comum, e no exagero de querer puxar a lágrima fácil é, pelo seu oposto, tão contido que se torna ainda mais comovente.

Don't Come Knocking
Confesso que as minhas expectativas para este filme não eram muitas. De Wenders, tinha apenas tentado ver The Million Dollar Hotel, e desistido ao fim de 30 minutos. Por várias vezes. Mas esta história de auto-descoberta e descoberta mútua das várias personagens é filmada de forma simples e comovente, fazendo um retrato de uma América que muitos julgam perdida. (Ah... e a música original que o Bono compôs para o filme é magnífica!)

Les Chansons d'Amour
Cada vez que penso no filme, só rezo para uma rápida edição do mesmo em DVD, para o poder rever. Sobre ele, está tudo dito aqui.

Venus
Uma das mais agradáveis surpresas do ano, com um Peter O'Toole a mostrar que ainda está aí para as curvas (o desgosto que eu tive por ele não ter ganho o Óscar...), num filme sobre uma velha amizade, e uma nova, e completamente inesperada amizade. A história conta-se até ao último segundo de filme, e parece-nos continuar para lá dele. Uma pérola que recomendo a quem não tenha visto.

The Good German
Há filmes, como Control, em que a opção por filmar a preto e branco é mais estilística que outra coisa, e pouco serve a narrativa. Noutros, como este, essa opção serve a narrativa, transportando-nos a um tempo em que tudo era filmado assim, conta-nos uma história dessa época (à qual eu sou particularmente sensível, confesso), realizado como uma boa homenagem aos filmes dessa altura, e com personagens reais que nos transportam a essa realidade. Pode-se pedir mais?

The Good Shepherd
Já várias vezes disse, em conversas com amigos, que Robert de Niro, ultimamente, tem o "toque de Midas ao contrário". Ou seja, tudo o que faz é mau (os últimos filmes em que tem participado são atrozes). Depois, realiza este The Good Shepherd e eu, felizmente, tenho que morder a língua. Um thriller competentíssimo, inventivo, com um bom argumento e recheado de boas interpretações (até de Angelina Jolie, com a qual eu tenho uma embirração especial). Se é para, no fim de x participações em maus filmes, voltar a realizar filmes destes... que o continue a fazer!

Zwartboek
Paul Verhoeven apresenta-nos um filme sobre uma parte da II Guerra Mundial na Holanda que não é muito conhecida, que é a do papel da Resistência. Conhecemos a história de uma judia holandesa que se torna membro activo da Resistência, do seu papel na mesma, e de várias intrigas que mudam a sua vida. Com alguns desiquilíbrios, é certo, mas com mais méritos ainda (nomeadamente a actriz, Carice van Houten, que brilha, no seu papel "duplo").

Enchanted
Quem me conhece sabe que eu sou fã dos filmes de animação clássicos da Disney (e dos não-clássicos, ou seja, das colaborações com a Pixar, também), e que um grande desgosto meu tem sido a falta desse tipo de filmes. Enchanted veio colmatar essa falha de uma forma extremamente original e competente. Faz reviver todos os mitos dos contos de fadas, e joga-os na perfeição com a vicissitudes da vida moderna. As interpretações de Amy Adams e James Marsden como personagens "na vida real" nunca nos faz esquecer que, na realidade, eles são bonecos animados, de tal modo fiéis se encontram a esse espírito. Entertenimento familiar da mais alta qualidade! (e para os fãs da Disney, como eu, uma aventura de 107 minutos a descobrir citações subtis (ou nem por isso) a obras anteriores do estúdio!)

Menções Honrosas (ou seja, filmes que poderiam constar na segunda metade deste top!)

Knocked Up - Porque é uma comédia pura e dura, bem interpretada, bem realizada... e que no fundo até tem algo mais sério...

Ratatuille - Porque é animação extremamente bem conseguida, inovadora, e tem uma das cenas mais comoventes de todo o ano!

Rocky Balboa - Porque estava à espera de não gostar. Porque me deu vontade de ver os outros. E porque é bom!

Scoop - Para quem tinha a mania que não gostava de Woody Allen, estes últimos anos têem servido de emenda. Comédia inteligente, misturada com drama e thriller, e interpretações... on the spot!

Zodiac - Ainda não vi um filme de Fincher de que não gostasse (embora Fight Club seja o candidato mais próximo), e este não desilude. Não há nada de mau... mas também nada de genial...

2007 - Os piores

Encontrando-me no fim do ano de 2007, chego à conclusão de que, infelizmente, este foi um ano fraquíssimo de cinema. Daí que não tenha sido fácil elaborar uma lista dos piores filmes do ano.

Houve filmes péssimos, que pouco ou nada tinham de cinema, tais como Hitman, Resident Evil, War ou The Last Legion, e que não figuram nesta lista. Isto porque quando eu decidi ir ver esses filmes, já ia com a ideia pré-concebida e com a expectativa de ver MAUS filmes, e que com isso me conseguisse divertir um pouco. E nesse aspecto, não fiquei minimamente desiludida.

A lista que se segue é daqueles filmes que eu considerei maus, penosos de ver... e que me desiludiram de sobremaneira, pois as expectativas aquando do visionamento eram grandes e foram violentamente defraudadas. (A ordem é do menos mau, para o pior)

Rescue Dawn
Não é um filme mau, mas foi uma enorme desilusão. Christian Bale carrega o filme às costas, mas exigia-se mais. Havia potencial para drama humano, e viveu-se aborrecimento, e inúmeros olhares para o relógio a ver se passava o tempo...

Beowulf
A animação está sofrível, o 3D está sofrível, as interpretações não são boas, o argumento até podia ter dado uma obra interessante, mas a realização tarefeira impediu-o.

Il Caimano
A palavra que melhor descreve este filme é "ridículo". Não sei o que Nanni Moretti pretendia com este filme. Que ele fosse ridículo, não era de certeza. Na minha pessoa teve zero em qualquer tipo de impacto que o realizador pretendesse.

Half Nelson
Se Half Nelson queria mostrar alguém sem rumo, sem interesses, sem nada... consegui-o. Mas conseguiu-o de uma forme irritante, por vezes demasiado intrusiva e num tom quase condescendente (as crianças a debitarem artigos da Constituição americana atingem um novo nível baixo no cinema). Cinema é inexistente, e cenas supérfluas abundam.

Ils
Amadorismo puro. Truques básicos para "meter medo" ao espectador. Produção quase caseira. E chega isto a uma sala de cinema...

300
Já com Sin City sucedeu a mesma coisa. Aparece alguém a filmar algo com uma estética diferente, e supostamente bonita, que quem vê, vê apenas isso, e esquece-se de olhar para as personagens e argumento. Estética artística e inovadora talvez. Cinema, personagens, argumento é que não habitam aqui.

Hot Fuzz
Uma comédia é suposto fazer o espectador rir. Esta fez-me bocejar. Pretendia (a pretensão é por demais óbvia) ser uma sátira aos grandes blockbusters de acção de Hollywood. Mas o facto de se levar tão a sério nesse seu objectivo estragou tudo. No tom de gozo com esse tipo de filmes, Shoot 'Em Up é muito melhor (se bem que seja um mau filme, também...)

Corrupção
Banalidades atrás de banalidades, uma das bandas sonoras mais irritantes e absurdas dos últimos tempos, personagens irritantes, que em vez de parecerem reais, estavam a debitar texto, obrigando-me mais uma vez a pôr um filme português nos piores do ano...

Last King of Scotland
Não consigo encontrar algo para dizer bem. É tudo tão exagerado que os pontos que se quisessem marcar, foram todos ao lado.

El Laberinto del Fauno
O filme de 2007 que tem a coragem de olhar o espectador nos olhos e dizer-lhe: "Eu acho que você é burro, portanto vou ser simplista e fazer dos bons muito bons e dos maus muito maus. E como agora até parece que está na moda, vou fazer isto misturado com uma fantasiazita metida a martelo, que é para você achar que eu sou o maior". E se há coisa que eu detesto... é que façam de mim burra!

7.12.07

Era uma vez...


«Enchanted», o novo filme da Disney, recupera precisamente o fulgor encantatório do «Era uma vez…» enquanto gesto primitivo associado ao imaginário das grandes histórias de fantasia e devolve ao espectador a possibilidade de voltar a acreditar. Acreditar em quê? Na fábula enquanto reconquista e celebração do nosso olhar de criança.

Aceitamos o desafio. Era uma vez, pois. Era uma vez uma princesa cantora e um príncipe caçador de monstros que viviam num reino de fantasia à procura do amor eterno. Conhecem-se de manhã, apaixonam-se à tarde e decidem casar e viver felizes para sempre no dia seguinte. Era uma vez também uma rainha malvada que antes do casamento recorre aos seus maléficos poderes para enviar a princesa… para o mundo real. Esse mundo real é a Nova Iorque dos dias de hoje, habitada por personagens frágeis, descrentes e toldadas pelo cinismo dos tempos.

Do choque destes dois mundos nasce toda a magia, um verdadeiro caldeirão de emoções, música e cor cozinhado com a mestria, mas sobretudo com o coração e a memória, da grande herança da Disney. Este filme merece aliás destaque porque não cai no recorrente erro de pensar que basta criar meia dúzia de bonecos falantes ou de príncipes andantes para se construir uma história de fantasia. Ao acreditar verdadeiramente na sua história e nas suas personagens, ao deixar a magia surgir e crescer, «Enchanted» assume-se como uma história de fantasia na sua mais genuína matriz.

A fantasia – a verdadeira fantasia – nasce sempre das personagens e da descoberta que elas fazem (da magia) do mundo e delas próprias. E «Enchanted» nunca tem medo de arriscar essa descoberta e ousa continuamente expor as suas personagens à interrogação capital: pode a fantasia sobreviver à realidade? Ou: ainda há espaço para o sonho fora dos contos de fadas? A resposta é-nos dada pela Disney em todo o seu esplendor e a revelação dessa verdade profunda não podia ser mais encantadora. De resto, é sempre reconfortante saber que uma história de amor ainda se pode decidir numa dança de baile antes das 12 badaladas…

1.12.07

A Tragédia e o Corpo



Finalmente! Digo isto com grande alívio por saber que, vários meses após Inland Empire, é possível encontrar no cinema mais um dos grandes filmes deste ano (que, infelizmente, não foram muitos). Depois de um mergulho profundo no autorismo clássico fordiano com History of Violence, Cronenberg mantém a sua genética cinematográfica no seu mais recente filme - Eastern Promises – reencontrando a biologia do corpo humano como a sua mais iminente e irreversível tragédia. Recentemente, tive a oportunidade de ver o vídeo de uma entrevista de Cronenberg (o Tiago Costa já aqui o colocou) em que o cineasta canadiano se referia ao prolongamento invulgar das suas sequências mais gore e violentas.

Explicava então que a maioria dos filmes corta a sequência antes de acontecer a violação do corpo (um corte de navalha, uma facada, etc), enquanto os seus filmes pretendem explorar um conjunto de reacções desconcertantes que nos assombram ao vermos os segundos seguintes – isto é: a morte do corpo. Mais do que a morte, a própria tentativa biológica do corpo combater a sua morte, o seu destino. Cronenberg torna-se assim uma espécie de encenador operático dos trágicos destinos do nosso corpo, resgatando a gore enquanto estilo vulgarmente associado a série b para um estado de sublimação e catarse da alma humana. Daí que, quando vemos Viggo Mortensen a combater nu e o seu sangue a fundir o corpo com o gélido cenário (e ambos na presença aterrorizante da morte), nada parece estranho nem gratuito. Tudo está contextualizado e pertence a uma realidade formal que o cineasta cuidadosamente preparou e concretizou. Mais do que isso, essa realidade de combater desnudado é quase imposta pelo próprio filme e estranho seria manter-se com a toalha colocada durante a sequência toda. É num certo sentido, a irreversibilidade cronenberguiana. A irreversibilidade da sua tragédia e da sua narrativa.

A história da máfia russa em terras inglesas ajuda a compor um imaginário que, para muitos, será desconcertante e para outros será demasiado próximo. Seja como for, as diferenças culturais serão convenientemente ultrapassadas (mais do que isso, serão assimiladas pelo próprio filme) à medida que se decompõe uma das mais comoventes histórias de amor que o cineasta alguma vez filmou. A dor de Eastern Promises é a mais biológica de todas: a dor de perder um filho. E Cronenberg filma Naomi Watts como um corpo amputado de uma vida que parece querer a todo o custo recuperar numa outra forma (uma bebé que sobreviveu à morte da mãe). E o detalhe afectivo e pictórico de Viggo Mortensen é inquietante!

19.7.07

Cinema em Ebulição


«Death Proof» é a quintessência do cinema puro de Tarantino e uma radical fissura na filmografia do realizador que rasga novíssimas perspectivas cinematográficas. É um filme de reinvenção constante (plano a plano, gesto a gesto, palavra a palavra), que consegue encontrar no banal um terreno de infinitas possibilidades sensoriais e humanas.

Em «Death Proof» vale o Cinema pelo Cinema, num gesto absoluto de liberdade e de autonomia. As suas imagens estão em permanente ebulição e a perspectiva cinematográfica é totalitária e irredutível. Um filme, pois, onde apenas existe Cinema e onde as imagens se esgotam a si próprias e se tornam absolutas. «Death Proof» assume-se, assim, na sua singularidade militante e implacável como um objecto anti-narrativo, anti-convencional, anti-temporal e anti-espacial. Pela nossa parte respondemos ao desafio: é um filme fabuloso para colocar bem no topo da filmografia de Tarantino, ao lado de «Jackie Brown» e de «Kill Bill – Volume 2», as suas obras mais maduras e perfeitas.

E Deus criou a Mulher...


A adoração de Tarantino pelo Feminino é algo já muito conhecido e parte integral da sua filmografia. Uma Thurman e Pam Grier encarnaram exactamente isso em Kill Bill e Jackie Brown. Mas Death Proof é diferente de tudo o que o realizador fez até então neste e em muitos outros domínios. A mulher é aqui vista enquanto entidade colectiva e é de facto impressionante a veracidade crua da interacção entre os vários corpos e vozes femininas, que desta forma se vão tornando em mulheres e personagens de corpo inteiro, lançando o seu irreversível feitiço sobre a câmara.

Quem desconhecesse o assunto em questão diria que se trata de um filme completamente diferente do que realmente é. A realidade é que Death Proof foi inicialmente concebido como uma homenagem ao cinema underground dos anos 70, glorificado nas salas de cinemas Grindhouse, título da double-feature convocada por Robert Rodriguez e Quentin Tarantino, em que os dois filmes, Planet Horror e Death Proof, foram exibidos numa só sessão com o requinte da feitura de trailers falsos alusivos ao tributo. Devido ao flop nas bilheteiras americanas este evento foi dividido nas suas versões completas para distribuição internacional.


E se a deturpação do intuito original dos realizadores parece tê-lo derrotado, o tributo permanece. Tarantino, agora também director de fotografia, invoca a ambiência da exploitation e do B-movie, típica dos anos 70 e pautada por temas que parecem ganhar o estatuto de clássico logo após o visionamento, mas simultaneamente torna-o intemporal. Até porque se a acção do filme é toda ela passada no presente, tal parece ser contrariado na segmentação narrativa e aparentemente temporal das duas porções de história, unidas pela presença ameaçadora de Kurt Russell num papel que o actor junta a um rol de personagens iconográficos como Snake Plissken e Jack Burton. Stuntman Mike é um fetichista da velocidade e do perigo da estrada, transportando o libido distorcido e doentio para acções brutais contra o sexo oposto, nas quais parece obter gratificação ilimitada. A cruel visceralidade das acrobáticas cenas de estrada, magnificamente compostas por um realismo exacerbado, contrastam com o encanto pelo Feminino que parece querer mover toda a acção. As mulheres, especialmente Vanessa Ferlito/Butterfly e Sydney Tamiia Poitier/Jungle Julia, parecem por breves momentos de mágica sedução não ter lugar no mundo real.

Death Proof não só é um filme que só poderia surgir agora na carreira de Tarantino, como que um espontâneo desvio cuidadosamente planeado e encenado com cenas de instantânea antologia, é também uma obra que só poderia surgir agora. Na sua forma autónoma de realização, assume um carácter de emancipação e de liberdade cinematográfica que parece revelar-se quase ocultamente enquanto um objecto de puro mas controlado delírio criativo, sem prisões narrativas e movido apenas pela veneração da imagem não só como o condutor mas enquanto o próprio meio. Será que na ilusória retrospectiva do passado se adivinha um novo futuro?

17.7.07


Esperava-se muito de Death Proof,mais não fosse pelo nome e currículo do seu realizador. Tarantino, o mais original dos “novos” cineastas americanos, sempre soube conjugar o legado dos mais diversos géneros underground e enriquecê-los com uma vida própria, de tal forma que no meio da profusão de citações era sempre possível identificar em qualquer personagem ou situação por ele criada uma marca singular.

Do célebre diálogo sobre o significado da canção Like a Virgin de Madonna (Reservoir Dogs) à sublime sequência da morte de Bill (Kill Bill), passando por uma das mais adultas e comoventes história de amor que já se contou (Jackie Brown), Tarantino foi sempre o cineasta da reinvenção, da explosão de criatividade e nunca o mimo recreador de tardes passadas em frente de um televisor de clube de vídeo que muitos injustamente o acusaram de ser.

Infelizmente, Death Proof parece querer provar o ponto dos críticos militantes de Tarantino. De facto, estamos perante pouco mais que uma colagem de citações, errática e cansativa na sua vacuidade, onde os maneirismos visuais onanistas sobrepostos a diálogos gratuitos tomam o lugar das personagens. Na ausência do mais tímido esboço credível de narrativa, salvam-se por comparação o divertido “boneco” de Kurt Russell e uma eficaz sequência de perseguição final, deixando no entanto a obra muito longe da redenção.

No meio de todo o espalhafato e esbracejar, Death Proof é um nado morto, tomado por uma preguiça e diletância generalizada. Aguarda-se pois um urgente regresso de Tarantino com uma retumbante prova de vida cinéfila.

8.7.07

Crónicas Cinematográficas de Verão


É Verão. O calor aumenta, o cansaço acumula-se e em cinema apetece ver um bom blockbuster de acção ou aventura. Filmes essencialmente de entretenimento (uma vocação de sempre da 7.ª Arte) com boas ideias de cinema. Dir-se-ia, para abreviar, que apetece ver um grande «filme de Verão». E como a história do Cinema está repleta de geniais e memoráveis «filmes de Verão»…

Foi com isto em mente e o calor em fundo que me desloquei à sala de cinema mais próxima para ver «Live Free or Die Hard», o filme que marca o regresso do mítico John McClane. É verdade que o trailer não augurava nada de especialmente memorável (mas quantas vezes nos surpreendemos?). Também é verdade que Len Wiseman não é um autor como John McTiernan (mas Renny Harlin também não é e não é por causa disso que «Die Hard 2» deixa de ser um grande filme). E é igualmente verdade que na sua génese os filmes com John McClane são mais filmes de Natal do que filmes de Verão (mas essa é outra conversa…).

É verdade tudo isso. Mas nada melhor – pensei eu – do que reencontrar uma velha personagem de infância e o transbordante carisma de Bruce Willis (talvez a última grande star do cinema de acção norte-americano). Pensei mal! Nada pior e mais deprimente do que isto! Chega a ser confrangedor observar John McClane (uma apagadíssima sombra daquilo que foi) a passear-se pelas mais enfadonhas cenas de acção que se podem imaginar, ao sabor de um argumento tão patético que só encontra paralelo no inacreditável vilão escolhido. Como se já não bastasse, deparamo-nos também com uma total ausência de base dramática, quer no plano geral quer no plano familiar: John McLane parte em salvação da filha como se estivesse à procura do gato da vizinha do lado; e se o caricatural e unidimensional «mundo» deste filme está em risco, então apetece ser Snake Plissken – sobretudo do «Escape From L.A.», um fabuloso «filme de Verão» – por um dia e mandar tudo pelos ares!



Uns dias antes, eu e vários membros deste blog tínhamos ido à antestreia do «Transformers», programado para passar em projecção digital (factor mais atractivo do que o filme em si). Sucede, no entanto, que a mestria técnica da Lusomundo colocou os espectadores perante um profundíssimo dilema existencial (que jamais pensaria que me fosse colocado numa sala de cinema): a) ou assistem à magnífica projecção digital de «Transformers»… sem som; b) ou (alternativa fascinante) podem usufruir em pleno do som do filme se optarem por assistir à projecção da cópia normal, meticulosa e competentemente desfocada! É claro que «abandonar de imediato a sala» seria sempre uma prometedora terceira opção, mas o peso da inércia fez-nos permanecer sentados a observar as diligentes tentativas da Lusomundo para estabelecer uma quarta e inesperada opção: ver o filme em projecção digital e com som! Nada feito. Após 4 ou 5 tentativas de projecção digital (todas sem som, à excepção de uma em que pudemos ver o genérico do filme ao som da rádio que servia de música ambiente do Cinema) foi-nos imposta a fascinante opção b).

De modo que ver o novo filme de Michael Bay (este sim, ao contrário de Len Wiseman, um verdadeiro autor… apesar de fraquinho) devidamente desfocado foi o nosso destino. O interesse que poderia residir neste filme estaria à partida na possibilidade de recriar em cinema uma mítica série de infância (de novo a infância como desculpa). E a verdade é que durante uma boa parte da sua duração, «Transformers» estava a ser bom entretenimento, com uma gestão minimamente controlada da acção, uma veia cómica interessantíssima e um lado humano minimamente composto. Mas depois o filme descontrola-se, dramatiza-se artificialmente e, enfim, perde coerência e consistência. A projecção, essa, manteve uma coerência e consistência inabaláveis: sempre certeiramente desfocada. Eis a era digital, segundo a Lusomundo (em rima perfeita com
isto).

Resumindo e concluindo: estão difíceis estes tempos de Verão…

24.5.07

4 Notas sobre «Zodiac»


1) David Fincher é, em doses iguais, um realizador sobrevalorizado e um artesão virtuoso. Se é inegável a sua mestria técnica e narrativa, também parece que o seu Cinema raras vezes atinge a profundidade e relevância que poderia alcançar. Em «Se7en», o seu filme mais perfeito e significativo, Fincher atinge um patamar qualitativo que jamais voltou a contemplar; e se em «The Game», notável jogo existencial, o realizador americano volta a desarmar o espectador, em «Fight Club» (de longe o seu pior filme) estatela-se em absoluto numa patetice sem remissão. «Alien 3» e «Panic Room» parecem-me filmes algo irrelevantes na filmografia do realizador.

2) «Zodiac» surge, neste contexto, como um dos melhores e mais interessantes filmes de Fincher. Trata-se, a meu ver, de uma obra de enorme riqueza dramática, que oferece ao espectador personagens consistentes, um conjunto de camadas temáticas bastante pertinentes e um apuro técnico verdadeiramente invejável. Podemos encontrar aqui todo o virtuosismo de Fincher, quer na forma como movimenta a sua câmara, quer nas soluções visuais que encontra para desenvolver a narrativa. Mas a mestria narrativa do realizador americano surge aqui sobretudo no modo como procura manter-se próximo das suas personagens, em detrimento de uma excessiva estilização e retórica visual.

3) As personagens: «Zodiac» é, antes de mais, um filme em que se sentem permanentemente as marcas humanas deixadas pelas personagens que o povoam. Não são, pois, como sucede frequentemente no moribundo modelo do thriller contemporâneo, meros bonecos que se passeiam pela narrativa para fazer avançar a história e para desvendar os mistérios “habilidosamente” fabricados pelo argumentista. As personagens deste filme são meticulosamente construídas e mesmo os elementos mais secundários surgem insuflados de humanidade. Jake Gyllenhaal (o cartoonista), Robert Downey Jr. (o jornalista) e Mark Ruffalo (o polícia) formam um notável vértice humano que espelha todas as fragilidades e dúvidas de uma caminhada por uma verdade.

4) As camadas temáticas: «Zodiac» narra a história, baseada em factos verídicos, da investigação de uma série de homicídios que assolaram a baía de São Francisco nos anos 70 do século passado. À superfície temos, pois, uma narrativa essencialmente policial: perante uma série de homicídios reivindicados por um serial-killer misterioso, desencadeia-se uma investigação em busca do criminoso. Sucede, no entanto, que as circunstâncias que rodearam estes crimes permitem analisar um conjunto de outras questões, que Fincher expõe, com enorme inteligência e subtileza, em toda a sua complexidade. A busca das três personagens principais (e, digamos, do foco da câmara de Fincher) deixa a determinada altura de ser uma busca policial para passar a ser uma busca pessoal, deixa de ser a busca de um assassino para passar a ser a busca de um reequilíbrio interior. Ao atentar sobretudo nas consequências do crime para os investigadores, ao penetrar nas teias obsessivas por eles criadas, «Zodiac» afirma-se como um filme sobre a amarga inquietude da dúvida, sobre o desassossego interior provocado por uma caminhada sem retorno. E se a natureza da verdade, a ambiguidade dos comportamentos e as relações com os media são também temas amplamente analisados, retém-se sobretudo essa perseguição feita pelas personagens centrais. Uma perseguição que é uma espiral onde o espaço perde identidade e o tempo parece entrar em colapso. Só sobra a obsessão.